Pensar a constituição dos chamados Estados Nacionais têm sido uma preocupação constante nas análises historiográficas. A nação foi, enquanto produto do século XIX, uma construção orientada por traços comuns que a sustentavam, tais como a constituição de uma memória comum, de uma trajetória comum e de um porvir comum. Nesse sentido, estabelecer fronteiras entre o “nós” e o “eles” permitiu a consolidação de “comunidades imaginadas” – ainda que em graus variados para cada lugar -, seguindo a expressão usada no livro de Benedict Anderson para pensar o Estado Nação [2´]. Em um período onde as nacionalidades vêm sendo cada vez mais reivindicadas e os limites dos países ocidentais reafirmados, é interessante perceber o lugar destinado às fronteiras e sua ligação com a sociedade que as envolve.
A preparação deste número para a Revista Cantareira dedicado a um estudo que vislumbrasse uma história social das fronteiras tinha por objetivos trazer à cena os agentes sociais que viviam nesses espaços fluidos, indeterminados e por vezes confusos para os que nela transitavam. Nosso maior desafio foi pensar a historicidade do tema na medida em que, cada vez mais, a ideia de fronteira entre Estados Nação distintos têm se fortalecido diante de outras demandas sociais e econômicas como as ondas de imigração no continente europeu e as diferentes ações dos Estados para contê-las. As tentativas de impedir a entrada de imigrantes somadas à uma série de ações de proteção ás fronteiras nacionais têm sido noticiadas na imprensa nacional e internacional. Na era da Internet e do imediatismo das informações, os contornos mundiais vêm ganhando outras dimensões que podem atender a perspectivas e interesses variados, os quais muitas vezes estão associados a ideia de soberania – conceito formulado ao longo do século XVIII para abarcar a defesa dos interesses dos Estados Modernos, onde é possível destacar uma polarização entre a moral e a política para a constituição desta ideia [3]. Nesse sentido, é importante sublinhar que a constituição de espaços de soberania podem, ainda hoje, ser referendados como norteador fundamental para os Estados Nação; embora haja certo paradoxo com a integração e a união, destacadamente econômica.
Muitos jornais têm noticiado o impacto da entrada de estrangeiros na Europa. Esta, por sua vez, vem sendo interpretada como a maior crise de imigração ocorrida desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Países como Áustria, Hungria, Grécia, Espanha, Sérvia, Itália, Alemanha, França e Reino Unido se veem recebendo um número elevado de refugiados oriundos da Síria, de países africanos, da Turquia, entre outros lugares. Isso têm fomentado reações as mais diversas das autoridades e também da sociedade, dentre as quais podemos destacar: 1) a intensificação da segurança nas fronteiras, como no Canal da Mancha, e o uso de linhas de arame farpado numa cerca definitiva que separaria países como Sérvia e Hungria; 2) o aumento da força nas ações policiais e, por conseguinte, de ações de xenofobia nos mais variados estratos sociais e; 3) uma série de pedidos da Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de uma postura mais branda por parte das autoridades europeias em relação a estes refugiados [4].
A partir destas linhas de raciocínio, como podemos dar conta de uma realidade tão variada e distinta presente nos espaços fronteiriços? É importante frisar que não falamos apenas das fronteiras coloniais, reflexo do processo de colonização; mas também a constituição destes espaços na contemporaneidade e seus reflexos no que tange as políticas públicas e de assistência social. É nítido que os primeiros debates sobre o tema tiveram sua importância ao perceber a singularidade da fronteira, a qual não pode ser vista apenas enquanto uma linha imaginária que dividia o domínio de duas (ou mais) jurisdições distintas; mas também como um espaço de múltiplos significados cuja experiência precisava ser melhor interpretada e construída. O pensar a vida na fronteira recaía em, pelo menos, dois pólos: um sinalizava o papel do Estado diante das interações sociais, pensando o viés das instituições coloniais para melhor compreendê-las. Já o outro polo sinalizava a ação dos indivíduos frente a um mundo que lhes era hostil, onde predominava o desconhecido, o bárbaro – locus ideal aos chamados excluídos da sociedade [5].
Optamos por pensar este espaço de múltiplos significados através de análises interdisciplinares, na busca da apreensão de diversos elementos para a configuração deste espaço, contemplando questões políticas, culturais, econômicas, tanto dos tempos passados quanto dos tempos atuais. O primeiro artigo, intitulado “O nervo mais forte das fronteiras: dinâmicas sociais dos índios no Paraguai [séculos XVI e XVII]”, de Bruno Castelo Branco, busca mostrar a participação ativa dos povos indígenas da América Meridional nos processos de constituição destes territórios; destacando a ação dos mesmos enquanto força de trabalho através da mita e da encomienda, reiterando a importância de se abordar a “agência histórica indígena” numa perspectiva de negociação, e não somente dentro de uma leitura assimétrica da dominação no decorrer do processo de conquista e de colonização da América.
O segundo artigo, “As fronteiras sociais do nacionalismo alemão: Identidade nacional, etnicidade e os paradoxos da democracia alemã nos dias atuais” já nos remete a questões do tempo presente a partir da discussão sobre os paradoxos da identidade nacional alemã; a qual teve, ao longo de sua história, uma construção baseada num passado de glórias e de guerras. Num país atualmente multiétnico, “ser alemão” têm sido cada vez mais questionado por conta de questões econômicas, sociais e culturais que perpassam a realidade de outros países europeus – tais como a França e o Reino Unido – onde a presença de imigrantes, sobretudo muçulmanos, vem sendo polemizada e questionada.
Já no texto de autoria de Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior aparecem as complexidades das relações diplomáticas entre o Brasil e Guiana Francesa dentre fins do século XIX e inícios do século XX, tomando o espaço do Amapá como local de análise. A partir de publicações do jornal norte-americano Times, o então território do Amapá “surgia” num veículo de comunicação que objetivava retratar uma determinada visão dos fatos e que, por outro lado, acabou por contemplar experiências de outros agentes sociais que viviam naquelas regiões; estabelecendo conexões entre o Brasil, a Guiana Francesa e os Estados Unidos. A ideia de consolidar pesquisas que tratem de temáticas transnacionais nos coloca o desafio de se pensar a multiplicidade das ações e das reações na fronteira no gerenciamento de conflitos e no quanto os mesmos podem impactar a política e a diplomacia tanto no passado quanto em tempos recentes.
Por fim, o artigo intitulado “Vivendo na Bolívia, contudo trabalhando do Brasil: uma discussão acerca de convivência(s) e migrações na Zona de Fronteira Brasil / Bolívia”, envereda por uma questão fundamental nos espaços de fronteira: a relação das pessoas com o trabalho. Num espaço onde uma das principais atividades econômicas é o comércio, constituir determinadas interações sociais poderia fomentar conflitos em torno do que os agentes locais interpretam como uma noção de territorialidade. Nesse ínterim, o diálogo entre as pessoas e o espaço é fundamental a apreensão de um significado econômico da fronteira, de modo que os habitantes de cidades do Mato Grosso confluentes com a Bolívia irão se ater a suas lógicas de apropriação e significação do território.
Ainda na busca por problematizar os temas relativos ao universo das fronteiras, temos uma entrevista com a Profª Drª Keila Grinberg (UNIRIO), que tratou de temas mais recentes de sua pesquisa sobre o papel da escravidão nestas regiões e o peso que ela possuía no relacionamento diplomático do Império Brasileiro com as recém formadas repúblicas do Uruguai, da Argentina e do Peru. Além disso, a historiadora ressaltou as possibilidades de pesquisa dentro de uma perspectiva atlântica, a importância da comparação enquanto método de pesquisa para compreender semelhanças a diferenças nos processos históricos e o papel das chamadas histórias regionais à compreensão de realidades locais e, por que não ousar dizer, nacionais?
Por fim, contamos com uma sessão de artigos livres, onde é possível ver contribuições interessantes ao estudo de histórias regionais e a importância de instituições para garantir o atendimento demandas sociais. Além disso, outros artigos destacam o papel que determinadas fontes têm para o trabalho do historiador e a importância das experiências conectadas no mundo colonial em campos como a cultura e a religiosidade.
Agradecemos aos pareceristas e desejamos, desde já, uma boa leitura!
Notas
Hevelly Ferreira Acruche – Doutoranda pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes).
ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 21, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]
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