Production of Presence: What Meaning Cannot Convey | Hans Ulrich Gumbrecht

Interpretar o mundo é desencantá-lo. Desencantá-lo é afastar sua presença. Essa foi a tarefa das “ciências humanas” [2] desde a sua disciplinarização: quebrar toda e qualquer “magia”, explicando a relação dos homens com o real através de conceitos racionalmente desenvolvidos. Hans Ulrich Gumbrecht, “Albert Guérard Professor” no Departamento de Literatura Comparada da Universidade de Stanford, é mais conhecido no Brasil pelo livro Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo, publicado em português no final do século passado [3]. Sua obra teórica – Production of Presence: What Meaning Cannot Convey – no entanto aprofunda e esclarece muito dos objetivos de seu trabalho anterior.

Gumbrecht volta-se contra aquilo que chama de “centralidade inconteste da interpretação”, sequela de um legado metafísico e cartesiano que, ao desprivilegiar a “presença” [4] das coisas, foca-se excessivamente no “sentido” do mundo social. O resultado, argumenta o autor, é um crescente desejo de presença nas sociedades ocidentais, expresso nas artes, na cultura de massas e no fascínio pelo passado. O objetivo principal de seu texto, ressalta, é defender “uma relação com as coisas do mundo que possa oscilar entre efeitos de presença e efeitos de sentido” (p. XV). Não se trata, pois, de abandonar todas as prerrogativas científicas das humanidades, mas de criticar frontalmente a proeminência hermenêutica de seus mais variados campos disciplinares, reintroduzindo neles uma reflexão sobre o papel da experiência estética. O ponto de partida dessa reflexão deve ser a ideia heideggeriana de ser-no-mundo, contrária à oposição cartesiana entre sujeito e objeto, qual deseja superar.

É possível mapear, em diferentes períodos da história, momentos nos quais se estabeleceram “culturas de sentido” e momentos nos quais prevaleceram “culturas de presença”. Através desses tipos ideais (de claro sabor weberiano) o professor de Stanford identifica o processo pelo qual o ocidente transformou-se numa cultura baseada no sentido [5]. No pensamento medieval, acreditava-se que espírito e matéria fossem inseparáveis, tanto em seres humanos quanto em todos os outros elementos da criação divina (p. 25). O catolicismo, expressão cultural arquetípica do período, é marcado por rituais de produção de presença divina, como a transubstanciação, enquanto que o conhecimento tipicamente considerado legítimo era revelado à (e não produzido pela) humanidade (p. 80-81). A ação humana não possuía ingerência nem no mundo, nem em sua ordem do tempo, a qual se expressava independentemente num movimento escatológico. O tempo andava; os homens eram carregados por ele (p. 118-119).

A introdução do conceito de cogito permitiu traduzir o humano como “excêntrico”, único, numa relação puramente intelectual com o mundo. É com o lento estabelecimento do papel ativo do self que a capacidade de produzir conhecimento e, por fim, acumulá-lo ou mesmo superá-lo, tornou-se pensável. De um mundo em estado de envelhecimento, obcecado com a ameaça e o medo de perda do saber, como era o medieval, passava-se à possibilidade da agência humana e, com ela, a compreensão da mudança não mais como algo moralmente ilegítimo. “Finalmente, um sujeito que acreditava produzir conhecimento também se sentia capaz de esconder e manipular conhecimento” (p. 27). Os homens agora poderiam fazer história.

Com René Descartes, o primeiro a tratar a existência humana ontologicamente como res cogitans, subordinam-se não apenas a materialidade dos homens, seus corpos, mas todas as coisas do mundo enquanto res extensae da mente. A cultura ocidental, a partir dessa tradição, pode ser compreendida como a “perseguição do corpo e a repressão de todos os efeitos de presença relacionados a ele” (p. 33). Por volta de 1700, a Querelle des anciens et des modernes começou a institucionalizar a prioridade da dimensão do tempo sobre a do espaço, numa cultura já não mais baseada na presença real, como fazia o medievo, mas na predominância do cogito. O espaço, extensão que existe entre os corpos, não se constitui então como dimensão primordial (p. 83); o tempo, numa cultura baseada no sentido, oferece esse papel [6].

Visto dessa maneira, o iluminismo foi o processo pelo qual a distinção entre material e espiritual – permitindo a associação inevitável entre consciência e tempo – institucionalizou o que o Gumbrecht denomina “visão metafísica de mundo” (p. 34-49). Com ela, o espaço público representado pela política parlamentar torna-se, para a modernidade, tão central e emblemático quanto o ritual da Eucaristia para as culturas medievais (p. 85). De uma cultura baseada na presença, navegamos para uma terra sob o império do sentido. O efeito final, explica-nos, é a consolidação da “interpretação-mundo” como componente central do pensamento do ocidente.

Essa “visão de mundo metafísica”, esse querer ir além, produziu, no entanto, um sentimento de “perda do mundo” (p. 49) responsável por cavar sulcos no edifício moderno que o constituiu. No final do século XIX, essas fissuras já eram mais do que visíveis na literatura, na arte e na filosofia ocidentais. Para um homem agora condenado, por sua visão metafísica, a observar a si mesmo no ato de observação (p. 39), parecia impossível mediar duas instâncias fundamentais da existência: a primeira delas, a “experiência” ou apropriação do mundo pelos conceitos; a segunda, a “percepção” ou apropriação do mundo pelos sentidos.

Wilhelm Dilthey acreditou que – excluindo das ciências humanas (Geisteswissenschaften) a dimensão perceptiva – poderia submeter a experiência vivida à interpretação e, com ela, à atribuição de sentido. De modo paradoxal, ensina Gumbrecht, a crise da metafísica e do campo hermenêutico provocou o entronamento da filosofia interpretativa no centro das recém formadas Geisteswissenschaften. “O preço que as humanidades tiveram de pagar com essa manobra foi óbvio: a perda de todo tipo de referência não cartesiana ou não empírica” (p. 43). Transformamonos ao passo de nosso desenvolvimento disciplinar, como a história da história do século XX demonstra, nos representantes mais bem acabados da perda do mundo, do cansaço provocado pelo império do sentido e do mal estar da não-presença.

A crítica de Gumbrecht ao estado de coisas nas ciências humanas – pese o fato de que ele reedita muito das respostas do Romantismo às concepções iluministas de saber [7] – diz respeito direto a diversos desafios da historiografia e do ensino da história. Como fazer eco às demandas pelo passado? De que maneira podemos escrever com densidade e, ao mesmo tempo, atingir um grande público? Como, enfim, narrar esse passado sem sufocar nossa audiência com múltiplas atribuições de sentido? O autor não nos dá respostas específicas, como uma espécie de mapa a ser seguido, mas oferece alguns insights portentosos.

Ao escrever sobre os futuros possíveis para as ciências humanas, Gumbrecht defende a possibilidade de redesenhar as fronteiras de suas disciplinas, em especial as “da estética, da história e da pedagogia” (p. 93). Um cuidado estético, por um lado, pode possibilitar à historiografia a presentificação de mundos passados, com “a aplicação de técnicas que produzam a impressão (ou, de fato, a ilusão) de que esses mundos passados podem se tornar tangíveis novamente” (p. 94). Dessa forma, a história ganha por sua vez contornos pedagógicos mais apurados, dentro da “tarefa proeminente de confrontar estudantes com a complexidade intelectual, o que significa que gestos dêiticos – ou seja, amostras da condensação ocasional dessa complexidade – são no que devemos realmente nos focar” (p. 95).

Para atingir esse tipo de experiência estética precisamos lançar mão de estratégias literárias que endossem efeitos sinestésicos, que apelem para os sentidos, para o entendimento do mundo através da percepção. Nestes momentos efêmeros em que o passado parece se tornar presente podemos captar, subitamente, uma articulação espacial com aquilo que não mais aqui está. Gumbrecht chama a isso de “epifania”, um resultado direto da coexistência sempre tensa entre efeitos de sentido e efeitos de presença (p. 111).

Esse tipo de fenômeno busca corroborar um “desejo de presença”. Está em concordância com a experiência contemporânea do tempo, sua assimetria entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” [8] , típica de um “cronótopo” que não mais aceita o historicismo (e a idéia de que se pode “aprender com a história”) como referência epistemológica. “O desejo de presentificação”, escreve o professor de Stanford, “pode ser associado com a estrutura de um presente largo dentro do qual queremos reter o passado e no qual o futuro está bloqueado” (p. 121). Ao contrário da maioria dos acadêmicos, Gumbrecht parece não ver nada de errado em ceder a essas demandas: de fato, elas proporcionariam uma oportunidade de “estar em sincronia (sync) com as coisas desse mundo”.

As técnicas de presentificação, aplicadas em conformidade a um novo e inacessível futuro e a um passado que já não mais queremos deixar escapulir, tendem, sem dúvida, a enfatizar a dimensão do espaço. É apenas através do espaço que podemos ter a ilusão de tocar, experimentar e sentir objetos que estão associados com um tempo que já se foi. A tendência à espacialização (spatial turn?) demonstra, para Gumbrecht, as limitações da historiografia como meio textual no “business de fazer o passado presente” (p. 123). Neste sentido, podemos compreender seu livro anterior, Em 1926, como uma experiência que visava testar esses limites.

Caberia ao historiador presentista diminuir os efeitos de sentido – aprender a “ficar quieto por um momento” (p. 136) – e, assim, investir em formas literárias que promovam uma experiência de imersão em seus leitores. Conjurar o passado, esboçar o “clima” de outro tempo, oferecer a alteridade como modo de administrar novos elementos ao espaço de experiência – estas viriam a ser algumas das propostas desse novo tipo de historiografia [9].

Não seria o apelo de Gumbrecht um mero reflexo intelectual do presente perpétuo e invasor, do qual nos fala François Hartog? O “cronótopo pós-historicista” não pode ser pensado como nada mais do que um regime de historicidade presentista10? Não corremos o risco de, fascinados pela presença do passado, sem problematizarmos a noção de memória (noção que Gumbrecht parece de fato evitar), tornarmo-nos, como Ireneo Funes, incapazes de pensar? É realmente possível “ficar quieto”, isto é, tentar não atribuir sentido, sem, através do silêncio, comunicar alguma coisa? Por fim, hesitando em atribuir sentido ao passado não perderíamos também a possibilidade de articular qualquer sentido de futuro? Como dizia Oscar Wilde, a beleza, a verdadeira beleza, some ao primeiro contato com a expressão intelectual. A tarefa de explicar o mundo e, ao mesmo tempo, manter o seu encantamento, continua, como há duzentos anos, à nossa frente.

Enquanto isso, o endurantismo inerente às tentativas de presentificação não deixa de, no silêncio de perguntas não postadas, insistir em comunicar uma resposta, mesmo que poética…

Though they go mad they shall be sane,

Though they sink through the sea they shall rise again;

Though lovers be lost love shall not;

And death shall have no dominion.

Dylan Thomas

Notas

2. Gumbrecht utiliza aqui o termo anglo-saxão “humanities and arts”, que ele relaciona diretamente ao equivalente germânico Geisteswissenschaften. Traduzi ambas as expressões para o português como “ciências humanas”.

3. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: Vivendo no Limite do Tempo. Editora Record, Rio de Janeiro. 1999.

4. De acordo com o autor: “a palavra „presença‟ não se refere (pelo menos não na maioria das vezes) a um relacionamento temporal, mas espacial, do mundo com seus objetos. Algo que é „presente‟ é tangível às mãos humanas, o que implica que, inversamente, possa ter um impacto imediato em corpos humanos.” (p. XIII)

5. Ou, no vocabulário do autor, desenvolveu uma atitude “metafísica” – isto é, uma atitude (tanto pessoal quanto acadêmica) que “atribui um valor superior ao sentido de um fenômeno do que a sua presença material”. (p. XIV)

6. Como no conceito de “fluxo de consciência”, criado pelo psicólogo William James, operado narrativamente por James Joyce, Dostoievsky e Marcel Proust (dentre outros clássicos) e teorizado fenomenologicamente por Husserl.

7. Ver a crítica de KRAMER, Lloyd. Searching for something that is here and there and also gone. History and Theory. 48. Fevereiro de 2009. pp 85-97.

8. Gumbrecht foi aluno de Reinhard Koselleck e aqui utiliza as categorias esboçadas em KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Contraponto/PUC-Rio.

9. Como explica na sua experiência literária Em 1926: “O livro pergunta em que medida e a que custo é possível fazer presentes novamente, em um texto, mundos que existiram antes de o autor nascer – e o autor está perfeitamente consciente de que esta tarefa é impossível”. GUMBRECHT. 1999. p 14.

10. Ver HARTOG, François. Régimes d´historicité. Présentisme et expérience du temps. Paris: Seuil, 2003.

Rodrigo Bragio Bonaldo – Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq. E-mail: rodrigobonaldo@yahoo.com.br.


GUMBRECHT, Hans Ulrich. Production of Presence: What Meaning Cannot Convey. Stanford: Stanford University Press, 2004. Resenha de: BONALDO, Rodrigo Bragio. Aedos. Porto Alegre, v.2, n.5, p. 132- 140, jul. / dez., 2009.

Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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