A Revista Abatirá encerra o ano de 2020 brindando a comunidade e seus leitores com o generoso dossiê, intitulado “Educação escolar indígena no século XXI”: desafios, especificidades e perspectivas”. Trata-se de um número organizado por especialistas na temática educação indígena, contendo artigos que abordam as histórias, os desafios e os avanços de um tema tão caro e necessário, o qual precisa ganhar visibilidade nos espaços universitários, escolares e populares, especialmente nesse momento em que atravessamos uma conjuntura difícil, caracterizada pela crise generalizada e pelo avanço do autoritarismo e da política antiindigena orquestrada pelo Estado brasileiro.
No percurso de contato dos colonizadores portugueses e do Estado brasileiro com os povos originários, identificamos ações detratoras que promoveram e promovem o etnocídio, o epistemicídio e o desaparecimento de saberes, línguas e cosmologias. Políticas de Estado que prometiam salvar almas e que se diziam promotoras da civilização e da cidadania, por trás da ideia de progresso, vilipendiaram os povos originários com opressão e violência sistemáticas.
Da educação jesuítica, fundada nas primeiras décadas do século XVI, passando pelo Diretório do Marquês de Pombal e pelo integracionismo do Serviço de Proteção aos Índios e da Fundação Nacional do índio, vemos a introdução de ações indigenistas devastadoras e exterminacionistas, produzindo generalizações, preconceitos e silenciamentos, sendo a educação escolar a agência privilegiada para a realização de tais finalidades.
O belo conjunto de textos apresentados no dossiê forma uma orquestra sincrônica de combate à naturalização de preconceitos, ao mesmo tempo em que colabora na visibilidade às diversas formas de organização dos povos indígenas na luta pela continuidade dos seus projetos societários, particularmente no que diz respeito às suas formas próprias de educação, em diálogo com a escola. São narrativas de caráter acadêmico que apontam para a ruptura com os discursos pautados na colonialidade do saber, do poder, de gênero.
Tomando a provocação feita por Walter Benjamin, a proposta é escovar a história a contrapelo, realizando um movimento de contar o que a história oficial não conta. O esforço foi o de reunir pesquisadores e pesquisas contrárias às tendências políticas e acadêmicas que querem varrer os povos indígenas e suas tradições sociolinguísticas para baixo do tapete da História.
As pedagogias integracionistas criadas para os povos indígenas não foram assimiladas sem questionamentos. É necessário analisar e denunciar o histórico projeto educacional genocida implantado entre os povos indígenas, assim como é fundamental apresentar estratégias próprias de resistências, que possibilitaram a continuidade ressignificada e revitalizada dos milenares saberes e fazeres desses povos.
Ancorados nas garantias constitucionais da Carta Magna promulgada em 1988, nas últimas décadas os povos indígenas vêm construindo um modelo de currículo escolar que dialoga com suas cosmologias e com os saberes dos pajés, curandeiras, parteiras, benzedeiras e anciões. É tempo de retomada dos fundamentos ancestrais que foram subtraídos por séculos, durante o processo de colonialismo e de colonialidade.
A educação escolar indígena diferenciada propõe a ruptura radical com o currículo eurocêntrico, e traz para a centralidade curricular os elementos da educação indígena que foram expropriados do cotidiano comunitário desses povos. A cada conquista fica mais evidente que a escola colonizadora é absolutamente descontextualizada e imprópria para as crianças e jovens indígenas.
Reconhecer e valorizar os saberes e línguas indígenas na escola não pressupõe virar as costas para as ciências acadêmicas. O diálogo intercultural crítico é necessário, e desta vez, os diversos conhecimentos sentarão à beira da fogueira para dialogar em pé de igualdade. Ali serão expostas as feridas e cicatrizes da violência colonial, através de um mergulho nos tempos, gerando um movimento que aproximará o presente, o passado e as perspectivas de futuro para os nossos povos e para a humanidade.
Mas porque para a humanidade? Ora, o projeto cartesiano, eurocêntrico e iluminista que pautou o modelo de progresso humano, formatou a educação escolar que chegou como elemento estranho nas aldeias. Mas esse mesmo currículo eurocentrado foi também implementado para as populações não-indígenas e está em crise, assim como está em crise o modelo econômico e as relações socioambientais no planeta.
Assim sendo, a proposta de uma educação escolar diferenciada é uma espécie de laboratório para projetarmos outra sociedade, pautada nos princípios de coletividade, autonomia e respeito à vida humana e não-humana. Portanto, a educação escolar indígena e o dossiê que ora chega aos leitores de Abatirá, em construção nos dias atuais, têm em seus currículos aquilo que o líder indígena Ailton Krenak chama de “ideias para adiar o fim do mundo”.
Organizadores
Edson Kayapó – Doutor pelo programa pós-graduado em Educação: História, Política, Sociedade, na PUC-SP, com pesquisa financiada pelo CNPq e CAPES (2012). Atualmente é professor efetivo do Instituto Federal da Bahia (IFBA), atuando na docência em licenciaturas, cursos técnicos e Pós-graduação lato sensu, além de orientar TCCs e monografias. Exerce funções de docente e orientador de pesquisas de mestrado no Programa de Pós-graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER) na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). É escritor premiado pela UNESCO e pela Fundação Nacional do Livro Infantil e juvenil. https://orcid.org/0000-0002-8747-0528 E-mail: edsonbkayapo@gmail.com. Instituto Federal da Bahia (IFBA)
Naine Terena – É doutora em educação pela PUC-SP, possui mestrado em Artes pela UnB, é graduada em Radialismo pela Universidade Federal de Mato Grosso. Realizou estágio pós-doutoral desenvolvendo pesquisa no Lêtece – UFMT e no Programa de Pos-graduação em educação da Unemat Campus Cáceres. Docente na faculdade Católica de Mato Grosso. Atua na Oráculo comunicação, educação e cultura, onde atua com pesquisas, docência em cursos livres, comunicação e execução de projetos. É docente nas áreas de Comunicação Social e Educação indígena, tem experiência na elaboração e execução de projetos culturais e realiza projetos e pesquisas na área de audiovisual e artes, povos indígenas e mídia, educação, rádio (com as vertentes de assessoria de imprensa e comunitária), vídeo, teatro, materiais didáticos e economia criativa. https://orcid.org/0000-0001-8586-9108. E-mail: naineterena@hotmail.com. Faculdade Católica de Mato Grosso (FACC/MT)
Francisco Cancela – Doutor em História Social do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia e Professor Titular do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias da Universidade do Estado da Bahia (Campus XVIII – Eunápolis). Atua na área curricular de História do Brasil e também na Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena (LICEEI). É pesquisador da História Indígena e da História da América Portuguesa, desenvolvendo estudos sobre a trajetória dos povos indígenas na antiga Capitania de Porto Seguro e coordenando o Grupo de Estudos sobre a América Portuguesa (GEAP/DCHT-UNEB). É membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade, da Universidade Federal do Sul da Bahia, e também do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, dos Povos Indígenas e das Culturas Negras, da Universidade do Estado da Bahia. https://orcid.org/0000-0003-4807-5215 E-mail: franciscocancela@yahoo.com.br. Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
Referências desta apresentação
KAYAPÓ, Edson; TERENA, Naine; CANCELA, Francisco. Diga ao povo que avance: – “Vançaremos”!! Abatirá. Eunápolis, v.1, n.2, p.50-52, jul./dez., 2020. Acessar publicação original [IF]
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