Publicado originalmente em inglês em 2007 e editado no Brasil em 2011, Declaração de Independência: uma história global, de David Armitage, é um livro bastante original, erudito e prenhe de questões importantes, resultado do empenho de um historiador altamente profissional e cheio de razões para se incomodar com uma tradição historiográfica ainda muito em voga em seu país. Qual seja: a que concebe uma história paroquial, provinciana, muitas vezes até mesmo nacionalista, e que insiste em sustentar uma excepcionalidade da trajetória dos Estados Unidos da América que não apenas costuma ser portadora de uma ideia de superioridade civilizacional, mas que também poucas vezes resiste a um exame sério e minimamente historicizante de muitos de seus conteúdos clássicos. Precisamente dentre estes se encontra a Declaração de Independência de 1776, e que neste livro encontra interpretação bastante diversa.
Dividido em três capítulos, aos quais se segue uma coletânea de declarações de independência ou documentos afins – que, segundo seu autor, se inspiraram direta ou indiretamente naquela que aqui se considera simultaneamente modelo paradigmático e evento fundacional –, o livro de Armitage, desde sua primeira linha, procura uma visão abrangente do fenômeno a ele central: a concepção, a instituição e o espraiamento de um documento supostamente capaz de subsidiar concepções e ações políticas mundo afora e desde então.
O primeiro capítulo, “O mundo da Declaração de Independência” (p.27-56), dedica-se a examinar e iluminar o fato de que o documento de 1776 só fazia sentido por estar direcionado a um sistema de relações internacionais que o explica e que o faz, radicalmente, uma peça “internacional”. O segundo, “A Declaração de Independência no Mundo” (p.57-88), examina recepções e leituras que o mundo de sua própria época realizou do documento, configurando um processo capaz de dotá-lo de uma energia vital a convertê-lo em típico protagonista do que o autor pretende “uma história global”. Finalmente, o capítulo 3, “Um Mundo de Declarações” (p.89-117), indica e organiza uma sequência de declarações que, à luz dos capítulos antecedentes e dos próprios preceitos do livro, surgem em um olhar criativo e, sem sombra de qualquer dúvida, fortemente provocador.
O que seria, então, essa “história global”? Armitage não a define, mas a pratica. Trata-se, então, de um olhar de um historiador que escreve “em um período de aguda consciência da globalização” (p.13); igualmente, de um fenômeno constituído a partir de um ponto preciso, perfeitamente bem definido no tempo e no espaço, e que se espraiaria para tempos e espaços que o transcendem. No presente caso, portanto, essa “história” se originaria com a própria criação dos Estados Unidos da América, e seguiria sua trajetória mundo afora como uma espécie de mundo que esses Estados Unidos criaram. Não se confunde, em nada, com uma história de coisas simultâneas, menos ainda com uma história de todo o globo, mas se define como a história de uma influência que, se impossibilita de qualquer indicação de término – posto que, como o autor pretende, essa influência ainda se fazia presente em 2007 – jamais deve perder de vista seu ponto de origem.
Temos, então, uma “história global” a partir de um ponto de vista anglo-americano, ou norteamericano. Não um ponto de vista que se pretenda relativo, mas objetivo: pois é dele que se parte aquilo que construirá – ou construiu – uma “história global”. E não há nenhuma dúvida de que, daqui para frente, a historiografia deve a Armitage uma forte contribuição para o entendimento de documentos e eventos de grande importância que ganham extraordinária clareza quando vistos desse modo. Deve-se, portanto, endossar parcela das mais importantes conclusões do autor.
Porém, e em parte na contramão desse endosso, pode-se destacar um aspecto central e abrangente do livro de Armitage de modo a dele extrair problema de concepção. Um problema que, creio, deve ser enfrentado por todo aquele que, de diferentes modos, se ocupa atualmente de compreender fenômenos políticos inscritos na conjuntura geral que Armitage identifica como de origem do tema que o interessa, ou que vão ao encontro de muitas outras conjunturas que podem ser identificadas como sucedâneas àquela inicial.
Tal problema é de ordem histórica e teórica ao mesmo tempo; e é por isso que pode-se considerar exemplos extraídos do próprio livro de Armitage, bem como acrescentar algum outro a ele alheio. Por isso, que fique bem claro: não proponho um diálogo puramente bilateral, com uma leitura crítica exclusivamente dessa obra; mas sim aproveitar o que Armitage nos traz para discutir um problema mais amplo, já que de seu labor resultou uma elaboração notavelmente paradigmática.
Enuncio o problema em duas questões: como fundamentar a existência de fenômenos históricos que pretensamente se configuram em uma dinâmica de irradiação temporal e espacial? E como interpretar realidades diacrônicas a partir de supostos impactos e conexões de fenômenos capazes de aproximá-las, e de torná-las uma mesma e ampla realidade? Em suma, questiono a base de configuração de uma unidade histórica – a “história global” – por meio de um corte do tipo do realizado por Armitage, isto é: o advento e a reprodução alterada de declarações de independência a partir da dos Estados Unidos da América de 1776.
Devo repetir que não só reconheço aspectos altamente meritórios da análise de Armitage como simpatizo fortemente com a abrangência temporal e espacial de sua proposta, bem como com o esforço dela decorrente de domínio de bibliografias especializadas voltadas a realidades específicas (embora veja como incômoda a devastadora primazia de obras publicadas em inglês). Bibliografias que a maioria dos historiadores, lamentavelmente, ainda continua a tratar isoladamente. É difícil praticar uma escrita da história verdadeiramente não-nacional, não-provinciana, de larga duração e de escopo global; e não há forma mais adequada de entender o mundo de finais do século XVIII, ou o de começos do XXI.
Por isso, pode-se dizer que o problema que acima destaquei é, em parte, inevitável, pois diz respeito à ideia de que fenômenos como as Declarações de Independência – mas também pensamentos e ações políticas em movimento, as modificações substantivas na composição dos Estados europeus, e a formação dos Estados nacionais delas decorrentes inclusive na América, na África e na Ásia – configuram, em escala mundial, realidades comuns, que precisam ser estudadas em conjunto porque só assim podem ser devidamente compreendidas. E é na ocorrência de uma Declaração e na sua trajetória posterior que Armitage vislumbra uma história digna de ser contada.
Se os elementos que fundamentam esse vislumbrar são eloquentes, menos o é a base de estabelecimento dos nexos que nos permitiriam falar de uma “história das declarações de independência”, ou, para nos mantermos fiéis aos termos do autor, de uma história global “da Declaração de Independência” (de 1776); nexos que fariam dessa(s) história(s) cortes válidos para entender o mundo (ou os mundos) atravessados por ela(s), e por ela(s) parcialmente explicados.
Se há, efetivamente, uma irradiação de um paradigma simultaneamente de concepção e de ação política, com todas as variações que tal paradigma comporte, há algo na ordem de uma escala territorial que não apenas possibilita esse trânsito do paradigma – e, portanto, sua existência como tal – mas também sua suposta capacidade de incidir sobre tempos e espaços variados, embora muitas vezes (nem todos) cronologicamente próximos.
Aqui, retomo outro trabalho de Armitage, elaborado em conjunto com Sanjay Subrahmanyam, e que abre uma interessante coletânea de textos dedicados a manifestações de uma chamada “era das revoluções” em diferentes regiões do globo entre os séculos XVIII e XIX: (The Age of Revolutions in Global Context, 1760-1840, de 2009). Aqui, os autores defendem uma chamada “transitive global history”: isto é, uma história concebida a partir de diferentes pontos equivalentes, sem um centro único, mas que partiria da percepção da ocorrência de fenômenos equivalentes ou semelhantes em todos eles (o que não seria o caso, obviamente, da “história global” da Declaração de 1776 proposta em Declaração de Independência, que arrancaria, sim, de um único ponto). Juntos, Armitage e Subrahmanyam encontram, então, ocasião para reaproveitar uma metáfora anteriormente já utilizada pelo último em parceria com Serge Gruzinski, e que concebe o trabalho desse tal historiador “global” com o de um eletricista, cuja tarefa consistiria em conectar os pontos de uma ligação geral, e que se encontrariam indevidamente desligados.
Inegavelmente, tal metáfora é não apenas inusitada, mas também engenhosa: parece dar conta, por exemplo, da irradiação das declarações de independência, portanto das conexões de um circuito que colocaria 1776 no mesmo caminho de 2007, que levaria a eletricidade do disjuntor dos Estados Unidos da América do século XVIII (o centro de tudo) para, por exemplo, Kossovo e Sudão atuais, passando por um grande número de pontos de distribuição. No entanto, a serventia dessa explicação parece depender estritamente de seus próprios pressupostos. Pergunto: como fundamentar a “conexão”, não entre artefatos de natureza semelhante, como são algumas (repitamos, algumas) das declarações de independência – talvez os fios, os circuitos e as tomadas da metáfora do eletricista – mas entre, por exemplo, declarações de independência e guerras; dinâmicas identitárias e formação de Estados nacionais; mutações conceituais e relações mercantis; formas de pensamento/ação políticas e estruturas cotidianas de existência social? Um livro com um governo, uma batalha com um jornal?
Tomo aqui, evidentemente, exemplos de fenômenos que, nos contextos referidos por Armitage, compõem realidades das quais as declarações de independência são parte, mas parte muito parcial. Não se trata, contudo, de antepor à conexão de coisas semelhantes uma história de todas as coisas; mas sim de questionar a legitimidade de uma escolha em termos de sua capacidade de explicar algo mais do que aquilo que nela está já desde seu princípio. O que escapa a essa história de declarações de independência, mas que parece ser essencial na compreensão de uma história da qual essas declarações são parte importante?
Penso em três casos mencionados por Armitage: a “declaração” do Peru, de 28 de julho de 1821; os eventos relativos ao Brasil, de 07 de setembro de 1822; e o que foi chamado de “Declaração de Independência do Uruguai”, de 25 de agosto de 1825. Ora, o que podemos dizer sobre tais exemplos? Em primeiro lugar, que a “declaração” do Peru foi imposta por um San Martín chefe de um exército invasor, e que pouco tempo duraria no poder do antigo Vice Reino que agora ruía; em segundo, que poucos são os atuais historiadores da independência do Brasil que consideram com seriedade o 7 de setembro como um marco do ano de 1822; e finalmente, que a “declaração” de 1825 não criou um “Uruguai”, menos ainda “independente”. Em todos os casos, no entanto e sem dúvida, alguma intenção, algum padrão comum de ação política; mas o que essas “declarações” explicam efetivamente sobre o fim do Vice Reino do Peru e do Reino do Brasil? São elas comparáveis às dos Estados Unidos e da França, ou às dezesseis de Venezuela e Nova Granada entre 1810 e 1816? Talvez devêssemos isentar Armitage da responsabilidade de discutir, com algum pormenor, todos os casos por ele mencionados, não fosse meu entendimento de que tais distorções são decorrentes de sua própria concepção de “história global”. Afinal, segundo ela, tudo que a ela pertence deve, de algum modo, se adequar a um padrão inicial, definido pelo seu marco irradiador: os Estados Unidos da América.
Aprofundemos tal objeção pontualmente. A edição brasileira de Declaração de Independência, em clara sintonia com propósitos mercadológicos perfeitamente explicáveis (ainda que não necessariamente justificáveis), incluiu, em sequência à coletânea de declarações já mencionada, um “Apêndice” relativo ao Brasil (p.201-214). Dele constam quatro peças: o famoso decreto do governo do príncipe regente Pedro de 03 de junho de 1822, convocando uma assembleia constituinte e legislativa para o Brasil; uma carta do mesmo príncipe (que ainda não era, portanto, “Pedro I”, como consta do livro) ao rei João VI, de 22 de setembro de 1822; a ata de aclamação (aí sim) de Pedro I Imperador do Brasil, de 12 de outubro de 1822; e o tratado assinado em 25 de agosto de 1825, pelo qual Portugal reconheceu formalmente a independência do Brasil. Ora, a que servem tais documentos, neste livro? Nas palavras do autor, como o Brasil, “caso particular na América, não teve uma declaração de independência inspirada naquela dos Estados Unidos”, o que supostamente caracterizaria um “processo sui generis”, tais documentos poderiam estimular “o estudo comparado (de acordo com os objetivos do livro) com os outros processos emancipatórios aqui ilustrados” (p.201). E assim, o que não se adequa ao pressuposto do livro – os Estados Unidos como centro irradiador de uma “história global”, é confinado à categoria de aberração. O que coloca Armitage em perfeita sintonia com um dos tópicos mais tradicionais – e hoje mais contestáveis – da suposta singularidade da história do Brasil no panorama não apenas americano, mas também mundial. O que ganhamos reconduzindo à independência do Brasil essa interpretação tão convencional quanto míope?
O problema aqui se converte no da legitimidade do recorte. Se a “história global” da “Declaração de Independência”, bem como da modalidade indicada por tal expressão no plural, realizada por Armitage é legítima, útil e importante, ela parece servir também para obliterar realidades que apenas enganosamente se enquadram no seu padrão. Pouca coisa se explica do Peru, do Brasil e do Rio da Prata oriental por essas “declarações”; e como exceções à suposta regra, o corte adotado corre o sério risco de incentivar a retirada da cena dos contextos doravante considerados excepcionais.
Na minha leitura, os elementos frágeis da concepção de uma “história global” tal qual praticada por Armitage, assim como seus muitos e inegáveis méritos, demandam um escopo teórico que seja capaz de explicar não apenas quais realidades se conectam, mas fundamentalmente porque elas podem se conectar, e como o fazem. Um escopo teórico que nos permita superar os insolúveis problemas decorrentes da reificação de um método ou de uma concepção “global” de história, da qual Armitage é tributário e, ao mesmo tempo, formulador.
É bem verdade que vivemos tempos não apenas de forte consciência de uma “globalização”, mas igualmente de uma persistente crise de paradigmas teóricos, de perene desprestígio da reflexão teórica, sobrepujada por um empiricismo fácil e sedutor, bem como de pesquisas hipertrofiadas e isoladas, incapazes de propor generalizações (sempre elas, perigosas, temerárias, mas imprescindíveis…). Assim, e na contramão de tais atitudes, o que encontramos em Declarações de Independência já é mais do que o bastante para merecer aplauso; no entanto, não parece o suficiente para assegurar saídas para alguns dos impasses desses tempos.
No cenário historiográfico atual, poucos historiadores pareceriam tão capazes como David Armitage de caminhar nessa direção; de preferência, realizando uma avaliação propositiva da serventia ou não de categorias anteriormente usadas (muitas vezes abusadas) pelas ciências sociais – como, por exemplo, “sistema-mundo”, capitalismo” e “longa-duração”– e que desapareceram quase que por completo nas atuais elaborações em torno de uma “história global”. Basta de imputar ao autor, no entanto, objetivos e interesses que não necessariamente são os dele: limitemo-nos, por fim, a reconhecer Declarações de Independência como uma obra forte, por muitos motivos altamente meritória, e certamente encorajadora de tarefas às quais ela pode, simultaneamente, pautar e servir de ponto de partida.
João Paulo Pimenta – Professor no Departamento de História da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP – São Paulo/Brasil). E-mail: jgarrido@usp.br
ARMITAGE, David. Declaração de Independência: uma história global. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 264p. Resenha de: PIMENTA, João Paulo. O que é uma “história global”? A propósito de um livro de David Armitage. Almanack. Guarulhos, n.6, p.153-157, 2º semestre de 2013.
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