Os estudos históricos sob a perspectiva do imaginário vêm se revelando uma tendência cada vez mais presente nas investigações sobre o medievo, incentivada, sem sombra de dúvida, pelos trabalhos de Jacques Le Goff acerca do imaginário medieval, que ele aborda em obras como O imaginário medieval, O nascimento do Purgatório e, mais recentemente, Heróis e maravilhas da Idade Média. No seu entender, entre as fontes passíveis de serem utilizadas pelos historiadores, são as obras literárias e artísticas que despontam como documentos privilegiados para o estudo do imaginário.[1]
Tal influência se encontra em Da Ilha dos Bem-Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade Média, livro da Prof. Dra. Adriana Zierer, docente da UEMA e professora colaboradora do Mestrado em História Social da UFMA. O subtítulo, ao fazer alusão à obra coletiva anterior, publicada em 2010 sob sua coordenação, é indício de sua constante jornada pelos caminhos do maravilhoso e das representações simbólicas e imaginárias da Idade Média, uma vez que as fontes literárias e artísticas constituem o ponto de partida da autora. O livro reúne 21 trabalhos publicados em periódicos e livros diversos entre 2000 e 2011, que estão distribuídos nas seis grandes temáticas sobre as quais Adriana Zierer se debruçou ao longo desse período, a saber: Ilhas Míticas e Paraíso Terreal; Viagens Imaginárias ao Além; Diabo na Idade Média; O Rei Artur, o Graal e o Uso Político; Simbolismo do Rei Medieval; e Santidade, Guerra e Paganismo na Antiguidade e Idade Média. Do total de artigos, dois foram escritos em coautoria com o Prof. Dr. Ricardo da Costa, da UFES, e um foi realizado em conjunto com Solange Pereira Oliveira, mestranda da UFMA.
E o que era a Ilha dos Bem-Aventurados que dá nome ao livro? Segundo a mitologia de povos de fundo céltico, era o local da abundância e da imortalidade (p. 25), sendo que alguns sinônimos também desfilam ao longo do livro. Ilha Afortunada, noção que já existia entre os gregos, explicada depois por Isidoro de Sevilha e na Baixa Idade Média, se fundiu com a noção da Ilha Céltica de Avalon, a Ilha das Maçãs (Insula Pomorum) (p. 26). Ou Ilhas Abençoadas (p. 38); ou, ainda, Outro Mundo – terra dos seres feéricos e da abundância infinita (p. 38). Quanto ao Paraíso Terreal, a concepção cristã o situava em algum lugar do Oriente, mas em local inacessível aos seres humanos (p. 31).
A preocupação com a morte era uma constante, e os modelos de salvação estão exemplificados através das narrativas sobre São Brandão (Navigatio Sancti Brendani Abbatis) e Santo Amaro (Vida de Sancto Amaro), ambas permeadas pela influência dos imrama, relatos irlandeses de navegação pelo mar (p. 43). Igualmente preocupada com a salvação da alma estava a viagem imaginária Visio Tundali (Visão de Túndalo), obra produzida no século XII em latim e traduzida para o português no século XV. Ao explicar os tormentos do Além através do diálogo entre o nobre cavaleiro Túndalo e o anjo, o caráter didático da obra fica evidenciado, levando Adriana Zierer à conclusão de que a salvação “[…] era a preocupação fundamental dos medievos mais pelo pavor do castigo que pelo anseio do Céu. Quanto a atingi-la, representava uma árdua batalha para a alma humana, que se debatia entre o desejo dos prazeres e o terror do abismo infernal”. (p. 103). Esse Além cristão, inicialmente dividido em Paraíso e Inferno (p. 32), foi ampliado no século XII quando da criação de um lugar intermediário, o Purgatório (p. 33). A salvação da alma realizava-se, portanto, através de deslocamentos espaciais, e estes incluíam as peregrinações em busca de relíquias (p. 31). Mas a incerteza quanto ao destino final – Paraíso ou Inferno – de cada indivíduo também podia se fazer representar pela Roda da Fortuna, metáfora medieval da instabilidade e da fugacidade do tempo, e objeto do artigo escrito em conjunto com Ricardo da Costa a partir de um estudo comparado entre a Consolatio Philosophiae de Boécio (séc. VI) e a Ars de Ramon Lull (séc. XIII), e que conclui com a afirmação de que “[…] todas as glórias do mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz Supremo, e os que estavam no alto da Roda, poderão cair no Inferno, ao passo que as almas dos bons viverão na eterna bemaventurança, ao lado de Deus” (p. 329).
Mas o personagem que ocupa uma parte bastante significativa nos trabalhos de Adriana Zierer é aquele que, no entender de Jacques Le Goff, foi, entre os séculos VI e XVI, um personagem novo e específico da história: o rei medieval.[2] De fato, este personagem é objeto de nove artigos, dos quais oito giram em torno do que a autora identifica como a “lenda do rei perfeito” (p. 156): o rei Artur. Seu uso político estaria vinculado aos reis anglo-normandos, em especial Henrique I (1100-1135) e, principalmente, seu neto, Henrique II (1154-1189), conhecido como Plantageneta. Muito embora a figura de Artur possa ser encontrada já no século VIII, na Historia Brittonum, de Nennius, foi no século XII, a partir da Historia regum Britanniae, de Geoffrey de Monmouth, que Artur recebeu um papel de destaque na literatura ocidental (p. 157). Adriana Zierer sustenta que tal obra, realizada por encomenda de Henrique I, passou a ser usada para fins políticos, uma vez que objetivava estabelecer uma associação entre os reis anglonormandos e a antiga linhagem bretã através de Artur, seu mais nobre representante (p. 158). Quanto à cristianização do mito arturiano, esta tem no Graal seu elemento mais expressivo. Introduzido por Chrétien de Troyes no romance Perceval, o Graal, inicialmente uma escudela, foi cristianizado ainda no final do século XII por Robert de Boron, que o transformou no cálice usado por Jesus na Última Ceia, e onde José de Arimatéia recolheu o sangue de Cristo na cruz (p. 161). Apenas Galaaz, o cavaleiro perfeito, porque puro, consegue encontrar o Graal, que para Zierer era “[…] ao mesmo tempo um alimento corporal e espiritual, uma visão indescritível banhada de luz, que ascendeu ao céu, juntamente com Galaaz, após a visão dos seus mistérios” (p. 162).
A santidade, crença tão marcante no medievo, também recebeu a atenção de Adriana Zierer, que juntamente com Ricardo da Costa, se dedicou ao estudo da Vida de Macrina, em artigo que analisa o conceito de santidade e de ascetismo feminino, bem como a importância da virgindade para o Cristianismo do século IV. Mas a Antiguidade também fornece elementos para outros estudos de Adriana Zierer sobre o período medieval, como no artigo sobre a imagem do herói no poema Waltharius, produzido entre os séculos IX e X, e no qual Zierer identifica atributos de heróis clássicos – como Ulisses e Enéias – nos principais personagens masculinos, Valtário da Aquitânia e Hagen, guerreiro franco. Ou, ainda, através das analogias entre a simbologia da cabeça cortada entre os celtas e o mito grego da Medusa, no artigo que encerra a publicação.
A par dos documentos literários, vários artigos incluem imagens, cuja inserção não se restringe a um caráter meramente ilustrativo, uma vez que são utilizadas como fontes de cunho artístico para a análise das temáticas abordadas, como por exemplo, no artigo sobre os significados medievais da maçã, cujo ponto de partida consiste em documentos iconográficos, no caso duas obras de Lucas Cranach, o Velho, ambas do século XVI: Adão e Eva e A Virgem e o Menino (p. 20 e 22). Entre as imagens selecionadas, predominam as produzidas no século XV, tais como Os Sete Pecados Capitais, de Hieronymus Bosch (p. 92); O Juízo Final, de Fra Angelico (p. 96 e 99); Túndalo e o Anjo com os fiéis no casamento (p. 121); e O Santo Graal na corte do rei Artur (p. 223), só para mencionar algumas, confirmando a permanência de imaginários medievais sobre o Além e sobre o ciclo arturiano no alvorecer da cultura renascentista.
As análises de Adriana Zierer contém, ainda, um viés comparativo, sintetizado pela autora em forma de quadros bastante elucidativos, como O Além em Obras dos Séculos II e III (p. 80), no qual compara os Apocalipses de Baruch, Esdras, Pedro, Paulo e o IV Livro de Esdras; ou no quadro sobre Artur como Guerreiro e Rei Cristão (p. 168), onde compara a trajetória dos atributos do referido rei nos séculos VIII, XII e XIII na Historia Brittonum, na Historia regum Brathair Britanniae e em La Queste del Saint Graal, respectivamente; ou o papel de Artur nas fontes ibéricas medievais, através de comparações entre o Libro de las Generaciones e o Nobiliário do Conde Dom Pedro (p. 245, 246, 247, 253 e 259).
Da Ilha dos Bem Aventurados à Busca do Santo Graal alcança, portanto, o intuito de sua autora, para quem o livro “[…] contribui com a constante necessidade de formação e aperfeiçoamento dos pesquisadores dos estudos medievais e que contribuirá com o surgimento de novas pesquisas na área” (p. 18).
Notas
1. LE GOFF, Jacques. L’imaginaire médiéval. Paris: Gallimard, 1985, p. III.
2. LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. II, p. 395.
Maria de Nazareth Corrêa Accioli Lobato – Doutoranda em História Comparada – UFRJ nazalobato1@gmail.com
ZIERER, Adriana. Da Ilha dos Bem-Aventurados à busca do Santo Graal: uma outra viagem pela Idade Média. São Luís: Editora UEMA, 2013. Resenha de: LOBATO, Maria de Nazareth Corrêa Accioli. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.13, n.2, p. 129-132, 2013. Acessar publicação original [DR]
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