Polígrafos, tipógrafos e jornalistas em Minas no século XIX / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2008

Uma história de precursores e ativistas

A imprensa, que durante certo tempo foi relegada pelos estudiosos a uma posição inferior, em virtude do predomínio de abordagens de caráter mais social e econômico da história e até mesmo por uma atitude preconceituosa – uma vez que para muitos não passava de mero reflexo das idéias e fatos de seu tempo –, retoma seu valor enquanto fonte e objeto dos estudos históricos. Isso se dá não nos moldes de uma historiografia tradicional, mas na linha que já identificava Xavier da Veiga em fins do século XIX. Este, sim, o verdadeiro precursor dos estudos sobre a imprensa em Minas, se já não bastasse o legado da preciosa coleção de jornais e revistas dos séculos XIX e XX, que se iniciou com ele, à frente do Arquivo Público Mineiro, e que hoje constitui o acervo da Hemeroteca Histórica, vinculada à Superintendência de Bibliotecas Públicas de Minas Gerais, órgão da Secretaria de Estado de Cultura.

Realmente, não há como abordar o tema sem falar de precursores e entusiastas, para quem a imprensa livre era o único e irrefragável sustentáculo de um governo constitucional representativo, de uma sociedade liberal e, até mesmo, de uma nova economia, mais aberta à livre concorrência.

Curiosamente, a história da imprensa em Minas inicia-se, por um ato de rebeldia da própria autoridade máxima da capitania, em 1807, ou seja, um ano antes da chegada da Família Real portuguesa e da criação da Impressão Régia, no Rio de Janeiro. A primeira obra impressa em Minas Gerais surgiu sob os auspícios do então governador, Pedro Maria Xavier de Ataíde e Mello, que, querendo ver publicado o poema laudatório que lhe dedicou Diogo Pereira de Vasconcelos, tomou para si a responsabilidade de infringir a ordem régia de 6 de julho de 1747, que proibia terminantemente a realização de qualquer atividade de imprensa no Brasil.

Tal empreendimento só foi possível graças ao padre, artista e impressor José Joaquim Viegas de Menezes. Com os conhecimentos adquiridos em Portugal e por meio da técnica da calcografia, o padre Viegas preparou as chapas de metal que possibilitaram a impressão do volume que continha não apenas o canto encomiástico de Diogo de Vasconcelos, mas também, e significativamente, o Mappa do donativo voluntario que ao Augusto Principe R.N.S offerecerão os povos da Capitania de Minas-Gerais, no anno de 1806.

Cabe esclarecer que não se trata da primeira impressão realizada em terras brasileiras, pois, muito antes, já havia sido implantada, no Rio de Janeiro, a tipografia do português Antônio Isidoro da Fonseca, cuja existência a ordem régia de 1747 veio pôr um triste fim.

Às vésperas da Independência, encontramos novamente o padre Viegas colaborando em projeto ainda mais audacioso e que, segundo diversos autores, coloca o nome de Minas Gerais em posição de destaque como berço da primeira tipografia totalmente construída no Brasil.

Em que pese o inestimável auxílio do erudito padre, o surgimento da imprensa com caracteres móveis, a tipografia, deve ser atribuída ao inventivo Manoel José Barbosa, mecânico prático, que, a partir de esforço próprio, tanto na fabricação de letras e máquina como na habilitação de compositores e aprendizes, deu origem à Tipografia Patrícia de Barbosa & Cia., responsável não apenas pela publicação dos primeiros jornais mineiros, como pela de livros, entre eles as Trovas Mineiras, do padre Silvério Ribeiro de Carvalho, poeta satírico dos mais reverenciados em sua época, editado em 1824, e o Tratado de Educação Física, do Comendador Gomide, de 1825.

Importante mencionar que, apesar de construída em 1821, na então Vila Rica, a tipografia de Barbosa só obteve permissão de funcionamento do príncipe regente D. Pedro em 20 de abril de 1822. Nesse ínterim, o governo provisório instalou uma pequena tipografia, que entrou primeiro em atividade imprimindo documentos que constam, inclusive, do acervo do Arquivo Público Mineiro. Na visão de seus idealizadores, principalmente do instruído secretário Luiz Maria da Silva Pinto, aquela era apenas o embrião de uma mais bem montada tipografia oficial, capaz de publicar obras diversas, dentre elas uma folha diária ou com periodicidade de três números por semana, contendo artigos do governo, notícias gerais e variedades.

Tal plano não foi adiante, e o que vingou mesmo foi a iniciativa privada nessa área, constituindo-se a Patrícia de Manoel Barbosa na única tipografia da província durante certo tempo. Não por acaso, os primeiros jornais, de feição política variada e até mesmo divergente, foram ali impressos.

A imprensa periódica surge em Minas com o Compilador Mineiro, que apareceu em Ouro Preto a 13 de outubro de 1823. Num momento em que as opiniões ainda se dividiam a respeito da própria Independência, em que muitos não descartavam a possibilidade de novamente reunir-se o Brasil a Portugal, o jornal, já em seu primeiro número, sai em defesa da Assembléia Geral Constituinte, do então projeto da Constituição do Império e, principalmente, do sistema monárquico representativo, em oposição tanto ao governo despótico quanto ao democrático, na perspectiva de um liberalismo moderado, que teria durante todo o Império grandes adeptos entre os mineiros.

Seu sucessor foi o Abelha do Itaculumy, nascido em 12 de janeiro de 1824, com um programa que é a mais pura síntese da bandeira liberal: “independência política, imperador constitucional e integridade do Império”. Em meio ao debate político, surgiu, em 1825, O Companheiro do Conselho, do qual não foi encontrado ainda qualquer exemplar, mas que era então o único jornal da província e estava prestes a desaparecer, quando nasce O Universal, cujo número inicial, de 17 de julho de 1825, apelava para a imperiosa necessidade de se contar ao menos com um periódico naquela que era “a maior província do Império”.

A partir daí, novos jornais foram surgindo – e não apenas na capital, Ouro Preto –, frutos da instalação de pequenas tipografias nas principais localidades da província. O Universal, contudo, merece destaque, pois teve duração surpreendente para a época: com 17 anos de existência, deixou de circular apenas em 1842, em função da revolução liberal capitaneada por Teófilo Ottoni. Graças à coleção d’O Universal existente na já mencionada Hemeroteca Histórica, é possível a consulta a praticamente todos os números editados, com exceção apenas de três. Jornal de feição eminentemente política, constitui-se em fonte obrigatória para os estudiosos do período, abarcando os mais diversos temas, mas cujo valor é ainda maior aos interessados na circulação, apropriação e representação das idéias liberais nesse momento tão decisivo na configuração política da jovem nação brasileira.

Entre 1823 e 1897, considerando o arrolamento de Xavier da Veiga, foram publicados 861 jornais em Minas Gerais, num total de 117 localidades, dentre elas a futura capital do Estado, cujo primeiro jornal, O Bello Horizonte, apareceu em 1895, por iniciativa do padre Francisco Martins Dias. Mesmo considerando que muitos deles encontram-se desaparecidos, não há dúvida de que se trata de uma verdadeira mina de ouro praticamente inesgotável para os pesquisadores.

Contudo, observa-se ainda que, mesmo com a renovação dos estudos sobre a imprensa no Brasil, impulsionada pela chamada nova história cultural e pelos estudos, também renovados, de história política, a trajetória da imprensa em Minas Gerais ainda permanece na condição de campo pouco explorado, com pontos obscuros que desafiam e devem motivar novas investigações, como os próprios textos que compõem este Dossiê. Aqui se apresentam não apenas resultados concretos de pesquisas, como se delineiam novos temas e caminhos de abordagem, demonstrando as múltiplas faces desse apaixonante objeto que é a imprensa.

É bem o caso de Luciano da Silva Moreira, que em estudo inovador desvenda a trajetória de criação das primeiras tipografias mineiras, chamando a atenção para sua importância enquanto

[…] elementos que contribuíram para a transformação da sociedade mineira da primeira metade do Oitocentos, modificando de forma tênue, mas progressivamente, as práticas e as relações que as pessoas entretinham com os poderes e instituições locais.

Nessa mesma direção, é possível afirmar, sem qualquer exagero, que tanto as artes como as ciências e os saberes, a política e a vida social e cotidiana oscilam em virtude da emergência da imprensa. No caso mais específico da literatura, é o periódico – nas suas mais variadas formas –, mais até do que o livro ou qualquer outro suporte, o principal laboratório da invenção literária no século XIX. Durante todo o período, as relações entre literatura e imprensa se apresentam tão fortemente imbricadas no interior dos jornais que é essencial que se compreenda melhor esse movimento, trazendo assim novos aportes para o conhecimento da história mineira e nacional. Nessa perspectiva, é inegável a contribuição do artigo de Francelina Drummond sobre O Recreador Mineiro, primeira revista literária editada em Minas Gerais, entre os anos de 1845 e 1848, iniciativa de seu principal redator, Bernardo Xavier Pinto de Sousa, cuja trajetória intelectual é analisada, de forma cuidadosa, juntamente com o periódico e seu contexto.

No âmbito da educação, os jornais também cumpriram importante função ao produzir e divulgar preceitos e propostas em favor da instrução e civilização dos povos, sendo um dos principais canais difusores das idéias educacionais no século XIX, como bem demonstra o texto de Luciano Mendes de Faria Filho, Cecília Vieira do Nascimento, Marcilaine Soares Inácio e Mônica Yumi Jinzenji, que se debruçam inteligentemente sobre três periódicos. Há muito que o Jornal da Sociedade Promotora da Instrução Pública, de Ouro Preto, merecia análise mais detida. Seu redator, o cônego José Antônio Marinho, mais conhecido por sua atividade política, foi também um educador. Professor de filosofia em São João delRei, Congonhas e Ouro Preto, constitui-se em figura emblemática das idéias liberais na época.

Os outros dois periódicos analisados são O Mentor das Brasileiras, de São João del-Rei, primeiro periódico da província voltado para o público feminino – mas em boa parte escrito por homens – e o Sexo Feminino, primeiro jornal de autoria feminina de Minas Gerais. Ambos destacavam o importante papel exercido pela mulher na formação dos cidadãos, porém o segundo é contundente no questionamento da condição social feminina, buscando defender a participação das mulheres para além da esfera doméstica, na política e no mercado de trabalho.

O Mentor das Brasileiras é objeto de análise específica em texto de Alexandre Mansur Barata e Gisele Ambrósio Gomes, que busca, num duplo movimento, articular o papel desempenhado pelo crescimento da imprensa periódica na direção da ampliação de uma esfera pública com as especificidades dessa “imprensa feminina”.

No âmbito do reconhecimento desse impacto da imprensa periódica sobre a sociedade, pode ser situado também o trabalho de pesquisa e documentação realizado por Marcelo Magalhães Godoy com as seções de anúncios de 21 jornais mineiros do século XIX. A disputa pelos consumidores levou os negociantes a uma verdadeira batalha na imprensa da época, por meio da veiculação de propagandas com variados recursos de persuasão e diversificadas estratégias de suplantação dos rivais. Entretanto, a análise vai mais além e direciona-se para a compreensão do universo das atividades mercantis mineiras no Oitocentos, pois, conforme alude o autor:

[…] o caráter e a extensão da presença de estabelecimentos comerciais nas seções de anúncios dos jornais refletia a importância do setor e indiciava, no particular, a magnitude da dinâmica em curso de aprofundamento da diferenciação do urbano em Minas Gerais.

Ao concluir a apresentação deste Dossiê, retomo aqui algumas palavras de Machado de Assis. Em texto conhecido de 1859, o romancista não conteve seu entusiasmo diante do poder revolucionário da imprensa, para ele locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, reação do espírito humano sobre as fórmulas consagradas da literatura, do mundo econômico e do mundo social. E desafiava: “Quem poderá marcar todas as conseqüências desta revolução?”

Maria Marta Araújo – É autora, entre outras publicações, do livro Com quantos tolos se faz uma república: Padre Correia de Almeida e sua sátira ao Brasil oitocentista (Editora UFMG, 2007). Coordenou o projeto Sob o império das paixões: coletânea de escritos políticos do Universal (1825-1842), na Fundação João Pinheiro, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), 2005-2007. Atualmente é diretora de Proteção e Memória do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha / MG).


ARAÚJO, Maria Marta. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.44, n.1, jan. / jun., 2008. Acessar publicação original [DR]

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