Trecos, Troços e Coisas: Estudos antropológicos sobre a Cultura Material. | Daniel Miller

Nascido no ano de 1954, Daniel Miller é um notável antropólogo e arqueólogo britânico dedicado ao estudo dos vários gêneros de “trecos” que integram o cotidiano sócio- cultural dos indivíduos. Formado pela Universidade de Cambridge, Miller passou grande parte de sua vida profissional no departamento de Antropologia da University College London, onde é professor atualmente. Esta instituição é centro de destaque no que se refere à pesquisa e ao estudo da Cultura Material.

Grande nome da pesquisa deste campo, Miller mostra em suas obras uma constante preocupação em transcender a habitual opinião acerca da interação entre sujeito e objeto, dando atenção ao processo de construção das relações sociais por meio do exercício do consumo e às conseqüências que consumir pode trazer para as sociedades.

O livro “Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a Cultura Material” é uma coletânea de ensaios construídos a partir de pesquisas anteriormente realizadas. Miller sugere que a cultura material cresça como “substituta indisciplinada” que se dedique ao conhecimento dos “troços” e das funções que eles podem exercer dentro do processo organizacional das relações pessoais e sociais.

A presente obra realiza um exame retrospectivo das principais investigações do antropólogo britânico, posicionando-se em prol da Cultura Material, cujas pesquisas têm contribuído de maneira significativa com muitas disciplinas e seus respectivos interesses acadêmicos.

Este volume busca tanto justapor como relacionar as teorias sobre “trecos”, a reportagem etnográfica e a análise de gêneros particulares de vestimenta, casa e mídia. “Trecos” estes que, segundo Miller, “podem vir a ser um e-mail, ou uma moda, um beijo, uma folha ou uma embalagem de poliestireno, ou seja, uma variedade de coisas que assim podem ser interpretadas”.

O argumento central do livro é um paradoxo: A melhor maneira de entender, transmitir e contemplar a nossa humanidade é direcionar a atenção para materialidade fundamental que de nossas vidas faz parte.

Uma característica importante a ser percebida nesta obra é a capacidade do autor em trabalhar com conceitos complexos os transformado em algo simples, passiveis de serem compreendidos, inclusive por aqueles que não são especializados no tema em questão, resumindo, assim, a maioria dos debates travados na atualidade sobre a Cultura Material.

O leitmotiv do livro é o questionamento da oposição entre pessoa e coisa, vigente no senso comum. É apresentada uma alternativa àquelas pesquisas sobre Cultura Material que se habituaram a enxergar os objetos como simples representações daquilo que somos, sentimos ou integramos. Nesse livro, o antropólogo afirma que os objetos que possuímos e que nos rodeiam nos formatam no mesmo grau em que são formatados por nós.

A partir disto Miller procura entender a convivência dos indivíduos com os objetos, que inclui: a esfera do uso; a complexidade da posse; a interpretação de tais trecos no cotidiano; o ato de conferir significado a eles, e lhes atribuir valor, dedicar sentimentos e cuidados. Para tanto ele orienta-se pelas informações conseguidas através do trabalho de campo realizado em alguns lugares distribuídos entre Caribe, Ásia e Europa.

Miller direciona suas discussões para o campo da Antropologia Social. O autor utiliza como fonte os relatos dos nativos dos lugares estudados, os dados recolhidos por meio da observação dos cotidianos destes e as análises comparativas dos modos de vida dos indivíduos em sociedade.

A pesquisa presente no livro foi empreendida sob os auspícios da ciência antropológica e usou as metodologias próprias desta disciplina como base para sua realização, onde o método empregado concentrava-se numa comparação de informações dos contextos sociais com os quais manteve contato.

O livro que aqui nos referimos, está organizado em Prefácio; cinco capítulos com seus tópicos correspondentes; notas; agradecimentos; índice remissivo.

A obra em questão explora reflexões acerca dos elementos que compõe o universo da Cultura Material. Ela traça um caminho para o estudo desta área sob vários aspectos, cada qual assume o papel de fornecer uma perspectiva distinta a esse empenho.

O primeiro capítulo intitulado de Por que a indumentária não é algo superficial traz quatros tópicos com os títulos de Trinidad; O sári; Londres; Conclusão: Cai bem?

Ele trata sobre indumentária, demolindo a visão acadêmica e popular de “treco”. Neste trecho o leitor se depara com um ponto de vista que acredita na capacidade dos “trecos” nos formatarem em muitos aspectos como indivíduos e seres sociais.

O capítulo apresenta uma idéia diferente daquela onde os objetos nos fornecem somente significado ou nos representam como pessoas, se comportando como meros signos ou símbolos que expressam vontades e posturas daqueles a quem com a indumentária mantêm relação. Demonstrando de modo específico que ela não é superficial.

Ao analisar os elementos da indumentária neste capítulo, Miller imprime em seu trabalho uma forma pessoal de abordagem acerca do mesmo. Baseando-se na importância que os nativos de Trinidad1 atribuem as suas roupas; a capacidade do Sári assumir milhões de utilidades na vida da mulher na Índia; além das variadas possibilidades e facetas que as roupas admitem em Londres, o autor tece discussões que ajudam a entender um pouco mais as pessoas e os relacionamentos estabelecidos.

O autor relata que na grande parte do tempo que passou em Trinidad pôde observar que os ocupantes de um acampamento urbano para sem-teto tinham um apego considerável por sua vestimenta. As mulheres que viviam neste ambiente podiam ter uma dúzia á vinte pares de sapatos e promoviam desfiles de moda sobre passarelas improvisadas como atividade comum de lazer.

O ato do trinitário de ostentar roupas, sapatos e acessórios em um ambiente onde muitas vezes não há o atendimento de necessidades básicas nos força a uma reflexão. O caso narrado por Miller faz o leitor questionar o que geralmente queremos dizer com o conceito de ser.

Seguindo a linha de pensamento o autor descreve minuciosamente do caimento do Sári no corpo feminino até o campo vasto de utilidades e significações que o traje possui na vida da mulher que vive na Índia. Miller discute que “ser mulher” está sujeito a análises comparativas, comportando-se como algo muito diferente se for alcançados pelo uso de um Sári, em vez de uma saia ou vestido. Para ele o indumento faz delas o que são, tanto como mulheres quanto como indianas.

O autor completa sua investigação neste capitulo discutindo o quanto o estilo londrino difere dos demais vistos anteriormente. Londres se esforça para ser a capital da descontração vendo desfilar em suas ruas, trens e metrôs pessoas que escolhem suas roupas tanto a despeito quanto por causa da indústria da moda.

O segundo capítulo cujo nome é Teorias das Coisas é composto por três tópicos que se chamam Do hedonismo ao funcionalismo; Objetificação; Materialidade; Ele vem apresentar algumas das teorias que permeiam o universo da cultura material. O objetivo aqui é demonstrar que é possível criar teorias úteis e plausíveis sobre os “trecos”. A ênfase deste capítulo está em fazer os “trecos” algo comum, como parte necessária para nossa existência.

Miller começa esta seção com a discussão da teoria dos objetos de modo superficial, que se eleva, até desembocar numa teoria mais rarefeita e rebuscada sobre estes, chegando a alcançar um ponto de vista a partir do qual já não é mais possível distinguir os sujeitos das “coisas”. Fato que nos leva a examinar as conseqüências das crenças mantidas por nós em relação às propriedades do material.

O autor levando em consideração os estudos de caso feito em pesquisa, busca produzir uma teoria da Cultura Material que pudesse se aplicar àquilo que se propõe a analisar. Para tal ele dialoga com autores de diversas áreas como o sociólogo Erving Goffman, o historiador Gombrich, Pierre Bourdieu, Lèvi-Strauss, Hegel, Marx, Georg Simmel, Meskell, Durkheim, dentre outros.

Com os argumentos tecidos pelos pensadores com os quais trava diálogo, Miller constrói um apoio para o que chamou de “humanidade das coisas”, onde conclui que os objetos são importantes não porque sejam evidentes e fisicamente restrinjam ou habilitem, mas justo o contrário. A importância está na capacidade destes de serem invisíveis ou não mencionados. Quanto menos tivermos consciência deles, mais conseguem determinar nossas expectativas, estabelecendo, de forma sutil, o cenário de ação e assegurando o comportamento mais apropriado dos indivíduos que com eles tem convivem.

Miller defende que os objetos não gritam para você, mas lhe ajudam a aprender como agir de forma adequada, dando contorno e forma à idéia de que os objetos formatam as pessoas também.

Ainda no segundo capítulo é notória a sugestão de que é possível descobrir através da observação de mitos, rituais e cosmologias dos povos estudados, indícios claros de que a teoria da objetificação significa que a contradição é intrínseca à cultura. Nutrindo com isso a idéia de que tais contradições não são meramente, nem necessariamente, reflexos de outras relações tecidas.

O terceiro capítulo tem por título Casas: teoria da Acomodação, possuindo também três tópicos cujos nomes são: Moradia e poder; Casa e agência; Casas Caribenhas. Ele por sua vez, adota as teorias abstratas, refinadas e polidas apresentadas no capitulo anterior e as traz de volta para o confuso mundo da aplicação prática. Para tal são levadas em conta as relações que estabelecemos entre os indivíduos e suas respectivas casas e lares, exemplificadas por casos citados pelo autor.

Aqui as casas são apresentadas como trecos que usamos para “objetificar” valores e metas de vida. Elas são consideradas verdadeiros elefantes brancos entre as coisas, que atraem a atenção do poder, expressam influências e refletem relações de gênero e de convivência dentro de um dado contexto.

As pessoas cujas vidas foram acompanhadas pelo antropólogo em seu estudo , os protagonistas dos casos mostrados durante a explanação do capitulo, procuram se “encontrarem”, se “enraizarem”, criar descendência por meio do “treco” que é a casa.

Ela no livro, sem duvida, comporta-se como um poderoso instrumento objetificador de sonhos e planos. É possível perceber no texto, com auxilio das teorias trazidas no capítulo anterior, a “domesticação” de casas e lares por meio do processo de “acomodação”.

Este processo de acomodar-se é bombardeado por uma enxurrada de fatores que circulam entre a agência presente nas casas; os limites de recursos de quem as possuem ou nelas vivem; a superioridade do imóvel em relação ao sentido estético do morador; a contradição organizacional dos móveis antigos e novos dentro deste ambiente.

A leitura do capitulo nos revela a capacidade de ver que as teorias, quando aplicadas às devidas especificidades, podem incorporar fatores mais amplos à compreensão dos casos estudados, como a força dos governos, a ação da arquitetura, a influência de estilos, a migração entre nações, o poder e a história que constituem as próprias casas.

O quarto capítulo nomeado de Mídia: Cultura Imaterial e antropologia aplicada com seus tópicos correspondentes Transformando os trinitários em internautas e suplicantes; O que é uma relação por celular? Mídia, pobreza e bem estar; analisa a materialidade dúbia da comunicação e da mídia.

Neste trecho percebemos que os “trecos” não são fundamentalmente coisas que podemos agarrar ou tocar. Miller com o auxilio dos métodos da etnografia antropológica tradicional constrói um texto que busca dentre outras coisas, as conseqüências da internet para os nativos de Trinidad, e o impacto que telefones celulares causam na pobreza em território Jamaicano. Além de estudar como seus alvos de atenção mudaram a natureza das relações sociais nos lugares acompanhados durante a realização da pesquisa.

Esse capítulo aborda questões que não haviam sido tratadas até então na obra, levantando discussões que emergem nas ciências humanas cada vez com mais força. Nesta seção Miller questiona o que somos capazes e o que devemos fazer com todo o conhecimento adquirido pela Cultura Material, no tocante a compreensão do universo complexo que abriga o bem-estar das sociedades. O autor ainda indaga de que forma podemos melhorar as condições em que se encontram essas sociedades sem perder o respeito por suas aspirações ao passo que avaliamos o impacto negativo de seus desejos em suas vidas práticas.

Por fim, e não menos importante, o quinto capítulo intitulado de Questão de vida ou morte apresenta três tópicos nomeados de Nascimento; Morte; De volta ao começo. Ele traz uma perspectiva na qual os trecos são considerados matérias diretamente ligadas à dinâmica da vida e da morte. A mesma matéria que nos acompanha em nossa trajetória no mundo e também nos auxilia a deixá-lo.

Nesse capítulo o autor retoma a discussão teórica e os conhecimentos de casos diluídos ao longo dos capítulos anteriores, que sustentam a defesa da tese que os sujeitos são formatados pelos objetos ao passo que os formatam concomitantemente, mostrando por quais meios esse fato passa a ter peso na compreensão diária do significado de sermos humanos.

No setor Agradecimentos, Daniel Miller deixa claro que a maioria dos projetos citados no livro são resultados de colaborações. Ao ressaltar parceria com seus alunos, em especial os doutorandos e alunos convidados, Miller mostra que o livro é um trabalho em conjunto, resultante de uma longa trajetória profissional pautada na contribuição de valorosos colegas e estudantes. Peças fundamentais na realização e condução das muitas pesquisas que são apresentadas no transcorrer da obra aqui resenhada.

Esse livro é recomendado à todos aqueles que queiram compreender um pouco do universo da Cultura Material, assim como também conhecer o trabalho do antropólogo Daniel Miller. Esta obra é ideal para um público que se interesse em perceber em que sentido os objetos estão intimamente ligados aos relacionamentos humanos, e como eles assumem o papel de formadores da vida psíquica e social dos indivíduos. O presente volume é uma ótima indicação aos que tem curiosidade acerca dos estudos das ciências humanas em geral.

Nota

1. Trinidad, também conhecida por Trindade ou Trinidade é a mais populosa e extensa das 23 ilhas que integram o país de Trinidad e Tobago. Ela se localiza aproximadamente a 10 km da costa da Venezuela.

Erica Souza Pinto – Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Integrante do grupo de pesquisa em Práticas Urbanas- GPUR, atuando como pesquisadora na linha de Produção, Consumo e Cultura Material.


MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas: Estudos antropológicos sobre a Cultura Material. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Resenha de: PINTO, Erica Souza. A Cultura das Coisas: A participação dos objetos nas relações sociais e pessoais. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.1, n.1, p. 121-128, jul./dez., 2013. Acessar publicação original [DR]

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