Arquivos pessoais / Revista do Arquivo Público Mineiro / 2009

A escolha do tema deste Dossiê da Revista do Arquivo Público Mineiro é, em si mesma, um acontecimento a ser registrado, por algumas razões que merecem destaque logo no início desta apresentação – que se quer breve e modesta. A primeira é remarcar que a questão dos arquivos pessoais está sendo ressaltada por um periódico editado por um arquivo público de grande prestígio e visibilidade nacional. A segunda, e talvez mais importante, embora possa parecer óbvia a muitos leitores, é tratar de arquivos pessoais como um tema nobre e estratégico para se pensar o campo arquivístico e historiográfico, não só no Brasil.

Essas razões / observações já nos remetem diretamente ao conjunto de textos aqui apresentado, que, a meu ver, tem como objetivo principal realizar uma afirmação tão simples como polêmica: os arquivos pessoais precisam ser reconhecidos como legítimos arquivos pela teoria arquivística e, de posse de seu lugar, merecem e exigem reflexões teóricas que se beneficiem de um diálogo interdisciplinar crescente na área das ciências humanas e sociais, em particular. Aliás, apenas com tal perspectiva, seria possível entender que os responsáveis pela revista convidassem uma historiadora de ofício para a empreitada de organização do Dossiê. Nesse sentido, entendo que o resultado dá uma contribuição fundamental ao oferecer subsídios bibliográficos à esfera do conhecimento em que a produção é, ainda, bastante escassa e fragmentada.

Paradigmas

Um bom ponto de partida para situar o teor do Dossiê para os leitores é chamar sua atenção para um fato fundamental: até muito recentemente, internacionalmente, só se atribuía o estatuto de arquivo a um conjunto de documentos de natureza pública, vale dizer, que tivessem sido produzidos e acumulados por instituições públicas. Em muitas situações, como os estudiosos do campo já reconhecem de forma consensual, mesmo estando presente em instituições arquivísticas, a documentação pessoal, ou não era reconhecida como um arquivo, ou, em melhor hipótese, era entendida como um arquivo menor, digamos, de segunda classe, ante o que seria um “verdadeiro” arquivo.

Essa imprecisão do estatuto dos arquivos pessoais no campo arquivístico é um dos motivos básicos para a carência de reflexões sobre a natureza teórico-metodólogica de tal documentação, bem como qualifica o desafio de fazê-las. A afirmação desse tipo de material como arquivo, que pode parecer banal, está imbricada, certamente, com uma série de grandes transformações no campo da história, das ciências sociais, da teoria literária e, naturalmente, da teoria arquivística. De forma econômica, pode-se lembrar que o “retorno” dos indivíduos à história e a importância que passa a ser dada à sua subjetividade, entendida como seus valores, crenças, sensibilidades e perspectivas cognitivas, são fenômenos das últimas décadas do século XX, associando-se, de maneira particular, ao que se tornou conhecido como a história política e cultural. Uma mudança de paradigma que rejeita matrizes estruturalistas de vários tipos, dialogando com as grandes transformações que também ocorriam na sociologia e na antropologia. Uma mudança, vale destacar, que também é compartilhada no terreno dos estudos da crítica literária, no qual o texto passa a ser discutido “dentro” e “fora” dele mesmo, como objeto estético, não necessariamente autônomo, mas não necessariamente reflexo de qualquer realidade / contexto, fosse ela mais ou menos constrangedora em suas normas, inclusive as de linguagem.

Por isso, cito aqui uma passagem do artigo de Wander Melo Miranda, que contribui para o Dossiê, com o intuito de – com as palavras ditas no começo, já que uma apresentação é também uma forma de prefácio – orientar os leitores, invadindo o espaço de sua imaginação. Ele nos adverte, bem no espírito dessas novas possibilidades de interpretar quaisquer ações humanas, inclusive a da leitura, que: “Se atribuir sentido a um ‘texto’ é conectá-lo a outro, é construir um hipertexto, o sentido será sempre móvel, em virtude do caráter variável do hipertexto de cada interpretante – o que importa é a rede de relações estabelecida pela interpretação”.

Deseja-se, portanto, que este Dossiê possa se constituir em uma espécie de “grande texto” (ao qual as leituras de cada leitor se acoplará), podendo propiciar e estimular a construção de hipertextos, cujos sentidos serão sempre móveis, conectando e interpelando as questões e sugestões levantadas pelos autores sobre o tema dos arquivos pessoais. Estes mesmos podem ser entendidos como um processo de construção de sentido para uma vida, como uma escrita de si, principalmente, mas não exclusivamente, quando o autor do arquivo pessoal é também seu ator por excelência. Algo que nem sempre acontece, como este Dossiê remarca tão bem, ao analisar a feitura de um arquivo cuja acumulação é resultado da atuação de duas mulheres que querem registrar / guardar um episódio paradigmático da vida de um “outro”, que seria o titular de um arquivo que não acumulou.

Diversidade de perspectivas

Os artigos aqui reunidos tocam em pontos diversos e nevrálgicos do debate e das experiências daqueles que lidam com arquivos pessoais. As formações profissionais dos autores são diversas, havendo especialistas do campo arquivístico, mas também uma cientista social, um historiador e um especialista em teoria da literatura, como se disse. Todos, entretanto, vivenciam à sua maneira muitas questões que o trato com arquivos pessoais impõe e que estão sendo aqui generosamente compartilhadas.

Os dois primeiros artigos respondem a uma demanda da organizadora, preocupada em disponibilizar reflexões que aceitassem fazer uma incursão metodológica no terreno dos arquivos pessoais. Ana Maria de Almeida Camargo, cujo recente livro, em coautoria com Silvana Goulart, é um marco na bibliografia sobre o assunto no Brasil,[1] contribui com sua autoridade de especialista em teoria arquivista para jogar mais água no moinho do estatuto arquivístico desses conjuntos documentais, o que se explicita no próprio título escolhido. Fazendo isso, sobretudo a partir da vivência do trabalho com os documentos do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, ela acentua a necessidade de um tratamento que reconheça a especificidade desse processo de acumulação, mas não abre mão dos critérios consagrados pela teoria arquivística. Essa é a grande razão pela qual defende a centralidade do método funcional, que prioriza o contexto de produção do documento e a “função” que ele denota com relação às atividades do titular do arquivo. Mesmo admitindo a complexidade inerente à compreensão dessa “funcionalidade” dos documentos pessoais – de um lado, porque sua produção e acumulação não seguem parâmetros e rotinas institucionais, de outro, porque podem embaralhar o institucional e o pessoal –, a autora remarca a possibilidade e a necessidade de não se minimizar tal preceito de orientação.

Em diálogo com a literatura arquivística e sem pretender ensinar missa a vigário, como assinala, Luciana Heymann, doublé de antropóloga e arquivista pelos longos anos de trabalho no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, investe na proposição de alguns “deslocamentos” no interior do pensamento arquivístico que seriam “bons para pensar” a questão dos arquivos pessoais. Nesse caso, é fundamental chamar a atenção do leitor para a proposta que encaminha, tendo como suporte a apreensão das diferenças, nos processos de acumulação documental, entre arquivos institucionais e pessoais. Para a autora, a dicotomia que traz rendimento e, na verdade, faz sentido não é aquela, mais costumeira, entre arquivos públicos e privados e, sim, uma outra, que pelas práticas experimentadas entre os que lidam com arquivos distingue entre arquivos pessoais e arquivos institucionais, estes podendo ser públicos ou privados.

Com esse “deslocamento” de fundo como estímulo para um novo enquadramento de uma série de problemas operacionais, ela identifica distintas configurações documentais nesse tipo de arquivo, ressaltando os nexos que unem os documentos do arquivo entre si; os que unem os documentos às atividades que os originaram (suas funções); e também, acrescentando, os que unem os documentos ao titular do arquivo e que seriam particularmente significativos, porque frutos de intencionalidade, exatamente no caso dos arquivos pessoais. Dessa forma, sem descuidar da centralidade do método funcional, aponta a existência de “áreas cinzentas” no que diz respeito ao enquadramento por atividade / função de uma gama de documentos presente nos arquivos pessoais e que demandariam flexibilidade e respeito, em doses prudentes, para se trabalhar a verdade, em campo novo e aberto.

Ainda na trilha de uma reflexão sobre arquivos pessoais, o texto de Daniele Cavaliere Brando e Ana Lúcia Merege toca num ponto extremamente interessante ao se ocupar da presença dos documentos do político e diplomata mineiro Afrânio de Melo Franco na Biblioteca Nacional. Não sendo uma instituição arquivística, a Biblioteca, como se pode verificar pelo relato, possui um conjunto expressivo de arquivos pessoais, muitas vezes ignorados pelo público, mesmo o especializado, em razão de não ser associada a tal tipo de acervo. Contudo, esse fato tem tudo a ver com a polêmica natureza dos documentos pessoais e sua trajetória no campo da arquivologia. Se, por muito tempo, não eram reconhecidos como arquivos “de verdade”, não nos deve causar espécie o fato de terem sido encaminhados a bibliotecas públicas, que acabavam por serem depositárias, em suas seções de manuscritos, de conjuntos documentais desse tipo. O caso dos papéis de Afrânio de Melo de Franco não é absolutamente único, nem dentro da Biblioteca Nacional, nem em outras bibliotecas do país e do mundo. Nesse sentido, o Dossiê espera alertar os leitores para tal fato, convidando-os a atentar para esses ricos fundos documentais, muitas vezes pouco utilizados por desconhecimento.

Arquivos de Minas

Ao mesmo tempo, e não casualmente, o Dossiê quis dar destaque a artigos que se voltassem para exemplos que contemplassem arquivos pessoais de mineiros, já que se trata de uma revista de instituição arquivística de Minas Gerais. Por isso, à categoria profissional dos políticos, bem ilustrada por um Melo Franco, alia-se outra muito presente nesse gênero de arquivo: a documentação de escritores. Como é fácil perceber, são o prestígio e reconhecimento públicos do titular do arquivo pessoal que, em muitos casos, mas não em todos, não só estimulam a ele ou a alguém próximo a iniciar o processo de acumulação, como igualmente facilitam sua acolhida em instituições, sejam elas arquivísticas ou não. Políticos e intelectuais, nesse caso, literatos e artistas de vários tipos, contribuem muito mais frequentemente com exemplos de arquivos pessoais do que os chamados “homens comuns”, que deixam suas marcas de memória através de uma escrita de si, presente em diários e correspondências, documentos nobres, aliás, de qualquer arquivo pessoal.

O artigo de Wander Melo Miranda é um brinde e uma incursão ao território dos arquivos de personalidades literárias, pois discorre sobre o Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais. Abrigado em uma instituição de ensino e sob a direção de pesquisadores literários que desejam estimular, quer o gosto pela literatura no grande público, quer as pesquisas de especialistas em teoria literária, o acervo reúne livros, objetos e documentos pessoais. Entre estes, dois em especial merecem destaque no texto aqui apresentado: os manuscritos de escritores, a evidenciar a dimensão processual da escrita; e a correspondência, materializando a rede de sociabilidade que une e divide, ao mesmo tempo, os intelectuais, sendo o texto epistolar sempre capital para sua sensibilidade, para seu trabalho. Manuscritos e correspondência, cuja existência se vê ameaçada pelas novas práticas de escritura e leitura, inauguradas com o advento do computador.

O último artigo do Dossiê é de autoria do historiador Benito Bisso Schmidt e se constitui em um estudo de caso que põe em evidência, mais uma vez, os processos de produção e acumulação de um arquivo pessoal. No texto, o autor se debruça sobre a história do que é, hoje, o arquivo pessoal de Flávio Koutzii, um militante de esquerda preso pela polícia argentina nos anos 1970. Estamos, portanto, falando de um político, mas com características bem específicas, considerando o modelo mais conhecido pelo público em geral e também o mais presente quando se fala em construção de um arquivo pessoal. A militância política de esquerda, clandestina quando vivida em tempos de autoritarismo, não deixa espaço para a guarda de registros, aliás, até por segurança e proteção.

A história desse arquivo é, assim, pedagógica com relação às possibilidades de se pensarem as características dos arquivos pessoais. Nesse caso, ele resultou do investimento de tempo, trabalho e amor de duas mulheres que, intencionalmente e com objetivos políticos explícitos – lutar ela libertação do preso –, resolveram acumular documentos em torno da figura de um prisioneiro em especial. O processo de produção e acumulação de documentos pode ser visto, assim, como uma tática para se resistir à repressão e como um recurso para se lutar pela democracia. Não sendo fruto da decisão e ação de seu “titular”, o conjunto de documentos chega, primeiro, às mãos de seu “dono”, que se torna seu guardião após sua soltura e, a seguir, às mãos do historiador interessado em política e em arquivos. Esses poucos, mas substanciais elementos, são, como se diz, um prato cheio e quente para se pensar as múltiplas questões e possibilidades colocadas no campo arquivístico com a chegada dos arquivos pessoais.

Se este Dossiê puder colaborar para o avanço das discussões aí travadas, estará, a meu ver, desempenhando função relevante. O que espero, portanto, é que o leitor faça seus próprios nexos entre os artigos e entre eles e suas experiências como profissional e / ou pesquisador de arquivos. No mais, o tempo dirá.

Nota

1. CAMARGO, Ana Maria de Almeida; GOULART, Silva. Tempo e circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais (procedimentos adotados na organização dos documentos de Fernando Henrique Cardoso). São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2007.

Angela de Castro Gomes – Historiadora, pesquisadora e professora do CPDOC / FGV, onde coordena o programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. É professora titular de História do Brasil da UFF e organizadora do livro Escrita de si, escrita da História (Rio de Janeiro, Editora FGV, 2004).


GOMES, Angela de Castro. Apresentação. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v.45, n.2, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]

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