Historia de las clases populares en la Argentina desde 1516 hasta 1880 | Gabriel di Meglio

O livro em tela partiu de um projeto iniciado em parceria com Eduardo Adamovsky, cuja intenção era lidar com o tema em um recorte que iria até os primeiros anos do século XXI. Desdobrado em dois, o primeiro volume foi elaborado por Gabriel di Meglio, e aborda a ação das classes populares na Argentina entre os séculos XVI e XIX. É a obra de Meglio, doutor pela Universidad de Buenos Aires, onde também leciona História Argentina do século XIX, que vou apresentar ao leitor.

As duas questões centrais o livro são anunciadas no próprio título. Com qual noção de classes populares se está lidando? E o que é a Argentina antes da unificação sob um Estado nacional? Embora anunciada, a segunda questão não foi enfrentada. É o tema das classes populares na História que norteia o livro.

No ensaio bibliográfico, o autor lista e comenta as obras que subsidiaram sua reflexão. Ali, temos uma ideia do vigor da produção historiográfica argentina, sobretudo a de tempos mais recentes, e também encontramos uma referência que serve de pista para as opções de interlocução feitas por Meglio no desenvolvimento da obra. Ao remeter a denominação “classes populares” primeiramente a um artigo de Eric Hobsbawm, parece estabelecer-se um parentesco entre esta obra e a História Social praticada pelo grupo de historiadores marxistas ingleses dos quais Hobsbawm foi um expoente, particularmente por lidar com longas periodizações e pelo seu interesse em história dos camponeses e dos operários. Mas creio estarmos mais próximos de um parentesco com a chamada História Popular, na qual a agência das classes populares é definida prioritariamente a partir do Estado e das instituições afeitas a ele.

O recorte temporal, da chegada dos primeiros europeus ao surgimento da “Argentina moderna” em 1880, abrange um território que hoje denomina-se Argentina, mas que eventualmente inclui também outras regiões platinas, como Uruguai e Paraguai, reunidos no Vice-Reinado do Rio da Prata no tempo da colonização. O uso do termo para lidar com essa periodização cumpre funções didáticas: trata-se de uma Argentina antes da Argentina, o que pressupõe um pacto com o leitor para que a leitura possa fluir. Meglio quer tratar, aqui, da “história da gente comum, a que formava a base da pirâmide social, daqueles cujas recordações se perderam ou são difíceis de recuperar, de quem não tem ruas que levem seus nomes”. O resultado disso é apresentado cronologicamente e em duas partes.

Na primeira parte, dividida em quatro capítulos, é abordado o período colonial, entre 1516 e 1810. A segunda parte debruça-se sobre o século XIX (1810-1880), e conta com três capítulos sobre o período pós-independência.

O fato inaugural do primeiro capítulo é a expedição de Juan Díaz de Solís, em 1516, marcada pelo confronto com os charruas que levaria Solís à morte em território hoje pertencente ao Uruguai. O fato não é inaugural apenas cronologicamente, mas demarca simbolicamente como seriam as relações entre os invasores europeus e os nativos americanos. Esse é o objeto do capítulo, tendo como personagens os guaranis, os guaicurus, os ava e outros povos, bem como a centralidade de Assunção e do Peru para os estabelecimentos coloniais posteriores na bacia platina (Santa Fé, Buenos Aires e Tucumán, entre outros). Em que pesem as alianças (nem sempre cumpridas) firmadas com os índios, os espanhóis tiveram dificuldades em ocupar terras, em especial as mais elevadas. O empenho destes últimos não foi tão decidido como ocorreu nas áreas mineradoras do México e do Peru, o que tornaria o Rio da Prata uma região marginal no contexto do Império castelhano na América até o fim do período colonial. Ainda assim, a divisão da sociedade em dois grandes grupos – os espanhóis que mandavam e os “índios” que obedeciam – “foi a origem da sociedade hispano-criolla da qual provem a Argentina. E, também, foi a origem de suas classes populares”. No decorrer do século XVI, essa sociedade se tornaria mais complexa, com a chegada de mais colonos vindos da península e a criação das “repúblicas” estratificadas de índios e de espanhóis, permitindo o acesso dos colonos à mão de obra indígena. Logo, os mestiços entenderiam que seu lugar naquela sociedade não era definido facilmente.

Desiguais ante à lei, o segundo capítulo, define as dificuldades enfrentadas pelas classes populares nos séculos XVII e XVIII, nessa altura compostas por “um variado conjunto integrado por indígenas, africanos e seus descendentes – escravos ou livres – e distintos tipos de mestiços”. Na relação com os indígenas, tentava-se impor a transformação deles de membros de uma sociedade nativa em camponeses individuais. O tempo é a primeira metade do século XVII, quando boa parte da região de Tucumán ainda estava fora do controle colonial e prestes a se tornar cenário de uma guerra na qual a ação do aventureiro espanhol e falso inca Pedro Bohorques acabou amplificando a resistência indígena, o que levou à destruição das missões jesuítas na região. Desde fins do século XVI, a tendência era a da extinção da organização tradicional dos povos nativos, com as exceções de Jujuy e Santiago del Estero, cujos habitantes conseguiram utilizar as leis e justiça a seu favor contra a obrigação de prestar serviços pessoais aos invasores. Censos do século XVIII indicam a recuperação numérica da população indígena num quadro de reforma da tributação, abarcando um número maior de moradores, sobretudo índios que vivessem ou não em seus lugares de origem. Enquanto em Buenos Aires a população indígena declinava rapidamente, ao longo dos outros rios da bacia platina a Companhia de Jesus ampliava sua ação missioneira entre os guaranis, inclusive para fixar limites com os domínios portugueses. Fugas e rebeliões eram comuns nas missões, onde a rigidez das normas, os ataques de colonos vindos da América portuguesa, as epidemias e a fome tornavam a vida ainda mais dura. Ao mesmo tempo, grupos de indígenas não reduzidos ocupavam o Chaco, o Pampa e a Patagônia, evitando “serem convertidos em parte das classes populares do sistema colonial” e dominando as técnicas da guerra com cavalaria. A escravidão era central nessa sociedade, e a ela foram submetidos guaranis, araucanos e africanos introduzidos em Buenos Aires desde o tempo da união das Coroas ibéricas, e mais tarde vindos de Colônia do Sacramento, tanto por via direta como a partir de portos do Brasil. Os números não são exatos, mas milhares de africanos escravizados chegaram ao Rio da Prata entre 1580 e 1777. Por sua vez, os mestiços não tinham uma identidade precisa: eram filhos ilegítimos, frutos de uniões não consagradas. Mas além de biológica, a mestiçagem era também cultural, sendo alvo de diferentes tentativas de controle.

O capítulo 3, Trabalhadores, define o trabalho como experiência vital das classes populares. Assim, o texto privilegia as formas de exploração do trabalho e os fatores afeitos a ela, tais como a encomienda, o declínio demográfico, os usos da mão de obra na agricultura, na manufatura e no transporte. Uma das categorias de trabalhadores, os camponeses, dividia-se entre os que trabalhavam para fazendeiros e os que lidavam nas terras comunais. Os primeiros ligaram-se à pecuária, à produção de vinho e ao cultivo do arroz, setores produtivos onde se misturavam peões assalariados, escravos, agregados e índios encomendados em lugares como Tucumãn, San Juan e Mendoza. Nas cidades (Buenos Aires, Córdoba, Salta, San Miguel de Tucumán e outras), os trabalhadores eram em sua maioria artesãos, muitos deles mestres e donos de escravos, além de homens contratados por jornada nas construções, serviços de alimentação e abastecimento de água.

Costume e conflito, o quarto capítulo, traz ao leitor o universo da pobreza e da cultura de resistência das classes populares. Além da origem e da cor da pele, as classes populares eram definidas pelas autoridades a partir de seu grau de letramento e da forma como constituíam redes de pertencimento a grupos corporativos. A adesão ao catolicismo era central, e o capítulo nos diz algo sobre a vivência religiosa entre os populares: suas festas e diversões (rinhas de galo, bailes, touradas, corridas de cavalos), seus conceitos de honra e comportamento sexual (com destaque para as mulheres “plebeias”, com circulação mais livre nas cidades do que a desfrutada pelas mulheres da elite). Tudo isso permeado pelas tentativas de controle por parte das autoridades, ocasionando conflitos e tensões.

A segunda parte do livro inicia-se com A tempestade revolucionária (cap. 5), tendo como ponto de partida um dado da história política que demarca certa mudança na experiência das classes populares: a Revolução de Maio de 1810. Cerca de mil indivíduos (em uma cidade de 45 mil habitantes) apresentaram-se para reclamar umcabildo aberto em Buenos Aires com o objetivo de remover o vice rei e formar uma junta de governo. Mas, em outros lugares, a adesão popular não foi da mesma monta: no Alto Peru, em Córdoba, Montevidéu e Assunção, grupos pretendiam a fidelidade à regência estabelecida em Cádis. Em Salta e Jujuy, o recrutamento militar a princípio não se constituiu em problema, mas a partir da decisão de Belgrano de exigir contribuições materiais, criaram-se tensões com os populares. Como em outras partes da América do Sul, o uso do léxico revolucionário – independência, liberdade – chamou a atenção dos escravos para as contradições dos dirigentes do movimento. Por vezes, as contradições marcaram também as atitudes das classes populares, como os guaranis que, ao aceitarem a junta governativa portenha, o fizeram sob gritos de vivas a Fernando VII… Maio de 1810 também afetou os povos indígenas até então quase sem contatos com o regime colonial, ou aqueles cujas missões foram abandonadas e que se empregaram nas propriedades existentes. Em meio a diversos conflitos no interior do grupo dirigente da Revolução de 1810, faz-se a entrada da plebe portenha na política. Política institucional, Meglio não diz, mas é disso que se trata aqui: afinal, os quatro capítulos anteriores deixaram claro que a atuação dos populares era política ao menos desde o século XVI. Em todo caso, o autor entende a participação popular como uma das chaves da Revolução, com diferenças regionais sensíveis. De forma geral, alguns aspectos abarcaram a todos: o fim da era colonial, o poder das elites locais e a possibilidade de participação do “povo” no governo, agora na perspectiva da construção de algo que não existia na experiência prévia, colonial.

O livro deixa claro que a revolução, no território que em breve seria conhecido como Argentina, trazia consigo a questão da ordem. É esse o tema do sexto capítulo,Uma nova ordem. Diante de poderes atomizados, a tarefa dos dirigentes no quarto de século seguinte seria a reorganização institucional – o que teria implicações para as classes populares ao menos até meados do século XIX. Conflitos internos mesclam-se a guerras com os vizinhos, especialmente com o Brasil e Peru-Bolívia entre os anos 1820 e 1830, e a Guerra do Paraguai nos anos 1860. A experiência bélica traria consequências para a ação política dos camponeses e trabalhadores urbanos. O Estado e as elites tornaram-se cada vez mais “pesados” para as classes populares, oneradas com novos impostos para sustentar as formas armadas, com as leis visando a compelir os pobres ao trabalho ou ao recrutamento militar e os regulamentos do direito de propriedade. Ainda que os novos Estados e as novas elites fossem débeis, suas demonstrações de força se fariam sentir sobre os populares. A reconstrução do aparato produtivo, a recomposição de estruturas fundiárias que mantinham a ordem anterior ou introduziam novidades que beneficiavam muito poucos (como o arrendamento), a manutenção da tradicional manufatura de lã frente à concorrência dos tecidos ingleses de algodão: tudo isso afetou sobremaneira o modo de vida dos mais pobres. No âmbito da política, as autonomias regionais passaram a sofrer questionamentos e fortaleceu-se o processo de imposição do poder provincial único, seguido da unidade do Estado nacional. Nas diferentes províncias, os processos foram específicos. Em Buenos Aires, por exemplo, enquanto mantinha-se a politização da “plebe” na cidade, no campo as convulsões tornaram-se mais intensas do que no período revolucionário. Em todos os lugares, porém, é difícil clarear as razões da ação popular e deixar de considerar a inexistência de plena autonomia: havia os interesse dos caudilhos e as lealdades pessoais. Algumas razões são mais visíveis, como as lutas pela desmobilização militar, contra a religião oficial e pela tolerância de culto, contra o governo que não garantia o bem comum – na esteira de uma certa tradição política europeia não nomeada, mas que poderíamos comparar à economia moral.

A obra encerra-se com A era das mudanças, o sétimo capítulo. Tradicionalmente, a historiografia elenca a formação do Estado nacional e a expansão capitalista como os processos mais relevantes do período entre a independência e 1880. Aqui, não é diferente: constata-se o crescimento econômico argentino desde a década de 1840 e, com ele, o aumento da repressão estatal diante das ações políticas das classes populares. Ao longo de décadas, a criação de gado tornar-se-ia a grande atividade econômica argentina, ao mesmo tempo em que o preço das terras e os salários também sofreriam aumentos. Sistemas de remuneração seriam criados para diminuir a autonomia dos peões: parte era pago em dinheiro, parte era descontado para o pagamento de despesas de manutenção, sem um controle estrito por parte do trabalhador. O sistema de parcerias teve seu apogeu entre os anos 1850 e 1860, enquanto a camada de pequenos produtores, rendeiros e pequenos proprietários se reduzia. De fins da década de 1840 ao início da de 1880, consolidou-se o Estado e a identidade nacional, inclusive com a ocupação de territórios habitados por indígenas independentes e cuja autonomia fora pactuada anteriormente. Ao mesmo tempo, mudaram outras coisas. A introdução de mão de obra estrangeira começaria a transformar o perfil da força de trabalho: “em 1854 os estrangeiros era 8% dos trabalhadores de Buenos Aires e em 1870 já superavam 20%”, assim como começava um engajamento mais efetivo das mulheres das classes populares no mundo do trabalho assalariado. A introdução de um Código Rural não facilitou as vida dos “pobres pastores”, como aqueles que, em 1854, queixavam-se de ser caçados como avestruzes nos campos e diziam ser republicanos, embora fossem tratados como mulas sem direito à liberdade individual, a ficar com suas famílias, a evitar os abusos do recrutamento e a receber os benefícios sociais que as leis concediam aos estrangeiros. A hierarquia social acentuou-se, introduziram-se novas formas de consumo à europeia, melhorou a condição material de vida das classes populares urbanas, enquanto no campo tudo continuava precário. A Argentina tinha, então, apenas cerca de 13% de sua população vivendo em centros urbanos. No campo, havia o básico para a subsistência: casas de tijolos, tetos de palha e piso de terra, pouco mobiliário, instrumentos de trabalho rudimentares e vestuário diminuto. Entre os velhos e os novos trabalhadores, incrementou-se a ação das sociedades de socorros mútuos, notadamente em meio aos espanhóis, italianos e descendentes de africanos escravizados.

O livro de Meglio não cria uma nova história da Argentina. Os fatos e processos já conhecidos dos leitores, especialistas ou não, estão todos lá. O que muda, aqui, é o ponto de vista: sem descuidar da História Política, a abordagem do processo de formação nacional pelo prisma das possibilidades de ação das classes populares é o que diferencia esta obra de síntese. E ela é bem vinda por muitas razões, algumas das quais podem ser enumeradas.

O autor correu riscos, e é louvável que os tenha corrido. Primeiramente, ao anunciar a elaboração de uma História Popular, sem distingui-la da História Social ou dar-lhe uma definição mais precisa. Em segundo lugar, pela disposição em enfrentar uma periodização tão larga, o que não é comum entre historiadores, normalmente apegados ao conforto de lidar com suas especialidades temporais. Depois, por utilizar sem medo a noção declasses populares e, ao mesmo tempo, fazê-lo com rigor. Conta-se, ainda, a linguagem e a forma da escrita historiográfica, capazes de atrair historiadores de ofício e também um público mais amplo e interessado nas questões do passado.

Historia de las clases populares en la Argentina serve de estímulo para que historiadores brasileiros também se atrevam a empreitadas semelhantes, atingindo um público ávido e que, hoje, acessa a escrita da História pelo texto de jornalistas ou escritores descompromissados com o método e o rigor da pesquisa histórica. Se esses autores o fazem, entre outras razões, é porque os historiadores e as agências de fomento não entendem o texto de divulgação como um trabalho que lhes compete. E é preciso cumprir essa função com competência, razão pela qual a obra de Meglio, repito, é exemplar e vem em boa hora.

Jaime Rodrigues – Professor no Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH / UNIFESP – Guarulhos-SP / Brasil). E-mail: jaimerod@uol.com.br


MEGLIO, Gabriel di. Historia de las clases populares en la Argentina desde 1516 hasta 1880. Buenos Aires: Sudamericana, 2012. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. História Social, História Popular: o caso argentino. Almanack, Guarulhos, n.9, p. 203-207, jan./abr., 2015.

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Itamar Freitas

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