Georges Bataille (1897-1962), autor de textos filosóficos, históricos e de violentas ficções eróticas, como História do Olho (1928), tem seu livro póstumo Teoria da Religião, redigido em 1948, novamente publicado no Brasil. A edição anterior, lançada pela Editora Ática em 1993, contou com tradução de Sergio Gois de Paula e Viviane de Lamare, e revisão de Eliane Robert Moraes. Desde então, a obra se encontrava esgotada. A nova e excelente versão, publicada pela Editora Autêntica em 2015, é seguida da conferência Esquema de uma história das religiões, que esclarece e complementa o texto principal.
A tradução foi realizada por Fernando Scheibe, autor de uma importante tese de doutorado sobre Bataille com o título de Coisa Nenhuma: ensaio sobre literatura e soberania (na obra de Georges Bataille). Scheibe também assina as recentes traduções de O Erotismo, A Literatura e o Mal, A Experiência Interior e da revista Achéphale (1936-1939), fundada por Bataille e onde se encontram alguns de seus textos seminais. Tal esforço tem contribuído para colocar definitivamente a radical obra batailleana no horizonte dos debates no Brasil na filosofia e no campo das ciências humanas.
Em Teoria da Religião, Georges Bataille realiza o exercício arriscado do pensamento. Utilizando um estilo que intercala o discurso sóbrio e arrebatamentos explosivos – colisões violentas com o sentido “teórico” reivindicado no título do texto -, Bataille retoma sua “hegeliana” e heterodoxa filosofia da história da proscrição, dirigindo agora seus enunciados para a religião. Já na introdução, as ideias são apresentadas sob a advertência da instabilidade: “Uma filosofia é sempre um canteiro de obras, nunca uma casa” (BATAILLE, 2015, p.19). Aqui, a exasperação em afirmar o caráter experimental do pensamento possui suas razões diante do inevitável inacabamento de sua “teoria” que, segundo ele mesmo, apresenta-se como uma noite em que brilha a “verdade de grito do impossível”, “mas o grito dessa impotência preludia o mais profundo silêncio” (BATAILLE, 2015, p.19-20). Retomemos então, em detalhe, sua teoria da religião, desenvolvida nas duas partes do livro como uma história das religiões que descreve, no entanto, apenas os seus elementos basais, isto é, gerais.
Na primeira parte, Os Dados Fundamentais, no primeiro capítulo A Animalidade, Bataille apresenta sua teoria da religião a partir da imanência do animal e de sua vida imediata na continuidade com o mundo. O momento oportuno para flagrar essa ideia seria o estado do animal que come outro animal – instante em que a transcendência está ausente, pois não há subordinação e, enquanto tal, não há igualmente uma relação de um semelhante vivo à outro. “Não podemos dizer de um lobo que come outro que ele esteja violando a lei que afirma que, normalmente, os lobos não comem uns aos outros.” Há, “para o lobo, continuidade entre o mundo e ele próprio” (BATAILLE, 2015, p.27).
A continuidade significa que “o animal, como a planta, não tem autonomia em relação ao resto do mundo” (BATAILLE, 2015, p.21). Mesmo isolados como organismos que são, eles estão no mundo como “água na água”. Esse estado animal é uma viscosidade da qual o homem sente-se ligado na profundidade:
Algo doce, de secreto e doloroso prolonga nessas trevas animais a intimidade da luz que se mantém acesa em nós. Tudo o que afinal posso sustentar é tal visão, que me submerge na noite e me ofusca, me aproxima do momento em que, disso não duvidarei, a claridade distinta da consciência me afastará ainda mais, finalmente, dessa verdade incognoscível que, de mim para o mundo, aparece-me para se esconder (BATAILLE, 2015, p.23).
Mas, como o autor logo mostra no segundo capítulo, A humanidade e a elaboração do mundo profano, a ruptura com essa profundidade da continuidade animal se estabelece com um evento histórico importante: a fabricação do instrumento. Com ele, nascem as posições do objeto e do sujeito: “A ferramenta elaborada é a forma nascente do não-eu” (BATAILLE, 2015, p.29). O mundo profano nasce do surgimento de uma engenharia do cálculo, da duração, da previsão, das finalidades, da subordinação aos fins, da instrumentalização, da definição dos meios: uma organização do mundo a partir do útil.
A imanência da continuidade animal é, portanto, rompida pela ferramenta transcendente que, como coisa produzida pelo homem, enseja a distinção entre sujeito e objeto. A individualidade nasce a partir da coisa-ferramenta exterior ao sujeito que ele fabrica. Isso significa que “só passamos a nos conhecer distinta e claramente no dia em que nos percebemos de fora como outro” (BATAILLE, 2015, p.31). Por outro lado, Bataille argumenta que surge uma decisiva confusão de atributos entre o fabricado e o fabricador, do sujeito e objeto. Assim:
O objeto que a ferramenta é pode, ele próprio, ser considerado como um sujeito-objeto. Recebe a partir de então os atributos do sujeito e se coloca ao lado desses animais, dessas plantas, desses meteoros ou desses homens que a transcendência do objeto, que lhes foi atribuída, retira do continuum. (BATAILLE, 2015, p.32).
No limite, isso significa que o objeto pode ser visto pelo homem como semelhante a ele, sendo capaz de agir, pensar e falar. Nesse desdobramento, surge uma potência pessoalmente distinta que “tem, ao mesmo tempo, o caráter divino da existência apessoal, indistinta e imanente”: nasce então o “Ser supremo” (BATAILLE, 2015, p. 33). O apêndice do livro Esquema de uma história das religiões é particularmente útil ao leitor nesse ponto, pois esclarece que, o que está em causa aqui é o fato do “Ser supremo” ser anterior, cronologicamente, aos ritos totêmicos (BATAILLE, 2015, p. 124). Nesse aspecto, Bataille segue as pistas dadas por Mircea Eliade. No entanto, esse “Ser supremo” parece, aos olhos de Bataille, ter fracassado, pois não teve entre “os homens primitivos” prestígio comparável ao posterior Deus judeu-cristão.
Ora, o que interessa para o autor é a afirmação de que o homem “opôs à pobreza da ferramenta profana (do objeto descontínuo) toda a fascinação do mundo sagrado” (BATAILLE, 2015, p. 34). O mundo divino imanente, como rompimento com a esfera útil, nasce como perigo, risco, angústia, desequilíbrios, destruição e morte. No último capítulo da primeira parte, O Sacrifício, a festa e os princípios do mundo sagrado, Bataille insiste no caráter propriamente traumático da instrumentalização que se dá na forma de uma elaboração do mundo profano do trabalho. Ao introduzir os cálculos da duração, o homem que trabalha vê-se arrancado de uma intimidade animal que pressente como profundidade de sua subjetividade. E na ruptura que o objeto transcendente representa na separação com a imanência – no acontecimento de exteriorização com mundo – ele sujeita a si mesmo à coisa- ferramenta. Ele se torna estrangeiro do mundo:
O produto agrícola e o gado são coisas, e o agricultor e o criador de gado, no momento em que trabalham, também são coisas! Tudo isso é estranho à imensidão imanente, em que não há separações nem limites. Na medida em que é a imensidão imanente, em que é o ser, em que é do mundo, o homem é um estranho [1] para si mesmo. O agricultor não é um homem: é o arado de quem come o pão. No limite, o próprio ato do que come já é o trabalho dos campos, ao qual ele fornece a energia. (BATAILLE, 2015, p. 38).
Para romper com essa sua redução à coisa útil e profana, o homem constrói um mundo sagrado que se apresenta na forma do sacrifício, da festa e da guerra. Todos esses elementos são analisados por Bataille na sequência de seu ensaio. As dimensões do divino são exemplos das formas rituais de consumo improdutivo, de gasto, de despesa, de transgressão, de dádiva que libertam o homem da servidão do mundo profano do trabalho.
Assim, as primícias da colheita em oferenda aos deuses nos sacrifícios cumprem uma função cultural: retirar do mundo da utilidade servil a planta, o animal e o homem que colhe e planta. No sacrifício, o que é destruído é a coisa e seus laços de subordinação ao mundo útil, jogando a vítima no capricho do dispêndio. Com efeito, há a restituição simbólica com a intimidade, com a imanência entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o objeto. A cerimônia do sacrifício significa isso:
Eu intimamente, pertenço ao mundo soberano dos deuses e dos mitos, ao mundo da generosidade violenta e sem cálculo, como minha mulher pertence a meus desejos. Eu te retiro, vítima, do mundo onde estavas e onde só podias estar reduzida ao estado de uma coisa, tendo um sentido exterior à tua natureza íntima. Eu te trago à intimidade do mundo divino, da imanência profunda de tudo aquilo que é. (BATAILLE, 2015, p. 39-40)
O sacrifício é uma reparação à ofensa humana e cultural de reduzir miseravelmente o animal ou o homem ao estado de coisa profana.
A festa, por sua vez, desfaz a redução do homem e do mundo à condição de coisas por meio da irradiação da prodigalidade do sagrado pelo rito. Na festa, “todas as possibilidades de consumo são reunidas: a dança e a poesia, a música e as diferentes artes contribuem para fazer da festa o lugar e o tempo de um desencadeamento espetacular” (BATAILLE, 2015, p. 45).
Na mesma esteira, a guerra é entendida como a superação do mundo da coisa, na medida em que a violência gloriosa – mesmo quando desencadeada para fora – rompe a esfera profana. Porém, para Bataille, ela é a menos eficiente condução do homem ao sagrado arcaico, pois a nobreza do guerreiro é – a pretexto de desencadear a violência de modo dispendioso – um acúmulo de prestígio e poder. Muito mais do que o gasto improdutivo, o que se apresenta nesse caso é uma útil conservação do poder. Assim, quando o guerreiro busca o acúmulo de poder e bens, ele se reduz ao peso da utilidade profana: “A nobreza do guerreiro é da mesma espécie que o sorriso da prostituta: sua verdade é o interesse” (BATAILLE, 2015, p. 49).
Nesse esquema histórico geral, estritamente ocidental, continuamos com o próximo passo da leitura na segunda parte do livro, cujo título é A religião e os limites da razão (da ordem militar ao crescimento industrial). Nesse momento, ele nos apresenta uma mutação histórica a partir do surgimento de uma nova configuração cultural em torno do sagrado. Trata-se da Ordem militar discutida no primeiro capítulo dessa seção da obra. A esfera militar opera, segundo ele, através da redução da guerra ao acúmulo de riqueza, pondo fim ao mal-estar da orgia e da consumição. É instaurado o império como coisa universal; com ele e, ao lado dele, o direito e a moral: o homem arcaico se despede junto com o mundo sagrado transgressor.
Nos capítulos seguintes da segunda parte, O dualismo moral e A mediação, vemos então outra importante transformação histórica no universo religioso: a ambivalência do sagrado é restringida, para Bataille, com uma modificação profunda na esfera da sacralidade nas religiões – a exemplo do cristianismo. O sagrado, que antes se compunha de suas faces fastas e nefastas, corpo limpo e lascivo, alto e baixo, purificação insuportável e asco terrível, entre outros, vê agora sua parte maldita separada e confinada no mundo profano.
O mal em sua forma pungente é segregado como algo sensível e proscrito, porque ilógico e improdutivo. A orgia, o sacrifício, as festas dispendiosas, a guerra e os desregramentos sagrados passam a ser condenados. A soberania sagrada tem extirpada sua metade baixa e material em benefício de seu polo alto e puro: “a soberania, no mundo divino, desliza da divindade negra para a branca, da nefasta para a protetora da ordem real” (BATAILLE, 2015, p. 56).
Os perigos da orgia, da festa e da violência divina são proscritos para a preservação do mundo profano do trabalho, sendo conservada apenas a esfera do sagrado que, aparentemente, não ameaça a produção e a consciência clara. Há uma moralização e racionalização do divino, e a intimidade animal do homem e do mundo é abandonada. Aí se encontra igualmente outra inversão: da intimidade-imanente sagrada que se opunha à transcendência do objeto fabricado profano temos agora a passagem à oposição entre o transcendente divino (celeste) e a imanência profana (terrena). O divino se torna moral e dualista, abrindo espaço para o mundo moderno secularizado, cuja emergência histórica é discutida no último capítulo da segunda parte do livro: O crescimento industrial.
O mundo industrial burguês desfaz a busca pela intimidade perdida, nostálgica, em favor de uma plena atividade produtiva, onde o homem se torna coisa autônoma. A redução acabada ao reino das coisas se traduz na incompatibilidade entre “sociedade da produção” e a arcaica, que está baseada no consumo improdutivo sagrado. A ciência completa na modernidade o circuito de realização da consciência clara da ordem real contra a mitologia da ordem íntima. No geral, as posições religiosas foram invadidas pela ordem das coisas com a moral, a mercadoria e o acúmulo de riqueza, sem que esta fosse invadida pela ordem íntima. “No final, o princípio da realidade se impôs à intimidade” (BATAILLE, 2015, p.72).
Surge então, para Bataille, nas páginas finais do livro, um problema ético e político do homem moderno que pode ser resumido nas seguintes perguntas: como tornar-se não assujeitado ao mundo útil? Como buscar a soberania na dilaceração do sujeito similar àquela que o homem arcaico experimentava através do sagrado? Onde estaria ainda reservada a violência improdutiva do consumo no mundo moderno da profanação consumada? Questões relevantes na medida em que, na visão batailleana, a nossa sociedade não busca nada mais que desfazer-se da produção pelo consumo. Mas o consumo na modernidade se encontra agora esvaziado de seu aspecto sagrado improdutivo, pois é novamente capturado no circuito útil da produção. Não há, para o autor, viabilidade para um mundo que não reencontre aquilo de que dispunham os “primitivos”: o dom, a dádiva, o improdutivo, a transgressão, o sagrado, enfim.
Para estender, em plena modernidade, a destruição religiosa ao mundo profano, Bataille nos dá algumas pistas. Ele pensa no homem que – tendo trabalhado para adquirir os objetos ao seu redor, e, com isso, permanecendo no circuito do trabalho e da produção servil – coloca um copo cheio de vinho sobre a mesa. Ao fazer isso – entregando-se, portanto, ao desencadeamento –, ele destrói a mesa e o circuito do útil:
Mas esta mesa não é mais um meio de trabalho: ela me serve para beber vinho. Na medida em que ponho meu copo sobre a mesa, eu a destruí ou, ao menos destruí o trabalho que foi necessário para fazê-la. É claro, primeiro destruí inteiramente o trabalho do vinicultor, ao passo que meu ato de beber só numa ínfima medida destruiu o trabalho do marceneiro. Mas, ao menos, esta mesa, neste quarto, pesada de encadeamento ao trabalho, não teve, por algum tempo, outro fim que não meu desencadeamento. (BATAILLE, 2015, p.73).
Assim, se a destruição sagrada pode ocorrer em várias esferas da cultura secular, essa possiblidade é apenas alusiva em Teoria da Religião. Além do exemplo citado acima, ele aponta para a arte, já que ela é a “única via que libera o objeto fabricado do servilismo da ferramenta” (BATAILLE, 2015, p.30n). Tema que ele desenvolverá – além de outros – com acuidade no conjunto de ensaios que compõe o volume Literatura e o Mal, com ensaios sobre Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blake, Sade, Proust, Kafka e Jean Genet. Na obra O Erotismo, ele traça essa abertura para o improdutivo através das conexões entre o erotismo, o sagrado e a transgressão. Por fim, essa noção de dispêndio é levada às últimas consequências na meditação sobre uma economia geral que Bataille leva a cabo no livro A Parte Maldita.
Mas, na época da redação de Teoria da Religião, Bataille pensava politicamente, no mundo onde “Deus está morto”, os laços que uniam a religião, o dispêndio e a quebra das sujeições de modo incisivo. Como podemos observar no apêndice da edição brasileira:
Está aí, talvez, uma oposição mais radical ao capitalismo – a despeito, talvez, do fato de que se pode atribuir a ela menos importância – do que a posição marxista. O que importa no mundo presente não é tanto criar a possibilidade de uma experiência mística, ou abrir novas possibilidades religiosas – talvez não existam – mas se trata de estender a ação religiosa ao mundo profano (BATAILLE, 2015, p.134).
Cabe, então, ao leitor, a avaliação – não apenas das possibilidades ou dos equívocos das ideias de Bataille, não raro alvo de críticas severas –, bem como a identificação da força desse pensamento nele mesmo, tal como se desenvolveu em vários pensadores contemporâneos, de Michel Foucault a Giorgio Agamben.
Nota
1. Sergio Gois de Paula e Viviane de Lamare preferem traduzir étranger por estrangeiro.
Reginaldo Sousa Chaves – Doutorando em História Social (UFC), Mestre em História do Brasil (UFPI) e Especialista em História Cultural (UFPI). Professor Assistente II da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail: reginaldoufpi@hotmail.com
BATAILLE, Georges. Teoria da Religião. Seguida de Esquema de uma história das religiões. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Resenha de: CHAVES, Reginaldo Sousa. Georges Bataille e sua Teoria da Religião. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.5, n.8, p. 165-172, jan./abr., 2017. Acessar publicação original [DR]
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