Coletivos Indígenas na América: Mestiçagem e Etnogênese / Aedos / 2012
A revista Aedos, em sua edição nº 10, tem o prazer de apresentar o Dossiê Temático “Coletivos Indígenas na América: Mestiçagem e Etnogênese”, e provocar o debate sobre a questão indígena fazendo coro a um número expressivo de estudos que tiveram início na década de 90 no Brasil. Na leitura do passado a partir do presente situa-se o historiador comprometido com seu lugar social e subjetividades, atento aos movimentos sociais (especificamente aqui os indígenas) que ensejam e dão forma à nossa discussão. Ao historiador cabe a construção da trama, o enredo, inferindo na maior parte das vezes devido às lacunas documentais ou vazios, adentrando espaços marcados pelo silêncio.
Os artigos apresentados no Dossiê atestam a vitalidade dos grupos indígenas, demonstrando sua capacidade de intervir e amenizar o impacto proveniente das relações interétnicas que de alguma forma interferem / iram no cotidiano ameríndio. Os autores tratam de desconstruir algumas categorias que durante um longo período sustentaram o debate historiográfico em relação aos povos indígenas, como aculturação, assimilação e resistência (no sentido de peremptoriamente negar o “outro”), e problematizar outras como invisibilidade, territorialidade, mestiçagem, etnogênese e etnificação.
Teorias sobre aculturamento e assimilacionismo das sociedades ameríndias ao Estado-nação fracassaram diante da interlocução ativa destes grupos. Intelectuais como Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro viram-se obrigados a fazer um “mea culpa” admitindo sua singularidade e protagonismo enquanto sujeitos históricos, e a capacidade de marcar através de discursos uma distintividade étnica e cultural.
Cremos ser este o desafio dos “novos” tempos. Estávamos acomodados em certezas que garantiam um rumo “tranquilo” para o Estado-nação brasileiro. Políticas homogeneizadoras abriam caminho para um futuro em que as diferenças continuariam sendo “varridas para baixo do tapete” e a noção de coesão de uma raça, a brasileira (mestiça, a branca sobrepujando as demais) estaria em perfeita sintonia (de civilidade) com as nações desenvolvidas. O Cacique Kaingang Danilo Braga, mestrando em História pela UFRGS deixa claro, em entrevista feita por André Anzolin, a urgência do investimento pelos próprios indígenas em “dar a sua versão” e em contrapor a “essência da política brasileira” de que não haveriam mais índios no século XXI: “A ideia é escrever a nossa versão e colocar mais elementos nossos, em cima desses estudos já existentes, aprofundá-los com a nossa visão. A ideia principal, também, é escrever na língua (Kaingang).” Vê-se uma maneira de questionar verdades naturalizadas de que os indígenas se acomodariam no passado seguro do mito fundante da nação; estariam, pois, todos mortos. Seriam invocados apenas em discursos inflamados pelos nossos políticos a fim de legitimar uma identidade única na construção e consolidação da brasilidade.
Nosso olhar para o passado é míope e viciado; um doble bind de acordo com Alcida Ramos1 em relação aos indígenas. Compromete assim a maneira como enxergamos o presente e o vivenciamos. Nesse instante, grupos de indígenas se organizam para cobrar do Estado “menos retórica” e mais ações afirmativas. Exigem uma efetiva política pluriétnica e cultural, pois, “Embora a Constituição de 1988 garanta aos indígenas o direito de permanecerem índios em termos culturais, sociais e territoriais, em nenhum momento ela explicitamente declara ser o país uma nação pluriétnica.”2 Isto é, não há garantias de que novas terras serão demarcadas ou diminuirão os embates com determinados setores da sociedade. Segundo o nosso entrevistado, Danilo Braga, ainda há muita “teoria” e pouca vontade política: “Em muitas palestras, mesmo procuradores, juízes, ao apresentarem a legislação dizem que ‘está muito bonito’; o Brasil, inclusive, ganha prêmios porque tem uma legislação para os indígenas muito avançada, no papel. Mas, se não houver movimentação, se não for feita uma articulação, pressão, as leis não são cumpridas.”
Mesmo admitindo a capacidade de intervir e forjar estratégias e táticas pelos indígenas no enfrentamento de uma “ordem” constituída, não se pode menosprezar as relações de poder assimétricas, muito menos a violência “real” conduzida contra essas populações ao longo dos tempos. Sintonizados a estes movimentos sociais, que destacam interlocutores engajados e dinâmicos com o objetivo de “dar visibilidade” às suas demandas, situam-se os artigos a seguir. Sai o índio passivo e submisso, entra em ação o índio articulado nas suas reivindicações, assumindo a condição de sujeito histórico e apresentando respostas criativas na administração das tensões com outras alteridades.
Em “1863: o ano em que um decreto – que nunca existiu – extinguiu uma população indígena que nunca deixou de existir”, a historiadora Ticiana de Oliveira Antunes analisa o processo de invisibilização dos Payacú no Ceará e a contrapartida indígena, instaurada vinte e sete anos após o decreto oficial que “extinguiu-os”, “comprovando” sua identificação com a terra herdada pelo rei, ainda no século XVII.
A autora maneja bem o diálogo entre presente e passado. Sua abordagem centra-se no pleito indígena insurgindo-se contra o Relatório Provincial de 1863 que tratava de dá-los como extintos. Parte do ano de 2012 e habilmente nos mostra os Payacú historicizados por eles mesmos, questionando o peso da “pena de um gestor público” que os “apagou”, e requerendo o reconhecimento de que os mesmos “foram sujeitos atuantes na dinâmica social.”
No artigo seguinte, “Diz o índio…”: Políticas indígenas no final do XVIII”, o historiador Rafael Rogério Nascimento Santos trata de apresentar estratégias e ações desenvolvidas “pelos indígenas do Grão-Pará em busca de seus próprios interesses frente os limites que o contexto da segunda metade do século XVIII lhes impôs.” O artigo problematiza a condição de vítimas ou algozes dos índios e destaca que os mesmos engendraram maneiras engenhosas de se reapropriarem e ressignificarem os códigos culturais europeus. Souberam, no caso específico de Grão-Pará, utilizar dispositivos legais para moverem-se nos meandros do cotidiano da sociedade a fim de integrarem-se, uma ação política calculada segundo seus interesses e perspectivas. Vale dizer, “sobreviver o melhor possível no mundo colonial”.
O historiador Adriano Toledo Paiva, em “A Povoação de Qualidade Índica: uma abordagem da identidade no aldeamento dos índios Cropós e Croatos em Minas Gerais” aborda o processo de “resgate” da “historicidade dos ‘povos conquistados’ em meio às representações e ações dos empreendimentos de conquista.” Investigando a configuração do espaço em que os índios se articulam numa ação política de reconhecimento, por uma “qualidade índica”, o autor estabelece uma conexão entre territorialidade e identidade indígena, revelando, a partir dos embates suscitados, a complexidade “das redes de poder na comunidade paroquial”.
Portanto, os artigos aqui propostos representam uma aproximação entre a academia e os movimentos indígenas, e apontam caminhos de reflexão muito além de pensarmos os indígenas enquanto vitimas ou dizimados, mas aptos a negociar sua inserção e participação efetiva na construção da sociedade a qual pertencem. É isso o que almejam quando se utilizam da escriturária “ocidental”, ou mesmo ao respeitar os trâmites burocráticos, ou reconhecer nas instituições dos “brancos” a forma de legitimar suas demandas. Não é isso o que o kaingang Danilo Braga espera? Ou o que os índios das fontes querem nos dizer?
Além dos artigos do Dossiê Temático e da entrevista já citada, esta edição inclui cinco artigos, que demonstram a diversidade de temas sempre almejada pela Revista AEDOS. Thiago Ribeiro Dantas analisa a participação da Igreja Católica de Pernambuco na Guerra dos Mascates (1710-1711); Vinicius Pereira de Oliveira examina as formas pelas quais os indivíduos tornavam-se marinheiros da Armada Imperial brasileira no século XIX; Ticiano Duarte Pedroso discorre sobre os processos que envolvem a criação da primeira empresa de transportes urbanos da cidade de Rio Grande no século XIX; Mayquel Eleuthério faz uma análise da representação de Joana d’Arc no poema La Pucelle d’Orléans, de Voltaire, e em outros escritos de sua autoria; e Lauro Manzoni Bidinoto busca analisar de que forma as duas principais biografias de Dámaso Antonio Larrañaga (1771-1848) foram influenciadas pela tese equivocada de que a “nação uruguaia” estaria prefigurada desde os primeiros movimentos revolucionários, ou até mesmo antes deles.
Em seguida, esta edição apresenta três resenhas: A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, resenhada por Walter Luiz Andrade Neves; Uma arqueologia da intencionalidade debretiana, resenha da obra de J.-B. Debret, historiador e pintor: a viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839), resenhada por Eduardo Wright Cardoso; O deboche caipira nas telas do cinema em “Caipira sim, trouxa não”, resenhada por Catarina Cerqueira. Há também uma resenha na seção “Resenha de Clássico”: Os Gostos e a Dinâmica da Distinção Social, de Pierre Bourdieu, resenhada por Marisângela Terezinha Antunes Martins.
Por fim, aproveitamos para agradecer aos colaboradores da revista. O auxílio e disponibilidade de autores e avaliadores são fundamentais para a consolidação da Aedos como um espaço frutífero para o debate acadêmico no campo da História.
Notas
1. RAMOS, Alcida Rita. O pluralismo brasileiro na berlinda. Etnográfica, Lisboa, v. VIII, n.2, p.165-83, 2004.
2. Idem, p.172-3.
Conselho Editorial
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Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.4, n.10, jan / jul, 2012. Acessar publicação original [DR]