História Mínima de Chile | Rafael Sagredo Baeza

Intitulada História Mínima de Chile, a obra de Rafael Sagredo Baeza propõeuma interpretação atual dos processos que auxiliaram na constituição da história do Chile, estabelecendo um panorama que se inicia com uma discussão acerca daqueles a que chama de “os primeiros americanos” e que se estende até a retomada da democracia após o regime militar chileno e a ditadura de Augusto Pinochet. Dotada de um virtuosismo informativo e descrições minuciosas e extremamente pertinentes para a narrativa que deseja empreender, a História Mínima de Chile é uma produção de imenso fôlego que condensa uma perspectiva de larguíssima duração acerca das personagens e dos eventos que figuram a história chilena.

A obra de Rafael Sagredo divide-se em catorze capítulos, além da apresentação e de um epílogo, a que o autor nomeia Colofón. Na apresentação, Sagredo expõe que seu intuito consiste em propor uma distinta explicação dos processos essenciais que, de alguma forma, teriam corroborado com a paulatina edificação de uma história propriamente chilena do ponto de vista sumariamente nacional. Em menção a Claudio Gay, naturalista francês autor da primeira história do Chile, datada de 1839 – chamada por Baeza de “a monumental” História Física y Política de Chile -, o autor afirma que a necessidade de que fosse escrita uma história do Chile era fortíssima em meados do século XIX, pois que àquela altura era urgente “constituir uma comunidade imaginada, entre outros meios, mediante a invenção de uma tradição” (p.12). Tanto isso é legítimo, que a própria noção de América Latina teria sido formulada três anos antes da publicação da obra de Gay pelo viajante francês Michel Chevalier, como enunciam diversos estudos sobre o tema.

Em “Los Habitantes de lo más hondo de la tierra”, capítulo que inicia a obra, Rafael Sagredo trata do Chile por meio do vocativo “el último Rincón del continente”, em apelo ao aspecto periférico em termos geográficos que, de acordo com o autor, justifica muitas das especificidades e peculiaridades da trajetória chilena que são explicitadas no desenrolar da obra. Em “La Conquista de América y sus Protagonistas”, bem como em “Chile, finis terrae imperial“, o autor trata da expansão europeia e do estabelecimento dos chamados conquistadores espanhóis em território chileno, discorrendo principalmente acerca do “afã de glória” e do “espírito aventureiro dos conquistadores espanhóis” – traços que, segundo Baeza, também constituíram fortes estímulos para a conquista, pois que os homens que a empreenderam desejavam relacionar seus nomes a “grandes descobrimentos ou com a origem de algum povo”; algo que, para o autor, desencadeou um processo cujos resultados marcaram de forma notável a sociedade que dele se originou.

No capítulo seguinte, intitulado “Chile colonial, el jardín de América”, Sagredo parte da ocorrência da chamada Guerra de Arauco para estabelecer um ponto de mudança no fluxo da trajetória narrativa, pois que a vitória araucana no conflito possibilitou a emergência de novas situações no contexto colonial que, segundo ele, permitiram “que se realizasse plenamente os processos econômicos, sociais e culturais”, dado que agora adquiriam sua real significação (p.70). Nesse capítulo, se faz patente uma das prerrogativas apresentadas pelo autor na apresentação da obra: a de que a historiografia de “praticamente qualquer nação” (p.12) engendra uma propensão a exaltar os fatos que narra, tornando qualquer história nacional uma história predominantemente épica – aspecto interpretativo que será retomado nesta resenha.

O capítulo “La Sociedad Mestiza” apresenta uma perspectiva acerca dos perfis sociais em pauta, tratando de sua relação com a vida material, com a arte e com a cultura a partir do modo com que se constituíram desde o período que sucedeu a Guerra de Arauco. Merece destaque o intertítulo “La hospitalidad como compensación coletiva”, em que Baeza trata dos testemunhos emitidos pelos viajantes e cientistas que passaram pelo território americano e documentaram os costumes da comunidade com que se depararam. O autor enaltece o fato de que havia uma consciência comum entre esses viajantes em relação à ideia de que o Chile – como espaço de dinâmica formativa – era um local a receber “muito generosamente” os estrangeiros que por ali transitavam; e dedica uma atenção especial à questão do comportamento feminino em relação aos forasteiros.

Em “La Organización Republicana” e em “El orden conservador autoritário”, Rafael Sagredo condensa em cerca de vinte páginas o período que se inicia com os antecedentes da independência chilena e que se estende até uma interessante proposição em que sugere ser possível afirmar que o Chile se desenvolveu como uma sociedade marcada por sua posição geográfica e sua realidade natural, aspectos que teriam condicionado inevitavelmente sua organização republicana:

O impacto da realidade natural na organização institucional chilena se aprecia na opção nacional de privilegiar a ordem e a estabilidade sobre a liberdade, chegando a implementar um regime de tal maneira autoritário que, inclusive a noção de república em algumas ocasiões ficou suspensa. Interpretamos que tenha sido um imperativo derivado da ponderada ordem natural o que levou à correspondente ordem autoritária que caracterizou a existência republicana do Chile. (p.132)

Nos dois capítulos que subsequentes, intitulados “La Capitalización Básica” e “La Expansión Nacional”, o autor da Historia Mínima de Chile aborda o desenvolvimento social e cultural chileno por meio de a partir de processos como a mineração, a expansão agrícola e os investimentos no sistema monetário e nas indústrias, destacando que, apesar do extraordinário progresso experimentado pelo país ao longo do século XIX, as melhorias na instância sanitária foram muito lentas. Tanto que, no âmbito da microeconomia, o povo chileno se manteve inserido por muito tempo num contexto de doenças e epidemias que garantiram uma altíssima taxa de mortalidade ao longo do século. Entre os meios para superar as enfermidades, era comum que se realizassem banhos de água quente com ervas, que se fizessem pomadas à base de resíduos vegetais e animais, e que se consumisse uma quantidade considerável de erva mate e aguardente. De acordo com Sagredo, “a varíola, transformada em doença endêmica, foi a que provocou maior mortalidade ao longo do século” (p.171).

Em “Los conflitos internacionales”, Rafael Sagredo aborda a guerra enfrentada pelo Chile contra a Espanha, bem como as disputas territoriais relacionadas ao que chama de controvérsias limítrofes, tratando dos conflitos intracontinentais inerentes ao estabelecimento das fronteiras geográficas americanas. Além dos dois fenômenos, o autor discorre acerca da chamada Guerra do Pacífico – peleja em que estiveram envolvidos também o Peru e a Bolívia -, que concebe como “um conflito de caráter econômico”, dado que o grande mote do embate estava na disputa por recursos naturais como o guano e o salitre, nitratos abundantes na região do deserto do Atacama – território sobre o qual o drama do conflito se estendeu (p.191).

No capítulo “La sociedad liberal”, Baeza faz um contraponto muito bem detalhado entre o Chile colonial, de perfil paternalista e agrário, e as mudanças ocorridas ao longo do século XIX que fomentaram a emergência de um país de bases capitalistas firmadas na exploração minera e no comércio. O autor afirma que, em consequência da dinâmica da economia do século 19, “apareceram novos grupos sociais como a burguesia, a classe média e o proletariado”, o que culminou na consolidação de “uma nova cultura marcada pela ética liberal, que acabou por legitimar o domínio burguês” (p.195). O capítulo se encerra com uma pertinente abordagem sobre a Guerra Civil de 1891 e prenuncia os temas tratados em “La crisis del régimen liberal”, que engendra a vitória dos chamados congresistas e a instauração do Parlamentarismo, o que teria condicionado o enfraquecimento da figura presidencial naquele contexto. De acordo com Baeza, “para a opinião pública, o presidente teria deixado de ser o protagonista da vida nacional, transformando-se em um ator ‘impotente’, um ‘elemento decorativo’, uma ‘pedra de esquina'” (p.213). Tratando da situação social, da fragilidade econômica que acometia o panorama chileno e do paulatino surgimento de intelectuais, escritores, ensaístas, literatos e acadêmicos que começaram a “denunciar as desigualdades e abusos existentes na sociedade liberal”, Sagredo menciona o gradual advento de um programa definido e consciente de governo que teria emergido do citado estrato intelectual chileno. Algo que teria impulsionado o chamado “esforço desenvolvimentista”, expressão que nomeia o capítulo seguinte.

Em “El esfuerzo desarrollista”, Rafael Sagredo trata das tentativas de industrialização no Chile a partir de projetos empreendidos pela chamada Corporación de Fomento de la Producción (Corfo), cujo magno intuito era transformar o Estado chileno em um agente econômico fundamental, apesar do “flagelo da inflação” que acometia o cenário socioeconômico do Chile àquela altura. Como bem pontua o autor, o “impulso determinante” para que o esforço desenvolvimentista começasse a ser aplicado foi a ocorrência do terremoto de Chillán, “que em 1939 destruiu a Zona Central do Chile, e para cuja reconstrução o Estado se envolveu idealizando um plano que incluiu a agência promotora de desenvolvimento que foi a Corfo, cujos conceitos básicos já tinham sido esboçados na década de 1930, entre outros, pelas organizações e uniões de empresários” (p.228).

Para Baeza, uma das principais características da história do Chile na segunda metade do século XX está na existência de “profundos desequilíbrios nas estruturas sociais e econômicas”.O autor menciona, por exemplo, que o desenvolvimento do setor industrial e minero teria sido muito superior àquele alcançado pelo mundo agrícola – no que diz respeito ao viés econômico -, e trata também do grau de bem-estar alcançado pelos setores médios e proletários urbanos quanto ao âmbito social, se comparado às circunstâncias que engendravam a realidade camponesa que fora vigente até então (p.248). No último capítulo da obra, intitulado “Crisis y recuperación de la Democracia”, Baeza sintetiza o período que se inicia com o episódio significativo da eleição de Jorge Alessandri em 1958, passando pelo golpe militar de 1973 – e aqui, vale destacar o intertítulo “El autoritarismo em Chile” – e direcionando a conclusão de sua análise para uma discussão acerca de recuperação da democracia, fato que viabilizou a implantação das políticas econômicas denominadas de “crescimento con equidad” e das expectativas que deveriam ser fomentadas através da celebração do bicentenário chileno, dado que a insatisfação social pós-regime militar era pungente e se refletia sobretudo na demanda por um sistema educacional de qualidade (indagação essa tida pelo autor como uma “constante histórica” na sociedade chilena, pois que há muito eram presentes as manifestações de descontentamento quanto à educação nacional).

Para além do panorama redigido acerca da Historia Mínima de Chile, é necessário ponderar minimamente certo viés de abordagem épico – que pode soar teleológico a um leitor que não se disponha a compreender o projeto narrativo de Rafael Sagredo – que perpassa toda a obra, e que se pode notar a partir da seleção lexical do autor desde a menção à “La Araucana”, poema do espanhol Alonso de Ercilla que figura um dos trechos da apresentação da Historia. Muitos são os vocábulos que denotam a questão aventada. Sagredo afirma que “os chilenos têm motivos para sentirem-se orgulhosos de uma evolução histórica“, e dialoga a todo o momento com a necessidade de explicar por quais razões os fatos em questão “teriam ocorrido de um modo inesperado, diferentemente de como, de acordo com a ‘história oficial’, supõe-se que deveriam ter acontecido”. No epílogo, Baeza trata do Chile como a chamada “estrela solitária” que deveria atingir o estágio de “cópia feliz do Éden” ao longo de sua história. Ora, se o projeto narrativo de Sagredo Baeza tem a ver com a elaboração de uma história nacional regida pela ideia de “ciclos históricos” conformados por três etapas “perfeitamente identificáveis”, que se associam a períodos de expansão, crise e autoritarismo, se faz plausível que os vocábulos empregados pelo autor expressem, em alguns momentos, uma face épica e um tanto quanto heroica. Se, para o autor, a historiografia de “praticamente qualquer nação” propende a exaltar os fatos que narra, é admissível que sua linguagem contenha traços de pujança, magnificência e grandiosidade épica.

Coesa e informativa, a Historia Minima de Chile se apresenta como uma grande contribuição historiográfica que não se esgota à consecução do âmbito acadêmico. Por sua linguagem fluida, explicativa e de fácil compreensão, a obra pode destinar-se também àqueles que se interessem pela trajetória chilena sem que estejam impreterivelmente inseridos nas discussões científicas acerca da mesma. Essa talvez seja, inclusive, uma das grandes virtudes que abarcam o fluxo narrativo de Sagredo em sua indispensável – sobretudo porque renovada e contemporânea – abordagem sobre a história do Chile.

Mariana Ferraz Paulino – Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mariana_ferraz_paulino@hotmail.com


BAEZA, Rafael Sagredo. História Mínima de Chile. Madrid: Turner Publicaciones S. L., 2014. Resenha de: PAULINO, Mariana Ferraz. História nacional na longa duração: Chile, dos “primeiros americanos” ao século XXI. Almanack, Guarulhos, n.12, p. 223-226, jan./abr., 2016.

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