Quem estudou, mesmo que brevemente, algumas questões da história e da cultura dos celtas já se deparou com as grandes divergências que aparecem entre os investigadores, sobretudo nos últimos anos. Os estudiosos dos celtas da Galiza (os castelhanos preferem que se diga Galícia) não fogem à regra, e não será difícil encontrar entre eles opiniões diferentes em pontos importantes da história dos celtas galegos (ou calaicos). Duas coisas são certas: que há hoje em dia muitos pesquisadores com trabalhos sérios e pesquisas alentadas, e que o acervo de conhecimentos obtido ainda não é suficiente para se dirimirem as divergências, algumas delas das mais relevantes e fundamentais, como as que Balboa Salgado coloca no início do seu livro: qual o conceito de celtas? Os galegos têm origens celtas?

Três são as posições básicas com que o A. abre a discussão: para os estudiosos mais conservadores, e para os nacionalistas galegos do século XIX, os celtas constituíam um povo que, em invasões e migrações, disseminou pela Europa ocidental uma cultura bem identificada e distinta das demais – mas hoje, tais invasões são muito discutíveis, e as idéias de povo e de cultura celta devem entender-se com muita variedade de concretizações, e flexibilidade de definição. A reação contrária seria a segunda opinião, e consistiu em negar a própria existência dos povos e culturas celtas, que não seriam mais do que construções literárias, às vezes com propósitos políticos separatistas; também esta posição cética radical não é mais aceitável, frente à convergência de inúmeros testemunhos e pesquisas, que constituem o arcabouço da metodologia do autor. Embora ainda se encontrem estudiosos que mantêm opiniões próximas a estas duas antagônicas a posição atual, que Balboa segue, é crítica sem ser negativa. É neste sentido, cuidadoso, e procedendo por análises precisas dos vestígios encontrados, que Balboa empreende seu trabalho de exposição geral do celtismo galego. Nele recolhe e completa três publicações suas sobre religião, guerra, e língua, que permanecem como os capítulos do livro. Como é de praxe em obras desta natureza o autor começa por apresentar as narrativas de antigos escritores gregos e romanos – Estrabão, Pompônio Mela, Plínio, Floro – sobre os diversos povos calaicos; passa ao estudo das inscrições em estelas funerárias e tésseras; como nestas os indivíduos se dizem celtas, da comparação entre elas e as narrativas, e outros dados arqueológicos, Balboa conclui que na Galiza Romana (a Galécia) e pré-romana existiram povos que se consideravam, e eram considerados, celtas. Destes dados iniciais retira ainda o autor duas hipóteses: a existência de chefias locais, e a importância da hospitalidade na sociedade galega antiga.

É sobre tais elementos preliminares que Balboa vai construindo o esboço geral da Galiza celta, sempre confirmando a celticidade com novos dados obtidos, sobretudo pela arqueologia. Na religião o A. destaca os santuários esculpidos na rocha no alto dos montes, mostrando a existência de sacrifícios e daí a possível existência de uma classe religiosa; analisando porém as referências ao tema supõe que as pessoas encarregadas do culto teriam organização e poderes inferiores aos dos druidas de outras regiões célticas. As poucas alusões aos deuses – nomeadamente Lug, em Lugo – que se encontram, mormente epigráficas, mostram também certa afinidade com o panteão de outros povos celtas. Muitos outros topônimos e termos referentes a objetos têm origem evidentemente celta, e é destes paralelismos que o A. se serve amplamente para confirmar sua suposição de que os galegos têm origem celta indiscutível.

Balboa faz constantes referências aos celtiberos e particularmente aos lusitanos, que viviam em estreita vizinhança com os calaicos do sul, o atual Norte de Portugal, entre Douro e Minho. Faz muitas alusões à Irlanda, tanto no vocabulário como em aspectos da sociedade (juramentos, irmandades) – relação histórica que conhecemos bem através de Raimón Sainero, palestrante do simpósio do Brathair em São João Del Rei (cf. resenha do Livro de Atas). Tal como Sainero e outros pesquisadores, Balboa procura por vezes enquadrar os traços celtas da Galiza no quadro mais amplo indoeuropeu. Mas por vezes deixa passar, ou esquece, alusões que poderiam reforçar esse paralelismo, como no topônimo Eburia, e Eburus, que ele cita e que corresponde ao de Évora em Portugal e a York na Nortúmbria; ou o gaulês Dumnorix, o Rei da Fortaleza, que poderia ter comparado com dun, ou duns, povoado fortificado, na Escócia. Aparte estas e outras falhas menores (falta de mapas com os nomes das atuais localidades e rios que ele cita) o livro é muito bem documentado com imagens e mapas antigos, e é de elogiar a variedade de fontes e, sobretudo, o uso criterioso dos textos.

João Lupi – UFSC. E-mail: lupi@cfh.ufsc.br


BALBOA SALGADO, Antonio. A Galicia celta. 2ª edição. Santiago: Edicións Lóstrego, 2007. Resenha de: LUPI, João. Os galegos têm origens celtas? Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.9, n.2, p. 44-45, 2009. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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