O livro Las Independencias Hispanoamericanas, organizado por Verónique Hébrard e Geneviève Verdo (ambas professoras da Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne), reúne trabalhos de historiadores europeus, latino-americanos e norte-americanos apresentados em um colóquio internacional ocorrido em junho de 2011, na Sorbonne. A obra, dividida em cinco partes e reunindo vinte artigos, abrange campos e temas que vêm sendo valorizados pela produção historiográfica concernente às revoluções de independência no mundo ibero-americano, dialogando com estudos referenciais sobre as sociedades coloniais e as transformações sociopolíticas do primeiro quartel do Oitocentos, bem como com novas interpretações historiográficas sobre a América ibérica. Os estudos que compõem o livro abordam questões como conceitos e linguagens políticos, interpretações e participação políticas dos setores subalternos das sociedades americanas, transformações institucionais e jurídicas ao longo dos processos de independência, formação dos Estados Nacionais e leituras transnacionais sobre as experiências revolucionárias. Com relação à cronologia apreendida pela obra, seus estudos iniciais abordam a segunda metade do século XVIII, ao passo que outros artigos abarcam até a primeira metade do XIX. Muitos dos artigos adotam recortes cronológicos curtos, valorizando as profundas e rápidas transformações vivenciadas em um período de revoluções.
A primeira seção da coletânea, intitulada “Relatos de los Orígenes,” é composta por três artigos. O primeiro, “El patriotismo americano en el siglo XVIII: ambigüedades de un discurso político hispánico,” de Gabriel Entim, discute a vigência de um discurso de identidade americana nas colônias hispano-americanas no século XVIII. Partindo da crítica ao conceito de “patriotismo criollo”, a discussão de Entim sublinha a operacionalidade da identidade americana dentro de um quadro que contemplava outras formas identitárias, sem que a americanidad necessariamente significasse uma crítica à Monarquia e à unidade entre os espanhóis. Alejandro E. Gómez, por sua vez, em seu artigo “La Caribeanidad Revolucionaria de la ‘Costa de Caracas.’ Una visión prospectiva (1793-1815),” contempla os movimentos de sublevação ocorridos na costa caribenha da Venezuela em fins do XVIII, assim como os primeiros anos do processo revolucionário de independência na região. Em sua análise, Gómez rejeita a ideia de continuidades entre esses dois momentos, como se as contestações políticas da década de 1790 fossem movimentos “precursores” das lutas dos anos de 1810. Além disso, o autor enfatiza as conexões da costa venezuelana com o mundo caribenho, viabilizando o que Gómez define como “interação supra-regional,” importante para compreender as lutas políticas (destacando-se a presença dos pardos nesses movimentos). Já Georges Lomné (“Aux Origines du Républicanisme Quiténién (1809-1812): La liberté des Romains”) analisa o ambiente cultural da Audiência de Quito na segunda metade do Setecentos, permeado pela valorização do neoclassicismo e do jansenismo, bem como pelo surgimento de novos espaços de sociabilidade, gestando os referenciais e os ambiente para críticas ao Absolutismo. Em seu texto, Lomné critica a construção historiográfica que aponta a continuidade intelectual entre ideais iluministas vigentes na Audiência do XVIII e as bases intelectuais dos movimentos dos anos de 1809-1812.
A segunda parte da coletânea (“Los Lenguajes Políticos”) apresenta como texto inicial o artigo de Marta Lorente Sariñema, “De las leyes fundamentales de la monarquía católica a las constituiciones hispánicas, también católicas.” A autora investiga os textos constitucionais que vieram à luz no mundo hispânico nos anos seguintes à crise de 1808, colocando no mesmo patamar de importância a Constituição de Cádiz e as concebidas no continente americano. Atentando para as ressignificações das leis fundamentais da Monarquia espanhola nas constituições pós-1808, Lorente destaca a presença da defesa do catolicismo como um elemento comum em todos os textos constitucionais hispânicos, bem como os mecanismos constitucionais voltados para o controle das autoridades públicas. Jordana Dym, no texto “Declarar la Independencia: proclamaciones, actos, decretos y tratados en el mundo iberoamericano (1804-1830),” estuda um corpo documental formado de textos declaratórios de independência, analisando os principais pontos de seus conteúdos e os contextos nos quais foram engendrados esses documentos fundamentais para redefinir o conceito de soberania em uma conjuntura de crise política da Monarquia. María Luisa Soux (autora do artigo “Legalidad, legitimidade y lealtad: apuntes sobre la compleja posición política en Charcas, 1808-1811”) enfatiza o papel da cultura jurídica na tomada de posições e decisões políticas na sociedade charqueña durante a crise monárquica. Como observa Soux, a defesa da legitimidade das proposições políticas dos grupos em luta passava por considerações de ordem jurídica, buscando-se definir as bases legais das novas noções de soberania. Por fim, Víctor Peralta Ruiz (“Sermones y pastorales frente a un nuevo linguaje político. La Iglesia y el liberalismo hispánico en el Perú, 1810-1814”) analisa os discursos políticos do clero no Vice-Reino do Peru. Tradicionalmente considerados anti-liberais e defensores do absolutismo, os membros do clero católico, segundo Peralta Ruiz, de fato, eram mais heterogêneos, sendo possível identificar por meio dos sermões a presença de religiosos (principalmente do baixo clero) favoráveis ao liberalismo, às Cortes de Cádiz e à Constituição de 1812.
A terceira parte do livro (“Actores y Prácticas”) traz quatro trabalhos. O primeiro (“Chaquetas, insurgentes y callejistas. Voces e imaginarios políticos en la independencia de México”), de Moisés Guzmán Pérez, enfoca o surgimento das nomenclaturas dos grupos políticos ao longo da crise da monarquia espanhola e dos conflitos militares ocorridos na Nova Espanha entre 1808-1821. As nomenclaturas que vieram à tona eram representativas dos imaginários, dos projetos e das ideias dos grupos políticos naquele momento. O trabalho seguinte, de Andréa Slemian (“La organización constitucional de las instituciones de justicia en los inicios del Imperio del Brasil: algunas consideraciones históricas y metodológicas”), enfoca os debates e as propostas de organização jurídica no Império do Brasil nas décadas de 1820-1830, marcados pela presença dos ideais liberais. Slemian enfatiza a dimensão institucional jurídica de construção do Estado Nacional, valorizando a compreensão dos conflitos em torno de expectativas e projetos de futuro formulados pelos sujeitos que vivenciavam os primeiros anos do Brasil independente. Já Gabriel Di Meglio (no artigo “Los ‘sans-culottes despiadados.’ El protagonismo político del bajo pueblo en la ciudad de Buenos Aires a partir de la Revolución”) destaca a participação popular (formada principalmente por negros, pardos e brancos pobres) na cena política bonaerense. A crescente presença dos segmentos populares nas reivindicações políticas, a politização das discussões no espaço público e as redes do clientelismo ligando lideranças políticas da elite e segmentos populares caracterizaram a vida política de Buenos Aires nas décadas 1810- 1830. Finalizando essa unidade, Aline Helg (“De Castas à Pardos. Pureté de sang et égalité constitutionnelle dans le processos indépendantiste de la Colombie caraïbe”) estuda o processo de independência e de construção do Estado a partir da cidade de Cartagena entre 1810-1828, enfatizando a participação política dos pardos, os alcances e limites de suas reivindicações políticas. Para tanto, Helg toma como fio condutor da análise a trajetória de dois pardos que se destacaram como lideranças políticas e militares, Pedro Romero e José Padilla, e as transformações sociais, econômicas e políticas vivenciadas pela população parda.
“Los Espacios de Soberanía”, a quarta unidade do livro, traz primeiramente o trabalho de Carole Leal Curiel. Intitulado “Entre la división y la confederación, la independencia absoluta: problemas para confederarse en Venezuela (1811-1812),” o texto discute a formulação de propostas de independência e confederação, sublinhando o entrelaçamento, nos intensos debates teórico-políticos, das ideias de reconfiguração da soberania e de novos pactos políticos para as províncias venezuelanas. No trabalho seguinte, Marta Irurozqui (“Las metamorfosis del Pueblo. Sujetos políticos y soberanías en Charcas a través de la acción social, 1808-1810”) dedica-se ao estudo das ações políticas populares (através de procissões religiosas a favor do monarca e de protestos dirigidos às autoridades locais). Nessas manifestações, destacava-se a presença dos referenciais políticos de fidelidade à Monarquia espanhola no momento de sua crise, bem como o exercício da soberania pelo povo charqueño. Juan Ortiz Escamilla (“De lo particular a lo universal. La guerra civil de 1810 en México”), por sua vez, enfatiza a guerra e a Constituição como as duas variáveis fundamentais para compreender as transformações dos atores, vocabulários e espaços políticos na Nova Espanha no início da década de 1810. No decorrer dos conflitos armados, insurgentes e realistas implementaram novas organizações políticas, ao passo que os ayuntamientos instituídos pelo texto constitucional gaditano criaram novas bases institucionais de exercício do poder. Finalizando essa unidade, Clément Thibaud (“Le trois républiques de la Terre Ferme”) analisa os conceitos de república vigentes na Venezuela e Nova Granada. Ao não entender o republicanismo como consequência direta das proclamações de independência, Thibaud põe ênfase nos sentidos diferentes, e por vezes contraditórios, de república, e como tais sentidos eram apropriados pelos atores políticos da região tendo em vista, também, os desafios práticos de administração daquele território.
A última unidade da obra (“Las Revoluciones y sus Reflejos”) reúne quatro textos. O primeiro, de autoria de Marcela Ternavasio (“La princesa negada. Debates y disputas en torno a la Regencia, 1808-1810), volta-se para o tema do carlotismo, analisando o projeto de regência da infanta Carlota Joaquina como uma alternativa de superação da crise política iniciada em 1808. Atentando para as rápidas mudanças conjunturais e as modificações nas estratégias de Carlota Joaquina e seus colaboradores, Ternavasio articula em sua análise as tramas, leituras e posicionamentos políticos que o carlotismo ativou na Península e na América. Anthony McFarlane, no artigo seguinte (“La crisis imperial en el Río de la Plata. Una perspectiva realista desde Montevideo, 1810-1811”), parte do conjunto de cartas do oficial espanhol José María Salazar para entender a política contra-revolucionária no Rio da Prata. A crítica à revolução de Buenos Aires, a denúncia das disputas internas em Montevidéu e as desconfianças com relação à presença de portugueses e britânicos são alguns dos temas das cartas de Salazar, e que merecem a análise de McFarlane a fim de compreender as interpretações e expectativas dos realistas. O terceiro trabalho da unidade, de Monica Henry (“Un champ d’observation pour les ÉtatsUnis. La révolution au Río de la Plata”), explora a missão norte-americana enviada pela administração do presidente James Monroe às Províncias Unidas do Rio da Prata no ano de 1817. Essa missão (sob a incumbência de coletar informações militares, políticas e econômicas) desempenhou um papel importante para a definição da agenda diplomática dos Estados Unidos com relação à América espanhola, tendo em vista os debates nos meios políticos e na opinião pública sobre as experiências revolucionárias no continente e o reconhecimento (ou não) dos novos Estados. Encerrando a unidade, o texto de Daniel Gutiérrez Ardila (“La République de Colombie face à la cause des Grecs”) aborda os esforços da diplomacia colombiana entre as potências internacionais para obter o reconhecimento internacional do novo país. Nesse empreendimento diplomático, o paradigma da independência grega (conquistada nos anos de 1820) é ressaltado pelos representantes diplomáticos da Colômbia, na medida em que a causa grega usufruía de prestígio nos altos círculos políticos e intelectuais europeus, enquanto que a independência da República da Colômbia (e a hispano-americana em geral) ainda carecia de apoio.
A obra é finalizada por um epílogo (intitulado “Las independencias y sus consecuencias. Problemas por resolver”) de Brian Hamnett. Recorrendo aos exemplos do Rio da Prata, México, Peru, Alto Peru, Colômbia, Venezuela e Brasil, Hamnett aponta algumas das questões que marcaram a trajetória dos novos Estados Nacionais nos anos imediatamente posteriores às suas independências. A distribuição dos poderes e as representações políticas regionais, a legitimidade do modelo constitucionalista frente às guerras civis, as restrições aos sufrágios e o fortalecimento do poder executivo, assim como a própria construção das identidades nacionais, constituíram desafios consideráveis para as sociedades ibero-americanas ao longo do século XIX.
A volumosa produção sobre as independências (em parte alimentada pelas comemorações de bicentenários que vêm ocorrendo desde a década passada) tem sido beneficiada pela heterogeneidade de aportes e interpretações, bem como pelo diálogo internacional. O livro organizado por Hébrard e Verdo é representativo desse ambiente historiográfico, e a qualidade e pertinência dos trabalhos reunidos nessa obra atestam a renovação e vitalidade de um tema fundamental para os dois lados do Atlântico.
Carlos Augusto de Castro Bastos – Professor no Departamento de História da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP – Macapá/Brasil). E-mail: castrobastos@hotmail.com
HÉBRARD, Véronique; VERDO, Geneviève (Ed.). Las Independencias Hispanoamericanas. Um objeto de Historia. Madrid: Casa de Velázquez, 2013. Resenha de: BASTOS, Carlos Augusto de Castro. O mundo hispânico em revolução: abordagens sobre as independências na América. Almanack, Guarulhos, n.7, p. 161-164, jan./jun., 2014.
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