As pesquisas em História Antiga e Medieval ganham o Brasil de uma ponta a outra. Partindo de centros de excelência, como a Universidade de São Paulo, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense, espalharam-se por todo o país, graças ao trabalho incansável e audacioso de muitos pesquisadores / professores que acreditaram que é possível fazer uma História Antiga e Medieval de excelência no Brasil. Teçamos loas a essas pessoas admiráveis, que passaram por nossas vidas, que nos inspiraram e continuam a fazê-lo.
O trabalho pujante da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, a SBEC, a formação dos Grupos de Trabalho (GTs) da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH), os inúmeros laboratórios reunindo pesquisadores de diferentes estados e os muitos congressos e revistas científicas especializadas na área têm proporcionado uma rica troca de experiências, que impulsiona a pesquisa brasileira.
As atuais pesquisas em História Antiga e Medieval propõem modelos interpretativos diversos, o alargamento das fontes documentais, o uso da tecnologia em benefício da pesquisa e do Ensino e o diálogo com outras ciências, especialmente com a Arqueologia. Novas questões estão na ordem do dia a nos desafiar, intimando-nos a pensar, a tecer novas proposições para a construção de uma História Antiga, viva, em movimento.
Toda sorte de problemas que afetam direta e indiretamente a todos nós, conduzem-nos a reflexões importantes para o repensar do mundo antigo e do nosso próprio mundo. Entre tais problemas está a inquietação com as questões do tempo presente de um mundo globalizado, com problemas igualmente globais, como a pandemia do novo coronavírus a nos fragilizar; enfraquece-nos também a intolerância, a grassar em suas diversas faces, principalmente, no que se refere à discriminação contra as minorias.
Diante de tal quadro, os artigos desse dossiê devem contribuir para a valorização da diferença, da diversidade, da heterogeneidade, da tolerância e combate à discriminação, rejeitando qualquer tipo de preconceito, seja de qual natureza for, por seu potencial de abordagem multiculturalista e de diversidade presente em seus conteúdos. Dialogando com pesquisadores de vários centros de pesquisa, o dossiê apresenta trabalhos de novos e experientes pesquisadores demonstrando, que os estudos de História Antiga e Medieval estão bem dinamizados na Bahia e em outros estados da Federação.
Estes artigos são exemplos de que as pesquisas brasileiras em História Antiga e Medieval estão conectadas com as discussões levadas a termo no cenário internacional, mas evidenciando as especificidades de um “olhar” local que contribuem nos debates em ambientes hegemônicos. Os artigos também espelham a proximidade das pesquisas com a nossa realidade, propiciando-nos uma fecunda possibilidade de compreender melhor o presente, com uma visão menos limitada, linear e por vezes distorcida. No âmbito do ensino, tal perspectiva deve ajudar os discentes a enxergarem a nossa realidade de forma transitória, contrastando-a com os seus modos de vida, observando as persistências e mudanças ao longo do tempo, dissipando a distância entre o saber científico, produzido nas Universidades, e o saber escolar, produzido em salas de aula do Ensino Fundamental e Médio. Aos docentes, os artigos apresentam instigantes possibilidades de refletir sobre a História Antiga, de repensá-la em sua prática de sala de aula, de fazer novas experimentações, tornando essa História mais próxima, mais viva e prenhe de sentido. Muitos artigos visam instrumentalizar o professor, oferecendo-lhe ferramentas úteis para diminuir o descompasso entre aquilo que é produzido no meio acadêmico e o que é ensinado nas escolas.
Compõem o dossiê um total de dez artigos. Alexandre Galvão Carvalho, em seu texto Diálogos entre a História Antiga e o ensino de História, tece reflexões em torno da alteridade, multiculturalismo, eurocentrismo e da relação entre Ocidente e Oriente nos debates acerca do ensino da História Antiga. Procura repensar as formas e modelos da História Antiga e o ensino de História com o objetivo de aproximar a disciplina História Antiga de nossa realidade e superar preconceitos, articulando artigos atuais sobre as formas e modelos teóricos da área com as propostas curriculares para o ensino de História, acentuando os caminhos para a inserção da disciplina História Antiga na construção e fortalecimento da cidadania.
No artigo Saberes arqueológicos na escola pública: ações educativas do Labeca aplicadas ao “Projeto Minimus Intersdiciplinar”, Maria Cristina Nicolau Kormikiari, Felipe Perissato e Felipe Leonardo Ferreira destacam a contribuição do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (LABECA) para o avanço das pesquisas sobre a cidade antiga grega no Brasil. Apresentam, a partir de um rico e instigante projeto, um relato de experiência dos desdobramentos dos estudos desenvolvidos no LABECA em escola pública da Educação Básica de São Paulo. O objetivo do projeto é aproximar o conhecimento produzido no espaço da universidade da escola secundária, preocupação constante do Laboratório.
No terceiro artigo, O livro didático e o Ensino de História Antiga – desafios no presente e problemas do passado, Luis Filipe Bantim de Assumpção e Carlos Eduardo da Costa Campos partiram da experiência como docentes no Ensino Médio, em colégios particulares do Rio de Janeiro, para demonstrar como os materiais didáticos ali utilizados detêm uma visão conservadora sobre a História Antiga. Os autores aproveitam a oportunidade para apresentar, com muito esmero, uma metodologia de análise do livro / material didático utilizado, com a qual se objetiva desenvolver uma análise crítica do conteúdo de Antiguidade.
Na sequência, o artigo História dos cristianismos nos livros didáticos: considerações sobre a narrativa histórica escolar, de autoria de José Petrúcio de Farias Júnior e Ramonn Gonçalves de Moura, apresenta uma discussão necessária e importante sobre a História dos Cristianismos a partir de preocupações atuais, como o fundamentalismo religioso e a intolerância religiosa, tão presentes em nosso cotidiano. Os autores analisam a apresentação da história dos cristianismos nos livros didáticos e chegam à conclusão do quanto ainda é profundo o fosso entre aquilo que é ensinado nas escolas e as discussões recentes sobre a temática.
No quinto artigo “Mitologia, História e Cinema”: um projeto de extensão sobre recepção do mundo-greco romano em curso, Igor Barbosa Cardoso e Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho brindam-nos com a apresentação de um projeto amplo e audacioso (como todos devem ser) envolvendo Mitologia, História e Cinema, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Muito mais do que a apresentação do projeto, os autores oferecem um magnífico quadro teórico de análise da produção cinematográfica e de importantes questões atinentes ao estudo da recepção da cultura clássica. Trata-se de um convite desafiador (e tentador) àqueles que desejam repensar a História sobre novos e promissores alicerces, inserindo, sob bases acertadas, o cinema em sala de aula.
Em O Mediterrâneo Antigo: uma proposta didática Manuel Rolph Cabeceiras apresenta, em seus aspectos teórico-metodológicos e práticos, os resultados da construção de uma proposta de aprendizagem compartilhada nas turmas de “História Antiga” no 1º Período do Curso de Graduação em História da UFF de 2013 a 2019, centrada no Mediterrâneo como categoria de análise histórica nas áreas por ele abrangidas dos séculos XXIV a.C. a III d.C. O artigo além de apresentar análise inovadora sobre o Mediterrâneo Antigo, abre a possibilidade para um novo modo de se pensar e trabalhar em sala de aula o mundo antigo.
No artigo seguinte O II Concílio de Braga e Da Correção dos Rústicos contra o paganismo: entre a cultura escrita e a oralidade, de autoria de Vitor Moraes Guimarães e Márcia Santos Lemos, os autores apresentam uma análise muito rica sobre as formas utilizadas pela Igreja no processo de evangelização e difusão do cristianismo no Reino Suevo do VI século. A partir de múltiplas estratégias de conversão ao cristianismo, a Igreja alcançava tanto as baixas camadas do clero quanto as populações humildes e afastadas, na busca da consolidação do cristianismo e eliminação do paganismo.
O oitavo artigo, A pesquisa sobre Império Romano no Brasil: a Numismática e a Coleção do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro (RJ), de Cláudio Umpierre Carlan, apresenta uma das mais instigantes e frutíferas fontes de pesquisa: a moeda. A partir da Coleção do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, o estudioso presenteia-nos com uma análise do Império Romano. Passeando pela história da Numismática, apontando suas possibilidades de pesquisa, ofertando-nos exemplos de como é possível extrair da fonte imagética um conhecimento profundo e sob diferentes aspectos da história dos romanos.
O artigo seguinte: Os sepultamentos secundários dos judeus e os ossuários judaicos: um breve debate sobre continuidades e rupturas dos padrões funerários na região da Judeia, dos autores Carolina Mattoso e Vagner Carvalheiro Porto, apresenta uma história que vem da província romana da Judeia, pouca conhecida entre nós. Tem o mérito de discorrer com profundidade sobre o sepultamento secundário de judeus e o uso de ossuário como modo para esse tipo de sepultamento. Sob tais bases os autores tentam ampliar o conhecimento das interações entre a província e os romanos e entender o próprio passado judaico.
Fechando o dossiê, no artigo O espaço como um contributo para a compreensão da tragédia e para a interpretação da História, Márcia Cristina Lacerda Ribeiro propõe a utilização do ‘espaço’ como categoria de análise útil para ampliar o entendimento sobre a tragédia grega e sobre a História. A partir de uma leitura antropológica do espaço, tomada de empréstimo de Amos Rapoport, o texto discute a interação entre espaço e comportamento, exemplificado a partir da análise do espaço da gruta, presente na tragédia Íon de Eurípides.
Com esse dossiê, reforçamos nossa perspectiva de que o estudo da História Antiga e Medieval deve ser encarado como um laboratório, com uma enorme diversidade de formas socioculturais das experiências dos homens e mulheres ao longo da história. O afresco de Luca Giordano, “O barco de Caronte, o Sono da noite e Morfeu”, do século XVII, capa da nossa revista, é uma leitura da Antiguidade formulada em outro contexto histórico, por meio de uma linguagem própria, uma forma de apropriação e usos do passado que coloca em tela o interesse que o antigo e o medievo têm despertado ao longo do tempo. Que assim continue….
Nossos agradecimentos a todos os autores que nos presentearam com seus belíssimos trabalhos.
Boa leitura!
Alexandre Galvão Carvalho – Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor Pleno do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Brasil. E-mail: alexandre.galvao@uesb.edu.br
Fábio de Souza Lessa – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Laboratório de História Antiga e ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História da UFRJ e ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (PPGLC) da Faculdade de Letras da UFRJ. Brasil. E-mail: fslessa@uol.com.br
Márcia Cristina Lacerda Ribeiro – Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo; Pós- doutora em Arqueologia Clássica pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade do Estado da Bahia (na Graduação em História e no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Linguagem e Sociedade). Pesquisadora do LABECA / MAE / USP e do NHIPE / CNPq. Brasil. E-mail: mclribeiro@uneb.br
CARVALHO, Alexandre Galvão; LESSA, Fábio de Souza; RIBEIRO, Márcia Cristina Lacerda. [História Antiga e Medieval no Brasil: pesquisa e prática de ensino]. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.2, n.6, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
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