Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735 – 1777) | Ana Paula Pereira Costa

Os trabalhos que tem como objeto de pesquisa os “militares” ou as “instituições militares” tem ganhado cada vez mais espaço no meio historiográfico brasileiro das últimas décadas, consolidando-se como um importante campo de estudos. Contudo, as análises sobre essa temática ainda sofre certa resistência por parte da comunidade acadêmica nacional. Alguns dos motivos que levam os pesquisadores a não enveredar por essa área estão relacionados com a intervenção e a participação dos membros dessas instituições na organização política do Estado brasileira ao longo de sua história republicana (como, por exemplo, o golpe de Estado que pôs fim ao regime monárquico imperial e proclamou a República em 1889; o período ditatorial varguista, também apoiado por setores das forças armadas, conhecido como “Estado Novo” e a recente experiência da Ditadura Civil-Militar de 1964-1985).

Também pode se relacionar a escassez de análises sobre esse objeto específico à compreensão que alguns historiadores ainda possuem em relação à chamada “História/Historiografia Militar”, cuja descrição é comumente associada a uma história factual, sem problemáticas, limitando-se apenas a descrever e narrar determinadas batalhas bem como a vida dos “grandes chefes militares”. Em suma, uma história que estaria relacionada com a chamada História Política praticada, sobretudo, ao longo do século XIX até meados do século XX.

Entretanto, com o processo de renovação da historiografia de uma maneira geral ocorrido a partir da década de 1970, vários campos da História passaram a adotar novas concepções oriundas de outras disciplinas, permitindo que gêneros até então marginalizados pudessem voltar a figurar entre as principais produções historiográficas, como foi o caso da História Política e da Militar. As novas abordagens feitas pelos historiadores nessas áreas do saber deixaram de lado as narrativas sobre figuras ilustres e os atos do Estado passando a analisar questões relativas ao imaginário político, a cultura dos sujeitos históricos analisados, a mentalidade de determinada entre outras questões. O objetivo era compreender melhor determinadas ações e atitudes dos indivíduos estudados.

O estudo realizado pela autora Ana Paula Pereira Costa, tema da presente resenha, propôs uma interpretação pautada nas novas premissas teóricas e metodológicas da renovação historiográfica comentada logo acima. Seu trabalho consistiu no estudo das chefias militares dos corpos de Ordenança na Capitania de Minas Gerais no século XVIII. A autora desenvolveu uma pesquisa bastante interessante sobre os “perfis” dos oficiais superiores de tal instituição a partir da compreensão das estratégias desenvolvidas pelos mesmos para ascender hierarquicamente no oficialato da força.

Tais estratégias relacionavam-se com a ocupação de determinados cargos na administração colonial, especialmente aqueles ligados as câmaras municipais e os da justiça régia; a formação de alianças com a elite colonial local e a prestação de “serviços” ao Rei para o desenvolvimento do processo colonizador. Ao empreender sua análise, a autora vai descrevendo os aspectos políticos e socioculturais do Ancien Régime português, que se fizeram presentes nas petições dos oficiais ao exigirem “mercês” do soberano pelos serviços prestados e nas demonstrações públicas de ostentação e opulência que os caracterizavam como a “nobreza da terra”.

O livro está divido em três capítulos. O primeiro apresenta a organização dos Corpos de Ordenanças em Portugal e no ultramar, especialmente as diferentes legislações que regulamentaram a existência dos mesmos, desde sua criação até o século XVIII, período em que se concentra a análise empreendida pela autora.

No segundo capítulo, Ana Paula Pereira Costa utiliza-se de diferentes tipos de fonte, disponíveis de instituições como o Arquivo Histórico Ultramarino e a Casa Setecentista de Mariana (fontes essas que compreenderam cartas de patente, testamentos e inventários post mortem, fés de ofício [1] e as petições enviadas para o reino para a obtenção de diferentes tipos de “mercês”), para traçar um perfil socioeconômico dos oficiais estabelecidos na capitania de Minas Gerais no intuito de compreender como se processou a inserção desses atores históricos na sociedade colonial.

Por fim, no terceiro capítulo a autora centrou sua atenção em casos específicos de alguns oficiais para compreender as estratégias empreendidas pelos mesmos no sentido de conseguir assumir os postos no oficialato das companhias de Ordenanças, estratégias essas que iam desde o estabelecimento de relações matrimoniais com determinados membros das elites locais e de relações de compadrio com os segmentos menos favorecidos da sociedade colonial.

Em relação ao primeiro capítulo é interessante destacar a apresentação feita pela autora em relação às sucessivas modificações na organização das Ordenanças, que se estenderam do século XVI ao XVIII. Ana Paula Costa argumenta que a criação dessa milícia [2] esteve ligada, desde seu início, com a administração local, pois as Câmaras Municipais eram responsáveis por parte do processo de eleição dos oficiais superiores da força, como os Capitães-Mores, Sargentos-Mores.

Essa ligação também esteve presente na organização da força na América Portuguesa, mas com o tempo as Câmaras foram perdendo parte do controle que detinham sobre a organização da milícia, por exemplo, na determinação de 1689 em que uma carta régia determinava que os governadores devessem prover os postos de oficias tanto nas Ordenanças quanto nos corpos de Auxiliares; a lei de 1749 em que o posto de capitão-mor passou a ser vitalício – até então era um posto eletivo (e a “Provisão das Ordenanças” de 1758 que extinguiu os cargos civis de meirinhos e escrivães das companhias) que eram ocupados por membros das Câmaras.

Outro ponto explorado pela autora está relacionado ao fato das unidades das Ordenanças terem sido designadas pelo nome de seus comandantes, o que segundo a Ana Paula Costa corrobora para as afirmações de outros trabalhos sobre a questão de que a presença da Metrópole na Colônia se fazia através da constituição de fortes poderes locais que monopolizavam, em forma de patrimônio pessoal, os cargos administrativos no ultramar e se constituíam enquanto representantes diretos da Coroa.

Todavia, há um ponto discutível na análise empreendida pela autora. Para Ana Paula Costa à preocupação metropolitana em assegurar a ordem na Capitania de Minas Gerais, tanto para evitar o contrabando dos minérios produzidos quanto para garantir a cobrança dos impostos estipulados pela Coroa, além da prevenção de revoltas, sobretudo dos escravos e da população pobre livre, foi um fator essencial para que em Minas colonial as tropas de Ordenança terem tido uma “precoce” especialização policial em suas atividades, diferentemente do que ocorria em outras partes da Colônia.

Trabalhos, que também constam na bibliografia utilizada pela autora, sobre as forças milicianas de Portugal presentes em outras partes da América Portuguesa demonstram que a especialização policial de tais forças foi um fenômeno comum em todo o território colonial, pois a preocupação com o controle da população cativa, autóctone e dos setores tidos como “desclassificados” esteve presente em todas as Capitanias, o que leva a considerar que os corpos de Ordenanças de Minas Gerais não se constituíram como uma particularidade dentro desse sistema. Ainda nesse sentido é importante ressaltar que as atividades contemporaneamente designadas como “policiais” eram exercidas por todas as forças que compunham a estrutura militar da Coroa portuguesa, o que contribui para problematizar e questionar a afirmação feita pela autora.

As reflexões realizadas no segundo capítulo do livro foram bastante ilustrativas no sentido de caracterizar as novas abordagens em relação ao campo da História Militar. Nele a autora analisou como se dava o processo de escolha dos sujeitos para ocuparem o oficialato nas ordenanças, sendo que sua análise não se pautou numa mera narrativa da vida dos sujeitos e de suas atividades sem conexão com o sistema de valores do Ancien Régime português. De acordo com a autora, os aspirantes ao oficialato das Ordenanças deveriam possuir determinados valores que eram aceitos e reconhecidos socialmente, tanto na colônia quanto na metrópole, como “qualidades” necessárias para ocupar as chefias militares e os cargos administrativos na colônia. Um ponto importante destacado pela autora foi o de contestar uma análise da historiografia que argumentava a disputa entre os poderes locais, especialmente os dos chefes militares, e a Coroa.

Em sua abordagem, que se baseou principalmente nas ideias de Antonio Manuel Hespanha (autor que propôs compreender a sociedade portuguesa e de seus domínios coloniais a partir de uma concepção corporativista ), ela sugere e demonstra que tais chefes militares não se opunham as diretrizes da Metrópole, mas as adaptavam conforme suas necessidades com o intuito de ascenderem socialmente através do reforço de suas “qualidades”.

Para a autora a “qualidade” do indivíduo poderia ser acumulada através do exercício de vários cargos administrativos, como aqueles ligados as Câmaras Municipais – escrivão, meirinho, vereador – e os da Justiça – Juiz de Órfãos, Juiz Ordinário – sendo isso bastante favorável ao indivíduo na hora de pleitear um posto no oficialato tanto das Ordenanças quanto nos corpos de Auxiliares. Além disso, a autora destacou que os sujeitos portadores de “qualidade” deveriam dar mostras públicas da mesma, ostentando vestimentas luxuosas aparamentadas com metais preciosos, contribuir nas subvenções publicas e “viver nobremente”, ou seja, com fartura de alimentos e de objetos que proporcionassem o conforto dos mesmos.

Outro ponto destacado no estudo relacionava-se a questão da riqueza dos sujeitos analisados. Tal elemento era um dos “pilares” de sustentação da “qualidade”, pois isso os permitia viver “nobremente” e, principalmente, auxiliava nas petições tanto para postos nas Ordenanças quanto para obtenção de mercês, uma vez que as posses afirmavam a capacidade para o desempenho dos serviços inerentes aos cargos administrativos e militares muitos (como, por exemplo, as condições necessárias para armar seus comandados e desempenhar as funções de oficial da melhor forma possível sem a necessidade imediata de recursos oriundos dos cofres reais ou das Câmaras).

Para os casos em que se buscavam benesses reais o argumento era de que o “vassalo D’El Rey” tinha contribuído para o processo colonizador a partir de sua própria fazenda e que por isso deveria ser recompensado. Desse modo, a circulação de tais indivíduos por diferentes cargos administrativos lhes permitia não só inserir-se nos quadros da elite local como também estabelecer redes de sociabilidade que lhes garantissem ganhos simbólicos e materiais que aumentavam e legitimavam suas “qualidades”.

Por fim, no último capítulo, a autora se deteve mais especificamente na trajetória de alguns indivíduos e a partir disso alternou seu foco de análise entre visões micro/macro (o contexto local e a dinâmica do Império Português). Como no capítulo anterior a autora trabalhou sobre informações contidas em inventários, testamentos, documentação eclesiástica referente aos matrimônios, documentos relativos aos cargos ocupados, número de filhos e suas respectivas ocupações.

Através do cruzamento dessas informações a autora pode compreender de forma mais ampla as estratégias desenvolvidas pelos sujeitos com o intuito de maximizarem suas possibilidades de ascensão social. Uma das principais questões levantadas pela autora se referiu à construção, manutenção e perpetuação das elites coloniais. Nesse sentido a ocupação de determinados postos na administração colonial, além de estabelecer relações que poderiam levar ao aumento do patrimônio do indivíduo, possibilitava acordos matrimoniais entre os membros da elite com benefícios para os grupos familiares envolvidos, reforçando assim suas “qualidades” perante o restante da sociedade.

Ainda de acordo com Ana Paula, para evitar que o patrimônio acumulado por uma determinada família se fragmentasse, o que consequentemente diminuiria o nível de ostentação pública e assim a “qualidade” da família, era comum a existência de casamentos endógenos e da prática de distribuir os herdeiros em carreiras que não comprometessem o patrimônio conquistado. Desse modo era comum a prática de direcionar alguns dos filhos/filhas a ingressar na vida eclesiástica para evitar que os mesmos viessem a constar entre os herdeiros e ainda reforçavam o status social do grupo familiar que passava a contar com um de seus membros no meio eclesiástico.

A última reflexão empreendida no livro versou sobre a relação desses chefes militares com os segmentos menos favorecidos da sociedade do período, tanto a população pobre livre quanto alguns libertos e escravos. Nessa questão a autora se utilizou de alguns dados encontrados tanto nos inventários, quanto nas petições enviadas ao Rei (petições essas que não eram feitas apenas pela elite colonial, mas também por libertos que pleiteavam o posto de capitão do mato) observando que para poderem exercer e se fazerem reconhecidos enquanto detentores de status social diferenciado, tais chefes tinham de negociar constantemente com essa população.

Mesmo sendo fruto de uma relação desigual entre as partes, às negociações possibilitavam vantagens para todos os envolvidos. Ao demonstrar essas relações a autora reforça seu argumento de crítica a determinadas produções historiográficas que afirmavam que os chefes locais exerciam de maneira despótica seus interesses em relação a tais segmentos ou mesmo contra a presença das instituições régias.

Como conclusão da análise do livro, trata-se de um trabalho bem desenvolvido, que abordou as questões propostas de forma bastante positiva. É um trabalho com uma consistência empírica sólida o bastante e que colabora na sustentação dos argumentos construídos no decorrer dos capítulos. Desse modo o livro é uma importante contribuição para a historiografia brasileira como um todo e especialmente para o campo da História Militar.

Notas

1. As chamadas fés de ofício eram os documentos que atestavam o período e os serviços prestados pelos integrantes das forças militares no período colonial. Através desse documento a Coroa poderia determinar, de forma mais precisa, quais oficiais deveriam ser promovidos a partir dos critérios de antiguidade nas suas respectivas forças e da relevância dos “serviços” prestados a causa real. Do mesmo modo, as fés de ofício serviam ainda como uma maneira eficaz de regular a concessão de “benesses reais” e o ingresso de indivíduos nas ordens militares do Reino de Portugal.

2. O termo “milícia” designava, no período que compreende o recorte temporal estabelecido pela autora, todos os tipos de forças não profissionais pertencentes à estrutura militar das diferentes formas de Estado até então existentes (republicano, absolutista, etc.).

José Airton Ferreira da Costa Júnior – Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Integrante do grupo de pesquisa SEBO (Sociedade de Estudo e Cultura do Brasil Oitocentista) cadastrado no CNPq.


COSTA, Ana Paula Pereira. Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735 – 1777). Rio de Janeiro, Editora FGV, 2014. Resenha de: COSTA JÚNIOR, José Airton Ferreira da. Fazer-se Comandante na Colônia. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.4, n.7, p. 204-211, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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