No pensamento político moderno, coube a Nicolau Maquiavel expor a importância de compreender a natureza da tirania. O pensador florentino desferiu suas argutas críticas ao príncipe bárbaro, inimigo das artes, destruidor das religiões, inimigo das letras e da virtù. Nesta análise, Maquiavel prorrompeu seu julgamento ao qualificar o tirano numa espécie de licencioso, oposto ao homem político, em que a virtù opera nele práticas violentas, mas ele não se deixa cegar pelo poder ao ponto de perder de vista a glória e o reconhecimento dos homens. Não me parece distante pensar nas questões da tirania contemporânea aos problemas diagnosticados pelo autor de O príncipe.
Daí a importância da reflexão do historiador Timothy David Snyder, a respeito da tirania no século XX como lição para o presente. Assim, pensar o impacto histórico dos regimes tirânicos ao longo do último século, tornou-se um ato ético, pois os inúmeros revisionismos historiográficos dos regimes de exceção, sinalizam para a urgência inequívoca deste objeto de estudo. Inclusive ao pensar “o longo século XX”, que inaugurou aquilo que Walter Benjamin denominou de “estado de exceção” permanente. E que também, Hannah Arendt ao tratar dos totalitarismos, vinculou as violações aos direitos humanos enquanto instrumentos de violência onipresentes; estes totalitarismos também foram utilizados, com frequência e insistência, na modernidade nas irrupções das guerras mundiais e revoluções (ARENDT, 2013, P. 11-13). Aqui seria oportuno pensar e atualizar as sincronias inferida por Arendt no prefácio do livro Origens do Totalitarismo (1950), em que denominou de “otimismo temerário” e, também, no “desespero temerário, os seus sentimentos políticos do mundo pós totalitarismo.
O historiador Timothy Snyder leciona e desenvolve suas pesquisas em História na Universidade de Yale. Ele tem uma longa experiência em estudos sobre temas políticos do século XX, em especial, nas temáticas sobre a Segunda Guerra Mundial, ao nazismo e fascismo. O livro “Sobre a tirania” (SNYDER, 2017), surgiu, na realidade, dos desdobramentos da eleição do presidente Donald Trump, quando Snyder redigia um texto numa rede social sobre o papel da história na compreensão do presente. Após inúmeros compartilhamentos de seus leitores na internet, o historiador resolveu ampliar sua leitura sobre os perigos da tirania no formato de livro. O percurso deste texto deslinda as potencialidades da comunicação científica e da importância de ampliação dos canais sobre história do tempo presente. De certo, a leitura de um historiador que estudou os totalitarismos e as guerras do século XX, sugerem elementos instigantes ao pensar a contemporaneidade em seus desafios contextuais.
Nesta direção das preocupações sobre a tirania, Snyder lançou o livro The Road to Unfreedom: Russia, Europe, America (2018) em que trata da ameaça à democracia liberal. Especialmente, no contexto histórico em que muitos acreditavam que ao fim da Guerra Fria haveria um horizonte pacificado nas relações internacionais. Mas, as teses do fim da história, ou de uma paz global foram solapadas com o retorno ao autoritarismo na era Putin, em que um fascismo tem justificado o governo voltado aos interesses dos ricos numa plena plutocracia. Não só na Rússia, mas agora em inúmeras partes do mundo, ver-se a ascensão de fascismos, de populismos e nacionalismos, que o historiador estadunidense observa com arguta precisão a vulnerabilidade das democracias ocidentais.
Não por acaso, o historiador Timothy Snyder utilizou a estratégia política em sua leitura sobre a tirania, em termos pedagógicos em suas 20 lições para o presente. Ou seja, o autor vinculou a premissa essencial de que “a história não se repete, mas ensina” (p.11) e, por isso, ela teria um potencial intrínseco em levar uma lição ou saber a ser refletido. Os Pais Fundadores dos Estados Unidos utilizaram, segundo Snyder, a história antiga como “mestra da vida” e parte dos debates sobre a elaboração da Constituição americana estavam eivados de várias temporalidades históricas. Os Pais Fundadores, em seus debates sobre a nação americana, percorreram a história que conheciam das democracias e repúblicas da antiguidade que decaíram desgraçadamente em poderes despóticos. Dos pensadores antigos, segundo Snyder, esses líderes políticos aprenderam com Aristóteles que “a desigualdade traz instabilidade, enquanto Platão acreditava os demagogos tiravam proveito da liberdade de expressão para tomar o poder como tiranos” (idem). Para Snyder, no pano de fundo deste interesse dos Pais Fundadores pelos pensadores antigos, estavam a preocupação com os descaminhos da tirania no contexto histórico da nascente democracia americana. Portanto, havia um interesse para que o poder não fosse usurpado seja por uma pessoa ou um grupo, ou que estes se assenhorassem das leis em benefício de suas ambições.
Daí que voltar-se à história, quando a organização política está em risco, seria um dos princípios da nação americana, advertiu Timothy Snyder. Na realidade, esse é escopo do livro, uma vez que, o autor alerta aos leitores de que o histórico dos fracassos das democracias antigas, e, sobretudo, as modernas são interessantes enquanto instrumentos de advertência. Neste sentido, Snyder discorre sobre três recortes de momentos democráticos do século XX: “depois da Primeira Guerra Mundial, em 1918, depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e depois do fim do comunismo, em 1989” (p.12). Por mais elementar que esse recorte figure, pois, o enfoque é eurocêntrico, a ideia é pensar o quanto as inúmeras democracias foram a reboque durante o longo século XX e, as semelhanças aos “tempos líquidos” (BAUMAN, 2001) que estamos inseridos. Entender o que levou essas democracias ao fascismo ou ao comunismo, por exemplo, auxilia enquanto instrumento de análise dos riscos que vivemos nas sociedades contemporâneas. As experiências totalitárias – incluindo os alertas feitos por intelectuais como Hannah Arendt e Elias Canetti- foram desastrosas para as nações que encontram uma saída para a crise global do final do século XIX, no fascismo e comunismo. A premissa do uso da história enquanto instrumento de análise do presente, aparece no livro de Snyder na condição de proteção das ameaças tirânicas. E o aspecto realçado por sua análise é que os americanos não seriam mais capacitados que os europeus, mas que, a vantagem recairia em entender a experiência do passado. O momento de inflexão estaria destacado na eleição do presidente Donald Trump, e de certo modo, o historiador situa sua preocupação com a saúde da democracia americana.
Inclusive, essa também é o objeto de estudo dos cientistas políticos, Steven Levitsky e Daniel Ziblat. Eles avaliaram que algumas atitudes impensadas em outros momentos da história americana, agora estão presentes no cotidiano político que revelam a preocupação dos pesquisadores da Universidade de Harvard nos descompassos da democracia americana:
(…) Os políticos norte-americanos agora tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar o resultado de eleições. Eles tentam enfraquecer as salvaguardas institucionais de nossa democracia, incluindo O mérito de elevar o debate histórico das condições de saúde democrática americano, sugere a compreensão do papel crítico da História. Acredito que Timothy Snyder, utiliza suas vintes lições como instrumentos políticos indispensáveis para a vida democrática. Desde o tema da não obediência de antemão, sua primeira lição, até a preservação da vida privada, a décima quarta lição, o autor recorre aos exemplos históricos que desnudam a relevância do passado no presente. Segundo Snyder, a obediência por antecipação é um ato trágico na política, pois foi nesta disposição que os alemães sustentaram a ascensão de Adolf Hitler nas eleições de 1932. Nos desdobramentos dos totalitarismos, inúmeras pessoas se voluntariaram e ofereceram seus serviços para os nazistas, o que proporcionou a escalada de Hitler ao poder em 1938. Essa obediência por antecipação trouxe os comunistas ao centro do poder nas eleições da tchecoslovacas em 1946. Nas tramas históricas, aqueles que se voluntariaram aos nazistas e comunistas não poderiam voltar atrás aos compromissos de submissão aos novos regimes de exceção.
O caso mais emblemático desta obediência por antecipação ocorreu na ameaça de Hitler a Áustria, em que, o chanceler austríaco consentiu com as exigências do regime nazista; aí foi selado, neste ato de subserviência aos interesses do Terceiro Reich, o destino dos judeus que viviam na Áustria. Snyder explica que os nazistas austríacos tornaram os judeus em faxineiros das ruas, obrigando-os a retirar os “símbolos de uma Áustria independente”. O historiador acrescenta que o ato mais intrigante foi quando “cidadãos que não eram nazistas assistiam a isso com interesse e achando graça. Os nazistas tinham lista das propriedades de judeus e roubavam o que podiam. Mas outros, que não eram nazistas, também aderiram à pilhagem” (p.19). Ou seja, a complacência revestida por essa obediência cega, permitiu o surgimento de uma cúpula nazista que, na figura de Adolf Eichmann, foi responsável pela criação do Escritório central de Emigração Judaica (ARENDT, 2013).
As demais lições de Snyder conduz os leitores a refletir naquilo que é caro ao debate político: a liberdade iluminista e seus desdobramentos durante “o longo século XX”. A liberdade enquanto instrumento das sociedades modernas, vincula-se as questões políticas essenciais como a “defesa das instituições”, o cuidado da hegemonia de um partido único, das responsabilidades individuais com o mundo, a ética profissional, o porte de armas, o trato da língua. Além disso, o autor faz a defesa do jornalismo ético pautado na verdade e investigação dos fatos.
Essa defesa política pelos preceitos da razão iluminista foi defendida por Steven Pinker num estudo sobre o novo iluminismo:
Os ideais do Iluminismo são produtos da razão humana, mas vivem em conflito com outras facetas da nossa natureza: lealdade à tribo, acato à autoridade, pensamento mágico, atribuição de infortúnio a elementos malfazejos. A segunda década do século XXI testemunhou a ascensão de movimentos políticos segundo os quais seus países estão sendo empurrados para uma distopia infernal por facções malignas que só podem ser combatidas por um líder forte, capaz de forçar um retrocesso do país a fim de torná-lo “grande novamente”. (PINKER, 2018, p. 23)
As nuances dessas análises sobre questões políticas da contemporaneidade estão associadas a defesa dos fundamentos iluministas que estão circunscritos historicamente no século XVIII. Inclusive, a ideia do indivíduo responsável atuante num mundo que lhe obriga a agir na esfera da sua condição humana elementar da ação. Por isso, reagir contra os símbolos de ódio é umas das lições mais imprescindíveis no contexto de recrudescimentos da xenofobia, indiferenças, racismos e desumanização.
A lição de responsabilidade sugerida por Snyder está inserida na União Soviética governada por Ióssif Stálin. Na propaganda stalinista, os fazendeiros ricos eram representados como porcos, isto é, desumanizados com intuito de sugerir naquele ambiente rural o assassinato. Era a década de 1930 e aqueles camponeses que abraçaram a noção do vizinho passível de homicídio, também se tornariam vítimas da propaganda desumanizadora de Stálin.
Responsabilidade e compromisso com a ética profissional em reação às práticas arbitrárias de líderes políticos, tornam-se lições valiosas do livro. Snyder chama atenção ao comportamento dos advogados e médicos subservientes aos interesses sombrios do Terceiro Reich. Hans Frank, advogado de Hitler, após a invasão da Polônia tornou-se “governador- geral da Polônia ocupada, uma colônia alemã onde milhões de judeus e outros cidadãos poloneses foram assassinados” (p.38). A anuência de advogados que abandonaram os “estatutos legais que negavam execuções sem julgamentos”; ou mesmo, como salienta o autor, “se os médicos tivessem obedecido à regra que proíbe cirurgias sem consentimento”.
Essas advertências históricas sugerem que os crimes contra a humanidade perpetrados pelos nazistas seriam menos facilitados sem a adesão de inúmeros profissionais liberais. Existe nesta lição ética uma questão cara a pensadora política Hannah Arendt, ao analisar a responsabilidade ante a ditadura: “a pergunta endereçada àqueles que participaram e obedeceram a ordens nunca deveria ser: “Por que vocês obedeceram?”, mas: “Por que vocês apoiaram” (ARENDT, 2010, p. 111).
Comprometido em desafiar os leitores a pensar nos desafios de vida no século XXI, Snyder sugere que necessitamos de um distanciamento seguro das telas, pois o tempo investido na leitura tem sido reduzido ou exíguo. Ele segue a questão salientada por autores, a exemplo de Byung-Chul Han, que sugeriu o potencial da mídia em transformar nossas ações e comportamentos, numa total embriaguez que não pensamos nos riscos e desafios da vida em rede.
A lição do cuidado com o tempo dispendido nas mídias digitais deslinda a ideia do bom trato com a língua, ao que, o historiador relembra o intelectual judeu, Victor Klemperer que utilizou sua formação em filologia contra o aparato de propaganda nazista.
A tirania das telas nos absolve o tempo a ser investido nas questões mais complexas que a leitura dos romances clássicos são uma mina a ser garimpada. O domínio da técnica foi advertido nos romances Fahrenheit 451 (1953), do escritor Ray Bradbury, e, no 1984 (1949), de George Orwell. São aí figuradas sociedades despóticas, soterradas em suas fantasmagorias.
Por isso, a lição ética do trato com a língua inicia com a prática da leitura. Ele questiona: “o que ler?” Todo romance que estimule o espírito e a imaginação são instrumentos essenciais do pensar. O historiador lista livros que são trilhas para ampliar a nossa capacidade de imaginar situações ambivalentes e “julgar intenções alheias”. Livros como “Os irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, e A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, talvez sejam adequados a nosso momento”, sugere Snyder. A leitura da Bíblia, o Código dos Códigos, como afirmou o crítico Northrop Frye, também deveria ocupar espaço neste mosaico de conhecimentos essenciais. Com efeito, Timothy Snyder acrescenta a lição da reflexão abstraída da exegese do texto sagrado:
Os cristãos podem retornar ao seu livro fundamental, que sempre é muito oportuno. Jesus ensinou que “é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”. Devemos ser modestos, porque “quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado”. E é claro que tempos de nos preocupar com o que é verdadeiro e com o falso: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. (SNYDER, 2017, p. 61-62)
Afinal, estas lições sugerem ao leitor relacionar as demandas do século XXI, a condição de lutar pela liberdade de ação. As lições são instrumentos da racionalidade iluminista, em que o homem esclarecido tem suas faculdades exercitadas. Um homem do século XXI que não abandona os fatos, reflete sobre a vida e luta pela liberdade. Somos provocados a compreender o mundo numa chave de interpretação histórica, e, assim, restaurar a inquietação de Hannah Arendt de que é necessário tomar a “realidade sem preconceitos e com atenção, – e resistir a ela – qualquer que seja” (ARENDT, 2013, p. 12). Estamos distantes do cenário de Guerra Fria dos anos 1950, todavia, encaramos cenários complexos num século que indicam a persistência dos racismos, guerras, crises econômicas e pandemias globais.
Portanto, Snyder escreve ao leitor que não perdeu a serenidade da compreensão histórica como instrumento de ação e intervenção no tempo presente. Neste sentido, o livro traz cartazes que ilustram cada uma das lições do historiador, que acredita na importância urgente de defendermos as conquistas das democracias liberais que estão em risco frente as crescentes ondas de ódio, violência e mentira (KAKUTANI, 2018, p. 11-12).
Referências
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. 3ª, reimp. Tradução de Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 13ª, reimp. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: Antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2001.
BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. Tradução de Willi Bolle. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1986.
Resenhista
Cleverton Barros de Lima – Doutor em História pela UNICAMP. E-mail: cleverton.lima@gmail.com.
Referências desta resenha
SNYDER, Timothy. Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente. Tradução de Donaldson M. Garschagem. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: LIMA, Cleverton Barros de. Da Utilidade Ética da História. Boletim do Tempo Presente, Recife, v.9 n.1, jan-jun., 2020. Acessar publicação original. [IF].
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