Pode-se dizer que a especialidade historiográfica atualmente denominada “História Ambiental” se define a partir de um tema específico. No caso, a relação entre homens e natureza ao longo do tempo. Sendo que por “natureza” a maior parte dos historiadores ambientais compreende todo o mundo não-humano ou não-criado originalmente pelo homem. Assim, como se pode inferir, a especialidade engloba uma vasta gama de discussões e problemáticas, bem como força uma série de diálogos interdisciplinares pouco convencionais no interior das Ciências Humanas. Sobretudo, com as Ciências Naturais e Físicas, incluindo aí não só a Biologia ou a Meteorologia, mas muitas outras, inclusive as ditas “aplicadas”, tais como a Engenharia Civil ou a Genética.
Apesar da preocupação em compreender aspectos das relações entre sociedades e seus ambientes naturais não ser algo assim tão recente entre os historiadores, foi só a partir dos anos 1970 que se passou a esboçar claramente o projeto de uma história “ecológica” ou “ambiental”.
Dentre os franceses da escola dos Annales, por exemplo, os próprios Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) já apontavam, entre as décadas de 1920 e 40, para a necessidade de se compreender as bases ambientais, sobretudo geográficas, sobre as quais se organizavam as diferentes sociedades humanas do passado. Mais tarde, seu maior discípulo, Fernand Braudel (1902-1985), aprofundaria essa sensibilidade em obras como O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Felipe II (1949). Uma obra monumental na qual, entre outras coisas, o historiador chama a atenção para os cenários geológicos, hidrológicos e oceanográficos nos quais se desenvolvem os processos econômicos, sociais e políticos que analisa.
Em outros países, ainda na primeira metade do século XX, outros autores nutriram preocupações semelhantes. Nos Estados Unidos, Frederick Turner (1861-1932), bem como outros dos chamados “historiadores da fronteira”, demonstrou claro interesse no impacto representado pela expansão europeia sobre o ambiente natural da América do Norte.
Entre nós, brasileiros, autores como Euclides da Cunha (1866-1909) e, principalmente, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) também podem ser tomados como precursores desse tipo de preocupação temática. Obras como Os Sertões (1902) e Caminhos e Fronteiras (1957) seriam alguns exemplos, dentre os nossos clássicos, de reflexões preocupadas, entre outras coisas, em inserir culturas e processos sociais em contextos ambientais específicos. Contextos estes de algum modo compreendidos como elementos ativos na dinâmica histórica.
Não obstante, seria na transição dos anos 1960 para os 70 que uma historiografia claramente preocupada com as relações entre processos sociais e naturais ao longo tempo passaria a ser pensada como uma área de investigação específica no interior da disciplina histórica.
Com a eclosão de novos movimentos sociais, fora do âmbito estritamente universitário, e com a revisão e ampliação de antigos pressupostos e objetos de pesquisa, no interior da academia, a História Ambiental começou a ganhar seus primeiros teóricos e praticantes. Dentro da chamada Terceira Geração dos Annales, autores como Emmanuel Le Roy Ladurie (1929), em 1973, defendiam a legitimidade do “clima” como um objeto legítimo à reflexão do historiador [2]. Não obstante, seria nos Estados Unidos – um dos principais focos do movimento ambientalista internacional – que surgiriam os primeiros e mais influentes trabalhos de História Ambiental. Foram das universidades americanas que saíram (e ainda saem) alguns dos principais textos ligados a essa especialidade. Estudos clássicos como os de Roderick Nash (Wilderness and the American Mind, de 1967), Donald Worster (Nature’s Economy: a history of ecological ideas, de 1977) e Warren Dean (Brazil and the struggle for rubber: a study in environmental history, de 1987).
E é de autoria deste último, Warren Dean, a obra que é considerada por muitos especialistas um dos primeiros e mais importantes trabalhos de História Ambiental já realizados sobre o Brasil. Estamos nos referindo ao livro With Broadax and Firebrand: the destruction of the brazilian Atlantic Forest, publicado originalmente em 1995. Texto logo traduzido para o português (a primeira impressão brasileira é de 1996) sob o título A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira.
Falecido em 1994, num acidente automobilístico no Chile, Dean não teve a oportunidade de acompanhar o impacto que A ferro e fogo causou em nossa comunidade acadêmica. Já bastante conhecido entre os historiadores brasileiros desde os anos 1960 e 70, por livros como A Industrialização de São Paulo (1967) e Rio Claro: um sistema brasileiro de plantation (1976), a Ferro e Fogo, superou Brazil and the struggle for rubber, como exercício de história ambiental. A originalidade e amplitude do tema, os diálogos interdisciplinares e o uso de uma vasta gama de fontes fizeram desse livro um modelo teórico-metodológico dedicado a essa modalidade historiográfica. Além, é claro, de uma referência obrigatória para toda uma geração de pesquisadores que, de algum modo, se interessam pelas relações que humanos e floresta Atlântica travaram entre si ao longo dos anos, séculos e milênios afora.
Prefaciado por outro brasialinista ilustre, Stuart Schwartz – autor de Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835), de 1985 -, o livro de Warren Dean se divide em quinze capítulos. Nestes, o autor realiza um exercício incomum noutras especialidades historiográficas, mas essencial em qualquer bom trabalho de História Ambiental: a articulação entre o tempo natural (ou geológico) e o tempo social. A relação entre as grandes escalas de tempo da Geologia e da Biologia, contadas em milhões e bilhões de anos, e o tempo mais curto dos processos humanos, contados em unidades mais “modestas” como milhares, centenas ou dezenas de anos. Assim, no primeiro capítulo, somos apresentados à floresta atlântica desde a sua formação há bilhões de anos, passando pelas sucessivas eras geológicas, até a formação da biomassa que as primeiras levas de “invasores” humanos encontraram ao chegarem ao subcontinente Sul Americano há “apenas” 10 mil anos.
Warren Dean é categórico ao expressar o seu entendimento do tema proposto. Para ele uma história das florestas não deve se limitar a compreender o ambiente natural apenas do ponto de vista humano, isto é, vendo este ambiente apenas como uma simples reserva de recursos econômicos ou, ainda, como mero cenário contra o qual se desenvolveriam isoladamente as ações humanas. Em oposição a esta visão dicotômica e estática, Dean sugere um entendimento dinâmico da relação entre humanos e natureza, sobretudo se essa natureza se refere a um sistema altamente complexo como o são as florestas tropicais. Para o autor, a Mata Atlântica não foi apenas objeto da sua história, mas também sujeito. Ela atuou, impôs limites, ditou regras, ajudou a moldar atitudes e pensamentos àquelas sociedades que, um dia, se aventuraram no seu interior.
O saldo do encontro entre ambos os universos (o humano e o natural) foi, no entanto, trágico. Segundo Dean, a história da Mata Atlântica é uma história de devastação porque, de um modo geral, em todo o Planeta, a história das florestas sempre teria sido “uma história de exploração e destruição”.[3] O homem não pertenceria àquelas sociedades compostas por inúmeras espécies de plantas e animais em contínua interação. Seu equipamento natural não o possibilita viver em ambientes altamente hostis às suas necessidades como de fato é uma floresta tropical. Para permanecer lá, ela, a espécie humana, precisa alterar o mundo ao seu redor. Assim, para viver na Mata Atlântica os homens, necessariamente, precisaram destruíla. Não obstante, se algumas sociedades fizeram isto de forma mais ou menos equilibrada durante longos períodos de tempo, outras, no entanto, foram altamente prejudiciais ao equilíbrio do sistema em relação ao qual elas eram alienígenas. Foi este o caso dos invasores europeus que chegaram ao Continente Sul Americano no século XV.
Dean, portanto, não poupa ninguém no seu balanço geral da devastação da floresta atlântica. Índios, caboclos, colonos, latifundiários, grandes industriais, Estado… Para o autor, todos tiveram a sua cota de responsabilidade no resultado final do processo. A Mata Atlântica praticamente não existe mais em sua extensão e forma originais, tanto por causa dos séculos ou milênios de agricultura predatória indígena, quanto por causa das décadas de industrialização acelerada de um Estado e burguesia embriagado com a idéia de um desenvolvimento econômico rápido e irresponsável.
Seu livro, portanto, é um retrato de uma luta desigual. De um lado um dos ecossistemas mais complexos e inalterados com que a espécie humana já travou contato, de outro, a própria espécie humana com sua particular capacidade de transformar ambientes conforme as suas diversas necessidades materiais e simbólicas. O resultado deste embate, ao menos por hora, pode ser apreciado em qualquer viagem de carro ou avião ao longo do litoral brasileiro.
Narrada de forma linear e numa linguagem bastante acessível A ferro e fogo é uma obra que, por vezes, faz parecer fácil uma das modalidades historiográficas mais exigentes e sofisticadas dentro da historiografia contemporânea. Além da amplidão de seu recorte espacial (a Mata Atlântica originalmente corresponde ao que hoje abrange 14 estados brasileiros) e temporal (bilhões de anos geológicos; pelo menos, 10 mil anos de história humana não registrada em fontes escritas; e 500 anos de ocupação europeia) seu livro apresenta centenas de fontes dos mais variados tipos (relatórios técnicos, relatos de viajantes, artigos científicos, livros, manuais agrícolas, tratados de história natural, legislações ambientais, jornais, mapas, etc.) e estabelece alguns diálogos disciplinares bastante instigantes, sobretudo com a Biologia, Geografia, Arqueologia e a Antropologia. No mais, no interior da própria disciplina histórica, Warren Dean não deixa de estabelecer vínculos entre a História Ambiental e outras especialidades, em especial com a História Econômica e Social.
A despeito dos seus possíveis limites e deficiências, A ferro e fogo permanece incólume como um dos exemplos mais bem acabados de boa História Ambiental. Neste livro, parece-nos, Warren Dean consegue articular com desenvoltura aqueles três níveis, ou três grupos de perguntas, que Donald Worster definiu como centrais para a pesquisa dentro desta especialidade historiográfica. [4] A saber, Dean consegue a) dar-nos uma idéia mais ou menos objetiva do modo como a “natureza propriamente dita” se “organizou e funcionou no passado”, tantos em seus aspectos orgânicos quanto inorgânicos (incluindo aí os organismos humanos); b) demonstrar o papel ativo do meio natural no interior dos processos sociais e econômicos das diferentes sociedades que interagiram com o ambiente natural ao longo do tempo; c) abranger os diferentes significados inferidos pelos homens ao meio natural e demonstrar como essas percepções afetaram a sua relação com a floresta.
A ferro e fogo é, provavelmente, a obra-prima de Warren Dean e vai, certamente, permanecer durante muito tempo como um clássico da História Ambiental. Se não pelo peso de todas as suas conclusões e análises, ao menos pelo fato de ter conseguido concretizar o objetivo maior dessa rica vertente historiográfica: o de inserir, de maneira dinâmica, determinados processos humanos no interior de seus contextos naturais específicos. Um diálogo que, mesmo que não percebamos (ou não queiramos perceber), história e natureza sempre realizam. E isto porque, nós, antes de sermos humanos, somos criaturas vivas. Seres imersos num tempo, mas também num espaço nem sempre criado ou controlado por nós. Sujeitos e objetos de um ambiente que por vezes modelamos e que invariavelmente também nos molda.
Notas
2. LADURIE, Emmanuel Le Roy. O clima: história da chuva e do bom tempo. In.: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 11-33.
3. DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. p. 23.
4. WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.4, n.8, p.198-215, 1991. p. 205.
Luiz Alberto de Souza – Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestrando em História Cultural pela mesma instituição. E-mail: luiz_alberto82@yahoo.com.br.
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. Resenha de: SOUZA, Luiz Alberto de. Aedos. Porto Alegre, v.3, n.8, p.264-268, jan. / jun., 2011. Acessar publicação original [DR]
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