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Um Só Corpo, Uma Só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no Recife Colonial (1790-1800). | Gian Carlo de Melo Silva

“Um só corpo, uma só carne: Casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800)”, escrito pelo historiador Gian Carlo de Melo Silva, formado pela Universidade Federal Rural do Pernambuco (UFRPE), é professor adjunto dos cursos de História da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) onde desenvolve pesquisas na área de História Social e Cultural com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos temas de: Escravidão, Família, Mestiçagem, Cotidiano, Batismo, Casamento, Igreja Católica, População, Sociedade e Cultura. Estudou os vários casos de casamento na região do Recife colonial, escrevendo essas análises na obra citada acima. Assim, esse tema foi amplamente trabalho em sua dissertação de mestrado defendida em 2008, cujo resultado foi recentemente publicado.

Dessa forma, ao pesquisar os tramites que envolviam na ação de casar, ele propõe compreender a função social do matrimônio na sociedade colonial do Recife e como a população conseguiu se apropriar desse sacramento para alcançar seus desejos e suprir necessidades. O autor dividiu o livro em três capítulos, com o intuito de construir uma ordem que possibilite o entendimento sobre as regras matrimoniais e seus sentidos durante o período do século XVIII.

No decorrer dos capítulos, o autor tenta nos demonstrar como tais normas matrimoniais eram aplicadas ao cotidiano do Recife colonial. Ele articula uma narrativa que associa os registros matrimoniais aos levantamentos populacionais, para identificar à mestiçagem na freguesia em questão, com que frequência ocorria os casamentos, em que mês, em quais horários, quem eram os padrinhos e as origens dos nubentes. Essas análises foram necessárias para se entender como funcionava o casamento no Recife colônia, qual era o público atendido, e o que tal sacramento poderia trazer de benefício a essas pessoas e a própria igreja. Pois o assento de casamento não era um simples registro, como o próprio autor afirma, de dois corpos, mas o local onde um conjunto de práticas sociais se encontrava.

No primeiro capítulo, “A Lei e o Casamento no Império Ultramarino Português”, o autor expõe as prescrições religiosas e civis que regulamentavam o casamento no Brasil colônia, nas quais vinham do Concílio de Trento e das Ordenações Filipinas. Essas normas não facilitavam o enlace dos nubentes, que ao solicitarem o pedido de casamento, precisavam passar por diversos “banhos” ou seja, investigações que a igreja realizava sobre a vida dos noivos. Era uma série de proibições ou impedimentos que poderiam anular a união, com a intenção de identificar qualquer infração contra a fé, como bigamia, falsificação de documento de um dos noivos em se passar por outra pessoa; “Condição” que se relacionava aos escravos que em muitas ocasiões tentavam se passar por pessoas livres enganando o outro consorte; “Voto” relacionado às ordens sacras e religiosas; “Cognição” que diz respeito ao parentesco espiritual, legal ou natural, que poderia existir a partir do batismo, consanguinidade até o quarto grau e através da adoção, respectivamente; dentre outras proibições impostas pelas normas Tridentinas e aplicadas à colônia.

No entanto, o que devemos entender dessas inúmeras normas, é o fato delas refletirem uma sociedade que se submete a elas, devido aos valores sociais e culturais que foram alvos dessas leis, como a condição civil voltada para o sistema escravista, onde o cativo só poderia se casar com a autorização de seu senhor. No entanto, a questão que é colocada, não apenas neste capítulo quanto no restante do livro, é o por quê de tantas pessoas, mesmo com essa série de normas, tinham tanto interesse no casamento.

Segundo o autor, o casamento ganhou grande importância na sociedade colonial por permitir que as pessoas pudessem frequentar círculos sociais ou até mesmo pleitear cargos públicos. Assim, um grupo social não ideal conseguia viver sendo aceito e tolerado socialmente pelos demais grupos que se encontravam plenamente adequados aos códigos normalizadores vigentes. Ademais, a igreja fez questão de estar sempre presente em todas as fases da realização do matrimônio, seja no processo de “banhos”, seja nas denunciações. Uma tentativa de desterrar os pecados e contradições da colônia, colocando homens e mulheres sob a tutela da fé católica, seguindo os preceitos Tridentinos, e salvando o rebanho de Deus. A igreja realizava uma espécie de combate ao pecado, no qual legalizava as relações ocasionais e não oficiais daqueles colonos que viviam em pleno pecado. Contudo, devemos lembrar que toda essa gama de leis, tanto a do Concílio de Trento quando das Ordenações Filipinas, foram adaptadas à realidade colonial. Diversos homens, que deixaram suas famílias na metrópole, tinham o seu enlace anterior “esquecido” ou simplesmente ignorado, tendo em vista que já tinham contraído novas relações na colônia, o que contribuiu no momento do novo selamento matrimonial, permitindo aos clérigos abençoar várias uniões. Uma espécie de “vistas grossas” foi feito em boa parte do período colonial.

O capítulo dois, intitulado, “O Teatro Social mostra o cotidiano da freguesia de Santo Antônio do Recife através dos casamentos”, teve como objetivo, como o próprio título sugere, os costumes e o cotidiano das pessoas da freguesia de Santo Antônio, e também as especificidades ou semelhanças com outros locais da colônia comparando com a região de Pernambuco. A freguesia de Santo Antônio do Recife tem sua história marcada desde o período holandês, por ter sido escolhida como sede do governo nassoviano [1]. Seu espaço físico tinha o seu limite indo desde a ponte dos Afogados até a Boa Vista, e desta até o meio da ponte do Recife. Mas antes da invasão holandesa, Santo Antônio era uma aldeia de pescadores, e Nassau a transformou em uma cidade, na qual teve um grande crescimento populacional, passando a integrar com São Frei Pedro Gonçalves e posteriormente Boa Vista, freguesias centrais e povoadas. O autor afirma que, Santo Antônio além de ser o bairro central, foi desmembrada, poucos anos antes, da parte mais antiga de Recife.

Neste capítulo, o autor faz uso de dados quantitativos relacionando o momento dos enlaces, a cor dos noivos, mês, hora e tipologia das dispensas. Tal organização documental, o ajudou a descortinar um assunto que passou, de certa forma, despercebido por muitos historiadores: a questão da cor. Casar-se poderia significar uma “elevação” ou uma “amenização” da cor negra com relação aos brancos. Aqueles que eram forros possuíam o estigma da cor parda ou negra, e muitas vezes eram chamados de crioulos, o que os associava à escravidão. Assim, uma tática social que possibilitava a melhor aceitação na sociedade dessas pessoas era através do casamento, no qual as condicionavam a uma espécie de status social. Um símbolo do qual conferia ao indivíduo o respeito das demais pessoas, cuja união havia sido abençoada pela santa igreja, sendo assim a prova de que tinha uma vida condizente a todas àquelas normas já mencionadas acima.

No entanto, a análise quantitativa não enfatizará somente as cores dos consortes. Os dias e meses em que eles escolhem para realizar a cerimônia é um detalhe a se atentar. Os dias não são escolhidos ao acaso. Os feriados santos são respeitados, principalmente o período de quaresma, em que era o momento de se jejuar antes da Páscoa, então os casamentos não eram realizados. Isso faz com que as tabelas variassem, devido à mudança dos dias de feriados santos. Mas mostra também a extrema respeitabilidade em que as pessoas tinham por esses dias, e como os casais tinham que respeitar tais dias, se queriam que o casamento ocorresse.

Por fim, o capítulo três, “A Constituição Familiar e a Mestiçagem na Freguesia”, teve como foco o estudo da população composta por brancos, negros, índios, pardos, cabras e crioulos e por onde observar a distribuição da população, suas cores e a inserção social proporcionada àqueles que se casaram. Desse modo, o autor poderia, por conseguinte, analisar o cotidiano dessas pessoas, principalmente dos mestiços daquela região.

Podemos começar a análise com o início da colonização. Vieram muitos homens, e mesmo aqueles que eram casados, deixaram suas mulheres no Velho Mundo, se relacionando inicialmente com as índias e posteriormente com as negras. No caso da convivência com as índias, os jesuítas tentavam combater a aproximação dos colonos com elas, já com as negras foi mais complicado. Gilberto Freyre nos demonstra as várias relações que os senhores tinham com suas escravas que habitavam nos casarões, e a ira das senhoras por serem trocadas. Local onde foi berço de muitos mestiços, que originou os mulatos e as mulatas. Desta forma, o processo de mestiçagem não tinha como haver freios e o casamento atingiu tanto aos escravos quanto aos mestiços.

Para se casarem, os escravos precisavam da autorização de seu senhor. Conseguido isso, a separação dos consortes dificilmente ocorreria, mesmo se seu senhor morresse ou se os quisesse vende-los. Já os mulatos tinham mais regalias que os negros. Por terem sangue branco correndo em suas veias, estes muitas vezes mudavam seus registros de cor no papel ou simplesmente não havia nada escrito sobre isso, como se tivesse ocorrido um “esquecimento”. Consequentemente, tal fato os facilitava na adesão de alguns cargos, religiosos ou administrativos. Segundo o autor, essa estratégia ocultaria os nubentes de sua aparência para assegurar um documento em que não seriam marcados pelo estigma da cor. Mas também poderia ter a possibilidade dos clérigos, que realizavam as cerimônias, terem errado os dados dos noivos ou mesmo ter deixado omisso. Acabavam por ajudar direta ou indiretamente, pessoas ou grupos com os quais tinham ligações, clareando uma cor evidente aos olhos, mas não ao papel.

Já os indígenas, foram poucos que receberam o sacramento no Recife. O autor acredita que isso se deve a duas possibilidades: ou porque não habitavam a parte mais urbana da capitania, vivendo nos aldeamentos e lá cumprindo suas obrigações de cristãos, ou foram incorporados entre os pardos devido a uma aparência, fruto das mestiçagens consecutivas, o que pode ter amenizado a sua herança nativa.

Porém, o desejo dessas pessoas de elevar o seu status social era tamanho, que se podia conseguir isso casando com uma pessoa de cor diferente. O autor explica que houve casos em que homens casavam com mulheres de uma família tida socialmente por brancos, pelos hábitos, respeitabilidade social, brancos pelo costume, mesmo que não fossem na aparência.

Em suma, os processos de mestiçagens continuaram desde o século XVI, gerando números de mestiços superiores às próprias raças nativas de brancos, índios e negros. Certamente que entre os séculos XVII e XVIII, principalmente o XVIII, o casamento foi um catalisador do aumento do número dessas pessoas, que formalizavam suas uniões garantindo futuras gerações que contrairiam novas uniões. Deste modo, não foi o casamento Tridentino [2] o principal meio de amenizar resquícios da mestiçagem e heranças da negritude com a união de indivíduos de cores mais claras. Contudo o casamento, segundo os dados da obra, foi permitido a todos, e não restrito apenas aos brancos.

Dessa maneira, o objetivo central da obra foi demonstrar como o sacramento matrimonial esteve presente na sociedade do Recife no final do século XVIII, tentando entendê-lo na sua associação com as práticas cotidianas. O autor também se preocupou em analisar como a população da freguesia estava inserida socialmente no espaço eclesiástico onde aceitava as normas da igreja e adaptando-se a suas necessidades mais imediatas, denotando assim os jogos sociais que o casamento estava inserido. Não era apenas a união de dois corpos, mas sim um meio de aceitação e ascensão social no qual o indivíduo poderia recorrer de forma legal e documentada pela igreja.

Para ilustrar essas convicções, o autor usou de dados paroquiais que tinham os registros da cor, nome, profissão, horário, dia e ano e de documentos que demonstravam o cotidiano daquelas pessoas, trazendo o que envolvia aquele meio e justificando as indagações sobre tantos casamentos entre brancos, mestiços, negros e índios, provando assim que havia várias trocas de interesses ou interesses mútuos entre os consortes.

No entanto, ao focar-se na questão dos documentos matrimoniais e nos levantamentos de dados sobre a população do Recife, o historiador não esboça ou argumenta de forma aprofundada, a importância política que o casamento tinha para a igreja local. Dado que ele era um sacramento fundamental para a ela, quais seriam os verdadeiros interesses que havia por trás de tantos matrimônios concedidos, além de impedir que o povo vivesse sobre pecado e salvar o rebanho de Deus? Há de se lembrar, que para o historiador o casamento era usado para realizar mobilidades sociais, então poderia ter discorrido mais sobre as vantagens que a igreja teria com relação a isso.

Assim, é necessário lembrar que a sociedade do século XVIII ainda era movida pelos mandamentos e sacramentos religiosos, o que fazia com que o casamento se tornasse um ato quase obrigatório para as pessoas demonstrarem uma vida cristã devotada. As alianças matrimoniais e os ganhos que esse ato poderia trazer eram questões importantes, mas perante a população analisada (que abrangia quase todos os estamentos sociais) essas questões eram percebidas ou articuladas de forma secundária, já que os ditames da fé vinham em primeiro lugar.

Portanto, assim como o autor afirma, o casamento é apenas uma das fendas das várias práticas sociais a serem estudadas da população do século XVIII, mas uma abertura que nos permite descortinar um pouco dos interesses e costumes daquela população. O estudo nos trouxe a luz a grande atuação da igreja em conquistar novos adeptos, se utilizando como ferramenta o casamento Tridentino. Casar-se pela igreja, era legalizar um contrato, e ao mesmo tempo, ganhar uma nova oportunidade de vida, uma inserção social, um cargo e até mesmo mudar de cor.

Notas

1. “nassoviano” é referente ao governo de João Maurício de Nassau em Pernambuco que durou de 1637 a 1644.

2. O casamento Tridentino surgiu com as normas criadas pelo Concílio de Trento (1545- 1563), que visava estabelecer reformas a Igreja. Dentre essas reformas, as normas para o ato do casamento tornaram-se mais rígidas, pois aqueles que queriam contrair matrimônio deveriam passar por várias etapas, como a investigação sobre se um dos consórcios tinha algum outro matrimônio, se tinham alguma acusação de sodomia ou fornicação, se foram batizados e se realmente levavam uma vida cristã. Caso fosse descoberta alguma irregularidade, o casamento não era autorizado.

Mayara Aparecida de Moraes – Graduada em História pela Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. E-mail: marryawn@yahoo.com.br


SILVA, Gian Carlo de Melo. Um Só Corpo, Uma Só Carne: Casamento, Cotidiano e Mestiçagem no Recife Colonial (1790-1800). 2ª Ed.- Maceió: Edufal, 2014. Resenha de: MORAES, Mayara. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.5, n.8, p. 173-180, jan./abr., 2017. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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