Gênero, Raça e Classe / Aedos / 2016

Gostaríamos de abrir esta publicação com uma imagem que consideramos muito significativa: uma foto da autora Carolina Maria de Jesus, em 1960, no lançamento de “Quarto de Despejo”, livro que a tornaria reconhecida como uma das escritoras mais importantes do Brasil. Mulher, negra e pobre, moradora da favela do Canindé, em São Paulo, Carolina de Jesus trabalhava como catadora de lixo e registrava seu cotidiano através da escrita, em diários posteriormente publicados, nos quais podemos ler sobre suas vivências e que nos revelam suas lutas, inspirações e maneiras de ver o mundo. Neste momento em que lembramos os 40 anos do seu falecimento, ocorrido no ano de 1977, os seus escritos, além de oportunizarem o contato com a habilidade e sensibilidade da autora, nos sugerem a possibilidade de perceber as maneiras multifacetadas e complexas pelas quais os sujeitos se compõem e existem no mundo, e colocam a importância de valorizar estas trajetórias e vivências.

Carolina de Jesus nos inspira, portanto, na apresentação do Dossiê Temático Gênero, Raça e Classe, com o qual a Aedos tem a intenção de abordar a complexidade das relações de poder entre as diferentes dimensões que compõem o social e tem implicação na composição de sistemas de opressão e de identidades, e também nas trajetórias dos sujeitos e suas maneiras de vivenciar a realidade, de se colocar nela e também de lutar e resistir às violências que a permeiam. Com essa publicação procuramos contribuir para a análise e compreensão de elementos e fenômenos que concernem à configuração e a interdependência das relações de poder e de formas de elaboração dos sujeitos e das relações sociais. Além disso, pretendemos enfatizar as dimensões políticas desta perspectiva e a posição que ela demarca, relacionadas à valorização das experiências e trajetórias de sujeitos marginalizados socialmente e frequentemente invisibilizados nas análises historiográficas. Compartilhamos da visão de que o conhecimento histórico pode constituir-se, ao mesmo tempo, em espaço e instrumento de luta política, visto que a introdução destes debates e problematizações pode contribuir para o questionamento de saberes supostamente neutros.

É fundamental mencionar que a presença ativa destes sujeitos na proposição destas discussões, na medida em que, com a sua atuação na academia – e também fora dela –, passam a produzir conhecimento a partir das próprias vivências e a problematizar as próprias realidades e opressões, pautando assim debates acadêmicos, historiográficos e políticos mais amplos. Nesse número temos a contribuição de pesquisadores que se identificaram como integrantes de grupos de pesquisa e instituições voltadas para sujeitos marginalizados socialmente, como: Carlos Henrique Lucas Lima que integra o Grupo de Pesquisa Corpus Possíveis, Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS) e é co-criador e editor-adjunto da primeira revista brasileira dedicada exclusivamente aos Estudos Queer, a Periódicus; Marcio Rodrigo Vale Caetano integrante do Nós do Sul – Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Identidades, Currículos e Culturas; e Néstor Anibal Rodriguez integrante da Cooperativa Mujer Ahora e do Colectivo Ovejas Negras do Uruguai.

Da mesma forma, para essa publicação a integrante da equipe editorial Ana Júlia Pacheco entrevistou Cristiane Mare da Silva. Cristiane é doutoranda em História Social pela PUC / SP, pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UDESC (NEAB / UDESC) e do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora CECAFRO da PUC / SP, é também fundadoras do “Coletivo Pretas em Desterro” oriundo das articulações do “Comitê impulsor da Marcha de Mulheres Negras de Santa Catarina” onde foi uma das coordenadoras que organizou a presença das mulheres negras catarinenses na nacional “Marcha das Mulheres Negras 2015”. Antes disso, atuou como Secretaria de Mulheres da União de Negros Pela Igualdade (UNEGRO / SC). Como escritora, crítica e poeta, ela mantém em seu blog “Literatura Afrolatina e Diásporas do Atlântico”.

“Instantáneas acerca de la construcción del sujeto del feminismo” de Néstor Anibal Rodriguez, abre o dossiê com uma provocação: qual tem sido o sujeito do feminismo? Essa questão surge quando alguns coletivos de mulheres não se sentem representadas pela tendência feminista hegemônica que é branca, burguesa e heterossexual. Apresenta, a partir dessa questão, a articulação entre raça, classe, gênero e orientação sexual e distingue o sujeito social do político e do epistemológico. Continuamos com o artigo de Carlos Henrique Lucas Lima e Marcio Rodrigo Vale Caetano, que entendem ser um gesto político necessário defender uma historiografia literária “fora do armário”. Os autores afirmam que a homossexualidade foi recluída nos discursos sobre a Nação, mas relegada ao espaço do privado e do “gueto” e, assim, através de comentários de escritos de críticos / as literários / as vinculados / as aos estudos sobre sexualidades e gêneros, buscam problematizar o lugar desta população no ideário da Nação.

Ronaldo Manoel Silva pesquisa o pecado nefando, que atualmente corresponde à conduta homossexual, na primeira visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Brasil (1591-1595). Suas fontes são processos inquisitoriais de homens sentenciados por crime de sodomia e que atestam que apesar da repressão, o sexo entre iguais foi praticado no primeiro século da colonização brasileira. O artigo de Renato Drummond Tapioca Neto e Marcello Moreira analisa a dinâmica social da concessão de dotes e dos casamentos no Brasil entre os anos de 1850 a 1870, a partir do romance “Senhora” (1875) de José de Alencar. Os autores interpretam o matrimonio dos personagens do romance como uma construção de uma analogia da relação estabelecida entre senhor e cativo no regime escravocrata, ferindo a concepção religiosa de sacralidade do casamento.

Três pesquisas sobre “pensamento raciológico”, “racismo científico” e “teorias racialistas” compõem o dossiê, com abordagens, períodos e espaços diversos. Joice Anne Carvalho e Renata Baldin Maciel expõem um panorama geral do pensamento raciológico do século XIX e início do XX trazendo como exemplo as concepções de Manoel Bomfim, intelectual que refutou as teorias raciais de sua época e de alguns eugenistas, em especial Renato Kehl, que reforçou tais percepções, além de problematizar as questões relativas ao gênero nessas teorias. O objeto do estudo de Denis Henrique Fiuza, por sua vez, é justamente Renato Kehl e a implantação do racismo científico no Brasil a partir da obra “Lições de Eugenia”, obra que seria o resultado de mudanças de Kehl em direção a uma eugenia ainda mais radical, informada pelo racismo europeu e pelo determinismo biológico.

“Das teorias racialistas ao genocídio da juventude negra no Brasil contemporâneo: algumas reflexões sobre um país nada cordial” é o provocante título do artigo de Juliana de Almeida Goiz, no qual defende que a população negra foi deixada às margens da sociedade, como consequência do processo de escravização e também do racismo institucional e que tem provocado o genocídio da juventude negra, o qual problematiza. O tempo presente também é o recorte da jornalista Samara Araújo da Silva, que se debruça sobre a série “Sexo e as negas” (Rede Globo), na qual percebe narrativas estereotipadas e sexistas na representação das mulheres negras. Para Samara a mulher negra se mantém vista e apresentada como no período escravocrata a mercê dos desejos sexuais de seus patrões dentro de um hipersexualismo constante.

Nesse número também contamos com seis artigos “livres”. Gabriel José Pochapski e José Adilçon Campigoto são os autores de um desses artigos, no qual articulam igreja, casa e cemitério para analisar a morte entre os descentes ucranianos de uma cidade do Paraná, entre os anos de 1923 e 2012, utilizando como fontes a fotografia e a história oral. Já Patricia da Costa Machado pretende compreender o surgimento e a trajetória da luta por justiça no Uruguai após o fim da ditadura civil militar, principalmente o impacto da Ley de Caducidad, que impediu a realização de julgamentos dos crimes da ditadura. Recuando no tempo e rompendo com o recorte da América Latina, Maicon da Silva Camargo debate a peculiar situação da União Ibérica (1580-1640) através da filosofia política da primeira Idade Moderna e do discurso de Manuel Severim de Faria (1583 – 1655). Por sua vez, uma equipe de historiadores, composta por Nathany Belmaia, Henrique Bresciani, Luiz Manini, Érika Myiamoto, Hilton Oliveira e Thaís Silva, se debruçou sobre a capa do álbum intitulado Powerslave, da banda Iron Maiden, para analisar a produção, o consumo e a apropriação de elementos da cultura do Antigo Egito pela indústria cultural da década de 1980.

O anticomunismo e o antifascismo são os temas dos últimos artigos desse número. Luiz Otavio Monteiro Junior analisa a origem da ideologia anticomunista no seio do Exército Brasileiro durante a Era Vargas, observando a produção intelectual para percorrer a historicidade da ideologia anticomunista dentro do pensamento militar. E Bruno Corrêa de Sá Benevides estuda o antifascismo internacional entre 1919 e 1922 através da propagação e circulação de textos antifascistas, de tendência anarquista, nos jornais militantes e operários brasileiros e a compreensão acerca do conceito de fascismo através da ótica dos militantes anarquistas. Por fim, ainda há a resenha do livro A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) de Jerzy Mazurek, publicada pela editora Espaço Acadêmica.

Esperamos que todos e todas aproveitem a leitura!

Micaele Irene Scheer (Editora Chefe)

Marina Gris da Silva (Editora Gerente)


SCHEER, Micaele Irene; SILVA, Marina Gris da. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 8, n. 19, Dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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