Justiça, Cidadania e Direito na História do Espírito Santo | Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo | 2020

Justiça, Cidadania e Direito são temas de longa tradição no campo da História que contemplam fenômenos jurídicos e políticos numa perspectiva ampla e interdisciplinar. Recentes estudos e abordagens têm evidenciado o papel relevante das culturas jurídicas e políticas para a compreensão das ideias, instituições, comportamentos e relações de poder nos mais variados contextos históricos. Em consonância com as tendências historiográficas dos últimos decênios, que indagam as interpretações generalizantes e, por vezes, reducionistas, o dossiê objetivou congregar estudos que se dedicam ao exame das práticas e do pensamento no âmbito político-jurídico e suas transformações ao longo da História. Abre-se, assim, uma série de problemas ligados às práticas judiciárias e políticas, construção da cidadania, garantia de direitos, acesso à justiça e à informação. Para essa edição da Revista do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, o dossiê procurou incorporar pesquisas que tratam a temática no âmbito do Espírito Santo, perpassando os diversos regimes políticos e jurídicos, desde o processo de independência do Brasil até a República e suas diversas temporalidades.

Grande parte dos textos aqui apresentados foram desenvolvidos no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) e do Laboratório de História, Poder e Linguagens (LHPL) da Universidade Federal do Espírito Santo, tratando-se de reflexões recentes que buscam sublinhar a experiência capixaba e seus diversos atores no panorama nacional. Os trabalhos aqui reunidos contemplam, portanto, o caso do Espírito Santo tendo como foco a organização das instituições, a recepção e reação da sociedade a certas diretrizes legais, as mobilizações políticas e civis, os conflitos identitários e a administração da justiça.

Nesse sentido, alguns artigos põem em questão a organização política no momento de formação do Estado-Nação. É o caso do trabalho de Adriana Pereira Campos que analisa a reverberação da Revolução do Porto, sobretudo do constitucionalismo vintista, na região do Espírito Santo, buscando entender a posição dos capixabas na conjuntura que deflagaria, posteriormente, o processo de independência do Brasil. A autora aponta o ambiente local tumultuado, com a irrupção de conflitos, distribuição de pasquins e mudança conceitual do vocabulário, indicando a existência de opiniões diversas acerca dos acontecimentos políticos. Nesse escopo de formação do novo regime polítco, no artigo de minha autoria, analisei a extensão do direito de voto na província capixaba durante grande parte do século XIX. O estudo se concentrou na identificação quantitativa do corpo eleitoral da província e no perfil socioeconômico e educacional dos cidadãos que estavam franqueados às urnas, permitindo verificar a amplitude do sufrágio em grande parte das localidades do Espírito Santo e certo nível de letramento entre os habilitados a votar.

Ainda sobre o Império e o universo da cidadania, dois artigos que compõem o dossiê tiveram como foco mobilizações individuais e coletivas que contaram com expressiva participação de mulheres capixabas. Em seu texto, Karolina Fernandes Rocha discute a resistência ao recrutamento militar na primeira metade do Oitocentos, destacando a atuação feminina no envio de petições as autoridades responsáveis pelo alistamento. A autora analisa as súplicas como ferramenta de intervenção política, buscando compreender a leitura dessas mulheres sobre o dispositivo do recrutamento, o impacto do instituto em seus cotidianos e suas aspirações por direitos civis. Contemplando a segunda metade do século XIX, Meryhelen Alves da Cruz Quiuqui investigou a organização da sociedade civil em prol da instrução pública na capital da província. Na análise concentrada sobre o Atheneu Provincial, a autora apresenta a intensa mobilização dos moradores de Vitória, com a criação de comitês de arrecadação de donativos e realização de espetáculos culturais que contavam, inclusive, com ampla e ativa participação feminina.

O artigo de Rafaela Domingos Lago é o último trabalho que contempla a época do Brasil Imperial. A autora explora o impacto da Lei do Ventre Livre, de 1871, e da Lei do Sexagenário, de 1885, para o desmonte do sistema escravista na província capixaba. Interessante é destacar o papel da Lei do Ventre Livre na garantia do direito do escravizado em comprar sua alforria, sem a sujeição à vontade do senhor. Embora o vínculo com a escravidão não fornecesse status de cidadão ao escravizado, a legislação buscava firmar em âmbito legal o seu direito à liberdade. Com diferente chave analítica, mas, abordando o contexto e os problemas derivados da substituição da mão de obra escrava e o processo de imigração italiana no Espírito Santo, Francisco Roldi Guariz explora os conflitos identitários a partir da análise da chacina intitulada “Jagunçada de Barracão” ocorrida em Santa Teresa, em 1897. O autor analisa os acontecimentos e personagens relacionados ao crime, apontando o racismo e o sentimento de vingança como elementos motivadores da tragédia, bem como avalia o papel das autoridades policiais e judiciárias na solução do caso que obteve repercussão nacional.

Também focalizado na República, mais especificamente no período da ditadura militar, está o trabalho desenvolvido por Pedro Ernesto Fagundes e Brenda Soares Bernardes. Os autores analisam as mobilizações pela Anistia no estado do Espírito Santo, apontando o repertório de atividades que incluía desde a promoção de manifestações, o uso da imprensa, a articulação com personalidade de projeção nacional e a tentativa de interiorização do movimento. Diferente do cenário nacional, o estudo conclui que as mulheres, apesar de participarem da campanha pela Anistia, não as – sumiram o protagonismo do movimento no Espírito Santo. Deslocando o olhar para avanços recentes no campo dos direitos, Camila Mattos da Costa, Indiana Ribeiro de Almeida Ventura e Maria Ivonete Rodrigues Pego avaliam a recepção da Lei de Acesso à Informação, de 2011, no Espírito Santo. Com recorte analítico centrado na Assembleia Legislativa Estadual, as autoras apresentam os mecanismos para a execução da legislação e disseminação da informação, bem como exploram o interesse e a mobilização da sociedade na solicitação de informações que facilitem o controle e fiscalização dos poderes públicos. É também sobre a Lei de Acesso à Informação e sua relação com os arquivos públicos que se concentra a seção Entrevista do dossiê, que teve como entrevistada a Professora Ana Célia Rodrigues, Professora do Departamento de Ciência da Informação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense, e como entrevistador Alexandre Faben, Professor do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo.

A seção Resenha traz a contribuição de Bárbara Lempé Alonso Scardua com análise crítica sobre a obra Estatuto da Mulher Casada: Um marco na conquista dos direitos femininos no Brasil, de Catarina Cecin Gazele, publicada em 2016. Bárbara Scardua destaca a importância da obra para a reflexão sobre o papel jurídico das mulheres casadas no país, sobretudo no cenário do Espírito Santo, marcado por elevado índice de violência contra as mulheres. A seção Documento é de autoria de Larissa Ricas Cardinot, que apresenta a transcrição de um recurso eleitoral datado de 1881, localizado no Fundo Justiça Eleitoral do acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. O registro está inserido no contexto de mudança do sistema eleitoral, já no findar do Império, sendo testemunho da mobilização de cidadãos em prol do reconhecimento do seu direito de voto.

Com efeito, os trabalhos reunidos neste dossiê são fundamentados empiricamente em fontes de natureza diversas, muitas delas localizadas no acervo do Arquivo do Estado do Espírito Santo, o que demonstra a importância da instituição para o desenvolvimento de pesquisas sobre o passado capixaba e as inúmeras possibilidades de seu patrimônio arquivístico aos historiadores. Os trabalhos também convergem em apontar as especificidades da História do Espírito Santo, sua trajetória e personagens, e em permitir análises comparativas numa perspectiva nacional.

Saudações e boa leitura!

Kátia Sausen da Motta – Organizadora do Dossiê. Doutora em História (UFES). Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Pesquisadora do Laboratório de História, Poder e Linguagens (UFES) e do Grupo Opinio Doctorum. Bolsista CAPES / Brasil e apoio financeiro da FAPES. E-mail: katiasmotta@gmail.com


MOTTA, Kátia Sausen da. Apresentação. Revista do Arquivo Público do Estado do Espirito Santo, Espirito Santo, v.4, n.8, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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