O livro de Cláudia Cristina Azeredo Atallah – doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora do Departamento de História da mesma universidade e coordenadora do Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime (JIIAR) que reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros afinados com o tema da administração da justiça – insere-se na interface entre a história do direito e a história da justiça. É preciso de imediato ter em mente a distinção entre os dois domínios: o direito como sendo uma manifestação das intenções gerais de ordem e a justiça tendo sua expressão em atos singulares e concretos. Em outras palavras, o direito é universal e a justiça é casuística [2].
Ao analisar o esforço das reformas impostas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, em conter as tradições políticas típicas do Antigo Regime na comarca do Rio das Velhas pela ótica de atuação dos ouvidores da coroa, a autora deparou-se com o movimento entre o direito, traduzido no conjunto normativo de ordens emanadas pelo centro, e a justiça, traduzida nas práticas cotidianas ocorridas além das decisões dos tribunais que caracterizavam a cultura jurídica nas Minas Gerais colonial em um contexto de transição entre o pluralismo jurídico e a modernidade jurídica.
O trabalho segue a trilha conceitual aberta pela abordagem de estudos do Antigo Regime nos Trópicos, retomando os modelos teóricos de “centro e periferia” proposto por Edward Shils (1992) e de “autoridades negociadas” proposto por Jack Grenne (1994), revisitados à luz de novos horizontes de pesquisa. Sendo assim, conceitos fundamentais como monarquia pluricontinental, economia do bem comum, economia moral de privilégios, redes clientelares e políticas são mobilizados nos oito capítulos que compõem o livro, pela ótica da ação da justiça. Atallah, portanto, alarga o tema ao mostrar a importância da conciliação e da política de negociação em um universo político marcado por conflitos de jurisdição, espaços mal definidos de poder e sobreposição de poderes em revelia às tentativas de centralização políticaadministrativa e controle sobre os oficiais régios que caracterizaram a nova prática do governo pombalino.
Cumpre destacar que os conflitos jurisdicionais entre as diversas instâncias do poder colonial têm-se mostrado como um dos temas da maior importância para o debate historiográfico recente. Longe de expressarem deformidades ou desordens conforme parte da historiografia afirmou durante o século XX, tais conflitos devem ser entendidos como mecanismos para distribuir poderes em territórios distantes do centro e não como uma anomalia do sistema. Expressavam o pluralismo jurídico do Antigo Regime e não interferiam na centralidade régia. De fato, esta discussão é fulcral para a análise da própria natureza do Império português, como bem mostra o posicionamento da autora ao demonstrar que a manutenção dos conflitos por parte da coroa não tinha como estratégia o caráter punitivo, mas sim o de institucionalizar a negociação.
A autora desenvolve o argumento central de que a Inconfidência do Sabará, episódio ocorrido em 1775 e que levou o ouvidor José de Góes Ribeiro Lara de Moraes à prisão, foi um produto das mudanças intentadas por Pombal e não resultado da desordem e da rebeldia peculiares à região. Essa tradição historiográfica, que tende a considerar as Minas Gerais como um universo distinto das demais áreas do Império português, nasceu da preocupação em definir e justificar o caráter nacional brasileiro mobilizando temas como a instabilidade das formas sociais, os paradoxos das estruturas administrativas e o processo incompleto de formação do Estado nacional racionalizado [3]. Em perspectiva distinta, Atallah entende que o “tom de rebeldia e de contradição torna-se mais compreensível se analisado como reflexo das práticas políticas cotidianas que alimentavam as relações clientelares e a busca pela cidadania nesse universo” (p.18).
Para os fins propostos, o livro está dividido em três partes. Na primeira parte, intitulada “As Minas setecentistas e o Antigo Regime: uma discussão acerca do caráter do poder”, Atallah discute os elementos necessários para entender a organização desta sociedade, cujo modelo político ancorava-se na filosofia jesuítica da nova escolástica que tinha como princípio a autonomia político-jurídica dos corpos sociais, sendo a justiça o fim lógico do poder. Concomitante ao desenvolvimento da nova escolástica, observou-se também um desenvolvimento cada vez maior das teorias corporativas do pensamento medieval e jurisdicionalista, cuja longa sobrevivência relaciona-se à presença sistemática dos padres jesuítas em todo o processo de colonização no ultramar.
Essas ideias forneceram o substrato moral e pedagógico responsáveis pela formação de uma elite jurídica destinada ao serviço régio e tiveram na Universidade de Coimbra e no Desembargo do Paço os principais redutos de legitimação e disseminação. No entanto, em meados do século XVIII, as reformas pombalinas viriam abalar profundamente as bases doutrinais que sustentavam o império e consequentemente as instituições que representavam o poder. A promulgação da Lei de 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa Razão, foi a primeira iniciativa mais incisiva em relação às reformas no campo jurídico. À pluralidade das práticas jurídicas do direito consuetudinário vinha se opor a retidão do direito real.
As transformações do direito empreendidas pela Lei da Boa Razão encontraram ressonância nas reformas dos estudos jurídicos ocorridos na Universidade de Coimbra a partir de 1770. O objetivo era formar os futuros administradores da justiça portuguesa de acordo com a nova cultura jurídica e política e implantar um ensino prático, simples e metódico, “era o esforço em substanciar a nova razão de Estado almejada pelo ministério pombalino e que tinha como parte essencial a constituição do direito” (p.185). Para ter a dimensão do embate entre as reformas modernizantes e as tradições políticas no que tange às estruturas jurídicas, Atallah desenvolve na segunda parte “A dinâmica imperial e a comarca do Rio das Velhas no governo de D. João V”, um estudo sobre a atuação dos ouvidores na dinâmica imperial antes das reformas, durante o período de 1720-1725.
Este foi um período conturbado, aos esforços da coroa em implementar medidas de caráter fiscal e conter os distúrbios causados pela cobrança de impostos, somavam-se as exigências de importantes potentados locais. Foi também um período marcado por uma série de conflitos de jurisdição travados entre D. Lourenço de Almeida, governador das Minas, e José de Souza Valdes, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas. À medida que os analisa, Atallah demonstra que os conflitos por jurisdição faziam parte de uma estratégia deliberada da coroa que, ao contrário de aniquilar seu poder, tornava-o possível em paragens distantes. Nesse Cantareira, sentido, a coroa não somente os mantinha como às vezes até mesmo os estimulava, sem se posicionar a favor de um ou outro oficial, favorecendo assim a institucionalização da negociação ao invés da punição.
Alinhada com a visão do estudo de José Subtil sobre o Desembargo do Paço, Atallah ressalta a importância dessa instituição como símbolo da essência político-administrativa do Antigo Regime, além de institucionalizar seu aparato jurídico. A partir do ministério pombalino, o Desembargo do Paço e seus homens assistiram a uma diminuição gradativa de suas competências simbólicas, pois “a centralização política impunha também a precedência do direito régio sobre o direito consuetudinário e, desse modo, a autoridade dos juristas ficava reduzida à aplicação das leis” (p.167). E é sobre isto, tomando como exemplo o caso emblemático da prisão do ouvidor da comarca do Rio das Velhas por crime de inconfidência, de que trata a terceira e última parte, “Tensões e conflitos: a época de Pombal e a inconfidência de Sabará”.
Com a ascensão do Marquês de Pombal após o terremoto que abalou Lisboa em 1755, a necessidade de concentrar as ações políticas em um só órgão concedeu preponderância ao Ministério das Secretarias de Estado. Nesse sentido, o Desembargo do Paço perderia a posição de núcleo da administração régia e assistiria a uma invasão de suas competências. No ultramar isto se refletiria em um controle maior dos oficiais régios, e os conflitos, até então comuns e tolerados, tornaram-se alvo do regalismo pombalino. O esforço em construir um governo centralizado e homogêneo resultou em uma verdadeira caça às bruxas, alijando do poder aqueles que não estivessem afinados com a política de fidelidade do Marquês. O Tribunal de Inconfidência assumiu um papel relevante na perseguição e punição aos vassalos infiéis. Foi este o caso do ouvidor José de Góes que assumiu o cargo de ouvidor em uma época de inúmeros debates sobre a arrecadação do quinto real.
Uma representação escrita ao monarca em 1775 denunciaria as relações de interdependência que envolviam alguns homens bons da comarca e o ouvidor, acusado de blasfemar contra Pombal. Iniciou-se então o desenrolar de uma rede trançada pelos poderes locais, cuja análise se constitui o cerne da discussão do livro. Atallah demonstra que em Sabará àquela época existiam redes de clientela que colocaram em lados opostos dois grupos constituídos pelos principais da terra. A acusação de crime de inconfidência que recaiu sobre José de Góes estava inserida na trama de uma desse redes que tinha raízes bem mais profundas. Dessa vez pesou o jugo controlador da monarquia administrada pelo Marquês de Pombal, representado pelo Tribunal de Inconfidência. O ouvidor virou inconfidente. A infidelidade ao novo ministério foi punida para que servisse de exemplo.
O instigante trabalho de Atallah abre inúmeras possibilidades e, por conseguinte, permite vários debates: a dificuldade em colocar o interesse do Estado acima dos interesses privados, a ideia de Viradeira, da qual a autora refuta, pois “acreditamos que os processos de transformação no percurso da história são lentos e de complexa assimilação” (p.252), a propagação do reformismo, tema que é comumente relacionado ao da identidade portuguesa e ao da decadência, dentre outros. Diante do ambiente em que se deflagraram os acontecimentos em Sabará, circunscrito em um processo mais amplo de transformação das relações entre a monarquia e seus súditos, capaz de revelar tensões e conflitos decorrentes do seu funcionamento, a autora conclui que a Inconfidência do Sabará foi um produto dos embates entre a tradição, traduzida na relutância dos oficiais do Desembargo em acatar as novas diretrizes, e a tentativa de modernização das estruturas jurídicas. Resenha recebida em 04/12/2018 e aprovada para publicação em 21/10/2019
Notas
2. Álvaro de Araújo Antunes. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da história da justiça na América Portuguesa. Revista de História, São Paulo, nº169, p. 21-52, julho/dezembro 2013; Álvaro de Araújo Antunes. Prefácio. In: Maria Fernanda Bicalho, Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Isabele de Matos Pereira de Mello (orgs.). Justiça no Brasil colonial: agentes e práticas. São Paulo: Alameda, 2017.
3. Esta tradição historiográfica tem no paradigma da conquista soberana seu modelo interpretativo. Nele, a colonização, apresentada como um embate entre raças conquistadoras e conquistadas, pressupõe a legítima vitória da civilização europeia, a organização do mundo colonial conforme seus recursos materiais e espirituais, e a incorporação de elementos culturais dos grupos subjugados. Esta tradição historiográfica é devedora dos relatos das Minas setecentistas por seus contemporâneos, responsáveis por consolidar “o tema da afetação da gente dos sertões mineiros” e influenciar as interpretações posteriores. Atallah tem o cuidado em não conduzir esta discussão para uma dualidade ordem-desordem, seu caminho é o de reforçar a negociação. Para maiores informações sobre o paradigma da conquista soberana: Marco Antonio Silveira. Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas. Conquista e soberania nas Minas setecentistas. Varia Historia, Belo Horizonte, nº25, jul/01, p.123-143.
Milena Pinillos Prisco Teixeira – Mestranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista CAPES. E-mail: milena_pinillos@yahoo.com.br
ATALLAH, Cláudia Cristina Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2016. Resenha de: TEIXEIRA, Milena Pinillos Prisco. Entre o Direito e a Justiça: ecos da reforma pombalina na administração da justiça na comarca do Rio das Velhas (1720- 1777). Cantareira. Niterói, n.31, p. 92- 96, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]
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