Jamás ha llovido reyes el cielo… De independencias, revoluciones y liberalismos en Iberoamérica, é uma compilação de textos de diversos autores sobre processos revolucionários no período de crise do Antigo Regime, de avanço de ideias liberais na Europa e nas colônias da América, e das independências dos territórios antes pertencentes a Portugal e Espanha. Foram reunidos, para tanto, um conjunto de autores especialistas no tema de acordo com cada região, em geral pesquisadores e docentes de renomadas universidades da América e da Espanha. A obra é dividida em três partes, contendo quatorze artigos e seu foco é, majoritariamente, a América espanhola, mas não esquecendo a experiência brasileira.
Como a editora da obra, Ivana Frasquet (da Universidade de Valência), esclarece, a primeira frase do título foi pronunciada por José Mejía Lequerica, nas Cortes espanholas reunidas em dezembro de 1810, como uma metáfora sobre a origem da soberania. Debatia-se, então, o futuro da monarquia espanhola, no contexto da abdicação e prisão de Fernando VII. Tais discussões questionavam a soberania do rei e onde esta residiria no caso de sua ausência. Este processo, como é sabido, repercutiu amplamente por toda a América espanhola, inaugurou um processo de formação de Juntas de Governo e desencadeou amplos debates em torno da representação política nas capitanias e nos vice-reinos americanos. Em vários momentos da obra, são evidenciadas mudanças de conceitos, linguagens e paradigmas políticos, em meio a ações e discursos realistas e independentistas.
A primeira parte, Los prolegómenos: el bienio transcendental, 1808-1810, é composta por cinco artigos, e trata do período de crise que se abre na América com a notícia da prisão de Fernando VII, que leva à criação de Juntas em todo o território. O primeiro, de Juan Ortiz Escamilla (da Universidade Veracruzana), “La crisis política mexicana de 1808“, mostra que a primeira tentativa de formação de uma junta governativa naquele que era o mais importante vice-reino espanhol da América foi derrubada por um golpe desferido pelos setores mais conservadores da sociedade novohispana, ao qual seguiram-se medidas repressivas para manutenção da ordem e obediência ao governo. Estas atingiram não somente os defensores do então vice-rei Iturrigaray como vários outros setores da população. O autor afirma que oscriollos tinham a intenção de formar uma Junta para preservar a soberania real e pleiteavam mudanças por vias pacíficas; além disso, a insatisfação frente ao bloqueio da representação das províncias para a Suprema Junta da Espanha foi outro fator que elevou os ânimos, aumentando manifestações contra o novo governo e endurecendo a repressão.
Em seguida, o artigo de Juan Andreo García (da Universidade de Murcia, recém-falecido), “La isla de Cuba y el discurso de la fidelidad durante la crisis de 1808. El contrapunto La Habana-Santiago de Cuba“, discorre sobre o caso cubano, com uma crítica a um modelo de interpretação centrado no caso de La Habana, de destaque na historiografia, mas que segundo García não daria conta de eventos distintos que ocorreram em outras partes da ilha. Exemplo: Santiago de Cuba, onde muitos franceses, em geral imigrantes brancos, colonos agricultores, se estabeleceram fugidos, sobretudo, das convulsões políticas de cunho racial ocorridas em São Domingos. No momento da crise da monarquia espanhola, em que se declara guerra à França e quando foram instauradas medidas para a expulsão de residentes franceses de Cuba (1809), o tratamento a eles conferido teria sido mais brando em Santiago do que em Havana, onde 6 mil “estrangeiros” foram expulsos. Devido principalmente à contribuição destes ao impulso comercial, progresso econômico e social, acabaram por ser aceitos em Santiago, onde o governador Sebastián Kindelán agia com prudência. O autor elabora ainda um panorama histórico da evolução econômica da Ilha, assim como um balanço populacional em Havana e Santiago, e explica a escolha, aqui, por um caminho distinto do resto da América quando da crise da monarquia espanhola.
O texto seguinte, de Carlos Landázuri Camacho (da Pontificia Universidad Católica del Equador), “El proceso juntista en Ecuador: la Revolución quiteña de 1808-1812″explica a crise em Quito até 1812, elaborando uma cronologia contextual do processo de formação das Juntas na região, bem como um panorama histórico que ajuda a entender, segundo o autor, o fracasso da proposta revolucionária de 1809, já que desde a segunda metade do século XVIII, Quito vinha perdendo importância política e econômica. Por fim, o autor defende que o principal objetivo da primeira Junta (a “Suprema”) era reestabelecer sua autonomia, não tanto em relação a Madrid, mas principalmente frente os governos de Lima e de Bogotá.
Justamente este último é abordado a seguir, em “Una guía de forasteros del Virreinato de Santa Fe para el año 1810”, de Armando Martínez Garnica (da Universidad Industrial de Santander). Baseado em um documento homônimo, mas referente ao ano de 1806, o autor elabora, em colaboração com quatro outros historiadores (Daniel Gutiérrez Ardila, Roberto Luis Jaramillo Velásquez, María Teresa Ripoll e Zamira Díaz López) um guia biográfico, político e administrativo de mudanças ocorridas naquele vice-reino, suas origens e resultados. Tem-se aqui material informativo muito útil para pesquisadores para além de sua contribuição analítica.
Completando este primeiro bloco, o artigo de Gustavo Adolfo Vaamonde (da Universidad Central de Venezuela) “El processo juntista en Venezuela, 1810-1811”, apresenta uma revisão historiográfica do processo de formação de juntas de governo naquela capitania e das oposições a elas, destacando o caráter conservador implicado em uma recusa do modelo revolucionário francês ainda tão comumente enfatizado pela historiografia; em contrapartida, Vaamonde privilegia sua inserção em uma cultura política espanhola.
A segunda parte, Los actores: criollos, gauchos, negros y mujeres, é composta por quatro artigos sobre atores envolvidos nos processos independentistas. Aqui, é louvável a análise de sujeitos históricos que, não sendo típicos membros de elites, se politizaram e desempenharam papéis definidores na trajetória revolucionária. Tratando de relações sociais complexas, os artigos trazem a luz questões sobre alianças que transformariam a base de dominação colonial, e também questões de gênero, em geral ainda pouco abordadas na historiografia. Justo Cuño Bonito (da Universidad Pablo de Olavide), em “Esperando a Nunca Jamás: el inicio del fin de la dominación española en la Nueva Granada, 1794-1810”, faz uma exposição pormenorizada sobre o desenlace de tentativas “sediciosas” ocorridas a partir de 1794 e sobre o momento da chegada das primeiras notícias dos eventos ocorridos na Espanha em 1808. Cuño apresenta reações de setores da elite criolla e respostas de autoridades locais frente à turbulência política até a formação da Junta Suprema del Nuevo Reino de Granada. Embora mostre também a participação popular neste processo, seu foco incide, sobretudo, nos complôs políticos e disputas de poder.
Na sequência, Luiz Geraldo Silva (da Universidade Federal do Paraná), em “Negros en armas en el mundo iberoatlántico: del barroco a la modernidad“, faz uma correspondência entre as histórias das colonizações espanhola e portuguesa e seus processos independentistas, com ênfase em suas milícias de negros e pardos. Mais precisamente, analisa os casos de Cartagena (Nova Granada), Pernambuco e São Paulo, contextualizando a formação de tais milícias desde o século XVI e revelando suas atuações políticas em momentos cruciais da história das independências em torno de uma tendência: pretos e pardos milicianos pendiam para o lado de tropas realistas nas regiões mais conservadoras, mantendo-se como força de apoio revolucionário em outras. Por fim, destaca a formação de Constituições (em Cádiz, Lisboa e Rio de Janeiro) e a questão da cidadania relacionada a tais grupos, em sintonia com crescente historiografia a respeito do tema.
Correspondente a ele, “La rebelión de los gauchos: movilización campesina en el norte argentino durante la guerra de Independencia”, de Gustavo L. Paz (da Universidad Nacional de Tres de Febrero), foca na formação de milícias de gauchosem Salta e Jujuy, no norte da Argentina. O autor discorre a respeito da transformação das relações entre donos de terras e outros setores de elite, o que envolvia massiva mobilização miliciana de gauchos a lhes proporcionar benefícios via alistamento. Nesse contexto, as relações sociais eliminariam dicotomias coloniais, inaugurando, segundo o autor, um conceito de igualdade com base na mobilização guerreira.
Por fim, em “Actrices en la independencia de México: buscando su lugar en la historia”, a editora do volume, Ivana Frasquet, faz uma crítica historiográfica sobre o papel das mulheres na independência mexicana. Frasquet considera a abordagem heroicizante, ainda vigente em muitas obras, deletéria para tais estudos, e sugere direções alternativas. Em seguida, discorre sobre a participação feminina no processo independentista novohispano, destacando nuances referentes ao gênero, e alertando para diferenças de atuação entre mulheres criollas, indígenas, mestiças e/ou de outros estratos sociais mais baixos.
A terceira e última parte do livro, Las Ideas: leyes, conceptos y lenguajes políticos, é composta por cinco capítulos. O primeiro, de Rossana Barragán (da Universidad Mayor de San Andrés)”Los discursos políticos de la represión: una comparación entre 1781 y 1809“, analisa as falas dos julgamentos dos envolvidos em rebeliões indígenas andinas altoperuanas de finais do século XVIII, e na chamada “Revolución del 16 de julio 1809″ em La Paz. Embora tradicionalmente considerados eventos sem ligação direta, a autora defende que no Alto Peru as experiências setecentistas foram fundamentais para a emergência do que viria no contexto de crise da monarquia espanhola, pois testaram alianças e demonstraram a força da repressão aos insurgentes.
Em seguida, Eduardo Cavieres (da Universidad de Chile), em “La independencia y el Primer Congreso nacional en Chile: ni ilustrados ni liberais: simplesmente republicanos?”, apresenta o caso daquela capitania, onde criollos lideraram a efêmera criação de um primeiro Congresso Nacional já em 1811. O autor analisa os princípios que influenciaram projetos e discursos proferidos naquela ocasião, em que se tentava elaborar uma Constituição para o Chile. Cavieres afirma que, embora a historiografia frequentemente aproxime essa experiência às ideias liberais, estas não se fizeram explícitas quando do esboço de um projeto de Constituição que, na realidade, falava em uma república.
No capítulo seguinte, “La administración de justicia en los orígenes del Império de Brasil (1822-1841)”, Andréa Slemian (da Universidade Federal de São Paulo) percorre as mudanças do aparato jurídico e de justiça, e a ampliação e consolidação institucional do Estado brasileiro no contexto inaugurado pela Independência, destacando a criação do Superior Tribunal de Justiça, do Código de Processo Criminal de Primeira Instância e sua reforma em 1841. Segundo a autora, de início, a intenção era afastar magistrados de carreira herdeiros do Direito português (em um momento específico em que se refutavam tais heranças em muitos aspectos da emergente realidade nacional brasileira), e isolar o judiciário de questões que envolvessem interesses públicos; num segundo momento, os juízes retomariam seu poder com a fusão entre funções policiais e judiciárias. A autora destaca ainda que, perante a necessidade de instituições para a manutenção da ordem pública e fortalecimento do Estado brasileiro, o Judiciário consolida-se como um poder autônomo.
A formação de outro Estado nacional, o Uruguai, é abordado em sequência por Ana Ribeiro (da Universidad Católica del Uruguay), em “Orden y Soberanía: dos conceptos clave en el proceso de conformación del Uruguay independiente”, no qual analisa dois conceitos chave empregados no discurso político da época. Ribeiro contextualiza a trajetória da Banda Oriental nas primeiras décadas do século XIX para focar, mais precisamente, nos conceitos de orden e soberania, devidamente relacionados com outros correlatos – povo, pátria enación – e que ganham significados e conotações variados a depender dos distintos momentos do processo em que se encontram e de acordo com os grupos que os empregavam.
Finalizando esta parte, o capítulo de Sajid Herrera Mena (da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas), “El constitucionalismo liberal español en la historiografia centroamericana (siglo XIX): elogios, silencios y descalificaciones”, percorre registros sobre o regime constitucional espanhol em memórias que não tratavam de um Estado específico, mas da região em geral, e em manuais escolares centroamericanos, sobre os antigos estados membros da República federal (Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica), analisando como os discursos mudavam de acordo com os interesses de cada narrador. O autor conclui que políticos e intelectuais que vivenciaram o regime constitucional espanhol, assim como os autores de tais manuais escolares, tentavam “inventar” fatos fundadores da nação e da república moderna: para alguns, “a revolução” iniciada entre 1811 e 1814; para outros, a independência de 1821, para outros ainda, a instauração da República Federal de 1824.
Nos últimos anos, é notável a multiplicação de coletâneas acadêmicas voltadas às independências ibero-americanas; esta, entretanto, destaca-se em alguns aspectos relevantes. Em primeiro lugar, por seu recorte espacial abrangente, contemplando regiões distintas, mas em diálogos temáticos que acabam por aproximá-las como unidades de análise. Em segundo lugar, por seu recorte cronológico, que embora esteja focado no período entre 1808 a meados de 1830, contempla também períodos anteriores, com o fim de aprofundar a compreensão do que veio depois. Em terceiro, por seus autores realizarem críticas historiográficas pertinentes ao mesmo tempo em que apresentam aspectos de realidades históricas que, se não são completamente inéditos, muitas ainda são de pouco investimento historiográfico. Finalmente, é louvável a preocupação de Frasquet em valorizar a experiência brasileira, aproximando-a da América espanhola (o que é patente não apenas nos capítulos de autoria de Silva e Slemian, mas também no de Ribeiro), o que resulta em interpretações coerentes e convincentes. Por tais motivos, que Jamás ha llovido reyes el cielo não venha a ser obra obliterada em meio a uma numerosa produção historiográfica afim, mas da qual é destacada e elevada represntante
Sheila Virginia Castro – Graduanda em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH / USP – São Paulo-SP / Brasil). E-mail: svcastro83@gmail.com
FRASQUET, Ivana (Ed.). Jamás ha llovido reyes el cielo… De independências, revoluciones y liberalismos en Iberoamérica. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar; Corporación Editora Nacional, 2013. Resenha de: CASTRO, Sheila Virginia. Sobre independências, revoluções e liberalismos. Almanack, Guarulhos, n.9, p. 194-198, jan./abr., 2015.
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