Nos últimos anos, o Brasil tem se inserido no mundo na condição de potência emergente, buscando consolidar-se no espaço internacional. Na academia, este processo tem se refletido na ampliação dos temas de pesquisas, destacadamente nas Humanidades. Notamse esforços em incorporar África e América Latina na agenda de estudos, produzindo diálogos e comparações úteis ao acréscimo do conhecimento e incorporação da diversidade. Entretanto, outras regiões do globo, como o mundo árabe-islâmico, permanecem menos exploradas. Entre os trabalhos dedicados a este tema, destaca-se a contribuição da professora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, Beatriz Bissio, aqui resenhada.
O livro O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta é marcado pela trajetória da autora. Uruguaia naturalizada brasileira, Bissio atuou muitos anos como jornalista. Cobriu guerras de libertação nacional em Angola e em Moçambique, registrou o apartheid sul-africano e noticiou conflitos no Oriente Médio. Ao percorrer os países islâmicos, diz-nos que ficou profundamente marcada pela errônea tese de que existe uma profunda alteridade entre o mundo árabe-islâmico e o Ocidente. Munida desta inquietação, graduou-se em Ciências Sociais (PUC-RJ) e doutorou-se em História (UFF). Fruto de pesquisa realizada no doutorado, o livro analisa a civilização árabe-islâmica no século XIV, destacando o espaço como categoria apta à integração do mundo muçulmano, num período de fragilização política e cultural do Magrebe.
Afastando-se da perspectiva orientalista que circunscreve o mundo árabe-muçulmano à condição de exótico [2], Beatriz Bissio busca compreendê-lo a partir de dois de seus próprios pensadores: Ibn Battuta e Ibn Khaldun. O primeiro foi um viajante marroquino nascido em Tânger, em 1304, autor de Através do Islã, um relato de suas extensas viagens, aproximadamente 120 mil quilômetros percorridos em quase três décadas. O outro, Ibn Khaldun, era historiador e também viajante, nascido em Túnis, em 1332, autor do Livro das Experiências, em cuja primeira parte, Muqaddimah (ou Os prolegômenos da história universal) está o foco da autora, que complementa suas análises com as outras partes da obra, a História dos Berberes e a Autobiografia.
Dividido em duas partes e sete capítulos, o livro traz a preocupação de quem escreve sabendo que grande parte de seu público tem pouco domínio do assunto sem, no entanto, frustrar aqueles já versados no tema. Nos três capítulos da primeira parte, Bissio apresenta o mundo árabe-islâmico, localiza o leitor no Mediterrâneo do século XIV (com vários mapas) e apresenta suas personagens e fontes. A segunda parte é formada por quatro capítulos, dedicada à verticalização da análise das representações do espaço no medievo islâmico. A autora analisa o conceito de civilização presente nas obras, sobretudo na Muqaddimah, o papel da viagem na compreensão e internalização do espaço no mundo árabe-muçulmano, suas formas de representação na cartografia e nos saberes científicos da época e a hierarquização do espaço: o urbano, em função da mesquita; o território em função de Meca.
No século IX, desenvolvia-se na Espanha e no Magrebe islâmicos um gênero literário dedicado a descrever o espaço: os relatos de viagem. Decorrentes da exigência religiosa de realizar a peregrinação a Meca, aplicável a todo fiel saudável e com condições financeiras, os relatos foram produzidos por vários agentes: viajantes, espiões, mercadores, embaixadores. A palavra rihla, termo árabe para viagem, périplo, logo se tornou o nome do gênero. No século XIV, a rihla de Ibn Battuta tornava-se excepcional: saindo do Marrocos, o autor percorreu Egito, Palestina, Síria, Iraque, Irã, península Arábica, China, Índia, Afeganistão, Turquia, Rússia, Iêmen, Omã… motivado pela busca por conhecimento ao longo espaço islâmico.
O espaço é definido através da oposição entre os territórios do islamismo (dar alIslam) e aqueles ocupados pelos infiéis (dar al-kfur) e dedicados à guerra (dar al-harb), cuja incorporação nas terras do islã, acreditava-se, aconteceria mais cedo ou mais tarde. Essas definições acerca da natureza do espaço são importantes para a compreensão das obras de Khaldun e Battuta. O primeiro, modelo de sábio erudito islâmico, dedica-se na Muqaddimah a compreender as leis universais da sociedade – ciência que afirma ser sua criação – através do estudo e da viagem pelos espaços islâmicos, tendo o Magrebe como seu grande laboratório. Já Battuta dedica-se a analisar e vivenciar a unidade formada neste espaço. Apesar de cultural e historicamente heterogêneo, a fé islâmica e a língua árabe fizeram dele um território.
Recorrendo a edições dos textos de Battuta e Khaldun em diferentes idiomas, embora não no árabe, Bissio destaca o papel do espaço e da viagem na caracterização da identidade muçulmana do século XIV e anteriores, apontando a valoração atribuída pela religião islâmica à busca do conhecimento. Através da expansão muçulmana, desde o século VII, formou-se um extenso tecido social que, embora forjado sobre diversos ecossistemas e integrando povos culturalmente muito distintos – desde a Índia até a Espanha – manteve elementos de uma identidade comum: o idioma árabe, considerado sagrado e perfeito por ter sido a escolha de Deus para anunciar sua mensagem ao mundo, através de Maomé; e a fé islâmica, responsável pela unidade dos fiéis no corpo da Umma, a comunidade muçulmana que supera fronteiras políticas e étnicas diante da supremacia religiosa.
Dada a amplitude desta ocupação, a análise de referenciais da geografia cultural é central à discussão de Bissio. Conceitos como espaço social e lugar, aplicados à concepção da identidade, permeiam sua discussão, marcando o pertencimento e a exclusão na sociedade islâmica. Centrada no processo de urbanização, a fé muçulmana encontrou local privilegiado para sua divulgação nas cidades, organizando o espaço e caracterizando as relações sociais ali estabelecidas. A cidade construiu-se em torno da mesquita, onde coabitavam profissão de fé, exercício do poder político e jurídico e práticas educacionais. No plano territorial, o desenvolvimento da cartografia manteve-se ativo durante a expansão muçulmana, vistas as exigências dos Cinco Pilares do islamismo [3], dentre as quais se destacam a necessidade de orar cinco vezes ao dia na direção de Meca e realizar, ao menos uma vez na vida, a peregrinação aos lugares sagrados do Islã. O domínio do espaço era condição para exercício da fé e foi a comunhão religiosa sobre o espaço que garantiu a continuidade da Umma.
O exercício da justiça árabe-muçulmana fazia-se a partir do Corão, o livro sagrado, e da Sunna, a compilação dos ditos e feitos do Profeta. Com o aumento da complexidade social árabe-islâmica, fazia-se necessário coletar o máximo de informações úteis à construção da jurisprudência, visto esta basear-se nos exemplos advindos da vida e obra de Maomé. O objetivo inicial da viagem, portanto, era a coleta dos hadiths: atitudes, decisões e silêncios de Maomé, que compõem a Sunna e caracterizam o exercício da justiça islâmica na xaria. Através da viagem, buscava-se reconstruir as experiências do Profeta, pela coleta de tradições junto aos familiares daqueles que conviveram com ele. A viagem levava ao conhecimento.
Além do acesso ao saber, a escrita geográfica trazia à luz a grandiosidade do mundo construído pelos muçulmanos. Este, entretanto, vivia momentos de crise. No século XIV, o Mediterrâneo árabe caia diante dos impactos da Peste Negra e da fragmentação política. Com este pano de fundo, Bissio aborda o contexto histórico vivenciado por Khaldun e Battuta, importantes na configuração de suas obras. A autora argumenta que se vivia um período no qual o passado glorioso era mais importante que o incerto futuro, inspirando os escritores muçulmanos a produzir textos que garantissem à posteridade o conhecimento daquele momento histórico.
Ibn Khaldun, sobre quem já se disse ter sido o criador da Sociologia, se propôs a produzir uma obra de História peculiar à época: os homens eram o sujeito histórico e o objeto de estudo era a sociedade muçulmana. Partindo da trajetória de vida deste autor, o impacto da Peste Negra em sua formação e sua atuação política no Magrebe, na Espanha (Al-Andaluz) e no Egito, Bissio destaca a contribuição de Khaldun às Ciências Humanas, pouco estudada na tradição ocidental. O deslocamento da História para o mundo dos homens, em detrimento de ser realização da vontade divina; a compreensão da unidade do gênero humano e a explicação do desenvolvimento das civilizações através da geografia, ecologia e biologia caracterizam grande ruptura com a epistemologia vigente no período, muito embora alimentada pelas concepções muçulmanas acerca do mundo.
Documentos produzidos para serem monumentos4 de uma sociedade em decadência, os textos de Battuta e Khaldun apontam o uso pragmático da escrita como recurso à integração dos espaços e entendimento da sociedade, aproximando homens e Estados que, embora não mais organizados numa estrutura política única, o califado, seguiam na comunhão de uma identidade linguístico-religiosa (apesar das dissidências, como sunitas e xiitas). Um dos conceitos desenvolvidos por Ibn Khaldun – assabiyya, o espírito do corpo político – decorre de suas experiências ao percorrer o Magrebe neste momento, dado à derrocada de Estados e ao sentimento, captado por ele, de deslocamento do eixo civilizacional, que se movia do sul para o norte, com a emergência da Cristandade europeia e a redução das cidades muçulmanas, outrora as mais populosas, urbanizadas e ativas do período.
Na teoria das civilizações de Khaldun, o conceito umran tem sentido em civilização, seja na universalidade da sociedade humana ou na concretude de uma população sobre um território. A vida em sociedade é condição da existência humana, conforme Khaldun, e sua essência está na complementaridade entre o polo rural e o urbano. No primeiro residem os valores como força, lealdade, temperança, que fortalecem o espírito político (assabiyya); no segundo está o luxo, os excessos e prazeres, que o enfraquecem. Contudo, o urbano é o espaço central da vida social e religiosa. O equilíbrio se constitui na trajetória cíclica da história, com ascensão e queda de impérios que conquistam as cidades, se apoderam delas e se enfraquecem nelas. A umran é transmitida de um império a outro, resultando num sistema de civilização bipolar, cíclico e relativamente estável.
Enquanto Khaldun busca compreender as leis que regem a sociedade, Battuta aponta a unidade da umma como ponto central de sua análise. Ao longo da rihla na qual descreve o périplo realizado, o viajante marroquino dedica-se a apresentar a universalidade da umma. Sua narrativa, exposta por Bissio, conjuga as necessidades do saber com a atenção dedicada ao mundo do islã, seus prazeres, aromas e sabores. A manifestação da fé muçulmana nos lugares pelos quais passou, a solidariedade amparada no pertencimento à comunidade religiosa e a peregrinação como lugar do encontro são destacados por Battuta. Meca é o centro da umma e, para os muçulmanos do século XIV, as terras do islã eram a única parte do mundo que importava, pois nelas estava a verdade da revelação a ser levada a outros lugares ao redor do globo. Não obstante a desagregação política do califado abássida, a unidade linguístico-religiosa foi capaz de manter-se, tendo a referência ao espaço como eixo central de sua organização, na vida diária – através da mesquita – e na umma, por meio de Meca.
O sentido das viagens realizadas por Khaldun e Battuta pode ser melhor compreendido se colocado em termos da teoria do conhecimento do islamismo. Diferentemente do cristianismo, que prega separação entre mundo temporal e espiritual, o islã define a unidade entre essas realidades. O Corão incita os fiéis a olharem o mundo com curiosidade, pois nele se expressa a palavra de Deus. A religião estimula a ciência e, no período do medievo, a produção científica muçulmana era enorme, legando às estantes da Cristandade a maior parte das traduções da filosofia grega, que chegaram à língua latina através do árabe. A incorporação dos conhecimentos e sua transformação, buscando atender às necessidades da comunidade muçulmana, geraram um período de grande riqueza intelectual, expressa no universalismo científico e religioso da umma.
Ao romper estereótipos e preconceitos acerca do islamismo, Beatriz Bissio convidanos a um novo olhar sobre o Oriente. Ao dialogar com Ibn Khaldun, repete-lhe as conclusões: “o mundo parece estar mudando de natureza” [5], bem como é preciso que mudemos a natureza de nosso olhar sobre ele. Sua leitura apresenta-nos a possibilidade de reflexão sobre mundo além do panóptico europeu. Relações que se tecem e se reproduzem sem, necessariamente, ter o Ocidente como causa ou objeto. Somos apresentados ao islã com olhar de proximidade, de encanto e encontro. Unidos na natureza humana, mas também herdeiros do legado árabemuçulmano que nossa cultura ocidentalizante insiste em invisibilizar, vislumbramos um mundo criativo, dinâmico, parte de nossa formação histórica. Um mundo que vai muito além da sombra do Ocidente.
Notas
1. Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: thiago.mota@ymail.com.
2. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.
3. PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã: Religião e Civilização, Uma Abordagem Antropológica. Aparecida: Santuário, 2010.
4. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp. 2003.
5. BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.292.
Thiago Henrique Mota1 – Doutorando em História na Universidade Federal de Minas Gerais com bolsa oferecida pela Fapemig, agência a qual o autor remete seus agradecimentos. Contato: thiago.mota@ymail.com
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe: a civilização árabe islâmica clássica através da obra de Ibn Khaldun e Ibn Battuta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Resenha de: MOTA, Thiago Henrique. Além da sombra do Ocidente: o mundo árabe que nós desconhecemos. Aedos. Porto Alegre, v.7, n.16, p.502-507, jul.,2015. Acessar publicação original [DR]
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