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A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas | Wilton Silva

Nas duas últimas décadas, a tradição dos estudos biográficos no Brasil alcançou avanços consideráveis. Dissertações e teses surgiram com todo vigor, problematizando personagens principalmente no campo das letras e da historiografia. Um exemplo desta expansão no campo historiográfico é a publicação do livro “A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas”, do historiador e sociólogo Wilton Silva, fruto de sua tese de livre docência, apresentada em 2013, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Assis, em São Paulo. Publicada em livro em 2016, pela Editora Alameda, a obra traz uma apresentação da antropóloga Suely Kofes (UNICAMP) e o prefácio do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN).

Wilton Silva pretende no livro analisar como se consolidou a memória do jurista cearense Clóvis Beviláqua (1859-1944), problematizando as distintas matrizes narrativas, com especial destaque para as dimensões grupais e institucionais que atuam em processos de afirmações e construções da memória e do esquecimento deste personagem. Para isso, o autor investigou quatro biografias sobre o jurista, publicadas entre as décadas de 1950 e 1990 no Brasil: “Clóvis Beviláqua”, de Lauro Romero (1956); “Clóvis Beviláqua”, de Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1960); “Clóvis Beviláqua na intimidade”, de Noêmia Paes Barreto (1989); e por último “Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra” de Silvio Meira (1990). O autor justifica a escolha pelos méritos historiográficos e aspectos conjunturais em que foram produzidas as biografias ou ainda pelas divulgações que obtiveram em suas respectivas épocas de lançamentos.

O livro é dividido em dois longos capítulos: o primeiro, uma espécie de tratado sobre as relações entre história, narrativa, biografia e memória, intitulado “História e Biografia”; o segundo, um exercício erudito e de fôlego na análise das narrativas biográficas escolhido sobre o personagem, intitulado de “Biografias de Clóvis Beviláqua (1859-1944)”. Apesar de sua estrutura demasiadamente convencional, a obra segue um sentido lógico, contendo um aporte teórico amplo na primeira parte e um alongado capítulo de análises das biografias na segunda.

No capítulo “História e Biografia”, temos um verdadeiro tratado das relações entre estes dois campos narrativos, no qual o autor tece uma perfeita teia de analogias teóricas e metodológicas bastante profícuas. A chave interpretativa que Wilton Silva propõe parte da noção de biografismo, “um gênero literário e historiográfico cujo hibridismo origina paixões, censuras e tensões” (p.26). Vale a pena compreendermos o que o autor entende como biografismo: “(…) práticas narrativas que envolvem a seleção, descrição e análise de uma trajetória individual com base em diversos enfoques e metodologias que permitem sua incorporação por meio do romance histórico, das memórias pessoais (autobiografias e testemunhos), da literatura escolar e das biografias propriamente ditas” (Idem). Considero a principal colaboração teórica do livro, que permite uma variedade de abordagens para pesquisas sobre biografias.

Wilton Silva procura evidenciar os méritos dos estudos biográficos compreendendo que a biografia como objeto de estudo permite: “a discussão sobre os vínculos sociais e históricos que se relacionam com a forma como personagem teve sua obra e trajetória lembradas ou esquecidas ao longo do tempo; a vinculação desse personagem com diferentes grupos e movimentos; sua produção editorial, acadêmica e jornalística; o envolvimento de instituições na manutenção de diferentes memórias; além da promoção de diferentes eventos e de acontecimentos específicos, caracterizando-a como documento, mídia e manifestação política e cultural” (p.30). Portanto, o capítulo em questão se coloca como conjunto significativo de amparos teóricos e metodológicos de como trabalhar historiograficamente o gênero biográfico.

O mesmo capítulo ainda tem o mérito de destacar as relações entre biografia e memória. Para o autor a biografia “é o resultado de memórias (ou mesmo esquecimentos) coletivos, individuais e sociais, constantemente negociadas e processadas, com vínculos com mitos, saberes, fazeres e tradições que se corporificam por meio de relações particulares com o tempo e o espaço, que não são simplesmente atos de resgate, mas de reconstrução do passado a partir de referências atuais” (p.37). O autor, portanto, elabora um texto a partir de uma teoria da memória, amparando-se em autores e categorias importantes, como o sociólogo Maurice Halbwachs (responsável pela discussão memória individual e coletiva), o historiador Pierre Nora (responsável pela noção de lugares de memória) e o sociólogo Michel Pollak (responsável pela reflexão entre a memória oficial e a subterrânea). Neste mesmo movimento teórico Wilton Silva, reflete sobre as relações da biografia com as ciências humanas e sociais como todo, debatendo as fronteiras entre as disciplinas, justificando e defendendo a interdisciplinaridade, em especial as interconexões entre a antropologia e a história, que segundo o autor podem lançar luzes sobre o trabalho historiográfico e análise do biografismo.

No segundo capítulo, “Biografias de Clóvis Beviláqua (1859-1944)”, como já nos referimos, Wilton Silva analisa as quatro narrativas biográficas sobre o jurista cearense, optando por avaliá-las cronologicamente. O autor procura descrever em cada investigação o número de páginas, a organização dos capítulos, observa timidamente o uso de imagens, as composições bibliográficas de cada biografia. A ênfase quase sempre é um olhar analítico feito a partir de “capítulo por capítulo”, identificando as abordagens sobre os estigmas dos personagens, observando as omissões, os silenciamentos, as apologias, os limites, os vícios e as virtudes de cada biografia. Este movimento, em muitos aspectos se torna enfadonho, pois se centra demais em cada narrativa.

É necessário observar que, em três das quatro biografias analisadas, o autor em pouco ou nada se preocupa com as condições que possibilitaram as biografias no sentido editorial, bem como quase nada enfatiza o lugar social e as trajetórias dos biógrafos analisados de Clóvis Beviláqua. Há pouca ênfase na análise dos circuitos do livro e suas redes que permitiram a fabricação das narrativas investigadas (editoras, editores, financiamentos), bem como na historicização das trajetórias dos biógrafos, com exceção de Silvio Meira (1990), no qual ao autor se presta sim a descrever minimamente o seu lugar social.

A primeira biografia analisada por Wilton Silva é “Clóvis Beviláqua”, publicada em 1956, da autoria de Lauro Romero. A obra é vista pelo historiador como um retrato de admiração do biógrafo pelo biografado, considerado um homem bom e justo. Silva identifica que Romero traz várias omissões, muitas polêmicas e tece um variado número de críticas: “as referências historiográficas, com material de análise do período, são praticamente inexistentes, persistindo uma abordagem apologística ou memorialística, no qual os autores escrevem sobre o que viveram ou suas impressões”. (p.80). Acusa ainda Lauro Romero de adjetivação, superficialismo, generalismo e compilação, sendo uma biografia pobre em análises.

A segunda biografia analisada é “Clóvis Beviláqua”, lançada em 1960, da autoria de Raimundo Menezes e Ubaldino de Azevedo (1960). O livro surgiu como resultado de um concurso público ocorrido em 1958, ano do centenário do jurista cearense, o que evidencia segundo o historiador as teias institucionais da narrativa. Mais uma vez o personagem biografado é encarado como um santo. O livro, para Wilton Silva, peca por uma espécie de determinismo geográfico e racial, devido à utilização de referenciais intelectuais superadas. Diferentemente da biografia de Lauro Romero, a dupla de biógrafos toca em temas polêmicos como a paternidade de Beviláqua, filho de um padre. A obra enfatiza a dimensão jurídica e filosófica do personagem e “Historiograficamente, a biografia não adiciona novas fontes documentais e acrescenta bem pouco de significativo”. Porém, Wilton Silva, considera a primeira tentativa mais ampla do que se produziu a respeito do biografado.

A terceira biografia analisada foi “Clóvis Beviláqua na intimidade”, publicada em 1989, por Noêmia Paes Barreto Brandão. Segundo Wilton Silva, é uma abordagem íntima do biografado por meio da recuperação da memória das filhas e pessoas próximas a Clóvis Beviláqua. O historiador enfatizou que a obra é uma perspectiva inovadora, pois aborda o personagem através da intimidade do personagem, porém isso não escondeu os aspectos laudatórios, os excessivos informacionais e as limitações literárias.

A quarta e última biografia analisada foi “Clóvis Beviláqua: sua vida, sua obra”, publicada em 1990, por Silvio Meira. Aqui Wilton Silva historiciza o lugar social do autor, demostrando que o biógrafo possuía um currículo longo, de professor de direito, romancista, historiador e tradutor. Silva ainda destaca que diferentes das outras três biografias analisadas, esta possui uma clara vinculação universitária. O percurso narrativo é clássico na biografia e trouxe algumas fontes novas (como fotos e discursos). Marcada por certo determinismo racionalista, para Wilton Silva a biografia é uma narrativa que reforça “o vínculo pessoal e de certa forma é autobiográfico” (p.146) e destaca a abordagem jurídica da obra, que contém certo tecnicismo oferecendo ao leitor especializado uma discussão aprofundada das matrizes jurídicas do código civil. Enquanto críticas mais enfatizadas, Silva refere-se à obra como repetitiva, cheia de generalizações e que busca dotar o personagem de características extraordinárias, compreendendo Clóvis Beviláquia com uma aura de santidade e grandeza intelectual.

Para concluir, Wilton Silva observa que as quatro biografias apresentam Clóvis Beviláquia de uma forma extremamente positiva, com seus carismas destacados, bem como seus estigmas apresentados em diferentes ênfases. Há nas quatro biografias analisadas um consenso narrativo na construção da memória do jurista cearense. Uma memória monolítica e consagrada construída em que as contradições foram diluídas e minimizadas, em um processo de monumentalidade e sacralização do personagem.

Partindo da ideia que Clóvis Beviláqua é um personagem ilustre e ao mesmo tempo desconhecido, Wilton Silva nos apresenta o jurista, filósofo e historiador Clóvis Beviláqua de uma maneira multifacetada, mesmo que as biografias analisadas do personagem recaiam em sucessivas repetições. Conhecido como um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras (1897) e como o jurista responsável pela confecção do primeiro Código Civil do país (1917), Clóvis Beviláqua oscila nas biografias analisadas entre uma memória de admiração e estigmas, como bem mostra Wilton Silva ao longo de sua tese.

Desta forma, mesmo carregando pontos negativos como o uso excessivo de notas de rodapé, muitas delas contendo citações longas, (que acreditamos ter sido uma alternativa editorial, devido ao número de páginas da versão original da tese de livre-docência), considero o livro “A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas”, uma pesquisa original e pioneira, que estuda um personagem hoje praticamente desconhecido. A obra em si é um marco nos estudos biográficos no Brasil, contendo uma longa e invejável bibliografia, e ocupando um espaço importante na historiografia brasileira, dentro das relações entre memória e biografia.

Bruno Rafael de Albuquerque Gaudêncio – Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Rede Pública do Estado da Paraíba. E-mail: brunogaudencio@usp.br


SILVA, Wilton C. L. A Construção Biográfica de Clóvis Beviláqua: memórias de admiração e de estigmas. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GAUDÊNCIO, Bruno Rafael de Albuquerque. A construção biográfica entre a memória e o esquecimento. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.6, n.11, p. 143-148, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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