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História e gênero / Cantareira / 2016

Desde a década de 80 muito tem sido discutido sobre o conceito de gênero. Hoje, cerca de trinta anos após o boom dos estudos de gênero na pesquisa acadêmica, os debates em torno do tema continuam atuais. No Brasil, desde 2014 houve um crescimento acalorado das discussões relativas ao assunto em decorrência da elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE), que culminou com a exclusão do termo gênero do referido documento. Exclusão esta que se verificou igualmente nos Planos Municipais de Educação (PME), implementados em 2015. A retirada do termo do PNE e do PME pode ser considerada como uma tendência em considerar o gênero como um dado natural e, portanto, não passível de discussão. Essa tendência pode ser observada no projeto de lei ligado ao movimento ‘Escola Sem Partido’ que tramita no Senado e incorpora como um de seus motes a proibição da discussão de gênero nas escolas. Como reação a este projeto, setores da sociedade brasileira tem-se manifestado sobre a importância da inclusão do debate no ambiente escolar. Isto porque a adequada compreensão do conceito possibilita o convívio com as diferenças e, consequentemente, o combate à discriminação e ao preconceito.

O gênero, ao contrário do que muitos acreditam, não está naturalmente ligado ao sexo biológico. Apesar da confusão comumente feita entre sexo, gênero e orientação sexual, há distinções que precisam ser ressaltadas. A orientação sexual se refere ao tipo de atração do indivíduo, o sexo ao órgão sexual do corpo humano, enquanto o gênero – de acordo com Judith Butler – “não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo”3, mas culturalmente construído. Para Butler o gênero é uma performance. Segundo esta definição, o gênero não é visto como inerente ao indivíduo, mas como uma imitação repetitiva de determinados comportamentos e atributos de modo a passar a impressão de que são reais. É por meio dessa performance, realizada por hábito ou por imposição, que os indivíduos são levados a acreditar que o gênero é natural4. A crença nesta naturalidade dá lugar muitas vezes a ações discriminatórias e de violência. Não raro aqueles que não se adequam às normas de gênero impostas pela sociedade sofrem represálias que podem chegar à punição física. Deste modo, vemos um exemplo do que Butler denomina de o poder coercitivo do gênero em policiar, isto é, disciplinar as pessoas, sendo a disciplina – de acordo com Michel Foucault – um mecanismo de dominação e controle dos comportamentos desviantes. Isto posto, a percepção de que o gênero é algo produzido e igualmente fluido é importante para evitar a marginalização de indivíduos, assim como para entender – como ressalta Joan Scott – que a ‘suposta’ hierarquia entre os sexos não é inata. Scott apresenta o gênero como definidor primário das relações de poder, expondo os antagonismos sexuais como gerador de tensões permanentes e indica a necessidade de enxergar a hierarquia entre os sexos como algo construído5.

Por conseguinte, devido à atualidade das discussões relativas à questão de gênero e a importância do entendimento do conceito para o respeito às diversidades apresentamos o Dossiê História e Gênero. Os artigos presentes neste volume abordam o gênero nas diferentes temporalidades e temáticas. Waldir Moreira de Sousa Junior analisa a tragédia de Eurípedes, As Bacantes, através do personagem Penteu, pensando identidades de gênero e sexualidade pelo viés da figura masculina. Lisiana Lawson Terra da Silva e Jussemar Weiss Gonçalves mostram como a sociedade ateniense do V séc. a. C. articulava as necessidades do mundo androcêntrico às possibilidades do feminino e como isso era discutido na tragédia. Thiago de Almeida Lourenço Cardoso Pires trata da construção da figura heróica de Enéias na Eneida de Virgílio como um tipo ideal de gênero masculino para a sociedade romana. Ainda com relação à Antiguidade, Érika Vital Pedreira a partir da análise do triplismo presente nas imagens das Deusas-mães da Britânia Romana (séculos I e II d.C.) atesta a formação de práticas de religiosidade híbridas.

No que se refere à Idade Moderna, Juliana Torres Rodrigues Pereira e Marcus Vinícius Reis refletem sobre a relação entre o temor e o reconhecimento social de que eram alvo as mulheres tidas por suas comunidades como feiticeiras na Arquidiocese de Braga, em Portugal, na segunda metade do século XVI, enquanto Kaíque Moreira Léo Lopes aborda temas como lesbianismo e gênero na Bahia do século XVI através de uma querela judicial envolvendo a primeira Visitação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição portuguesa na Bahia.

Carla Adriana da Silva Barbosa realiza um estudo de famílias da elite no contexto da guerra Farroupilha (1835-1845) através de correspondências trocadas dentro desses núcleos a fim de discutir noções de maternidade e casamento compartilhadas entre seus membros. Raimundo Expedito dos Santos Sousa, por sua vez, investiga formas como a colonização inglesa buscou feminizar os homens irlandeses e como a resistência irlandesa acentuou os aspectos masculinos contra a dominação inglesa. Já Isabelle Cristina da Silva Pires procura analisar as condições do trabalho feminino em fábricas de tecidos no início do século XX, tendo como exemplo um estudo de caso na Companhia de Fiação e Tecidos Aliança, no Rio de Janeiro.

Gilvânia Cândida da Silva e Alcileide Cabral do Nascimento apresentam a liderança da escritora Martha de Hollanda, que recorreu à Rádio Clube de Pernambuco como estratégia da luta pelo direito ao voto em Recife na década de 1930. Sobre o mesmo período, Thiago Pacheco apresenta interessante panorama sobre gênero e espionagem no Estado Novo e na República de 1946 através da ação de mulheres na perspectiva da Polícia Política.

Fernanda Nascimento Crespo inicia as abordagens sobre o gênero no Ensino de História. A autora utiliza as histórias de vida de Laudelina de Campos Mello como um recurso para a construção de conhecimentos relativos à História do Brasil, como meio de superar os entraves a abordagem das questões raciais e de gênero no currículo de história. José Cunha Lima e Isabela Almeida Cunha partem dos Parâmetros Curriculares Nacionais para tocar em questões referentes às relações de gênero e diversidade sexual contemporâneas.

Discutindo a historiografia da ditadura civil militar no Brasil, Tatianne Ellen Cavalcante Silva apresenta um artigo sobre as vivências de mulheres militantes que foram presas políticas durante o período entre 1969-1979, registradas no documentário Vou contar para meus filhos (2011). Dayanny Deyse Leite Rodrigues expõe temas como assistencialismo através da figura da primeira dama Lucia Braga (1983 – 1986), posteriormente deputada federal pelo PFL, pensando esse mesmo assistencialismo enquanto prática e estratégia política.

Denise Machado Cardoso e Ana Patrícia Ferreira Rameiro colheram relatos das trajetórias profissionais de mulheres atuantes nos altos cargos doJudiciário do estado do Pará, bem como as relações de gênero incutidas nesse processo, especialmente aquelas concernentes aos papeis tradicionalmente atribuídos às mulheres, como esposas e mães. O texto de André Pizetta Altoé foca-se no Programa Mulheres Mil: Educação, cidadania e desenvolvimento sustentável e sua implantação dentro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, campus Campos–Guarus, também relacionando a formação e inserção de mulheres no mercado de trabalho.

Gênero e violência são as temáticas retratadas por Michelle Silva Borges, que volta sua atenção para as práticas das mulheres submersas à violência conjugal como o outro termo nas relações de poder, enquanto Aline Beatriz Pereira Silva Coutinho e Suzane Mayer Varela da Silva realizam uma análise de questões como o aborto e os direitos reprodutivos da mulher na atualidade.

A Professora Doutora Cristina Wolff (UFSC) discorre brilhantemente sobre as questões de gênero em nosso país na entrevista concedida para esta edição, em que conta um pouco sobre sua trajetória enquanto pesquisadora ligada aos estudos da área. Versando sobre militância, trabalho e feminismo, a pesquisadora apresenta suas reflexões a partir de questões trabalhistas para entender como o sistema de gênero coloca as mulheres em posições subordinadas, levando em conta os aspectos culturais e do imaginário social da sociedade brasileira. A partir da análise da militância das mulheres nas organizações de esquerda no Brasil e no Cone Sul, Cristina Wolff compreende que militância também é um trabalho de articulação e elaboração política continua, através da negociação e resignifcação de sua posição e relação com homens e grupos de pertencimento sociocultural, político e econômico. A pesquisadora atenta também para a abordagem de aspectos da cultura e da religiosidade nacional, compreendo que mulheres brasileiras têm conquistado um espaço grande em diversos setores, da Academia à sociedade em geral, sempre enfrentando o machismo em suas diversas expressões. Machismo esse que precisa ser encarado não como o contrário de feminismo, mas como um fenômeno social e cultural, a partir de uma cultura e uma ideologia que “naturaliza” a subordinação das mulheres. Por tal, defende a importância sobre os estudos de gênero, apontando para o fato que atualmente as pesquisas tendem a focar as interseccionalidades, pensando o gênero ao lado de outros aspectos das relações sociais, ou esses aspectos em seu conjunto. Outra tendência que a ser considerada atualmente é a importância dos estudos de sexualidades de forma conjunta com os estudos de gênero, compartilhando enfoques teóricos e metodológicos, insights e objetos de pesquisa.

Este dossiê buscou através de várias temáticas ao longo dos séculos fazer um mapeamento heterogêneo sobre as questões relativas ao gênero. Entre ser mulher na Elite Farroupilha, a construção do feminino nas tragédias gregas, a vivência de mulheres desembargadoras no Judiciário do Pará a dificuldade de associar a sexualidade feminina para além de uma saúde reprodutiva, lesbianismo e inquisição na Bahia, a construção da concepção de cidadania envolvendo o feminino e o assistencialismo de primeirasdamas como prática marcante da cultura política brasileira, apresentamos um leque amplo de reflexões sobre a construção das concepções de sexualidade, gênero, sexo, representação social e vivência política de homens e mulheres do Brasil e do mundo.

Desta maneira, convidamos aos nossos leitores para apreciar o trabalho de pesquisadores de diversas áreas e temporalidades sobre esta temática tão importante e atual para se compreender e refletir as relações sociais, em seu esplendor versátil, questionador e inovador como as proposições apresentadas pelos estudos de gênero. Boa leitura!

Notas

  1. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p.26.
  2. Idem.
  3. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. S.O.S. Recife: 1991.

Juliana Magalhães dos Santos – Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes. E-mail: jumagasantos@gmail.com

Talita Nunes Silva – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: talita.nunes@uol.com.br


SANTOS, Juliana Magalhães dos; SILVA, Talita Nunes. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 24, jan / jun, 2016. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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