Pensar as motivações do voto em um momento em que a maioria da população brasileira é movida por um sentimento de descrença nos políticos e mesmo de rejeição à política se faz necessário para compreender o complexo jogo de representação e de expressão da vontade popular nas mais diversas conjunturas históricas e políticas da República brasileira. Enquanto o Brasil experimentava um processo eleitoral dramático, os editores da revista Aedos trabalhavam no dossiê Para que votar? História do voto e das eleições no Brasil, que teve como objetivo reunir trabalhos que abordassem a temática das eleições e do sistema eleitoral no Brasil Republicano e, sobretudo, que refletissem sobre o sentido do voto e da representação política.
Em virtude da complexidade da experiência republicana, marcada por regimes políticos e legislações eleitorais distintas que vigoraram no período, convidamos os pesquisadores a contribuírem no estudo da dinâmica dos processos eleitorais, da história do voto e da representação política nesse recorte temporal, buscando reunir trabalhos que, a partir do estudos de casos ou dinâmicas específicas, proporcionassem reflexões sobre os diferentes sentidos do voto e os diferentes papéis das eleições no jogo político ao longo da República. O objetivo do dossiê também foi o de reunir trabalhos que questionassem a relação estabelecida entre representante e representado na legitimação da autoridade política e na construção democrática do exercício do poder.
No centro desse debate, sobre os regimes representativos, encontram-se os partidos políticos, que ao mesmo tempo que se constituem em instrumento de aproximação e articulação entre os diversos segmentos sociais, também representam demandas particulares e aspirações universais. Durante os processos eleitorais, as siglas partidárias se empenham para promover a personificação das aspirações sociais na pessoa do seu representante e na desconstrução da imagem e no discurso dos seus adversários, com o propósito de convencerem os eleitores a votarem no seu candidato. Logo, são nesses momentos de competição eleitoral que os representados ganham destaque, são o objeto do discurso político, ao serem chamados a exercerem um direito, o do sufrágio. O voto além de manifestar uma escolha e uma posição, diante de um determinado contexto político, econômico e social, também é um instrumento que vincula o representante ao representado.
O voto como objeto da História Política parte da premissa de que sua implementação como meio de participação política possui uma historicidade a ser pensada: longe de ser um meio natural para tomadas de decisão coletivas, o voto foi historicamente instituído, até mesmo em detrimento de outras formas presentes em um vasto repertório de ação coletiva, e constituído como meio legítimo. É o que apontam reflexões de autores como Bernard Manin (1995), Alain Garrigou (1988), Michel Offerlé (1993; 2011) e os diversos textos da coletânea organizada por Letícia Bicalho Canêdo (2005) no Brasil. Um história do voto se apresenta como um empreendimento capaz de identificar, contextualizar e problematizar as práticas e as concepções que levaram eleitores e eleitoras a se constituírem como tais, a se tornarem eleitores, e a estabelecerem relações entre o ato de votar e a vida cotidiana.
A história do voto e das eleições no Brasil está longe de ser a história de uma evolução linear. Sua trajetória foi acidentada e influenciada pelas contingências de um cenário político com alterações constantes. Da implantação do regime republicano até a promulgação da Constituição de 1988 muitas reformas ocorreram em relação ao direito ao voto, que passaram, paulatinamente, a incluir uma massa de indivíduos (não abastados, mulheres e analfabetos) que outrora tinham negado esse direito e determinaram a mudança do voto facultativo para obrigatório. Os artigos que formam o presente dossiê passam por diversos momentos dessa história, em diferentes fases da República, abordando desde os aspectos legais da representação política até as práticas de partidos políticos, as campanhas eleitorais e a competição política.
Neste dossiê, contamos com um artigo sobre as eleições no período da Primeira República (1889-1930), intitulado As Eleições na Primeira República: Abstenções, Legislação e Controle Eleitoral, de autoria de Carina Martiny. Sobre as articulações visando à eleição presidencial de 1937 temos o artigo Luiz Mário Dantas Burity, “Eis o que me ocorre, por hoje”: a campanha presidencial de 1937 e a candidatura de José Américo de Almeida nas correspondências de Juraci Magalhães e Artur Neiva. O período da experiência democrática (1945-1964) foi contemplado por quatro artigos, sendo dois sobre as eleições no Piauí: Jackson Dantas de Macedo e Marylu Alves de Oliveira são autores de História e política: Fontes documentais como lugares de memória e a análise do processo eleitoral de 1945 no Estado do Piauí; e Ábdon Eres da Silva Neto contribui com o artigo O município e o processo eleitoral de 1954 no Piauí. Sobre a dissidência do PSD no Rio Grande do Sul temos o artigo de Tiago de Moraes Kieffer e Marcos Jovino Asturian, intitulado O Partido Social Democrático Autonomista (PSDA): Apontamentos Preliminares de Pesquisa. Completam o dossiê os artigos de Laila Correa e Silva, O direito ao voto feminino no século XIX brasileiro: a atuação política de Josephina Álvares de Azevedo (1851-1913) e o de Letícia Sabina Wermeier Krilow intitulado Democracia em perspectiva: as representações no Correio da Manhã sobre as eleições gerais de 1958.
Acompanham o dossiê duas entrevistas que realizamos tangenciando o tema do voto e da representação política, gentilmente concedidas pelas professoras Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (UFJF) e Céli Regina Jardim Pinto (UFRGS). A primeira, destacando as novas abordagens que vêm ressignificando o tema da competição política na Primeira República e a segunda trazendo uma reflexão sobre a democracia no Brasil realizada no calor dos resultados eleitorais de 2018.
Referências
CANÊDO, Letícia Bicalho (Org.). O sufrágio universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.
GARRIGOU, Alain. Le secret de l’isoloir. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 71-72, março 1988.
MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34, 1995.
OFFERLÉ, Michel. Un homme, une voix? Histoire du suffrage universel. Paris: Gallimard, 1993.
________________. Perímetros de lo político: contribuiciones a una sócio-historia de la política. Buenos Aires: Antropofagia, 2011.
Douglas Souza Angeli – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: douglasangeli@hotmail.com
Paula Vanessa Paz Ribeiro – Professora da EMEB Antônio Saint Pastous de Freitas, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: paulavpaz@gmail.com
ANGELI, Douglas Souza; RIBEIRO, Paula Vanessa Paz. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 10, n. 23, Dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
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