O estudo do historiador Francisco Régis Lopes Ramos intitulado de O fato e a Fábula: O Ceará na escrita da História, publicado em 2012, trata da construção de uma determinada visão da História do Ceará, que vai se modificando ao longo do tempo. A partir de um recorte temporal de 1860 até 1970 – o objetivo de Régis Lopes é tomar a História do Ceará como objeto “que foi se legitimando na medida em que foi se constituindo”. O historiador Régis Lopes, atualmente Professor da Universidade Federal do Ceará, pós-doutor pela Universidade Federal Fluminense, tem estudos acerca da religiosidade, memória, ensino e teoria da História. No entanto, neste trabalho deve-se esclarecer que seu interesse não é privilegiar os autores estudados “já feitos”, mas esses autores em seus “fazer-se”, que vão “aperfeiçoando” seus conhecimentos “na medida em que o tempo vai passando”. Esses autores são José de Alencar, Alencar Araripe, Cruz Filho, Raimundo Girão, Filgueira Sampaio, Pedro Théberge, Senador Pompeu, entre outros. Ao se centrar na “cultura letrada” (na ilha dos letrados), analisa o tema da História do Ceará através de autores, livros e obras de História do Ceará, especificamente de autores cearenses, ‘partindo’ de José de Alencar – literato cearense. Iracema, Sertanejo, Troco do Ipê entre outras, são obras (assim como outras de outros escritores) que perpassam boa parte do livro, possibilitando ao historiador pesar historicamente concepção do “passado” do Ceará. Até mesmo a percepção de uma construção da imagem de autores que se deu como fundamental para composição desse “passado” – muitas vezes imaginado – do Ceará. José de Alencar, o “filho ilustre da terra”, não por acaso, entra na obra de Cruz e Souza, História do Ceará – resumo didático (1931), como um cearense de (merecido) destaque. Uma certa interação entre a escrita sobre o Ceará e a escrita de livros didáticos no Estado é perceptível.
No entanto, a análise histórica de Régis não se trata de uma “perspectiva tradicional de história das ideias”, como ele mesmo destaca, como se o passado cearense fosse “algo dado” pela natureza e ao pesquisado resta-lhe “apenas descobri-lo”; trata-se, entretanto, de uma “inexistência do objeto em si mesmo”, de modo que legitime-se a “crença” no passado cearense. Régis Lopes inicia sua análise do ponto que diz respeito “a parte e o todo”. A partir da orientação pioneira, a escrita da História do Brasil não deveria desprezar as singularidades das províncias, pois estas deveriam se manter unidas (fazendo parte do “todo”). Contudo, o norte do trabalho parte da preocupação em como escrever a História do Brasil levando em consideração as particularidades de cada parte (províncias) relevantes e fundamentais para o todo (Brasil); de modo que essa História do Brasil não pareça um aglomerado “de histórias especiais de cada uma das províncias”, como afirma Régis citando Martius. Desse modo, a presente obra direciona-se para o papel de autores cearenses, “na história e na literatura”, que buscaram evidenciar a importância do Ceará para a História do Brasil, no interesse de, no presente, construir a ideia de um Ceará “louvável e correto.”
No estudo de obras como Iracema (1865), de José de Alencar, e História da Província do Ceará (1867), de Alencar Araripe, o autor parte da ideia de que essas obras são exemplos de “escrita militante”, pela qual seus autores buscaram “figurações do passado” na tentativa de imaginar um passado para o Ceará, destacando o intuito de construção de uma “nacionalidade”, pelos intelectuais do século XIX, através da qual procuraria efetivar um passado cearense que seria “transladado ao presente, (…) filtrado, digerido e transformado em força.”Isto está explicito no material didático organizado por Joaquim Nogueira publicado em 1921, no seu livro Ano Escolar. Nesta, Nogueira indicava orientações pedagógicas entre as quais havia o intuito de o trabalho do professor seguir o pressuposto de um tempo linear, pontuando os feitos ilustres na lógica de causa e consequência – precisava-se, portanto, “criar” fundadores para o Ceará. Nessa disputa e trânsito de valores, permeado de escolhas, elaboram-se datas e fatos (célebres) através de uma “narrativa sedutora (…), com uma trama bem urdida para atrair a atenção do leitor e (…) torna-lo cúmplice partícipe da história que ele lê e da qual participa como cearense que procura conhecer o passado para amar o presente.”
Assim, o que s destaca na oba é o interesse de modelar um determinado discurso para a História do Ceará que atendeu às demandas específicas do espaço-tempo em que os intelectuais cearenses estavam inseridos. É importante salientar em O Fato e a Fábula a necessidade que esses intelectuais tinham de legitimar tais considerações para com o passado do Ceará através do ensino, pois se acreditava na importância dos estudantes saberem terma e autores que trataram do Ceará. Dessa forma, tais operações historiográficas se davam no sentido de “civilizar” o povo através do ensino da história, uma verdadeira “missão” que as “ilhas de letrados” detinham. O capítulo XIX “Começo, meio e fim” é destacável para perceber a dimensão do ensino, neste capítulo Régis destaca os quatro livros didáticos mais usados, de algum modo, nas escolas cearenses. Os livros são: História da Província do Ceará (1867) de Alencar Araripe, a já citada de Cruz Filho, uma de Raimundo Girão, Pequena História do Ceará (1953), e História do Ceará de Filgueira de Sampaio; Lopes procura entender na análise dessas obras como se constitui “o enquadramento do tempo para dar conta do espaço delimitado como o Ceará”. O final de cada livro é o presente de cada autor, por isso observam-se temas como o pioneirismo cearense na Abolição, as secas, a migração ao Acre, e mesmo figuras tidas como importante, como Humberto Castello Branco – o “bravo cearense” – no capitulo “O Ceará na Presidência.” é destacável, pois esse se dedicou aos livros didáticos.
Além de destacar a importância que o ensino de História do Ceará teve para tais autores, Régis também ressalta a importância que esses autores deram à escrita da História cearense. De forma geral “estava em jogo a legitimidade tanto da História do Ceará quanto do historiador cearense”. A obra do historiador é pontual quando procura conceber que o passado cearense não é “algo dado” de modo que os autores e as obras vão se constituindo, construindo o conhecimento de acordo como passar do tempo. Por isso, afirma que tal “objeto”: o passado do Ceará em si inexiste, havendo apenas uma “crença” nesse passado, pois “se não fosse o objeto da crença, a própria crença nem poderia sonhar em existir”. Publicado em 2012, quando é evidente o debate atual acerca do trabalho docente, do conhecimento histórico, do conhecimento escolar, dos métodos de exames (ENEM, por exemplo), o livro possibilita uma reflexão acerca do próprio fazer historiográfico e do ser historiador, principalmente quando se percebe a discussão entre o “local” e o “nacional”, o “cearense” e o “brasileiro”.
Raul Victor Vieira Ávila de Agrela.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. O fato e a fábula: o Ceará na escrita da história. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012. Resenha de: AGRELA, Raul Victor Vieira Ávila de. Sobre o fato Ceará: acerca da fábula cearense. Cantareira. Niterói, n.20, p. 129- 131, jan./jul., 2014. Acessar publicação original [DR]
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