Não deixa de ser irônico que uma obra publicada por um projeto de comemoração do bicentenário da independência do Uruguai, celebrado em 2010, tenha como recorte temporal o período de oficialização da dominação luso -brasileira na região (1821) até a promulgação da constituição da República Oriental do Uruguai (1830), ponto de partida para a construção do Estado uruguaio ao longo do século XIX. Entretanto, é justamente essa leitura nacionalista e anacrônica que a publicação de Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos busca reavaliar.
A crise de Baiona, as suas repercussões juntistas espalhadas pela Espanha e seus domínios ultramarinos, bem como as subsequentes revoluções de ruptura dos laços coloniais têm espaço cativo na produção historiográfica ibero-americana há algumas décadas. A produção acerca da formação do Estado nacional no Uruguai, todavia, é mais problemática. A maior incidência de obras sobre a Banda Oriental é fruto da produção de intelectuais e políticos da segunda metade do século XIX até meados do século XX. Em sua maioria figuram obras decorrentes da interpretação baseada na idéia da pré-configuração estatal do Uruguai, onde a nação, para autores como Francisco Bauzá, Pablo Blanco Acevedo e Juan E. Pivel Devoto, sempre existiu e a independência apenas daria forma a uma unidade cultural, histórica e social determinada desde a época colonial. Embora essa posição, intitulada por José Carlos Chiaramonte como “mito das origens”, tenha sido refutada e debatida por historiadores, diletantes ou não, como Carlos Real de Azúa, Alberto Zum Felde e Tomás Sansón, ainda permanece influente no imaginário uruguaio.
A dominação luso-brasileira, durante o período de vigência da Província Cisplatina (1821-1828), tem ainda menor espaço na produção acadêmica. Embora, ainda pouco analisada na historiografia brasileira, há alguns anos a região faz parte da preocupação de estudiosos do período. No Uruguai os recortes apontam a atuação artiguista da década anterior como de luta por sua independência. Pois é este, justamente, o marco historiográfico de destaque nos seis capítulos da obra coordenada por Ana Frega, apontando caminhos e revisitando “verdades” do processo histórico uruguaio, argentino e brasileiro.
Contudo não é apenas no corte temporal que a obra inova na análise. Seguindo os pressupostos dos renovados estudos de história regional, o “país fronteira” (p.14) Uruguai é pensado considerando as relações com o todo, superando, dessa forma, os limites delimitados pelos antigos domínios ibéricos coloniais e pela demarcação de fronteiras estáticas e fechadas. Levando em consideração essas concepções, a obra apresenta três eixos condutores de investigação: as alternativas independentistas da região da Banda Oriental formuladas em relação aos demais projetos que vão se constituir na área; as identidades políticas e sociais formuladas em consequência desses projetos e, por fim, a participação política de distintos grupos étnicos e sociais nas guerras de independência.
Em Alianzas y proyectos independentistas en los inicios del “Estado Cisplatino”, Ana Frega apresenta e analisa um levante organizado por espanhóis peninsulares e espanhóis americanos no Rio de Janeiro, em 1821. A ação que buscava a reintegração do território da Banda Oriental à nação espanhola, segundo a autora, é conhecida pela historiografia, entretanto não é visualizada como parte das ações ocorridas em consequência da derrota do projeto artiguista. O movimento liderado por Mateo Marganiños e pelo Conde de Casa Florez conjugava grupos que haviam lutado com diferentes interesses durante a primeira década revolucionária. Todavia, nesse momento compartilhavam a recusa ao reconhecimento da ocupação luso-brasileira e a distância dos projetos centralistas de Buenos Aires. O retorno ao controle espanhol seria a única maneira de se opor aos outros movimentos de ocupação da região. Apesar de pensada e planejada a ação não foi executada.
As vicissitudes da guerra e dos distintos projetos de estado dentro da Banda Oriental são abordadas por Inés Cuadro Cawen em La crisis de los poderes locales. La construcción de una nueva estructura de poder institucional en la Provincia Oriental durante la guerra de independencia contra el imperio del Brasil. A pesquisadora se concentra na instalação do governo provincial organizado política e administrativamente em Canelones, durante a Guerra Cisplatina (1825-1828). A estruturação administrativa da Província Oriental significou, em um período de conflito armado, investimentos de altos custos aos cofres locais, gerando protestos das elites que além de perder antigos privilégios arcariam com muitos dos custos da nova política fiscal. As medidas também contrabalancearam o poder local, os vecinos e os líderes militares orientais na campanha acabaram tendo o poder suprimido em relação à Buenos Aires, medidas que foram revogadas com o “Golpe lavallejista” em 1827, porém não retornaram à antiga forma, a exemplo dos cabildos que permaneceram extintos.
As negociações pelo fim do conflito são discutidas por Ana Frega no capítulo La mediación británica en la guerra entre las Provincias Unidas y el Imperio de Brasil (1826-1828). Una mirada desde Montevideo. A participação da Inglaterra nas negociações que deram fim a Guerra Cisplatina e origem a República Oriental do Uruguai é avaliada a partir dos comentários e críticas do Cônsul da Inglaterra em Montevidéu (1824-1829) Thomas S. Hood, de comerciantes britânicos instalados na região e dos periódicos britânicos de circulação no Prata e/ou na Europa. A autora argumenta que a independência do Uruguai visualizada a partir dos extremos do destino manifesto do povo oriental e, na outra ponta, da simples negociata britânica incorrem no mesmo erro: não interpretar a complicada conjuntura regional, as dinâmicas que estavam ocorrendo no território da Banda Oriental, com distintos projetos de construção estatal e as pressões econômicas de países como Inglaterra, França e EUA, sendo a independência, por conseguinte apenas “uno de los resultados posibles” (p.101). A documentação analisada demonstra essa variedade de posições, o crescimento do rechaço a brasileiros e buenairenses conforme o avanço do conflito, embora essa posição tenha se situado dentro de interesses e temores variados. Mesmo que a independência plena tenha se tornado um objetivo comum a esses grupos, ela mesma era entendida de formas diferentes por aqueles que a defendiam.
A mesma historiadora é autora de La “campaña militar” de las Misiones en una perspectiva regional: lucha política, disputas territoriales y conflictos étnicos. A disputa ocorrida em um espaço fronteiriço, uma zona de diversidade cultural com vínculos familiares e associativos que ultrapassavam os limites formais, é avaliada a partir da história regional, destacando os grupos (de Corrientes, Brasil, Buenos Aires, Paraguai e a Banda Oriental) com interesse na região missioneira e os conflitos étnicos e sociais acontecidos em decorrência das beligerâncias. Além de uma complexa trama de relações e interesses, a região missioneira abrigou distintos atores nos conflitos, entre eles estão caudilhos em busca de poder na Banda Oriental, proprietários de terra sul-rio-grandenses, negros recém-libertos e/ou fugitivos, indígenas que compunham ambas as tropas, formando um mosaico social e geográfico definido mais nitidamente apenas na segunda metade do século XIX com a demarcação das fronteiras nacionais.
A questão dos limites nacionais e da dinâmica fronteiriça também é assunto de Ariadna Islas em Límites para un Estado. Notas controversiales sobre las lecturas nacionalistas de la Convención preliminar de Paz de 1828. Apoiando-se em rica documentação e na análise cartográfica a pesquisadora se posiciona contra as análises anacrônicas da construção das fronteiras do Estado uruguaio e reconstitui o processo histórico que definiu os limites do país. A ausência da demarcação das fronteiras do novo Estado criado com a Convenção preliminar da Paz de 1828 gerou diversas interpretações e conflitos na historiografia uruguaia. O maior problema apontado se localizava na única fronteira territorial entre Império do Brasil e a República Oriental do Uruguai, cujos limites foram discutidos entre as duas nações de 1851 até 1973. Geralmente as discussões em torno das fronteiras produzidas pela historiografia nacionalista uruguaia apontavam a usurpação, a invasão e ocupação ilegítima do território projetado pela nação que teria na totalidade territorial um dos itens necessários para sua soberania. A questão dos limites se tornou uma ferramenta de tradição ideológica e uso político impondo noções de um território projetado e imaginário que o Estado uruguaio deveria alcançar. Entretanto, Islas aponta que na realidade, no momento da assinatura do tratado, nenhuma das partes envolvidas tinha força o suficiente para se impor nas negociações e ocupar militarmente as áreas em conflito. Dessa forma, as regiões debatidas poderiam fazer parte de quaisquer dos projetos estatais e nacionais que as reivindicassem.
A participação de políticos intelectuais na construção do imaginário nacional é o foco de María Laura Reali em La reflexión de Luis Alberto de Herrera en torno a Gran Bretaña como árbitro internacional en el proceso de independencia del Uruguay. Os escritos do político e historiador demonstram a sua profunda admiração pela Inglaterra, uma nação considerada por ele tradicional e consciente de seu passado, e nas negociações de paz um árbitro imparcial. Dessa forma, Herrera evidencia a relevância dos representantes orientais nas negociações de paz, com destaque para Juan Antonio Lavalleja (1784-1853) e a natureza da nação a ser construída. A exemplo de outros historiadores revisionistas, a influencia inglesa na região em termos históricos e econômicos é vista como positiva e exemplar para o Uruguai repensar sua própria experiência (p. 250).
Para finalizar, destaca-se que Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos é uma das primeiras obras de fundo e com pesquisadores profissionais trabalhando em conjunto que se volta para a independência nacional do Uruguai. Mais do que textos definitivos ou revoluções teórico-metodológicas, o livro aponta caminhos e renova a atenção sobre o processo histórico que é significativo para todas as nações que compõem a região platina.
Murillo Dias Winter – Mestrando em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF – Passo Fundo/Brasil). E-mail: murillodiaswinter@hotmail.com
FREGA, Ana (coord.). Historia Regional e Independencia del Uruguay. Proceso histórico y revisión crítica de sus relatos. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2011. Resenha de: WINTER, Murillo Dias. Identidades, guerra e limites – A independência do Uruguai revisitada. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 203-205, jan./jun., 2013.
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