Sustentar uma aparência foi, durante alguns séculos no Ocidente, um meio de pertencer a determinado estado social e fazer valer algumas regras que lhes eram próprias. Dessa maneira, as normas de conduta que circularam na Castela dos séculos XIV e XV expunham as preocupações de homens e mulheres cristãos que desejavam, por meio da razão natural, manter a ordem no reino. Entretanto, ainda que os letrados castelhanos tenham concedido maior espaço em seus escritos para aplicar correções nos trajes e nos desvios das mulheres, as mudanças na forma das vestimentas e de que maneira as práticas dos súditos e fiéis mudavam conjuntamente não deixaram de fazer parte de suas prédicas, conselhos ou leis. À vista disso, debruçar-se sobre essas transformações e sobre os modos com os quais os homens daquela época descreveram seus contemporâneos torna-se fundamental para a compreensão da composição social, ou seja, o lugar e o direito que cada estado dispunha dentro dessa sociedade.
Os homens de saber da Castela dos séculos XIV e XV procuraram narrar a postura que os súditos do reino deveriam manter dentro e fora de suas casas. De modo geral, malgrado a preocupação que tinham as famílias de assegurar seus estados e proteger seus bens, o regramento sobre os panos, toucas e sapatos difundiam saberes sobre os pecados em que poderiam cair todos aqueles que se vestissem ou se afeitassem de modo errado. Dessa maneira, se durante os séculos XVI e XVII os legisladores se apoiariam sobre a ideia de que as vestes expunham primeiramente o direito ou o ofício – como propôs, em alguma medida, Norbert Elias em A sociedade de corte 2 ao observar os comportamentos e a mentalidade que ordenavam a sociedade do Antigo Regime e ao considerar as roupas como parte dessa estrutura –, até o século XV as vestimentas e a aparência deveriam, acima de tudo, demonstrar a verdade e a honestidade que a alma carregava. Assim, lançando mão de tratos canônicos, cadernos de cortes, ordenamentos, leis e outros documentos de cunho normativo e moralizante, um passo em direção a essas reflexões é o que dá Thiago Henrique Alvarado em seu livro lançado em 2017, Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV.[ 3]
Alinhando-se a trabalhos recentes da historiografia que abordam costumes e regras na península Ibérica, Thiago Alvarado busca, entre outros objetivos, mostrar como uma ordem estamental pôde ser afirmada a partir do regramento e cuidado com o vestir-se. Ainda que muitos estudos atuais versem principalmente sobre as diferenciações sociais e a intenção da coroa e da Igreja em manter o equilíbrio entre os estados, [4 ]Alvarado concede igual importância para as descrições das condutas morais e dos conselhos para uma vida virtuosa. Como ilustrativo dessa ideia, o autor lança mão, entre outros documentos, do Tratado provechoso que demmuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados, [5]escrito pelo frei da Ordem de São Jerônimo, Hernando de Talavera, durante o século XV. Mais que observar a maneira como Talavera definia e normatizava os estados e seus lugares sociais, o autor aponta que os prelados e os regedores daquela época deveriam ordenar os trajes dos súditos para que os povos fossem justos, virtuosos e bons.[6]
Descritas como necessárias “para a salvação dos homens” ou como um “meio de salvaguardar os corpos” das intempéries e da natureza, as vestes que os homens e mulheres carregavam e com as quais cobriam suas vergonhas ganham, aos olhos dos reis e clérigos, dimensões teológicas. Preocupado com tais narrativas, que em determinados momentos divergem uma das outras, Alvarado se pauta pelos escritos que reconheceram os panos como proteção indispensável para todos aqueles que necessitavam cobrir suas fragilidades. Se por um lado o destaque à vestimenta é feito quando os castelhanos tratavam do momento da “queda do homem”, quando ele se descobre nu e tem vergonha de suas partes; por outro, também é dado o destaque para a função que assumia quando expunha no homem a “formosura e pureza da alma”.[7] Dessa forma, as vestes assumem, na voz de Talavera, um caráter transitório, pois, a graça da qual o homem se despiu ao desobedecer a Deus no paraíso seria retomada no Juízo Final, quando, em um ato de reconciliação com Ele, o homem seria revestido pela graça divina uma vez mais. O vestir-se e o cobrir-se ganham, mais que um significado literal, um sentido metafórico. Durante a vida, enquanto os homens transitavam do pecado original ao Juízo Final, o corpo deveria ser coberto pela castidade, penitência e mortificação da carne.
De outra maneira, Alvarado salienta principalmente duas ideias de vestimenta não necessariamente distintas: aquela que cobre o corpo, esconde as vergonhas e protege os homens das ações naturais; e outra que recobre a alma, garante a pureza e a limpeza do espírito. É fundamental, sob o olhar de Thiago Alvarado, que ambas as características das vestes fossem prescritas e assimiladas corretamente por cada estado, pois, tanto as regras morais, quanto as recomendações de proteção eram difundidas entre as mulheres de baixa linhagem, as damas e a rainha. Dando voz a letrados que tiveram grande importância no período – entre outros Afonso de Madrigal e Frei Martin de Córdoba – o autor parte de regras gerais à vestimenta e das funções que essa tinha no cotidiano de cada súdito do reino e acaba por clarificar o papel que as vestes assumiam na vida de mulheres de diferentes estados.
É por meio da mulher e de seu papel na família que o autor observa as condições financeiras e hierárquicas dos grupos dos séculos XIV e XV. Lançando mão de um período em que o reino castelhano passava por uma crise financeira e lidava com os mouros e os judeus, Alvarado mostra que a importância das mulheres é percebida quando os documentos prescrevem diversas regras para que, quando fossem se adornar e se vestir, os fizessem correta e virtuosamente. Enquanto o homem era descrito como vinculado a um ofício, as mulheres carregavam as marcas do estado e de seu vínculo familiar, ou seja, por meio delas, Thiago Alvarado pôde dar a conhecer a condição dos estados nos reinos e as organizações jurídicas sobre eles. Em relação aos outros povos que se instalaram no reino, partindo das leis dos reis Afonso X e Afonso XI, o autor procura debater a importância das cristãs se diferenciarem das hereges e das fiéis de outros credos e priorizarem transparecer, acima de tudo, a honestidade e a lealdade ao reino e à Igreja.
O estudo de Thiago Henrique Alvarado ganha mais destaque pelo mapeamento que se propõe a fazer. As funções que as vestes assumem nos séculos XIV e XV e a maneira das mulheres castelhanas se cobrirem e se adornarem são expostos ao leitor por meio de uma série de documentos legados por tratadistas, cronistas, prelados, teólogos e outros moralistas. Podese observar que para compreender a situação no reino e a produção de leis a todos os estados, Alvarado elenca, entre outras obras, Las Siete Partidas de Afonso X,[8] e o livro dos ordenamentos das cortes de Castela e Leão, Cortes de los antigos reinos de Castela y León.[9] Para observar os padrões morais cristãos que eram cobrados a todos os estados, o autor lança mão da obra de Ludolfo de Sajonia, Vita cristi…;[10] de Jacopo de Varazze, Legenda áurea; [11] além dos tratados e escritos de Afonso Madrigal, Martín Pérez, Clemente Sanchez de Vercial, Hernando de Talavera, e dos concílios de Valladolid e Toledo. Ainda que muitos desses documentos não abordassem unicamente um assunto, mas buscassem compilar os saberes necessários para que os homens e mulheres vivessem sob as regras divinas e reais, o autor ainda destaca alguns que tratavam propriamente das vestes e dos estados, são eles: Virtuosas e claras mugeres,[12] de Alvaro de Luna; La reina Doña Isabel la Católica…¸[13] da rainha Isabel; Carro de las donas,[14] de Francesc Eiximenis; entre outras obras que traziam regramentos sobre a castidade e a pureza das mulheres.
É, portanto, por meio desses escritos e de outros da época que Thiago Henrique Alvarado procura descrever certas práticas do período em questão que foram expostas nas prescrições de autoridades eclesiásticas e laicas. Tendo como objetivo principal mapear os hábitos e costumes e descrever as práticas associadas aos trajes, o autor perpassa por três questões fundamentais. No primeiro capítulo, trata das queixas que as autoridades faziam a respeito da vestimenta e como transgredir as regras sobre a roupagem afetava a organização dos estados presentes no reino. No segundo, Alvarado procura debater sobre os valores morais que permeavam as normativas. Também aqui é de interesse do autor entender de que modo as leis foram criadas, com a finalidade de ordenar o cotidiano de mulheres e homens castelhanos.
Por fim, o terceiro capítulo debruça-se sobre as características “tidas por naturais” de cada vestimenta. Na visão do autor é fundamental entender, juntamente com as regras e os valores morais, como as mulheres foram aconselhadas em práticas virtuosas e alertadas sobre as pecaminosas ao vestirem-se e afeitarem-se. Por meio desse mapeamento e dos debates levantados por Alvarado, o trabalho monta um panorama de alguns principais costumes presentes no reino de Castela nos séculos XIV e XV.
Ao final do trabalho, conclui-se que as mulheres deveriam afastar-se da imagem de Eva, primeira pecadora e que instigou ao pecado também o homem, e aproximar-se do exemplo de Maria, virgem, comedida e fiel a Deus. As vestes seriam, então, uma importante ferramenta para observar se as mulheres seguiam os conselhos e se tornavam a imagem de pureza e castidade, ou se fugiam das regras e vestiam-se de forma desvirtuosa e com excessos de enfeites e chamativos. A fim de mostrar tanto as peculiaridades das vestes das mulheres, como a maneira com que a sociedade castelhana foi ordenada e descrita, Thiago Alvarado questiona: havia lugar para formosura e afeites nos hábitos das mulheres? De que modo as autoridades daquele período buscaram ordenar os costumes por meio das mulheres e suas vestimentas? Vale ressaltar que tanto nas palavras de Alvarado, como pelo suporte historiográfico que apresenta, a ordenação dos costumes não era uma forma de imposição de classes ou uma maneira de controle, ao contrário, observar as regras que circularam e ordenaram o cotidiano das mulheres e homens nos séculos XIV e XV é tido por Alvarado como uma forma de compreender os valores que aqueles mesmos homens descreveram como indispensáveis para a época.
Notas
1. Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.
2. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
3. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.
4. ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999); pp. 263-278, 1999. p. 264-265
5. TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.
6. ALVARADO, Thiago Henrique. op. cit., p.17-18
7. ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017, p.80.
8. LAS Siete Partidas del Rey Don Alfonso el Sabio…. Madrid: Imprenta Real, 1807, 3 tomos.
9. CORTES de los antiguos Reinos de León y de Castilla. Madrid: Imprenta y Estereotipia de Rivadeneyra, 1863
10. LUDOLFO DE SAJONIA. Vita cristi cartuxano romãçado por fray Ambrosio. Alcalá de Henares: Lançalao Polono, 1502-1503, 4 vols.
11. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
12. LUNA, Álvaro de. Virtuosas e claras mugeres (1446). Edición, introducción y notas de Lola Pons Rodríguez. Segovia: Fundación Instituto Castellano y Leonés de la Lengua, 2008
13. LA Reina Doña Isabel la Católica. Á su confesor, don fray Hernando de Talavera. In: EPISTOLARIO Español. Tomo 2. Madrid: M. Rivadeneyra, 1870
14. EIXIMENIS, Francesc. Carro de las Donas. Valladolid, 1542. Estudio y edición de Carmen Clausell Nácher. Madrid: Fundación Universitaria Española/ Universidad Pontificia de Salamanca, 2007, 2. vols.
Referências
ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017.
ALVAREZ-OSSORIO ALVARIÑO, Antonio. Rango y apariencia. El decoro y la quiebra de la distinción en Castilla (SS. XVI-XVIII). Revista de historia moderna, n.17 (1998-1999), pp. 263-278, 1999.
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TALAVERA, Hernando de. Tratado provechoso que demuestra como en el vestir e calçar comunmente se cometen muchos pecados. In: CASTRO, Teresa de. El tratado sobre el vestir, calzar y comer del arzobispo Hernando de Talavera, Espacio, Tiempo, Forma, Serie III, Historia Medieval, n.14, 2001.
Rodolfo Nogueira da Cruz – Mestre em História (2018) pelo Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca. Atualmente, doutorando em História vinculado ao Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP), campus Franca.
ALVARADO, Thiago Henrique. Vestidas e afeitas para serem virtuosas: as mulheres na Castela dos séculos XIV e XV. São Carlos: EdUFSCar, 2017. Resenha de: CRUZ, Rodolfo Nogueira da. Lei e costume na Castela dos séculos XIV e XV: Vestidas e afeitas para serem virtuosas. Aedos. Porto Alegre, v.10, n.23, p.374-379, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
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