Posts de Itamar Freitas
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética – BARROS (Ph)
BARROS, Roberto. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética. Campinas: Editora Phi, 2016. Resenha de: MACHADO, Bruno Martins. Philósophos, Goiânia, v. 21, n. 2, p.351-359, jul./dez., 2016.
Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética, livro escrito pelo professor Roberto de Almeida Pereira de Barros da Universidade Federal do Pará (UFPA), publicado pela Editora Phi em 2016, é resultado de um rigoroso trabalho interpretativo.
Já na apresentação é possível vislumbrar essa situação, pois o professor Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) destaca o nível de aprofundamento da pesquisa que o leitor terá em mãos. Ele ressalta que o trabalho de Roberto Barros alçou um desenvolvimento continuado desde as investigações na graduação, passando pelo mestrado, pelo doutorado e chegando ao seu formato atual, balizado por pesquisas recentes conduzidas na UFPA e em importantes centros da Alemanha.
Composto por uma apresentação, uma introdução, quatro capítulos (I- “A perspectiva trágica”; II- “Filosofia, ciência e as novas possibilidades da arte”; III- “A fala poética em Assim falava Zaratustra”; IV- “O além-do-homem enquanto ideal estético”) aos quais se seguem as considerações finais, o livro tem o curso de suas divisões sustentado por duas linhas fundamentais. Elas foram extraídas do modo singular como Nietzsche, valendo-se de uma “compreensão valorativa inerente ao pensar” (p.18), empenhou seu “esforço filosófico” (p.18) para destacar o papel da “arte enquanto manifestação vital e antídoto (Heilmittel) contra o desafio apavorante do existir” (p.19).
A primeira linha gira em torno da concepção e consequências colocadas pelo conceito de além-do-homem. A escolha do conceito justifica-se pela sua centralidade tanto no modo como foi apresentado em Assim falava Zaratustra1, quanto na maneira como tomou forma no desenvolvimento da teoria nietzscheana. Para Roberto Barros, o conceito de além-do-homem exerce a função de “princípio atenuante do peso que a percepção e aceitação dos outros ensinamentos [de Zaratustra] trazem consigo” (p.18). No pensamento nietzscheano, a sua função geraria condições para que a gravidade trágica fosse incorporada à existência como uma perspectiva possível, ou seja, o conceito de além-do-homem abriria a possibilidade para que o peso da condição de verdade do conhecimento fosse transformando em um saber sobre a vida, abrindo as portas para uma “alegre ciência” (p.18).
Tais contornos proviriam de um continuado processo de maturação de pensamentos já expostos em O nascimento.da tragédia2. Nesse sentido, emblemáticas são as noções de dionisíaco, arte, tragédia, inspiração, verdade, conhecimento, função da história, vida, ciência. Concebendo, assim, uma espécie de dinamismo conceitual, é possível visualizar os traços que fomentam a segunda linha. Os aspectos extraídos da concepção de arte trágica defendida por Nietzsche em O nascimento seriam ressignificados em Humano, demasiado humano3, chegariam ao ápice em Zaratustra. Livro, este último, em que a arte se liga tanto à composição conceitual, quanto ao formato da obra, resultando em características específicas que lançam a filosofia nietzscheana para além da concepção de neutralidade do conhecimento típica dos modernos. A consequência extraída desse movimento aponta para o fato de que alguns problemas atribuídos à filosofia de Nietzsche, a exemplo de uma suposta falta de coerência lógico e semântica, poderiam ser resolvidos caso se observasse como a arte adquiriu uma posição de destaque no pensamento nietzscheano de maturidade.
Após esse primeiro panorama, proposto a partir das duas linhas citadas acima, é possível enunciar a ligação dos conceitos e das obras de acordo como foi apresentada pelo próprio Roberto Barros, certamente como umas das hipóteses centrais de seu livro: “ que se pressuponha o fato de que o anúncio do ensinamento do além-do-homem no prólogo de Assim falava Zaratustra e antecedendo o pensamento do eterno retorno, possa ser compreendido segundo os princípios utilizados por Nietzsche em seu primeiro livro para descrever os aspectos formadores da tragédia. Desse modo, o além-do-homem poderia ser entendido como ensinamento preparatório ao anúncio da visão dionisíaca do mundo implícita no ensinamento do eterno retorno. Isso pressuposto, o ensinamento do além-do-homem pode ser retomado como a bela imagem apolínea, posta previamente como forma de consolo e meio de suportar o pensamento dionisíaco do eterno retorno do mesmo” (p.136).
Passando a uma apresentação mais direta dos capítulos do livro, no primeiro, “A perspectiva trágica”, o autor evidencia que, ao escrever O nascimento, Nietzsche manteve em seu horizonte a intenção de expor aos seus contemporâneos uma “nova compreensão do verdadeiro conteúdo do sofrimento e da arte trágica dos gregos” (p.36). Seu propósito de mostrar que a compreensão da existência, com todas as suas possíveis desventuras e sofrimentos, poderia ser transfigurada em um “caráter estético afirmativo” (p.36), consistiria no sentido mais proeminente da arte trágica grega. Mas tal leitura só poderia ser efetivada desde que se olhasse para a proveniência dessa construção artística. O resultado foi a concepção da relação entre Apolo e Dionísio.
A interpretação dada por Roberto Barros para a leitura nietzscheana dos impulsos apolíneos e dionisíacos estrutura- se sobre uma percepção singular que servirá de lastro para os outros capítulos. Barros insere Nietzsche em uma tradição interpretativa que busca entender a arte grega “a partir de uma ‘interpretação’ naturalista” (p. 27). Um movimento que tem como representantes Winckelmann, Lessing, Herder, Goethe, Schiller e Hölderlin. Em todos eles, seria possível observar a tendência de “identificar uma forma natural de manifestação artística” (p.28). Considerando este aspecto, é possível entender um outro elemento que aumentaria a distância entre Nietzsche e os filólogos de sua época. Enquanto os últimos buscavam interpretar a arte grega como “uma mera forma de expressão artística” (p.32), Nietzsche considerava a arte grega como “manifestação dos impulsos artísticos naturais, procedentes da vontade, que, atuam no sentido de criar modos estéticos de representação do mundo, enquanto forma de justificação do sofrimento inerente à existência” (p.32).
Barros assinala que O nascimento atacou um problema não só dos filólogos, mas também de toda cultura de uma época: o massivo distanciamento da arte em relação aos problemas da existência. Tal diagnóstico, gerado pela excessiva “racionalização e moralização do sentido original da arte” (p. 44) decorreria, de acordo com Nietzsche, do desprezo pelas forças dionisíacas.
O dionisíaco seria um “impulso natural relacionado à inconsciência, ao esquecimento de si, à embriaguez e ao orgiástico” (p.41). Uma força oposta à apolínea que, por sua vez, destaca-se pelo transbordamento de consciência, edificando- se sobre o princípio de individuação. Nesses termos é importante identificar a base sobre a qual Roberto Barros identifica a elaboração de O nascimento: o livro seria a análise da tragédia a partir da “manifestação natural dos instintos, responsáveis por estados fisiopsicológicos, que atuam na superação da percepção direta da verdade da existência” (p.45). Também o ocaso da tragédia é lido por Barros como produto desmedido de um agente natural: o socratismo estético. Este empurra o homem para busca por clareza e moderação (aspirações apolíneas) através do emprego da racionalidade. Apropriando-se de todas as formas de conhecimento, através de uma suposta ideia de verdade, o socratismo torna-se a força hegemônica, destitui o dionisíaco. No lugar do desmedido, do insconsciente é instaurada a tirania da ciência com seus pressupostos de verdade alcançados a partir dos saberes conscientes. Ainda no primeiro capítulo, verifica-se o propósito do autor em mostrar conteúdos que denotam como as análises de Nietzsche já se erguiam sobre especulações extraídas da “relação entre saber e vida” (p.64).
No segundo capítulo, Barros passa pelas obras intermediárias de Nietzsche, seu foco é mostrar que a noção de arte adotada por Nietzsche em O nascimento sofreu um grande ajuste. Roberto indica a mudança como prenúncio à ideia da transvaloração dos valores, como se a nova mirada filosófica fomentasse uma nova concepção de arte. Tal mudança se iniciaria a partir de Humano, quando Nietzsche toma Wagner e Schopenhauer como inimigos declarados, pois eles representariam os “efeitos da percepção dos perigos da hegemonia da metafísica e da religião cristã oposta ao dionisíaco” (p. 67). Nesse capítulo, o dionisíaco é apontado como: (i) modo de Nietzsche avançar contra as categorias de valor da tradição metafísica e cristã e (ii) forma de embelezamento artístico do viver. Desse modo, Roberto pretende mostrar que o dinonisíaco não sucumbe no chamado período intermediário da filosofia nietzscheana. Pelo contrário, ele persiste, passando por uma reconfiguração que se apoiaria na ressignificação da noção de arte, efetivada sobre uma também nova mirada da concepção de ciência.
Os capítulos terceiro e quarto articulam uma leitura em conjunto do pensamento de Nietzsche, não como um corpo sistemático, mas como um agrupamento de construções conceituais fluidas, que transmutam através da obra, e ressignificam em virtude da busca de uma forma possível de afirmar e elevar a vida.
Fundamental nesse percurso é a forma como Barros explora as noções de eterno retorno do mesmo, grande saúde, morte de deus, transvaloração dos valores, além-do-homem, dionisíaco e arte. O eterno retorno do mesmo, o pensamento mais abissal de Zaratustra, já é anunciado desde A gaia ciência, em último grau, o pensamento do eterno retorno manifesta “uma pluralidade de contextualizações possíveis, que se desdobram em pretensões científicas, morais estéticas, cosmológicas” (p.103). Também denota uma experiência própria ao âmbito individual que se traduz psicofisiologicamente como afirmação ou negação da existência.
Frente ao eterno retorno, a grande saúde se mostra como “a capacidade de suportar os perigos e sofrimentos” (p.111) que a existência coloca ao homem e, mais ainda, o desejo de enfrentar tais condições para poder conseguir criar algo afirmativo. A morte de deus pode ser descrita como a face do niilismo que liberta o homem de seu apequenamento na moral, ela impulsiona o indivíduo para uma busca por superação. Esse o faz desde que consiga transvalorar os valores. Justamente aqui incide o alcance do conceito de além-do-homem, este é o símbolo da necessidade humana de superar a si mesmo, o termo estético com o qual o “ensinamento do eterno retorno pode ser interpretado a partir de sua significação afirmativa para a existência humana” (p.114). Sob tal configuração, o dionisíaco emerge como indicativo da crise dos fundamentos da tradição filosófico-científica e da religião – “ele é o ato decisivo de retorno da humanidade a si própria e que no autor faz carne e gênio” (p.114). A arte liga-se ao dionisíaco através da “postura heróica” (p.180) com a qual o homem entende a existência em sua tragicidade, empurrando-o em uma viagem épica movida pelo “desejo de conhecer com suas representações interpretativas” (p.180) as possíveis, novas e positivas valorizações da vida e da existência (cf. 180).
Destaca-se também a centralidade da tese sobre o renascimento do pensamento trágico na obra de Nietzsche.
Barros mostra como tal concepção ganha importantes traços a partir de A gaia ciência, a tragicidade inunda a filosofia com o ímpeto dionisíaco. Ela se traduz na aceitação incondicional da vida que é levada por Nietzsche a sua mais alta expressão através da escrita de Assim falava Zaratustra.
Uma obra onde o filósofo reconcilia seu pensamento com a natureza, a vida, o conhecimento, a arte e a afirmação de si.
O livro escrito por Roberto Barros é um trabalho robusto, no texto, obras e conceitos são articulados com coerência e originalidade mostrando um duplo caráter do pensamento nietzscheano – seu lado crítico e seu lado afirmativo.
Tudo isso realizado através de um claro fio condutor mantido do início ao fim da obra, a saber, a noção de além-do-homem. Enquanto trabalho interpretativo, restanos reafirmar o elogio escrito por Oswaldo Giacoia Júnior, para quem “o livro de Roberto A. P. Barros é um excelente guia de viagem para um fascinante percurso pela obra de um dos espíritos mais vigorosos de nossa tradição, tanto no rebelde ímpeto crítico-destrutivo quanto na extraordinária potência de criação e beleza”.
Notas
1 Doravante Zaratustra
2 Doravante O nascimento.
3 Doravante Humano.
Referências
BARROS, Roberto de A. P. Nietzsche: além-do-homem e idealidade estética.Campinas: Editora Phi, 2016, pp.198.
Bruno Martins Machado – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, SE, Brasil. E-mail: br.ma.machado@gmail.com
A África e as relações internacionais | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2016
A história do continente africano é uma das mais ricas que conhecemos. A união de sua grandiosidade territorial, variedade de climas e relevos, fauna e flora, associadas à longevidade das espécies hominídeas que lá se desenvolveram, provavelmente o berço delas, fez com que, ao longo de milênios se constituíssem complexos socioeconômicos e culturais dos mais diferentes matizes.
De pequenas sociedades até grandes impérios, e cada qual com suas especificidades e complexidades, o continente africano foi e é palco de uma extremada pluralidade humana. Para além dessa realidade interna, é também palco histórico de contato com muitos grupos humanos dos outros continentes, de igual forma portadores das mais variadas culturas. Leia Mais
Liberalism in Empire: An Alternative History – SARTORI (RH-USP)
SARTORI, Andrew. Liberalism in Empire: An Alternative History. ., Oakland: California University Press, 2014. Resenha de: MEKEL, Ian. Para uma história plebeia do liberalismo. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.
Neste último livro de Andrew Sartori, o autor trata da questão do “liberalismo plebeu” de uma maneira que promete mudar a direção da historiografia. Os discursos e a ideologia liberais foram considerados, até recentemente, como produtos da elite. Nesse sentido, a ideia do contrato social de Locke, por exemplo, protegia a propriedade destas mesmas elites. Sartori, cujo foco é Bengala no século XIX (hoje em dia dividida entre a Índia e Bangladesh), traz à luz atores liberais pelos quais a história intelectual nunca se interessou: os pequenos proprietários (raiyats) que podiam ser “Lockeanos” sem nunca terem lido Locke.
Esses pequenos proprietários, Sartori mostra, usaram argumentos em defesa da propriedade de tal forma que consolidaram normas liberais relativas ao uso produtivo da terra e ao valor-trabalho. Seria uma adaptação de discursos e práticas europeus para os trópicos, em um país principalmente agrícola? Para Sartori, a interpretação tradicional não leva em conta os argumentos destes proprietários, fundados que são em uma ecologia prática – em uma região cujas relações sociais são mediadas pelas commodities para exportação. No livro de Sartori se torna evidente que o liberalismo de Bengala – da Índia, de modo geral -, e de muitos países no Hemisfério Sul, não derivaram tanto das ideias do “centro” capitalista: ao contrário, a mercantilização das relações sociais e o triunfo das ideias político-econômicas em terras agrícolas contribuíram para salvar o liberalismo inglês de sua crise do fim do século XIX. Nas palavras de Sartori, “[…] não podemos compreender o liberalismo das elites sem compreender os liberalismos plebeus que o assombraram […] e nós não compreendemos o liberalismo em qualquer lugar se não entendemos como foi possível que as aspirações políticas dos bengaleses agrários se baseassem nele” (p. 8).
Este livro não é uma história social no sentido clássico do termo. O autor, que contextualiza seus argumentos na teia social, está mais interessado nos argumentos relativos ao trabalho e à propriedade em Bengala que nos arranjos que de fato existiram. Se a troca de commodities e “o processo de longa duração de comercialização e “descomercialização” das relações sociais antes e sob o impacto do capitalismo moderno” (p. 27) são analisados em Liberalism in Empire, cada um dos cinco capítulos tem um lócus que permite compreender mais finamente as relações entre a administração colonial, os grandes proprietários (zemindar), os pequenos proprietários, e as massas camponeses que trabalhavam a terra.
O segundo capítulo é provavelmente o mais forte e convincente. “The Great Rent Case” trata de um processo jurídico que consolidou os direitos de renda dos raiyats relativos aos zemindars; estes últimos beneficiaram-se, até então, na colônia britânica pela exclusividade da renda das terras que eles controlavam, salvo os impostos exigidos pelo governo colonial. Os raiyats, no caso uma espécie de inquilinos, e os seus defensores nos tribunais coloniais mobilizaram o discurso de “custom” (costume) para proteger o valor do trabalho que eles produziam ao trabalharem a terra; o que Sartori mostra é que essa mobilização de uma forma pré-capitalista (costume) não impediu que os mesmos argumentos consolidassem as relações sociais baseadas em normas liberais. Ainda que Sartori aceite, em geral, a afirmação historiográfica de que teria havido uma virada antiliberal na política colonial da Inglaterra no final do século XIX, o autor mostra, todavia, como um retorno ao costume nas colônias podia representar uma intensificação da mercantilização das relações sociais e o fortalecimento dos argumentos político-econômicos, vindos de diversos segmentos da população (p. 38).
O terceiro capítulo, “Customs and the Crisis of Victorian Liberalism”, traz os argumentos sobre o costume, em Bengala, de volta à Inglaterra vitoriana. Com a restrição do acesso à terra e a consolidação de propriedade em poucas mãos na Europa (criando, portanto, uma crise nas condições de possibilidade de uma política liberal, seja em Locke, seja em Mill), a colônia asiática permitiu a emergência de um novo “discurso especificamente liberal de costume” na metrópole (p. 62). O quarto capítulo, “An Agrarian Civil Society?”, trata da questão de como a sociedade civil poderia ser imaginada em uma sociedade agrícola. Enquanto os historiadores Partha Chaterjee e Dipesh Chakrabarty, da corrente de estudos subalternos, afirmam que, em resposta à colonização britânica e à falta de poder, os intelectuais indianos voltaram-se à esfera privada (o lar, a família e a cultura), Sartori mostra que o raiyat bengalês era “[…] o campeão da sociedade civil ao invés do seu crítico” (p. 125). Longe de serem passivos ou resistentes às normas liberais inglesas, estes pequenos proprietários avançaram a causa da economia política com afirmações lockeanas (de novo, sem fazerem referência a Locke) que dependiam do poder do trabalho na constituição da propriedade (p. 126).
O último capítulo, “Peasant Property and Muslim Freedom”, traz os argumentos dos precedentes – todos do período colonial – para o período contemporâneo, como a questão da independência da Índia e de sua partição. Se os primeiros capítulos dependem principalmente de fontes relativas às elites (relatos de processos coloniais, documentos governamentais etc.), este último evidencia um liberalismo “vernacular” – é, no caso de Bangladesh, um liberalismo muçulmano. Ainda que o leitor não especialista certamente vá se perder nos detalhes políticos – a história événementielle, caso se queira – as fontes que Sartori traz à luz, de pensadores populares, fortalecem seu argumento. Ele conseguiu ler as vozes vernáculas por meio dos documentos do período colonial e nos documentos do período mais contemporâneo. Sartori analisa a identificação do agricultor com o Islamismo, produzido por uma moralização dos atributos de ética de trabalho e piedade. Esta moralização serviu para substituir identidades culturais por questões de produção. Infelizmente, Sartori afirma, esta identificação impediu “as trajetórias mais radicais dos discursos liberais de propriedade” (p. 183).
Em Bangladesh, os pequenos proprietários tiveram duas tendências opostas. Por um lado, eles enraizaram a sua propriedade no valor-trabalho, permitindo, assim, o acesso a capital e terra a quem não os detinha anteriormente; por outro lado, eles atenuaram seus argumentos, fixando a propriedade nas mãos de quem já a teve (ou deveria ter), excluindo a possibilidade de um enraizamento político-econômico mais profundo e radical, cujo valor-trabalho pertenceria seja ao trabalhador, seja à sociedade. Em Bengala, como na Inglaterra e em tantos outros lugares do mundo, a história deste pensamento prático, desta ecologia de afirmações e argumentos sobre a propriedade não é menos “intelectual” por se distanciar dos argumentos originários de Locke. Ao contrário, a análise intelectual focada no pensamento ativo de vários segmentos da população permitirá compreender melhor o enraizamento de ideologias e formas de ser. Andrew Sartori, em Liberalism in Empire, nos oferece algumas pistas de por onde e como começar.
Ian Merkel – Doutorando, History and French Studies, Graduate School of Arts and Sciences, New York University. E-mail: ianwmerkel@gmail.com.
El precio de la guerra – TIBLE (RH-USP)
TORRES SÁNCHEZ, Rafael. El precio de la guerra. El Estado fiscal-militar de Carlos III (1779-1783). Madrid: Marcial Pons, 2013. 459 p.p. Resenha de: ÁLVAREZ, José Manuel Serrano. Carlos III y el estado fiscal-militar 1799-1783. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.
Pocos conceptos introducidos recientemente en el debate académico sobre la Edad Moderna han sido más influyentes que el del Estado fiscal-militar, desarrollado en la década de 1990 por el historiador británico John Brewer1. La idea que encierra es dilucidar la relación (o relaciones) existente entre la maquinaria fiscal de las grandes potencias del momento (en especial durante el siglo XVIII), y su no menos intrincada política militar, ciertamente expansiva y muy agresiva durante el Siglo de Las Luces. La relación guerra-dinero es aquí la clave. Sin embargo, el fenómeno es más complejo de lo que parece, porque engloba un trinomio que engarzaría los mecanismos administrativos que ponían en marcha la guerra, los instrumentos fiscales en juego para hacer viable la política exterior, y la balanza comercial que nutría, vía presupuestos (y el factor deuda) todo el entramado.
Cuando este concepto fue lanzado se pensó en primera instancia en Gran Bretaña, en donde aparentemente los juegos de poder entre la clase comercial, el Estado y los planes de enfrentamiento militar con Francia y España, descansaban en la sólida idea de establecer un nivel de competencia global en donde la fuente principal era la capacidad de Gran Bretaña para movilizar sus recursos bajo la cortina de la soberanía y legitimidad monárquicas, todo ello aderezado por un Estado centralizado que se alejaba de la vieja idea de que en las islas la maquinaria estatal era pequeña y débil.
Ni que decir tiene que la idea de Brewer fue pronto recogida por los más destacados modernistas españoles, ya que el modelo, lejos de ser limitante, ofrecía la oportunidad de establecer niveles de comparación con otras potencias europeas que disponían (por su propia evolución histórica) de los tres elementos esenciales de análisis: estructura fiscal consolidada, política mercantilista y un Estado centralizado.
El libro del profesor Torres, uno de los mayores expertos españoles del concepto Estado fiscal-militar, ofrece un sugerente, brillante y bien elaborado análisis sobre los mecanismos que tensionaron fuertemente al Estado de Carlos III durante la guerra que de 1779 a 1783 lo enfrentó, nuevamente, a Gran Bretaña. La hipótesis del autor descansa en la idea de si esta guerra jugó un papel dinamizador para el proyectado esfuerzo modernizador (reformista) del país en aras de atlantizar la política global española, y si la movilización de recursos estuvo a la altura de dicha dinámica general.
Esta nueva contribución del historiador español se nutre también de la sólida idea de establecer qué tipo de relaciones hicieron posible que España fuera capaz de enfrentarse con éxito a la maquinaria naval militar británica, en una guerra global de dimensiones imperiales, recurriendo una vez más a fuentes de financiación diversas, implicando a actores sociales muy heterogéneos, y poniendo en marcha una amplia gama de mecanismos de recaudación fiscal. En síntesis, lo que este libro pretende es buscar los elementos comunes entre España y otros Estados europeos respecto de la viabilidad o no del concepto fiscal-militar.
El primer capítulo, dedicado a los donativos al rey, trata de establecer el nivel de vinculación entre la política del Estado y sus súbditos e instituciones más representativas. Obviamente, al profesor Torres no se le escapa la importancia de relacionar la política exterior y sus urgencias monetarias con la compleja dinámica que descansa tras un donativo. Cuando este donativo es voluntario, es posible vindicar una concomitancia de intereses “nacionales” entre el rey y sus súbditos, como así se trasluce en estas páginas, en donde, por sorprendente que parezca, hay una manifiesta buena acogida (incluso entre simples gentes), respecto a los belicosos deseos de su rey. Sin embargo, como bien argumenta el autor, hay fuertes implicaciones políticas cuando los donativos no son precisamente “graciosos”. Al otrora poderoso Consulado sevillano no se le exigió aportación alguna, porque esto habría ameritado una serie de prebendas y contraprestaciones difíciles de asumir por un Estado que tendía (con mayor o menor éxito) a solidificar el sector estatal. Esta idea, que el autor apoya sólidamente con la bibliografía más representativa, en especial la del historiador norteamericano Allan Kuethe, contrasta con lo que ocurría más hacia el oeste.
En América la búsqueda de recursos fiscales fue un factor esencial, máxime si se tiene en cuenta la dimensión imperial de la guerra, y sus objetivos concretos. En estas páginas se argumenta que las peticiones de donativos americanos fueron el instrumento más deseado por Madrid debido a la baja presión fiscal en las colonias y a la mayor capacidad de “negociación” con las instituciones garantes de los recursos fiscales. Aunque esta idea no deja de ser atractiva, no parece que predominen las pruebas en esa dirección. La presión fiscal americana es un elemento de muy difícil cuantificación sin disponer de todos los vectores de análisis. No abundan las series demográficas, y los precios y salarios representan una variable vital de la que solo tenemos series parciales y poco homogéneas para el continente americano. Además, no hay que olvidar el factor de la economía privada que usualmente escapa a la documentación sobre la fiscalidad, así como de las economías de intercambio o trueque, que jamás desaparecieron en amplias zonas americanas. Pese a que los indicios de que el americano pagaba menos impuestos que el peninsular son fuertes, es sumamente complicado relacionarlo con una causa explicativa del recurso a los donativos allí, porque además esto iría contra la idea de que el Estado tendía a modificar sus estructuras de control para hacerlas más centralizadas, fuertes y eficaces.
Y aunque la Corona trató siempre de implementar sus reformas en América con cierta “mano tendida”, Carlos III no era de esos reyes que negociaran políticamente con súbditos que, por lo demás, eran bastante privilegiados. Cuando Madrid solicita donativos a los americanos, no lo hace ni porque sienta la necesidad de negociar con ellos, ni porque tema subir los impuestos y busque un canal alternativo; lo hace porque está en una posición de poder respecto de su plan general de maximizar sus recursos, controlar las instituciones y hacer cómplices a los americanos de un proyecto de esfuerzo común. A Madrid no le tembló el pulso enviando en 1778 al visitador Gutiérrez de Piñeres a la Nueva Granada precisamente para subir los impuestos y aumentar la recaudación fiscal, cosa que acabó afectando a la alcabala, y a los estancos, y provocando la sonora revuelta de Los Comuneros en 1781. De igual forma, los visitadores del Perú (José Antonio Areche), del Río de la Plata (Pedro de Cevallos) y de Venezuela (José de Ávalos), por la misma época, estaban tratando de introducir las mismas recetas por órdenes directas del entonces ministro José de Gálvez, quien en su famosa visita de una década antes había ideado ya el plan de reforma estructural americano, que pasaba por la introducción de la Intendencia, la elevación de impuestos, la intervención estatal de los estancos, la reorganización y centralización administrativa, y el incremento de la recaudación fiscal vía férreo control estatal. Por consiguiente, ¿por qué iba a temer Madrid llevar a cabo la misma política en su virreinato más rico, como era el de Nueva España?
La petición de donativos fue menos petición que exigencia estructural. Madrid sabía dónde estaba el dinero y qué podían obtener a cambio quienes lo otorgaban. No es casualidad que las inmensas cantidades de plata suministradas al rey saliesen del Consulado de México o del Tribunal de la Minería. Estas instituciones, pese a que mostraron prudentemente oposición inicial a las reformas fiscales (¿cómo no?), eran las únicas que tenían capacidad de adaptarse a las nuevas circunstancias, pues controlaban los mecanismos comerciales y disponían de capital para prestar. Además, siempre obtendrían suculentos beneficios sociales de entregar dinero a Madrid con aparente parsimonia.2 Una pequeña limitación del profesor Torres es el olvido, en esta sección, de otras áreas americanas que también pasaron por los mismos mecanismos de donativos y préstamos. Disponemos de interesantes trabajos sobre los ámbitos neogranadino o peruano3 que indican una tendencia creciente a ofrecer dineros y no precisamente mediante mecanismos de negociación o temor a introducir o incrementar los impuestos.
El siguiente capítulo dedicado a los impuestos de la Real Hacienda, es un sugerente y bien articulado análisis (tanto cuantitativo como cualitativo) de los recursos que movilizó el Estado para hacer frente a su política fiscal-militar. Epicentro de esta parte del libro son las dinámicas políticas internas en torno a las subidas de impuestos (en especial rentas provinciales) y la poco sutil disputa entre ministros acerca de cómo encajar los diversos factores de ingresos y gastos de una economía que, como la española, tenía limitadas posibilidades de crecimiento industrial. La Extraordinaria Contribución y el tabaco son los dos grandes ejes sobre los que el profesor Torres centra su análisis. En el primer caso, se observó un complaciente dilema de Carlos III (“amor odio” como lo llama el autor) a la hora de crear un impuesto con pretendidas ansias recaudatorias pero de carácter general para Castilla que hacía trasladar hacia la municipalidad gran parte de la presión fiscal, justo el lugar en donde las oligarquías locales llevaban generaciones controlando (y desviando) recursos que eran, de hecho, de la Corona. Aquí la interpretación del autor se centra en la maximización de las opciones recaudatorias mediante la eficacia de los agentes (intendentes) que debían controlarlo. Este punto es especialmente brillante porque conecta el problema fiscal con la pretendida y consabida centralización y eficiencia burocrática, esencial para entender la segunda oleada reformista del siglo XVIII español. El autor demuestra el incremento de la recaudación mediante la Extraordinaria, pero también el fracaso estructural (¿resistencia burocrática?) de un proyecto con aspiraciones globales.
Respecto del tabaco como fuente de ingresos, el Dr. Torres visualiza a la perfección el gran problema de este suculento monopolio. En primer lugar, la perdida batalla contra el contrabando, frente al que la Administración poco podía hacer. La guerra por el control de los precios refleja aquí las angustias de un gobierno por hacer equilibrios en una coyuntura de tendencia alcista en los mismos. Pero por otra parte, pese al notable incremento de la recaudación fiscal del tabaco (en el que las remisiones americanas eran estratégicamente decisivas), el autor fija su atención en el también insoluble problema (nuevo dilema) de aunar la eficacia recaudatoria con el mayor despliegue burocrático anexa a la misma, lo que elevó sustancialmente los gastos internos de este monopolio, sustrayendo, por tanto, gran parte de sus beneficios netos. De igual forma, la obsesiva tendencia de la Corona por controlar la deuda, está aquí íntimamente relacionada con los “dineros del tabaco” pues Carlos III fue recurrente en la consignación de la amortización de la deuda sobre la renta del tabaco, haciendo fracasar las esperanzas “porque el modelo de monopolio que sustentaba la Renta limitó la capacidad de reacción” (p. 280).
El capítulo dedicado a la deuda nacional representa el culmen del libro y uno de los temas focales de la trayectoria del profesor Torres. Una de las tesis principales del autor ha sido la crítica a la posición de los Borbones (en especial en época de Carlos III), frente al problema de la deuda. Ante una tradicional historiografía que achacaba los males de la España de finales del XVIII (y consecuentemente factor clave en su decadencia y atraso posteriores) a la excesiva deuda externa, el autor no solo defiende, sino que además demuestra, que uno de los problemas principales de la época de Carlos III fue el poco flexible uso que se le dio a la deuda a la hora de acometer su política internacional. Temeroso de que el fantasma de la época de los Austrias asomara en el horizonte, el gobierno carolino mantuvo una posición equidistante entre sus compromisos internacionales (que forzaban a buscar crédito y ampliar la deuda de cara a la guerra) y el equilibrio presupuestario (que empujaba hacia la disminución de la deuda nacional). El resultado de estas tensiones fue, a juicio del profesor Torres, una actitud ambivalente y dubitativa respecto de los ingresos y gastos, y cómo gestionarlos. La creación del Fondo Nacional (papel moneda), los Vales Reales o el recurso al crédito internacional fueron elementos enjugados por Carlos III en un desesperado intento por mantener a España frente a Inglaterra en el contexto de la pugna internacional, al tiempo que mantenía la deuda nacional en unos límites sorprendentemente bajos. El uso de los recursos americanos fue, nuevamente, el factor clave, pues estas medidas fueron pensadas tanto para mantener una deuda en límites bajos, como para defender el mercado americano, muy sensible siempre a cambios estructurales en un monopolio férreamente defendido por las clases comerciales allende los mares. La introducción del Reglamento en 1778 representó una medida que pretendía imitar al modelo inglés, pero se introdujo tímidamente y en un momento demasiado tardío.
De estos argumentos extrae la conclusión el autor de que la deuda nacional fue un instrumento político creado artificialmente en un período bélico y sufragada (o avalada) por el tesoro americano, pero nunca representó un mecanismo capaz de sostener en el tiempo (como hizo Inglaterra) un Estado fiscal-militar. O dicho de otra forma, Carlos III hizo frente al problema de la guerra con un uso “mezquino” de la deuda, porque al mantenerla en niveles muy bajos (apenas representaba según el profesor Torres un 7% de los ingresos (p. 407), introduciendo tardíamente reformas de profundo calado en el sistema comercial (Reglamento de 1778), limitando el “secuestro” de caudales a los intereses gremiales, o supeditando la creación de los Vales Reales a una coyuntura concreta (en vez de articularla como un mecanismo estructural de largo recorrido), no se hacía otra cosa que supeditar la política exterior (necesariamente tendente a la deuda) al afán de mantener el equilibrio presupuestario cuando todo indicaba que debía generarse un mecanismo de largo aliento que insertara los intereses privados en los públicos (como se hacía en Inglaterra).
La ausencia de un verdadero Estado fiscal-militar capaz de mantener una deuda flotante importante pero sostenida en la imbricación de los intereses privados del comercio, e inserta en un plan global de respuesta a la política exterior belicosa que no limitara los gastos por la obsesión de la deuda, sino que la empujara como un elemento generador de una dinámica expansiva comercial-financiera-militar, es posiblemente, la conclusión última de este importante libro.
El precio de la guerra representa, sin duda, un sustancial avance en la comprensión del Estado de Carlos III y los problemas de la deuda y la guerra. El carácter interpretativo de la obra, y la brillante exposición argumental, muestran que el profesor Torres domina perfectamente los difíciles hilos que conectan (y no siempre se aprecian) los componentes políticos, con los fiscales y militares. Una obra que, merecidamente, marcará un hito para posteriores estudios globales de similar naturaleza para todo el siglo XVIII español.
1BREWER, John. The Sinews of Power: War, Money and the English State, 1688-1783. Londres: Unwin Hyman, 1989.
2VALLE PAVÓN, Guillermina del. Respaldo financiero de Nueva España para la guerra contra Gran Bretaña, 1779-1783. La intermediación financiera del Consulado de México. In: SANTIRÓ, Ernest Sánchez & CARRARA, Ángelo Alves (coord.). Guerra y fiscalidad en la Iberoamérica colonial (siglos XVIII-XIX). México: Instituto Mora, 2012, pp. 143-166.
3MEISEL, Adolfo. Crecimiento, mestizaje y presión fiscal en el virreinato de la Nueva Granada, 1761-1800 >. In: Cuadernos de Historia Económica y Empresarial, nº 28, Bogotá, Banco de la República, 2011; O´PHELAN, Scarlett. Las reformas fiscales borbónicas y su impacto en la sociedad colonial del bajo y alto Perú. In: JACOBSEN, Nils & PUHLE, Hans J. (ed.). The economics of Mexico and Peru during the late colonial period, 1760-1810. Berlin: Colloquium Verlag, 1986.
José Manuel Serrano Álvarez – Doctor en Historia por la Universidad de Sevilla. Profesor titular en el Dpto. de Historia de la Facultad de Ciencias Sociales y Humanas. E-mail: jmserranoalvarez@gmail.com.
As quatro partes do mundo – GRUZINSKI (RH-USP)
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Tradução de , Mourão, Cleonice Paes Barreto; Santiago, Consuelo Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. Resenha de: VELLOSO, Gustavo. O tempo e o mundo: defesa de uma história planetária. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.
A edição brasileira do livro As quatro partes do mundo: história de uma mundialização (no original: Les quatre parties du monde: histoire d’une mondialisation) do historiador francês Serge Gruzinski, por associação da Editora UFMG com a Edusp, chega em boa hora. A aceleração do fluxo de pessoas, mercadorias e informações em um contexto de crise sistêmica do capitalismo, o surgimento de novas tensões políticas em fronteiras nacionais de todo o mundo, bem como a austeridade das políticas de imigração nos países centrais (e os diferentes tipos de reação a elas) são fenômenos que têm exigido dos historiadores novos esclarecimentos sobre a dinâmica das transformações originadas mundialmente no contexto das navegações marítimas do século XVI e ainda hoje processadas. A obra de Gruzinski representa um passo significativo nessa direção.
I
A mundialização a que se refere o subtítulo é aquela associada ao poderio da monarquia ibérica – expressão empregada pelo autor sempre na forma singular, realçando a época de unidade das coroas portuguesa e espanhola, entre os anos 1580 e 1640. Todavia, sua análise não se limita aos quadros cronológicos dessa união, pois mobiliza materiais e informações que dizem respeito a outros anos, incluindo anos recentes e contemporâneos à primeira edição do texto (2004). Gruzinski principia, em seu prólogo, chamando atenção para a repercussão que houve da notícia do ataque às torres gêmeas norte-americanas, em 2001, em um restaurante situado em Buenos Aires, cujo garçom lamentou não ter apostado na combinação numérica referente àquele fato, e nas ruas de Belém do Pará, onde a multidão local transformou sua tradicional procissão à Virgem de Nazaré em um verdadeiro protesto contra o atentado. E encerra o livro, em epílogo, problematizando a ideologia contida nas produções cinematográficas da globalização hollywoodiana. Com isso, destaca a multiplicidade e a sincronia dos diferentes tempos históricos, as mestiçagens e a espontaneidade das reações travadas contra as dominações mundiais de ontem e de hoje.
O autor cuida, no entanto, para que o leitor não identifique na mundialização ibérica a origem imediata da mundialização americana, pois se trataria antes de um antecedente remoto. A razão do paralelo consiste em “mostrar que a história permanece uma maravilhosa caixa de ferramentas para compreender o que está em jogo, há vários séculos, entre ocidentalização, mestiçagem e mundialização” (p. 23). Em outras palavras, a história da monarquia ibérica serve-nos como um admirável “teatro de observação” (p. 45) do mundo presente. Comprometido criticamente com o seu próprio tempo, recusando instrumentalizar a disciplina histórica apenas para a mera fruição erudita, Gruzinski não deixa por isso de respeitar as particularidades e a historicidade do seu objeto principal, isto é, o estreitamento dos laços entre as “quatro partes do mundo”, operado sob o domínio da monarquia católica durante os séculos XVI e XVII.
II
A obra se divide em quatro partes. Na primeira (“A mundialização ibérica”, capítulos 1 a 3), o autor precisa os contornos da categoria “mundialização”, em uma conceituação intimamente associada a uma certa noção de “modernidade”. No seu entendimento, “mundialização” se refere à escala planetária dos horizontes de atuação e às interconexões humanas, materiais e simbólicas que se construíram sob o marco da dominação colonial da monarquia católica nos continentes europeu, africano, asiático e americano. A modernidade desse processo consiste no fato de que teria então aflorado nos diferentes agentes históricos “um estado de espírito, uma sensibilidade, um saber sobre o mundo nascidos da confrontação de uma dominação de visão planetária com outras sociedades e outras civilizações” (p. 32). Uma modernidade marcada pela geração de mediadores sociais e espaços intermediários de convergência do “local” com o “global”, além de choques culturais, dominação, adaptações, mestiçagem e resistências.
A repercussão, no México, de notícias como a da morte de um rei francês em 1610, o interesse de um escritor mestiço da Nova Espanha pelas coisas do Japão, os deslocamentos de homens e mulheres pelos mares, a busca e o translado de relíquias provenientes dos mais exóticos lugares, a difusão das línguas europeias, a circulação transoceânica de livros que muitas vezes propagandeavam saberes adquiridos por viajantes nas fronteiras do mercado mundial, o alargamento dos limites geográficos, o compartilhamento global de novos hábitos e formas de consumo: eis os indícios daquilo que Gruzinski caracterizou como “mobilização”. Esse conceito, emprestado do filósofo alemão Peter Sloterdijk, permite ao autor superar o caráter mecânico e eurocêntrico do vocábulo “expansão”, à medida que considera, além do mero deslocamento territorial, a expressão dos movimentos subjetivos, entusiasmos e precipitações de seres humanos, coisas materiais e saberes cambiados entre os hemisférios.
Na segunda parte do livro (“A cadeia dos mundos”, capítulos 4 a 6) encontramos o exame detido e aprofundado das conexões entre os continentes, bem como os choques e o caráter mestiço das formações sociais e culturais resultantes daquele movimento. Focalizando inicialmente a Cidade do México – “onde se modelam os liames entre as quatro partes do mundo”, cenário privilegiado “de coexistência, de afrontamentos e de mestiçagens” (p. 99) -, o autor realiza uma breve incursão sobre o mundo do trabalho para enfatizar o papel da tradição artesanal indígena no favorecimento da absorção pelos nativos dos ofícios europeus. Em seguida, narra a mestiçagem linguística operada no interior dos obrajes e dos ateliês, graças à atuação de mediadores sociais como espanhóis falantes do náuatle, religiosos, elites indígenas hispanizadas, mestiços e índios trabalhadores manuais. A heterogeneidade étnica e a porosidade social não foram capazes de evitar, no entanto, as “vias tortuosas” da mudança. Ora, à maior parte dos nativos foram vedados os meios de participação na estrutura monárquica que não fosse pelo oferecimento de força de trabalho. E a nova plebe constituída no interior das grandes cidades se envolveu, por vezes, em revoltas e motins de grande dimensão, contra o fisco e/ou mudanças na organização da monarquia.
No quadro da mundialização/mobilização ibérica, argumenta Gruzinski, a visão de mundo que orienta os esforços humanos vai progressivamente perdendo sua configuração “estritamente europeia para se tornar ocidental” (p. 126). Em outras palavras, a Europa deixa de ser o núcleo exclusivo da monarquia para se somar (na condição de dominante, não resta dúvida) a tantos outros centros globais então em franco crescimento: “[Pode-se] perguntar se a capacidade de multiplicar as centralidades meio reais, meio virtuais não é uma das molas da mundialização ibérica” (p. 127). Cidade do México, Lima, Potosí e Goa aparecem como espacialidades mestiças que sintetizam em seus interiores a totalidade dos nexos que unificam o planeta debaixo do poder dos reis Felipes, pois abrigam redes humanas, mercantis, de notícias, livros e espetáculos. Nela se evocam lembranças da África, fascinam-se pelos objetos e fábulas da Ásia, colam-se imaginários provenientes de toda parte, enfim, entrelaçam-se perspectivas de mundialização com referenciais advindos dos mais diferentes ideários pré-hispânicos.
Como uma ponte que atravessa de uma única vez todos os oceanos, o caráter compósito dessas ligações era “ao mesmo tempo físico, material, psicológico e conceitual” (p. 156). Instituições, práticas e crenças foram transferidas juntamente aos seus representantes para materializar o catolicismo no mundo extra europeu, mas não sem antes sofrer transformações e ajustes conforme as especificidades locais de cada região. Histórias, trajetórias, ritmos de vida, memórias e riquezas, à medida que sincronizados, fizeram-se modernos.
Os agentes privilegiados da mundialização são objeto da terceira parte da obra (“As coisas do mundo”, capítulos 7 a 11). Homens como o médico Garcia de Orta e o dominicano Gaspar da Cruz, ambos portugueses, funcionários da Igreja ou da Coroa, assim como administradores, militares, cosmógrafos, engenheiros e literatos, instrumentalizaram suas experiências vivenciadas em locais como Goa e Nova Espanha para cumprir objetivos ao mesmo tempo práticos e políticos. As informações e os conhecimentos feitos circular por esses hombres expertos, de um lado, serviam como denúncia da idolatria e dos maus costumes das diversas castas de gentio, e fortaleciam os poderes real e eclesiástico sobre as localidades fronteiriças. Unir os mundos, diz-nos o autor, era antes de mais nada “fazê-los comunicar” (p. 235). Inventariando as características das sociedades e da natureza (americanas, africanas e asiáticas), recolhendo informações sobre as culturas humanas, as condições geográficas, os animais, as plantas, as religiões e as medicinas locais, por exemplo, os saberes se convertiam em verdadeiras ferramentas de poder.
Com a autoridade dos escritores clássicos, ademais, os experts rivalizavam entre si pela defesa da credibilidade da própria experiência e se esforçavam para interpretar a diversidade das fontes, das escritas e das histórias indígenas com as quais deparavam. É certo que esse movimento demonstra ter existido um certo grau de receptividade frente aos “outros mundos”, mas havia limites quase nunca transpostos, expressos sobremaneira no tom crítico com o qual tais observadores se posicionavam diante daquelas outras realidades. Sua tarefa era dupla, “pois lhes é preciso tanto conectar-se com o passado autóctone, quanto com a história cristã e europeia” (p. 280). Eram, acima de tudo, servidores da monarquia, em cujo interior se situavam e para a qual dominação direcionavam primordialmente os seus esforços e a sua sempre enfatizada fidelidade. Especialmente quando se tratasse de elites católicas, à maneira de gente como Martín Ignacio de Loyola, Rodrigo de Vivero, Salvador Correia de Sá e Benevides e os poetas Bernardo de Balbuena e Luís de Camões.
Gruzinski delineia com perfeição as mestiçagens, acomodações e resistências indígenas travadas no contexto da colonização ibérica, trabalhando com a justa dosagem entre o apontamento desse tipo de fenômeno e o reconhecimento do processo de dominação mundial levado a cabo concretamente pela monarquia. Na verdade, trata-se para o autor de esferas indistintas, pois a perspectiva metodológica que adota é a da totalidade, distanciando-se da tendência historiográfica contemporânea para descrever “resistências” desconexas de processos históricos mais amplos, isto é, concretos ou totais. A quarta e última parte do livro (“A esfera de cristal”, capítulos 12 a 16), tem por princípio enfatizar os filtros e bloqueios aos cruzamentos, as impermeabilidades sociais da realidade observada e demonstrar que, afinal: “Toda mestiçagem tem limites” (p. 352). Os objetos nativos, quando absorvidos pelo universo europeu, modificavam-se para satisfazer o gosto e o interesse da sociedade europeia. A arte indígena, tornada cristã e/ou inserida nos circuitos modernos de valorização, era neutralizada e reelaborada com traços e formas de matriz europeia, transformando-se em arte ocidental. “A mundialização ibérica mestiça-se ocidentalizando-se, e ocidentaliza-se mestiçando-se” (p. 349). Os pintores europeus que viveram na Nova Espanha fizeram questão de destacar a fidelidade à tradição europeia em suas telas, assim como as elites urbanas (por vezes até mesmo as indígenas) procuraram convencer de que foram europeizadas por meio de suas produções, o que não excluiria uma certa apropriação criativa dos recursos locais. O latim, a gramática e os emblemas europeus teriam sido apenas pontualmente tocados pelas influências léxicas indígenas, ao menos no que tange àquele momento histórico particular. O aristotelismo – “a arma de uma fortaleza letrada que ataca em todas as direções” (p. 434) -percorreu os continentes e permaneceu grosso modo impenetrável pelas filosofias e sistemas de pensamento locais, por mais admiráveis que estes tenham parecido a determinados observadores estrangeiros.
A análise toda culmina ainda em uma nova demarcação conceitual, que consiste na distinção entre “globalização” e “ocidentalização”. Como uma “águia de duas cabeças”, a mundialização ibérica gestou e abraçou esses dois processos simultâneos, na prática indissociáveis, mas ainda assim com dimensões e escalas diferenciadas. De um lado, a globalização, “fundamentalmente política” (p. 426), diria respeito à projeção para o exterior dos instrumentos intelectuais e comunicativos europeus, ignorando as temporalidades sociais distintas e “cuidando para que nada de essencial fosse contaminado pelo exterior” (p. 425). De outro, a ocidentalização se manifestaria no caminho da dominação colonial propriamente dita, esta sim amplamente permeada tanto pela mestiçagem quanto pela aculturação.
III
O autor se posiciona favoravelmente à perspectiva das connected histories, conforme proposta pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. Na sua interpretação, “trata-se de apreender ou restabelecer as conexões surgidas entre os mundos e as sociedades, um pouco à maneira de um eletricista que viria reparar o que o tempo e os historiadores desuniram” (p. 45). E, uma vez assumida essa ótica, posiciona-se de maneira crítica frente às principais tendências historiográficas hoje vigentes. O pós-modernismo, ou “retóricas da alteridade”, para ele, ignora as continuidades e correspondências concretas entre os seres e as sociedades, e com isso se soma à chamada micro-história na sua incapacidade de alargamento dos horizontes de observação. A história comparada lhe parece reduzir-se às aproximações e ser excessivamente carregada de pressupostos vazios. Sobre a world history, apesar do importante legado que deixou para o olhar sobre a transposição dos oceanos, julga ser ainda permeada pelo etnocentrismo, sacrificando a profundidade das situações particulares e se mantendo demasiadamente presa aos horizontes próprios da Europa ocidental. A este defeito tampouco fugiriam os cultural studies, os subalternal studies e os postcolonial studies estadunidenses da década de 1980. Ao marxismo, não dedicou mais que uma tímida nota (p. 464, nota 97), ainda que simpática, apontando a existência de uma releitura de Marx aplicada ao fenômeno da mundialização. O alvo principal de Gruzinski, todavia, contra o qual direcionou com maior vigor o potencial crítico do seu estudo, é o reducionismo das histórias nacionais em suas diferentes manifestações. Contra estas, não hesitou em reconhecer, ademais, a contribuição de pesquisadores de renome, como Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, cujas obras abriram as vias para o reconhecimento de que a história da época moderna é a história das múltiplas conexões entre o local e o global; não é uma história nacional, mas planetária.
Os méritos de “As quatro partes do mundo” ultrapassam as próprias conclusões do livro e o fato de se travar ali um debate historiográfico amplo. Sua maneira de dispor e mobilizar as fontes primárias é igualmente digna de reconhecimento. Gruzinski soube equilibrar com perfeição e harmonia, de um lado, a erudição empírica e, de outro, o ímpeto pelo rigor conceitual e pelas interpretações de maior alcance. Apresenta um olhar permanentemente atento ao detalhamento dos materiais examinados, que comportam desde crônicas, relações e outros testemunhos escritos, até a poesia, os quadros, tratados, objetos de museu, códices, planos, painéis, biombos, inscrições, vasos, gravuras e afrescos. De leitura fluente e agradável, a edição presente conta ainda com a reprodução de uma iconografia cuidadosamente selecionada e distribuída entre os capítulos, grande parte dela problematizada e discutida no próprio texto onde se coloca.
Além disso, do ponto de vista metodológico, o leitor encontrará uma visão rica de processo histórico e uma sensibilidade extraordinária para o conflito. Sua narrativa não é a de uma estrutura estática, mas sim de uma totalidade em permanente formação e mudança, em processo contínuo (mas não linear), o que fica ilustrado na repetição do sufixo indicativo de ação nos seus mais importantes conceitos e categorias: mobilização, mundialização, globalização, ocidentalização. A continuidade dos referidos processos não exclui que eles fossem também, ao mesmo tempo, pluridimensionais e repletos de tensões. Assim, o fenômeno da mestiçagem do qual dão conta os numerosos eventos levantados por Gruzinski (tocantes a cada um dos quatro continentes) não seria menos que a ebulição dos complexos antagonismos entre expectativas, lugares e papéis sociais gerados no seio da mundialização ibérica. Expressava, pois, não qualquer tipo de harmonia ou conformidade social entre dominados e dominadores, mas as contradições inerentes ao processo mesmo de dominação, que envolviam toda a variedade de agentes governados pela monarquia, fossem eles europeus, nativos ou crioulos.
É verdade, porém, que de uma obra que se apresenta como a “história de uma mundialização” poderíamos esperar uma incursão mais aprofundada sobre determinados domínios que parecem-nos tão fundamentais para a compreensão da época quanto aqueles dos quais tratou Gruzinski com efetivo zelo. Por exemplo, não há mais que breves pinceladas sobre alguns dos diferentes regimes de exploração do trabalho compulsório em maior ou menor medida relacionados àquela mundialização (escravidão, encomienda, mita, administração particular, repartimiento, assalariamento, “segunda servidão” etc.). Ou então se poderia alegar que, entre todas as áreas americanas tocadas pela monarquia dos Felipes, o autor claramente privilegiou a Nova Espanha em suas remissões (ofuscando territórios de menor relevância econômica para os reis ibéricos, onde as conexões globais eram decerto menos visíveis), o que pode ser explicado pela maior familiaridade com os materiais empíricos que lhe correspondem, dada sua experiência anterior com as investigações daquela região.
Mas o que torna as teses de Gruzinski provocantes é justamente o fato de o autor tê-las apresentado como propostas abertas, porventura incompletas, dispostas à complementação e ao aperfeiçoamento. Abertura esta que, por fim, se estende para o âmbito do tempo imediato, sendo impressionante a atualidade do livro (editado primeiramente em 2004, já o dissemos) em um estágio da globalização em que, se ainda não presenciamos um novo ataque a edifícios norte-americanos, temos sido alarmados diante de explosões e fuzilamentos em lugares como a sede de um jornal, um teatro e as proximidades de um estádio de futebol, todos na França. Para não falar, obviamente, nas irrupções menos midiáticas sobre Gaza e Iêmen, sobre os territórios dos Mapuche e dos Guarani Kaiowá ou, quem sabe, sobre a Rocinha e o Morro do Alemão.
Gustavo Velloso – Mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. E-mails: gustavo.velloso@usp.br; gustavo.velloso@hotmail.com.
Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas – HERZOG (RH-USP)
HERZOG, Tamar. Frontiers of possession: Spain and Portugal in Europe and the Americas. Cambridge: Harvard University Press, 2015. 384 p.p. Resenha de MOURA, Denise Aparecida Soares de. Uma contribuição para a pesquisa e o debate sobre a formação (Trans) territorial da Iberia. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.
Este é um livro sobre a formação territorial de Portugal e Espanha na época moderna em dois continentes: na Europa e na América. A autora, Tamar Herzog, professora na Universidade Harvard e especialista em temas da história administrativa e da formação das identidades na América hispânica, com ênfase na história do vice-reinado do Peru, abordou este que é um dos temas, desde longa data, focalizado por grandes nomes da historiografia luso-brasileira,1 do ponto de vista dos múltiplos agentes sociais que viviam nos territórios de fronteira e que estiveram mais diretamente envolvidos com questões de posse e uso da terra.
Para Herzog a história da formação territorial ibérica não pode ser reduzida ao protagonismo do Estado, dos tratados negociados nas mesas diplomáticas internacionais, aos combates no front ou à constituição dos estados nacionais. Ao longo do foco narrativo e analítico de seu livro, o ambiente da fronteira aparece na condição de tribuna democrática, na qual fazendeiros, criadores, nobres, clero, párocos, missionários, povoadores, governadores, autoridades municipais e militares expressaram suas noções de direitos fundiários, recorrendo ao argumento dos direitos de uso antigo e costumeiro. Estes sujeitos sociais, ao longo do tempo, fizeram e desfizeram alianças para defender estes direitos que muitas vezes prescindiram da sua condição de vassalo a uma ou outra coroa, pois o que importava era o direito de posse da terra que, muitas vezes, se estendia para o território vizinho.
Para alcançar este mosaico social e inventariar diversos argumentos defensivos de direitos a autora pesquisou em volumosa e variada documentação, desde relatos de exploradores e missionários, correspondência político-administrativa e papéis judiciais existentes em arquivos de Portugal e Espanha e nos atuais países do Brasil, Argentina, Uruguai e Chile, que foram domínios territoriais destas monarquias no ultramar. A especialização da autora na história político-administrativa do vice-reinado do Peru, com foco na região de Quito, certamente influenciou a concentração de suas pesquisas de campo na região da Amazônia e Paraguai para a elaboração deste livro.
Contrastando e inter-relacionando o problema da formação territorial ibérica na Europa e na América, a autora verificou que, embora em ambos os continentes os agentes sociais tenham tido papel proativo, houve diferenças nos argumentos empregados para a defesa de direitos de uso da terra. Assim, na América, os monarcas de ambas as coroas, embora não possam ser vistos como força predominante das definições territoriais, se envolveram mais com esta questão tanto em virtude da vastidão dos territórios sobre os quais teriam de confirmar sua soberania como devido a necessidade de promoverem a incorporação de populações nativas. Como resultado, a definição das fronteiras na Europa foi menos tensa e pouco evocativa da condição de súdito português ou espanhol (p. 245).
Questões como estas estão distribuídas ao longo de uma obra dividida em duas partes contendo dois capítulos cada uma. O foco narrativo do livro é caracterizado por dois componentes que trazem preocupações teóricas com a própria escrita da história ibérica. Ou seja, a autora inverteu o paradigma narrativo Europa-América, começando a discussão do problema a partir desta última. Ao mesmo tempo, preocupou-se em romper com o modelo da divisão da história ibérica entre Portugal e Espanha, optando por tratar os dois espaços em conjunto.
No primeiro caso, seu objetivo foi o de mostrar que a “América não apenas precede a Europa, mas também introduz muitas das questões” que se tornaram objeto de sua investigação (p. 12). O efeito desta inversão em suas conclusões foi o de que as tensões e os debates dos vários agentes sociais sobre a formação territorial no Novo Mundo tiveram ressonância no Velho Mundo. A preocupação excessiva em defender este argumento levou a autora a descrever minuciosamente situações individuais de conflitos de terra em municípios de fronteira na península Ibérica, o que tornou o foco narrativo da segunda parte repetitivo. Um número menor de situações relatadas teria sido convincente, tendo em vista o volume da documentação que a fundamenta.
No segundo caso, ao tratar da história de Portugal e Espanha de maneira articulada e simultânea, a autora explicita um posicionamento teórico que está por trás dos trabalhos contemporâneos em história ibérica e que vem, desconstruindo suas fronteiras. Adeptos desta metodologia e abordagem têm recuperado a narrativa da Hispania, que persistiu para além da dissolução da União Ibérica e previa uma relação de interesses comuns entre os reinos da península Ibérica. Ainda no século XIX e sempre combatida pelos discursos nacionais, esta perspectiva de pensamento persistiu através do movimento denominado Iberismo e que pretendia a fusão de Portugal e Espanha em todos os seus aspectos.
Na primeira parte da obra, a histórica disputa entre as coroas de Portugal e Espanha pelo controle das terras da América, que remonta à assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), é apresentada criticamente a partir de dois planos: o do conflito das interpretações hispânicas e portuguesas das bulas, tratados e doutrinas e o das relações que estabeleceram com as populações indígenas.
Como observou a autora, as limitações de conhecimento geográfico no período, derivadas do próprio nível científico e técnico da época, contribuíram para dar vazão a muitas e variadas interpretações das determinações dos tratados e para a produção de muitos relatos, bem como debates que opuseram geógrafos e práticos do território (sertanistas) em relação ao correto curso de rios e a localização de sinais topográficos, como montanhas, e que poderiam definir os legítimos direitos fundiários de cada uma das coroas.
Entre seus súditos residentes nas zonas fronteiriças surgiram vários argumentos que poderiam endossar a defesa dos direitos de posse do território, como o do trabalho na terra, que para alguns deveria ser permanente e para outros poderia ser sazonal, como pescar, caçar, criar gado e coletar madeira; a navegação de rios, o comércio com populações nativas ou a abertura de estradas. Na medida em que estes usos e mobilidade fluvial ou terrestre inflamavam os debates, ambas as coroas se mantiveram alertas quanto à movimentação de comerciantes, sertanistas e padres missionários nas áreas em disputa, o que deu origem a um dos agentes sociais mais intrigantes e difíceis de biografar, ou seja, os espiões, que poderiam ser soldados ou sertanistas provenientes da capitania de São Vicente.
Nos arquivos e bibliotecas, a autora reuniu consistente volume de papéis públicos, na forma de correspondências trocadas entre autoridades e relatos de expedições que procuravam demonstrar a precedência na ocupação e, portanto, os direitos de posse territorial defendidos por ambas as coroas.
No segundo capítulo desta primeira parte, é discutida a relação entre conversão, vassalagem e direitos territoriais, através do trabalho intelectual e evangelizador dos missionários portugueses e espanhóis de várias ordens religiosas, cujo resultado garantiu a ambas as coroas argumentos que sustentaram suas reivindicações de direitos territoriais. Alguns desses missionários, como o nativo da Boêmia Samuel Fritz, se tornaram ícones na defesa de direitos territoriais dos espanhóis ou de denúncia das usurpações territoriais portuguesas entre seus contemporâneos e foram tidos como grandes geógrafos e reconhecedores de territórios.
O processo de formação territorial ibérica na América, portanto, contou com a efetiva atuação desses missionários que se estabeleceram justamente na região supostamente atravessada pelo meridiano de Tordesilhas, como a da Amazônia e das províncias do Paraguai. Segundo a autora, as coroas de Portugal e Espanha contavam com o poder dos missionários de persuadir os índios não somente a mudarem suas crenças religiosas, mas também a seguirem religiosos de naturalidade hispânica ou portuguesa, pois isto lhes asseguraria direitos de posse sobre territórios (p. 73).
Esta constatação estende a atuação dos missionários do campo da evangelização para o da formação territorial. Assim, suas rivalidades com outros agentes sociais na colônia não se restringiram à sua posição contrária à escravização indígena, como mostraram clássicos da historiografia.2 Várias autoridades régias, como governadores, encarregados de defender a soberania de suas coroas na América, vigiaram os movimentos dos missionários nas áreas de fronteira, classificando-os como ameaçadores da ordem vigente e, com isto, reunindo argumentos para combatê-los.
A conversão era útil para o Estado porque resultava em terras e vassalos, mas introduzia também outro problema: o do direito dos nativos a terra, um dos temas que parece ter aquecido os debates dos séculos XVII e XVIII. Com a emergência de novas diretrizes jurídicas no campo das relações internacionais, baseadas no princípio do direito natural, o conceito de soberania política sobre territórios passou a ser mediado pelo de ocupação, o que derrubou a antiga tradição de legítimo poder concessionário do papado.
Assim, as discussões sobre direitos a terra passaram a girar em torno da definição do tipo apropriado de sua ocupação e, por este viés, ambas as coroas conseguiram deslegitimar os direitos de posse dos índios convertidos. As distâncias de terras desocupadas que deveriam existir entre um grupo indígena e outro, por exemplo, consideradas espaços para caça ou para extração de seus recursos foram consideradas terras vacantes e sujeitas à ocupação pela Coroa, por exemplo. Deste modo, a ordem régia encontrou uma solução para conciliar conversão com concentração de terras, o que no longo prazo influenciou a estrutura fundiária desigual e conflituosa da América ainda nos dias de hoje.
Da formação ibérica na América a autora deslocou o seu foco, na segunda parte da obra, para o espaço da península Ibérica e nesta identificou uma série de similaridades, do ponto de vista da multiplicidade de agentes sociais e a defesa de direitos de posse territorial segundo argumentos específicos. Embora Portugal e Castela negociassem suas fronteiras desde a Idade Média, municipalidades, igrejas, contrabandistas e gente que se denominava fronteira – que vivia e se definia deste ponto de vista geográfico – questionavam divisas e negavam que sua identidade deveria coincidir com divisões político-administrativas oficiais.
Ponto alto desta parte são as constatações da autora sobre as diferenças no processo de formação territorial ibérica na América e na península. Na América, território do Novo Mundo, os conflitos por terra eram mais recentes, contavam com alianças interétnicas que se faziam e desfaziam circunstancialmente e os europeus tiveram pela frente a tarefa de apagar a história do continente, o que significou construir imagens e argumentos que suprimissem os direitos de posse dos antigos habitantes do território.
Esta última questão pode ter tido algum tipo de similaridade com o contexto das guerras de reconquista, quando os ibéricos expulsaram os mulçumanos da península. Em ambos os continentes, houve um processo de detração dos habitantes das fronteiras – fronterizos. Com esta discussão a autora cumpre sua promessa metodológica apresentada na introdução, fazendo com que as formações territoriais ibéricas nas duas pontas do Atlântico enriqueçam-se mutuamente.
Ainda nesta parte, a imagem da hidra, personagem da mitologia grega com várias cabeças, as quais sendo cortadas voltavam a nascer, serviu para indicar quão complexos foram estes conflitos, mesmo quando as divisões entre os dois reinos foram definidas. Municípios como Aroche e Encinasola (Castela) ou Serpa e Moura (Portugal), por exemplo, revezaram entre alianças e conflitos em relação à garantia de uso de suas terras, importando menos a que coroa deviam jurar vassalidade.
No bojo dos conflitos entre estas municipalidades, a autora inova ao demonstrar que as preocupações com as divisões das linhas de fronteira eram mais oriundas das populações locais do que das coroas. As fronteiras não foram, portanto, invenção dos estados ou dos monarcas, mas das populações que desejavam definir onde seu gado podia pastar, onde podiam plantar ou coletar madeiras (p. 184).
Este é um livro, portanto, cujas diretrizes teórico-metodologicas estão afinadas com uma das mais recentes abordagens da história ibérica crítica dos esquemas analíticos nacionais e que podem ser encontradas em trabalhos individuais, de grupos de discussão3 e em iniciativas de acadêmicos que optam pelo agregamento em rede. Herzog, no caso, é uma das coordenadoras da Red Columnaria.4
Mesmo diante deste volume de adeptos da ideia do tratamento articulado entre as histórias de Portugal e Espanha a autora considera que poucos ainda parecem dispostos a adotar o conceito de Ibéria como unidade de análise (p. 250) fora do convencional intervalo cronológico da União Ibérica (1580-1640).
Na tradição dos estudos latino-americanos nos Estados Unidos este trabalho de Herzog continua com perspectivas já apresentadas por certo autor na década de 1970, em tese ainda inédita e que discutiu a formação territorial da região do Madeira-Mamoré e Amazonas através também da atuação de párocos, índios, sertanistas e jesuítas, enfatizando a importância de uma questão como esta ser focalizada para além do mundo de diplomatas, conselheiros do rei e autoridades régias.5
Embora densamente fundamentado em evidências empíricas e bibliografia pertinente ao tema central da pesquisa, o livro é deficitário em relação à historiografia brasileira recente, o que chama atenção porque a proposta da autora é trabalhar a formação territorial também de Portugal na América. Um déficit como este poderia ter sido evitado com o rastreamento de artigos publicados pelas principais revistas acadêmicas em História do Brasil, do mesmo modo como a autora fez exaustivamente nas revistas em língua hispânica e inglesa.
De modo geral, a formação territorial é pensada a partir das áreas de fronteira. Mas, nos ambientes urbanos e das fronteiras internas (os sertões), observa-se um fenômeno bastante semelhante ao verificado por Herzog, ou seja, as articulações e rearticulações dos diferentes agentes sociais, independentes de hierarquias e identidades regionais, para expressão de suas noções – também variáveis no tempo – de direitos de uso da terra ou dos “chãos urbanos”, nas vilas e cidades coloniais, o que sugere que o desenho urbano dos municípios também não foi mera imposição dos poderes públicos.6
A autora conclui que o processo de definição de fronteiras na península Ibérica foi menos “nacionalizado” na Europa do que na América. Especialmente para o caso ibérico mostrou como a condição fronteiriça foi uma característica predominante das autopercepções e autodefinições sociais. Neste sentido, os indivíduos foram mais próximos de seus vizinhos regionais do que de uma estrutura política como o Estado, muitas vezes com suas instituições e agentes situados geograficamente – para não dizer também do ponto de vista das aspirações e ideias – tão distantes das populações residentes nos municípios.
Mas conforme demonstram textos de representações escritos pelas câmaras, esta situação foi muito semelhante às ocorridas em todas as partes da América portuguesa, nas quais também são observadas autodefinições que evocam o local (o ter nascido na cidade ou vila, a condição de fronteiriço, de ser republicado de câmara situada em tal ou qual vila). Neste caso, também na América portuguesa a definição de suas fronteiras foi tão pouco “nacionalizada” como na península.
Para finalizar pode-se dizer que o estilo analítico narrativo da autora em alguns momentos soa imperativo, especialmente quando quer enfatizar a ação dos múltiplos agentes sociais e sua argumentação na defesa dos direitos de posse, em detrimento dos tratados, tidos como “futilidades jurídicas” (p. 12) ou concluindo por sua “completa incapacidade” de solucionar as questões de fronteira e posse.
Entretanto, não podem ser minimizadas as forças de influência das novas tendências político-ideológicas anunciadas desde os acordos de Westfália (1648), que levaram à modernização das relações internacionais e valorização da soberania dos estados baseada no direito natural. Neste sentido, mais salutar seria ver os tratados como uma das vozes na tribuna da formação territorial ibérica, lembrando ainda que todos os agentes sociais, desde o índio ao criador de gado mais abastado, fizeram uso das instituições do Estado e dos papéis públicos para expressarem suas concepções de direito.
O trabalho de Herzog reveste-se de importância acadêmica e social. Para os historiadores profissionais apresenta rigor, coerência na aplicação de uma perspectiva analítico-metodológica. É profunda na pesquisa empírica e inova ao falar de formação territorial não do Brasil, mas de Portugal na península e na América. Para os estudantes de graduação em História esta é uma rica e provocante maneira de pensar a história do Brasil na época moderna e que contribui para a formação de percepções cada vez menos regionalizadas.
Do ponto de vista social, este trabalho traz à tona questões da história da América do Sul que ainda assombram, como a do acesso dos segmentos sociais menos privilegiados a terra, historicamente marcado por conflitos e violências.
Referências
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1Exemplos de obras clássicas que se envolveram com este tema de maneira ensaística ou aprofundada em sólida pesquisa empírica: ABREU, Capistrano. Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. In: Idem. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 3ª edição. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1990; CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri. São Paulo: Funag, 2006. 2 vol.
2MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
3Destaco o grupo de discussão que se reúne anualmente no The College William & Mary, coordenado por Fabrício Prado e que tem dado tratamento trans-imperial à história do rio da Prata em especial. Destaco ainda trabalhos como: PRADO, Fabrício. In the shadows of empires: trans-imperial networks and colonial identity in Bourboun rio de la Plata (c. 1750-c. 1813). Dissertação em História colonial, História da America Latina, Emory University, 2009; PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil e a experiência hispano americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015; MOURA, Denise A. Soares de. An expanding mercantile circuit in the South Atlantic in the late colonial period (1796-1821). E-Journal Portuguese History, vol. 13, n. 1. Brown: Brown University, 2015, p. 68-88. Disponível em: https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue25/pdf/v13n1a03.pdfhttps://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue25/pdf/v13n1a03.pdf. Acesso em: 17/08/2016.
4Disponível em: http://www.um.es/redcolumnaria/index.php?option=com_content&view=article&id=6&lang=en. Acesso em: 03/08/ 2016.
5DAVIDSON, David Michel. Rivers and empire: the madeira route and the incorporation of the Brazilian far west, 1737-1808. Dissertação em História, História da América Latina, Yale University, 1970.
6SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conflito de terras numa fronteira antiga: sertão do São Francisco no século XIX. Tempo n. 7. Rio de Janeiro: UFF, 1999, p. 9-28. Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg7-1.pdf. Acesso em: 03/08/2016; MOURA, Denise A. Soares de. Disputas por chãos de terra: expansão mercantil e seu impacto sobre a estrutura fundiária da cidade de São Paulo. Revista de História, n. 163. São Paulo: FFLCH, USP, jul/dez 2010, p. 53-80. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/19169/21232. Acesso em: 03/08/ 2016.
Denise Aparecida Soares de Moura – Doutora em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professora assistente doutor no Departamento de História e no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNESP. Email: denise.moura@franca.unesp.br.
The Art of Conversion: Christian visual culture in the Kingdom of Kongo – FROMONT (RH-USP)
FROMONT, Cécile. The Art of Conversion. Christian visual culture in the Kingdom of Kongo. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2014. Resenha de: SOUZA, Marina de Mello. O cristianismo congo e as relações atlânticas. Revista de História (São Paulo) n.175 São Paulo July/Dec. 2016.
A presença do cristianismo no Congo é tema abordado desde os seus primeiros momentos, nos relatórios e cartas de missionários, nas crônicas reais e documentos administrativos portugueses, nas narrativas de viagens, todos eles produzidos por estrangeiros, mas também em cartas de autoridades conguesas. A partir do século XVI, foi tratado com interesse e algum nível de minúcia, o que resultou em um volume significativo de informações. O livro aqui apresentado recorre a fontes muito pouco exploradas pelo conjunto dos estudos sobre o Congo cristão ao se voltar para a cultura visual e material. A partir deste campo específico do conhecimento, Cécile Fromont analisa pinturas, gravuras e objetos feitos por europeus, e objetos e performances criados por congueses, articulando a análise estética e simbólica aos diferentes contextos históricos nos quais esses produtos culturais circularam.
The Art of Conversion traz uma contribuição de grande peso para os estudos sobre o reino do Congo, como foi chamado desde o primeiro momento de contato com os portugueses, nomenclatura que predomina quase absolutamente na documentação e nos estudos sobre aquela sociedade. O livro trata de produções visuais e materiais gestadas pelas condições de espaços – não físicos mas cognitivos -, nos quais se realizaram encontros culturais, e onde existiu um ambiente propício a uma mutua fertilização. Tais espaços, nos quais novas produções culturais e formas de organização política ligaram mundos diferentes e introduziram novidades nos sistemas que as criaram, são chamados de “espaços de convergência” pela autora, inspirada por análises de seus professores do Departamento de História da Arte e Arquitetura da Universidade de Harvard. Este é o conceito chave de sua análise e nele está contida a ideia de que os produtos culturais resultantes do confronto entre grupos de diferentes sociedades também criam laços entre eles. Os capítulos que compõem seu livro são aplicações dessa chave de interpretação a objetos diferentes, mas interligados na sequência temporal. Todos eles expressam a adoção de elementos rituais e simbólicos cristãos pelas elites dirigentes do Congo: o sangamento, o crucifixo congo, algumas edificações, vestimentas e insígnias de poder. Para fechar o livro analisa alguns objetos e situações nas quais os símbolos do cristianismo dialogaram com os primeiros tempos do colonialismo.
O livro de Cécile Fromont, editado pela Universidade da Carolina do Norte, é um exemplo de obra bem cuidada e de imediato se coloca ao lado do que há de melhor sobre o Congo cristão. O texto é muito bem escrito, com as notas agrupadas ao final dos parágrafos a que se referem, o que resulta em uma narrativa agradável e fluida, sem interrupções constantes, ao mesmo tempo que há indicação minuciosa das obras utilizadas, como pede a norma acadêmica. E neste sentido, impressiona a dimensão da pesquisa e a erudição, especialmente por se tratar do primeiro livro da autora. A bibliografia pertinente foi esquadrinhada com rigor e a pesquisa em arquivos localizou documentação inédita. As imagens dos produtos culturais analisados estão inseridas no corpo do texto no momento em que são tratados, e a grande maioria é reproduzida novamente em cor, em caderno especial, permitindo que o leitor acompanhe passo a passo as interpretações da autora. Portanto, trata-se de um estudo de qualidade excepcional, apresentado em uma edição também excepcional em termos de qualidade gráfica e diagramação.
Na introdução do livro a autora esclarece que analisará a cultura visual cristã conguesa em três momentos, de três séculos diferentes (XVII, XVIII e XIX), sendo que desde 1500 homens e mulheres da elite local misturaram criativamente formas visuais, ideias religiosas e conceitos políticos locais e estrangeiros, criando uma visão de mundo nova e em constante transformação, que ela chama de cristianismo congo (Kongo Christianity). Alinha-se, portanto, ao maior estudioso do cristianismo no Congo, John Thornton, que segundo o entendimento da autora, junto com Richard Gray e Jason Young, entende que os congueses adotaram o cristianismo em graus variáveis e o interpretaram de maneira própria. Essa perspectiva seria diferente da de outros estudiosos que, ao contrário dos religiosos que primeiro se debruçaram sobre as fontes com muita erudição mas sem um olhar crítico, problematizaram o assunto sob outros pontos de vista, como Anne Hilton, Wyatt MacGaffey e James Sweet, para os quais a cosmologia centro-africana apropriou-se do cristianismo sem alterar sua estrutura fundamental, ou a de estudiosos anteriores e com olhares mais eurocêntricos, como George Balandier e W. G. L. Randles, que entenderam ter havido um fracasso da cristianização no Congo. A diferença maior de Cécile Fromont com relação a todos os estudiosos que a antecederam é que enquanto as fontes textuais – escritas e orais – sempre foram a base das análises, sua pesquisa partiu de fontes visuais e da cultura material. Ao considerar objetos e performances, e partir da ideia de que essas manifestações culturais ofereceram um espaço no qual seus criadores botaram lado a lado ideias radicalmente diferentes, confrontando-as e tornando-as partes de um novo sistema de pensamento e expressão, mostra como a elite conguesa refundiu ideias heterogêneas, locais e estrangeiras, em novas partes inter-relacionadas, em uma visão de mundo que constituiu o cristianismo congo: um novo sistema de pensamento religioso, expressão artística e organização política. Esse processo foi iniciado com a chegada dos portugueses à região no final do século XV, e deve muito à ação de D. Afonso, que governou o Congo de 1506 a 1545. Desde os primeiros tempos, o Congo cristão serviu, por um lado, à afirmação do padroado português e à sustentação do comércio de escravizados com a região e, por outro, de suporte à autoridade dos chefes locais que controlavam o cristianismo e o comércio. A implantação de redes comerciais e a adoção do cristianismo levou o Congo a ocupar, nos séculos XVII e XVIII, um lugar de alguma relevância no mundo atlântico, tanto em termos comerciais como políticos: influenciou a política da Igreja Católica Romana quanto às missões ultramarinas e participou das disputas entre Portugal e os Países Baixos. Mas foi o comércio de escravizados – moeda internacional – que permitiu sua entrada no mundo moderno, fez com que estivesse presente nas Américas e, junto com a diplomacia, que marcasse sua presença na Europa.
Aqui abro um parêntesis para fazer alguns esclarecimentos relativos à terminologia empregada para a abordagem do tema em questão. O primeiro diz respeito à minha opção pessoal em não utilizar o termo reino para designar o Congo, a despeito do uso corrente da noção na historiografia e no livro que agora trato, ou grafar Kongo, também opção predominante entre os estudiosos. A não utilização do termo reino diz respeito à tentativa de buscar entender aquela sociedade a partir de suas estruturas sociais específicas, que mesmo assemelhando-se aos reinos europeus, deles se distinguia. A segunda opção está de acordo com as normas gramaticais da língua portuguesa, em cujo alfabeto não há a letra o K. Como a utilização desta grafia liga-se à necessidade de distinguir a antiga formação social dos estados contemporâneos, opto por utilizar conguês, ou mesmo congo, quando me refiro aos habitantes do antigo Congo, e não congolês, termo associado aos morados dos atuais Congos, pois, para complicar ainda mais, hoje existem dois países africanos que assim se identificam: a República Democrática do Congo e a República do Congo, sendo que nenhum deles corresponde integralmente ao antigo Congo, localizado em sua maior parte no norte da atual Angola. Outra explicação diz respeito ao uso do termo cristianismo. Como não há uma justificativa explícita a respeito de por que Cécile Fromont optou pelo termo cristianismo, assim como John Thornton, podemos fazer duas suposições: pode ter sido para incluir a ação de missionários não católicos que atuaram na região a partir do século XIX, ou para indicar que a religião ali estabelecida não estava completamente de acordo com a doutrina católica romana. Nos meus trabalhos, que se referem todos aos séculos XVI, XVII e XVIII, sempre usei o termo catolicismo, uma vez que até então apenas missionários da Igreja Católica Romana atuaram na região.
O marco inaugural da integração do Congo ao mundo atlântico e ao universo europeu da época foi a chamada conversão do mani Congo ao cristianismo. Esse momento foi fixado em cartas escritas por D. Afonso Mbemba Nzinga. Em uma delas, enviada em 1514 a D. Manuel I, então rei de Portugal, ele narra a vitória que obteve sobre seu irmão, com a ajuda de um pequeno número de seguidores e de São Tiago, que durante a batalha apareceu no céu junto com uma cruz. Esta carta conta um episódio ocorrido sete anos antes e provavelmente teve como base a narrativa de como D. Afonso Henriques venceu os mouros na batalha de Ourique em 1139, dando origem ao reino de Portugal. Aprendiz aplicado dos missionários portugueses que eram enviados ao Congo, com quem aprendeu a ler e escrever, D. Afonso provavelmente se inspirou naquele episódio para construir sua versão da história da criação de um reino cristão sob sua égide. Seu governo consolidou a presença do cristianismo no Congo e estabeleceu as bases da organização política que vigoraria pelos séculos subsequentes.
A análise feita por Cécile Fromont no primeiro capítulo de seu livro, de uma aquarela do capuchinho Bernardino d’Asti, de cerca de 1750 e que integra seu manuscrito destinado a guiar o trabalho dos missionários no Congo, relaciona uma tradição anterior à adoção do cristianismo com esse episódio que inaugurou nova fase da história daquela sociedade. Na aquarela, um missionário, sentado em frente a uma pequena igreja, dá sua bênção a um chefe, ajoelhado à sua frente e trajado com as insígnias locais de poder, tendo ao seu lado uma grande cruz e atrás de si um grupo de músicos e homens armados que dançam com suas espadas levantadas e escudos empunhados. A legenda feita pelo autor da imagem identifica a cena como um missionário dando sua bênção ao mani – título dado aos chefes – durante um sangamento. A existência de sangamentos no Congo é anterior à chegada dos portugueses e no Congo cristão serviriam a dois propósitos: eram exercícios marciais e demonstrações de força por ocasião de uma declaração formal de guerra, e eram realizados em celebrações festivas de investidura, em desfiles diplomáticos e celebrações nos dias de festa do calendário cristão. Conforme a autora, novas coreografias, insígnias de poder e armas presentes nas danças refletiam as mudanças trazidas com a inserção do Congo nas redes diplomáticas, comerciais e religiosas do Atlântico. No seu entender, os sangamentos teriam sido espaços de correlação, nos quais a elite conguesa reinventou a natureza do seu mando no novo contexto. Seu simbolismo material e visual ilustraria como por meio deles os governantes criaram um novo discurso com a fusão de tradições centro-africanas e cristãs. Neles estaria presente a narrativa da criação do reino cristão após a batalha na qual D. Afonso saiu vitorioso sobre seu irmão.
Instruído desde cedo nos mitos de fundação do Congo, segundo os quais Nimi a Lukeni, vindo do norte e da outra margem do rio, teria conquistado a população local e inaugurado um novo tempo, assim como conhecedor dos princípios da religião católica e da história de Portugal, D. Afonso teria criado espaços de correlação nos quais não só o sangamento ritualizaria a fundação do reino cristão na mesma chave da fundação feita por Nimi a Lukeni, como a cruz, analisada com vagar no capítulo seguinte, seria alçada a importante símbolo de poder. Presente na narrativa de sua ascensão à chefia do Congo, no lacre de suas cartas, no brasão para ele criado em Portugal, Cécile Fromont acredita que o signo da cruz, que na América serviu à conquista, no Congo serviu para a implantação de um sistema político que permitiu sua entrada no quadro das relações internacionais atlânticas, graças à habilidade de D. Afonso em fundar um novo tempo articulando ideias europeias e centro-africanas.
Enriquecendo sua análise do sangamento retratado por Bernardino d’Asti, a autora introduz mais um elemento central na construção dos mitos fundadores de poderes políticos fortes ao explorar a imagem do rei ferreiro, presente em grande parte das histórias de fundação de sociedades centro-africanas. Nesses mitos, poder político e militar estão imbricados. A aquarela analisada expressaria uma segunda fundação do Congo cristão, mais de dois séculos depois do governo de D. Afonso, na qual também estaria presente o mito do rei ferreiro, registrado nas histórias orais coletadas no século XVIII por missionários. Àquela época, o ferro não estaria mais apenas nos braceletes e correntes que compunham a parafernália ligada ao signos de poder, mas também nas espadas, feitas de ferro, material ligado ao poder do chefe, mas que seguiam o padrão das espadas portuguesas do século XVI. As espadas apareciam, assim como as cruzes, nos lacres, brasões, estandartes e tronos do mani Congo, sendo outro atributo da nobreza europeia que se tornou parte integrante das insígnias de poder conguesas. Seriam mais um espaço de correlação no qual concepções europeias de cavalaria, de poder político e militar, fundiram-se com concepções centro-africanas que legitimavam o poder. Segundo a autora, as espadas que os dançadores levantavam no sangamento desenhado pelo capuchinho no século XVIII, referiam-se à história de D. Afonso, à luta que travou contra o irmão para conquistar o poder, e também ao significado do ferro na mitologia centro-africana. Para fortalecer sua argumentação, lembra que todas as espadas, das representações pictóricas, das escavações arqueológicas, das coletas feitas em tempos mais recentes, seguem o modelo das armas portuguesas do período manuelino, ou seja, do momento da conversão de D. Afonso ao catolicismo e de seu governo, que era assim rememorado. Até o século XX, as espadas de status, como são conhecidas, ligariam a elite que as carregava ao mito legitimador do seu mando.
Estendendo ainda mais a amplitude de sua análise, evoca os desenhos de Carlos Julião que representam a festa de rei negro e relaciona os sangamentos e as congadas brasileiras. Em análise semelhante à feita por mim há mais de quinze anos, ao comparar os desenhos de Carlos Julião, feitos no final do século XVIII, à aquarela de Bernardino d’Asti, afirma que para além da transmissão de objetos e rituais a festa de rei negro brasileira, ao articular elementos africanos e europeus, mostra uma significativa continuidade epistemológica através do Atlântico. No Congo, a elite combinou estrategicamente elementos locais e estrangeiros em um discurso de poder por meio do qual lidaram com as mudanças trazidas pela sua entrada nas redes comerciais, religiosas e políticas do mundo atlântico. Também na América emblemas e símbolos europeus foram usados como símbolos de uma identidade coletiva e instrumentos de expressão social.
O segundo capítulo do livro trata do símbolo da cruz, tema que aparece em muitos trabalhos sobre as culturas centro-africanas e afro-americanas a partir da divulgação da explicação de Fu-Kiau Busenki-Lumanisa sobre o lugar que ocupa nos sistemas de pensamento bacongo, feita principalmente por Robert Farris Thompson e Wyatt MacGaffey. Uma outra aquarela de Bernardino d’Asti, na qual um rito fúnebre é feito ao pé de uma grande cruz, serve como ponto de partida de sua análise. A presença da cruz em uma variedade de objetos relacionados às tradições locais e ao cristianismo congo confirma a centralidade desse símbolo tanto no pensamento local quanto nos processos de construção de novas ideias e relações. Isto a torna especialmente rica para uma abordagem a partir da noção de espaços de correlação, sendo cruzes e crucifixos signos para os quais convergiam significados religiosos centro-africanos e católicos, no que Cécile Fromont chamou de diálogo de devoções, de discursos de poder e de cosmologias.
O signo da cruz esteve presente com destaque nos momentos inaugurais da introdução do cristianismo no Congo: no batismo de Nzinga Kuwu, pai de D. Afonso, na visão que este teve durante a disputa pelo poder, no brasão e estandartes enviados pelo monarca português, que assim guiava o mani Congo no caminho de sua inserção no rol de reis cristão da época. Com a disseminação do cristianismo entre a elite conguesa, crucifixos tornaram-se comuns, e altamente cobiçada a obtenção do hábito da Ordem de Cristo, que trazia uma cruz de malta das costas. Como mostra a autora, a cruz foi um agente de comunicação entre as diferentes culturas, foi um chão comum que permitiu o diálogo entre europeus e centro-africanos. Presente em inscrições funerárias, nos cultos de uma sociedade secreta composta pelos filhos da elite chamada kimpasi, na qual eram praticados ritos de iniciação por meio dos quais os adeptos morriam e ressuscitavam, para os centro-africanos a cruz remete à relação entre os vivos e os mortos, ao ciclo completo da existência, que inclui o mundo dos homens, e o dos espíritos e ancestrais. Símbolo maior da morte de Cristo, também para os cristãos a cruz liga-se à morte e à ressureição. Era, portanto, um espaço de correlação privilegiado, entre a África e a Europa, entre a vida e a morte.
A introdução de objetos religiosos católicos em grande quantidade desde o século XVI, forneceu padrões para o desenvolvimento de uma produção local de imagens religiosas, santos e principalmente crucifixos. Mas se os objetos europeus forneceram o paradigma para o crucifixo congo, este expressava ideias centro-africanas, nas figuras ancilares a ele adicionadas, nos desenhos geométricos gravados nas suas bordas. Conforme Cécile Fromont, como um espaço de correlação, a cruz expressava uma nova visão de mundo na qual encontravam-se e misturavam-se signos locais e estrangeiros. Para ela, as centenas de crucifixos existentes, de tamanhos variados, constituíram uma sintaxe visual e religiosa, um conjunto coerente de objetos com uma iconografia consistente criada a partir do crucifixo católico e da cruz congo.
Para a autora, a iconografia dos crucifixos congo não é inteiramente decifrável, mas parece claro ser a acumulação recurso central na sua composição. Ao crucifixo cristão tradicional foram frequentemente acrescidas figuras sentadas nos braços da cruz, e no seu eixo vertical, acima e embaixo da figura que representa o Cristo, aparecem nossas senhoras, anjos, pessoas ajoelhadas de mãos postas. Além das marcas estéticas próprias da região presentes na representação de Cristo, as bordas com incisões são por ela associadas a ritos fúnebres da elite, quando os corpos eram envolvidos em panos com padrões decorativos semelhantes. No seu entender, essas bordas delimitam o espaço reservado aos mortos: Cristo, Nossa Senhora e os anjos, enquanto as figuras sentadas nos braços da cruz conectariam os dois mundos, na medida que seus corpos estariam parte fora e parte dentro desse limite. A ideia de ultrapassar fronteiras e a inter-relação entre os dois ambientes estaria de acordo com o significado maior do crucifixo – sendo a cruz representação do ponto preciso no qual as esferas da vida e da morte se conectam -, e as figuras ancilares dariam forma às noções abstratas de permeabilidade entre este e o outro mundo. Ao término de sua complexa e instigante análise dos crucifixos e da cruz, Cécile Fromont reafirma sua posição quanto ao cristianismo ter tido um desenvolvimento próprio na África centro-ocidental, não sendo resultado de um proselitismo violento ou de uma resistência a influências de fora, e sim de um processo de inclusão e reinvenção em uma situação de encontros culturais.
Atraída pela originalidade dos crucifixos congos, também eu ensaiei uma interpretação do que Cécile Fromont chama de figuras ancilares, baseando-me em análise feita por Anne Hilton sobre o processo de introdução do catolicismo no Congo, no qual símbolos cristãos foram reinterpretados a partir da cosmogonia local. No meu entender essas figuras sentadas nos braços da cruz seriam representações de bisimbi, entidades ligadas ao mundo natural, que tinham um lugar na legitimação do poder dos chefes. À época entendi esses crucifixos como a expressão material da criação de novas formas de representar o poder com a incorporação do catolicismo ao pensamento local, o que, nos termos propostos por Fromont seria um espaço de convergência.
O terceiro capítulo de seu livro trata de tema que penso ser inédito nos estudos sobre o Congo: a análise da indumentária da elite. Mais uma vez, parte das aquarelas de Bernardino d’Asti. Volta à que retrata um sangamento, e introduz outras, como o casamento de um chefe e o encontro entre a comitiva de um missionário com a do mani Soyo, e analisa elementos da vestimenta ali retratados, que aparecerão em outras imagens, estas do século XVII, como o busto de D. Antonio Manuel ne Vunda existente na igreja Santa Maria Maggiore em Roma, e retratos de embaixadores enviados pelo mani Soyo a Mauricio de Nassau, no Recife, feitos por Albert Eckhout. Com base nessa iconografia descreve a roupa padrão de um homem da elite conguesa: uma canga de tecido amarrada na cintura, na qual também está amarrada uma faixa vermelha e da qual pode pender uma pele de animal, uma rede que veste o tronco – nkutu -, um tecido jogado sobre um dos ombros, uma capa usada pelos chefes, assim como o mpu – um gorro alto -, correntes com crucifixos e colares de contas. Os desenhos de Eckhout, localizados em uma biblioteca da Cracóvia, retratam com minúcia as vestimentas dos três embaixadores e dos dois jovens que os acompanharam na missão junto a Mauricio de Nassau, pintados também por Beckx, com as roupas holandesas que lhes foram ofertadas no Recife.
Os desejados produtos europeus, como tecidos xadrez de azul e branco que eram sinais de distinção, eram trocados por escravos, e o comércio de gente foi um fator importante para a instabilidade do Congo e para a competição entre os chefes. É nesse contexto que o Congo buscou estreitar relações com os Países Baixos e com Roma, tentando se fortalecer frente às investidas ibéricas contra o sul do seu território. Se no início do século XVII o mani Congo enviou D. Antonio Manuel ne Vunda em uma embaixada a Roma, por meio da qual buscava neutralizar a autoridade do padroado português, em meados do mesmo século o mani Soyo procurou o apoio dos holandeses contra a pressão que os portugueses exerciam a partir de Angola, assim como aliança em suas disputas com o mani Congo. Nada desse contexto escapa à análise de Cécile Fromont, que ao interpretar elementos da cultura material e visual do Congo, e também as representações europeias sobre ele, torna evidente que àquela época o reino africano cristão estava inserido no jogo político internacional.
Se sob o governo de D. Afonso, no início do século XVI, o cristianismo serviu à sustentação de seu poder, no século XVII, estavam ainda mais consolidadas as relações entre riqueza, prestígio, cristianismo e poder político, o que a autora demonstra articulando o contexto histórico com a análise das representações visuais, como as imagens de santos feitas no Congo, nas quais eles estão vestidos à moda da elite local. Da mesma forma, o lugar de destaque que o Congo ocupava na Europa devido ao comércio de escravizados e também por ser reconhecido como um reino cristão é percebido por meio da presença das insígnias de poder conguesas, como o mpu e a indumentária, em obras de arte europeias do início do século XVII. Para Cécile Fromont, as imagens da elite do Congo, mesmo que por poucas décadas, funcionou nos círculos missionários europeus como uma metáfora da expansão da Igreja católica na África e no mundo. Quanto ao Congo, o processo de incorporação de elementos visuais europeus às insígnias de poder conguesas iniciado com a introdução do cristianismo, continuava mesmo em momento de menor presença de missionários europeus em atividade na região, pois os mestres e catequistas por eles formados mantinham vivos os ensinamentos cristãos e seus bastões, insígnia tradicional de autoridade que adotava modelos lusitanos, sendo encimados por cruzes, bulbos, imagens de santos e mesmo moedas portuguesas.
No quarto capítulo, são analisadas as construções e a ocupação de espaços, e além das maneiras como a elite lidou com o cristianismo aborda como este esteve presente na vida da gente comum, que frequentava os cultos nas igrejas, que convivia com as cruzes monumentais espalhadas pelo território e assim se relacionava com as manifestações visuais das ideias míticas e religiosas que sustentavam a organização política do Congo. Para a autora, as cruzes presentes em todo o território celebravam e relembravam a vitória de Afonso sobre seus oponentes e a subsequente conversão do reino ao cristianismo. Nos primeiros tempos da era cristã, o levantamento de cruzes monumentais teria se tornado um gesto característico do mando e, além dos significados associados ao cristianismo, ligava-se também às crenças relativas à circulação entre a vida e a morte, às articulações entre o mundo visível e o invisível.
A relação com os mortos, tão importante para que a existência dos vivos transcorresse bem, acontecia também nos cemitérios, sobre os quais muitas vezes foram construídas igrejas, que se tornaram locais de culto aos ancestrais, especialmente da elite. Dessa forma, a redefinição de cemitérios, que cederam espaço para igrejas cristãs, é parte da reformulação operada pela elite no processo de imposição do cristianismo para a massa da população. Mais um espaço de correlação detectado por Cécile Fromont, essa reformulação trouxe os ancestrais para os limites espaciais da nova religião, e dotou o novo edifício com a sua presença venerável. Essa prática espalhou-se por todo o território e no século XVII era norma que a elite fosse enterrada nas igrejas ou próximo a elas. Mais uma vez recorrendo a fontes escritas e relacionando-as com as descrições de túmulos, a autora fornece grande quantidade de dados que fundamentam seu argumento relativo a como cemitérios e igrejas foram espaços de correlação que articularam poder político, cristianismo e devoção aos ancestrais.
Mas ao lado das novas práticas, ritos e crenças que constituíram o cristianismo congo, houve também a adoção de alguns de seus elementos sem a alteração das práticas tradicionais, como no caso dos kimpasi, que adotaram em seus ritos altares semelhantes aos das igrejas, sem se integrarem ao cristianismo congo. Além dessas situações nas quais as práticas não foram transformadas apesar da adoção de algum elemento estrangeiro, a autora entende que na periferia do discurso congo cristão promovido e adotado pela elite como uma narrativa que legitimava seu poder, algumas vezes emergiram outras correlações de formas visuais e pensamento centro-africanos, cristãos e congo cristão. O exemplo mais conhecido é o movimento antoniano, que desafiou a narrativa congo cristã dominante. Liderado por uma jovem oriunda da elite conguesa, iniciada em rituais não cristãos e também educada nas normas cristãs, foi um movimento que emergiu durante uma guerra civil na qual diferentes linhagens disputaram o poder. Utilizando a linguagem cristã, ela criou um discurso original, segundo o qual morria toda sexta-feira, quando tinha encontros com Santo Antônio e Deus, e renascia a seguir trazendo a mensagem do mundo do além. O combate à cruz, símbolo maior do catolicismo congo articulado ao poder político, era o carro chefe de sua pregação, assim como a unificação do Congo e o fim das guerras internas. Buscou apoio de diferentes pretendentes ao trono, mas as alianças que obteve foram rompidas diante da sua insistência para que as cruzes fossem destruídas. Kimpa Vita, a jovem líder do movimento antoniano, acabou queimada a mando dos capuchinhos. O antonianismo não rejeitou o cristianismo, mas propôs uma hermenêutica alternativa dos seus princípios. Com esse exemplo, a autora reafirma o seu papel central na vida religiosa, política e social do Congo entre os séculos XVI e XVIII, mas também a existência de formas do cristianismo congo que não foram aceitas pelos poderes instituídos, tanto locais quanto dos missionários católicos.
No quinto capítulo, Fromont mostra como, no contexto da partilha e ocupação colonial, o que no passado havia sido visto como um reino cosmopolita passou a ser considerado “o coração das trevas”, terra de povos primitivos e canibais. O aparato ideológico colonial trabalhou no sentido de destruir as estruturas remanescentes do Congo cristão e obscurecer sua memória. Entretanto, antigos símbolos e histórias legitimadores do poder continuaram a sustentar os chefes e, apesar dos tratados de vassalagem com Portugal, o Congo permaneceu independente até 1910. A presença no século XIX de grupos identificados como “gente da igreja”, constituídos por comunidades que viviam na periferia das cidades, especialmente de Mbanza Soyo e Mbanza Kongo, e clamavam descender dos “escravos da igreja”, que serviam os missionários, confirma a continuidade das práticas do cristianismo congo. Viajantes que percorreram a região naquele século encontraram igrejas em uso, com uma grande quantidade de objetos litúrgicos e imagens de santos, cuidadas pela gente da igreja, quando a presença de missionários era rara e esporádica. É interessante que muitos desses objetos e imagens eram de confecção brasileira, o que indica a estreita conexão entre as duas regiões, em momento no qual o comércio de escravizados ainda vigorava.
Nos séculos XIX e XX, com os avanços da colonização, espaços de correlação continuaram a ser criados. Exemplos deles são as presas de marfim esculpidas feitas em Loango, e os minkisi minkondi, figuras antropomorfas protetoras dos caçadores nas quais lâminas e pregos eram enterrados e sobre os quais não há notícia anterior ao final do século XVIII. De acordo com o mesmo processo identificado desde o momento inicial de introdução do cristianismo na região, a autora entende que as novas formas e imaginária, ao incorporar símbolos e materiais estrangeiros, ampliavam a visão de mundo das populações nativas e permitiam que atribuíssem sentidos e participassem do mundo colonial em formação. Nesse novo contexto, também o sangamento ainda era feito, mesmo que entendido pelos colonizadores como manifestação folclórica.
A força do universo visual, cultural e espiritual do Congo cristão viajou para a América e, além de estar presente nas congadas, apareceu na vestimenta de um negro trajado como a elite conguesa fotografado em 1865, no Rio de Janeiro, por Cristiano Junior. A fotografia mostra que escravizados que participaram dos espaços de correlação na África centro ocidental deram continuidade a este processo entre seus descendentes, extraindo daí força espiritual e política. Incluindo em sua análise a América, mesmo que tangencialmente, e a Europa, a autora mostra que “o cristianismo congo é mais do que uma ocorrência histórica singular restrita a uma parte definida do continente africano”, sendo um fenômeno cuja influência repercutiu através do Atlântico.
Chegamos ao fim da leitura com a certeza de que estamos diante de um livro que nasce clássico, no sentido de ser indispensável para os estudos acerca do antigo Congo, onde o cristianismo passou a ser parte integrante de sua organização política e de seu universo mental desde os primeiros contatos com os portugueses, no final do século XV. O livro de Cécile Fromont coloca-a entre os maiores especialistas do assunto, e todos que estudam o Congo cristão só podem agradecer a sua contribuição.
Marina de Mello e Souza – Professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: marinamsouza@usp.br.
Ensino de História / Locus – Revista de História / 2016
A proposta daorganização do dossiê temático “O ensino de História como campo de pesquisa” surgiu de recentes diálogos travados entre um grupo de professores formadoresda Universidade Federal de Juiz de Fora que, a partir de seus respectivos lugares de atuação profissional (o Departamento de História e o Departamento de Educação), tem buscado refletir e delinear ações conjuntas voltadas para a formação dos futuros professores de História. Tais diálogos refletem o desejo de superação das barreiras físicas e institucionais ainda presentes quando se trata da desafiante e imprescindível tarefa de formar professores.
A aproximação entre esse grupo de professores não tem se dado por acaso, mas a partir de uma sensibilidade partilhada que busca responder a uma demanda crescente da formação para o magistério, como sinalizam pesquisas que situam a formação de professores de História no Brasil [1]. A assunção da tarefa de formar professores de História como projeto institucional coletivo tem possibilitado avanços, na medida em que potencializam um movimento, senão de ruptura, ao menos de questionamento de concepções de formação há muito arraigadas nos cursos de licenciatura em História no Brasil.
Destacamos, em particular, a necessária superação de uma perspectiva de formação de professores historicamente dominada pela hierarquização entre os saberes históricos e os saberes pedagógicos, na qualo domínio daqueles saberes, advindos da ciência de referência, tem sido vislumbrado como eixo estruturante da profissionalização do professor. Por seu turno, os saberes pedagógicos têm assumido posição marginal, que se observa tanto no reduzido espaço atribuído às denominadas disciplinas pedagógicas nos currículos dos cursos de licenciatura quanto nas concepções circulantes em torno de tais saberes, os quais são alçados à condição de fazeres técnicos e acessórios, desprovidos de uma dimensão epistemológica. Dessa concepção de formação resultam compreensões um tanto simplistas acerca do ensino de História, o qual é compreendido enquanto ação pragmática e alicerçada exclusivamente no domínio de conteúdos disciplinares pelos professores.
A apostaque fazemos caminha no sentido oposto a talprojeto de formação. Nessa direção, partilhamos da perspectiva segundo a qual ensinar História pressupõe uma atitude investigativa, ancorada em saberes de natureza epistemológica própria, que configuram o domínio da Didática da História. Acreditamos que o ensino de História – campo de pesquisa cuja trajetória de institucionalização esteve intrinsecamente vinculada à reflexão acerca dos saberes que servem de base à formação do professor – seja o terreno capaz de fornecer ferramentas conceituais e analíticas para a compreensão da complexa tarefa de ensinar História. Enquanto espaço-tempo de produção de conhecimento que se constitui na fronteira entre a História e a Educação [2], o campo do ensino de História tem nos possibilitado olhar para o fenômeno educativo em suas dimensões complexas e plurais, posto que compreende os processos de escolarização como construção demarcada por interações entre múltiplos atores e saberes, que não se esgotam no domínio do saber disciplinar. A compreensão dessas interações, que traduzem a dinâmica de ensino e aprendizagem em História, constitui o objeto nuclear de investigação do campo do ensino de História.
O presente dossiê traz a público um recorte de produções que, situadas no domínio das problemáticas próprias do ensino de História, apresentam investigações relacionadas aos processos envolvidos no ensino e na aprendizagem em História. Orientados por abordagens, recortes e enfoques diversificados, tais artigos refletem o estágio de amadurecimento do campo, que tem se caracterizado pela densidade teórica, pela abertura temática e pela diversidade de objetos de investigação [3]. Do universo de artigos que compõe o dossiê, é possível observar investigações centradas desde os contextos escolares e suas interações cotidianas, àquelas focadas no próprio campo de produção de conhecimento histórico. No que tange às abordagens metodológicas, o leitor irá encontrar desde pesquisas colaborativas a análises de cunho etnográfico. Por fim, mas não menos importante, os artigos se caracterizam pela diversidade de atores investigados, como professores e alunos, ressaltando-se as pesquisas em torno da cultura juvenil.
É neste sentido de provocar o discurso educacional de formação de professores de História que se inserem os desafios propostos pelos diversos artigos apresentados neste número da revista Locus. Mas também se trata de um convite a ensaiar a produção de formas curriculares e de práticas de ensino que envolvam cultura digital, cinema, juventude, religiões, enfim, ações que estabeleçam relações entre o ensino de História e a produção de novas subjetividades no mundo contemporâneo.
Os dois primeiros artigos trazem para discussão aspectos ligados às problematizações do ensino e aprendizagem da História envolvendo juventude e suas questões. No artigo que abre este dossiê – “Investigar la enseñanza y el aprendizaje de la historia en la cultura digital” – Graciela Funes e Miguel A. Jara discutem a importância do ensino de História na cultura digital. Para isso destacam o aspecto sempre inacabado da formação inicial e continuada no desafio de olhar e reconhecer as questões e / ou problemas da atualidade que afetam as salas de aula. Os autores insistem no fato de que neste cenário atual se torna necessário observar atentamente os processos de aprendizagem da História, os modos como se constróem e reconstróem os entendimentos de ensino e aprendizagem de História em meio à cultura digital.
No artigo subsequente, “Afirmações e resistências: cultura escolar e juventude”, os pesquisadores Alessandra Nicodemos Oliveira Silva, Ana Carolina Oliveira Alves e Henrique Dias Sobral Silva buscam identificar e analisar processos de afirmação e resistência presentes na cultura escolar e que são vivenciados por alunos de uma escola estadual do Rio de Janeiro. O encontro desses autores se dá a partir das suas experiências com o estágio, oportunizando o encontro entre formação e sala de aula. A escola é trazida para discussão como lugar de negociação e de encontros entre as diferenças, colocando em funcionamento processos de afirmação e de resistências. O foco das análises é uma turma marcada por divergências e segregações, reconhecendo os fenômenos educacionais como esferas a serem investigadas em suas complexidades na escola e seus desdobramentos no mundo do trabalho.
Numa linha de condução mais preocupada com as questões que afetam a formação de professores, temos o artigo de Rafael Gonçalves Borges – “Didática da História e a ciência da Educação: problematizações para a formação de professores” – em que o autor concentra suas análises na história do ensino de História no Brasil, buscando problematizar o que ele chama de “afastamento” entre a Didática da História e a ciência da Educação. Um artigo que situa as mudanças percebidas nos últimos anos a partir do fortalecimento de debates e pesquisas influenciadas pela Didática da História alemã, aventando as possíveis implicações desse processo na formação do professor de História e emsua identidade.
Em seguida, temos dois artigos que tomam os filmes e o cinema para pensar suas relações com a História e o ensino de História. No primeiro artigo, intitulado “Cinema, estudos urbanos e ensino de História como campo de pesquisas: o caso da produção de curtas-metragens na cidade de São José do Rio Preto / SP”, os autores Rodrigo R. Paziani e Humberto P. Neto trabalham com a produção de curtas que trazem a discussão das cidades e o ensino de História. Mais do que isso, estão preocupados em estabelecer, a partir dessas produções, as relações de produção de conhecimento histórico acadêmico e o histórico escolar. O segundo artigo também mantém a discussão em torno do cinema e ensino de História. Concentrando a análise nas relações entre os filmes históricos e o ensino, Vitória Azevedo da Fonseca tem como argumento central a utilização dos filmes para além do seu entendimento como documento. Por meio de seu artigo, com o título de “Filmes históricos e o ensino de História: diálogos e controvérsias”, a autora analisa cinco itens para pensar os desafios e potencialidades do uso dos filmes no contexto da sala de aula.
Os dois últimos artigos envolvem as questões ligadas à história oral, narrativas e memórias. Elaine Lourenço e Juliano C. Sobrinho retomam a discussão entre encontros do saber acadêmico e o saber escolar em seu artigo, com o sugestivo título “Para além da história da Princesa: o saber histórico escolar e as disputas de memórias”, por meio do qual os autores problematizam o uso do livro didático, as escolhas curriculares, a história oral e as memórias que estão na sala de aula. Para isso, tomam uma experiência docente para propor outras abordagens do conteúdo. Por último, apresentamos o artigo de Frederico A. Mota, no qual aparece uma problemática atual para a realidade brasileira, as religiões afro-brasileiras e sua presença na educação. “As religiões afro-brasileiras: uma possibilidade de abordagem na educação formal”, último artigo do dossiê, propõe a discussão desse tema, baseado numa pesquisa realizada com estudantes do ensino fundamental a respeito das relações que estabelecem com as questões afro-brasileira, especialmente as religiões. Questões que nos chamam para pensar o ensino de História e a formação dos estudantes.
Finalizamos nossa breve apresentação ressaltando que a publicação deste número temático reflete o reconhecimento do necessário posicionamento institucional do Ensino de História enquanto campo de produção de conhecimento, cuja reflexão acumulada tem muito a contribuir não apenas para o redimensionamento de nossas práticas orientadas para a formação dos futuros professores de História, como também para a abertura de novas perspectivas de pesquisa em Ensino de História.
Nota
1. FONSECA, Selva Guimarães. A formação do professor de história no Brasil: novas diretrizes, velhos problemas. In: REUNIÃO DA ANPED, 24., 2001, Caxambu. Disponível em: . Acesso em: 2 out. 2016. FONSECA, Selva Guimarães; COUTO, Regina Célia do. A formação de professores de História no Brasil: perspectivas desafiadoras do nosso tempo. In: FONSECA, Selva; ZAMBONI, Ernesta. Espaços de formação do professor de História. Campinas, SP: Papirus, 2008. p. 101-130.
2. MONTEIRO, Ana Maria; PENNA, Fernando. Ensino de História: saberes em lugar de fronteira. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 36, ano 1, p. 191-211, jan. / abr. 2011.
3. ZAMBONI, Ernesta. Panorama das pesquisas no ensino de História. Saeculum –Revista de História, n. 6 / 7, jan. / dez. 2000 / 2001.
Anderson Ferrari
Yara Cristina Alvim
FERRARI, Anderson; ALVIM, Yara Cristina. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.22, n.2, 2016. Acessar publicação original [DR]
Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana – SPAGGIARI (T-RAA)
SPAGGIARI, Enrico. Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016, 452 p. Resenha de: AZEVEDO, Renan Giménez. Bola na várzea, sonho no campo: trajetórias de famílias esportivas da zona leste paulistana. Tessituras, v.4, n.2, p.141-145, jul./dez., 2016.
Resultado de sete anos em trabalho de campo realizado durante o mestrado e o doutorado, Família joga bola: jovens futebolistas na várzea paulistana, de Enrico Spaggiari, é uma etnografia urbana que descreve as relações de familiares, técnicos, agentes, e jovens futebolistas através de seus cotidianos varzeanos no Botafogo de Guaianases, agremiação futebolística da Zona Leste de São Paulo. O livro, publicado em 2016, é a versão mais elaborada da tese defendida dois anos antes para o doutoramento do autor no PPGAS da USP. Ao longo do livro, Spaggiari busca explicar a formação de um jovem futebolista, bem como suas relações com o esporte e a carreira profissional, da mesma forma que os garotos, ou “moleques”, expressam criativamente o “jogar bola”. Os vínculos criados pelos atores da etnografia criam redes que o autor chama de famílias esportivas, conceito elaborado através dos oito capítulos que compõem a etnografia.
A apresentação do campo vivenciado por Spaggiari é transposta para o livro em sua primeira parte, onde o autor dá voz aos interlocutores nas partidas de futebol, nos treinos, nos churrascos e outros acontecimentos da vida na várzea paulista, que ocorrem em escolinhas, campos, casas de familiares e bares. O primeiro capítulo aborda o tempo e o espaço nas narrativas daqueles que estão no cotidiano da várzea, cujas memórias alimentam tais relações nostálgicas – ainda que os informantes neguem tal sentimento. Partidas consideradas clássicas e disputas importantes são expostas com grande riqueza de detalhes. Outro aspecto abordado no capítulo, e ilustrado pelas lembranças relatadas, é a gentrificação e o avanço urbano e outras formas de transformações da cidade, de modo que futebol de várzea torna-se uma forma de resistência cultural, além de uma forma de vivenciar a cidade e os bairros onde ocorrem as partidas. O crescimento da urbanidade também é apresentado na introdução do livro, onde o autor relata o cotidiano em torno do canteiro de obras da Arena Corinthians em Itaquera, especialmente quando seu Josias, aposentado da construção civil, queixa-se dos futuros problemas imobiliários da região ao dizer que “Esse é o preço do progresso” (SPAGGIARI, 2016, p. 24).
No segundo capítulo, Spaggiari apresenta o Grêmio Botafogo de Guaianases, fundado em 1955, juntamente com a estrutura contemporânea do futebol de várzea em São Paulo. As questões financeiras vividas pelos clubes são abordadas, assim como os problemas como sede social e a posse de um campo. Os bares, que funcionam como bases provisórias, são palco de comemorações, disputas, reuniões e outros acontecimentos, tornando seus proprietários “ótimos informantes” para a etnografia.
A importância do calendário esportivo com as competições que envolvem o clube, especialmente a Copa Kaiser de Futebol Amador, é descrita pelos olhos de torcedores, jogadores, dirigentes e vendedores de bebidas presentes nas partidas. As relações entre futebol, samba e cerveja produzem uma sociedade futeboetílica, que envolve modos de beber e agir.
O terceiro capítulo descreve os impactos políticos do clube por meio da corrida eleitoral de 2010. Ao ver nos clubes de várzea a possibilidade de ascensão política, os candidatos criam redes com os dirigentes destas agremiações esportivas. Importante notar que tais relações revelam a projeção do clube para a cidade, seja por meio de competições, seja por meio da produção de jovens futebolistas no trabalho de base dos times.
A segunda parte do livro, dedicada às formações profissionais, inicia-se no quarto capítulo com Spaggiari descrevendo as cidades futebolísticas. Estas redes são construídas através da vivência do cotidiano varzeano por meio das competições e trânsitos pelos campos, escolinhas e clubes. Esta circulação faz parte do desenvolvimento do saber futebolístico que estimula a produção de profissionais. Outro aspecto importante do “rodar” a cidade é que isto aumenta a possibilidade de os jogadores serem vistos por olheiros, essencial para a profissionalização dos esportistas.
O conhecimento futebolístico e sua construção coletiva é o tema do quinto capítulo. A corporalidade como forma de aprendizagem, ou seja, olhando e repetindo os movimentos, é a forma por excelência do ensino esportivo. Enquanto um ambiente de “imposição compulsória da heteronormatividade” (SPAGGIARI, 2016, p. 231-232), o conhecimento varzeano também ensina momentos de provocações e demonstração de virilidade, desestimulando comportamentos considerados femininos e incitando atitudes “de homem”. As questões de gênero também são analisadas pelo autor, trazendo voz a uma jogadora que tem seu lugar questionado por pais de alunos. A ideia de cultura como habilidade, tomada de Ingold, permite a construção do “dom” futebolístico, aspecto importante para o ingresso profissional.
O sexto capítulo apresenta o projeto familiar para a profissionalização dos jovens futebolistas. Vislumbrando a possibilidade de ascensão profissional por meio do esporte e, assim, ajudar seus familiares, os garotos recebem apoio de seus parentes para alcançar tais objetivos. Spaggiari dá voz para pais e filhos que sacrificam tempo e recursos financeiros para materializar estes propósitos. O autor também mostra as disputas entre famílias e treinadores a respeito das escalações e métodos de ensino, mas também as integrações destes atores para a formação das casas futebolísticas, que são as relações entre pais, técnicos e professores criadas por meio das famílias esportivas.
A atuação dos agentes futebolísticos é dedicada no capítulo sete. Devido à legislação, especialmente por causa da Lei Pelé (9.615/98), a produção de jogadores e a assinatura de contratos tem ocorrido mais cedo para que os clubes evitem perdas financeiras por causa dos passes. Esta situação causa um desequilíbrio favorável para os clubes com maior poder aquisitivo, uma vez que podem bancar o passe de profissionais mais novos sem maiores preocupações. Neste ambiente, o agente esportivo atua para garantir a melhor carreira para o jovem futebolista de forma conjunta com a família esportiva, criando laços e investimentos em equipamentos. Enquanto o técnico da escolinha é voltado para a formação e educação, o agente esportivo é fator central para a profissionalização dos jogadores. Além destas relações familiares, os agentes entrevistados por Spaggiari falam da importância do “dom” quando buscam por novos talentos ao atuarem como olheiros.
O oitavo capítulo é dedicado às famílias esportivas, onde Spaggiari apresenta cinco trajetórias com gráficos ilustrando as relacionalidades (relatedness) dos atores. Ao buscar as bases teóricas em Carsten, o autor não segue um modelo apriorístico de família, mas sim busca elucidar as tessituras produzidas pelas trocas estabelecidas nestas redes de parentesco, “problematizando conceitos tradicionais de família com reflexões antropológicas contemporâneas” (SPAGGIARI, 2016, p. 371).
Esta etnografia apresenta aspectos importantes da vida urbana por meio do esporte. Enquanto uma forma de viver a cidade, o “jogar bola” também é uma manifestação nos jovens futebolistas e suas famílias esportivas da instituição que é o futebol no Brasil. Quando a “família joga bola”, ela se envolve com a formação esportiva profissional dos garotos e garotas da várzea. A face econômica também é abordada por Spaggiari ao trazer a crença do “dom”, este “algo que o jovem futebolista já carrega e que não é possível ensinar” (SPAGGIARI, 2016, p. 333). O autor ilustra como a produção de “pés-de-obra” tomam uma forma altamente monetizada. Neste ponto, cabe uma crítica sobre a forma que se trata o “dom” como uma mercadoria, passível de monetização, tratando os clubes e jogadores como clientes em uma linha de negociação (STRATHERN, 2010, p. 237). Um terceiro tema que está presente ao longo de toda a etnografia, por meio de toda a polifonia em termos cliffordianos (CLIFFORD, 2002), é a demonstração do futebol como uma forma de viver a cidade. Ao se apropriarem de campos, ao transitarem pelos ônibus, ao se deslocarem para as diversas competições, os jogadores, os técnicos, agentes, enfim, as famílias esportivas atuam na cidade e percebem ela como um palco para o futebol, para poder “jogar bola”.
Renan Giménez Azevedo
Patrimônio e Centros Históricos | SÆCULUM – Revista de História | 2016
Organizadora
Regina Célia Gonçalves – UFPB.
Referências
[Patrimônio e Centros Históricos]. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, n. 35, jul./ dez. 2016. Acessar dossiê [DR]A reprodução do racismo: fazendeiros/negros/ e imigrantes no oeste paulista/ 1880-1914 | Karl Monsma
Com A reprodução do racismo, o professor Karl Monsma (Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul) oferece uma abordagem inovadora das relações cotidianas entre imigrantes, negros e fazendeiros no período da abolição até a primeira década do século XX. No erudito livro, Monsma busca entender os processos humanos que não só produzem, mas reproduzem o racismo, apesar de grandes mudanças institucionais e/ou sociais ao longo do tempo. Ele usa o duplo contexto de abolição e imigração para mostrar um habitus racial em mudança e como os diferentes negociaram essa nova realidade, procurando as melhores condições e resultados possíveis, tanto para o indivíduo quanto para os grupos. Apesar do enfoque geográfico no oeste paulista – principalmente no município de São Carlos – a contribuição tanto historiográfica quanto metodológica do livro vai muito além desse contexto.
O livro se divide em duas partes principais. Monsma começa com uma análise teórica e hemisférica do racismo como fenômeno histórico. Primeiramente, ele navega em uma vasta literatura sociológica, antropológica e histórica para teorizar os conceitos “raça,” “racialização,” e “racismo.” Para Monsma, abordagens do conceito bourdieusiano habitus, que tomam em conta as contradições e inconsistências presentes no próprio habitus, parecem as mais produtivas, abrindo novos caminhos para combinar o conceito abstrato com observações históricas do cotidiano. Mudanças sociais ou estruturais desestabilizam o habitus racial numa sociedade—mas por que a persistência da dominação racial? Para Monsma, o racismo se reproduz em tais contextos dada a intersecionalidade do habitus racial com outros contextos humanos: redes socais, instituições, ideologias, etc. Desconsiderando o resto do livro, esse capítulo teórico já seria de leitura importante para qualquer estudante ou pesquisador interessado em tais aspectos da sociedade. Leia Mais
Laboratorios etnográficos (1880-1980) – OJEDA (RCA)
Jorge Pavez Ojeda. https://commons.wikimedia.org/
OJEDA, Jorge Pavez. Laboratorios etnográficos. Los Archivos de la Antropología em Chile (1880-1980). Santiago de Chile: Colección Sociología. Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2015. 598p. Resenha de ESPIRITO-SANTO, Diana. Revista Chilena de Antropología, n.34, p.111-114, jul./dec., 2016.
Este nuevo libro de Jorge Pavez, al igual que su anterior, Cartas mapuche, siglo XIX (2008), marca un hito en la reflexión, ahora sobre el quehacer antropológico en Chile y su vinculación con el devenir de los vínculos “interétnicos”, “coloniales”.
La entrada a esa historia es por medio de un concepto: el de “laboratorio etnográficos”. Este “permite significar la conjunción de varios agentes, procesos y prácticas” (leídos desde una perspectiva dialógica), insertos en una topología (“son territorios completos, sometidos a procesos de ocupación estatal y de colonización”), en una economía y, por último, en una “cierta anatomía”. Así,
Las inscripciones topológicas, las marcas de su economía y los informes de sus anatomía se encuentran en el archivo de su producción. El archivo mismo, el conjunto de las inscripciones textuales y visuales producidas en el laboratorio de los territorios indígenas, da cuenta de la “vida del laboratorio” colonial y de su economía política y libidinal (p.27).
El período que abarca esta historia es de un siglo: 1880-1980. Los laboratorios centrales, capitales, giran en torno a los “autores fundadores de narrativas etnológicas de la nación” (p.35): ellos son Rodolfo Lenz, Max Uhle, Martín Gusinde y Tomás Guevara. A cada uno de ellos Pavez le dedica uno o más capítulos.
Así estas “narrativas”, al ser leídas bajo el supuesto del paradigma dialógico (opuesto al paradigma iniciático), hace de los “padres fundadores” autores parciales, donde los co-autores han sido silenciados, marginados u omitidos. La gracia de la obra de Pavez es mostrar, entonces, al detalle y con precisión obsesiva, la co-autoría y las consecuencias que se derivan de esta desconstrucción.
Como no me es posible comentar todos estos laboratorios me voy a permitir encarar dos de ellos ligados a la Araucanía: el de Lenz y el de Guevara, para posteriormente abordar algunas ideas más generales a que apunta esta obra.
La “narrativa” de Lenz —con un substrato caracterizado como de “araucanismo neohumboltiano” (la lengua como representación externa del “genio de los pueblos”, p.76)— se vincula, en el “dispositivo etnográfico”, con dos mapuche Víctor Manuel Chiappa y, a través de él, con Kalvún. Este nexo ya había sido puesto de relieve por Gilberto Sánchez en 1992. Otro co-autor, Manuel Manquilef tendrá un lugar relevante en este laboratorio, como también en el de Guevara.
En esta relación triangulada se manifiesta la tensión entre ambos aparatos y sus paradigmas, por ejemplo a la lengua y la posibilidad de traductibilidad.
Lenz, fiel a su postura humboltiana, se preguntaresponde “¿Es posible traducir literalmente de una lengua a otra, cuando las dos son de estructuras enteramente distinta y representan grados de cultura enteramente diferentes? Creo que no es posible”.
La respuesta de Lenz es la que rescata Paves por su originalidad: “…todas las teorías lingüísticas generales han nacido exclusivamente en el terrenos de las lenguas indo-europeas […] la perspicacia de Lenz para acusar las limitaciones etnocéntricas de su ciencia… recuerda lo que Jacques Derrida apuntó como la tentación imperialista de una lengua semítica universal recogida en el mito de la torre de Babel” (p.108). Es evidente que dentro de esta perspectiva el lugar de Manquilef era más simétrico o igualitario, de allí el estímulo de Lenz a que se publicara su obra, bajo su autoría, en los Anales de la Universidad de Chile. Es notable el rescate que hace Pavez de la complejidad del juego de Manquilef en la traducción de su obra:
Pero al mismo tiempo que traduce diálogos a enunciaciones impersonales, también encubre o atenúa ciertos conceptos orientados a generar efectos diferentes en cada idioma y su público lector, especialmente cuando se trata de enunciar la relación de fuerza (política o militar) entre los pueblos que practican las lenguas en traducción. Así por ejemplo, una frase de su padre Fermín Trekamañ Manquilef, citada dos veces: “Afkilpe aukantun dunu, aukantun dunu meu, piam, yeneenolu ta che; que no se concluya el conocimiento del juego, pues por el, se dice, la gente fue invencible”.
Aukantu es más que nada la acción de luchar, que por supuesto está contenida en el juego de palin, que es un juego agonístico, pero que abarca muchos otros escenarios de competencia, y especialmente, la guerra.
Aflayai aukantun dungu, “que nunca se acabe el conocimiento de la lucha/combate/pelea/ guerra”, en un enunciado bastante subversivo, que traducido al juego se vuelve la alegoría secreta de un pueblo que tiene que estar preparado para defenderse” (p.111).
Así el laboratorio de Lenz es sensible, por su orientación, a la valoración positiva de la propuesta y práctica de Manquilef. También lo era, nos recuerda Pavez, de la tradición y el habla popular chileno, expresada en la revista del Folklore, en su diccionario etimológico y en la recopilación de la Lira Popular.
Aquí Pavez rescata la tensión de Lenz con la elite chilena que veía con horror y escándalo ese rescate de lo popular:
Salte un hoyo, le vi el coño Colorado como un demonio
Meto lo duro en lo rajao Lo meto seco y lo saco mojao
La experiencia de Lenz es que “en Chile parece faltar por completo, entre la gente ilustrada, ese amor y cariño al pueblo bajo, el cual, sin embargo… es la base eterna de la fuerza nacional”.
La tensión de este Laboratorio con el insigne Andrés Bello es rescatada por Pavez. Para el triple fundador –de la Gramática, del Código Civil y de la Universidad de Chile—la valoración positiva de habla del pueblo estaba lejos de su horizonte, su postura oligárquica era abierta. Lenz en cambio “apela ya no amar a la ley sino amar al pueblo y a la nación; a la “pasión por el orden” de Bello opone una pasión por la creación el descubrimiento, el cambio y la transformación” (p.162).
En síntesis, el laboratorio de Lenz mantiene “una relación con el pasado, con la nación y con el ‘valor de antigüedad’ que la élite chilena no comprendía… Como tuvo ocasión de señalar en varias oportunidades y con altos costos personales, la elite chilena no tenía vocación de integración nacional” (p.164).
113/ Laboratorios etnográficos. Los Archivos de la Antropología en Chile (1880-1980) Laboratorio de Guevara En primer lugar, Pavez aborda uno de los textos de Guevara que se ha sido desde los 80 una obra fundamental para los estudiosos de la sociedad mapuche y para el “nacionalismo mapuche”: Las últimas familias araucanas (publicada en los Anales en 1912) y la razón es que allí “La gran variedad de familias presentes permiten una visión de conjunto sobre lo que constituye el entramado de alianzas políticas y familias que estructuran la sociedad mapuche” (p.320). Pavez quiere corregir “varios errores de interpretación” (como la coautoría), para finalmente mostrar “cómo esta forma de escritura de la historia mapuche contribuyó a la formación del primer movimiento político mapuche en la época de la reducción” (p.321), así “la operación historiográfica y la operación política se entrelazan en su génesis” (p.352). Aquí Pavez retoma la hipótesis de lectura de Menard sobre este gabinete:
…sobre este tipo de gabinete se ejerce un control y se impone un ‘orden del discurso’ colonial, que va a implicar un arreduccionamiento de la escritura, mapuche, al igual como se arreduccionaban los linajes en los territorios conquistados. André Menard ha señalado esta metonimia de la condición reduccional, para enunciar la delimitación reductora que se despliega en el formato de doble columna en que se publican estos textos mapuches (p.354).
Permítanme la siguiente hipótesis sobre este gabinete etnográfico encabezado por Manquilef- Guevara en la producción de “las últimas familias”.
Estábamos de acuerdo en el pasado reciente con la afirmación que se trata de una “visión de conjunto de la sociedad mapuche”, no obstante, tuvimos que modificarla con nuestros estudios en el área huilliche y posteriormente en el área Arauco-Tirúa. Las últimas familias es el laboratorio de los nagche y wenteche, que se valieron de Guevara para hacernos creer que no había universo mapuche más allá de esa oposición (de allí que sea poco útil este texto para comprender las redes mapuches en la zona de Arauco-Tirúa y de sus vínculos con la zona de Malleco).
Volvamos a Guevara. El título de las “últimas familias” (no compartido por sus co-autores) es coherente con la propuesta historiográfica de Guevara: “
lla suponía… como toda escritura de la historia un rito fúnebre que permitiera superar el pasado, pero lo que él estaba enterrando es el pueblo mapuche en conjunto, dándole un término como sociedad y civilización (p.365).
Por supuesto, como nos dice Pavez, “Es difícil creer que los mapuches del gabinete guevariano pensaran lo mismo” (p.365). Menos que compartieran el “evolucionismo” de Guevara que los inferiorizaba.
Estamos también lejos de Lenz, para éste lo mapuche era un clave del substrato cultural nacional, pero compartía con Guevara el paradigma de la extinción.
Ambos laboratorios funcionan como oráculos trágicos de un fin ineluctable, no obstante, Las últimas familias tiene la virtud de poner el oráculo de los lonkos que lo niega “no se acabará el ser, la sabiduría, mapuche”. Este juego oracular es que la ha transformado a esa obra en una clave La disputa de Guevara con Charles Sadleir y la obra de los anglicanos en la Araucanía, le permite a Pavez precisar el nexo que tuvo la Misión Anglicana con el movimiento mapuche, pero también con el “valor del mestizaje para las empresas misioneras católicas y retomado por la ideología nacionalista chilena” (p.397). Hay ahí un puente entre Lenz y Sadleir ambos eran sensibles y críticos al mestizaje promovido por el nacionalismo, ya que para los anglicanos “la comunidad cristiana y económicamente productiva se traducía en una clara distinción étnica o “racial” en el plano sexual reproductivo” (p.397). Esta distinción llevó a Sadleir a identificarse con los mapuches (sobre todo con aquellos militantes de la Sociedad Caupolicán, de la cual el formó parte), gesto que molestaba a Guevara, a pesar de considerarse un “amigo de los araucanos”.
Por último, Pavez nos presenta la distinción de la postura con uno de los mayores teóricos de la “raza chilena”: Nicolás Palacio.
Se enfrentan así las diferentes formas del indigenismo de principios del siglo XX, que en el fondo son variaciones de un racialismo evolucionista: el elitismo nacionalista de Guevara en contra el nobilismo raciológico de Sadleir, el racismo nacionalista de Palacios en contra del cosmopolitismo cientificista de Lenz, el culturalismo pragmático de Manquilef en contra del sicologismo determinista de Guevara. En esta multiplicación de posiciones, 114/ Rolf Foerster resulta bastante evidente que entre la imagen dada por Guevara… de una raza derrotada, biológicamente decadente y en vías de extinción, y la imagen de una raza dignamente representada por dirigentes aristocráticos, vestidos con moderna elegancia y convencidos de la vigencia de su autoridad así como de una autonomía racial y política frente a la nación y al Estado chileno, los caciques encontrarán en el proyecto comunitaristas anglicano una alternativa de negociación más atractiva que la ofrecida por el proyecto mestizológico chileno (p.423).
Este resumen de dos de los laboratorios nos permite pasar ahora a cuestiones más generales que me gustaría tratar antes de finalizar.
Una precisión: el estudio de estos laboratorios no es una suerte de “síntesis comprensiva y global de la historia de la antropología en Chile” y “esto porque las condiciones mismas de posibilidad de la práctica y el archivo etnográficos no llevan a pensar una historia de la antropología, sino más bien a conocer cada laboratorio etnográfico” (p.27-28).
No obstante, Pavez nos ofrece inmediatamente una síntesis al señalar que en la “historia del archivo indigenista” hay unos “padres fundadores de la etnología chilena”, que como todos padres producen fascinación y rechazo. Ahora bien, para sorpresa, esos padres no son los jesuitas de los siglos XVII y XVIII (Valdivia-Ovalle-Rosales-Havestadt-Febres- Molina), sino los “padres de habla alemana” de las primeras décadas del siglo XX: Lenz, Uhle, Gusinde: “autores consistentes de una ‘revolución científica’ en Chile”. La tesis es que “La modernidad alemana, anclada en el romanticismo populista, buscará en la alteridad negada por las elites criollas los fundamentos para la renovación de un proyecto nacional chileno cuya modernización se hiciera cargo de las tradiciones vernaculares” (p.30).
Mi hipótesis es que Lenz y la etnología alemana es de algún modo una continuación (y una negación) del “laboratorio jesuita”, que dio, como unos de sus resultados, no sólo diccionarios y una buena etnografía mapuche-huilliche, sino también la construcción dialógica de la “política de los parlamentos”.
Mientras que el laboratorio de Guevara tiene como objetivo desmontar ese laboratorio para levantar uno acorde con la “pacificación” y el “sistema reduccional”, como primer paso en la disolución de lo mapuche en lo nacional, de ahí la tensión con Manquilef que es heredero del laboratorio parlamentario del siglo XVIII y del XIX (no deja de ser significativo que Pavez no rescate de forma significativa la labor parlamentaria de Manquilef en la Cámara de Diputados; como el laboratorio político de las organizaciones mapuches de los 80 que rescatan ese legado).
Pero volvamos a la síntesis: para Pavez “la segunda guerra mundial dará el golpe de gracia a la fundación de la etnología en Chile” (p.31). El golpe viene desde los Estados Unidos: “cuyos paradigmas tecnofuncionales parecían más libres de tradiciones ideológicas porque favorecían la autonomización disciplinaria y un alejamiento del debate social” (p.31).
La figura central de ese parricidio sería Ricardo Latcham (rescatado desde su tumba, muere en 1943, por Mostny) y también (otra sorpresa) Lipschutz.
Ambos habrían practicado un indigenismo que “no ponía en peligro la ‘unidad nacional’ de Chile, sino que promovía abiertamente (y desde la antropología física) la patrimonialización colonial republicana de los reductos vivos de la alteridad política y sociocultural” (p.31). Esta historia concluye: “en los años 50 y 60” donde los “padres” alemanes son reducidos a la condición de ‘figuras recesivas’” (p.31).
Rolf Foerster – Departamento de Antropología, Universidad de Chile. E-mail: rfoerste@uchile.cl.
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Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile – KRAUSHAAR (RCH)
KRAUSHAAR, Lilith. Botitas Negras en Calama. Género, magia y violencia en uma ciudad minera del norte de Chile. Santiago de Chile. Ceibo Ediciones, 2016. 398p. Resenha de: ESPIRITO-SANTO, Diana. Revista Chilena de Antropología, n.34, p.109-111, jul./dic., 2016.
Este texto fue tomado de la presentación del libro, el 16 de Noviembre, en la Sala de Teatro Cinema.
Sabía que la antropóloga Lilith Kraushaar trabajaba con magia, relaciones y políticas de género, violencia y economía del poder en el culto a un espíritu de una señora que había muerto trágicamente en una ciudad minera en el norte de Chile. Pero no más. Cuando ella me pidió que participara de la presentación de su libro Botitas Negras en Calama, me di cuenta de que su trabajo era más que una simple etnografía de la biografía (y necrografía) de una mujer del ambiente. Además de trazar una historiografía rizomática, plural, de los hechos y del contexto de su construcción posicionada en múltiples sectores de la sociedad calameña, el libro también intenta entender la gran fe que sus varios caminos y encarnaciones, así como las intersecciones del significado de su muerte, siguen inspirando en los habitantes de estas precarias economías políticas. Este trabajo demuestra destreza en múltiples niveles de análisis discursivo y narrativo, socio-histórico y de cultura material, y es la combinación experta y sensible de estos métodos sumamente antropológicos, lo que es verdaderamente inspirador. Así es que gracias a Lilith por haber escrito este libro.
Botitas Negras es Irene Iturra, una mujer de 27 años brutalmente asesinada en los alrededores de Calama en 1969. Los detalles de su muerte son violentos en cualquier estándar: fue encontrada con la cara, cuero cabelludo y pechos cortados, sin una mano, piel y tendones de brazo, y semi-desnuda, como si hubiera sido violada. Se notó que vestía botas negras, la marca que la sexualizó desde ese momento, y que además la identificó. Tanto en los medios de comunicación, en la policía como en la población se genero un sinnúmero de hipótesis coherentes con la división sexual y económica del trabajo, y también con las ideologías de género y poder de ese tiempo y espacio: que había sido víctima de un triángulo amoroso, de alguna venganza o ira de parte del “marido”. Finalmente, cuando se produjo la imagen de “prostituta” en los medios de comunicación, se vio el asesinato como una conclusión casi naturalizada de un “ambiente” sexualmente depravado, y se apuntó a los males de una ciudad con vicios mineros descontrolados. Sin embargo, como sabemos, el caso se quedó sin culpables.
Pero Lilith Kraushaar no nos pinta un cuadro simple o sencillo de este “ambiente”, ni del enredo de conexiones en las cuales Irene Iturra se mueve, a veces secretamente de su celosa pareja, a veces con esperanza para su futuro en la prostitución. La autora nos recrea no solo el lenguaje del contexto bohemio de Chillán y Calama, trazando los pasos de Irene por una multitud de espacios y las discusiones públicas más amplias que siguieron, sino que es minuciosa hasta con el más pequeño detalle socio-histórico y documental, tejiendo una historia compleja, rica, cuyas partes sin embargo encajan de una forma disonante, en ángulos rectos, como la historia siempre es, vista de perspectivas diferentes. No hay una narrativa; hay muchas, paralelas, simultáneas, que hacen a la vez total sentido en el trabajo aquí expuesto.
Este no es solamente un libro sobre el comercio sexual en centros mineros; es también un tratado antropológico y crítico sobre la propia organización económica, sexual, y social en comunidades mineras en Chile, una organización que tiene fuertes raíces en las compañías norteamericanas que promovían modelos de familia y género que producían (y producen) tensiones irreconciliables. El hecho es que Irene Iturra desafió la tenue barrera construida entre esposas de trabajadores, protegidas por su marido y fieles a él, y las demás: solteras, mujeres nocturnas, prostitutas, sujetas a la violencia indiscriminada de sádicos. Al hacerlo, Irene puso en relieve estas mismas categorías, confundiendo los dos roles.
Pero tal como Irene utilizaba diferentes nombres, encarnando personajes diferentes según el contexto y las relaciones sociales que cultivaba en él, su cuerpo y la figura que sobresale eventualmente de su muerte tendrá repercusiones, algunas inesperadas. De hecho, hay que decir que Lilith hace más que caracterizar un espacio histórico: también ha escrito una especie de antropología del amor y de los sentimientos calameños, por medio de la magia dejada al pie del altar de Botitas Negras: cartas, velas, flores, placas, cigarros, cerveza, dulces y otros regalos que se enmarcan dentro del homenaje y de los pedidos que jóvenes y viejos pero especialmente mujeres, le vienen hacer a ella. De Irene Iturra a Botitas Negras hay una transformación: la prostituta se vuelve maestra en temas del ambiente, de clientes y prostíbulos; como ente sexual, se convierte en especialista del amor y atracción; como esposa, en temas de matrimonio y vida doméstica; la mujer asesinada y violada se vuelve la protectora de otras mujeres, experta en técnicas de venganza; se vuelve milagrera y destructora a la vez. Sus múltiples resignificaciones no son extrañas a otros difuntos especiales, no solo en Chile. La cultura material hace el milagro posible; materializa la esperanza. Por alguna razón nosotros antropólogos de fenómenos religiosos le prestamos especial atención. La figura de Irene es, por lo tanto, reclamada y rehecha en Botitas, disputada por distintos grupos con diferentes creencias relativas a la muerte y a sus prácticas funerarias.
En la segunda parte del libro, por lo tanto, Lilith nos lleva por los variadísimos motivos que impulsan el culto a Botitas, la santa prostituta. Al final, vemos que se anuda perfectamente un lado del libro con el otro: aparte de otras solicitudes, las mujeres que vienen a la tumba, desamparadas, saben que Botitas “entiende”, como dice Lilith, y cito,
lo que implica el ser mujer en esta ciudad minera, con todos los impedimentos y los papeles que se le atribuyen: conservar la familia, arreglársela con varios tipos de trabajo para obtener un sueldo, complacer sexualmente, vivir con el sueldo de otro, competir entre mujeres, admitir el privilegio masculino de escoger entre varias mujeres, el entretenimiento homosocial, situaciones todas que anuncian la expresión diaria y la eventualidad de la violencia en las relaciones de género, amparadas por las instituciones y el mercado capitalista (p. 296).
Pero, para finalizar, podemos decir que si por un lado, a través del culto a Botitas se articulan las condiciones del capitalismo industrial y los valores subjetivos mantenidos por la gente en una ciudad minera en tiempos actuales, en tanto “muerta” Irene Iturra trasciende estas mismas condiciones. Ella no es solo testigo de la historia verídica, de hechos socio- económicos refractados a través de su biografía, pero también en cierto modo hace y rehace historia.
Dice Stephan Palmié (2002: 4-5), un antropólogo y historiógrafo de religiones afro-cubanas, que en un sentido muy concreto, cada forma de conocimiento histórico involucra proposiciones sobre el papel de los muertos en el mundo de los vivos, conformado como es por la existencia y agencia pasada de humanos.
Estos conocimientos hacen reclamos al pasado; un pasado que viene a instanciar, mantener o contestar un mundo presente. Pero estos reclamos no deberán ser vistos como concepciones objetivistas de representaciones históricas, como si el pasado fuera sujeto de fácil rescate o recuperación. La historia, nos cuenta Palmié, es, invariablemente, constituida por imaginación histórica, por historias personales y familiares inacabadas, discursos y imágenes que compiten, donde no hay una linealidad entre realidades pasadas, a ciertas distancias temporales, y el presente.
Tomar en serio a los muertos afro-cubanos es, según él, indagar sobre las relaciones entre el pasado y el presente que subyacen a un orden contemporáneo pero quedan no-reconocidos, en silencio, no obstante que su existencia en el mundo haya tenido consecuencias que todavía resuenan entre los vivos.
A mi modo de ver, y en consonancia con lo que señala Palmié, lo que logra el culto a Botitas es también eso: traer a la consciencia que el pasado no terminó, y nunca va a terminar. Hay personajes, como los afroamericanos, pero también Irene Iturra, cuyas historias no son la propiedad especial de sus descendientes, sino parte del patrimonio ético e intelectual del Occidente como tal. Mientras que los muertos de que habla Palmié hacen parte de la formación de la modernidad Atlántica, como espíritu, podemos igualmente proclamar que Botitas pertenece a una conformación mucho más grande que los contornos de su propia vida.
Referências
Palmié, S. 2002. Wizards and Scientists: Explorations in Afro- Cuban Modernity and Tradition. Duke University Press, Durham
Diana Espirito-Santo – Profesora Asistente de Antropología, Pontificia Universidad Católica de Chile. E-mail: diana.espirito@uc.cl.
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Corpos de ordenanças e chefias militares em Minas Colonial: Vila Rica (1735 – 1777) | Ana Paula Pereira Costa
Os trabalhos que tem como objeto de pesquisa os “militares” ou as “instituições militares” tem ganhado cada vez mais espaço no meio historiográfico brasileiro das últimas décadas, consolidando-se como um importante campo de estudos. Contudo, as análises sobre essa temática ainda sofre certa resistência por parte da comunidade acadêmica nacional. Alguns dos motivos que levam os pesquisadores a não enveredar por essa área estão relacionados com a intervenção e a participação dos membros dessas instituições na organização política do Estado brasileira ao longo de sua história republicana (como, por exemplo, o golpe de Estado que pôs fim ao regime monárquico imperial e proclamou a República em 1889; o período ditatorial varguista, também apoiado por setores das forças armadas, conhecido como “Estado Novo” e a recente experiência da Ditadura Civil-Militar de 1964-1985).
Também pode se relacionar a escassez de análises sobre esse objeto específico à compreensão que alguns historiadores ainda possuem em relação à chamada “História/Historiografia Militar”, cuja descrição é comumente associada a uma história factual, sem problemáticas, limitando-se apenas a descrever e narrar determinadas batalhas bem como a vida dos “grandes chefes militares”. Em suma, uma história que estaria relacionada com a chamada História Política praticada, sobretudo, ao longo do século XIX até meados do século XX. Leia Mais
On Inequality – FRANKFURT (M)
FRANKFURT, Harry G. On Inequality. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2015. 102p. Resenha de: FAGGION, Andrea Luisa Bucchile. Manuscrito, Campinas, v.39 n.3 July/Sept. 2016.
Frankfurt begins by making a familiar point against the imposition of strict economic equality: “Inequality of incomes might be decisively eliminated […] just by arranging that all incomes be equally below the poverty line” (p. 3). We should not infer from this, however, that Frankfurt reduces egalitarianism to economic egalitarianism, a trend of thought that argues for a brand of equality according to which everybody enjoys the same wealth.
Moreover, Frankfurt’s refusal to grant moral relevance to equality as such does not entail that he does not regard poverty as a moral problem. This is why he replaces egalitarianism with a doctrine of sufficiency – “the doctrine that what is morally important with regard to money is that everyone should have enough” (p. 7) – which also proscribes “economic gluttony” (p. 3). According to Frankfurt, egalitarianism misconstrues the real challenge of reducing “poverty and excessive affluence” (p. 4). Indeed, Frankfurt suggests that most people agree with him on this; what we really find repugnant when we express disapproval of inequality is another feature of the situation: the fact that some people have too little (p. 40).
However we determine the concept of sufficiency, it is not a comparative concept. In other words, according to Frankfurt, the amount of money available to others is not directly relevant to determining what is needed for a certain kind of life (p. 10). Thus, instead of focusing on alleged conflicts between the pursuit of equality and freedom, Frankfurt emphasizes what he considers a form of moral disorientation caused by the pursuit of equality. The pursuit of equality as a good in itself distracts us from what is truly significant (p. 13).
Frankfurt is willing to admit that the concept of having enough is hardly precise: “[I]t is far from self-evident precisely what the doctrine of sufficiency means, and what applying it entails” (p. 15). When he returns to the question “What does it mean for a person to have enough?” he notes that the assertion that a person has enough entails only that a requirement has been met, not that a limit has been reached. In other words, it’s not bad to have more than enough (p. 47).
Certainly, the main problem is how to specify the content of such a requirement, especially if one keeps in mind that this content entails claims of justice to be addressed by public policies. What counts in this specification? Is it the attitudes people actually have about the issue, or the attitudes it would be reasonable for them to have (p. 99, n. 15)? If the latter, what criterion of reasonableness would be useful here?
Frankfurt rejects the possibility that sufficiency is related to having enough to avoid misery (p. 49), which would be the only easy way to determine a pattern of sufficiency. The above questions are thus as difficult as they are important. They are also questions, however, that go beyond the limits of Frankfurt’s essay. In this work, Frankfurt merely warns against hastily adopting an inadequate alternative in the face of the difficulties associated with the doctrine of sufficiency (p. 15).
Frankfurt emphasizes that his interest is analytical rather than political (p. 65). In the end, however, it will seem obvious to some that Frankfurt’s doctrine of sufficiency risks ultimately being much less economically feasible than egalitarianism if developed as a theory of justice – even if Frankfurt is right about the fact that this does not count as a reason to adopt egalitarianism. Indeed, this does not even count against the claim that what lurks behind our disapproval of inequality is really the ideal of sufficiency.
With this noted, what really matters here is whether Frankfurt is right about its being unreasonable for someone to be unsatisfied about her life only because her standard of living is bellow that of others (p. 73). In other words, is equality an important component of sufficiency itself? Would it be unreasonable to be unsatisfied with your life if everyone else were at least ten times wealthier than you? Some will understandably doubt Frankfurt’s take on this issue.
Still on the topic of economic equality, Frankfurt considers arguments based on marginal utility, according to which economic equality would maximize the aggregate satisfaction of members of society. The idea is that the marginal utility of money necessarily diminishes for the wealthy, and thus that the redistribution of income and wealth provides money to those for whom it has more marginal utility. An argument along these lines is presented by Abba Lerner, who is quoted by Frankfurt as follows:
The principle of diminishing marginal utility of income can be derived from the assumption that consumers spend their income in the way that maximizes the satisfaction they can derive from the good obtained. With a given income, all the things bought give a greater satisfaction for the money spent on them than any of the other things that could have been bought in their place but were not bought for this very reason. From this it follows that if income were greater the additional things that would be bought with the increment of income would be things that are rejected when income is smaller because they give less satisfaction; and if income were greater still, even less satisfactory things could be bought. The greater the income, the less satisfactory are the additional things that can be bought with equal increases of income. That is all that is meant by the principle of the diminishing marginal utility of income. (qtd. on p. 28)
Frankfurt’s first reply to this kind of argument is grounded in his concept of a “threshold effect”. The satisfaction obtained via the purchase of the last item in a series may be greater than the satisfaction obtained by purchasing the other items because the last item represents the crossing of a threshold. The experience of collectors illustrates this point. Frankfurt’s second reply involves the refusal to accept Lerner’s assumption that if a consumer refrains from obtaining a certain good until his income increases, this necessarily means that he rejects it when his income is lower (p. 32). According to Frankfurt, even where a consumer does not save money to purchase a certain good, this doesn’t necessarily mean that he rejects that good and prefers the good he actually purchases. The consumer may regard saving for a particular purchase as pointless because he believes that he will not be able to save enough money within an acceptable period of time (p. 97, n. 10).
Thus Frankfurt claims that it is not the case that economic egalitarianism maximizes aggregate utility in society. Indeed, Frankfurt believes that an egalitarian distribution may minimize aggregate utility in certain circumstances: “[W]hen resources are scarce, so that it is impossible for everyone to have enough, an egalitarian distribution may lead to disaster” (p. 36). Frankfurt’s example is a situation in which there is enough medicine and food to enable some members of a population to survive but where an equal distribution of these resources would result in nobody’s receiving enough, and thus in everybody’s death (p. 34). This line of thought is reminiscent of theories of justice according to which justice is meaningless in contexts of extreme scarcity and abundance (see, for instance, Hume, 2006, p. 93-94). Frankfurt is thus open to the objection that it is not only egalitarianism but indeed any conception of justice that would be inapplicable in such circumstances.
With the above noted, the ideal of equal respect and concern is much more relevant to contemporary theories of justice than strict economic equality. The most important part of Frankfurt’s book is therefore his analytical attempt to illustrate what he takes to be a conceptual confusion at the root of this ideal:
Enjoying the rights that it is appropriate for a person to enjoy, and being treated with appropriate consideration and concern, have nothing essentially to do with the consideration and concern that other people are shown or with the respect or rights that other people happen to enjoy. Every person should be accorded the rights, the respect, the consideration, and the concern to which he is entitled by virtue of what he is and what he has done. The extent of his entitlement to them does not depend on whether or not other people are entitled to them as well. (p. 75)
Frankfurt’s point – perhaps echoing Aristotle – is that philosophers like Dworkin (see, for instance, 1985 and 2011) have mistaken the moral requirement to be impartial or avoid arbitrariness for the moral requirement to treat people with equal respect and concern: “To avoid arbitrariness, we must treat likes alike and unlikes differently. This is no more an egalitarian principle than it is an inegalitarian one” (p. 101, n. 3).
Importantly, Frankfurt is not denying that there are rights that belong to every human being by virtue of their humanity. Where this is the case, however, your having the right in question is not grounded in a principle of equal treatment. Your right is explained by your having a characteristic that others also have. In other words, impartiality requires us to treat equals as equals, but it doesn’t require of us that we view everybody as equal.
According to standard contemporary conceptions of justice, equality is not to be embraced no matter what the circumstances. On the standard egalitarian view, equality is more like an original position, for which justifications are unnecessary and from which divergences must be justified. Nonetheless, if Frankfurt is right, equality is not this species of moral position by default, or a constitutive moral principle. It is necessary to argue for the requirement of equal treatment (by showing that there are no relevant differences between two persons, for instance) (p. 77-78).
To sustain his thesis, Frankfurt challenges a scenario made famous by Berlin. It’s worth reproducing the passage quoted by Frankfurt in full:
The assumption is that equality needs no reason, only inequality does so… If I have a cake and there are ten persons among whom I wish to divide it, then if I give exactly one tenth to each, this will not, at any rate automatically, call for justification; whereas if I depart from this principle of equal division I am expected to produce a special reason. (qtd. on p. 80)
Frankfurt claims that it is not the moral priority of equality that explains why we should divide Berlin’s cake into equal shares. In Frankfurt’s view, the key feature of the situation is the lack of relevant information. If a distributor has no information at all about those among whom she is to distribute something, this amounts to a situation in which each person is identical to the others. This is why the cake should be divided into equal shares:
It is the moral importance of respect, and hence of impartiality, rather than of any supposedly prior or preemptive moral importance of equality, that constrains us to treat people the same when we know nothing that provides us with a special reason for treating them differently. (p. 81)
It is true that Frankfurt’s point here looks like a dispute about words, since both Frankfurt and the egalitarian agree that Berlin’s cake should ultimately be divided into equal shares. Yet the implications of Frankfurt’s point are highly relevant. If equality on its own cannot justify, say, a rights claim, then the discussion is really about entitlement. The concept of entitlement is generally neglected in contemporary philosophical debates about social justice. It’s as if the resources discussed in these debates appeared from nowhere, such that the only relevant issue is whether there is justification for departing from a policy of equal distribution – such as differences between conceptions of the good, as in (Dworkin, 1985), or the fact that the “cake” diminishes when divided into equal shares, as in (Rawls, 1999). Against this background, Frankfurt’s essay is a breath of fresh air for contemporary philosophy.
References
DWORKIN, RONALD. A Matter of Principle. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 1985. [ Links ]
______. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 2011. [ Links ]
HUME, DAVID. Moral Philosophy. Ed. Geoffrey Sayre-McCord. Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company, 2006. [ Links ]
RAWLS, JOHN. A Theory of Justice: Revised edition. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1999. [ Links ]
Andrea Luisa Bucchile Faggion – Universidade Estadual de Londrina – Filosofia Rodovia Celso Garcia Cid | Pr 445 Km 380 | Campus Universitário Cx. Postal 10.011 | CEP 86.057-970 | Londrina – PR, Londrina 86057-970 Brazil. E-mail: andreafaggion@gmail.com
Realizing Reason: A Narrative of Truth and Knowing – MACBETH (M)
MACBETH, Danielle. Realizing Reason: A Narrative of Truth and Knowing. Oxford: Oxford University Press, 2014. 494 p. Resenha de: VALENTE, Matheus; DAL MAGRO, Tamires. Manuscrito, Campinas, v.39 n.3 July/Sept. 2016.
Danielle Macbeth’s Realizing Reason is a tour de force about the history of mathematical knowledge from ancient Euclidean geometry to the late 19th century and early 20th century developments on mathematical logic. It is an ambitious work dealing with a vast array of subjects and philosophical themes while still being able to consistently display a high standard of erudition and originality in areas as diverse as the Philosophy of Mathematics, Language, Science and Mind.
The narrative of the book is complex and multifaceted, but its main thread is two-fold. On one hand, Macbeth aims to develop a novel account of “our being in the world” which gives room for the existence of normative facts in a world which is fully explained by mechanistic causal laws – a profound philosophical dilemma that stands at the center of many authors’ works such as Kant, and, more recently, Macbeth’s former Pittsburgh colleague, John (McDowell, 1994). On the other hand, Macbeth argues for a reparation on the perspective with which philosophers should see the practice of mathematics and the mode through which it attains knowledge. The author’s objective is primarily to show how the practice of mathematics, in each of its historical stages from the Greeks to the present, by means of its characteristic linguistic notations, enabled thinkers to literally amplify their knowledge, as opposed to merely making explicit what was already implicit in the information one had begun with. Furthermore, Macbeth aims to prove that this much is true even of mathematics as it is currently conceived, i.e. “the practice of reasoning deductively from concepts” (p. 5). One of the author’s main challenges is to show how there can be such a thing as an “ampliative deduction”, and in order to achieve this feat, Macbeth must break through Kant’s conceptual distinctions to open the way for the idea that the knowledge attained by some deductions, which is, per definition, analytic, can, at the same time, be synthetic.
Both issues dealt with in the book – the apparent incompatibility of reasons in a world of causes and the notion of ampliative mathematical knowledge – are foundational questions in Philosophy and each can be traced to the early beginnings of philosophical practice itself. It is noteworthy that Macbeth sets out to tackle both at the same time while also showing how the resolution of one question is tied to the resolution of the other (and vice-versa).
The book is divided into three main sections, each composed by three chapters, which chronologically tell the story of reason’s development and unfolding from the Ancient Greek’s mathematical practice to the present. The first section is entitled Perception, alluding to Macbeth’s claim that in the early stages of our intellectual development we have our “primary mode of intentional directedness in perception” (p. 17). This corresponds to a time before the Cartesian turn in the sixteenth century, where “pure intellection”, as opposed to the perception of an object, “becomes the paradigmatic mode of intentional directedness and the model even for perception” (p. 18). This intellectual revolution, which led us from bare perception to pure intellection, is the main theme weaving together the three first chapters.
In Chapter 1, Macbeth presents a story detailing how perceptually aware beings, like ourselves, have managed to progress from our ancestors’ rudimentary capacities of imitation and of synthesizing procedural knowledge to sophisticated self-consciousness and rationality. Crucial to Macbeth’s story is a profound anti-Cartesian stance, according to which we should not make a division between the merely physically describable stuff that is “outside” and the normatively significant, meaningful experiences that are “inside” (p. 20). In explicit opposition to Robert (Brandom, 1994), Macbeth suggests jettisoning altogether the idea that a world described by means of causes stands in contrast to a world described by means of reasons, as if these concepts were not applicable to things of the same nature. Just as nature acquires biological significance as animals evolve in their environments, e.g. a bunch of leaves becomes food, so does nature become socially and culturally significant as intelligent beings begin cooperating, sharing goals and engaging in practices and games among themselves. The last step in that progression is the transformation of social beings into “properly rational beings capable of distinguishing in principle between how things seem and how things are” (p. 56); that is, the acquisition of the capacity to step back from our natural inclinations and to realize that “anything we think can be called into question, and improved upon” (p. 49). This final stage of intellectual development, Macbeth claims, depends fundamentally on the coming into being of a natural language, which is, albeit contingent and historical, not an obstacle to objectivity, but constitutive of our access to it.
Notwithstanding their importance, natural languages are intrinsically grounded on our perceptual means of access to the world, and, for that reason, do not reach far enough so as to provide us with knowledge of all there is to be known about in the world. In chapter 2, Macbeth delves deeply into Ancient Greek mathematics – exemplified by Euclidean diagrammatical practice, a methodology that would be the unchallenged orthodoxy in Western mathematical thought for centuries until the Renaissance – in order to make clear how the unfolding of reason takes us ever more far from our immediate empirical reality. Macbeth’s central claim in this chapter is that, in Euclidean diagrammatical practice, we do not reason on diagrams, but in them; in other words, Macbeth claims that an Euclidean diagram does not merely describe a certain course of mathematical reasoning (as, for example, we could describe a mathematical demonstration on natural language), it “formulates the contents of concepts” in a mathematically tractable way and, for that reason, constitute – as opposed to merely picturing or describing – the reasoning itself. As Macbeth fleshes out that important distinction, it becomes ever clearer how demonstrations in Euclidean geometry managed to amplify our knowledge, often giving rise to discoveries that were not even implicit in what the demonstration had begun with. Differently from an Euler or Venn diagram (or any other types of “picture proofs”), in an Euclidean diagram “what is displayed are the contents of concepts the parts of which can be recombined with parts of other concepts”. So, for example, a certain mark in a diagram may be seen as either the side of a triangle or the radius of a circle, depending on the perspective that the reasoner impinges on the drawing. The possibility of this “gestalt-shift” (absent in, e.g. Euler and Venn diagrams) is what explains how figures often pop-up in an Euclidean proof – such as when an equilateral triangle appears as if from nowhere in the proof I.1 of the Elements – and thus, how “something new can emerge that was not there even implicitly”.
Chapter 3 leads us to the radical departure from Ancient thought that happens during the Renaissance with the rise of Modern philosophy, physics and mathematics. Macbeth is particularly concerned with Descartes’ influence in the emergence of a new mathematical practice by means of the introduction of the language of elementary algebra. The algebraic method adds a new degree of abstraction to the activity of reasoning, Macbeth argues, since its intentionality is not object-oriented, but directed to the merely potential relations which arbitrary objects may instantiate (p. 132). For example, one begins to interpret geometrical objects in a computationally tractable way, as the arithmetical relationship of some lengths (e.g. a square is some quantity multiplied by itself). By abstracting away from objects, and, thus, from any subject matter in particular, Descartes’ language allows “pure intellection to become (at least in intention) an actuality” (p. 149). Similarly to the language of Euclidean geometry, Descartes’ algebraic method is not to be conceived as merely a tool through which a course of reasoning can be described or pictured; instead, these symbolic languages present content in a mathematically tractable way, and, because of that, are the matter by means of which reasoning itself is constituted, or, to use Macbeth’s terminology, reasoning comes into existence in those symbolic languages, as opposed to being merely described on them.
The next triad of chapters is entitled “Understanding”, referencing the fact that Kant’s legacy to Philosophy entails that “pure reason is not and cannot be a power of knowing as Descartes had thought. Not reason but only understanding is a power of judgement, of knowing” (p. 151). This is precisely what chapter 4 is concerned about, more particularly, Kant’s Copernican revolution, by means of which our epistemic access to reality is turned upside-down, requiring “the philosopher […] to focus not unthinkingly on the object of knowing but self-consciously on the power of knowing, on what reason requires of objects as objects of knowledge” (p. 199). Macbeth’s argues that, as groundbreaking as Kant was, his thought was still pretty much restrained by the scientific, and, most importantly, the mathematical practice of his day, which, absent the revolution that would come in the nineteenth-century, could not ground a proper account of mathematical truth and knowledge – that is, an account of mathematical truth and knowledge answerable to things as they are in themselves, as opposed to things as they merely appear to us.
Chapters 5 and 6 present the new form that mathematics has come to be clothed in by means of the collective effort of intellectuals throughout the nineteenth-century. By means of the work of mathematicians such as Bolzano, Galois and Riemann, Macbeth tells us the story of how mathematics, after twenty-five centuries of development, finally becomes a self-standing discipline, “the work of pure reason wholly unfettered by the contingencies of our form of sensibility” (p. 244). However, not all is well with that sudden reshaping of mathematical practice, since, if mathematics answers to nothing outside of its own activity, as it came to be seen, it starts to look as if mathematics is nothing more than a linguistic game, completely disconnected of any struggle for objectivity.
Indeed, for much of the twentieth-century, Macbeth will go on to argue, a cluster of theses based on (i) the distinction of logical form and semantical content, (ii) a truth-theoretical account of meaning and (iii) a primacy of mathematical logic as the ruler of all formal disciplines will go on to become the orthodoxy in the understanding of mathematics and of its practice. This is, according to Macbeth, a very unfortunate event, since it seems force on us a picture of logic and mathematics as being merely formal disciplines, and, for that reason, completely deprived of intentional properties. Even worse, and this is one of the central points of the book, this is the picture that intellectuals born during the twentieth-century (even the best of them), have accepted without subjecting it to scrutiny, i.e. a picture of reasoning as being purely mechanistic, “nothing more than the rule-governed manipulation of signs with no regard for meaning” (p. 293).
In the last group of three chapters, aptly entitled “Reason”, Macbeth purports to analyze the philosophical problems that are engendered by the last great revolution in mathematics, i.e. when it came to be seen as “a practice of deductive reasoning on the basis of defined concepts” in nineteenth-century Germany. Most pressing to the author’s concerns is showing that this new conception of the mathematical practice is not purely formal in the sense that it came to be seen by philosophers, but, on the contrary, that it is intrinsically meaningful and often enables us to attain knowledge in the strongest sense of that concept, that is, objective knowledge about things in themselves.
In chapter 7, Macbeth takes the reader to a confrontation, for the first time, with Gottlob Frege’s Begriffsschrift, a mathematical notation that “was explicitly designed as a notation within which to reason deductively from concepts in mathematics”. This long chapter goes at great lengths to explain Frege’s concept-script because, as Macbeth defends, one must understand the notation in order to be able to see the mode of reasoning embodied within it. The pinnacle of the chapter, however, is Frege’s proof of theorem 133 in Part III of the Begriffsschrift, which Macbeth presents as being a real example of a deduction that establishes a real extension of one’s knowledge. The particularity of that proof is the book’s central concern until its very end, namely, the fact that it joins content from two definitions, as opposed to merely joining content from two axioms. That operation of bridging the content from two previously unconnected definitions is precisely what enables that mathematical practice to amplify one’s knowledge. Just as figures often pop up in a Euclidean diagram, “as if from nowhere”, some deductive proofs link concepts that were independently introduced and which, absent that proof, would display no immediate connection among themselves.
That much gets clearer throughout chapter 8, where Macbeth argues that definitions, although they are, by nature, stipulative, are not epistemically vacuous, since they serve to articulate the inferential content of particular concepts, and that is something one might – objectively – succeed in doing correctly or not. Definitions, however, do not amplify one’s knowledge by themselves; it is only in the context of a proof that they are able to forge new links within one’s conceptual repertoire:
proofs without definitions are empty, merely the aimless manipulation of signs according to rules; and definitions without proofs are, if not blind, then dumb. Only a proof can actualize the potential of definitions to speak to one another, to pool their resources so as to realize something new. (p. 387)
The conception of reasoning that we reach by the end of the book is, contrary to the Early Modern simulacrum that we have unreflectively inherited, is neither reductive nor mechanistic. It does not purport to reduce the content of concepts to primitive notions, instead, those contents are displayed in a mathematically tractable way. It is also not mechanistic, Macbeth claims, since the knowledge attained by a deductive proof may be, at the same time, both analytic and synthetic – a fact that makes Kant’s dichotomies stand in need of a radical revision.
The book’s narrative comes full-circle by the end of chapter 8 and throughout chapter 9, where Macbeth studies the case of physics, about which she draws a parallel between the nineteenth-century revolutions in mathematics and the twentieth-century revolutions in theoretical physics. The underlying theme is that mathematics and physics have both recently undergone profound revolutions, while philosophy “has, until now, remained merely Kantian” (p. 453). The final blow on the Cartesian view that we have inherited from the early moderns involves disentangling the Sinn/Bedeutung distinction from that of concept and object (a disentanglement that was out of reach for Kant). Only by clarifying those distinctions, we can understand “how a radically mind-independent reality and an unconditioned spontaneity are not only compatible but in the end made for each other” (p. 451).
Realizing Reason suffers from a flaw that is an almost inevitable consequence of its virtues. Macbeth’s overambition, i.e. her attempt to leave no stone unturned, leads to her book having a certain bric-à-brac quality, since the thread that unites her narrative throughout highly distinct subject matters is usually, but not always, evident. Regardless of that, this book presents innovative theses in a multitude of areas, of special interest being its analysis of Frege’s work, which sees his accomplishments from a whole new perspective and as giving rise to a heterodox conception of ampliative deductive knowledge. All in all, Realizing Reason is a recommended read for anyone with interests in the broad set of areas encompassing the philosophy of mathematics, mathematical practice, history of mathematics and logic, and who is interested in seeing how the issues on those areas communicate with issues in the philosophy of mind, language and the history of philosophy.
References
BRANDOM, R. B. Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive Commitment. Harvard University Press. Link no philpapers: http://philpapers.org/rec/BRAMIE, 1994. [ Links ]
MCDOWELL, J. Mind and World. Cambridge: Harvard University Press. Link no philpapers: http://philpapers.org/rec/MCDMAW, 1994. [ Links ]
Matheus Valente – 1Universidade Estadual de Campinas 57 Monroe St, Campinas 13083-872, Brazil, matheusvalenteleite@gmail.com
Tamires Dal Magro – Universidade Estadual de Campinas Rua Cora Coralina, 100, Campinas 13083-872, Brazil, tamiresdma@gmail.com
Depois da fotografia: uma literatura fora de si | Natalia Brizuela
Depois da fotografia: uma literatura fora de si, livro escrito na forma de ensaio, busca analisar e problematizar a questão das fronteiras entre as diferentes linguagens, notadamente a literatura e a fotografia. Natalia Brizuela, professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, já é conhecida no Brasil por sua publicação Fotografia e Império: paisagens para um Brasil Moderno (Cia das Letras, 2012), em que aborda questões atinentes à produção e circulação de fotografias no Brasil do século XIX.
Em Depois da fotografia, temos a proposta de pensar as fronteiras entre a literatura e as outras artes, fazendo-nos perceber como os limites entre elas, atualmente, podem ser entendidos como uma zona porosa, que permite diversas contaminações. A proposta de Brizuela leva-nos a conhecer o trabalho de diversos escritores latino-americanos (Mario Bellatin, Diamela Eltit, Nuno Ramos e Juan Rulfo) e como, em suas obras, a fotografia aparece em meio à escrita. Leia Mais
Tratado de ateologia | Michel Onfray
O fenômeno é cotidiano. Acontece conosco, com cada um de nós, acontece com todos os que estão à nossa volta. Na medida em que a realidade se torna insuportável demais, nos refugiamos em fantasias diversas que nos apaziguem ou pelo menos dotem de sentido o nosso sofrimento. Mas não condenamos sumariamente ao suplício, ao ostracismo ou à morte aqueles que não compartilham com os nossos próprios mecanismos psicológicos de fuga. Como, então, surgem e se estabelecem as religiões monoteístas, que fazem exatamente esse mesmo movimento, elevar à alucinação universal e obrigatória aquilo que foi um dia delírio de um só ou de um pequeno grupo? Quais são as consequências devastadoras desse modelo de pensamento, desse civilizacional procedimento agressivo, “evangelizador”? São essas justamente as questões abordadas em Traité d’athéologie pelo filósofo francês Michel Onfray,1 autor de diversos outros livros de sucesso tanto no cenário filosófico atual quanto fora dele, em função, certamente, tanto da maneira eloquente e contemporânea de expressão escrita quanto da temática prevalente de seus escritos, que abordam questões filosóficas atuais mantendo tanto a rigorosidade conceitual quanto a pertinência temática. Seus mais de cinquenta textos, que versam sobre uma grande gama de temas diversos, embora o leitor atento possa perceber uma ligação simpática entre eles, passando por assuntos como materialismo hedonista, afetividade e erotismo, subjetivação, tragicidade da existência, gastronomia filosófica, estão sempre retomando a necessidade da filosofia de se fazer presente na existência cotidiana dos seres humanos em vez de constituir uma linguagem técnica acessível exclusivamente a iniciados e eruditos. Com leituras e interpretações de Nietzsche, conserva desse a combatividade filosófica e a beleza de estilo. Por vezes seu desenvolvimento argumentativo leva a conclusões que podem escandalizar aos mais sensíveis, pois esta é a tarefa da (sua?) filosofia. Com seu Tratado de ateologia, com sua defesa de um ateísmo radical e sem concessões, não será diferente. Leia Mais
A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina – JENKINS (RTF)
JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Roberto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014. Resenha de: ASSIS, Gabriella Lima de. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.
Depois de publicar ao longo da década de 1990 obras que discutiram as pro-fundas mudanças pelas quais a história passou enquanto disciplina1, o historiador inglês Keith Jenkins, professor emérito da University of Chichester, escreveu uma no-va obra na qual apresentou os seus argumentos em relação ao discurso da pós-modernidade.
Segundo o próprio autor, a sua intenção nesta nova obra recentemente tra-duzida para o português com o título “A História Refigurada”2 foi apresentar para os estudantes de história que estão empenhados em “fazer história” ou prestes a isso, novos argumentos capazes de trazer frescor a uma disciplina tão antiga por meio da tentativa de refigurá-la diante das abordagens sinalizadas pelo pós-modernismo.
Existem muitas definições diferentes acerca do pós-modernismo3, porém nesta obra Keith Jenkins o compreendeu como “a era da aporia” em que o discurso da história deve ser pensado como uma estética “e não como uma epistemologia objetiva, verdadeira ou fundacional”4. Desta maneira, ao longo do desenvolvimen-to dos argumentos concatenados no livro, o autor mencionou que a sua expectativa com a escrita deste livro não foi a de superar a história pós-moderna, na verdade seu objetivo principal foi trabalhar o discurso da história na direção desse tipo de democra-cia radical e aberta, que entende a impossibilidade de instituir um fechamento histórico/historicizante total do passado, ao mesmo tempo que reconhece que suas formas refiguradas de conceber – ou seja, figurar – as coisas “nunca terão sido boas o suficiente” – e que esta é a mais desejável5.
Com uma escrita intencionalmente polêmica e muito provocativa, Keith Jenkins não omitiu que foi muito influenciado por Jacques Derrida, Hayden White e Frank Ankersmit juntamente com seus respectivos postulados teóricos durante a escrita desta obra. Sem esperar a aprovação dos mesmos, Keith Jenkins afirmou que se beneficiou pessoalmente ao ler todos eles e pretendeu de forma clara expres-sar os méritos de cada um nos três capítulos que compõe seu novo livro.
O primeiro capítulo intitulado “Tempo (s) de abertura” apresenta as contri-buições do teórico francês Jacques Derrida para o pensamento histórico. Da manei-ra como Keith Jenkins nos permite entender, a principal contribuição deste autor foi unir “a demonstração da impossibilidade do fechamento linguístico/discursivo a uma promessa emancipatória e política”6.
A idéia central deste capítulo parece ser a de demonstrar que a abertura ine-vitável proporcionada pelas perspectivas pós-modernas que Derrida ajudou a con-solidar, tem permitido releituras e reescritas do passado fazendo surgir uma história sempre refigurada. Nesse sentido, segundo Jenkins, os trabalhos de Derrida tenta-ram “mostrar, entre outras coisas, a impossibilidade de reduzir ao finito ou ao cog-noscível as infinitas possibilidades do pensar sobre o que a história pode ser”7.
Para Keith Jenkins, ser pós-modernista não é simplesmente aceitar perspec-tivas em múltiplos níveis ou crer na multi-interpretação. Na verdade, da maneira como discorreu Keith Kenkins neste capítulo, o que os pós-modernos problemati-zam não é o conteúdo da história, e sim o status de sua forma.
Novamente lançando mão de Derrida, Keith Jenkins explicou que os senti-dos não são constituídos por signos/palavras autossuficientes. Na verdade, E, de fato, é essa natureza aparentemente fixa do sentido que mui-tas vezes faz com que pessoas pensem equivocadamente que há al-go essencial na linguagem… de modo que, por exemplo, alguns historiadores supõem a existência de algo intrínseco no nome da história que a isentaria de receber sentidos e conotações infinita-mente novos, ao invés de ver que a “história”, como todos os con-ceitos, é um “significante vazio”8.
Ainda no primeiro capítulo Keith Jenkins trabalhou as idéias de “indecidibi-lidade da decisão” e de “aporia” de Derrida, cujas implicações na história podem ser compreendidas na medida em que enxergamos que o passado nada contém de valor intrínseco, nada a que tenhamos de ser leais, nenhum fato que tenhamos que encontrar, nenhuma verdade, problema ou tarefa a resolver, na verdade somos nós que decidimos sobre essas coisas9.
No segundo capítulo chamado “Ordem (ns) do dia” Keith Jenkins demons-trou como pode ser libertador para os historiadores a idéia pós-moderna de que não exista um método histórico ou uma epistemologia que não seja problemática.
Partindo dessa vez das contribuições do teórico norte-americano Hayden White, Keith Jenkins explicou que assim como o passado e a história, os fatos tam-bém são construções interpretativas. Para ele, “isso não significa negar a realidade dos acontecimentos passados, mas argumentar que eles não importam até receber significação no discurso”10.
Neste capítulo Keith Jenkins pode explicar o cerne do pensamento de Hayden White que o tornou um adepto dos pressupostos da história pós-moderna. Para ele, White considera axiomático que as hitsórias – especialmente as história narrativas (embora, provavelmente, todas as histórias se-jam narrativas em suas estruturas gerais) – sejam basicamente fictí-cias. Ou seja, embora possam querer dizer a verdade e nada mais que a verdade sobre seus objetos de estudo e sobre o que recolhem do arquivo, os historiadores não têm como narrar suas descobertas sem recorrer ao discurso figurativo11.
Ainda neste capítulo, Keith Jenkins falou sobre como o holandês Frank An-kersmit partiu de algumas idéias elaboradas por Hayden White para formular a noção de história como proposta, como apresentação e não como representação. Do ponto de vista de Jenkins seria possível concluir que para ambos os teóricos, o mais importante na escrita dos historiadores não está no nível do enunciado mas no da apresentação textual proposta, é esta que estimula o debate historiográfico. Des-ta forma a história seria sempre tão inventada (imaginada) quanto encontrada.
Em “Começar de novo: das disposições desobedientes”, o terceiro capítulo apresentado no livro, Keith Jenkins defendeu uma atitude que podemos considerar pós-moderna. Sem oferecer um mapa ou modelo de ação, o autor faz um elogio as análises históricas que celebram o caráter falho do fechamento.
Em sua análise o pós-modernismo pode ser entendido de maneira positiva por parte dos historiadores profissionais. Do modo como Keith Jenkins escreveu neste capítulo, o pós-modernismo não é uma espécie de moda, tão pouco pode ser resumido como uma interpretação pluralista. Para o autor, O pós-modernismo, como se entende positivamente aqui, é a ob-tenção de uma atitude, uma disposição militante, radical, que fra-giliza não apenas o conteúdo, mas também as formas gramaticais das histórias modernistas sem uma pitada de nostalgia, e oferece, em seu lugar, em suas novas gramáticas e atos de atenção, novas formas de mostrar “o antes do agora” ainda não concebido12 Por fim o autor acrescentou ainda o que ele denominou de “Coda”, para di-zer a respeito das principais implicações do seu pensamento histórico apresentado ao longo desses três capítulos que compuseram a sua nova obra. Firmando os seus posicionamentos bem como as idéias das quais partiu para escrever “A História Refigurada”, Keith Jenkins encerra fazendo algumas afirmações não menos polê-micas que certamente servem para aguçar e incentivar novas produções sobre o assunto.
Jenkins concluiu seu texto dizendo que “a ruptura entre as histórias moder-nas e pós-modernas não é uma ruptura epistemológica”13, a modernidade e a pós-modernidade são mundos diferentes, “todas as histórias são, portanto, do tipo esté-tico, que os pós-modernos levam ao nível da consciência”14.
De maneira geral podemos dizer que neste novo livro, Keith Jenkins estabe-leceu uma avaliação das principais questões levantadas pelo conhecimento históri-co nos últimos anos. Ele defendeu que grande parte dessas questões impactantes para a prática histórica permanece em aberto. Por meio de uma escrita instigante, Jenkins tratou da pós-modernidade trazendo à tona novas reflexões que servem tanto para professores quanto para alunos interessados pelas discussões sobre o pensamento histórico.
1 Cf. Rethinking History (1990) [ A História repensada]; On “What is History!” From Carr and Elton to Rorty and White (1995); The Postmodern History Reader (1997) e Why History! Ethics and Postmodernity (1999).
2 O título original da obra é Refiguring History: New Thoughts on an Old Discipline, trata-se de uma pu-blicação da Routledge de 2003.
3 Entre os teóricos que buscaram uma definição da temporalidade pós-moderna podemos citar: LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998; JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. 2ºed. São Paulo: Ativa, 2004; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; MUNS-LOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.
4 JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Ro-berto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014, p. 103.
5 Ibidem, p. 14.
6 JENKINS, KEITH. op. cit. p. 48.
7 Ibidem, p. 33. 8 Ibidem, p. 36.
9 Keith Jenkins, op. cit. p. 46.
10 Ibidem, p. 65.
11 Ibidem, p. 67. 12 Keith Jenkins, op. cit. p. 97.
13 Ibidem, p. 100.
14 Ibidem, p. 101.
Gabriella Lima de Assis – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: gabriella.lima@gmail.com.
O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira – MALATIAN (FH)
MALATIAN, Teresa. O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira. São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de: NACHTIGALL, Lucas Suzigan. Faces da História, Assis, v.3, n.2, p.261-264, jul./dez., 2016.
A seguinte resenha visa analisar o livro O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira, da historiadora Teresa Malatian, cujo objetivo central é abordar a participação de Arlindo Veiga dos Santos na Frente Negra Brasileira, desde sua fundação em 1931 até sua dissolução com o estabelecimento do Estado Novo em 1937. Ademais, o livro, lançado no ano passado, aborda também a formação do intelectual e sua atuação em movimentos sociais pelo fim da segregação e pela inclusão do negro na sociedade brasileira.
Sua constituição de pouco mais de trezentas páginas é dividida em vários pequenos capítulos, nos quais são dissertados aspectos da vida e da obra de Arlindo Veiga dos Santos e, consequentemente, das lutas, jornais e associações negras do final da década de 20 e 30.
Após um breve, porém pertinente, prefácio da professora Maria de Lourdes Monaco Janotti2, o livro segue trabalhando a história de Arlindo Veiga dos Santos, ferrenho militante negro, católico e monarquista, que atuou vivamente no Estado de São Paulo durante as décadas de 20 e 30, militando a favor da inserção do negro e pela instauração, no Brasil, de uma monarquia corporativista católica ultraconservadora, distinta dos monarquistas tradicionais, reformistas e liberais.
O livro inicia com a narração dos primeiros anos da formação de Arlindo Veiga dos Santos e seu irmão, Isaltino Veiga dos Santos, ressaltando sua origem de uma família humilde, cujos pais eram cozinheiros, mas que, apesar de terem poucos recursos financeiros, faziam questão de que seus filhos homens estudassem e tivessem uma boa educação.
Posteriormente à conclusão de seus estudos no Colégio São Luiz, de ensino caracteristicamente jesuíta, Arlindo Veiga dos Santos conseguiu, junto de seu irmão, estudar na Faculdade de Filosofia e Letras de São Paulo (hoje parte da PUC-SP), onde concluíram seus estudos.
Durante a faculdade, bem como no colégio que estudara anteriormente, Arlindo Veiga dos Santos recebeu uma formação em filosofia e em oratória, que foi de grande relevância para sua carreira. Foi também neste período que entrou em contato com o neotomismo, vertente filosófica construída a partir do pensamento de Tomás de Aquino e que, politicamente, advogava por uma visão de mundo medieval, notadamente antiliberal, antidemocrática, antiparlamentar, e que se colocava como alternativa ao socialismo, ao comunismo, ao anarquismo e à democracia liberal. Essa vertente filosófica marcaria, então, o cerne de suas obras e militância, e o intelectual se inspiraria também em movimentos políticos autoritários, como o fascismo italiano, para formular seu modelo de regime monárquico católico e corporativista e sua defesa da inclusão social do negro.
O livro segue contextualizando Arlindo Veiga dos Santos diante da intelectualidade negra nos anos 20, abordando as relações sociais dos negros no período e suas redes de sociabilidade construídas em torno de um associativismo cultivado a partir e em torno da recreação e de eventos como bailes e festividades.
Nesse contexto, teve início a ação panfletária de Arlindo Veiga dos Santos, fomentando o surgimento e o crescimento de diversos movimentos negros, como o Centro Cívico Palmares, que funcionava como uma escola, uma biblioteca, assim como, um centro comunitário e um espaço doutrinário de sociabilidade dos negros. Ali também eram confeccionados jornais escritos para a população negra, onde os “irmãos Santos” eram assíduos colaboradores, panfletando pela integração do negro na sociedade dentro de sua perspectiva católica.
Pouco depois da malsucedida tentativa de se estabelecer o Congresso da Mocidade Negra, um núcleo que centralizaria a militância negra, Arlindo Veiga dos Santos participara da formação da Frente Negra Brasileira (FNB), onde atuaria ativamente até sua extinção em 1937. Malatian discorre, então, sobre a constituição dessa frente, dos embates ideológicos internos ao grupo, especialmente entre Arlindo Veiga dos Santos, monarquista de direita, e Correia Leite, ligado a grupos socialistas e comunistas, onde Arlindo Veiga dos Santos assume, impondo sua liderança ao grupo.
Com a vitória de Arlindo Veiga dos Santos, a Frente Negra cresce, estendendo seu alcance muito além dos negros da classe média e congregando muitos populares, tanto na capital como pelo interior, onde diversas sedes foram abertas. Com isso, foi possível promover campanhas pela educação dos negros, bem como outras, como as que defendiam a necessidade de sair do aluguel e adquirir a casa própria e a admissibilidade de negros na Guarda Civil de São Paulo.
Simultaneamente, o livro também trabalha a face política da Frente Negra, desde a participação de negros na Revolução de 32, enquanto o movimento se mantinha neutro, denunciando o caráter oligárquico das elites revolucionárias, as aproximações de Arlindo Veiga dos Santos e, com ele, a FNB, com o integralismo de Plínio Salgado, que estreitaram muito as relações em vários momentos durante a década de 30.
Essa face política culminou com a candidatura de Arlindo Veiga dos Santos para a Constituinte de 1933 e, após o fracasso da candidatura, o lento afastamento do intelectual da presidência da Frente Negra Brasileira, onde ele permaneceria como membro atuante até 1937, quando suas atividades foram encerradas pelo Estado Novo.
O livro, como é possível notar, possui seu conteúdo centralizado na ação de Arlindo Veiga dos Santos e sua militância negra, monarquista e autoritária, com especial enfoque em sua participação na Frente Negra Brasileira e jornais negros subjacentes, como o Voz da Raça e o Clarim da Alvorada, onde participou junto de seu irmão Isaltino.
Sua postura e governos autoritários são diversas vezes apresentados e ressaltados pela autora, bem como os elementos de inspiração medieval que, aliados à aproximação de ideologias e movimentos autoritários, tornaram ímpar sua atuação no movimento negro das décadas de 20 e 30. Sua campanha pela educação, como mostra a autora, obteve profundos resultados.
O autor pregava a realização de uma “nova abolição”, para combater a “escravidão moral”, que assolava o Brasil após a abolição formal da escravidão, e que a educação traria a redenção para o negro, e divulgava assiduamente a necessidade de escolarizar os filhos. Com esforço conseguiram criar uma escola seriada, com alguns professores, e lutar contra o analfabetismo em crianças e adultos, profissionalizá-los e capacitá-los a combater a desigualdade e o preconceito que os negros enfrentavam.
A visão de Arlindo Veiga dos Santos, como nos mostra Malatian, era maniqueísta, centrada no combate entre o bem (católicos, nacionalistas) e o mal (comunistas, socialistas, anarquistas, liberais, entre outros). Nesse embate, os negros deviam lutar pela integração plena na sociedade brasileira, combatendo pela Pátria contra seus inimigos, como o preconceito e doutrinas perniciosas (socialismo, comunismo, liberalismo) para o progresso da Nação.
O estilo de escrita do livro é bastante característico da autora Teresa Malatian. Como seu livro anterior a respeito do Patrianovismo, Império e Missão: Um novo monarquismo em brasileiro (Editora Nacional, 2001), Malatian aborda a década de 30, com seus movimentos religiosos, sociais e políticos, com bastante familiaridade. Os capítulos, curtos, são apresentados de forma breve e temática, mas sucessiva e bem entrelaçada. Sua redação, que lhe é particular, é muito fluída e agradável, o que facilita a leitura e absorção da quantidade de informação que a autora traz à obra.
São apresentados, nos capítulos, uma quantidade relevante de trechos de artigos jornais, poemas e cartas, o que divulga e disponibiliza o acesso a essa documentação. Ao final de muitos desses capítulos, diversas fotografias relacionadas às temáticas são apresentadas, ilustrando os argumentos da autora (o que tem relevância quando se tratam de escolas, bandeiras, uniformes). Porém, infelizmente, a diagramação delas, na fase da edição, acabou fazendo com que algumas delas, como as imagens 05 e 06 (pág. 48 e 49, respectivamente), ficassem estranhas e demasiadamente pequenas, utilizando uma página inteira em uma foto minúscula. Outras, por conta da impressão, ficaram tão escuras que dificultou a definição do que estava representado, ou distinguir as pessoas. Como são problemas de simples resolução, é possível que seja solucionado em alguma eventual reedição.
Apesar desses detalhes, o livro permanece como uma boa escolha de leitura clara e fluída, acompanhada de uma história consideravelmente rica de conteúdo e informações. Esse conteúdo não trata profundamente acerca da atuação de Arlindo Veiga dos Santos na Ação Imperial Patrianovista Brasileira – tema abordado no livro supracitado da autora, e também no seu mestrado e doutorado – mas contextualiza a ação do intelectual e seu monarquismo católico e autoritário dentro do movimento negro da época, o que carecia de trabalhos dedicados.
Certamente, a obra oferece uma leitura útil para aqueles interessados tanto no movimento negro quanto nos movimentos católicos e de inspiração política autoritária da época, principalmente por contextualizar muito bem Arlindo Veiga dos Santos, seus embates e ideias, no movimento negro, e oferecer um panorama bem abrangente de sua ação como militante negro, católico, monarquista e nacionalista.
A autora do livro, doutora Teresa Malatian, é docente titular do curso de História da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP – campus de Franca. Possui titulação de Mestre em História, pela PUC/SP, com a dissertação A Ação Imperial Patrianovista Brasileira (1978) e de Doutora em História, pela FFLCH – USP, com a tese Os Cruzados do Império (1988). Atualmente, desenvolve principalmente pesquisas sobre os movimentos monarquistas no Brasil República, História do Brasil e historiografia.
Notas
2 Maria de Lourdes Monaco Janotti é professora da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro “Os subversivos da República” (1986), que abordou os monarquistas e sua militância nos anos iniciais do regime republicano no Brasil.
Referências
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os Subversivos da República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MALATIAN, Teresa. A Ação Imperial Patrianovista Brasileira. Dissertação (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1978.
MALATIAN, Teresa. Os Cruzados do Império (1988). Tese (Doutorado em História).
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.
MALATIAN, Teresa. Os Cruzados do Império. São Paulo: Contexto, 1990.
MALATIAN, Teresa. Império e missão: um novo monarquismo brasileiro. 1.a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.
MALATIAN, Teresa. O Cavaleiro Negro: Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira. São Paulo: Alameda, 2015.
Lucas Suzigan Nachtigall – 1. Mestre em História pela UNESP/Assis. E-mail: lucassuzigan@gmail.com.
[IF]Guerrilha e Revolução: A luta armada contra a Ditadura Militar no Brasil | Jean Rodrigues Sales
Nesta obra, Jean Rodrigues Sales organiza doze textos acerca da história da esquerda armada, na ditadura civil-militar no Brasil, ressaltando a trajetória política de diversas organizações guerrilheiras, como o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), e a ALN (Ação Libertadora Nacional).
O livro destaca que a luta armada se desenvolveu de duas formas: uma menos usual, que foi a tentativa de implantar a guerrilha rural, e a outra, mais comum no período, as ações urbanas, como assaltos a bancos para arrecadação de recursos, e expropriação de armamentos. Leia Mais
Coleções, museus e patrimônios das culturas negras / Revista Mosaico / 2016
O título desta apresentação poderia ser As Cores do Silêncio e os Gostos do Silenciamento, empreendendo duas sinestesias para insinuar temáticas como a questão racial, os silêncios da história, a poética e a política da memória. Debate que força passagem quando pensamos nas heranças africanas diluídas no Atlântico e manifestas em coleções, museus e patrimônios ou, em outros termos, como essa gama de expressões integrou um processo de produção de sentidos silenciados (ORLANDI, 2007).
São esses sentidos que atravessam o presente dossiê da Revista Mosaico. Os bens culturais de matriz africana foram e são constantemente silenciados em algumas práticas que legitimam ações sobre qual leitura do passado e o monopólio do direito de falar sobre o passado. São colocados em silêncio constitutivo (quando uma prática ou palavra silencia outra) e como silêncio da censura (o que é proibido de ser dito ou expresso) (ORLANDI, 2007). Situação que ganha potência quando analisada nas tramas em torno do campo do patrimônio – compreendido como um campo de poder, que prioriza determinados repertórios culturais e cujo conflito é o motor – e o modo como essas tensões reverberam na escrita da História.
A questão é que são esses mesmos mecanismos seletivos que iluminam percursos, nomes e legados, os utilizados para a invenção do anonimato, a fabricação da desimportância, a instituição de vazios e silêncios. Por isso, investigar presenças consiste em um estudo das ausências, fruto de uma engenhosa operação. Dessa forma, os silêncios podem sinalizar “não sua inexistência de fato, mas sua presença como parte do ‘inenarrável’, estando situadas, por constrições várias, ‘fora do acontecimento’” (FANINI, 2009, p. 16). Interditos que são reconhecidos como rastros, indícios que possibilitarão ler os testemunhos a contrapelo, problematizando as intenções de quem os construiu.
Portanto, o intuito do dossiê foi reunir artigos que problematizassem questões ligadas às coleções, aos museus e aos patrimônios das culturas africanas e de sua diáspora visando refletir sobre os usos plurais das coleções, as políticas da memória e as diferentes escritas da História, das Ciências Sociais e da Museologia, priorizando trabalhos teóricos e estudos de caso que abordassem as culturas negras em suas diferentes dimensões. Pretendeu, assim, acolher reflexões sobre colecionismo, cultura material, trajetórias de vida, saberes, discursos e relações de poder com enfoque para as expressões culturais afro-brasileiras, bem como para as políticas de patrimonialização daí resultantes evitando naturalizar ausências, subrepresentações e exotismos (SANTOS, 2005).
Do mesmo modo, o intuito foi colocar em circulação experiências diluídas ou tidas como insignificantes no processo de elaboração da memória coletiva, a partir de uma política de memória em que se formariam vozes em dissonância ou vozes em falsete na escrita da Nação. Esse rememorar cria espaços excêntricos que permite imaginar alternativas de ser e de saber: “da mesma forma, aponta para a abertura de um lugar crítico que lhes permite interrogar, redefinir e afirmar uma memória que se instaura a partir da tensão entre a pluralidade tonal e a singularidade das vivências” (BEZERRA, 2007, p. 37).
No caso das expressões culturais da diáspora negra no Brasil isso ganha ressonância quando percebemos “a repetição de lugares comuns, conceitos e preconceitos, reduzindo e desqualificando a força e a presença de matrizes africanas na construção de nossas formas de vida, trabalho sensibilidades etc.”, cujas bases “sofrem deslocamentos e desviam pontos de confluência transculturais”, perdendo de vista “negociações, transformações, incorporações e inovações nas sociabilidades de tempos e espaços brasileiros” (CUNHA, 2006, p. 1-2).
Se reconhecermos os silêncios em torno da Coleção de Magia Negra, as tensões que envolveram o tombamento do Terreiro da Casa Branca, em Salvador (BA) (VELHO, 2006), e que é recente entre nós, especialmente a partir do registro do patrimônio intangível, a salvaguarda das expressões culturais de matriz africana e de outros povos constitutivos de nossa identidade, é inegável a importância que o silenciamento enquanto categoria analítica assume no campo das políticas patrimoniais brasileiras. Talvez, por isso, constitua uma das questões centrais que atravessam os artigos deste dossiê temático.
Essa problemática é inaugurada no artigo “Acepção de ruídos: (re)produção e arquivamento da Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas”, de autoria de Débora Rejane Viana Sobral. Tendo como objeto as tramas acionadas pelo catálogo ilustrado da coleção constituída a partir das perseguições e repressões às casas de Xangô em Alagoas no início do século XX, o texto analisa a construção dos discursos sobre os artefatos de origem afro-brasileira, as lacunas e os limites na fabricação da coleção e o modo como a instituição detentora do acervo manipula e se legitima através do uso dessa informação. Desse modo, o silenciamento não foi imposto apenas por ocasião do “Quebra de 1912” que obrigou os terreiros a exercerem um “candomblé em silêncio” (RAFAEL, 2004), mas assume outras dinâmicas nos processos de musealização e tratamento da informação em torno desses artefatos.
O artigo “Mulheres negras e a discussão de gênero na construção das narrativas nos museus de Salvador”, de Joana Angélica Flores Silva, apresenta significativas provocações. Visando perceber a representação das mulheres negras nos museus históricos da primeira capital do país, problematiza como em determinadas exposições de longa duração é reincidente uma imagem colonizadora da mulher branca sobre a imagem colonizada da mulher negra. Dessa forma, além de refletir sobre outras narrativas que evidenciem de forma não discriminatória a participação de distintos sujeitos nos espaços de memória, também contribui para que possamos percorrer os silenciamentos que transformam as mulheres negras em silêncios dos “silêncios da história”, para dialogarmos com a expressão de Michelle Perrot (2005).
Ainda com relação às práticas de poder instituídas na intersecção entre raça e campo de produção simbólico tendo como eixo os museus e suas reverberações, o texto “A transitoriedade de um objeto: os balangandãs dos séculos XVIII e XIX e suas ressignificações na contemporaneidade”, de Sura Souza Carmo, compara a joalheria afro-brasileira que integra a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador-BA, e as peças que são atualmente comercializadas na capital baiana. Entre interessantes questionamentos destaca a construção da exoticidade em um museu elitista da cidade de Salvador e o silenciamento sobre protagonismo da mulher negra na Bahia escravocrata e as invenções da liberdade. Nesse aspecto, ao silenciar a violência, a exposição museológica empreenderia outra violência, reforçando determinadas imagens etnocêntricas sobre o lugar da mulher negra dos séculos XIX e XX e, assim, contribuindo para determinados protocolos de leitura estigmatizadores no século XXI.
Situações que também podem ser evidenciadas na arte pública de matriz africana. Em “O silêncio dos atabaques? Arte pública de matriz africana e memória topográfica em perspectiva”, artigo de minha autoria, utilizo as categorias memória topográfica e arte pública para analisar as estratégias de silenciamento como uma forma de poder e de produção de significados no campo de produção simbólico. Citando diferentes exemplos, demonstro como a destruição da arte pública relacionada a essas expressões culturais de matriz africana, especialmente às religiões afro, se torna metáfora e metonímia do racismo e da intolerância religiosa na “batalha das memórias” que fabrica e imortaliza saberes, expressões, celebrações e lugares significativos para a memória nacional e local.
O artigo “A presença das culturas negras na arte moderna em Salvador e o discurso de baianidade”, de Neila Dourado Gonçalves Maciel também articula arte e expressões de matriz africana. Tendo como recorte o modernismo baiano empreendido por Carybé entre 1950 e 1970 problematiza a invenção da “baianidade”, juntamente com a literatura, música e outras linguagens discursivas. Nesse aspecto, demonstra as contradições na arte que torna visível determinadas memórias urbanas, especialmente relacionadas ao cotidiano de uma parcela da população negra, e, ao mesmo tempo, contribui para a invisibilidade dos sujeitos tornados objetos de discurso. Surge aquilo que a autora compreende ser uma estratégia visando forjar uma “frequência harmônica para narrativas dissonantes”.
Essas tensões também são explicitadas em outras expressões artísticas, a exemplo da literatura. O artigo “Literatura machadiana: um dos patrimônios culturais do Brasil e elemento de memória da população negra oitocentista”, de Murilo Chaves Vilarinho, explicita na obra de Machado de Assis alguns aspectos do quotidiano da população negra do oitocentos no Rio de Janeiro, destacando os impactos da escravidão e da Abolição da Escravatura por meio do olhar do escritor. Compreende, assim, que a literatura possibilita recompor os rastros apagados e relegados ao esquecimento, demonstrando a expressão estética como representação do real e como significativo documento que contribui para repensarmos a escrita da História.
Estratégia que também é analisada no texto “Cantilenas de Goiás: memória, gênero e patrimônios das culturas negras na obra de Regina Lacerda”, de Paulo Brito do Prado. Ao articular as adoções temáticas da autora goiana e as estratégias de mediação no espaço literário, analisa as táticas em prol de registrar, em seu projeto criador, determinadas memórias de mulheres negras e fragmentos das culturas afro-brasileiras. O artigo destaca na obra de Regina Lacerda, a despeito de seu lugar de fala e de certa visão etnocêntrica, fortes permanências das culturas indígena e afro-brasileira na fabricação da Cidade de Goiás como “berço da cultura goiana”. Além disso, sublinha como sua literatura e seus estudos no campo do folclore reverberam (como uma cantilena) o lugar das mulheres e dos legados africanos, personagens e práticas que preenchem o cotidiano de Goiás e que, na maioria das vezes, foram e são silenciados no concerto de vozes dissonantes que compõem a sinfonia da História.
O texto escolhido para encerrar o dossiê, “Capoeira e identidade negra na pós-modernidade: algumas considerações”, de Márcio Nunes de Abreu, parte de uma recente provocação feita pelo sociólogo Muniz Sodré ao admitir o capoeirista Mestre Camisa, mais “negro” do que muitos dos negros que conhecia. O trabalho discute os limites da subjetivação e da identificação cultural entre identidades dominantes e subalternas, indagando, a partir dos referenciais de Stuart Hall, os paradoxos da identidade cultural na pós-modernidade. Questões que atravessam os artigos anteriores e que reverberam o fortalecimento de identidades locais e a criação de novas identidades, com uma ampla gama de variações e identificações, mais políticas, plurais e diversas, ampliando o espectro de cores, sons e de gostos e resistindo às tentativas de silenciamento.
Este número da Revista Mosaico publica ainda três artigos livres cujas temáticas de algum modo reverberam os debates do dossiê, ao privilegiarem análises sobre discurso, diferença e poder. Isso pode ser observado nos textos “Trilhas da imaginação: compreendendo a construção histórica e social do ‘exotismo amazônico’ por uma leitura ecossistêmica comunicacional”, de Rafael de Figueiredo Lopes e Wilson de Souza Nogueira; “A interferência Norte-Americana na política interna brasileira: o caso do jornal A Noite”, de Pedro Henrique R. Magri; e “Histoire de La Folie: uma proto-análise teórico-metodológica do ponto de vista histórico”, de Ronivaldo de Oliveira Rego Santos.
Referências
BEZERRA, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.
CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas negras em exposições. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
FANINI, Michele Asmar. Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003). Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.
RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Canibalismo da memória: o negro em museus brasileiros. Revista do Patrimônio, n. 31, 2005.
VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, n. 12, 2006.
Clovis Carvalho Britto
Organizador
BRITTO, Clovis Carvalho. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
Corporativismo / Oficina do Historiador / 2016
O corporativismo, como diria Álvaro Garrido, um dos seus mais importantes estudiosos contemporâneos, se trata de “uma velharia que importa trazer a debate e submeter à crítica histórica” (GARRIDO, 2016: 17). Para tanto, em sua opinião, deve-se distinguir o corporativismo enquanto doutrina, ou como discurso ideológico das direitas autoritárias e antiliberais, do corporativismo institucionalizado pelos regimes autoritários e totalitários que o adotaram. Nesse sentido, pode-se dizer que a ideologia corporativa serviu de justificativa “para edificar um conjunto de instituições assentes na integração forçada dos interesses do Estado. (…) A ideologia corporativista e as suas instituições foram o centro do processo de fascistização da Europa e alguns países sul-americanos na primeira metade do século XX” (GARRIDO, 2016: 27).
De um lado, observa-se que os estudos sobre o chamado corporativismo histórico o associam diretamente aos regimes de tipo fascista do período entre guerras, definindo-o como uma doutrina destinada a assegurar a ordem social e a conciliação dos interesses econômicos entre capital e trabalho, sob a forte regulação do Estado. De outro lado, contudo, especialmente após a publicação do artigo “Still the century of Corporatism? (1974)”, de Philippe Schmitter, observa-se uma crescente preocupação em distinguir este corporativismo autoritário do que o autor chamou de neocorporativismo ou corporativismo democrático da segunda metade do século XX, por ele associado à ação dos grupos de interesse e seus sistemas de representação e novas formas relação com o Estado. Em sua definição, Schmitter diz que o corporativismo é um sistema de representação de interesses cujas instituições se organizam num número limitado de categorias, funcionalmente distintas e hierarquizadas, compulsórias e não concorrenciais, às quais o Estado concede o monopólio da representação em contrapartida de colaboração no exercício do controle social e político [1]. Essa seria sua definição clássica do corporativismo societal, distinto do que o próprio Schmitter chama de corporativismo político, ou seja, um sistema de representação política baseado numa visão orgânico-estatista da sociedade, onde suas unidades orgânicas (família, poderes locais e organizações profissionais) substituem o modelo eleitoral baseado no indivíduo e na representação parlamentar.
Mais recentemente, como diria mais uma vez Álvaro Garrido, observa-se também uma revitalização teórica do corporativismo, “muito embebida na episteme das Ciências Sociais”, onde avultam especialmente a Ciência Política, a Sociologia e a Economia. Em geral, segundo ele, “os politólogos e sociólogos que se ocupam do tema detém-se na teoria e ação dos grupos de interesse, na questão dos corpos sociais intermédios e nas formas de articulação entre o Estado e a ‘sociedade civil’”. Já no campo da Economia Política, diz Garrido, “as formas e práticas corporativistas também expressam as relações entre o Estado e a economia, ou entre o Estado e o mercado” (GARRIDO, 2016: 20). Hoje, diz o autor, o centro do debate teórico da Ciência Política interessada no fenômeno do corporativismo situa-se no estudo “das formas de conciliação entre as práticas de concertação corporativistas e a otimização dos agentes no âmbito do mercado, num quadro neoliberal de Economia Política” (GARRIDO, 2016: 24).
Em síntese, embora os sentidos atualmente atribuídos ao corporativismo sejam muitos e variados, isso não significa, como no caso de qualquer doutrina ou ideologia, que esse conceito possa ser definido de maneira atemporal, mas, ao contrário, que os novos estudos sobre o corporativismo devem ser feitos sempre com base em sua historicidade, tanto no sentido de um discurso ideológico quanto no de um conjunto de instituições que articulam as relações entre Estado e sociedade civil.
Esse é exatamente o sentido do presente dossiê, que reúne importantes estudos de pesquisadores portugueses e italianos vinculados à Rede Internacional de Estudos do Corporativismo (NETCOR), criada em princípios de 2015 em Lisboa, os quais se propõem a pensar justamente sobre o processo de institucionalização do corporativismo histórico nesses países, respectivamente, durante os regimes de Benito Mussolini e Antônio de Oliveira Salazar.
Francesca Nemore toma por base o caso italiano, principal referência para a difusão do corporativismo por diversos outros países da Europa entre guerras. Em estudo intitulado “New perspectives in the sources of the story of corporatism in Italy” Nemore analisa a perda e reconstrução do arquivo do Ministério das Corporações, o que, segundo ela, não representa apenas a história de um arquivo, em si, ou mesmo a história política e econômica do fascismo italiano, mas também dos seus períodos anterior e posterior.
Valerio Torreggiani, por sua vez, no estudo “Rediscovering the guild system: the New Age Circle as a British laboratory of corporatist ideas”, se dedica ao estudo de uma espécie de rede informal de intelectuais britânicos antiliberais – a New Age Circle (1907-1916), a fim de demonstrar que o corporativismo não se constituiu apenas num produto socioeconômico do fascismo ou de regimes de ideologia autoritária e nacionalista, como não seria o caso da Grã-Bretanha de princípios do século XX, antes mesmo da ascensão ao poder do fascismo italiano.
Os textos seguintes, de Manuel Cardoso Leal, José Reis dos Santos, Leonardo Pires e Natália Pereira, se dedicam à análise de diferentes formas de ordenamento social e representação de interesses em Portugal entre fins do século XIX e a década de 1940, durante o regime de Salazar. De sua parte, Cardoso Leal se propõe a estudar o que diz ser “A primeira representação orgânica no Parlamento de Portugal”, ocorrida entre 1895 e 1897, ao abrigo da lei eleitoral de 28 / 03 / 1895, e não apenas durante o governo de Sidônio Pais, como geralmente afirma a historiografia pertinente ao tema. Já o texto de José Reis dos Santos, “O corporativismo (integral) de Salazar e as redes internacionais das revoluções conservativas na Nova Ordem dos anos 30”, busca analisar a influência do ditador português no panorama intelectual europeu de 1930 e como este pretendeu difundir o seu modelo político e nova forma de governo como uma terceira via ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo alemão. Leonardo Pires, por sua vez, em seu “Corporativismo e proteção laboral no Estado Novo português: o caso dos acidentes de trabalho e doenças profissionais”, visa analisar, por meio dos registros de acidentes laborais e de doenças profissionais, a relação entre os trabalhadores e o Estado Novo português em tempos de corporativismo. Natália Pereira, por fim, no texto intitulado “Nós, o povo: a rede de Casas do Povo e os alinhamentos corporativos em perspectiva comparada”, pretende explorar as dinâmicas sociais internas das Casas do Povo do distrito de Braga (1934-1973) e suas inter-relações com os organismos corporativos centrais do Estado Novo português, tais como os Grêmios da Lavoura, a Junta Central das Casas do Povo e a Federação Distrital das Casas do Povo de Braga.
Desejo a todos uma ótima leitura e que este dossiê possa contribuir para a renovação dos estudos e reflexões sobre a doutrina do corporativismo e sua institucionalização nos países ora analisados.
Luciano Aronne de Abreu – Organizador
Nota
1. Ver texto original: SCHMITTER, Philippe. Still the Century of Corporatism? In The Review of Politics, n. 36, n. 1, The New Corporatism: social and political structures in the Iberian world, p. 85-131 (1974).
ABREU, Luciano Aronne de. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 9, n. 2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
Educação Confessional Protestante no Brasil / Mnemosine Revista / 2016
A presença oficial de protestantes no Brasil data de 1810, com a chegada dos primeiros ingleses e alemães na corte real do Rio de Janeiro, motivados pela abertura dos portos aos países amigos de Portugal. Em 1822 ergue-se a primeira capela anglicana, e em 1827, os imigrantes alemães, radicados no Rio de Janeiro, constroem seu primeiro templo para celebrar o culto reformado. Entretanto, como integrante do campo educacional, a presença de protestantes só é percebida nas últimas décadas do século XIX. É neste período de grandes mudanças, que representantes das sociedades missionárias norte-americanas metodistas, presbiterianas, congregacionais e batistas chegam ao Brasil com propósitos idênticos de evangelizar e educar a nação de acordo com os ideais de uma civilização cristã. A partir do final da década de 1910, alguns grupos pentecostais, dentre eles a Assembléia de Deus, instalam-se no Brasil e com o passar do tempo erigiram templos e fundaram suas primeiras escolas passando também a disputar espaço no campo educacional brasileiro.
Diante do discreto mas crescente interesse pela pesquisa sobre a história da educação protestante no Brasil e do surgimento de novas abordagens interdisciplinares que levam em conta o pluralismo das forças sociais, políticas e culturais dos contextos analisados, novas indagações podem ser formuladas sobre as mudanças administrativo-pedagógicas e sociais introduzidas pelas escolas protestantes no campo educacional. A busca por estas respostas permite-nos atribuir um sentido para a construção de suas identidades culturais e educacionais de uma forma mais abrangente e trazer a discussão para o centro do debate da História da Educação Brasileira.
Esse dossiê reuniu oito artigos de pesquisadores e estudiosos, de diversas regiões do Brasil, que tem investigado distintos aspectos dessa particularidade da educação brasileira, revendo conceitos e apresentando novas perspectivas de análises; questionando práticas e discursos nem sempre claros nas interações entre igrejas e escolas. São educadores, historiadores, pedagogos, sociólogos e teólogos que aqui apresentam suas contribuições para a reflexão dessa modalidade de escola compreendida em sua interface com questões religiosas, de gênero, políticas e culturais. A relevância desses estudos pode ser percebida na diversidade das fontes utilizadas para a elaboração dos artigos. O dossiê traz contribuições de ações educativas desenvolvidas por metodistas, batistas, presbiterianos e assembleianos no Brasil do final do século XIX e início do XX, e do grupo religioso tcheco denominado de hussitas, no século XVI.
Abre o conjunto de artigos o texto de Sérgio Marcus Pinto Lopes, A crença na superioridade dos valores ocidentais e a fundação das escolas. Fruto de sua tese de doutorado, o autor procura identificar as principais características da educação protestante realizada pelos metodistas no Brasil e coloca-las em relação a outras práticas educacionais protestantes desenvolvidas ao redor do mundo. Sérgio Marcus revela que a crença na superioridade das propostas políticas, econômicas, culturais e sociais do ocidente pode ser percebida como uma característica comum aos diversos contextos.
O artigo de Cesar Romero Amaral Vieira e Thais Gonsales Soares, intitulado A presença de escolas protestantes na educação brasileira do final do século XIX, analisa o contexto da educação nacional das últimas décadas do período monárquico, de modo a perceber os principais aspectos sociais, políticos e culturais que propiciaram as condições necessárias para a implantação e desenvolvimento de escolas protestantes na província de São Paulo. Os autores partem do princípio de que para os partidários do republicanismo os modelos educativos praticados no Império eram considerados inadequados para as pretensões de seus projetos políticos.
Em Mulheres metodistas e ensino: enfrentamentos femininos na educação escolar, Vasni de Almeida analisa os esforços feitos para a fundação de duas escolas metodistas no interior do estado de São Paulo, apontando às origens dos recursos para a manutenção e as parcerias com setores sociais locais para desenvolvimento do projeto educacional proposto. O autor revela sinais de um ensino afinado com os interesses de uma sociedade que carregava as marcas do regime republicano instaurado. Analisa as principais mudanças que se processaram na educação oferecida pelas missionárias e suas opções pela formação da mulher para atuar na assistência social dentro e fora das igrejas. O estudo sinaliza para uma prática educacional como elemento de empoderamento feminino.
No artigo Colégios Batistas no Brasil: instrução, evangelização e disputas no campo religioso, Elizete da Silva e Maria do Carmo Souza Santos apresentam um estudo sobre a educação batista e analisam as práticas pedagógicas desenvolvidas por estas escolas no enfrentamento com os modelos tradicionais oriundos das escolas católicas.
Em O sagrado como elemento de territorialização das missionárias batistas na educação escolar no antigo norte goiano, Maiza Pereira Lôbo apresenta uma pesquisa que também se dedica ao estudo da educação batista. Busca entender, a partir do conceito de territorialização, a ação das missionárias no desenvolvimento da educação escolar no antigo norte de Goiás no enfrentamento com grupos religiosos católicos em prol do monopólio do campo religioso.
Sob o título Horace Lane e a formação de uma rede de escolas americanas no Brasil (1885-1912), Ivanilson Bezerra da Silva analisa o protagonismo de Horace Manley Lane na proposição da criação de uma rede de escolas americanas nas cidades que se configuravam como importantes centros no cenário político brasileiro, entre os anos 1885-1912. Estratégia essa que tinha o intuito de disseminar a cultura e os valores do presbiterianismo norte-americano no cenário nacional.
Reginaldo Leandro Plácido e Valdinei Ramos Gandra, no artigo Centenário das Assembleias de Deus no Brasil (1911-2011): “memórias ensinadas, subjetividades fabricadas”, apresentam as práticas de ensino no interior das Igrejas Assembleias de Deus. O artigo analisa as estratégias identitárias ensinadas nestas igrejas diante da fragmentação do campo religioso pentecostal, ocorrido especialmente, a partir da segunda metade da década de 1980.
Thiago Borges de Aguiar e Maria Aparecida Corrêa Custódio no artigo intitulado O que perguntam as crianças: o catecismo de Lukáš de Praga (1501) refletem sobre a influência do grupo religioso hussitas nos escritos de Lutero. Os autores demonstram que no âmbito das relações entre catecismos e educação escolar nos movimentos cristãos do século XVI, o Dětisnké Otázky [pergunta das crianças], considerado como um dos instrumentos educativos da União dos Irmãos, marca a aproximação entre a cultura universitária, a instrução elementar e a confessionalidade hussita, com sua visão de salvação pela fé, caridade e esperança.
Encerra este dossiê um artigo atípico do professor Charles Wood, da Methodist University. Atípico, pois, flexibilizando as diretrizes editoriais da revista a editoria resolveu sugerir a reedição de um artigo sobre educação teológica e educação confessional. A importância atribuída a este texto e sua integração neste dossiê obedeceu a duas razões principais. Primeiro, uma razão histórica, uma vez que desde as suas origens a educação protestante no Brasil teve entre os seus objetivos oferecer uma instrução escolar para aqueles nacionais, ou “nativos” – como se dizia – que iriam ser incorporados ao ministério pastoral e as missões protestantes. Em segundo lugar, uma dimensão contemporânea, pois, cento e cinqüenta anos depois de sua introdução no Brasil, o lugar da educação em relação a formação de quadros ainda não é uma questão pacificada sendo tema revisitado de forma recorrente nos órgãos diretivos das diversas denominações protestantes até hoje. Para ale disso, considere-se que este clero formado no âmbito das instituições teológicas confessionais, em regra vão operar como “intelectuais orgânicos” dos grupos religiosos, alçados a diversos espaços de liderança, portanto, tomando para si a tarefa de formulação mais direta ou mais tangencia daquela filosofia da educação que permeia os diversos universos escolares das denominações protestantes.
Esperamos que os textos aqui reunidos possam contribuir para fazer avançar a reflexão sobre a história da educação protestante, tanto em nível nacional como internacional, auxiliando no desenvolvimento de novas pesquisas sobre esta temática.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Cesar Romero Amaral Vieira
Vasni de Almeida
VIEIRA, Cesar Romero Amaral; ALMEIDA, Vasni de. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.7, n.3, jul / set, 2016. Acessar publicação original [DR]
El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado – MALLIMACI (AN)
MALLIMACI, Fortunado. El mito de la Argentina laica: catolicismo, política y Estado. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2015. Resenha de: QUADROS, Eduardo Gusmão de. O estado da fé: catolicismo e governo na história Argentina Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 491-496, jul. 2016.
Conhecer a história dos argentinos contribui para alargar a visão geralmente difundida da história do Brasil. Existe, afinal, uma série de processos políticos e econômicos que apresentam traços semelhantes, o que poderia ser ampliado, obviamente, para a história latino-americana como um todo. Isso é especialmente válido se o foco estiver em uma instituição internacional, como é o caso da Igreja Católica Romana.
Qualquer estudo sobre a história do catolicismo necessita articular esses dois aspectos: o global, gestado a partir do Vaticano, e o nacional ou local, onde a ação religiosa deve intervir respeitando os elementos condicionantes mantidos pelos atores sociais. No primeiro nível, a Igreja Católica apresenta-se como salvadora da humanidade, já que representa a ação do Deus criador dos céus e da terra; no segundo nível, é uma instituição política que atua como uma “nação” dentre outras, com o interesse de fortalecer seu domínio.
Ao enfrentar a questão do “mito da laicidade” na história da Argentina, Fortunato Mallimaci tem isso claro. Portanto, por toda a obra, sua análise percorre as vias de mão dupla entre a Europa e a América Latina, sem esquecer o modo como as camadas populares reagem às estratégias implantadas pelas elites, sejam elas políticas ou religiosas. O fundamento teórico-metodológico para integrar tais aspectos é de inspiração bourdieusiana, apesar de o autor indicar diversas vezes as reflexões de Ernst Troeltsch como suporte relevante.
O livro estrutura-se em seis capítulos. Eles podem ser lidos como hipótese de periodização, mas também podem ser formas de relação que a instituição eclesiástica católica estabelece com as demais esferas sociais. Assim, não é meta do autor realizar uma abordagem propriamente contextual, e o texto rompe com a confortável linearidade cronológica, uma decorrência da postura de considerar “,[…] el catolicismo como un lugar social donde se confrontan discursos competitivos y desiguales” (p. 66), preferindo intercambiar os marcos históricos com processos contemporâneos. Os limites entre o que estaria “fora” ou “dentro” da igreja são altamente questionáveis quando se quer entender seu papel na governamentabilidade: Un análisis sociológico sobre el catolicismo no puede abordar su sujeto de estudio si lo encierra en un universo puramente religioso. El fenómeno debe estar ligado a la sociedad que lo involucra y si esta se encuentra dividida, conflictuada, enfrentada, se pueden encontrar esos conflictos, con formas proprias, dentro del espacio de lo religioso, especialmente si se trata de un movimiento dominante y extensivo como es el catolicismo. Si esos conflictos se agudizn se puede ver cómo se generan estructuras intermedias y paralelas que un estudio de ese tipo no puede ignorar. Por esto, creemos necesario mostrar los procesos que relacionen estructuras, agentes y personas en el largo plazo (p. 66).
Nessa perspectiva, o capítulo inicial trata da mescla dos valores e símbolos católicos com as manifestações nacionais argentinas. O ideário de edificar uma religião civil perpassa o discurso das elites sócio-religiosas.
Mesmo que tenha sido declarada a laicidade estatal desde meados do século XIX, bem como da educação, o autor afirma que “[…] sin símbolos y sin sagrados no se consolidan las nuevas naciones” (p. 20).
A igreja católica não era tão forte, na época, para interferir diretamente nesse projeto, contudo havia uma crença difusa, sem demasiada fidelidade doutrinária ou ética, que unificava boa parte da população. O conflito com as ideias do positivismo foi tênue e já nos primórdios do século XX a igreja-mãe estava casada com o estado-pai (p. 33).
Nas décadas de vinte e trinta do mesmo século, as tendências integristas, totalizadoras, inspiradas na imagem do Cristo Rei, tornaram- se consolidadas. Os cristãos, nessa visão, precisavam lutar para estabelecer o domínio divino, e consequentemente da instituição que o representa, sobre todas as coisas. A oportunidade de atuação eficaz adveio de um fator extrarreligioso: a crise global do liberalismo ao final dos anos vinte. Dessa forma, o discurso católico passou a se colocar como uma terceira via entre o temido comunismo e os problemas da democracia burguesa. As duas fontes secularizadas de esperança perderam, naquele momento, boa parte de sua credibilidade social.
Cada vez mais a igreja assumiu a posição de ser o cimento que sustentava a sociedade argentina. O processo de diocesização, incrementado rapidamente nessas primeiras décadas do século, possibilitou a capilaridade necessária à expansão da “geografia católica” pelo território nacional. Há, entretanto, uma diferença sensível em relação ao catolicismo brasileiro nesse caso, pois a maioria do clero, inclusive o episcopado, era natural do próprio país (p. 94).
O capítulo terceiro demonstra a importância da Ação Católica para todo o período que se segue. Sua espiritualidade, de forte aspecto militar e integral, contribuiu efetivamente para incorporar ao seio da igreja católica setores sociais ainda desprezados, a exemplo dos jovens e das camadas empobrecidas. O autor ressalta que a recente ruptura teórico- metodológica, relativizando as dicotomias entre sagrado e profano ou oficial e popular, são importantes para que surjam novos estudos acerca desses sujeitos, geralmente invisibilizados na documentação. Esses estudos deveriam enfocar mais suas lógicas internas, os motivos de adesão e as estratégias simbólicas de legitimação constituídas (p. 109).
O grupo de militantes da Ação Católica partia do pressuposto de que existiria um déficit de catolicidade na configuração social e até entre os membros da igreja. Encampavam, então, a tarefa de cristianizar todas as instituições sociais, gerando um novo tipo de patriotismo católico em um contexto de fortes conflitos ideológicos. A comprovação dessa habilidade de produzir um novo consenso nacionalista foi o apoio dado ao vitorioso movimento golpista de 1943, com a posterior incorporação de muitos membros do laicato católico no aparato estatal.
Decorrente desse modelo de inserção social, o foco do autor nos três últimos capítulos da obra parte da análise do mundo do trabalho.
A afirmação deste na configuração política e religiosa ocorreu através da mescla de valores religiosos com o insurgente peronismo. Existem afinidades evidentes entre a forma de governo estabelecida por Perón e o catolicismo social moldado pela Ação Católica, mesmo que houvesse grupos discordantes que acusavam as ações ditatoriais do regime. Nesse momento de intensa politização do cristianismo, ou de sacralização do político, Jesus passou a encarnar “el primer justicialista” (p. 137).
Apesar de Perón ser militar de carreira, a militarização do catolicismo, com a consequente simbiose entre a igreja romana e as forças armadas, manifestou-se com maior intensidade na ditadura dos anos setenta. Mallimaci faz questão de denunciar o regime instaurado após o golpe de 1976 como um terrorismo de Estado com fundamento cívico-religioso-militar (p. 168). Verdade que o quinto capítulo busca demonstrar um período mais duradouro, que perpassa todos os golpes militares, e este provém do catolicismo de matiz integral propalado pelos militantes católicos. Tal herança nunca fora unívoca, é bom ressaltar, e o movimento antiperonista nutriu-se igualmente do imaginário cristão-militarizado para excomungar e expulsar Perón da Argentina.
O catolicismo integral e o peronismo serão objetos de disputa social no esforço coletivo de construir uma Argentina verdadeiramente católica. Dois movimentos são exemplares desse conflito de tradições.
De um lado, está o movimento Sacerdotes para o Terceiro Mundo, a experiência de messianismo utópico e popular mais importante do final da década de sessenta. Conforme o autor: La critica social y politica del Movimiento a la ditadura del momento fue respondida desde lo politico, lo social y lo cultural.
También hubo otra, teológica, política y religiosa, pronunciada por los sacerdotes católicos que formaban parte de ese gobierno militar. […] (Pero) En el Movimiento de Sacerdotes para el tercer Mundo se disociaba la memoria católica de la función legitimadora de las relaciones sociales hegemónicas y se las trasladaba a las clases subalternas primero y luego al movimiento político mayoritario en sectores populares (p. 192).
Do lado oposto, partindo da crítica teológica, política e religiosa, nessa ordem, estavam os capelães militares. Esse grupo, em texto divulgado na grande imprensa, denunciava seus companheiros de batina, como é demonstrado pelo autor quando este cita um documento gerado pelo Comando de Operações Navais, assinado pelo capelão Duilio Barbieri. Afirma-se nesse texto que: […] hay fundadas razones para creer que entre estos sacerdotes (para el tercer mundo) hay algunos que son activistas comunistas expresamente infiltrados ya desde el seminario, y que con esos sacerdotes estamos en el cero absoluto del espíritu (BARIBIERI, 1970 apud p. 193).
A tensão sócio-religiosa perdurou até a ditadura civil-militar implantada em 1976. A repressão violenta, utilizando inclusive grupos paramilitares, foi legitimada pela Conferência Episcopal Argentina.
Mallimaci chega a afirmar peremptoriamente que “[…] los golpes militares nunca recibieron la reprobación del cuerpo epsicopal, tanto en Argentina como en el resto de América Latina” (p. 194).
O leitor pode estar curioso para saber como o padre Jorge Bergoglio, atual Papa Francisco, se portou nessa conjuntura. A obra apresenta denúncias de que ele, enquanto superior dos Jesuítas, desprestigiou tanto sacerdotes quanto leigos ligados à Companhia de Jesus durante a perseguição governamental e eclesiástica. Estes eram aqueles que estavam inseridos exatamente nas lutas dos pobres. Ainda como provincial da Universidade do Salvador, vinculada à Companhia inaciana, padre Bergoglio participou da condecoração, concedida em 1977, ao almirante Emílio Massera, conhecido já na época por sequestrar, torturar e “fazer desaparecer” muitos membros do catolicismo (p. 200).
Esse tema do papa argentino retorna ao final do livro, quando este trata das reconfigurações recentes no campo religioso argentino.
O catolicismo integral ficou fragmentado com o impacto das redefinições democráticas no espaço público, bem como com o crescente pluralismo religioso. Ter um papa peronista (cf. p. 239) fortalece a relação simbiótica entre nação e fé católica. Assim, a laicidade permanecerá apenas no nível jurídico, como um mito social vigoroso nesse enviesado processo de reconhecimento da liberdade.
A obra aponta, destarte, para desafios fulcrais da democratização ainda recente na América Latina. Talvez o autor tenha, no intuito de demonstrar sua tese, ressaltado demasiadamente a continuidade da relação instituída entre catolicismo e governo, ou desprezado momentos em que a religião se distanciou do campo político, que é um princípio afirmado teoricamente (p. 149). Todavia, como se buscou indicar nesta resenha, o livro de Mallimaci está prenhe de intuições analíticas e metodológicas capazes de revigorar os estudos acerca dos atores religiosos, suas representações sociais, lógicas identitárias, pretensões legitimadoras e, sobretudo, crenças.
Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória.
Eduardo Gusmão de Quadros – Docente do PPG em História e em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Doutor em Historia pela Universidade de Brasília – UnB. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com.
Elites e instituições no Brasil Império | Escrita da História | 2016
No primeiro semestre de 2016 a Revista Escrita da História – REH publicou o dossiê intitulado “Elites e Instituições no Brasil Colonial”. Nesta nova edição, de número seis, damos sequência à discussão anterior, avançando sobre o período Imperial. Reunimos diferentes trabalhos que abordam, à sua maneira, os problemas envolvidos na organização institucional e na atuação política das elites imperiais no Brasil. Temos um fio aglutinador que perpassa os trabalhos que integram o dossiê. Trata-se da construção do Estado nacional no Brasil, problema que demanda respostas de diferentes níveis, tal como a diversidade de abordagens dos textos que compõem a presente edição.
José Augusto dos Santos Alves, doutor em História e Teoria das Ideias pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), analisa no artigo que abre o dossiê um documento pouco citado pela historiografia brasileira: as Cartas políticas de Americus. O autor aborda uma série de problemas propostos e discutidos nas Cartas políticas, avançando sobre temas de enorme relevância no início do XIX: opinião pública, constituição, delimitação dos poderes, publicidade, modernidade e/ou antigo regime, legitimidade, leis, liberdade de imprensa, em suma, o exercício do poder em toda sua complexidade. Segundo o próprio autor da carta, sua “teoria de governo”. Dessa forma, José Augusto permite ingressarmos no tema do dossiê por meio das discussões conceituais envoltas nos projetos políticos presentes na primeira metade do XIX no Brasil, projetos que de uma forma ou de outra afetavam as práticas e a organização institucional do país. Leia Mais
Recôncavo – Revista de História da UNIABEU | Belford Roxo, v.6, n.11, 2016.
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Recôncavo – Revista de História da UNIABEU. Belford Roxo, v.6, n.10, 2016.
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Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988 | Daniel Aarão Reis Filho
Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na UFF. Suas principais pesquisas são sobre a ditadura no Brasil e as experiências das esquerdas no Brasil e no mundo [1]. Além disso, foi ativo na resistência à ditadura civil-militar brasileira, especificamente no Movimento Revolucionário 8 de Outubro, um dos grupos que organizou a captura do embaixador do EUA Charles Burke Elbrick em 1969.
Ditadura e Democracia no Brasil se insere em uma série de obras lançadas em 2014 que, no marco dos 50 anos do golpe de 1964 procuram apresentar novos olhares sobre o período. O livro em questão é constituído por sete capítulos e um posfácio.
O primeiro capítulo serve de introdução ao livro e são as páginas nas quais Reis apresenta alguns dos princípios através do quais ele pretende diferenciar sua obra da historiografia anterior sobre o tema, especialmente aquela produzida nos primeiros anos de redemocratização. Segundo o autor, construiu-se uma memória de que os valores democráticos sempre teriam feito parte da consciência nacional. Assim, o país teria sido
subjugado e reprimido por um regime ditatorial denunciado agora como uma espécie de força estranha e externa […] Assim, em vez de abrir amplo debate sobre as bases sociais da ditadura, escolheu-se um outro caminho, mais tranquilo e seguro, avaliado politicamente mais eficaz, o de valorizar versões memoriais apaziguadoras onde todos possam encontrar um lugar [2].
Essa visão procuraria uma conciliação nacional após a ditadura, como se esta não houvesse contado com apoio de setores civis da sociedade:
Entretanto, essas versões, saturadas de memória, não explicam nem conseguem compreender as raízes, as bases e os fundamentos históricos da ditadura, as complexas relações que se estabeleceram entre ela e a sociedade e, em contraponto, o papel desempenhado pelas esquerdas no período. Também não explicam, nem conseguem compreender, a ditadura no contexto das relações internacionais e na história mais ampla deste país – as tradições em que se apoiou e o legado de seus feitos e realizações que perdura até hoje [3].
Nesse sentido, Reis se insere numa perspectiva que vem ganhando espaço na produção historiográfica, de procurar compreender o regime autoritário observando também as bases sociais que o constituíam. A título de exemplo, a coletânea organizada por Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, A construção social dos regimes autoritários [4], é outra obra que procura analisar os mecanismos de legitimação social desses regimes. É nessa direção que também argumenta a defesa de que se chame o período de ditadura civil-militar, e não somente militar.
Nos capítulos seguintes, Reis procura elucidar o desenrolar dos acontecimentos do período. Ele destaca que o período 1945-64 foi de democracia limitada. O autoritarismo se manifestava em muitos aspectos que remontam à primeira república e principalmente à ditadura varguista. É nesta que ele localiza um importante elemento para compreender a ditadura que se seguiu: o nacional-estatismo, caracterizado por um Estado forte tanto no que diz respeito ao desenvolvimento econômico (ainda que não necessariamente na distribuição de renda) como no controle social. Apesar de ter perdido fôlego na década de 1950 o nacional-estatismo ainda tinha adeptos tanto à esquerda como à direita.
Ao assumir o poder, João Goulart “poderia […] numa frente popular que se esboçara na resistência ao golpe [do parlamentarismo], dispor de condições para retomar o nacional-estatismo popular já entrevisto no último governo Vargas” [5]. As greves e movimentações populares que haviam crescido na campanha legalista (movimento para assegurar o direito de Goulart assumir a presidência) incorporavam ao nacional-estatismo uma até então inédita participação popular – o que também radicalizou o discurso, exigindo reformas mais profundas e deixando mais de lado o tom conciliatório varguista.
Reis descreve, contudo, que Jango estava nos primeiros meses de governo apegado à tradição conciliatória, mantendo a desconfiança da direita e ao mesmo tempo decepcionando a esquerda. “Depois de longos meses de hesitação, armadilhando no impasse de uma correlação de forças equilibrada, Jango [em março de 64] resolveu aceitar os conselhos de partir para a ofensiva” [6], em meio ao aumento da pressão pelas reformas de base. A resposta conservadora não tardou com as marchas da Família com Deus pela liberdade e finalmente com o golpe de Estado.
O autor então lança uma ideia polêmica, contestando a tese da inevitabilidade da resistência ao golpe. Segundo ele, Jango era bastante popular e as forças de que dispunham as esquerdas, nas instituições, sindicatos, movimentos populares e nas próprias Forças Armadas não eram desprezíveis. Para ele, a esquerda que apoiava Jango se rendeu por não saber o que fazer quando a tática conciliatória não funcionou mais. No capítulo seguinte, o autor inclusive aponta que essa paralisia poderia ser motivada por até parte das lideranças reformistas estarem contaminadas pelo medo de uma revolução. Por isso também que Reis observa que ainda que de fato tenha havido apoio dos EUA ao golpe, não se deve superestimar sua participação sob risco de minimizar a importância das forças golpistas internas. A influência externa se dava, de acordo com o autor, mais no sentido de um medo por parte das forças golpistas de que os recentes movimentos socialistas e nacionalistas na África, Ásia e principalmente em Cuba pudessem inspirar ações mais radicais dentro do Brasil.
Dando prosseguimento, Reis descreve como nos primeiros anos da ditadura procurou-se romper com o nacional-estatismo, estratégia que fracassou, indicando que este elemento da cultura política perpassava todo o espectro político.
No campo da oposição começaram a se formar três grandes correntes: a moderada, formada pelo MDB, apoiada pelo PCB clandestino e setores golpistas agora insatisfeitos, defendendo uma transição pacífica à democracia nos moldes pré-64; movimento estudantil, mais radical, queria o fim imediato da ditadura, mas sem maiores definições; organizações revolucionárias clandestinas, se entrelaçavam com os estudantes, viam a luta armada como a única saída e não queriam só a derrubada da ditadura, mas do capitalismo.
Porém, Reis destaca que se houve de fato resistência, também houve muita indiferença ou até apoio ao regime, de modo que a oposição não era, para ele, de fato tão poderosa. Ainda assim, para evitar que se organizassem, o governo emitiu em 1968 o AI-5.
Assim, chega-se ao quarto capítulo. Com a repressão a níveis extremos, a esquerda revolucionária considerou que se concretizava o que Reis denominou “utopia do impasse”, chegando a hora de radicalizar a luta. De acordo com essa lógica, o impasse se refere à uma situação na qual políticas conciliatórias não seriam mais uma opção viável, restando às esquerdas somente a revolução – por isso, segundo o autor, muitos desses grupos revolucionários viam até com certo otimismo a conjuntura, pois teria eliminado a via conciliatória. Reis, contudo, apesar de ter sido em sua juventude parte dessas organizações, as critica por estarem distantes da população e se mostrarem incapazes de fazer uma leitura mais precisa da sociedade. Esta “assistiu a todo esse processo como se fosse uma plateia de jogo de futebol” [7]. Podiam até torcer para um ou para outro lado, mas não eram participantes. Efetivamente, o crescimento econômico do que viria a ser o chamado “milagre econômico” aliado a propaganda, fazia do governo muito popular junto a população, especialmente no interior. Por isso ele destaca que, se de fato a primeira metade da década de 1970 pode ser descrita como os “anos de chumbo”, foi para muitos também os “anos de ouro” [8]. Ainda que o crescimento tenha sido desigual, ele agradava a setores médios influentes suficientes para amortecer uma possível insatisfação popular. A maioria da população parecia disposta a ignorar a tortura, desde que que ela atingisse somente àqueles que considerassem marginais e ocorresse longe da vista da sociedade.
Nem todos, certamente, apreciavam a ditadura e seus métodos truculentos, considerados “excessivos”, e muitos deles tomariam parte, em momentos seguintes, da onda oposicionista que varreria as metrópoles. Mas é provável que considerassem uma exigência alta demais arriscar suas posições num enfrentamento de vida ou morte com o regime, como queriam as esquerdas radicais [9].
O quinto capítulo do livro analisa o governo Geisel (1974-79). No plano econômico, apesar da crise do petróleo, não seria ainda o momento do abandono do nacional-estatismo. “Já no plano político, haveria afinidades com os propósitos do primeiro governo castelista, materializadas na perspectiva de restabelecer um estado de direito autoritário. Tratava-se de institucionalizar e superar o estado de exceção, o regime ditatorial vigente”[10], ação tomada também em função da pressão internacional, ainda que “no interior do bloco que sustentava a ditadura, forças conservadoras e sua expressão mais radical, os aparelhos de segurança, não viam com bons olhos a distensão e se prepararam para combatê-la”[11].
Como resultado, foi um período marcado por ambiguidades. A gradual abertura, (a qual culminaria na revogação do AI-5 na passagem de 1978 para 1979) conviveu com uma brutal repressão ao PCB e PC do B e o emblemático assassinato de Vladmir Herzog.
A segunda metade da década de 1970 também marcou o início da rearticulação dos movimentos sociais, ainda que de início tentassem passar a imagem de reivindicações apolíticas. Essa rearticulação também se deve ao fato da economia já não apresentar resultados tão satisfatórios, com inflação e desvalorização salarial.
Ao final deste capítulo, Reis indica outra ideia controversa. Para ele, com o fim do AI-5 estava revogado o estado de exceção, não constituindo-se mais uma ditadura; “conformara-se um estado de direito autoritário”[12]. Assim, para Reis a ditadura iniciada em 1964 termina em 1979, havendo então um período de transição para um regime democrático que se inaugura com a constituição de 1988. Ele explica melhor os motivos para essa escolha no capítulo seguinte, dedicado à essa transição:
formou-se ampla coligação de interesses e vontades a favor da ideia de que a ditadura teria se encerrado em 1985. Na base dessa verdadeira frente social, política e acadêmica, estava uma ideia – força de modo nenhum respaldada pelas evidências – a de que a ditadura fora obra apenas dos militares [13].
Esse marco, 1985, o momento em que um civil assume a presidência, esconderia, portanto, as bases sociais civis da ditadura. Para Reis, a construção dessa memória que procura esconder o caráter civil da ditadura se deu justamente nesse período.
Aparentemente, a transição lenta e sem rupturas levada pela própria ditadura surtiu o efeito por ela desejada. Nas primeiras eleições diretas para governadores, o PDS (originada da ARENA) venceu em mais estados e teve mais deputados eleitos também, seguido do PMDB, que era a oposição consentida pela ditadura. “Depois de longos anos de ditadura, o país tornara-se mais conservador ainda do que antes. Um banho da água fria na fervura dos que imaginavam possível a existência de hipóteses de ruptura revolucionária. Pelo menos a curto prazo elas não se realizariam”[14]. Talvez nada ilustre melhor o caráter conservador da transição e a construção de uma memória que isente as bases civis do que a chegada a presidência de José Sarney (até pouco antes importante quadro do PDS) concorrendo, ainda que como vice, como opositor ao antigo partido da ditadura.
No sétimo capítulo, Reis descreve sucintamente as discussões em torno da constituição de 1988, destacando como, apesar da pressão contrárias de forças liberais-conservadoras, mesmo nela persistiriam muitas características do nacional-estatismo.
Finalmente, no posfácio, Reis retoma uma de suas teses centrais já apresentadas no início do livro: sem minimizar as diferenças que houveram entre os regimes, há no nacional-estatismo, seja de tendência esquerdista ou direitista, um aspecto de continuidade.
Criaram-se na primeira [estado novo] e se consolidaram na segunda [civil-militar]: o Estado hipertrofiado, a cultura política nacional-estatista, o corporativismo estatal, as concepções produtivistas, a tortura como política de Estado. Quanto à tutela das Forças Armadas, vem de antes, desde a gênese da República, mas as ditaduras, sem dúvida, confirmaram e reforçaram.
O livro de Daniel Aarão Reis procura apresentar um novo olhar sobre a ditadura civil-militar brasileira. Cada capítulo da obra poderia ser expandido ele próprio em um livro. De fato, o livro não entra em muitos detalhes. Tampouco se utiliza de muitas fontes primárias como fundamentação, tratando-se mais de uma obra de síntese. Ainda assim, é de grande valia por apresentar ao menos duas ideias centrais que o diferenciam de ao menos parte da historiografia, e certamente da memória socialmente construída para fora da academia. A primeira, por apontar no nacional-estatismo um elemento de continuidade surgido antes do golpe de 1964 e perdurando durante e para além da ditadura. Isso não significa negar que tenha se tratado de um estado de exceção, mas apontar que a ditadura civil-militar infelizmente não foi um desvio num curso “natural” e “positivo” da história do Brasil, mas se insere perfeitamente em aspectos que transcendem esse período específico. A outra ideia é a de observar a importância das bases sociais civis da ditadura. Desde o golpe, o regime autoritário somente pôde sobreviver por que contou com apoio principalmente de setores empresariais, mas também suporte, consentimento ou no mínimo indiferença de amplos setores sociais. Enfrentar a memória construída da natureza democrática da sociedade brasileira é um desafio difícil e que pode soar inconveniente, mas é importantíssimo para poder lidar com as continuidades autoritárias que ainda persistem hoje.
Conforme já salientado, o livro aqui resenhado se trata de uma obra de síntese. Mas talvez justamente por isso tenha um duplo valor, podendo ser utilizado como material introdutório para historiadores ao mesmo tempo em que também se mostra acessível ao grande público.
Notas
1. Entre suas principais obras se encontram A revolução faltou ao encontro – Os comunistas no Brasil; A Aventura Socialista no Século XX; e Ditadura Militar, Esquerdas e Sociedade.
2. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, pp. 7-8.
3. Ibid., p. 14
4. ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha (orgs). A Construção Social dos Regimes autoritários: Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
5. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 32.
6. Ibid., p. 39.
7. Ibid., p.77.
8. Ibid., p.91.
9. Ibid., p.88.
10. Ibid., p.98.
11. Ibid., p.101.
12. Ibid., p.123.
13. Ibid., p.127.
14. Ibid., p.140.
Michel Ehrlich – Graduando em História pela UFPR, bolsista do PET-História. E-mail: michelehrlich@gmail.com
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e Democracia no Brasil: do Golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. Resenha de: EHRLICH, Michel. Ditadura e democracia no Brasil. Cantareira. Niterói, n.25, p. 230 – 234, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
Religião: artes e vozes | Ciências da Religião | 2016
Esta edição da revista Ciências da Religião: história e sociedade reúne textos provenientes das reflexões do 1º Primeiro Congresso Internacional de Ciências da Religião (Coincire), que ocorreu entre os dias 7 e 8 de novembro de 2016, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
A temática abordada nos textos é “Religião: artes e vozes” e, por meio da leitura dos artigos, o leitor perceberá que o tema geral congrega pesquisas do fenômeno religioso sob diversas perspectivas, possibilitando, assim, o diálogo entre saberes e o compartilhamento de seus respectivos conhecimentos. Leia Mais
Las Mujeres de X’Oyep – TRONCOSO (RTF)
TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía). Resenha de: ALCÂNTARA, Mauro Henrique Miranda. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 9, n. 2, jul.-dez., 2016.
Alberto Del Castillo Troncoso na obra Las Mujeres de X’Oyep, teve como principal objetivo realizar uma leitura histórica da fotografia tirada por Pedro Valtierra, na localidade de X’Oyep, no México, em 3 de janeiro de 1998. Região próxima ao cenário de uma chacina, ocasionada pela repressão do exército mexicano ao movimento zapatista. O evento ficou conhecido como La matanza de Acteal.
A prestigiada fotografia tirada por Valtierra, retrata o avanço de uma jovem e pequena mulher da etnia tzotzil, habitante de X’oyep, contra um militar armado com um fuzil AR-15, arma esta que, pela perspectiva da imagem, aparenta ser maior que a menina. O militar parece estar assustado com tal avanço. Ao fundo é possível ver outras mulheres e soldados, agitados, parecendo estarem também em confronto.
Essa fotografia, primeiramente publicada pelo Jornal La Jornada na manhã seguinte aos acontecimentos, posteriormente publicada em outros periódicos e revistas, tanto do México como de outros países, teve ampla repercussão e passou a ser ícone do movimento zapatista, e a partir daí um objeto aberto a disputas e interpretações. Ter ganho o prêmio de Jornalismo Rei da Espanha, potencializou o aspecto simbólico dessa imagem, e o seu poder de construção de um significado histórico.
Diante dessa repercussão, e das diversas leituras sobre essa fotografia, Alberto del Castillo Troncoso, enveredou-se na trajetória da produção, circulação, interpretação, significação e ressignificação dessa fotografia que se transformara em ícone de um período e de uma luta histórica.
Sua obra, portanto, busca apresentar uma leitura histórica dessa imagem, descrevendo a trajetória dos fotógrafos e jornalistas até o palco dos acontecimentos, realizando uma “leitura iconográfica” da fotografia, analisando o ponto de vista dos editores e a cobertura dos jornais, principalmente o La Jornada, da foto e do evento retratado por ela. Alberto del Castillo verificou também, os usos e recepções da imagem e a narrativa dos jornalistas, fotógrafos e editores envolvidos com a produção e publicação da fotografia.
O historiador mexicano utiliza-se de entrevistas realizadas com os envolvidos na trajetória da fotografia, para construção de sua obra. Importante frisar que os depoimentos recolhidos junto aos fotógrafos, jornalistas e outros envolvidos, são analisados e problematizados.
Além desse material, Troncoso utiliza de jornais e revistas que publicaram fotos sobre o episódio ou sobre os movimentos indígenas e zapatistas, para verificar a recepção e os usos dessa fotografia. Realiza também uma breve análise estética da fotografia protagonista e também de outras tiradas no evento ou em outros momentos. Por fim, Alberto de Castillo em uma atividade ao mesmo tempo de historiador e de antropólogo, vai até X’Oyep, e descreve o cenário que encontrou lá quinze anos depois, e a relação que os habitantes da localidade possuem com a famosa fotografia.
No primeiro capítulo da obra, La difusión del zapatismo y la masacre de Acteal, Alberto del Castillo Troncoso perfaz o caminho histórico para que a fotografia tirada por Pedro Valtierra pudesse ser produzida naquele lugar e data. Ele descreve, logo no início, que houvera um avanço do movimento zapatista na década de 1990, buscando conquistas sociais para os campesinos e para a cultura indígena. No entanto, essa movimentação gerou tensão entre as atividades zapatistas e o governo mexicano, resultando na militarização da região de atuação dos zapatistas.
O historiador insere diversas fotografias, manchetes e recortes de jornais, apresentando os diversos discursos e representações sobre essa situação vivida e vivenciada pelas comunidades indígenas no Estado de Chiapas. Utilizar essas fontes, foi uma forma encontrado por Troncoso para poder apresentar tanto o contexto histórico dos eventos presenciados pelos fotógrafos em X’Oyep, quanto apresentar as intencionalidades destes ao percorrerem árduos trajetos para cobrir jornalisticamente os acontecimentos.
Se o historiador tivesse apresentado uma contextualização historiográfica dos movimentos campesinos mexicanos na década de 1990, teria enriquecido a sua obra, favorecendo uma maior compreensão dos acontecimentos em janeiro de 1998 na localidade de X’Oyep.
No capítulo seguinte, Crónica de un registro fotográfico, Alberto del Castillo descreve o contexto imediato da produção fotográfica encabeçada por Pedro Valtierra. Descreve minuciosamente a região de X’Oyep, inclusive, apresentando um mapa para que o leitor se situe geograficamente. Assim como no capítulo anterior, várias fotografias são utilizadas para representar o ambiente encontrado e representado pelos jornalistas na localidade. Outra estratégia utilizada por Troncoso para narrar sobre a trajetória da famosa fotografia tirada por Pedro Valtierra, apresenta-se nesse capítulo: os relatos orais.
Através dos relatos dos jornalistas Juan Balboa e Pedro Valtierra, o historiador descreve o período anterior a chegada deles na localidade de X’Oyep, as atividades que eles estavam realizando até então, como foi o envio deles para a região, a dificuldade do caminho, os preparativos, as surpresas, os temores e até mesmo o papel que eles tiveram direta ou indiretamente no palco dos acontecimentos.
Ao final do capítulo, Alberto del Castillo descreve o que ele chama de algumas “pistas” para realizar a leitura das imagens. Sinteticamente, ele argumenta que vários fatores precisam ser levados em conta para compreender/entender o resultado do trabalho dos jornalistas: a dificuldade encontrada para a realização das fotos; o currículo profissional do Pedro Valtierra facilitou para que ele pudesse estar à frente dos acontecimentos, antes de outros meios de comunicação; a reciprocidade entre os jornalistas e os indígenas, pois estes tinham interesse em verem suas demandas circulando na imprensa, para pressionar o governo, e Valtierra tinha interesse na exclusividade, ou ao menos, no pioneirismo jornalístico dos eventos; e por fim, a presença dos jornalistas que inibiu as ações dos militares na localidade.1 O capítulo “Del revelado a la edición periodística” descreve o processo da revelação das fotografias, ou melhor, da fotografia, tirada por Valtierra e sua publicação no La Jornada. No entanto, não se trata de mera descrição do processo de revelação, escolha, envio, recebimento na edição do jornal, sua publicação e circulação. Troncoso, no final do capítulo, deixa claro que: A publicação da foto na primeira página do diário não se limita na tradução em imagens de uma informação jornalística, e sim na contribuição da construção de um relato que gerou o início de uma iconografia sempre sujeita a debate.2 Para o historiador mexicano, o processo pelo qual passou a imagem, desde a sua tirada até a sua publicação, apresentou uma interpretação dos fatos ocorridos na localidade de X’Oyep. E por isso, essa mesma imagem foi objeto de reinterpretações e ressignificações, tanto pela imprensa, quanto pelos atores envolvidos diretamente: os indígenas e até mesmo o governo mexicano.
Neste capítulo Alberto del Castillo realiza análises estéticas, tanto da foto, quanto dos negativos de Pedro Valtierra. Ele verifica que os negativos apresentam uma narrativa dos acontecimentos, apresentando-os de forma serial, quase em movimento. Também se atém na análise da fotografia mais famosa, escolhida para estampar a capa do jornal La Jornada no dia posterior ao evento ocorrido em X’Oyep. Ele detecta que a experiência profissional do fotógrafo, o favoreceu para capturar o melhor ângulo e melhor perspectiva da situação vivenciada na localidade. A análise sobre os negativos, permitiu Troncoso afirmar essa perspectiva. Porém, mais uma vez, o historiador reafirma que essa mesma experiência do fotógrafo o favoreceu a capturar tal imagem, por provocar diferentes reações, tanto dos militares, quanto dos indígenas, como também “peso para que a divulgação jornalística da imagem se realizasse nas melhores condições possíveis e contribuiu de maneira substancial para a construção de uma plataforma midiática para a foto”.3 O capítulo seguinte, Historia de un ícono, é destinado a apresentar a mudança da fotografia, de uma imagem reproduzida na capa de jornais e revistas, para a sua transformação em um ícone, sendo reinterpretada diversas vezes e representando muito mais que um momento vivido, experimentado, mas tomando dimensões históricas e memorialísticas sobre o episódio vivenciado em X’Oyep. A fotografia tomou dimensão de um ícone, que para Troncoso, se tornou no mais importante “da luta indígena e do movimento zapatista”.4 A imagem ganhou reconhecimento internacional, ao ser prestigiada com o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha, promovido pela Agência EFE e Agência Espanhola de Cooperação Internacional.
Novas entrevistas são apresentadas neste capítulo. Elas são utilizadas para apresentar as diferentes representações que foram realizadas da mesma imagem. Troncoso analisa também a publicação da fotografia em outros periódicos e constatou que de principal ícone de luta dos indígenas e do movimento zapatista, essa imagem ganhou até mesmo a interpretação de ser uma “prova documental da legitimidade do Estado e da tolerância e equanimidade do exército mexicano”.5 O historiador descreve que a foto passou a ser a síntese de um momento histórico vivido no México, sendo interpretada de diferentes maneiras, ou melhor, da maneira que os atores tinham interesse em interpretá-la. Mas o mais importante, ela não podia ser negligenciada, esquecida, pois se transformou em um ícone importante do momento vivido. Ela foi lida e relida no México e no mundo. Além da constatação da luta indígena, ou da prova da tolerância do exército, a imagem foi representada como a defesa da preservação ambiental, por parte dos indígenas e também interpretada como o avanço neoliberal, que acaba por não valorizar ou assegurar os direitos políticos, culturais e sociais dos habitantes da localidade. Até mesmo o subcomandante Marcos, líder do campesinato no México, apresenta uma interpretação da fotografia: ela seria a síntese do movimento zapatista. Como escreve Alberto del Castillo, essa imagem resulta em uma “rede de leituras e interpretações” quase infinita.6 No derradeiro capítulo, X’Oyep, a 15 años de distancia, Alberto del Castillo Troncoso, viaja até a localidade de X’Oyep e vai em busca de compreender as consequências das lutas travadas no momento em que foi tirada a famosa foto. Desde o início o historiador detectou a dificuldade de chegar até o local. Ainda hoje, de difícil acesso.
Ao chegar, constatou a árdua e pobre realidade dos poucos habitantes que ainda residem ali. Em X’Oyep, Troncoso entrevistou Antonio López, testemunhos dos conflitos entre o exército e a população indígena em janeiro de 1998. Apesar de frutífera, o que mais chamou atenção do historiador, foi um desenho que ele encontrou em uma pequena casa. Tratava-se da representação em um desenho de conotações infantis, da famosa fotografia tirada por Valtierra: A minha frente estava uma pintura, realizada com traços aparentemente infantis, que reproduzia, de maneira muito próxima, a famosa fotografia de Valtierra, embora tenha inserido elementos procedentes, talvez, do relato de Balboa, como a presença de um helicóptero no centro, e outros, sem dúvida, fruto da imaginação do próprio autor da obra, como um grupo de abelhas sobrevoando a cena e um monumento com uma cruz, representando talvez as almas de Acteal, e finalmente, na margem inferior direita e muito pouco visível, um grupo de zapatistas enfunados em suas casamatas e escondendo-se na selva. Ao lado, em uma pequena folha, se informava sobre os nomes do acampamento e as comunidades formadas pelas 1190 pessoas deslocadas que haviam vivido em X’Oyep.7 O espanto do historiador foi grande com essa representação. Neste momento ele constatou que a fotografia havia se transformado em um ícone, podemos afirmar, que um ícone mítico, que representa um período grandioso, vivenciado e vencido, e sempre relembrado, tal qual no desenho, como um momento único. Troncoso descreve que a fotografia se transformou, nessa localidade, em um ex-voto, uma fábula popular, com conotações mágico-religiosas.8 Por fim, Alberto del Castillo apresenta a importância da fotografia como documento histórico. Melhor seria dizer, que pare ele, as fotografias possuem uma grafia histórica, tão autêntica e carregada de valores e símbolos, como a escrita. O percurso que o historiador mexicano faz nesse livro, nos demonstra essa importância. Ele apresenta o quão importante é a fotografia para história, mas não somente suas características estéticas ou suas condições de produção, mas tudo que a envolve desde a chegada do fotógrafo no local até a circulação e representações que perfaz a trajetória de uma fotografia.
Por se tratar de um ensaio, como o próprio Troncoso descreve, não há maiores informações historiográficas sobre o episódio vivido em X’Oyep. Portanto, pensamos que essa obra possuí uma importante contribuição para os historiadores, se tomada como um exemplar riquíssimo em informações e metodologias, para se pesquisar e investigar a fotografia como documento histórico. Talvez essa seja a maior contribuição deixada por Alberto del Castillo Troncoso. E ainda podemos ler e compreender melhor a vida dos indígenas e dos campesinos no México e a suas históricas e importantes lutas.
Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México
1 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep. México: Conaculta; Cenart; Centro de la Imagen, 2013. (Colección Ensayos sobre Fotografía).
2 Ibidem, p. 83. Todos os fragmentos citados diretamente da obra foram traduzidos para o português, livremente.
3 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep, Op. cit., p. 79.
4 Ibidem, p. 85.
5 Ibidem, p. 89
6 Ibidem, p. 101.
7 TRONCOSO, Alberto del Castillo. Las Mujeres de X’Oyep , Op. cit ., p. 108.
8 Ibidem.
Mauro Henrique Miranda de Alcântara – Mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor do Instituto Federal de Rondônia. Correspondência: Rod. RO 399, km 5, Zona Rural Colorado do Oeste – Rondônia – Brasil. Caixa Postal 51. CEP: 76993-000 E-mail : alcantara.mauro@gmail.com.
Redes y sistemas de comunicación en América Latina | Claves – Revista de Historia | 2016
Los artículos que conforman este dossier fueron la respuesta a una convocatoria sobre redes y sistemas de comunicación en América Latina. Fue una propuesta deliberadamente abarcativa porque consideramos que la amplitud de los períodos históricos, la variedad de los objetos y los países abordados por los autores, lejos de redundar en una dispersión improductiva, permiten reconocer la unidad de los medios de comunicación como objeto de investigación. La prensa, las revistas ilustradas, el telégrafo, la radio o la televisión adoptaron a lo largo de su historia una apariencia técnica, política y cultural diversa. Sin embargo, reconocer la unidad que los convierte a todos ellos en medios de comunicación, permite trazar líneas de continuidad entre técnicas sólo superficialmente disímiles como el telégrafo, la radio o la televisión.
Reconocer los problemas comunes permite destacar asimismo la especificidad de los contextos históricos en los que tuvo lugar su emergencia, la incidencia de los cambios técnicos, legislativos y culturales, así como la aparición de nuevos perfiles profesionales, discursos y estéticas. También permite recortar algunos problemas específicos de la historia de los medios en América Latina donde las políticas de Estado y las tensiones entre intereses públicos y privados no pueden desentenderse de relaciones internacionales asimétricas, donde el rol de los países latinoamericanos no fue autónomo y donde las especificidades nacionales no siempre existieron tal y como los propios medios buscaron presentarlas. De esta forma, el presente tema central de la revista Claves tiene como objetivo aportar al conocimiento común de la historia de los medios en el continente que, en general, ha sido abordada en forma de historias nacionales, aún cuando las redes técnicas, políticas, económicas y culturales conducen a la necesidad de buscar relaciones y procesos comunes. Leia Mais
Manifestações culturais em Afro América, conexões, continuidades transnacionais / Revista Brasileira do Caribe / 2016
[…] Yoruba soy, cantando voy, llorando estoy, y cuando no soy Yoruba, soy Congo, Mandinga y Carabalí […] (GUILLEN, 1974, p.231)
El número 33 de la Revista Brasileña del Caribe corresponde al Dossier titulado Manifestaciões culturais em Afro América, conexões, continuidades transnacionais. La discusión central del número aborda las tradiciones ancestrales africanas articuladas en diferentes lugares del continente. Las rutas transatlánticas de comercio de esclavos, como parte de la expansión económica de Europa sobre las Américas, dieron inicio en el siglo XVI a esas relaciones culturales. Este expansionismo exigió el abastecimiento de esclavos para las plantaciones y los ofi cios domésticos (BLACKBURN, 1998; MARQUESE y PARRÓN, 2011; ORTIZ, 1940). La mayoría de estos esclavizados fueron capturados en el litoral occidental del continente africano, procedentes de lugares como Nigeria, Congo, Dahomey, Angola, Mozambique, entre otros. Los puntos de enclave y recepción fueron básicamente las islas de Cabo Verde, el puerto de Badagri y Santo Tomé. Como resultado del sometimiento esclavo, estas comunidades mantuvieron vínculos con otros grupos procedentes no sólo de África, sino también de Asia y de los contextos de anclaje. De acuerdo a esto, las expresiones culturales en contacto fueron diversas y complejas. Las relaciones o las conexiones entre los diferentes condujo a lo que, Fernando Ortiz denominó, para el caso cubano, transculturación. En muchos países del continente los componentes yoruba y bantú se erigieron como plataformas culturales representativas, dando como resultado diversas expresiones religiosas como el Shangó Cult, candomblé, la santería-Ifá y el palo monte (BARNET, 1997; MARTÍNEZ MONTIEL, 2005; MATORY, 2005).
Este número de la Revista describe el escenario que posibilitó en el período colonial, en palabras de Fernando Ortiz, el ajiaco criollo, metáfora que alude a los procesos culturales que se produjeron en el Caribe. Sin embargo, durante los períodos republicanos, la transnacionalización de estos procesos de transición identitaria, han ido en aumento. Fue justamente Edouard Glissant (2005), quien defi nió la creolización como producto de los vínculos sociales que se construyen entre grupos culturales mediados por intercambios de imaginarios tradicionales. Ese concepto de creolización ha sido sostenido también por Sidney Mintz y Richard Price (1976) en lugar del de aculturación propuesto por Gonzalo Aguirre en los años 60´s y el de transculturación presentado por Fernando Ortiz en los años 50´s. Todos ellos destacan la importancia de las áreas culturales como extensiones simbólicas, tal cual es representada por la diáspora africana en Iberoamérica. Estas áreas culturales pueden ser entendidas a través de la metáfora Atlántico Negro, propuesta por Paul Gilroy (1993), cuya intención es la de localizar procesos históricos de negritud en los territorios compartidos por la esclavitud. Este autor inglés, utiliza la metáfora del Atlántico negro para entender el diálogo entre África, América y Europa.
Siguiendo con la discusión sobre áreas culturales, Patricia Pinho (2004), menciona que los años 30´s fueron signifi cativos para estos movimientos de reivindicación debido a la recuperación de la memoria africana en las colonias americanas mediante las artes literarias, la música y otras expresiones de carácter reivindicativo. En los años 60´s, la música se convirtió en uno de los canales de difusión más amplio, como manifestación que pretendía el regreso simbólico a África. Más tarde, tuvieron mayor resonancia los movimientos políticos identitarios afroamericanos (Black Power), ocurridos entre las décadas de los 60´s y 70´s en Estados Unidos. A propósito, Stefania Capone, en su trabajo titulado De la santería cubana al orisha-voodoo norteamericano (2008), considera una discusión importante el estudio de la ancestralidad de los New Afrikans. Argumenta cómo los imaginarios afroamericanos se constituyeron a partir de una serie de procesos de reivindicación política, siendo la religión un pilar importante en la legitimación e institucionalización de signifi cados que provocaban el retorno simbólico a África (back to black). Esta búsqueda de la memoria histórica, se encuentra dispersa entre actores y contextos que pretenden localizar aspectos de conexión imaginaria de la africanía en la diáspora, sobre todo porque “las culturas negras más que ser resultado de una herencia africana original, también se han construido a partir de procesos dinámicos ocurridos en el interior del Atlántico Negro” (PINHO, 2004, p.28).
Los enfoques contemporáneos sobre estudios afroamericanos consideran las perspectivas teórico-metodológicas en movimiento, es decir, aquellas que se interesan por localizar fenómenos en procesos transnacionales. En estos tiempos durante los cuales se cruzan y entrecruzan una serie de plasticidades simbólicas, las tradiciones originarias están incorporándose a nuevos escenarios a partir de la globalización de las culturas. Estos procesos se encuentran mediados por campos sociales (LEVITT & GLICK-SCHILLER, 2004) de ensamblaje global (ONG, 2005) que se relacionan con diversos paisajes étnicos (APPADURAI, 2001) entre los que se encuentran religiones a la carta (DE LA TORRE & GUTIÉRREZ, 2005). También podrían ser considerados como parte del tráfi co transnacional de signifi cados (FERGUSON, 1999) que se legitiman e institucionalizan en los nuevos hábitats, incorporados por comunidades que representan características de lo local y lo global en espacios cada vez más difusos de creollización (HANNERZ, 1987, 1996). La relevancia metodológica en este tipo de enfoques es justamente pensada desde la noción de simultaneidad (MAZZUCATO, 2009), en la contextualización de escenarios y paisajes que permiten la localización de las tradiciones multisituadas (MARCUS, 1995).
Los trabajos reunidos en este Dossier responden interrogantes sobre etapas de la articulación de comunidades afrodescendientes en diferentes lugares del continente. Estas consideraciones vistas desde diferentes perspectivas científi cas, enmarcan un discurso más amplio sobre lo negro y la negritud en la búsqueda de signifi cados culturales. De manera que tanto la imagen fetichista del negro, como sus tradiciones transformadas en reliquias coloniales, narrativas sobre el culto a los ancestros y entidades procedentes de África, forman parte de un discurso más amplio que articula procesos históricos, económicos y culturales, articulados en países de predominio del ancestro africano, pero también en aquellos lugares de concentración migrante considerados como hábitats de signifi cados diferentes.
El artículo de Leonardo Vidigal, Transculturalidades redescobrindo as conexões ancestrais, relaciona hallazgos transculturales en dos lugares geográfi camente distantes como son Brasil y Jamaica. Esto corresponde a situar temporalidades históricas de conformación identitaria en ambos lugares, sobre todo por la infl uencia colonial portuguesa en el caso de Brasil y británica en Jamaica. El autor se vale de argumentos sobre áreas culturales, concebidas por Gilroy como Atlántico Negro. Sostiene cómo la negritud en estos dos polos, se encuentra vinculada a procesos simbólicos de incorporación política, económica y cultural, siendo las expresiones tradicionales resaltadas mediante la música popular, el lenguaje y las relaciones de proximidad.
El aporte metodológico consiste en la incorporación de un vasto trabajo de campo desarrollado a través de fuentes primarias, audiovisuales (documentales) y entrevistas. Lo cual hace relevante no sólo la propuesta del manuscrito, sino también, la síntesis obtenida mediante la información y su interpretación.
Negras y mulatas en el noroeste de Nueva España: la transgresión de la norma entre las parteras de San Miguel de Culiacán, de Fuensanta Baena Reina, hace un importante aporte historiográfi co al situar el intercambio de conocimientos y saberes ancestrales de parteras mulatas entre mujeres españolas, mestizas e indígenas que se aproximaban al parto. Estas retiraban las reliquias o artefactos que se apoyaban en las creencias católicas ofi ciales, mientras utilizaban elementos, amuletos y talismanes, así como ceremonias de invocación, libaciones y uso de hierbas, consideradas heréticas. La transgresión de la norma provocó la acusación del Clero, etiquetando a las parteras de hechiceras, debido al uso de elementos y conocimientos tradicionales. La relevancia metodológica consiste en la revisión de archivos, situando un nuevo sujeto histórico como parte de un relato en el cual se manifi estan fenómenos de diferente ancestralidad.
Haití en Martí. Lo negro y el vudú en el Diario de Montecristo a Cabo Haitiano de Mónica María del Valle Idárraga, sostiene una interesante refl exión sobre cómo José Martí objetiva des-exorcizar el negro en el Caribe a partir de sus experiencias en Haití. Martí confronta con la imagen fetichista que se tenía de los esclavizados y sus tradiciones religiosas, etiquetadas de extravagantes y peligrosas y que podían aún ser utilizadas para provocar repulsión con fi nes políticos en la guerra de independencia. El vudú es reconocido por Martí como creación histórica de conformación identitaria que se corresponde a una tradición no dogmática que lograría la unifi cación de estructuras más amplias y complejas en el interior de sus prácticas. El aporte metodológico que hace este manuscrito se apoya en el minucioso trabajo de archivo histórico, principal método del historiador y estrategia elemental en la conexión (búsqueda) del pasado con repercusión en el presente.
El artículo de Denilson Lima Santos, Yorubas y bantúes: apuntes de las tradiciones africanas en las obras de Abdias do Nascimento y Manuel Zapata Olivella, hace un amplio análisis de dos obras literarias que surgen en diferentes temporalidades y espacialidades que se basan en códigos culturales ancestrales africanos. La discusión se centra en el contrapunteo de tradiciones religiosas recreadas desde la diáspora (ensambladas en Afro- América), como parte de procesos complejos que refi eren la colonización de África y la trata negrera en la Colonia. El resultado de expresiones culturales diversas sirve de escenario en la incorporación de discursos literarios en ambos autores.
El autor del artículo se aproxima a una discusión de la negritud mediante el análisis literario de dos obras, lo cual deja bastante claro la importancia de la interpretación densa en los estudios culturales. De manera que la literatura puede ser pensada como “estructura discursiva [de] categorías, imágenes y formas de ver el mundo en su contenido cultural” (SALDÍVAR, 2015:48).
Yoel Enríquez Rodriguez, en El Otá de Obbatalá, describe un emocionante relato sobre una piedra caliza cultuada como el oricha Obatalá en Melena del Sur, Provincia Habana, Cuba.
El autor se vale de información histórica sobre la llegada de esclavizados africanos y funcionamiento de ingenios azucareros en la zona, acompañado de la descripción del ensamblaje de tradiciones religiosas yorubas procedentes de regiones subsaharianas. Como bien señala el autor, la característica principal en la práctica de la santería, es justamente la otá o piedra, elemento simbólico que desempeña un rol importante al concebirse como representación material del oricha. Sin embargo, la Piedra de las Mercedes podría mostrar ciertos rasgos distintivos en la conexión con el tradicionalismo, al concebir el objeto como tótem de culto natural, tal cual sigue manifestándose en las prácticas religiosas de África. La metodología utilizada es cualitativa, muestra narrativas etnográfi cas producidas durante la investigación de campo.
En Reglas de palo, reglas de muerto: reconfi guración de la familia en la práctica palera caleña, Luis Carlos Castro Ramírez hace una relevante discusión sobre la práctica del palo monte cubano en Calí, Colombia, a través de lo que el autor denomina como religiones de inspiración afro. Muestra una serie de rasgos que caracterizan las ramifi caciones procedentes del Congo, tales como, mayombe, kimbisa, vrillumba, musunde y quirimballa.
Sostiene cómo dicha tradición ha permanecido diferente al sincretismo que identifi ca a otros sistemas religiosos como la santería. Sin embargo, ha sido justamente la Regla de Ocha e Ifá, la que ha incorporado simbólicamente algunas entidades pertenecientes a otros panteones religiosos, como es el caso de Ochún/Mamá Wengue, Chango/Siete Rayos, Oyá/Centella Ndoki, entre otros. Se trata de un sistema complejo de interacción que circula alrededor del culto al ancestro, representado por diversas etapas estructuradas de evolución espiritual. El aporte metodológico deviene de la antropología, en cuanto a la posición de historias orales y entrevistas en profundidad que muestran un carácter singular de la información, matizada en el texto como pretexto etnográfi co.
¡Oh mío Yemayá! Difusión, masifi cación y transnacionalización de la santería cubana en Bolivia, de Juan M. Saldívar, muestra la articulación de la religión en dicho país sudamericano como parte de un proceso transnacional más amplio que involucra aspectos políticos, económicos y culturales locales. El autor resalta la incorporación de signifi cados religiosos por comunidades de practicantes indígenas y afro-bolivianos que legitiman e institucionalizan la práctica a través de intereses el regreso simbólico a África. Además, se muestran hallazgos relacionados con la circulación de objetos y extensión de un mercado religioso popular de ciudades como La Paz, Cochabamba y Santa Cruz. El aporte metodológico se apoya en las estrategias etnográfi cas, con un enfoque multisituado/multilocal que caracteriza los estudios comparativos de fenómenos que rebasan fronteras geográfi cas.
El último artículo del dossier de Diana Cano Miranda, Santería cubana en la ciudad de México: Estudio de caso en una colonia popular al sur de la Ciudad de México, hace referencia al anclaje de la santería mediada por una serie de procesos históricos que vinculan a las industrias culturales del cine y la música en México. La autora muestra un estudio de caso haciendo referencia a la masifi cación de la santería en diferentes sectores populares de la Ciudad de México, así como también la extensión y conexión con otros imaginarios religiosos procedentes de la Nueva Era y tradiciones originarias. Es sin duda un estudio sociológico que se concentra en la clasifi cación de los rasgos de comportamiento entre sociedades que incorporan, legitiman e institucionalizan prácticas ajenas a sus contextos culturales. La aproximación metodológica del estudio muestra la entrevista en profundidad como principal herramienta de recolección de información, así como también, la observación e intervención directa.
En Otros artículos, Iuri Cavlaken en Liberdade, Socialismo e Subdesenvolvimento: A História da Guiana, ofrece una discusión sobre dos momentos históricos importantes en la conformación del país. El primero se remite al siglo XIX, con la abolición de la esclavitud africana, a partir de 1838. El segundo, ocupa la segunda mitad del siglo XX durante la construcción del socialismo e instauración del Partido Progresista del Pueblo.
Es a partir de los episodios antes comentados que ocurrren los acontecimientos políticos que marcaron la historia del país. La esclavitud fue un proceso complejo así como la emancipación de comunidades de afrodescendientes. Éstos fueron introducidos primero por la colonización holandesa, después, la inglesa. Más tarde, el socialismo, en un país con um mosaico de poblaciones diferentes, fue iniciado durante el gobierno de Cheddi Jagan, ,logrando el reconocimiento de la independentista en mayo de 1966 por parte de Gran Bretaña. El aporte teórico-metodológico es justamente la propuesta de historia política de reivindicación social con la que se encaran los argumentos, precisando fechas importantes a través del estudio circunstancial de los eventos referenciados.
El último artículo del número, La poesía de Gertrudis Gómez de Avellaneda en Antologías Colectivas (1846-1893), de Ángeles Ezama Gil trae una excelente discusión sobre poesía latinoamericana, destacando diferentes etapas históricas y estilos literarios. Gertrudis Gómez de Avellaneda, considerada como poetisa del romanticismo hispanoamericano, también es conocida como precursora de la novela hispanoamericana.
Finalmente, la atractiva reseña de Marcos Antonio da Silva, A Revolução Ilhada: uma análise de Cuba: Revolução e Reforma, versa sobre las estrategias de la transición socialista en Cuba. El autor argumenta cómo dicha conexión política se basa en una serie de elementos incorporados del socialismo soviético.
Referencias
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Juan M. Saldívar – Universidad de Los Lagos. Osorno, Chile.
Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser – NASSER (CN)
NASSER, Eduardo. Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: SALANSKIS, Emmanuel. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.2 jul./set. 2016
Eduardo Nasser publicou recentemente um livro particularmente estimulante e ambicioso intitulado Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2013 (sob o título Epistemologia e ontologia em Nietzsche à luz do problema do tempo), esse trabalho procura retraçar o caminho intelectual que levou Nietzsche a desenvolver uma filosofia do vir-a-ser. Para tanto, o autor recorre ao estudo de fontes, que permite ler as propostas filosóficas de Nietzsche “como respostas para problemas produzidos no contexto intelectual particular de sua época” (p. 25). Mas o livro se esforça para nunca cair numa mera erudição, nem tratar a obra nietzschiana como um mosaico de plágios (p. 26). Eduardo Nasser oferece, antes, uma contextualização impressionante das reflexões de Nietzsche sobre o tempo e o viraser. Destaque especial deve ser dado à análise da refutação da idealidade do tempo na esteira do filósofo russo Afrikan Spir (p. 58-70), bem como à apresentação da teoria dos átomos de tempo, com seus dois “lados” epistemológico e físico (p. 151-153 e p. 173-188, ver abaixo). O título do livro, saliente-se, se justifica por uma tese mais geral que vai além dessas análises específicas. O autor interpreta a filosofia nietzschiana do viraser como uma ontologia, na medida em que “Nietzsche busca no realismo do viraser não somente uma supressão do ser, mas também uma nova forma de recolocar a pergunta pelo ser” (p. 27). À luz dessa “irrupção do ser”, Nietzsche é colocado em perspectiva como um precursor das ontologias antiessencialistas do século XX, especialmente no contexto das chamadas “filosofias do processo” (p. 242-248). Embora eu não compartilhe inteiramente essa leitura ontológica, considero Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser como uma contribuição extremamente original e desafiadora para os estudos nietzschianos contemporâneos. Gostaria de resumir algumas passagens essenciais do livro antes de discutir brevemente sua perspectiva geral.
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A primeira análise importante, desenvolvida no capítulo 1, diz respeito à “virada realista” que Eduardo Nasser identifica no pensamento do jovem Nietzsche a partir de 1873. Inicialmente, Nietzsche certamente não se definia como um realista. Sabese que ele defendia um idealismo cultural ligado a pretensões educativas e a uma “metafísica do artista” (p. 30-37). O ponto de partida de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser consiste em mostrar que essa posição era “epistemologicamente [amparada]” pelas leituras neokantianas do jovem Nietzsche: Liebmann, Fischer, Ueberweg, Haym e, sobretudo, FriedrichAlbert Lange (p. 32). Herdeiro dessa tradição transcendental, Nietzsche julgava o conhecimento da “coisa em si” inacessível; enxergava o próprio conceito de coisa em si como “uma categoria oculta“; e concluía, com Lange, que a metafísica não é nada senão uma “intuição poética” (p. 34-35).
Contudo, Eduardo Nasser sustenta que uma “mudança de rumo” advém quando Nietzsche descobre o opus magnum do filosofo russo Afrikan Spir, Denken und Wirklichkeit. O jovem Nietzsche é então exposto à objeção capital de Spir contra a teoria kantiana da idealidade do tempo: contrariamente ao espaço, o tempo não pode ser uma ilusão nem possuir uma realidade simplesmente subjetiva, pois a mera representação de uma sucessão não seria sucessiva e não poderia dar origem à temporalidade de uma sucessão de representações (p. 67). As p. 62-64 fornecem uma excelente contextualização do argumento de Spir na história do kantismo. Depois, o autor bem mostra os sinais de uma incorporação nietzschiana desse argumento. É o raciocínio mobilizado no capítulo XV de A filosofia na idade trágica dos gregos para refutar o eleatismo: ou seja, a postulação por Parmênides, no segundo período de seu pensamento, de um Ser único e imutável, acessível à pura razão, que supostamente tornaria ilusória a nossa experiência sensível de um mundo em viraser (p. 51). Tal ilusão pode ser refutada como autocontraditória. Com efeito, o permanente precisaria ser mutável para suscitar uma aparência de mudança. Nas palavras de Nietzsche: “não se pode negar a realidade da mudança. Se ela for expulsa pela janela afora, volta a entrar pelo buraco da fechadura” (p. 61). Assim, segundo Eduardo Nasser, chega-se a pensar o tempo como “a única propriedade atribuída ao real que sobrevive à inspeção crítica” (p. 240). O que também implica um abandono do idealismo transcendental, enquanto “disfarce usado pelo eleatismo para iludir seus opositores” (p. 70).
Iniciada em 1873, a problematização realista de Nietzsche se manifestaria na obra publicada a partir de Humano, demasiado humano. Estaria subjacente a uma “filosofia histórica” que faz do viraser seu objeto primordial (p. 88-89). Aqui, Eduardo Nasser apresenta uma segunda análise importante. Ele explica que o realismo nietzschiano “requer uma nova perspectiva epistêmica” (p. 95), podendo essa ser caracterizada como um sensualismo (p. 99). O capítulo 2 procura esclarecer o sentido, o interesse e os limites desse sensualismo, sem esquecer de dialogar com comentadores que já abordaram o assunto (como Maudemarie Clark, Mattia Riccardi ou Pietro Gori). Uma distinção elucidativa é feita entre sensualismo e materialismo. Se o primeiro aceita o testemunho dos sentidos enquanto mostram a realidade do vir-a-ser (p. 116), isso não pressupõe “um mundo de coisas, substâncias e átomos”, ao invés do segundo, que vive “à sombra da metafísica” (p. 100). Sendo assim, o sensualismo tem a seu favor “uma consciência filosófica mais apurada” (p. 99). Seria a posição que Nietzsche adotaria enquanto “hipótese regulativa” ou “princípio heurístico” no § 15 de Para além de bem e mal, o que justificaria uma aproximação parcial com o fenomenalismo de Ernst Mach (p. 109-111). Aliás, Eduardo Nasser oferece uma pequena crônica (muito bem-vinda) da aproximação Nietzsche-Mach desde Hans Kleinpeter, discípulo de Mach e admirador de Nietzsche. É verdade que a diferenciação com o materialismo não resolve todos os problemas, o que o autor não dissimula. Por um lado, Nietzsche nem sempre usa a palavra Sensualismus num sentido positivo. O § 14 de Para além de bem e mal fala, por exemplo, do “sensualismo eternamente popular”, que acredita apenas no que “pode ser visto e tocado”, uma atitude fundamentalmente plebeia segundo a axiologia nietzschiana (p. 100). Por outro lado, Eduardo Nasser sugere que Nietzsche não renuncia a buscar causas para as sensações. Ora, isso ultrapassa o âmbito de um “sensualismo monístico”, que excluiria, em princípio, um “conhecimento não sensorial das sensações” (p. 112).
Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser desenvolve uma argumentação interessante a favor de uma interpretação sensualista. Parece-me que essa chave de leitura permanece discutível, notadamente por uma razão que o próprio autor indica: o fato de Nietzsche adotar “um tipo de epistemologia evolucionista” (p. 124). A meu ver, num quadro de reflexão evolucionista, a sensação é menos um dado epistemológico primeiro do que uma interpretação herdada do passado orgânico, que tem uma função vital. Isso quer dizer que a sensação pode ser criticada enquanto interpretação. É justamente o que mostra a excelente nota 61 da p. 104, que enumera três fragmentos póstumos de Nietzsche tratando da falsificação visual do mundo efetivo: o nosso olho é “um poeta inconsciente e um lógico” (Nachlass/FP 15 [9] do outono de 1881, KSA 9.637), que não apenas “simplifica o fenômeno” (Nachlass/FP 26 [448] do verão/outono de 1884, KSA 11.269), mas também constrói a coisidade, ao despertar “a diferença entre um agir e um agente” (Nachlass/FP 2 [158] do outono de 1885/outono de 1886, KSA 12.143). Sabemos que essa distinção Thäter/Thun será colocada em questão pela Genealogia da moral. Todavia, será que tem uma sensação por trás da sensação, ou um “mundo fenomenal profundo” do viraser sob o mundo fenomenal superficial da coisidade (p. 125)? Concordo com Eduardo Nasser quando ele evoca o refinamento dos sentidos ao qual Nietzsche nos convida. Também subscrevo a ideia de que tal aperfeiçoamento tem limites necessários (p. 122-134). Eu simplesmente não tenho certeza de que algo “afeta os sentidos originariamente” (p. 133), na medida em que esse “algo” só poderia existir do ponto de vista de uma interpretaçãoapropriação que o põe (ver abaixo).
Uma terceira análise, talvez a mais notável de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser, concerne à teoria dos átomos de tempo do jovem Nietzsche (cap. 2-3). Trata-se de uma teorização “em grande medida concentrada num fragmento de 1873” (p. 151), a famosa nota 26 [12] ilustrada por dois esquemas. O autor decompõe esse questionamento em um “lado epistemológico” (p. 151-153) e um “lado físico” (p. 173-188). Em ambos os casos, estamos em presença da postulação de “unidades mínimas de tempo” (p. 151), mas tal suposição pode ser entendida como a de um mínimo sensorial ou de um mínimo físico, sem que exista necessariamente uma discrepância entre as duas acepções: Eduardo Nasser rejeita as “falsas polêmicas geradas em torno do valor objetivo ou subjetivo” do atomismo temporal (p. 173).
Um primeiro lado desse atomismo é sensorial. A esse respeito, o final do capítulo 2 remete à leitura nietzschiana de Karl Ernst von Baer (p. 144-150). O célebre fisiologista russoalemão acredita identificar uma “medida fundamental do tempo”, o batimento cardíaco (p. 146). Pois observa que a velocidade das pulsações condiciona a percepção do tempo, de modo que um coelho, com sua pulsação “quatro vezes mais veloz que a de um bovino”, “possui uma vida mais veloz” (p. 147). Situada entre essas duas temporalidades, a nossa existência poderia ser radicalmente alterada por uma simples aceleração ou desaceleração cardíaca: o mundo poderia nos parecer quase imutável ou, pelo contrário, profundamente efêmero (p. 147-148). Isso permite conceber a pulsação como uma espécie de átomo temporal, o que leva o jovem Nietzsche a dizer que o atomismo temporal coincide com uma teoria da sensação (p. 153). Contudo, Eduardo Nasser sublinha que o “ponto de sensação” não é exatamente um instante: ele já envolve o vir-a-ser, é mesmo “originariamente equivalente ao vir-a-ser” (p. 152). Assim, von Baer aparece a Nietzsche como um aliado do heraclitismo, leitura idiossincrática que transparece no curso sobre Os filósofos pré-platônicos (p. 146).
Mas o atomismo temporal do jovem Nietzsche também possui uma física, esboçada pelo elíptico fragmento 26 [12]. Para esclarecer esse segundo aspecto, Eduardo Nasser remete a uma outra referência científica do jovem Nietzsche, a física dinamista de Roger Boscovich: “é a partir do dinamismo de Boscovich que Nietzsche chega ao seu conceito de força e, consequentemente, à sua visão de mundo” (p. 168). O interesse de Nietzsche pela física boscovichiana dos pontos dinâmicos é muito bem documentado pelo capítulo 3. Mais uma vez, a interpretação nietzschiana se mostra criativa e radical. Pois Eduardo Nasser mostra que Nietzsche abole toda forma de permanência substancial, contrariamente a Boscovich, que ainda admitia pontos materiais imutáveis na sua Teoria da filosofia natural (p. 181-183). Mas a mais espetacular deformação nietzschiana parece ser uma tradução temporal de Boscovich: “os pontos nietzschianos são temporais, diferenças puras” (p. 181), que acolhem “forças absolutamente mutáveis” (p. 182). Daí o estranho saltacionismo temporal do jovem Nietzsche, ilustrado no segundo diagrama do fragmento 26 [12]: tudo se passa como se ocorresse uma ação à distância entre pontos temporais separados, uma sugestão tanto fascinante quanto enigmática (p. 186).
Poder-se-ia ver essas reflexões como ideias en passant, que Nietzsche nunca desenvolveu seriamente na sua obra posterior. No entanto, Eduardo Nasser atribui grande importância a esse momento teórico precoce: “na teoria dos átomos de tempo encontramos o essencial do que pode ser chamado de a visão de mundo hipotética de Nietzsche” (p. 188). Nietzsche teria permanecido fiel ao núcleo dessa física inicial: a busca de uma esquematização temporal da realidade, baseada na convicção de que “somente a mudança pode explicar a mudança” (p. 183). Novos desdobramentos teriam sido incluídos nessa visão de mundo dinâmica, tais como um princípio de continuidade (p. 188-197) e a própria hipótese da vontade de potência (p. 197-202). Seguindo essa linha interpretativa, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser propõe uma interpretação iconoclasta da vontade de potência como “uma forma de tornar o discurso dinamista […] mais palatável a um público não especializado” (p. 202). Sem dúvida, essa proposta suscitará discussões no contexto da Nietzsche-Forschung.
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Volto agora à noção paradoxal de “ontologia do vir-a-ser”, que dá sua perspectiva geral ao livro. Gostaria de indicar sucintamente em que sentido Eduardo Nasser reabilita uma problemática ontológica, para depois levantar duas dificuldades, num espírito de amizade nietzschiana.
O autor está bem ciente de que Nietzsche rejeita as ontologias tradicionais, aquelas que podem ser chamadas de “essencialistas” (p. 208). A palavra técnica Ontologia é rara no corpus nietzschiano, mas uma de suas ocorrências corresponde a uma crítica implacável de Parmênides (p. 209). É evidente, portanto, que Nietzsche considera o Ser do eleatismo como ilusório: ele dá razão a Heráclito tal como o entende, desde A filosofia na idade trágica dos gregos até Ecce homo (p. 217). Mas outra questão é saber se Nietzsche não teria também uma concepção ontológica positiva, em virtude de uma espécie de “homonímia do ser” (p. 217-227). De fato, é o que Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende: “O ser enquanto essência, enquanto ousia, não é o verdadeiro ser” (p. 219). Assim entendido, Nietzsche prefiguraria em certa medida o questionamento heideggeriano, pace Heidegger em seu curso sobre Nietzsche. Conhece-se a famosa “diferença ontológica”: Heidegger interpreta a história das metafísicas do ente como a do esquecimento de uma pergunta mais fundamental pelo Ser. Nessa direção pósheideggeriana, Jean Granier é citado como um dos intérpretes que reconheceram a “plausibilidade do problema ontológico em Nietzsche”, em seu livro clássico sobre Le Problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche (p. 19-22).
É certo que Nietzsche pronuncia frases do tipo: “o único tipo de ser é – ” (p. 224). Mas será que isso permite atribuir uma ontologia Nietzsche? Vejo dois problemas. O primeiro é mencionado pelo autor no final do capítulo 4: a dessencialização nietzschiana da ontologia “é também a destruição de toda ontologia”, pelo menos enquanto discurso científico (p. 227). O ser não tem mais um conteúdo essencial suscetível de ser caracterizado por um logos, a não ser que Nietzsche não mantenha seu antiessencialismo de modo coerente (a pergunta poderia ser feita à luz de certas formulações sobre a vontade de potência, como a do fragmento 14 [80] de 1888 citada na p. 227: “a essência mais íntima do ser é vontade de potência”; o eterno retorno também levanta interrogações, como mostra o excurso crítico das p. 227-237). Mas talvez Nietzsche tenha uma segunda objeção ainda mais radical contra o discurso ontológico. No âmbito do seu perspectivismo, ele afirma a nãoexterioridade da aparência em relação ao ser. Não tem o ser de um lado e suas manifestações do outro, o que “é” é sempre visto desde uma outra coisa. Assim, não se pode dizer absolutamente falando que A é B, nem mesmo que A existe em si. Eduardo Nasser cita pelo menos dois textos que vão nesse sentido, os fragmentos 2 [149] de 1885/1886 e 7 [1] de 1886/1887 (p. 219 e p. 224). No fragmento 7 [1], Nietzsche coloca aspas na palavra “fenomenal” [Phänomenale], que se deve distinguir do vocabulário propriamente nietzschiano da aparência [Schein]. De fato, não “tem” em Nietzsche um mundo fenomenal objetivo a ser descrito. Parece-me, nesse sentido, que o desafio filosófico não seria mais procurar um ser, mesmo fenomenal, mas sim elaborar critérios para orientar-se metodologicamente nas aparências.
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Essas observações visavam apenas a prosseguir o diálogo com Eduardo Nasser e a agradecer a ele por este belo livro, que vem enriquecer a coleção Sendas & Veredas do GEN. Produto de um trabalho bibliográfico considerável, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende uma interpretação ousada com uma argumentação precisa. Essa obra é uma mina intertextual, que, seguramente, interessará a todos os especialistas de Nietzsche em língua portuguesa.
Emmanuel Salanskis – Doutor em filosofia pela Universidade de Reims, pesquisador no laboratório SPHERE do CNRS e diretor de programa no Collège International de Philosophie, França. Correio eletrônico: emmanuel.salanskis@noos.fr
Os sentidos do impresso | Simone Antoniaci Tuzzo
Os sentidos do impresso são explorados de modo minucioso e atual neste livro, que apresenta um ângulo analítico dos jornais impressos, tensionando-os com a realidade dos meios digitais. A obra é uma evolução investigativa sobre opinião pública calçada nas lógicas do jornal impresso dentro do panorama contemporâneo, executado pela professora Dra. Simone Antoniaci Tuzzo. Trata-se ainda do quinto volume da coleção Rupturas metodológicas para uma leitura crítica da mídia, desenvolvido pelos Programas de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Goiás – UFG e Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Dentro desse projeto, uma série de investigações foi executada no Laboratório de Leitura Crítica da Mídia, aglutinando reflexões em trabalhos apresentados e publicados, na experiência de sala de aula e no próprio intercâmbio da autora, que se mudou para Portugal durante uma etapa da pesquisa para agregar mais propriedade ao olhar subjetivo desenvolvido. A elaboração das reflexões foi, assim, fruto de quatro anos de trabalho intensivo e dedicação às etapas sugeridas pelas próprias inquietações, desencadeadas ao longo do processo metodológico. A autora esclarece, logo na apresentação, que foi a partir desse processo cumulativo e gradativo de conhecimento e das próprias assimilações adquiridas em cada etapa que as questões foram se delineando e formando a rota do trabalho que compõe o livro. Leia Mais
O Ensino de História / Revista Historiar / 2016
Nos últimos anos o Ensino de História tem cada vez mais se consolidado como um campo de estudos da História e como objeto de pesquisa dos historiadores, algo que nem sempre aconteceu. Até a década de 1960, o Ensino de História foi visto como uma área de formação e não como objeto de pesquisa, estabelecendo-se, assim, uma relação dicotômica que criou uma separação entre ensino e pesquisa, como se essas duas atividades não pusessem ser realizadas concomitantemente. O surgimento das pós-graduações em História no Brasil a partir dos anos 1970 acentuou essa separação na medida em que passaram a atribuir às pós-graduações em Educação a tarefa de pensar o ensino e a aprendizagem em História.
Somente no final da década de 1970 é possível perceber o início de uma mudança nesse cenário, mudança essa que significou uma resposta aos retrocessos cometidos pela ditadura militar, principalmente através da lei 5.692 / 71, que fundiu as disciplinas de história e geografia criando a disciplina de estudos sociais, instituiu a obrigatoriedade do ensino profissionalizante para o então 2º grau e criou as licenciaturas curtas, desvalorizando e precarizando ainda mais a profissão de professor.
Assim, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, as questões relativas à formação de professores, aos currículos escolares, aos livros didáticos, ou seja, ao Ensino de História de uma forma geral passaram a ser preocupação dos historiadores, que transformaram esses temas em objeto de reflexão, análise e pesquisa em cursos de graduação e pós-graduação em História.
Não à toa começaram a surgir novos espaços de discussão sobre esse campo de estudos, como o Seminário Perspectivas do Ensino de História, que teve a professora Elza Nadai como uma de suas principais lideranças, e o Encontro Nacional dos Pesquisadores do Ensino de História; além dos Laboratórios de Ensino de História, destacando-se o pioneirismo do trabalho do laboratório da Universidade Estadual de Londrina e da Universidade Federal de Uberlândia. Hoje, podemos dizer que já são dezenas de encontros, seminários, laboratórios e grupos de estudo e pesquisa espalhados pelo Brasil que têm como objetivo pensar o ensino e a aprendizagem em História.
É preciso destacar que o curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) não foge à regra e também tem buscado nos últimos anos colaborar com as discussões sobre o assunto, criando espaços de discussão, seja através da realização de eventos voltados para a área; do LEAH, o Laboratório de Ensino e Aprendizagem em História que dispõe de um razoável acervo de livros didáticos disponível para consulta; e do curso de especialização em Ensino de História oferecido à comunidade.
O presente dossiê sobre Ensino de História da Revista Historiar vem ao encontro dessas preocupações e representa mais uma iniciativa do colegiado de História da UVA com as questões relativas ao ensino, abrindo espaço para professores de trajetória acadêmica já consagrada, mas também para graduandos que iniciam o exercício de refletir sobre seus objetos de pesquisa e de escrever sobre eles.
Francisco Edmar de Lima Ferreira e Francisco Gleison da Costa Monteiro relatam uma experiência de trabalho com bolsistas do PIBID do curso de licenciatura em História da Universidade Federal do Piauí, que culminou com a produção de um jornal escolar.
Geovan Nobre de Araújo toma como objeto de análise os livros didáticos de história voltados para as turmas do 2º ano do Ensino Médio, e reflete sobre a forma como os mesmos retratam a Revolução Inglesa. O autor não se restringe apenas a análise dos conteúdos, mas estende sua reflexão sobre a materialidade dos livros didáticos de história.
Maruza Monteiro de Araújo, Victor Rodrigues de Almeida e Francisco Dênis Melo fazem uma reflexão sobre os desafios de ensinar história na contemporaneidade
Os artigos de Francisco Dênis Melo e Francisco Régis Lopes Ramos refletem sobre o uso dos museus como espaços educativos e, mais especificamente, para o ensino e aprendizagem em História. O primeiro toma como mote da sua discussão o Museu Dom José, em Sobral, apresentando as possibilidades de trabalhar não só a História de Sobral, mas da região Norte do Ceará. O segundo apresenta algumas reflexões sobre uma metodologia de trabalho com os objetos intitulada de objeto gerador, que pode ser aplicada tanto nos espaços museológicos quanto dentro da escola.
Faz-se urgente e necessário, no atual momento, intensificarmos os debates sobre o ensino e a educação de um modo geral, já que nos últimos meses a educação brasileira tem sido alvo de severos ataques de projetos como o Escola sem partido, que cria um estado policialesco dentro da escola e criminaliza o trabalho do professor; e a Medida Provisória 746 / 2016 do governo ilegítimo de Michel Temer, que pretende reformar o Ensino Médio no país, propondo mudanças que são tão ou mais nocivas que a reforma educacional realizada durante a ditadura militar.
Portanto, não só a disciplina de história, mas a educação como um todo está sendo ameaçadas pela ascensão conservadora no país que pretende amordaçar o professor e impedir uma educação cidadã, inclusiva e plural. Em tempos como esse, refletir sobre o Ensino de História é antes de tudo um ato de resistência.
Agradecemos a todos (as), boa leitura e debate!
Ana Amélia Rodrigues de Oliveira – Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA
OLIVEIRA, Ana Amélia Rodrigues de. Apresentação. Revista Historiar. Sobral, v. 8, n. 14, 2016. Acessar publicação original [DR]
Violência e cidadania | Revista Hydra | 2016
A Alma do MST? A prática da mística e a luta pela terra | Fabiano Celho
Ao pensar na problemática da luta pela terra no Brasil, bem como no surgimento dos movimentos sociais na segunda metade do século XX, evocamos uma serie de discussões acerca da construção do sujeito Sem Terra, a mística e o símbolos utilizados nos momentos de luta pelo pedaço de chão. Essas discussões podem ser notadas no livro “A Alma do MST? A prática da mística e a luta pela terra”, resultado da Dissertação de Mestrado do professor Fabiano Coelho, defendida no Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (PPGH/UFGD).
O livro dividido em cinco capítulos traz discussões pertinentes sobre identidade sem terra, origem do MST, a participação da igreja na luta pela terra, e a importância da mística na construção de memórias e identidades de trabalhadores rurais que se encontravam na condição de acampados ou assentados. Leia Mais
Colonialismo, território e territorialidade: a luta pela terra dos Guarani e Kaiowa em Mato Grosso do Sul | Thiago Leandro Cavalcante
Sem deixar de dialogar com outros campos do saber, Thiago Leandro Vieira Cavalcante construiu sua formação acadêmica essencialmente dentro da disciplina de História. Paranaense radicado em Dourados (MS) desde o início de seu mestrado em 2006, seus estudos abarcam as áreas de História e Antropologia, com ênfase em História Indígena e Etnologia Indígena. Atualmente é professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e pesquisador da Cátedra UNESCO “Diversidade Cultural” na mesma instituição.
Cavalcante faz parte de um rol de novos pesquisadores que, com o auxílio da perspectiva metodológica da etno-história, têm produzido trabalhos que se somam na composição da historiografia Guarani e Kaiowa2 de Mato Grosso do Sul. O seu engajamento fica visível em seu texto. Contudo, os argumentos que apresenta estão fundamentados em uma vasta documentação e na pesquisa etnográfica, o que permite perceber que engajamento e a pesquisa acadêmica não são excludentes per si. Algo particularmente importante no contexto sul-mato-grossense, estado onde as tensões entre as populações guarani e kaiowa e os grupos ligados ao agronegócio tem se intensificado nos últimos anos. Leia Mais
História Indígena, historiografia e indigenismo: contribuições, desafios e perspectivas / Fronteiras – Revista de História / 2016
Com grande satisfação apresentamos o dossiê temático História Indígena, historiografia e indigenismo: contribuições, desafios e perspectivas. A ideia de publicar este dossiê surgiu durante o XXVIII Simpósio Nacional de História no qual, seguindo uma tradição da área, vários trabalhos sobre História Indígena foram apresentados, em especial, no simpósio temático coordenado por Jorge Eremites de Oliveira e Thiago Leandro Vieira Cavalcante. Em Florianópolis, foi lançada a proposta de publicação deste dossiê, que, todavia, foi recepcionada por diversos autores e autoras, inclusive do exterior, que não estavam participando do evento, fato que demonstra a abrangência e a consolidação da área de História Indígena e da Fronteiras – Revista de História nos últimos anos. Todos os artigos publicados representam qualitativamente uma boa amostra da produção brasileira, bem como internacional sobre História Indígena.
É importante registrar que este é o segundo dossiê sobre a temática indígena publicado pela Fronteiras. O primeiro saiu no segundo semestre de 1998 com o título Sociedades Indígenas. Naquele momento, a emergência dessa área de estudos viria a culminar no auxílio da criação do curso de Mestrado em História com a linha de pesquisa em História Indígena do então campus de Dourados da UFMS. Hoje, mais de uma década depois, a Fronteiras volta a dar destaque ao tema, demonstrando, sobretudo, o amadurecimento e a diversificação da área no Brasil e na América Latina e sua consolidação na, hoje, UFGD. Leia Mais
Ensino (d)e História Indígena – WITTMANN (HE)
WITTMANN, Luisa Tombini (Org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. Resenha de: BIGELI, Maria Cristina Floriano. Ensino (d)e história indígena: um livro necessário. História & Ensino, Londrina, v. 22, n. 2, p. 297-304, jul./dez. 2016.
Iniciar a introdução do livro Ensino (d)e História Indígena com a indagação “O que você sabe sobre os índios?”, já nos põe em estado de reflexão antes mesmo de passarmos os olhos pelas primeiras frases contidas nessa seção. Afinal, o que a maioria de nós, professores ou não, porém, antes de tudo, brasileiros e brasileiras, sabe sobre os povos que outrora já habitavam essas terras? Além daqueles que possuem acesso a bibliografias especializadas, a população brasileira, majoritariamente, tem conhecimentos parcos e aquém do necessário. Para Wittmann, organizadora e autora de um dos capítulos do livro, a escassez de saberes a respeito dos povos indígenas brasileiros “[…] revela o desconhecimento de nossa sociedade sobre a própria história” (WITTMANN, 2015, p. 9). Contudo, há diversos motivos para tal insciência, sendo o principal deles a ausência ou a insuficiente abordagem de histórias e culturas indígenas em instituições educacionais.
Por décadas, os indígenas foram apartados da escrita da História do Brasil, portanto, pouco abordados nos currículos escolares. Quando apareciam nos livros e materiais didáticos, eram enfocados no passado, vistos como coadjuvantes e jamais como sujeitos históricos. Além disso, até meados de 1990, não havia menção aos indígenas em tempos anteriores à colonização espanhola e a portuguesa na América Latina na maioria dos livros didáticos brasileiros. Esses povos passavam a existir na História somente com a chegada dos estrangeiros e, consequentemente, a partir de seus olhares. No que se concerne à vinda dos povos indígenas ao continente americano, quase nenhuma informação era encontrada (GRUPIONI, 1996).
Dando mais um passo para trás, a exiguidade de estudos sobre indígenas na área de História pode estar relacionada ao imaginário construído com a chegada dos colonizadores, eternizado na famosa frase de Varnhagen, presente em História Geral do Brasil, livro de 1854: “de tais povos na infância não há história: há só etnografia” (VARNHAGEN, [1854] 1953, p. 31). Bittencourt (2013, p. 111-112) infere que, a partir dessa frase e dessa obra, “[…] poucos foram os historiadores que se ocuparam dos povos indígenas, assim como vários autores de livros didáticos se limitaram a reproduzir essa escassa produção sobre esses ‘povos sem história’, que tornaram-se, quase que exclusivamente, objeto de estudo de etnólogos”. Corroborando, assim, com nosso atual desconhecimento acerca de histórias e culturas dos povos indígenas brasileiros.
Desde a metade final dos anos 1990, com a instituição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), teve início uma reformulação do ensino brasileiro, bem como uma renovação nos ensinos fundamental e médio. A partir de então, passou-se a aceitar o termo “diversidade” como princípio norteador dos PCN para o ensino de História e, do mesmo modo, o termo “pluralidade” aparece em evidência. A temática indígena também é mencionada em diversos pontos, tanto nos PCN para as disciplinas de História e Geografia destinados aos primeiros ciclos do ensino fundamental (de 1ª a 4ª série, atualmente denominados de 1º ao 5º ano), como nos PCN destinados à História dos anos finais do ensino fundamental (5ª a 8ª série, atuais 6º ao 9º ano).
A partir de tais parâmetros, diversos livros didáticos brasileiros incluíram conteúdos sobre indígenas em contextos anteriores à colonização europeia, passando a versar sobre o continente americano em temáticas relacionadas à Pré-história. Dessa forma, “a antiga tradição de começar nossa História com a chegada dos portugueses foi superada. Mantém-se, contudo, o predomínio da apresentação dos índios a partir do passado, mas isso se explica, em grande parte, por se tratar de livros de História” (FUNARI; PIÑÓN, 2011, p. 100).
Anos após a publicação dos PCN, a lei 11.645/2008 torna obrigatório o estudo da história e cultura1 indígena nas escolas públicas e particulares. Assim, em colaboração com essa lei, o livro Ensino (d)e História Indígena tem o objetivo de compartilhar e gerar conhecimentos a respeito da temática indígena, sendo uma obra destinada a professores e professoras da educação básica, principalmente para o ensino médio. Contudo, acreditamos que as diversas abordagens sobre povos indígenas, divididas em cinco capítulos, nos trás uma multiplicidade de informações sobre a pluralidade de histórias indígenas de nosso país e colaboram com aulas de todos os níveis escolares – inclusive com aulas universitárias.
Na introdução, Wittmann nos mostra o que está por vir a partir da discussão de uma nova área de estudos da temática: a Nova História Indígena. Essa área tem consolidado espaço nos estudos históricos por abordar ações e interpretações de sujeitos e povos indígenas diante de múltiplas realidades, além de buscar desconstruir afirmações até então bastante difundidas, tais como: “populações indígenas estão em vias de desaparecimento”, “povos indígenas já fazem parte do passado”, “extermínio indígena” ou mesmo visões “conservadoras”, a saber, as que não consideram indígenas aqueles que deixaram de residir em suas terras e/ou comunidade de origem; aqueles que têm contato com objetos não indígenas que fazem parte da sociedade capitalista, como aparelhos eletrônicos (celulares, televisão, rádio, computador etc.), vestimentas (calça jeans, roupas íntimas, calçados, bonés etc.), automóveis, acesso a internet, entre outros. Ou seja, essas visões “conservadoras” não consideram indígenas aqueles que não mantiveram suas culturas estáticas (como se isso fosse possível!) e se apropriaram de objetos de outras culturas.
De fato, o livro cumpre o que propõe em seus cinco capítulos de autoria de pesquisadores e pesquisadoras com formação acadêmica em História. Nesses, as histórias e culturas indígenas são grafadas a partir de diversos olhares e abordam variadas regiões brasileiras, desconstruindo, de prontidão, as ideias de uma única história indígena ou de apenas uma cultura indígena. Além disso, percebe-se o cuidado com a diagramação da obra, pois os capítulos são constituídos de figuras coloridas e quadros informativos. Esses quadros são destacados do texto em caixas quadradas de cor púrpura e trazem informações, complementações e explicações essenciais para a compreensão dos assuntos abordados nos capítulos, ampliando, dessa forma, os conhecimentos dos leitores e tornando o assunto ainda mais dinâmico e compreensível.
Vamos às análises desses trabalhos. Giovani José da Silva, autor do primeiro capítulo, intitulado “Ensino de História Indígena”, após versar sobre as dificuldades em se reconhecer, no Brasil, a diversidade pluricultural e multiétnica, enfatiza a sua experiência em uma escola indígena localizada no Mato Grosso do Sul. Silva foi professor de ensino fundamental e médio da escola fixada na aldeia Bodoquena, dos indígenas Kadiwéu, na qual realizou uma experiência didático-pedagógica em História e a narra em seu capítulo. Entretanto, antes da experiência contada, o autor descreve suas dificuldades em se aprender o idioma falado pelos Kadiwéu – filiado à família Guaikuru – e também pela experiência que vivenciou ao acompanhar a instalação das escolas indígenas na região do Pantanal.
Com linguagem fácil para leigos, já que o livro não é destinado a acadêmicos e sim para docentes de escola básica, Silva explana algumas trocas de conhecimentos e experiências ocorridas durante sua permanência de sete anos nessa região do Mato Grosso do Sul. Ao final, assim como há nos capítulos seguintes, o autor propõe sugestões de atividades visando auxiliar os docentes na preparação das aulas escolares. Cada atividade possui um “texto de apoio para o(a) professor(a)”, que complementa o assunto abordado. Silva propõe atividades que vão além do assunto central de seu capítulo, ampliando a gama de possibilidades de se abordar História Indígena dentro da sala de aula. O autor sugere trabalhar, por meio de vídeo, a presença indígena na sociedade brasileira atual; refletir sobre as representações acerca dos indígenas presentes em canções; compreender os porquês das datas comemorativas, entre essas, o dia 19 de abril como “Dia do Índio”; realização de pesquisa a respeito da inserção da temática indígena nas aulas; e discussão de memórias construídas sobre a participação dos indígenas na Guerra do Paraguai. Enfim, há diversas propostas que os docentes podem se apropriar, se inspirar ou utilizar como norte para as aulas escolares.
Saindo do Centro-oeste e caminhando para região Norte do país, “Índios cristãos na Amazônia colonial”, de autoria de Almir Diniz de Carvalho Júnior, aborda as relações ocorridas entre indígenas que habitavam a região amazônica e os europeus através das “missões católicas” – utilizadas como mais uma forma de colaborar com a conquista do território recém-“descoberto”. Dentro dessas “missões” – núcleos de pequenos povoados instalados nas proximidades dos primeiros centros coloniais – havia uma maior concentração de indígenas do que de brancos (esses eram soldados, padres, missionários e alguns colonos), mas, obviamente, as impressões sobre tal período, registradas em documentos oficiais, vêm dos olhares dessas “minorias” brancas.
Deslocando o foco do olhar do europeu para o indígena, o autor do segundo capítulo descreve as relações e o dia a dia dentro desses lugares de “missões”, como: as diversas funções cumpridas; os espaços de controle; a administração; as novas formas de conceber e administrar o tempo; o uso de panos de algodão para cobrir os corpos; a imposição de uma ética de trabalho que não condizia com os significados que os povos indígenas atribuíam a essas atividades laborais; as estratégias criadas para se livrarem dos serviços; ou seja, a imposição e a adaptação dos indígenas a essa lógica religiosa e cultural cristã. Portanto, os personagens, como diz o autor, obscurecidos na historiografia brasileira, são trazidos nesse capítulo para que compreendamos as transformações dos povos indígenas da região amazônica brasileira.
O terceiro capítulo, “Identidades indígenas no Nordeste”, de Mariana Albuquerque Dantas, aborda as transformações nas identidades e culturas dos povos indígenas habitantes da localidade compreendida hoje como Nordeste, precisamente da região de Pernambuco, a partir da formação dos aldeamentos ocorrida no século XIX. Esse capítulo nos põe em estado de reflexão para entendermos as origens dos discursos que são disseminados, até a atualidade, a respeito da “pureza” dos indígenas. A autora também aborda o surgimento dos “caboclos” (remanescente de indígenas, na concepção daqueles que compreendem que a identidade é algo estático e imutável), as relações dos povos indígenas com o surgimento de aldeamentos, além do processo de extinção das aldeias articuladas pelos discursos acerca da mestiçagem.
Dantas constrói o texto de maneira didática, com figuras, mapas e documentos históricos, o que facilita tanto o processo de entendimento do professor como o do leitor que tenha interesse na temática. Além disso, a autora traz problematizações envolvendo os discursos dominantes das autoridades que ocupavam cargos administrativos e a falta de produções documentais a partir da fala dos indígenas, elucidando que, para se analisar fontes do século XIX a respeito da participação indígena na construção da História, é necessário que o leitor/pesquisador tenha um posicionamento crítico. Nas sugestões de atividades há a utilização de vídeos e da Literatura para se comparar imagens construídas acerca dos indígenas (como a imagem idealizada presente em “O Guarani”, de José de Alencar, e a representação do povo mestiçado, considerado indolente e sem terra, contida no livro “O Caboclo”, de Estêvão Pinto), além de textos de apoio para os docentes.
Luisa Tombini Wittmann, organizadora do livro, é a autora do quarto capítulo “Relações interétnicas ao Sul”, que aborda histórias indígenas da região do Vale do Itajaí, localizado no estado de Santa Catarina. De escrita mais literária, o que possibilita uma leitura deveras agradável, a autora narra os “(des)encontros de dois mundos” – assim como a própria escreve – ocorridos entre o mundo dos indígenas Xokleng e o dos imigrantes europeus, majoritariamente alemães, que chegaram em Santa Catarina no século XIX. Além de informações sobre a criação de grupos denominados de “bugreiros”, destinados à caça de indígenas, o que mais chama atenção, no capítulo, é a reconstrução das histórias de crianças indígenas retiradas de seus núcleos de nascimento para viverem nas cidades com outras famílias não indígenas com o intuito de serem “civilizadas”. As histórias das irmãs Ana e Korikrã, duas indígenas Xokleng que foram retiradas do grupo para serem educadas com não indígenas (Ana recebeu o sobrenome alemão de Waldheim e foi viver junto às freiras no Colégio Sagrada Família e Korikrã foi adotada pela família Gensch) além de provocarem emoção no leitor, vêm a colaborar com a demonstração de como é incoerente ainda se dizer, no Brasil, que há “uma história indígena” (no singular), pois, as diversas etnias, os diversos povos, as diversas regiões brasileiras têm suas particularidades e suas diferentes histórias.
O último capítulo, escrito por Clovis Antonio Brighenti, “Movimento indígena no Brasil”, aborda, além do assunto já explícito no título, os desafios para a consecução dos movimentos indígenas – como as demarcações de terras; a legislação indigenista no Brasil; a criação de órgãos como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI); as assembleias organizadas por Chefes Indígenas; as repressões e os apoios; e as diversidades dos movimentos indígenas devido às variedades de povos indígenas no Brasil. Um dos pontos importantes do texto é a desmistificação, já no início, da ideia do “bom selvagem”, imbuída pelo pensamento europeu da época dos descobrimentos intramarinos (século XVI), demonstrando que os movimentos de resistências indígenas têm início no mesmo século, logo após a chegada dos portugueses.
O livro ainda possui, como anexo, uma série de “Materiais comentados sobre a temática indígena”, no qual a organizadora visa auxiliar professores e estudantes para as reflexões acerca dos indígenas no ambiente escolar. Os materiais são divididos em: sites, músicas, mapas e filmes – com links daqueles que estão disponíveis para o domínio público em sites de internet.
Como já assinalado no início desta resenha, além de cumprir o objetivo de compartilhar e gerar conhecimentos sobre a temática indígena, o livro vai mais à frente. Colabora com a desconstrução de clichês como “o bom selvagem”, mostrando as resistências e organizações indígenas surgidas a partir das próprias populações originárias; também favorece a desedificação de ideias que generalizam os povos indígenas, como se fossem todos iguais, evidenciando as diversas histórias e culturas presentes em várias regiões brasileiras; e põe em cheque a velha máxima de que esses povos estão desaparecendo, trazendo a tona reflexões acerca das identidades indígenas e das elaborações das mesmas.
A partir dos olhares de cinco pesquisadores, cada qual partindo da área de História, porém com diversas trajetórias acadêmicas e diferentes objetos de pesquisas, temos, neste livro, saberes que são essenciais para colaborar com a desconstrução de estereotipias sobre os indígenas e demonstrar algumas das produções da área de pesquisa intitulada Nova História Indígena. Compreendemos que, de tais povos, não há “história” no singular. Mas, há “histórias” no plural, há singularidades, há transformações, há lutas, há protagonismos, há presenças, há memórias, há sujeitos, há participantes da construção da História do Brasil, da constituição do povo brasileiro e da composição das diversas culturas que fazem parte de nosso país. Portanto, Ensino (d)e História Indígena é um livro necessário para brasileiros e brasileiras, sejam professores ou não.
Referências
BITTENCOURT, C. F. História das populações indígenas na escola: memórias e esquecimentos. In PEREIRA, A. A.; MONTEIRO, A. M. (Org.). Ensino de história e cultura afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
BRASIL. Lei nº 11.645. “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena’. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm> Acesso em: 13 de abril de 2014
______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF, 10 volumes, 1997.
FUNARI, P. P.; PIÑÓN, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto. 2011.
GRUPIONI, L. D. B. Imagens Contraditórias e Fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.77, n. l86, p. 409-437, maio/ago. 1996.
VARNHAGEN, F. A. de. História Geral do Brasil. Tomo 1. 5 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1953.
WITTMANN, L. T. (Org.). Ensino (d)e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
Nota
1 Na lei é denominado “história” e “cultura” no singular. Nós optamos por sempre referenciar a “histórias” e “culturas” indígenas por partirmos da concepção de que os povos indígenas são diversos e plurais, sendo inadequado generalizar e considerar que todos os povos são iguais e possuem apenas uma história e uma cultura.
Maria Cristina Floriano Bigeli – 1 Doutoranda UNESP – Assis. Professora UNESP – Marília.
Império Português em Perspectiva: Sociedade, Cultura e Administração (XVI-XIX) | Ars Historica | 2016
Para um pesquisador da história do império português é difícil imaginar um prazer maior do que fazer a apresentação de um dossiê de uma revista discente sobre o tema. E isso porque a própria existência desse dossiê é a comprovação cabal de como o estudo do “Mundo Português” se espraiou na academia, um quadro quase inimaginável há pouco mais de duas décadas atrás, quando surgiram os primeiros trabalhos realizados no Brasil. O próprio termo “império”, hoje absolutamente consolidado em nossa historiografia, foi por muito tempo objeto de questionamento.
Nesse número de Ars Histórica encontramos uma produção historiográfica extremamente diversificada, tanto em termos temáticos quanto geográficos e temporais, sinal inequívoco da vitalidade dessa área de pesquisa. Leia Mais
Terra, Memória e Poder / Revista Trilhas da História / 2016
A Revista Trilhas da História chega ao seu sexto volume contribuindo com a socialização do conhecimento cientifico e como periódico democrático, capaz de proporcionar o diálogo da História com outras disciplinas humanas.
A organização do Dossiê Terra, Memória e Poder é fruto de trabalhos livres e confeccionados, também, para o IX Ciclo de Palestras “Terra, Memória e Poder”, realizado em 2016, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. O Ciclo de Palestras teve como intuito proporcionar trocas de saberes entre comunidade interna e externa à universidade, explicitando o diálogo no fazer de práticas de ensino, pesquisa e extensão que contribuam para a compreensão das Ciências Humanas como fruto da ação humana no tempo e instrumento de transformação do meio em que vivemos. O tema “Terra, Memória e Poder” aponta para aos desafios de uma discussão em que, na tessitura de outras histórias, seja possível contemplar reflexões que ultrapassem os muros da academia chegando ao chão da terra e às memórias como constructo da história, assim como às tramas do poder em suas várias facetas, apontando para outros caminhos.
Assim, Gilmar Arruda, conferencista de abertura do IX Ciclo de Palestras, em seu artigo “Memórias e paisagens soterradas na transformação da natureza em terra” retrata a transformação da natureza em terra, englobando a participação de sujeitos sociais neste processo em que denotam a formação de uma memória coletiva. O autor também aborda as paisagens e memórias presentes que necessitam do aval público para aparecerem.
Cássia Queiroz da Silva, também participante do IX Ciclo de Palestras, nos apresenta a resistência de mulheres e homens pobres e livres em Sant’Anna do Paranahyba no século XIX. As fontes utilizadas pela autora são narrativas literárias, correspondências oficiais, livros de Coletoria e inventários referentes ao sul da província de Mato Grosso, no século XIX.
“Os Processos Crimes Como Fonte Histórica: Possibilidades e Usos Na Construção da História do Sul da Província de Mato Grosso” é o artigo de Rejane Trindade Rodrigues, também palestrante no IX Ciclo de Palestras. A autora defende os processos crime como fonte histórica capaz de analisar o Sul de Mato Grosso oitocentista. Para tanto, ela discorre sobre um vasto campo historiográfico que lhe proporciona fundamentação para firmar suas perspectivas, sobretudo quando afirma que os processos crime são fundamentais para compreender o cotidiano e o poder que envolve escravizados, libertos e pobre livres em Sant’Anna do Paranahyba.
Em “Colonização pela ‘pata da vaca’: apontamentos sobre ocupação, migração e precarização da mão de obra rural na Zona da Mata Rondoniense”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano e Kamonni de São Paulo examinam o processo de latifundiarização da terra e a precarização da mão de obra rural, sobretudo na Zona da Mata Rondoniense, no Estado de Rondônia. No texto, os autores analisam alguns programas do Estado, como a imigração estimulada por programas de assentamento; o Poloamazônia e o Plano de Desenvolvimento Nacional, que visavam o estimulo econômico para a diversificação da balança comercial regional.
Luiz Carlos Bento, palestrante do IX Ciclo de Palestras, em “História, memória e poder na história da historiografia brasileira” busca evidenciar como a questão nacional e os debates sobre a educação no país fundem-se no pensamento de Manoel Bomfim. O autor defende que os textos, substancialmente os ensaios históricos de Bomfim da década de 1920, dialogam criticamente com o projeto de escrita da história do Brasil produzido pelos institutos, colocando-se como uma antítese dessa cultura historiográfica.
Em “Energia elétrica, memória e poder: substratos para um debate necessário”, Andrey Minin Martin, palestrante no IX Ciclo, aborda o Complexo Hidroelétrico do Urubupungá e salienta que o setor hidroelétrico é rico em memórias, sobretudo quando se considerada o emaranhado de sujeitos, agentes e interventores, no público e privado, que formulam essas memórias, que também podem ser apropriadas e reelaboradas para a manutenção do poder.
Em “Perspectivas históricas: Adam Schaff e a pós-modernidade”, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva tem como intuito discutir dois conceitos basilares na construção do conhecimento histórico: verdade e subjetividade. Para tanto, o autor se utiliza das ideias defendidas por Adam Schaff para abarcar as discussões da cientificidade da história e o subjetivismo relativista dos presentistas, e o pósmodernismo como é compreendido por Perry Anderson.
A construção do Mal no medievo é abordada por Caio Alexandre Toledo de Faria na seção “ensaio de graduação”, no qual faz uma retomada das origens do Mal na Antiguidade Clássica e Oriental. Além disso, a forma como a Igreja impunha o medo para controlar as pessoas, sobretudo pelo imaginário coletivo, também é abordado no ensaio.
A resenha de Luan Gabriel Silveira Venturini convida o leitor a perceber a história de alguns movimentos de esquerda na luta armada contra a ditadura civil-militar brasileira. A entrevista com o historiador Paulo Roberto Cimó Queiroz, realizada pela equipe do PET-História, encerra este número.
Esperamos que este novo número da Revista agrade aos leitores e leitoras e que possam aproveitar os debates oferecidos pelos autores e autoras, evidenciando este periódico como espaço de discussões historiográficas.
Lembramos, por fim, que a revista está aberta ao recebimento de trabalhos em fluxo contínuo.
Boa leitura!
Eduardo Matheus de Souza Dianna
José Walter Cracco Junior
Vitor Wagner Neto de Oliveira
Três Lagoas-MS, outono de 2017
DIANNA, Eduardo Matheus de Souza; CRACCO JUNIOR, José Walter; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.11, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
Algumas reflexões Wittgensteintianas a partir do “Heidegger Urgente: introdução a um novo pensar”
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Algumas reflexões Wittgensteintianas a partir do “Heidegger Urgente: introdução a um novo pensar”. Editora Três Estrelas, 2013. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n.16, jul./dez. 2016.
O livro do Prof. Giacoia representa uma competente introdução à filosofia de Heidegger com a elucidação de conceitos-chave de sua filosofia como Dasein, Auseinadersetzung, Zuhandensein, Vorhandensein, Weltlichkeit, Erschlossenheit, Mitsei, dentre outros. A obra também explora, como se deveria esperar, as fases do pensamento Heiddegeriano, nomeadamente o assim chamado primeiro Heidegger e o Heidegger depois de sua Kehre.
Há também uma boa introdução a sua trajetória biográfica, inserindo momentos- chave em seu contexto filosófico e apontando a influência de outros autores centrais (como, Dilthey e Husserl) no desenvolvimento de alguns conceitos.
As confrontações com Nietzsche são particularmente pertinentes no horizonte da urgência de um novo pensar, ao se trabalhar conceitos com a vontade de poder, perspectivismo, eterno retorno e a associação da técnica com o niilismo.
A parte que se pretende original do livro me parece ser o confronto com temas contemporâneos, sobretudo com o desenvolvimento tecnológico enredado em “uma escalada compulsiva, em uma espiral infinita” (p. 10). Estas características de nossos dias atuais motiva grandemente, por um lado, um “delírio contemporâneo de onipotência (essencialmente moderno)” (p. 11) e, por outro lado, parece justificar a introdução de uma nova forma de pensar (p. 44 e p. 10 e 13).
Como ser filósofo e não refletir o seu tempo? Neste sentido, filosofia é sempre contemporânea de si mesma e dos problemas de sua época. Devemos, como bons contemporâneos de nós mesmos, pensar, auscultar nossa época, uma vez que não há fora de nossa contemporaneidade. Neste sentido, o livro do prof. Giacoia cumpre o papel de estimular discussões fascinantes e urgentes.
Não há nada de particularmente novo na seção “como ler Heidegger”. Se trata basicamente de instruções genéricas, que a meu ver, poderiam ser aplicadas também na leitura de outros grandes filósofos originais, a saber, método, zelo, paciência e empenho.
Em sua conclusão, o prof. Giacoia, em busca de um pensamento por vir, se remete mais uma vez ao porquê é urgente pensar com e a partir de Heidegger.
No que se segue, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre normatividade que poderiam motivar um diálogo também urgente entre Heidegger e Wittgenstein em nossa contemporaneidade. Em relação a Wittgenstein e Heidegger pouco se escreve e pouco se pensa. Isto deveria ser revertido, inclusive no Brasil, com a promoção de um diálogo mais rico entre estes dois autores e entre a divisão entre Continentais e Analíticos. A aproximação de Davidson dos hermeneutas, de Sellars a Kant, de Brandom a Hegel, mostra que o diálogo pode ser muito seminal.
Um ponto de comunidade filosoficamente relevante nas obras de Heidegger e Wittgenstein é o movimento de apontar erros da tradição. Algo que era auto- -evidente em determinadas escolas é abalado por suas críticas. Heidegger e Wittgenstein não estão só desenvolvendo novas críticas; eles estão solapando pressupostos de escolas que fundam nossa maneira de pensar e agir. Neste horizonte, a discussão de um fetichismo de nossa época em relação ao sucesso de ciências naturais motiva a crítica a teses positivistas de que a filosofia deveria ser uma ciência ou alguma atividade teórica contígua ao fazer científico. Giacoia trata desta questão, embora restrita a Heidegger, apontando o seu quietismo teórico e a postura de silêncio existencial como características centrais da resposta ao sentido da filosofia e à inserção do homem no mundo (p. 19, 68). Giacoia também associa de maneira muito forte, porque aparentemente exclusivista, a filosofia oriental com Heidegger (p.45). Ora, tanto o quietismo quanto a referência a escolas do oriente são pontos que marcam o pensamento de Wittgenstein também.
Wittgenstein, em seus debates com alguns membros do Círculo de Viena, no começo da década de 30, trouxe textos de poetas místicos indianos para a discussão para rejeitar alguns mau-entendimentos de sua obra de juventude.
Alguns membros do círculo de Viena a associam com um forte positivismo motivado pelo espírito cientificista. Com efeito, no Tractatus, o que não pode ser dito não é absurdo e descartado. É, pois, justamente o que tem mais valor e está para fora da linguagem e de um mundo radicalmente contingente, sem sentido e sem finalidade. Por outro lado, o ataque que Carnap faz a Heidegger me parece injusto e irresponsável, porque educou gerações de filósofos preocupados neste tipo de contenda ideológica entre analíticos e continentais e na mútua desqualificação de escolas aparentemente rivais. Heidegger e Wittgenstein, eles mesmos, parecem nunca ter demandado muito esforço para se inserirem neste tipo de discussão de bastidores da filosofia. Acredito que os dois são filósofos que se inserem na tradição da morte de Deus, anunciada por Nietsche: defendendo a recusa de qualquer elemento transcendente ou metafísico na base do mundo e de nossas atividades.
Interessantemente os dois filósofos nasceram na mesma época, tiveram grandes orientadores (Husserl e Russell), e devotaram suas primeiras obras na década de 20 a desenvolver alguns problemas a partir da metodologia de seus Doktorvaeter (consolidando a escola da fenomenologia, de um lado, e a da análise lógica, de outro lado). Além disso, ambos passam por uma Kehre no final da mesma década. Ambos desafiam a tradição metafísica explicitando o que nós já sabemos e sempre soubemos no uso de nossa linguagem ordinária e no tipo de acesso não problemático e corriqueiro que temos aos objetos que nos circundam. O mote filosófico do programa fenomenológico husserliano auf die Sachen selbst zuruckzuA gehen (p. 35) pode claramente ser visto no desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein também. A centralidade da linguagem e seus limites e a similitude entre os conceitos entre Lebenswelt e Lebensform também podem ser explorados.
Há uma característica filosoficamente relevante que perpassa boa parte da obra destes dois filósofos radicais, ao recusarmos maiores detalhamentos de estilo e método que fariam a aproximação impossível. Ambos os filósofos parecem defender, de maneiras diferentes, que o fundamento das coisas não tem fundamento.
Todo fundamento é situado, contextual e radicalmente humano. A partir da compreensão profunda de nossa finitude, tudo em nossa volta, nossas práticas, nosso conhecimento, nosso mundo, deveria refletir isto.
Aqui poderíamos defender que há um ataque direto ao fundamentalismo filosófico que marca tantas escolas filosóficas ao longo da história e da nossa cultura.
Nós não podemos argumentar do que é e do como pensar, em suas essências últimas e racionais, porque o raciocínio já pressupõe certas respostas a estas perguntas e conceitos que organizam nosso discurso e experiência. De toda forma, acredito que ambos os filósofos não acreditam que esta falta de razão última ou justificação definitiva para a linguagem e o mundo não tira do pensar a sua validade ou legitimidade, mas ao contrário: a falta de fundamento último mostra como alguns fatores centrais em nossas atividades devem ser tomados como fundamentos sem fundamentos.
A discussão sobre a possibilidade do não ser, a temporalidade, a facticidade, a contingência, a finitude, e a falta de fundamento podem ser aproximadas entre os dois autores. Além disso, até mesmo a idéia de abertura e o ser como abertura e vazio poderia ser seminalmente usada em pesquisas filosóficas acerca da obra de Wittgenstein, porque linguagem para ele parece necessariamente residir sobre não-racionalidade e, no limite, em fatores que são injustificados e injustificáveis como a nossa socialização e nossa particular suscetibilidade a socialização. Nos lembremos que as Investigações Filosóficas, por exemplo, são abertas por uma crítica contundente de Wittgenstein a imagem de aprendizado de nomes como descrita por Agostinho que aponta acordos tácitos complicados na base de nossas referências triviais a coisas no mundo. Além disso, tomemos a importância do contexto pedagógico no Sobre a certeza (SC) que apresenta a assim chamada epistemologia de Wittgenstein. Com frequência, a discussão se remete à pergunta de como uma criança aprende coisas que permanecem (e devem permanecer) intocáveis ou indubitáveis. (SC §144, 233, 374) Wittgenstein sugere que uma criança deve primeiro poder confiar, antes de duvidar (SC §160, 480). Aprende-se com a linguagem o que permanece imune à investigação e ao que pode ser investigado (SC §472). Se crianças em seu processo de inserção em práticas duvidarem imediatamente do que está sendo ensinado, elas não serão capazes de aprender alguns jogos de linguagem (SC §283).
Talvez pudéssemos usar jargão Heideggeriano aqui. A criança deve estar aberta para ser inserida ou introduzida em uma prática. Depois da inserção, a relação entre uma imagem de mundo e aprendizado infantil parece ficar evidente (SC §167). Neste sentido, tentar fundar a certeza do conhecimento, como faz Moore em alguns de seus trabalhos (1974, 1974a), com o emprego do operador epistêmico “eu sei” prefixando várias proposições, segundo ele indubitáveis, seria ilegítimo. O contexto de educação parece ser paradigmático e decisivo para Wittgenstein, funcionando até mesmo como metodologia filosófica ao sugerir para nos perguntarmos em casos de certeza indubitável como uma criança as aprende. (SC §581). Curiosamente a ausência de dúvida em algum ponto é fundamental para o entendimento de nossa lógica e aritmética. Nestas práticas não precisamos de acordo com o mundo, mas com outros indivíduos de nossa comunidade, ou com a humanidade (SC §156, 281).
Analogamente, Heidegger acusa a metafísica tradicional de focar exclusivamente nos objetos a mão, ou seja, em algumas entidades que não se mudam e não são afetadas em seus contornos. Fundar características invariantes em nossas praticas e acordos e não em elementos transcendentes, é dar um fundo objetivo e estável, mas sem fundamento definitivo, a práticas cognitivas do homem, como ciências, lógica e matemática.
É claro que a crise dos fundamentos das ciências, incluindo fundamentos da matemática e da lógica que motivam a emergência de lógicas não-clássicas e abordagens variadas de anti-realismo no século XX, representa uma crise da racionalidade.
Isto motiva grandemente a defesa de uma nova noção de razão mais apropriada para nossa finitude. Para tanto, deveríamos enfatizar o fator humano, social e histórico no próprio desenvolvimentos de nossas atividades científicas.
A partir daqui eu gostaria de me concentrar no papel que a noção de Maßstab, em especial, poderia desempenhar na aproximação da filosofia dos dois filósofos em um novo pensar urgente.
Vale destacar que a polissemia da palavra em alemão é grande. Ela é discutida em diferentes contextos e tem diferentes usos, tais quais, instrumento (régua), metragem, sistema de coordenadas, escalas, critério (“Hast du einen Maßstab dafür?”), um cânon, um paradigma, um padrão ou Vorbild (“Bach ist der Maßstab der Musik!”), objeto de comparação ou protótipo (“Wir setzen Maßstäbe!”), regras e normas (“Welche sind die Maßstäbe für die Behandlung von Tiere hier?”), dentre outras acepções.
Inspirado por reflexões de Heidegger e Wittgenstein, gostaria de destacar o papel humano e normativo de Maßstaebe em nossas práticas na fundação desta nova racionalidade da finitude. Elas são objetos pelos quais nós avaliamos a qualidade de alguns procedimentos e descrições. O objeto de comparação não pode, ele mesmo, ser verdadeiro ou falso, mas ele determina como avaliamos coisas como verdadeiras ou falsas. Desvios e/ou contraexemplos não são falsos, são confusos e/ou absurdos (Unsinn).
Algumas teses podem ser elencadas no desenvolvimento da filosofia de Wittgenstein a partir de 1930 que se conformam grandemente à filosofia Heideggeriana. Acredito que originalmente Wittgenstein percebe que não existe uma Maßstab natural. Um sistema de coordenadas, uma escala, ou um sistema de medida não é algo psicológico e nem físico e tampouco fundado em um espaço lógico eterno compartilhado entre linguagem e mundo. A alternativa para este dilema é justamente a natureza social, impessoal e histórica da introdução destes sistemas para que possamos avaliar a qualidade das nossas descrições do mundo e de nossas atividades. Não há critério subjetivo, mas também não há critério absoluto.
Este elemento normativo, qual seja, da possibilidade de correção de práticas e atos a partir de Maßstaebe pode ser o fio condutor para se restaurar a correlação entre racionalidade, lógica e ética nesta racionalidade da finitude, uma vez que todas são fundamentalmente constituídas em relação com elementos deontológicos como obrigação, comprometimento e dever, ou seja, são compostas a partir do reconhecimento de normas. Normas e regras são objetivas e gerais, embora não absolutas ou universais. São estáveis, mas não definitivas. Escalas devem ser estipuladas, introduzidas, estabelecidas. Não há medidas no mundo independente de nossas práticas.
Uma forma radical de convencionalismo não é consequência desta abordagem: não se trata aqui que poderia haver quaisquer regras postuladas, porque regras devem apresentar um sucesso pragmático para uma determinada finalidade inserida em uma Lebensform. Elas não são convencionais, porque são frutos de uma assembléia, mas porque poderiam ser outras e dependem da estabilidade de certos acordos tácitos em nossas práticas. Não é que tudo valha, se tudo for humano demasiado humano. Devemos entender que a importância e liberdade do indivíduo decresce na medida em que aumenta o número de praticantes. A aceitabilidade de Maßstaebe pressupõe regularidades sociais em uma comunidade.
Isto claramente também está relacionada com a emergência de figuras de autoridade pública, política e de seus efeitos perlocutórios em uma comunidade, seja na figura de pais em núcleos familiares, do educador de jovens em ambientes pedagógicos, de um líder em práticas políticas mais sofisticadas ou de um cientista (ou mago) com grande prestígio em sua comunidade.
Em todos estes casos de aprendizado, introdução e aplicação de escalas é essencial destacarmos o papel normativo envolvido. A aplicação tem que poder ser controlada, regulada e corrigida. O problema aqui não é a possibilidade do falso como na tradição plantonista e realista, mas a possibilidade da correção. A possibilidade de eliminar erros é central. Deve haver, então, um deslocamento da linguagem pensada como composta de entidades objetivas que identificam condições de verdade para os atos e compreensões práticas da aplicação de regras constitutivas de significados linguísticos.
Em um sentido filosoficamente relevante, estas escalas que constituem nossos sistemas linguísticos, lógicos e matemáticos não descrevem nada, mas são usadas para avaliarmos nossas descrições, ou seja, elas não podem ser nem verdadeiras e nem falsas. Elas são o critério pelo qual nos avaliamos a verdade ou falsidade de determinadas descrições. Um critério é usado para avaliar uma descrição; mas ele mesmo não é uma descrição. Para avaliarmos este critério não podemos usá-lo, mas temos que evocar um outro critério. E para avaliar este outro critério, um outro e assim por diante. Nenhum deles precisa representar nada, nem uma gramática profunda e nem um domínio independente de entidades supranaturais.
Divergências radicais de nossos critérios e paradigmas de avaliação não são falsas; são incompreensíveis ou plenos erros. No limite, serão consideradas devaneios.
Podemos avançar mais um pouco nossas especulações normativas, com as seguintes questões: Se adotarmos, para fim de argumento, a teoria da verdade por correspondência, teremos uma descrição correspondente à realidade, se for ver dadeira. Contudo, como a descrição ou proposição corresponde à realidade? Como se testa uma descrição? Com quais critérios nós verificamos a verdade de um juízo ou este concordar com a realidade? O que vai ditar a prioridade de um critério em relação a outro? Em caso de conflito de evidência, como determinamos qual evidencia é mais relevante? O que vai determinar qual é o critério ou escala mais relevante? Adequação com os dados, a simplicidade, a consistência, o poder unificador da explicação, a recusa de elementos ad hoc, computabilidade, eficiência, efetividade, necessidade social de uma época? Aqui um aspecto existencial e pragmaticamente importante toma lugar, a saber, a decisão tomada por indivíduos engajados em determinadas práticas públicas.
É importante notar que em um ambiente de conflito temos que fornecer instruções para se testar nossas afirmações (SC § 641). Nestes casos, como em muitos ambientes teóricos, precisamos mais de acordo com outras pessoas, nossos Mitmenschen, que com fatos.
Nós não estabelecemos fatos, nós estabelecemos os critérios pelos quais descrições dos fatos são avaliadas. Nesta visão revisitada da racionalidade, marcada pela finitude e pela normatividade, nós somos ligados pelas nossas normas e pelos compromissos de nosso discurso e nossos atos. Nós somos racionalmente integrados pelos nossos compromissos disciplinados por normas e pelos atos pelos quais somos responsáveis. Aqui o papel que o uso, o costume e as instituições desempenham nesta concepção normativa da racionalidade é evidente.
Relevantemente, precisamos de um ambiente de instrução, de estar com o outro. Onde uns confiam em outros e onde haja autoridades reconhecidas. Em práticas sociais, um indivíduo tem que ser reconhecido pelos que ele reconhece.
Em outras palavras, deve haver um reconhecimento recíproco na base desta racionalidade normativa. Neste horizonte, é fascinante também nos perguntarmos como autoridades são constituídas? São autoridades porque elas sempre acertam? Ou porque elas definem o que é um acerto? Elas parecem ser tornar objetos de referência, porque influenciam as práticas onde critérios são estabelecidos. Elas são autoridades, porque instituem critérios novos ou instituem critérios novos porque são autoridades? Com esta curta resenha ao intrigante livro do Prof. Giacoia espero ter mostrado como se pode promover a aproximação entre Heidegger e Wittgenstein nesta rearticulação da razão pela finitude do ser humano, na precariedade de nossas práticas, fundando a objetividade nas normas publicas estáveis, mas não definitivas, de comunidades.
Pensar os dois filósofos, Heidegger e Wittgenstein, em conjunto e não isoladamente é urgente para a introdução de um novo pensar.
Referências
MOORE, G. E. Uma Defesa do Senso Comum. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Coleção os Pensadores).
______. Prova de um mundo Exterior. São Paulo: Abril Cultural, 1974a. (Coleção os Pensadores).
WITTGENSTEIN, Ludwig. TractatusLogico-philosophicus. Tagebücher 1914-16. Philosophische Untersuchungen.Werkausgabe Band 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.
______. Some Remarks on Logical Form. Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary Volumes, v. 9, Knowledge, Experience and Realism, p. 162-171 Published by: Blackwell Publishing on behalf of The Aristotelian Society, 1929.
______. Philosophical Investigations. Translated by G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1953.
______. On Certainty. Edição bilíngue. G. H. von Wright & G. E. Anscombe (Orgs.). Londres: Basil Blackwell, 1969.
______. Wittgenstein und der Wiener Kreis (1929-1932). Werkausgabe Band 3. Frankfurt amMain: Suhrkamp, 1984.
Marcos Silva – Pós-doutorando em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC)/CAPES-PNPD. E-mail: marcossilva@gmail.com
Religião, migração e cultura. Imagens da fé / Domínios da Imagem / 2016
Com o termo bastante genérico de “religião”, costuma-se circunscrever um âmbito particular da vida social, feito de crenças míticas, práticas rituais, comunidades de fé e, sobretudo, da experiência do sagrado. Os cientistas humanos, definindo um “fenómeno religioso” como constituído pelos epifenômenos sobreditos, colocaram as bases para uma análise comparada de crenças e práticas culturalmente heterogêneas e geograficamente distantes, identificando, deste modo, um tipo cultural universalmente presente.
Frequentemente, nas descrições dos etnógrafos, a vida religiosa tem sido envelopada pelo ordinário, sendo associada a visões cosmológicas, instituições políticas, categorias identitárias e posturas éticas estáticas ou, pelo menos, homeostáticas. A primeira vista, efetivamente, o diálogo iconográfico aqui proposto, entre religião e mobilidade humana, poderia parecer anómalo, dirigido ao estudo de uma situação extraordinária: a vivência, por exemplo, dos migrantes, dominada pela experiência desconcertante da multiculturalidade. Os protagonistas da maioria dos casos apresentados neste dossiê se encontraram na situação desconfortável de aplicar os próprios “saberes” religiosos a novos contextos; frequentemente, pouco permeados por eles. Em outros casos, o sentido desta relação se inverterá e encontraremos convertidos que tentarão aplicar novos “saberes” religiosos aos seus antigos contextos.
Entretanto – como poderemos apreciar por meio de todos esses trabalhos – é justamente nos contextos de mobilidade e mudança que se revelam com mais claridade as implicações socioculturais das práticas religiosas. Isto porque a relação dos migrantes e dos convertidos com a religião não é a de crentes com uma cosmovisão imutável, etnicamente conotada, nem com uma ordem de preceitos morais, emanação natural das categorias sociais que regem um grupo determinado. A relação destes crentes errantes, fisicamente ou culturalmente, é a de animais simbólicos penetrando situações carentes de sentido com um modo particular de “pensar”, o mitológico.
Por meio do discurso mítico, os crentes, todos, produzem relações de sentido entre os acontecimentos contingentes que vivem e um universo significante que tende sempre a transcendê-los. A história mítica não informa por si mesma, não contém uma verdade absoluta, encapsulada nela; ela adquire valor, ante os olhos dos crentes, somente se demostra-se apta a permear sua história, transformando-a. Os significados extraídos das expressões religiosas, como as imagens aqui analisadas, não são dados, mas constituem o produto de uma síntese simbólica que define, contextualmente, história humana e história mítica – duas realidades que se definem reciprocamente, fusionando-se em um único objeto simbólico, denominado “mito”. O mito faz sentido enquanto proporciona sentido a uma realidade concreta, e vice-versa.
Esta visão simbólica do mito, presente em todos os textos que compõem o dossiê, leva-nos a uma concepção dinâmica e dialética de uma vida religiosa que, analiticamente, não pode ser nunca desvinculada de sua referência prática e histórica. O crente não sofre passivamente o mito, mas interage com ele e com suas representações materiais, utilizando-o como uma articulação simbólica por meio da qual ligar, semioticamente, a sua contingência a um determinado universo significante. O fenômeno religioso, portanto, adquire relevância analítica, além de significância cosmológica, quando apreciado dentro destes processos culturais de construção social da realidade. Neste sentido, o objeto de estudo religioso se oferece tanto a uma abordagem antropológica, como à historiográfica – especialmente, a um enfoque que integre ferramentas, questões e sensibilidades de ambas estas áreas do conhecimento. Não é por acaso que história e antropologia representam as vozes dominantes deste dossiê interdisciplinar.
As diferentes imagens religiosas analisadas no presente dossiê têm algo em comum: todas elas materializam aquela espécie de istmo cognitivo que, segundo Lewis (2008, p. 56), representaria o mito, com a sua capacidade de conectar a península do pensamento humano (e das suas verdades abstratas) ao vasto continente que habita (por meio de uma experiência direta, sempre ligada ao particular). Se o mito dialoga sempre com situações particulares e vividas diretamente, incorporando-as nas próprias formas simbólicas (SAHLINS, 1990), parece redutivo considerar os contextos de mobilidade como anómalos, cenários de experiências religiosas extraordinárias. Pelo contrário, os textos deste dossiê nos mostram que a vida religiosa dos migrantes e dos convertidos pode representar também um observatório privilegiado para estudar e entender a experiência religiosa ordinária. A prática religiosa é sempre um ato parcialmente criativo, representando uma imparável atividade imaginativa, dirigida à construção de imagens sensatas de uma realidade intrinsecamente instável e mutável.
Estas complexas imagens cosmológicas, sempre in fieri, são frequentemente contidas em, veiculadas por, e manipuladas através de imagens materiais. Refiro-me, em particular, às representações vivificadas das entidades e forças míticas, expressões de uma linguagem metafórica e analógica, isto é, simbólica. As transcendências dos fatos religiosos, as contingências dos fatos humanos e as imagens míticas em que primeiras e segundas encontram-se e sintetizam-se constituem os três pilares deste dossiê; o “trípode délfico” do qual os filhos do homem que não têm “onde reclinar a cabeça” (Lucas, 9,58) extraem suas próprias respostas. A indissociabilidade destes três pilares da vida religiosa atravessa todos os textos que compõem este dossiê.
No texto do historiador Paulo Augusto Tamanini, este trípode assume as formas hieráticas, preciosamente estilizadas, das Nossas Senhoras da iconografia bizantina da comunidade ucraniana de Curitiba. Nem sequer a tradição milenar e os cânones antinaturalistas que dominam esta expressividade religiosa podem encurralar os crentes no domínio da abstração sobrenatural, pois inclusive as suas formas “desmaterializadas” revelam-se sensíveis ao ambiente que as circunda. Tamanini descreve o ícone bizantino dos curitibanos como uma “obra pictórica que ainda está em andamento”. No entanto, de certo modo, esta nunca chega a cumprimento, como pode revelar uma análise historiográfica desta arte imagética, cujas formas, sendo reproduzidas, acabam integrando elementos novos, próprios do lugar, lato sensu, em que o ícone está inserido.
O processo de produção destas imagens representa, para Tamanini, o momento crucial desta maneira expressiva religiosa. As orações, os jejuns, os momentos de contemplação que precedem a feitura de um ícone levam os seus artífices a um novo encontro, localizado, com a divindade e com as suas verdades. A encarnação de Deus no ventre de Maria, representada no ícone da Virgem Orante, não se limita a celebrar o tempo mítico em que o humano e o divino se uniram, senão que convida artífices e devotos da imagem a viver novamente esta união, partindo da própria humanidade e da própria história. Neste sentido, é bastante significativo que em outro ícone aparece a imagem de Maria Odigitura, isto é, daquela que mostra o caminho. Do mesmo modo que a catedral curitubense de São Demétrio dialoga com os novos elementos do panorama urbano que a circunda, os ícones que esta contém abrem-se necessariamente às interpretações e às manipulações físicas e simbólicas de uma humanidade em movimento.
Também no artigo de Daniel Luciano Gevehr e Aline Nandi, as imagens sacras – ocultadas, no texto, pelas quatro pequenas casinhas de santos da comunidade ítalo-riograndense da Boa Esperança que as guardam – mediam as relações entre cosmologia religiosa e espaço físico. Foi graças à instalação, neles, de estátuas de santos católicos, que os sobreditos capitéis – construídos entre 1945 e 1960 pela chamada “segunda geração” – tornaram-se centros sagrados de refundação cosmológica da realidade. São centros periféricos, de tipo familiar, que, dialogando entre eles e com o centro principal da igreja matriz (dedicada à, também italiana, Nossa Senhora de Caravaggio), constituíam coordenadas geográficas importantes, através das quais mapear geograficamente e culturalmente espaços ainda novos e enigmáticos. Por meio destes oratórios, localizados nas margens das estradas da colônia, aqueles católicos italianos estabeleciam uma relação dotada de sentido com um mundo e uma vida novos.
Na imagem do santo familiar, os Boniatti, os Scalcon, os Taufer, os Cambruzzi e os outros moradores de aquelas localidades rurais encontravam um caminho para religar a região existencial das próprias situações críticas ao plano transcendente das soluções míticas. Esta ligação era ativada por meio das promessas, com os seus pedidos e os seus pagamentos. Gevehr e Nandi nos informam que na atualidade estes lugares da devoção desempenham uma função um pouco diferente, tendo sido ressignificados pelas gerações posteriores. Parece, efetivamente, que os capitéis e os seus santos moradores afastaram-se dos grandes e pequenos casos do dia a dia, para tornar-se instrumentos de uma memória coletiva que é cultivada e atualizada declinando, conjuntamente, identidade religiosa e identidade étnico-nacional. Os capitéis da Boa Esperança estão transformando-se: de lugares de oposição mitológica às doenças, às calamidades naturais e a toda adversidade, a lugar de reafirmação de uma identidade, a católicoitaliana, que se redescobre a medida em que se afasta de si mesma – passando do domínio dos atos naturais e inconscientes da cultura viva ao das tradições transmitidas e comemoradas do folclore.
As imagens católicas de um coletivo migrante estão no centro também da contribuição de Sidney Antônio da Silva, antropólogo que estuda há anos a migração boliviana em São Paulo. No texto de Silva, analogamente ao visto nos primeiros dois artigos, as imagens católicas deste coletivo nacional destacam-se pela sua capacidade de representar um centro de agregação étnico, embora transnacional, dentro de um espaço estranho. De fato, nos lugares paulistanos aonde chegaram a Virgem de Copacabana e a Virgem de Urkupiña, além de aparecerem pratos nacionais, produtos típicos daquela região andina e objetos e costumes étnicos, afirmou-se um modo particular de criar sentimentos comunitários e de tecer redes de solidariedade. Silva nos mostra como a imagem sagrada boliviana, por meio da instituição cerimonial do Presterío e do dobro principio de reciprocidade que a rege – o, vertical, que governa as relações entre devoto e divindade e o, horizontal, que sustenta a comunidade de devotos –, continua representando, em terras brasileiras, um importante centro de construção social da realidade.
A festa, em particular, representaria o “fato social total” (MAUSS, 1974) que, por meio daquele poderoso símbolo identitário que é a Virgem regional, agrega, aglutina, organiza e recompõe as humanidades desfiadas e fragmentadas pela contingência migratória. Aqui também, a Virgem não constitui um elemento étnico inerte. Pelo contrário, como simboliza bem o costume para-litúrgico dos cargamentos, ela – ao igual que o Ekeko, seu concorrente/colega “pagão”, na festa de alasitas – carrega-se periodicamente dos novos desejos dos seus devotos, socializando-os e significando-os. Silva conta-nos como foi, justamente, a aspiração da senhora Juanita Trigo de comprar uma casa o que, no final dos anos ’80 do século passado, deu início ao ciclo de festas devocionais na comunidade boliviana de São Paulo.
O antropólogo italiano Riccardo Cruzzolin, em seu artigo, partindo da ideia de iconografia religiosa como espaço cultural e político de imaginação da realidade, analisa o culto que o coletivo peruano de Perúgia (Itália) rende ao limenho Señor de los Milagros. Uma das caraterísticas principais deste espaço é, segundo Cruzzolin, remeter a um imaginário que não é nunca fechado, nem invariável, e que, sobretudo, não leva jamais a visões unânimes da realidade. Pelo contrário, a imagem religiosa desperta e veicula percursos imaginativos diferentes e, frequentemente, discordantes. Isto porque a imagem, embora aspire a evocar mitos atemporais, princípios universais e verdades transcendentes, não se libera nunca dos referentes práticos e imanentes dos que a ela se dirigem. A imaginação religiosa, a despeito da sua natureza social, é sempre parcialmente faciosa. Consequentemente, a imagem religiosa, com o seu poder imagético politicamente legitimador, representa sempre um espaço em certa medida contendido. A imagem, pintada no século XVII, deste Cristo crucificado pode ser sempre cuidada, adornada e enriquecida de objetos que a tornam mais preciosa; e, certamente, preenchida pelas instâncias particulares dos autores destes gestos devocionais.
A imagem do Señor de los Milagros, depois de ter resistido aos terríveis terremotos que sacudiram Lima, parece aguentar também as turbulências da vicissitude migratória; representando para os peruanos perugini o mesmo que representou para os seus primeiros devotos ameríndios e africanos: uma poderosa forma simbólica por meio da qual construir imagens coerentes da realidade vivida, com todas as suas contradições. A imagem é usada pelos seus cargadores emigrados para reconstruir aquela presenza demartiniana (DE MARTINO, 1958) – o Ser-aí-no-mundo heideggeriano – que, embora seja expressada sempre culturalmente, radica-se nas questões existenciais mais profundas do indivíduo; sendo, por isto, constantemente posta em risco pelas incertezas das situações contingentes vividas, como as produzidas pela experiência migratória.
O texto da antropóloga Joana Bahia põe luz a outras duas questões importantes, inerentes ao fenômeno religioso: o seu caráter intrinsecamente transnacional e a inevitável mitificação – entendida como aquisição de qualidades míticas – daqueles seres humanos, normalmente sacerdotes (lato sensu), que se aproximam muito ao mito e à sua essência sagrada, tornando-se eles mesmos efígies do universo religioso. Com respeito à primeira questão, Bahia analisa a expansão da umbanda e do candomblé em terras alemãs, austríacas e suíças. Em particular, o foco do seu estudo é representado pela relação extremamente dinâmica e fluida que, neste cenário (des)localizado das crenças afro-brasileiras, dá-se entre campo étnico e campo religioso. Em todos os terreiros analisados por Bahia na Suíça e na Alemanha, emerge a grande capacidade das religiões afro-brasileiras de dialogar, simultaneamente, com diferentes contextos étnicos e culturais, incorporando-os e deixando-se incorporar por eles.
Tais diálogos e outras relações entre estados, planos e universos diferentes são interpretados, principalmente, pelos pais e as mães de santo ativos em terras alemãs. Por meio de uma leitura mítica das respetivas trajetórias migratórias, existenciais e espirituais, eles tornaram-se formas vivas de um universo significante e, consequentemente, como nos diz Bahia, viraram “construtores de histórias e ideologias sobre o grupo”. As narrativas autobiográficas da “suíça” Mãe Habiba, e dos berlinenses Mãe Dalva e Pai Murah confundem-se continuamente com as histórias míticas dos terreiros que dirigem. Em um tipo de tradição religiosa fortemente ritualista e que funciona pelo princípio da incorporação – que vai bem além do transe mediúnico –, estes personagens desempenham um importante papel simbólico, veiculando com o próprio corpo processos de construção mítica da realidade. Eles transformam-se, de facto, em imagens religiosas vivas, capazes de evocar imaginários coletivos e de impulsar processos imagéticos.
A possibilidade do ser humano encarnar o mito é tão concreta no artigo do historiador Alexandre Karsburg, que se transforma no principal obstáculo da sua pesquisa historiográfica. Karsburg desloca-se de um lugar para outro do planalto meridional do Brasil, para seguir o rastro do venerado monge João Maria. Em particular, ele está interessado em desvendar as pessoas reais que, entre meados do século XIX e o início do século XX, foram identificadas com ele; a começar do primeiro destes estranhos personagens, o italiano João Maria de Agostini. Seguindo diferentes percursos historiográficos, alguns dos quais pouco frequentados, Karsburg reconstrói com certa precisão o itinerário deste primeiro monge andarilho. Embora a vicissitude analisada neste texto comece com um movimento “migratório”, a relação aqui descrita entre religião e mobilidade é atípica e inversa à que costumamos encontrar: o deslocamento deste “monge” não constitui uma incômoda condição a ser resolvida miticamente, mas, pelo contrário, um caminho místico regenerador, por meio do qual sair dos pântanos mortíferos da vida mundana.
Curiosamente, o “desaparecimento”, em 1852, do homem João Maria coincide com a afirmação do seu mito, interpretado por uma quantidade indefinida de andarilhos penitentes percorrendo o extenso território sulino desde 1855. O texto de Karsburg ajuda-nos a entender que quando um homem aproxima-se demais do mito, tentando permanecer dentro do seu âmbito sagrado e procurando viver conforme seu modelo, ele mesmo torna-se uma imagem vivente da realidade mítica. A trajetória brasileira (documentada) de Giovanni Maria de Agostini é relativamente curta, durando menos de um decênio. Contudo, desde o começo, pelo seu estilo de vida hierático e solitário, inspirado na figura de Santo Antão Abade, o Anacoreta, ele chamou a atenção dos que cruzavam o seu misterioso caminho, excitando a imaginação deles e transformando-se em um modelo a seguir. Na medida em que lhe eram reconhecidos atributos míticos, construía-se um lugar da imaginação mitológica, ao passo que os confins espaciais, temporais e até mesmo somáticos da sua trajetória existencial ofuscavam-se e dilatavam-se; para receber e englobar, como um rio com os seus afluentes, as peregrinações de dezenas de outros “monges” – como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho (que participou da Guerra do Contestado) – que procuraram imitarlhe a vida penitente e de rejeição dos valores mundanos. Também estes últimos, fundindo-se com o primeiro e com o imaginário por este inaugurado, de imitadores viraram imitados, imagens vivas de um “pensamento”, o mítico, que, como sabemos, é homeopático e contaminante por definição.
Também no texto da antropóloga Maria Raquel da Cruz Duran, a questão da mobilidade na experiência religiosa não está diretamente relacionada ao fenômeno migratório, mas a um processo de evangelização, pelo qual estão passando os membros de um povo indígena do Mato Grosso do Sul. Quando, nos anos ’60 do século passado, um missionário evangélico alemão chegou a Alves de Barros, “capital” dos Kadiwéu, encontrou um povo cuja vida religiosa fundamentava-se em uma mistura de pajelança e catolicismo popular, vivido essencialmente por meio do culto às imagens. A autora analisa, por meio de um emblemático depoimento, como a entrada exitosa dos protestantes na vida deste povo mudou a percepção dos seus membros para com as imagens sacras.
Duran explica-nos como a devoção da sua interlocutora baseava-se na percepção de uma coincidência ontológica entre uma entidade divina, real e um sentimento piedoso, radicado no mais fundo do seu ser. Tal devota teria tomado consciência dessa duplicidade justamente quando experimentou a sua ruptura: “descobrindo” que aquela suposta entidade real era um pedaço de madeira esculpido por homens e que o próprio sentimento religioso era sustentado por uma ilusão. Este “descobrimento”, evidentemente, foi propiciado pelo discurso iconoclasta protestante e pela sua desmitificação das representações iconográficas como lugar de encontro com a divindade. Contudo, paradoxalmente, a rejeição das imagens católicas, no depoimento recolhido pela autora, corresponde também a uma demonização das mesmas, isto é, à sua revitalização, embora em chave demoníaca.
O último texto representa uma contribuição minha, de caráter antropológico, dirigida à compreensão da natureza do poder sedutor que as imagens religiosas exercem sobre os seus devotos. Especificamente, interesso-me em compreender qual é a força que, cada fim de semana, leva dezenas de equatorianos a deslocar-se de diferentes distritos de Nova Iorque e, inclusive, de outros estados contíguos, para a igreja de Saint Veronica, no Lower Manhattan. O fato de que lá é guardada uma imagem da Virgen del Quinche – muito venerada no norte do pais andino – poderia sugerir uma resposta que aponte para um processo de “retribalização” em terras estrangeiras. Contudo, a opção da compreensão daquela imagem como mero símbolo étnico, ao qual os equatorianos locais acorreriam para não esquecer quem são, representa um atalho que, apesar de ser extremamente cómodo e atraente, afasta-nos de um entendimento mais profundo do fenômeno observado.
Certamente, os quitenhos de Nova Iorque que se dirigem a Saint Veronica fazem-no porque vivem um sentimento de proximidade com a Nossa Senhora lá representada. Entretanto, essa proximidade não é de um tipo transcendente ou essencial – como normalmente é entendida a étnica –, mas apresenta um forte caráter contextual e experiencial. Eles consideram e veneram aquela Virgen porque por meio dela veem – no sentido cognitivo do termo – a própria história e a própria vida. Em particular, ao longo deste texto, tento demostrar como a capacidade sedutora desta imagem deriva do seu grande poder simbólico. Este poder, por sua vez, repousa sobre a síntese de duas propriedades fundamentais, que os devotos reconhecem nela: a de representar a história mítica e as categorias culturais que esta veicula; a de fazer novamente presente, nas próprias histórias, a entidade mítica e o universo de sentido ao qual ela dá acesso. Os equatorianos que, todos os domingos, atravessam Nova Iorque para alcançar Saint Veronica e o tesouro devocional que esta contém, não o fazem porque lá encontram representações culturais e estruturas sociais determinadas a priori pelo gênio étnico, mas porque lá encontram as ferramentas simbólicas para construí-las dia após dia.
Além dos textos que compõem o dossiê, este número conta com o artigo da sociológa Iael de Souza que, a partir da análise do filme “Entre les murs” (do diretor Laurent Cantet, de 2008) como recurso mimético, busca compreender os problemas educacionais enquanto manifestações da totalidade das relações sociais e de produção capitalista. Assim, para Souza, “entre os muros” de uma escola pública parisiense pode ir além dos muros, pois é reflexo estético dos problemas sociais enfrentados pela sociedade atual.
Por fim, temos o artigo do historiador Gustavo Silva de Moura que discute as relações entre a juventude e a sociedade, analisando como se dá sua composição social e cultural na “cena” Rock/Metal de Parnaíba-Piauí. Dessa forma, Moura aborda a importância das mídias (rádio, televisão, jornais, revistas), na propagação do Rock e Heavy Metal na cidade de Parnaíba-PI, nas décadas de 1980 e 1990, considerando a visão da sociedade sobre essa nova prática que estava em ascensão no Brasil e em várias localidades do Nordeste.
Referências
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Editora Paulus, 2003.
DE MARTINO, Ernesto. Morte e pianto rituale nel mondo antico: dal lamento pagano al pianto di Maria. Torino: Boringhieri, 1958.
LEWIS, Clive Staples. Dios en banquillo. Madrid: Rialp, 2008.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. V. I e II. São Paulo: EPU-EDUSP, 1974.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
Francesco Romizi
ROMIZI, Francesco. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina- PR, v.10, n.18, jan/jul, 2016. Acessar publicação original [DR]
Sergipe Republicano / Revista do IHGSE / 2016
Com o entendimento de que “De fato, jornais e revistas não são no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem um conjunto de indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de idéias, crenças e valores que pretende se difundir a partir da palavra escrita” [1]. A Revista do IHGSE apresenta este conjunto de ideias a serem difundidas e colocadas para o diálogo nos meios intelectual sergipano e brasileiro.
No presente número apresentamos o Dossiê “Sergipe Republicano”, no qual, uma dezena de pesquisadores deixaram registrados nas páginas da Revista da “Casa de Sergipe” uma variedade de temas e inquietações que contagiarão o leitor. Encerramos assim, um ciclo iniciado com “Dinâmicas Coloniais na Capitania de Sergipe D’El Rey”, seguido por “Sergipe Provincial”, ao todo, foram publicados vinte e um trabalhos nos três recortes temporais propostos.
Neste Dossiê, podemos encontrar os seguintes artigos: “Subsídios para o estudo da tributação em Sergipe República (1889-2000)”, no qual, Lourival Santana Santos continua o trabalho apresentado na Revista do IHGSE, no número 41, tendo ali estudado o período de 1500 a 1889. Desta vez, o autor revela as dificuldades enfrentadas pelos governantes por conta dos déficits constantes nas suas finanças mesmo com o fiscalismo exagerado sobre as rendas estaduais.
No segundo artigo, os pesquisadores Joaquim Tavares Conceição, Jorge Carvalho do Nascimento e Marco Arlindo Amorim Melo Nery discorrem sobre aspectos da trajetória de Emanuel Franco (1919-2008) desde a sua formação educacional até a sua atuação como engenheiro, agrônomo, professor e pesquisador. Aspectos da trajetória desse significativo intelectual sergipano são traçados em um texto que apresenta muitas contribuições para os interessados na temática.
No trabalho “Entre sussurros e silêncios: as passeatas cívicas dos grupos escolares sergipanos e a ausência das festas republicanas nas ruas (1923-1930)” Degenal de Jesus da Silva examina o percurso das festividades, indivíduos e instituições envolvidos nesses momentos de celebração e as representações utilizadas naquele período histórico. Já Cibele de Souza Rodrigues, em co-autoria com Eva Maria Siqueira Alves, trata do jornal estudantil O Porvir pertencente ao Atheneu Sergipense. As autoras observam como os alunos lidavam com as questões da instrução e como expressavam suas opiniões, vislumbrando o citado periódico como pertencente à cultura escolar daquela significativa instituição de ensino secundário.
A dinâmica de funcionamento da sociedade sergipana em 1939, às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, é o tema da pesquisadora Janaína Cardoso de Mello, que utiliza o viés do anúncio publicitário e da visão de consumo para identificar o destinatário, o potencial motivador e o alcance dos produtos comerciais difundidos nos periódicos Correio de Aracaju, Folha da Manhã, O Nordeste e Sergipe Jornal, nesse momento da História de Sergipe.
Mariana Emanuelle Barreto de Gois volta-se para as “páginas criminais” para investigar histórias carcerárias da Penitenciária Modelo de Aracaju, na primeira metade do século XX. Especialista no assunto, a autora investiga histórias dos detentos e nos leva ao debate sobre gênero no espaço prisional em um texto repleto de surpresas.
Finalizando o Dossiê “Sergipe Republicano”, Carine Santos Pinto discute sobre “O extinto aldeamento de Água Azeda e suas relações de conflito com a Fazenda Escurial – SE no século XX”, como um desdobramento do trabalho de Mestrado em História defendido na Universidade Federal de Alagoas.
Na sessão de artigos livres, Lorena Campello “abre” o arquivo pessoal de Epifânio Dória para mostrar as várias possibilidades de pesquisa que o rico acervo pode oferecer. Anne Emilie Cabral analisa a formação do ser docente de Maria Júlia Cabral, entre os anos de 1936 e 1957, na cidade de Capela (SE) e Suely Cristina Silva Souza investiga “Os programas de Matemática do Atheneu Sergipense durante a Reforma Capanema”.
Para concluir este número, temos a satisfação de publicar o necrológio de Santo Souza elaborado por Estácio Bahia Guimarães, somado ao discurso de Igor Leonardo Moraes Albuquerque em homenagem a José Aloízio de Campos e a resenha de Wagner Lemos com o título “A um passo do esquecimento, o derradeiro e intenso romance de Giselda Morais”.
Nota
1 LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 140.
Aracaju, Junho de 2016
João Paulo Gama Oliveira – Editor da RIHGSE.
OLIVEIRA, João Paulo Gama. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.46, v.2, 2016. Acessar publicação original [DR]
Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem | Eliane Garcindo de Sá
– ! Ay, señora Juana!
Vusarcé perdone,
y escuche las quejas de un mestizo pobre [2]
Um dos temas mais polêmicos e dramáticos do mundo contemporâneo é a invasão de imigrantes africanos ao continente europeu. Assistimos, diariamente, pela mídia, ao drama desses refugiados e à recusa dos países da comunidade europeia em abriga-los, utilizando uma série de subterfúgios. O candidato republicano à presidência da República dos Estados Unidos da América, Donald Trump, acirra o debate anunciando a expulsão do país dos mulçumanos e a construção de um muro para inibir a entrada dos mexicanos em território norte-americano, caso venha a ser presidente. O encontro/confronto entre diferentes culturas e etnias é sempre ameaçador.
Sabemos que essa polêmica não é recente. Cada época marca seu motivo. A verdade é que os movimentos de população permitiram o povoamento do mundo e significaram a expansão de etnias, línguas, religiões e conhecimento num emaranhado processo que dá ao mundo atual os traços de grande diversidade e riqueza cultural.
As chamadas Grandes Navegações, por exemplo, foram responsáveis pela colonização do continente americano a partir do século XVI e significaram a difusão da cultura dos europeus, a qual entrou em choque com as culturas das comunidades indígenas que já habitavam o território. Esse deslocamento populacional foi estimulado pelo expansionismo territorial das potências europeias da época que buscavam fontes de matéria-prima e novos mercados para seus produtos, portanto, tinham motivação geopolítica e econômica. Essa migração aumentou maciçamente no século XIX e começo do XX e resultou, além de outros fatores, na miscigenação dos povos, recriando novas características étnicas e culturais no continente americano.
A historiadora Eliane Garcindo de Sá tem estudado temas sobre o caráter desses deslocamentos e, consequentemente, o encontro/confronto entre diferentes culturas ao longo de sua vida acadêmica. Publicou vários trabalhos científicos, que trazem reflexões originais e marcadamente inovadoras sobre o assunto. A publicação do livro Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a Mestiçagem é resultado do conjunto desses estudos ordenados de forma que permitem acompanhar o desenvolvimento do pensamento da autora. Baseada em significativo estudo de fôlego documental e extensa pesquisa bibliográfica, a obra é muito bem escrita ressaltando a fluidez da narrativa e erudição, colocando de maneira bastante clara os problemas levantados e conduzindo o leitor a refletir sobre questões importantes que ainda afligem nossa sociedade.
A “questão da mestiçagem” na América Ibérica fornece o eixo central em torno do qual se articulam as duas partes em que se divide o livro. Nessa obra, a historiadora também promove o debate, ainda bastante contemporâneo, sobre a tradição do pensamento social latino-americano e, através de múltipla abordagem da cultura mestiça, induz considerações sobre seu imbricamento com a construção simbólica da nacionalidade.
O Prólogo é escrito pelo professor Serge Gruzinski, detentor de alentada obra sobre a conquista e colonização da América. Em seu texto, Gruzinski justifica a opção da autora por uma abordagem latino-americana do tema: “Atualmente, inseridos em uma outra mundialização que passa por redefinição do papel continental e mundial do Brasil, nós não podemos continuar a escrever histórias confinadas na prisão das memórias nacionais”.[3]
A primeira parte do livro, “Mestiço no Universo Colonial”, é composta por quatro textos que esquadrinham uma série de problemáticas relacionadas à cultura mestiça durante o período colonial. A segunda, “Reflexões sobre o Universo Mestiço”, traz quatro textos que compõem as diferentes reflexões da autora sobre o tema. Gruzinski conclui em seu Prólogo:
Ao analisar a questão da mestiçagem, fundamental nas transformações sociais desta parte do mundo, e da emergência das sociedades coloniais, a historiadora carioca nos guia nos meandros do pensamento latinoamericano, de Buenos Aires ao México, de Sarmiento a Vasconcelos da raça cósmica, de Diego Rivera a Candido Portinari.[4]
O texto “Visões das Gentes na Experiência Colonial” dá início à primeira parte do livro e trata do impacto da grande imigração entre os continentes europeu e americano durante os séculos XV e XVI. Esse “encontro/confronto” entre sociedades e culturas distintas desorganiza todas as referências socioculturais de ambos os lados, forçando novas conexões, crenças e valores. Eliane assinala que “diante da novidade de descobertas de outras terras e outras gentes, diante do desafio das diferenças e estranhamentos” os protagonistas da formação da nova sociedade “elaboram produção em que expõem a construção de referências”.[5] Como suporte às suas reflexões, a autora usa obras dos cronistas Garcilaso de la Vega, Frei Vicente do Salvador, Felipe Guamán Poma de Ayala e Ambrósio Fernandes Brandão.
Nos três textos seguintes, “Entre os papéis da Audiência de Lima: as imagens dos mestizos”, “Os Cronistas e a Construção da Representação do Mestizo” e “Inca Garcilaso de la Vega: a representação do mestizo”, a autora optou por discutir aspectos necessários para fundamentar seus argumentos a respeito das diferentes conotações e representações sobre a palavra mestizo. Eliane Garcindo de Sá chama a atenção para o fato de que:
Os sistemas de representação forjados nas sociedades coloniais decorreram radicalmente da insuficiência patente dos recursos anteriormente disponíveis entre as sociedades “originais” em confronto. A intromissão de novos elementos obrigou à criação de novas designações, nomeações […].[6]
Essa complexidade de referências e significados é estudada com base na riquíssima documentação da Audiência de Lima (1543-1620) [7] em cotejo com os cronistas, o mestiço Inca Garcilaso de La Vega e o índio Felipe Guamán Poma de Ayala.
A segunda parte tem início com o artigo intitulado “Um Mundo ‘Uno’”, seguido de outro denominado “Ocidentalização” onde a autora analisa os efeitos da mundialização/ocidentalização nas sociedades hispano-americanas e a convergência de visões apocalípticas que marcaram os primeiros anos da Conquista da América. A historiadora ressalta a importância dos trabalhos de Serge Gruzinski, particularmente La penseé métisse [8] e a Primeira América, [9] este escrito em conjunto com Carmen Bernand, os quais consolidam questões pertinentes à ocidentalização e à perda de identidade/alteridade entre conquistadores e conquistados. O primeiro texto termina com a afirmação: “O mestiço foi, sem dúvida, um ‘outro’ construído”.[10]
Dois outros artigos compõem esse segundo bloco: “Raça Cósmica” e “Mestiço Ideal”. Chega-se, assim, à questão que norteia o pensamento da autora: por qual motivo e como se formou, no imaginário de alguns indivíduos, a conexão entre a mestiçagem e um complexo emaranhado de representações? O mexicano Jose Vasconcelos sugere uma “raça final”, a “raça cósmica”, idealiza uma “raça feita com o tesouro de todas as outras, cósmica, apontando para uma síntese superadora de uma questão que se coloca na região […]”.[11] Segundo a autora, para Vasconcelos “a mestiçagem era uma marca de originalidade ibero-americana, qualidade que marcaria as diferenças entre as sociedades na América ibérica, América anglo-saxã e ‘Velho Mundo’”,[12] entretanto o autor retira da conotação do vocábulo a negatividade presente em muitos outros escritores e cronistas.
Já o peruano Inca Garcilaso de la Vega, “diante de condições muito específicas de sua trajetória construiu e protagonizou o personagem do mestiço, que se construiu em referência dessa representação e do mito, com o qual se confunde”.[13] Garcilaso, o mestiço culto que superou sua condição social, passa a representar e referenciar o modelo do mestiço ideal. Entretanto, ao contrário de Vasconcelos, o Inca Garcilaso deixa indícios de sua visão negativa do mestiço e da mestiçagem. Nessas circunstâncias, os temas étnicos estarão no centro da discussão sobre identidade e carácter dos povos. Esse é outro ponto interessante das reflexões da autora buscando articulação entre a mestiçagem e os atributos que vão constituir as sociedades nacionais. O grande dilema dos protagonistas da independência da América espanhola foi o redimensionamento da questão nacional com a composição étnica, cuja grande maioria de negros, índios e mestiços, necessariamente teriam que estar incluídos nos projetos nacionais nascentes.
Em “Considerações Finais”, a epígrafe que abre o texto sintetiza determinadas ideias daquele contexto envolto pelo estranhamento dos “diferentes” e referências imagéticas desse confronto/encontro. Em sua fala, Garcilaso ressalta o confronto de visões em relação ao próprio continente: “[…] que no hay más que un mundo, y aunque llamamos Mundo Viejo y Mundo Nuevo, es por haberse descubierto éste nuevamente para nosotros, y no porque sean dos, sino todo uno”.[14] O cronista, que transitou nos “dois mundos”, não os entende divididos, mas como parte de uma mesma formação social, histórica e cultural. A historiadora considera que o conceito de pensamento mestiço cunhado por Serge Gruzinski é importante categoria de análise para o confronto de questões impostas pelas relações sociais durante o período de conquista. É com base nesse referencial que Eliane Garcindo de Sá conclui sua exposição de ideias: “A intensificação e o aprofundamento da mundialização, os efeitos da globalização, potencializam o fluxo e as contradições das relações entre as sociedades e suas parcelas, entre cada um e cada grupo que se autorreferencia ou é visto como um outro”.[15]
Não se pode deixar de mencionar as ilustrações selecionadas para o livro, uma vez que completam e corroboram o discurso que fundamenta a obra. No primeiro grupo, encontram-se seis ilustrações de Felipe Guamán Poma de Ayala onde, na narrativa sobre a conquista, escrevia e desenhava os acontecimentos que queria relatar. No segundo, Eliane recorre a diferentes artistas, Cândido Portinari, Jose Clemente Orozco, Diego Rivera e Emiliano Di Cavalcanti, e, através da linguagem plástica, complementa os significados com diferentes representações sobre o mestiço.
Assim, nos oito textos que compõem o livro, a historiadora consegue demonstrar sem observância cronológica rígida, porém obedecendo determinada linha de tempo, as condições que permitiram a formação de uma cultura mestiça e seus desdobramentos. Essa visão da autora está consubstanciada nas relações de encontro/confronto como nos processos de mundialização e ocidentalização. Nesse sentido, o trabalho apresenta o panorama geral das diligências da autora sobre o tema e fomenta impacto no ambiente acadêmico, uma vez que as discussões de questões relativas à mestiçagem, particularmente em países miscigenados como os da América Latina, são sempre muito relevantes. Por outro lado, as reflexões sobre raças e etnias são questões contundentes para sociedades contemporâneas na luta contra o racismo e a discriminação étnica-cultural.
Em suma, pode-se dizer que a obra de Eliane Garcindo de Sá discute, de forma muito precisa, mas dialética, problemas que contribuem de maneira importante para a compreensão de referências que explicam, em parte, nosso preconceito contra o “outro”. A documentação é densamente trabalhada, e as obras dos cronistas analisadas nos textos avaliam a presença e a função dessas obras nos contextos anterior e posterior à conquista da América. A emergência dessas ideias e as condições que permitiram a mobilização em uma sociedade majoritariamente indígena é parte relevante da obra.
O livro apresenta uma das mais importantes análises sobre a ”questão da mestiçagem”. A publicação da obra referenda e demonstra a complexidade de determinadas visões consolidadas sobre aquela que foi, e talvez ainda seja, a principal matriz histórica e cultural do continente latino-americano.
Notas
2 OQUENDO, Marco Rosas de. Nova Espanha: finais do século XVI. In: GONZÁLEZ, Luiz. El encontro de la conquista: sesenta testemonios. Mexico: Cien-SEP, 1984. p. 234-236.
3 CNRS – Centre National de la Recherché Scientifique; EHESS – L’Ecole des Hautes Estudes en Sciences Sociales. Princeton University.
4 GRUZINSKI, Serge. In: GARCINDO DE SÁ, Eliane. Universo Mestiço: resenha de Mestiço: Entre o mito, a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Prólogo.
5 GARCINDO DE SÁ, Eliane. Op. cit., p. 29.
6 Id., p. 63.
7 Na parte dedicada às fontes, p. 305-313, a autora identifica toda a documentação pesquisada na Audiência de Lima.
8 GRUZINSKI, Serge. La Pensée Métisse. Paris, Éditions Fayard, 1999.
9 BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. In: Historia de Nuevo Mundo 2: (1550-1640). Mexico: Fondo de Cultura Econòmia, 1999.
10 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 61.
11 VASCONCELOS, José. La raza cósmica. Mexico: Espasa-Calpe Mexicana SA, 1948.
12 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 199.
13 VEGA, Inca Garcilaso de la. Comentarios Reales. 1ª parte. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 1985.
14 Id., p. 159.
15 GARCINDO DE SÁ. Op. cit., p. 270.
Francisca Nogueira de Azevedo – Historiadora, professora associada do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Autora do livro Carlota Joaquina – na Corte do Brasil, Civilização Brasileira, 2003. E-mail: franciscazevedo@uol.com.br
GARCINDO DE SÁ, Eliane. Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2013. Resenha de: AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.15, p. 221-225, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
Pierre Clastres y las sociedades antiguas | Marcelo Campagno
Es poco sabido en el ámbito de la Historia que el antropólogo francés Pierre Clastres (1934-1977) personificó a uno de los pensadores más influyentes del siglo XX, dejando un importante legado literario y científico. Tanto por la belleza de la escritura como por la fuerza de las ideas antropológicas, su singular obra –compuesta principalmente por sus etnografías de las sociedades del ámbito amazónico y por las teorías que desarrolló acerca de los pueblos “salvajes” fuera y en contra de los Estados– ha marcado decisivamente buena parte de la producción antropológica de las últimas décadas. En efecto, a pesar de que su temprana muerte a los 43 años significó irremediablemente el fin de una de esas grandilocuentes mentes de la que sin duda habrían emergido otros aportes de gran valor para la teoría social en Sudamérica, resulta igualmente innegable que las diversas interpretaciones antropológicas producidas por Clastres hasta el año 1977 pueden ser, además, empleadas como herramientas conceptuales válidas por otros cientistas sociales para el estudio de los múltiples modos de vida que forjan las sociedades y sus culturas. Y si resulta factible que, durante algún tiempo, su valiosa producción intelectual no haya recibido la atención que merecía, tal vez por efecto de la oposición de Clastres a las posturas hegemónicas dentro del establishment académico de su época, un hecho irrebatible en la actualidad es el significativo vuelco hacia los planteos de este renombrado antropólogo francés que han sabido practicar los más diversos campos de análisis, desde diversas corrientes filosóficas y el pensamiento anarquista, pasando por las investigaciones arqueológicas y etnohistóricas, los estudios de la sociología, la teoría política y el psicoanálisis, hasta el análisis de situaciones sociales y políticas contemporáneas. Leia Mais
Fontes materiais e a pesquisa histórica / Revista de Fontes / 2016
Este número da Revista de fontes é produto indireto da Jornada de Fontes promovida pela Departamento de História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Ferderal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP) em 2015, cujo objetivo era discutir o uso de fontes materiais na pesquisa histórica. Para tanto, o conceito de “cultura material” foi destacado, e entre os palestrantes, havia profissionais de campos variados: historiadores, arqueólogos e museólogos. Dessa forma, os artigos que seguem estão conectados com o interesse daquele evento – o debate sobre fontes materiais, sobre o conceito de cultura material e a ação interdisciplinar (ou multidisciplinar) frequentemente relacionada a ele. Os três primeiro artigos apresentam propostas de abordagem de setores específicos de fontes materiais, um histórico do tratamento acadêmico do objeto e estudos de caso, nos quais as questões são mais aprofundadas. Mais que isso, a abordagem é explicitada, colocada à prova. O último, uma discussão teórica do conceito de documento histórico e sua relação com as fontes materiais.
O primeiro artigo, Linear B, uma introdução de Juliana Cladeira Monzani, apresenta um tipo de fonte escrita, cuja interpretação foi consistentemente feita a partir de dois campos principais: a Filologia e a Arqueologia. De um lado, as pesquisas sobre a decriptação da escrita (que revelou uma forma antiga da língua grega, chamada pelos especialistas de grego micêncio), e o contexto predominante de uso (o contexto administrativo), foi conectado aos dados arqueológicos sobre esse tipo de escrita, tais como a sua cronologia, os suportes e os espaços de imobilização. A observação articulada desses dados proporciona, assim, ao historiador interessado, além de um claro exemplo de abordagem inter- ou multidisciplinar, um exemplo de abordagem de escrita com suporte físico preservado, fundamentos para se pensar em dinâmicas sobre a cultura e a economia do chamado “período micênico”, um segmento da história da Idade do Bronze do Mediterrâneo Antigo; entretanto, sem a constituição de uma narrativa história factual.
Edifícios como fonte histórica: o caso do templo de Ares na Ágora de Atenas (século I a.C.) de Fábio Augusto Morales, destaca outro tipo de fonte: edifícios. De início, o autor denuncia a pouca atenção dos historiadores com esse tipo de fonte, que foi mais consistentemente tratada por outras disciplinas (como a História da Arte e a Arqueologia) e segmentos muito específicos da História ou da Arquitetura (a História da Arquitetura). Com isso, impõe-se a observação das estratégias de abordagem desse tipo de objeto, atenção às propostas já tratadas por esses domínios acadêmicos: novamente, uma observação integrada baseada em diálogos disciplinares. O estudo de caso apresentado é a movimentação do templo de Ares na Ágora de Atenas, especialmente no século I a.C., o que proporcionou um debate sobre a história do período, articulando elementos da política e da religião.
Em Aplicação da ferramenta de aprimoramento de imagens DStretch® em sítios rupestres: uma releitura do sítio Bom Nome IV (Pão de Açúcar, AL), Carolina Guedes apresenta a proposta de uso de uma ferramenta tecnológica para a reavaliação do registro de arte rupestre. O primeiro passo é a observação da viabilidade dessa nova ferramenta, comparando os resultados com outras tradicionalmente utilizadas. Para a observação mais aprofundada, é tratado o caso de alguns grafismos do sítio alagoano Bom Nome IV, no qual, com a ferramenta em questão, foi possível identificar novos elementos até então não registrados, além da reavaliação daqueles já conhecidos.
O último artigo, Fonte material, fonte textual e a noção de documento de Gilberto da S. Francisco, apresenta uma discussão do conceito de documento. Não uma discussão filosófica, mas a partir do uso que a bibliografia faz do termo. Nesse contexto, é possível observar que, na disciplina histórica, a noção de documento, ainda recentemente, é amplamente conectada à ideia de documento textual, sobretudo aquele de base escrita, e certo distanciamento da fonte material, normalmente identificada como “arqueológica”. Entre a noção de fonte textual, fonte escrita, fonte literária, fonte histórica, fonte material e fonte arqueológica, o texto propõe uma discussão do próprio conceito de documento e das consequências disso para a pesquisa histórica.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Gilberto Francisco
FRANCISCO, Gilberto. [Fontes materiais e a pesquisa histórica]. Revista de Fontes. Guarulhos, v.3, n.5, 2016. Acessar publicação original [DR]
Georges Canguilhem, a história e os historiadores / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016
“A obra do filósofo e médico Georges Canguilhem experimenta atualmente um extraordinário revival, que se produz tanto em escala nacional francesa quanto internacional, e com um alcance interdisciplinar, envolvendo as mais diferentes áreas. Essa ascensão do interesse pela obra de Canguilhem teve início antes de seu falecimento, e continua se manifestando através da multiplicação de colóquios sobre seu pensamento, publicações em forma de livros e revistas, traduções de seus escritos para diversos idiomas, além da organização de centros de investigação e de documentação que levam o seu nome.” [1]
Essa avaliação feita por Francisco Vázquez García tem se provado verdadeira também para o Brasil. O interesse renovado pelos textos de Georges Canguilhem (1904 – 1995), motivado pela descoberta de escritos inéditos e pela publicação das suas obras completas na França, também é verificado entre os pesquisadores brasileiros, fato que medimos pelo aumento de pesquisas de pós-graduação, livros, artigos e eventos dedicados ao seu pensamento [2]. É verdade que, graças a autores como Sérgio Arouca, Cecília Donnangelo e Ricardo Bruno Mendes Gonçalves, O normal e o patológico conhece uma prestigiosa reputação no Brasil desde os anos 70. Mas foi apenas nos últimos anos que vimos serem traduzidos os livros O conhecimento da vida e Estudos de história e de filosofia das ciências concernentes aos vivos e à vida, que apresentaram a um público mais amplo no Brasil as contribuições inovadoras de Canguilhem para a teoria e a prática da história do pensamento médico e biológico.
Pacifista engajado na juventude, a vida adulta fez de Canguilhem um combatente: membro do Comitê de Vigilância dos Intelectuais Antifascistas, Médico Tenente e Chefe do Estado-Maior político da Resistência Francesa durante a ocupação nazista. Combateu, também, pela história das ciências. Em 1983, recebeu a “Medalha George Sarton”, a mais prestigiosa honraria da área de história das ciências, concedida pela History of Science Society em reconhecimento “a uma vida de conquistas acadêmicas”. Essas conquistas estão concentradas no período entre 1955 e 1971, quando lecionou história e filosofia das ciências na Sorbonne, dirigiu o Institut d’histoire des sciences et des techniques e publicou seus textos mais conhecidos. Mas a abertura dos arquivos pessoais e de trabalho de Canguilhem, preservados no Centre d’Archives en Philosophie, Histoire et Édition des Sciences (CAPHÉS), revelou aos pesquisadores novos aspectos do seu pensamento e do seu diálogo com os historiadores.
Fomos apresentados ao “Canguilhem avant Canguilhem”, expressão de Jean-François Braunstein, já de uso corrente entre os comentadores que se dedicam aos textos produzidos entre 1926 e 1939, a partir dos quais é possível detectar o interesse precoce de Canguilhem pelos trabalhos dos historiadores de ofício. O rastreamento das leituras de Canguilhem nesse período e, principalmente, da utilização dos textos de historiadores em seus cursos de filosofia já na década de 30, permitiu que entendêssemos melhor a importância dos fundadores da revista dos Annales, dos historiadores agrupados em torno do Centre de Synthèse e dos historiadores das ideias para o desenvolvimento de uma técnica original de investigação histórica das ciências da vida e da medicina que começa a ser posta em prática já no Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, tese de doutorado em medicina publicada em 1943.
A compreensão renovada da problemática histórica na obra de Canguilhem também permitiu uma reavaliação dos seus débitos com a epistemologia de Gaston Bachelard, e, aparente paradoxo, fez crescer o interesse pela epistemologia histórica, hoje entendida cada vez menos como uma filosofia nacional francesa, e mais como um processo de historicização da epistemologia que repercutiu em diferentes pontos da Europa. Daí ser possível identificar, por meio de uma história intelectual comparada, um “ar de família” entre Canguilhem e o polonês Ludwik Fleck. Leituras menos preocupadas em enquadrar Canguilhem nos limites de uma suposta “escola francesa” passaram a destacar a importância de temas como a circulação das ideias, as continuidades e descontinuidades entre conceitos e mitos ou as relações entre ciência e ideologia para a concretização do seu projeto de historicização das ciências.
Pouco mais de vinte anos após a morte de Canguilhem, sua ausência é profundamente sentida por todos aqueles que ele ajudou a formar, direta ou indiretamente, através das suas lições ou dos seus livros. Não causa espanto que, diante dos problemas atualmente postos ao conhecimento da vida e da saúde, ao pensamento e à prática médica, à teoria e à prática da história das ciências da vida e da medicina, os pesquisadores continuem retornando à obra de Canguilhem em busca de respostas ou de pistas até elas. Os textos apresentados nesse dossiê são manifestações de reconhecimento da vitalidade de um pensamento que, mesmo interrompido há décadas, segue se provando original.
Notas
1. Francisco Vásquez García. “Redescubriendo a un filósofo híbrido: Georges Canguilhem”. In: Asclepio. Revista de Historia de la Medecina y de la Ciencia. 66 (2), julho-dezembro 2014.
2. O próprio Grupo de Pesquisa em História Intelectual organizou, em setembro de 2015, o colóquio “Canguilhem, a história e os historiadores” e, em abril de 2016, a mesa-redonda “Os objetos da história das ciências”, também dedicada ao pensamento de Canguilhem. Esses eventos contaram com o apoio do Departamento de História, do Laboratório de Teoria da História e Historiografia (LabTeo) e do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.
Tiago Santos Almeida – Doutorando em História Social na Universidade de São Paulo Grupo de Pesquisa em História Intelectual (Departamento de História – USP) EXeCO – Expérience et connaissance (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne)
Comitê organizador:
Tiago Santos Almeida (USP)
Marcos Camolezi (USP / Université Paris 1)
Iván Moya-Diez (Université Paris 1)
Matteo Vagelli (Université Paris 1)
ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 1, 2016. Acessar publicação original [DR]
História e medicina: os médicos, seus projetos, suas práticas e suas instituições / Intellèctus / 2016
As aproximações entre História e Medicina, que se expandiram fortemente como profícuo veio da historiografia a partir das últimas décadas do século XX, permitiram a exploração de dimensões as mais variadas e a construção de narrativas as mais distintas acerca do atendimento à saúde e da definição das práticas médicas e de suas instituições. O volume que ora apresento aos leitores é boa mostra da pluralidade decorrente das aproximações sugeridas e encetadas aqui em artigos distintos, mas, também, conectados em seus recortes e possibilidades.
Os artigos presentes neste dossiê movimentam-se no tempo longo entre o século XVII e o século XXI, evidenciando não apenas a multiplicidade de perscrutações decorrentes da própria natureza do objeto proposto, as aproximações entre História e Medicina, como, ainda, a construção de narrativas históricas referidas a temporalidades mais afastadas e a temporalidades nomeadas como da História do Tempo Presente. Leia Mais
O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII | Tânya Maria Pires Brandão
Trabalho originalmente proposto como dissertação de mestrado, trata-se de um dos mais importantes estudos sobre a formação social do Piauí, tomando como cerne a questão do trabalho escravo na Capitania do Piauí.
A autora estuda a economia e a demografia escrava no Piauí durante o século XVIII. Mostrando como a atividade criatória permitiu a consolidação do regime de trabalho escravo, com perfil socioeconômico semelhante ao restante do Brasil. Ela baseou-se num rico leque de fontes documentais, como, por exemplo, inventários e correspondências. O trabalho de dissertação de mestrado da autora foi defendido na UFPE em 1984 sob orientação do Prof. Armando Souto Maior.
A notável pesquisadora pode ser tida como uma apaixonada pelos problemas da história notadamente da história do Piauí, nesse trabalho mergulha numa tentativa de desvendar a formação de uma sociedade em constituição de um Piauí distante e remoto do século XVII, a presença do escravo e a sua participação na construção desse universo, Professora e pesquisadora de longa experiência leva o leitor a refletir com rigor sobre a história do Piauí colonial.
Nos capítulos que integram a obra, a professora Tânya Brandão trava um debate claro sobre a questão do escravo na formação social do Piauí colonial. Tânya Brandão mostra que a escravidão foi uma instituição presente no sertão do Piauí até o século XIX como uma instituição perfeitamente consolidada. Portanto o trabalho escravo no Piauí desde o século XVII ao XVIII foi voltado para atividades de agricultura de subsistência, a fabricação de instrumentos, os cuidados com serviços domésticos e em essência relacionados ao manuseio com o gado.
A Autora debate, intencionalmente, sempre na mesma tecla – uma variação sobre o mesmo tema: a compreensão da construção social de um Piauí colonial e a inserção do escravo nessa sociedade.
Como credencial a Professora Doutora Tânya Maria Pires Brandão possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí (1974), especialização em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Federal do Ceará (1975), mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1984) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1993). É Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco. Como historiadora, desenvolve pesquisas com ênfase em História do Brasil. Atuando principalmente nos seguintes temas: Oligarquia, Colônia, Piauí.
No século XVII, a colonização do Piauí tomou um novo rumo com direcionamento tomado pela política colonial portuguesa, pois o avanço na busca de vias terrestres permitiria assegurar o domínio da região e efetivar o domínio econômico da Metrópole portuguesa. Na ocasião não se apresentaram muitas opções à valorização do território piauiense.
O modelo extrativista vegetal e mineral não se consolidou, bem como se inviabilizou o cultivo da cana para fabricação do açúcar. Logo, a escolha da pecuária como atividade principal talvez tenha resultado da observação aos aspectos regionais.
Nesse ponto a perspectiva apontada por Tânya Brandão começa a desvelar a intencionalidade da proposta portuguesa para a região, pois de acordo com a mesma (1999, p.27) “A formação social do Piauí enquadrou-se em caráter escravista. Desde os primórdios da colonização do território, os pecuaristas, a exemplo de Domingos Afonso, utilizavam-se do trabalho escravo”.
Assim, de acordo com o que foi afirmado pela autora, o escravo africano também começava a fazer parte da colonização do Piauí, mesmo que a atividade econômica desenvolvida não exigisse grande concentração dos mesmos, por outro lado a opção dos fazendeiros no Piauí pelo trabalho escravo do negro deu-se ainda no início da implantação da pecuária, pois o sistema escravocrata já estava consolidado em toda zona colonial portuguesa.
Para Tânya Brandão (1995), o “emprego do escravo no criatório piauiense ocorreu desde a implantação dos primeiros currais”, cuja função destinava-se à construção e manutenção da infraestrutura das moradias, a lida no campo e o cultivo das roças.
Ainda segundo Tânya Brandão, durante o século XVIII, no Piauí se consolidou também o latifúndio, “tipo de propriedade rural pertencente a um senhor, tendo por base a pecuária e com boa parcela da área sem cultivo”. (1999, p. 54)
Ou seja, a atividade pecuarista não deixava muito espaço para o desenvolvimento de outras práticas produtivas que, no entanto, existiam em menor escala, como a própria agricultura de subsistência.
A pecuária extensiva e a produção de gêneros agrícolas foram às principais atividades econômicas desenvolvidas no Piauí, tais atividades possibilitaram a existência de várias categorias de trabalhadores, a proposta de Tânya Brandão parte do princípio de tentar compreender qual o lugar do escravo nesse emaranhado das relações sócias do Piauí colonial.
No Piauí a sociedade colonial foi marcada pela presença de elementos distintos em decorrência das funções que desempenhavam e da posição social que ocupavam.
Neste caso desde sesmeiros, passando por posseiros, arrendatários, vaqueiros, senhores, agregados e os escravos, teremos os principais elementos constituidores desta sociedade. (ARAÚJO, CABRAL, 2012).
A tendência da historiografia piauiense anterior a renovação teórico metodológica implantada nas pesquisas atuais, tendeu sempre a negar ou relativizar a participação do elemento negro escravizado na sociedade piauiense do período colonial.
Numa análise mais aprofundada a servidão negra no Piauí na perspectiva da historiadora Tânya Brandão (1999) é apresentada como secundária nas fazendas de gado. Esta característica deveu-se a vida rústica do sertão, onde os trabalhos desenvolvidos pelos negros não estavam diretamente ligados ao processo produtivo principal no caso a pecuária, mas a tarefas secundárias como fabricação de telhas, tijolos, artesanatos, trabalhos domésticos, alugueis de seus serviços pelos seus senhores, na agricultura e construção civil. (LIMA, SOARES, 2011).
Nas fazendas, o cuidado do gado nos campos e currais seria realizado, predominantemente, por vaqueiros livres. Assim, ficaria para os trabalhadores escravizados as duras e pesadas tarefas da lida nas fazendas.
Considerando a existência de uma dualidade na utilização da mão de obra e de formas de tratamentos, Tânya Brandão defende que a presença do escravo nesta região se deu com características distintas que no resto do país, sendo absorvida muito mais como uma demonstração de status social do que como força de trabalho atuante, apesar de, do ponto de vista da relação social, não fugir a regra do sistema escravista impregnado no Brasil. (LIMA, SOARES, 2011)
Apesar da referência sobre os mecanismos repressores para o controle e domínio dos escravizados, a existência de dois cativeiros no Piauí, o privado e o público, levaram a autora a apontar que os trabalhadores das fazendas públicas gozavam de maiores privilégios e regalias que nas fazendas privadas.
Nas propriedades privadas a violência, principal mecanismo de atuação do sistema escravocrata, se apresentava mais frequente, pois o senhor se mantinha presente e atento aos movimentos de seus trabalhadores. O comportamento violento dos proprietários contrasta com o vivenciado pelos escravizados públicos. (LIMA, SOARES, 2011).
Nesse meandro para Tânya Brandão (1995), o Piauí firmou-se como zona produtora de gado durante a estrutura econômica colonial, constituindo, assim, duas frentes econômicas. A primeira tinha como função ajudar os setores agrário exportador de outras regiões coloniais, fornecendo carne para consumo, a força matriz dos cavalos e bois para mover os engenhos e assegurar os transportes nas duas regiões; a segunda se relacionava à necessidade e capacidade de suprir a colônia com produtos comerciais junto à metrópole.
No entanto, a importância da economia piauiense para o sistema colonial não incidia num grande apoio para balança comercial, mas na articulação que mantinha com os demais setores produtivos da colônia.
Tomando o modelo escravista em vigor no século XVIII, outra perspectiva da sociedade Piauiense colonial era o uso da violência traço também observado por Tânya Brandão, pois segundo a mesma:
De acordo com as fontes históricas, durante os séculos XVII e XVIII, distinguiu-se a sociedade por seu aspecto violento. É evidente que a agressividade da população resultou do processo colonizador. Na primeira fase, quando se iniciou o povoamento da região, foi exigido dos conquistadores, não apenas espírito aventureiro, mas a coragem e a audácia suficientes para dominar a natureza hostil, afugentar o índio bravio, relutante e acostumar a gadaria aos novos pastos. A própria luta pela sobrevivência e garantia de terra conquistada teve caráter violento (BRANDÂO,1999:89)
A violência no cotidiano piauiense tornou-se característica na conquista do território. Tais práticas violentas voltaram-se, sobretudo ao elemento nativo e ao processo de escravização desta população que resistia ao processo de ocupação das terras e a submissão ao trabalho escravo. (LIMA, SOARES, 2011)
Mas para além da violência, podemos destacar outros elementos, na povoação piauiense, pessoas livres que procuravam atingir a condição de fazendeiro, enfim, vários sujeitos com seus traços culturais, suas tradições, que mais tarde configuraram-se em colonizador da terra dando origem à sociedade colonial piauiense, nesse esquema o escravo estava bem alocado.
No entanto, Tânya Brandão defende a ideia de diferenciação de condições de trabalho e vida entre cativeiro público e privado. Demonstra que as fazendas particulares, sobretudo as maiores, utilizavam o trabalho escravo de forma dominante apenas nas tarefas consideradas mais pesadas, como criação e manutenção da infraestrutura requerida pela pecuária, serviços domésticos e agricultura de subsistência. No manejo do gado nos campos e currais predominava o trabalho livre, “por ser mais próprio ao homem livre”. (BRANDÃO Apud, LIMA, 2002)
A autora ao fazer sua dissertação de mestrado sobre a escravidão no Piauí se debruça sobre uma tese clássica, que tem como foco principal o pastoreio, nesse ponto a dissocia o trabalho de escravo como fonte de riqueza, e o retrata como símbolo de status, tal como nos mostra na seguinte afirmação.
Isto significa a dizer que não havia uma relação direta com o interesse de acumulação de bens, mas uma relação muito mais social na posse do escravo, não apenas no alivio de trabalho braçal, mas uma ostentação de posição social (BRANDÃO p 154)
Tânya Brandão relaciona a escravidão no Piauí como instrumento de classe social, no entanto se desfaz da linha da violência branda da escravidão no Piauí como autores anteriores defendiam e passam a defender a violência física e moral que os escravos sofreram.
Nessa perspectiva o trabalho mostra um avanço significativo à produção textual sobre a questão escravista no Piauí, revelando e desnudando novas possibilidades de compreensão de um Piauí que muito precisa ser estudado, um Piauí colonial, sua sociedade e a escravidão.
Referências
ARAUJO, Johny Santana de, CABRAL, Ivana Campelo, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4
BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O Escravo da Formação Social do Piauí: Perspectiva Histórica do Século XVIII. Teresina: Ed. UFPI. 1999.
LIMA, Solimar Oliveira, SOARES, Débora Laianny Cardoso. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4
LIMA, Solimar Oliveira. Condenados ao trabalho trabalhadores escravizados nas fazendas públicas do piauí: 1822-1871. Disponível em: www.coreconpi.org.br/papers/…/Monografia_2002Profissional.pdf . Acessado em: 25/05/2012
Johny Santana de Araújo – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI.
BRANDÃO, Tânya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: Editora da UFPI, 1999. Resenha de: ARAÚJO, Johny Santana de. Um olhar sobre o Piauí escravista e setecentista segundo Tânya Brandão. Contraponto. Teresina, v.5, n.2, p.153-158, jul./dez. 2016. Acessar publicação original [DR]
História e Etnicidade / Cadernos de História / 2016
A revista Cadernos de História chega a mais uma edição temática com a publicação do Dossiê História e Etnicidade. Os artigos reunidos neste número por nossos pesquisadores colaboradores apresentam instigantes trabalhos alinhados às discussões sobre tema intensamente recorrente no atual meio acadêmico.
No editorial deste dossiê, convidamos o pesquisador italiano Massimo Canevacci para apresentar suas recentes investigações envolvendo as conexões entre história, antropologia e etnografia. Em seu trabalho, “Composições etnográficas”, Canevacci discorre sobre as transformações culturais no processo de globalização e sua relação com as realidades locais, a partir de novos mecanismos de produção comunicacional entre os grupos étnicos. Nessa ótica, o pesquisador destaca que a era digital alterou e conectou os métodos de como as comunidades locais se relacionam com o contexto global no que concerne aos mecanismos de autorrepresentação de subjetividades e na construção de suas histórias. Assim, importantes termos e expressões como “hetero-representação”, “meta-fetichismo” e “facticidade” são apresentados e definidos pelo autor para o entendimento da etnicidade, compreendida pelos vínculos de pertencimento, no cenário contemporâneo a partir de “quem representa” e “quem é representado”, complexa relação na qual ele denomina de “divisão comunicacional do trabalho”.
Nos dois primeiros artigos desse dossiê, destacam-se o percurso de determinadas comunidades africanas na constituição de um sincretismo cultural brasileiro, percebidas pela interação afroindígena amazônica e também pelo candomblé baiano. No primeiro caso, é o título de Agenor Sarraf Pacheco, “Diásporas africanas e contatos afroindígenas na Amazônia marajoara”, cujo propósito é realçar as intersecções tecidas por índios e negros desde o período colonial na região da ilha de Marajó, no Estado do Pará. O autor apresenta vários questionamentos que o instigaram a pesquisar os traços étnicos das populações marajoaras, sobretudo, seus afrodescendentes. Nessa ótica, Pacheco estima que a chegada dos primeiros africanos aos campos e florestas marajoaras ocorreu por volta de 1644, trazidos pelos portugueses para servirem como mão de obra escrava na exploração de drogas do sertão, cultivo da cana de açúcar e da mandioca. Os latifúndios e aldeamentos jesuíticos que ali se estabeleceram contavam com negros e indígenas na execução do trabalho compulsório que, consequentemente, resultaram em resistências, fugas e práticas de solidariedade na constituição de mocambos e quilombos na região.
Já o artigo do pesquisador português João Ferreira Dias, “Candomblé é a África: esquecimento e utopia no candomblé jeje-nagô”, também destaca a interação brasileira com a diáspora africana, todavia, na conjuntura baiana da virada do século XIX para o século XX. O autor aponta que a narrativa do candomblé não se constitui pela linearidade ou por um ideal de continuidade resultante da recriação simples de costumes africanos transportados para o Brasil. Assim, a partir de povos iorubás e ewe-fon, transformados em escravos no período colonial, o autor destaca os rearranjos rituais desses grupos étnicos, muitas vezes representantes de reinos rivais africanos, e como engendraram uma nova realidade religiosa compartilhando com o catolicismo popular suas memórias, similitudes culturais e esquecimentos.
Nos três artigos seguintes, apresentamos pesquisas que dialogam com a temática indígena e quilombola no nordeste e no centro-oeste brasileiros. No artigo “Não somos selvagens: cultura política dos índios no Ceará (1799-1822)”, João Paulo Peixoto Costa investiga que as comunidades indígenas cearenses – à época da transição entre colônia e império –, no propósito de receber benefícios e garantias, estrategicamente buscavam se identificar enquanto súditas da Coroa Portuguesa. Segundo o autor, a intenção dos grupos étnicos indígenas em planejar resistências e reações estava longe de ser desarticulada e puramente violenta. Já a pesquisadora Maria Jorge dos Santos Leite colabora aqui com sua pesquisa intitulada “Quilombolas e indígenas: intercruzamentos, identidades e conflitos no sertão de Pernambuco”, cujo objetivo é analisar o processo de construção identitária da comunidade quilombola de Conceição das Crioulas, no sertão do Estado pernambucano, identificando as interações étnicas e as interconexões culturais de seus habitantes com a aldeia indígena Atikum. Para arrematar a temática indígena e quilombola nessa série de artigos, Luciana de Oliveira, Tonico Benites e Rui de Oliveira Neto, em pesquisa conjunta intitulada “Sacrifício e quase-acontecimento: apontamentos sobre a visibilidade da luta pela terra dos povos indígenas Guarani e Kaiowa”, apresentam o histórico de opressão e confinamento desses grupos étnicos estabelecidos na região sul-mato-grossense e como se rearticularam na contemporaneidade para expor suas recorrentes demandas, sobretudo, no que concerne ao direito aos seus territórios frente ao agronegócio. Os pesquisadores afirmam que, embora provocando intensas disputas e controvérsias, as comunidades indígenas Guarani e Kaiowa alcançaram visibilidade ao se utilizarem das mídias sociais na reprodução de narrativas, lutas e demandas referentes à preservação ambiental, demarcação de terras e autodeterminação étnica, embasadas em princípios garantidos pela carta constitucional e pelo Estatuto dos Povos Indígenas. Os pesquisadores lançam mão de atualizados dados quantitativos para demonstrar o descaso pelo direito indígena por parte do poder público, ilustrado aqui por números alarmantes e assustadores de suicídio e alcoolismo, além de violentas disputas históricas pela terra travadas com os fazendeiros do agronegócio na região do estado de Mato Grosso do Sul.
Neste número também é discutida a relação conceitual entre musealização e patrimonialização. É o que faz Janaina Cardoso de Mello no artigo “Entre a farroupilha e a redenção: negros percursos museológicos na terra do chimarrão”. A autora utiliza-se de um amplo debate acadêmico acerca das novas definições, orientações e práticas museológicas no campo patrimonial para analisar o Museu do Percurso de Porto Alegre que – entre os anos 2008 e 2011 –, foi idealizado e iniciou seus projetos em curso. Janaina Mello pontua que tal investida sintoniza-se com a atual noção de museu de território (ou museu a céu aberto ou museu de percurso) no sentido de ressignificar trajetórias e territorialidades percorridas ou apropriadas, no caso em questão, por comunidades étnicas negras africanas presentes desde a época colonial em Porto Alegre (RS). A autora afirma que a presença negra no sul do Brasil é comumente negligenciada pela historiografia regional ao se priorizar a figura do gaúcho e seus estereótipos que evidenciam o branqueamento de costumes e lugares de memória naquela parte do país.
Em seguida, os pesquisadores José Jorge Siqueira e Ignacio José Godinho, nos respectivos artigos “Modelos de desenvolvimento, economia política e a questão do negro no Brasil” e “Ações afirmativas e o horizonte normativo da democracia racial” discutem o descaso e a imobilidade do Estado brasileiro frente às políticas públicas em relação à população afrodescendente. Os autores utilizam-se de amplo suporte bibliográfico e percorrem a trajetória dos modelos econômicos nacionais – do capitalismo agroexportador ao desenvolvimentismo – e destacam como o branqueamento e o descaso com a educação e com a população ex-escrava e suas gerações posteriores foi encoberto pela internalização da suposta democracia racial, agravando os abismos de desigualdade socioeconômica no país.
O artigo “Sírios, libaneses e judeus – paradoxo entre o grupo e a nação: participação e restrição em Belo Horizonte nos anos 1930 e 1940”, produzido por Júlia Calvo e Pedro Henrique da Silva Carvalho, analisa a presença dos grupos estrangeiros que imigraram para a capital mineira e como se organizaram em associações, estilos de vida e laços de sociabilidade, além das práticas econômicas que passaram a desempenhar no comércio da cidade. Os coautores destacam que tais grupos estrangeiros se organizaram em comunidades étnicas integradas por fortes vínculos de pertencimento e solidariedade, representadas pela União Síria e União Israelita de Belo Horizonte. Os pesquisadores discutem a discriminação sofrida por esses grupos étnicos institucionalizados, através de ações repressoras do Estado brasileiro durante as décadas de 1930 e 1940.
A perspectiva étnica na conjuntura africana também é debatida neste dossiê. Danilo Ferreira da Fonseca analisa no artigo “Etnicidade de hutus e tutsis no Manifesto Hutu de 1957”, a realidade de Ruanda – país situado na região centro-oriental do continente africano –, que mergulhou em intensos conflitos internos após o processo de emancipação política frente ao domínio belga, repercutido principalmente pelo famoso genocídio ocorrido em 1994. O autor destaca o processo de pertencimento, de interação e de conflito acerca da etnicidade dessas duas comunidades ruandesas na segunda metade da década de 1950 na articulação de diferentes projetos de independência pensados para o país.
E, por fim, integra a sequência de publicações desse dossiê, a conferência de Jocélio Teles dos Santos, “Da cultura exótica à ótica das culturas”. Nesta comunicação, o pesquisador analisa o conceito de cultura a partir de suporte teórico embasado por textos de Montaigne, Voltaire e Rousseau, e destaca como tal temática da diferenciação cultural foi produzida pela imprensa, pelos viajantes e pela literatura no Brasil oitocentista.
Vale informar aos leitores e colaboradores que esse primeiro número de 2016 traz um novo projeto gráfico da revista Cadernos de História. Nesse sentido, visando atender melhor a todos os critérios de qualidade para periódicos acadêmicos, estamos nos adaptando às diretrizes colocadas pela CAPES / QUALIS, bem como passamos a utilizar as orientações da NBR 6021 / 2015 da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, seguindo assim a recomendação da Scielo. Agradecemos mais uma vez a equipe do Setor de Revisão da PUC Minas, especialmente, aos professores Gilberto Xavier e Daniella Lopes, e aos estagiários Laila Xavier e Roberto Barcelos. Agradecemos também ao chefe do Departamento de História da PUC Minas, professor Edison Gomes, e ao diretor da Editora PUC Minas, professor Paulo Agostinho Nogueira Baptista. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial dos Cadernos de História, especialmente, aos professores Virgínia Maria Trindade Valadares e Rafael Pacheco Mourão. Ressaltamos que todas essas pessoas foram importantíssimas para tornar possível essa publicação.
Portanto, através dos artigos aqui publicados, os Cadernos de História ratificam ser um amplo espaço de discussão acadêmica que contribui com o diálogo transdisciplinar ao reunir nesse número instigantes pesquisas sobre História e Etnicidade. Desejamos a todos uma boa leitura!
Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro – Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor do Departamento de História da PUC Minas. Editor Gerente dos Cadernos de História.
CEDRO, Marcelo de Araújo Rehfeld. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.17, n.26, 2016. Acessar publicação original [DR]
Educação a Distância. Batatais, v.6, n.2, jul./dez. 2016.
Expediente
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- Evandro Marianetti FIOCO
- Ana Martha de Almeida LIMONGELLI
- Célia Regina Vieira de SOUZA-LEITE
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Ensino de história e o ofício do historiador / Fato & Versões / 2016
É com imensa alegria que o Conselho Editorial da Revista Fato & Versões lança mais um número, este referente ao segundo semestre de 2016 cujo tema central é o Ensino de história e o ofício do historiador. Organizar um dossiê com esta temática neste tempo de retrocessos institucionais e de patrulha no trabalho dos professores não é uma tarefa fácil, porém extremamente necessária para divulgar as pesquisas nesta área e, ao mesmo tempo, atuar politicamente na denúncia dos projetos que o poder legislativo em todo país tentam impor a nossa disciplina.
O projeto conhecido como “escola sem partido” e o ataque às propostas de discussão de gênero na educação básica são as partes mais visíveis deste momento conservador e autoritário que vivemos.
Entendemos que a universidade pública e os cursos de história têm um papel político relevante em tempos como este. Cabem aos profissionais que atuam nestes lugares promover o debate e atuar para que estes retrocessos não sejam oficializados e, mais do que isso, colocar no espaço público pesquisas e visões sobre o ensino e os sujeitos que dele fazem parte para contrapor a estas concepções junto à população em geral.
Sabemos que a disputa é desigual em função da pequena capacidade de circulação destes trabalhos e de nossas revistas científicas, mas acreditamos cumprir uma função relevante ao criar espaços de debate que não são únicos e que podem chegar aos nossos colegas professores de outras universidades e de diversas instituições da educação básica.
Neste número da revista Fato & Versões temos uma variedade de artigos que tratam do ensino de história pensando a relação da universidade com a educação básica nas disciplinas de estágio e a necessidade da disciplina de intervir nas discussões vivenciadas na sociedade como no texto de Renilson Rosa Ribeiro e Luís César Castrillon Mendes. Este também é o tema do texto das pesquisadoras Jaqueline Aparecida Martins Zarbato e Vivina Dias Sól Queiróz que discutem o ofício do historiador e a importância da relação entre teoria e prática na formação inicial dos professores.
Em sintonia com os debates atuais as pesquisadoras Ana Carolina Eiras Coelho Soares e Esdra Basílio discutem sobre as relações de gênero a partir de imagens construídas do corpo feminino na mídia impressa e suas funções pedagógicas. O artigo destaca também a importância do movimento feminista como marco de disputas e de atuação histórica das mulheres.
Gilberto Cezar Noronha, Jaqueline P. Vieira da Silva e Rosemary Ribeiro recuperam a produção intelectual da revista Cadernos de História, da Universidade Federal de Uberlândia, para tratar do atual processo de revisão do ensino de História. A partir destes textos trazem valiosas contribuições para pensarmos sobre os embates vividos no país e os desafios do ensino de história na educação básica. Ainda no campo das reflexões sobre o ofício de professor e as condições de atuação na educação básica temos um texto bastante autoral de Elias Coimbra Silva que parte das suas próprias experiências nas escolas públicas de São Paulo para discutir as condições de trabalho e de luta dos docentes para garantir seus empregos.
Para finalizar o dossiê temos dois artigos que tratam mais especificamente das questões metodológicas. O texto de Maria Helena Gondim Almeida parte de suas experiências docentes da educação básica para mostrar o potencial do teatro na sala de aula como mediação entre o conteúdo e a prática didática. A autora destaca ainda no artigo as possibilidades desta proposta como instrumento para explorar a capacidade criativa dos alunos e aglutinar diferentes disciplinas para construção de uma prática pedagógica interdisciplinar. Fabrícia Vieira Araújo e Leandro Garcia Pinto analisam as políticas públicas voltadas para os Direitos Humanos e sua relação com a Educação. Os autores interpretam o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos e discutem como esta política e suas visões chegam nos livros didáticos. O tema dos direitos humanos na educação é relevante neste momento por percebermos os embates na sociedade brasileira e a tentativa de retirada de uma série de direitos duramente conquistados por uma parcela significativa de trabalhadores brasileiros.
Este número conta ainda, com dois textos na seção de artigos. O primeiro de Juliana B. Cavalcanti discuti o mundo romano e sua relação com a escravidão destacando as relações de poder nas comunidades paulinas e problematizando as construções históricas da relação de Paulo com a escravidão. Por fim, temos o artigo da pesquisadora Elismar Bertolucci de Araújo Anastácio sobre o escritor Hélio Serejo (1902-2012). A autora busca a narrativa deste escritor para entender a construção das “fronteiras”, a ocupação territorial no sul de Mato Grosso e os sentimentos dos sujeitos fronteiriços nesta região.
Boa leitura a todos,
Renato Jales Silva Junior
Dilza Porto
SILVA JUNIOR, Renato Jales; PORTO, Dilza. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.8, n.16, 2016. Acessar publicação original [DR]
Direitas, história e memória / Faces de Clio / 2016
A Revolução Francesa ocorrida no século XVIII é amplamente difundida pela representatividade do evento na história do Ocidente. Entre outras coisas, ela legou ao mundo a dicotomia política que opõe os chamados grupos de direita e de esquerda. Desde então, esses conceitos foram apropriados, relidos e reinterpretados, porém tornando-se termos comuns no vocabulário político.
O século XX contribuiu para fortalecer essa oposição através, especialmente, da Guerra Fria, que opôs o bloco capitalista e o bloco socialista por cerca de 50 anos em estado de tensão permanente, mantendo vivo o forte enfrentamento entre as partes. As vivências verificadas em tal século marcaram intensamente a disputa política entre atores alinhados às ideias de cada parte, de tal forma que essas oposições ainda se fazem presentes e são recorrentemente evocadas em discursos.
Dentre as conceituações atribuídas aos termos direita e esquerda, ganharam notoriedade as reflexões do italiano Norberto Bobbio [1]. Em que pesem as muitas contestações sobre o uso de tais categorias políticas e as diferentes interpretações dos termos, suas ideias têm aparecido de modo destacado nos trabalhos acadêmicos, seja através de sua adoção ou mesmo de sua crítica. Assim, não há consenso que delimite de forma definitiva a conceituação de ambos os termos. Há, na verdade, embates bibliográficos que também são tensos, refletindo o perfil histórico da abordagem dos termos.
De toda forma, é crucial ressaltar que, durante muito tempo, houve substancial interesse de pesquisadores pelo campo da esquerda política, através do qual investigou-se, por exemplo, movimentos sociais, as resistências em contextos autoritários ou os partidos de esquerda, que mais frequentemente estiveram na oposição. Para isso, é natural se observar que o marxismo exerceu profunda influência na produção historiográfica no decorrer do século XX, pautando pesquisas pelos aspectos da luta de classes ou do materialismo histórico-dialético. Recentemente, contudo, cada vez mais pesquisadores têm se atentado para o estudo dos partidos e dos movimentos de direita, abordando suas mais diversas perspectivas teórico-analíticas possíveis. No que concerne às pesquisas brasileiras, cumpre-se destacar que tal movimento enfatizando a abordagem das manifestações da direita política é muito decorrente das pesquisas que se iniciaram acerca do integralismo. Esta manifestação de aspectos fascistas surgida na década de 1930 tornou-se alvo de importantes pesquisas na segunda metade do século XX, chamando a atenção de outros pesquisadores para a investigação de um campo ignorado e que já fora mesmo rejeitado. Hoje, as pesquisas acerca do integralismo brasileiro são múltiplas e estão espalhadas pelo território adotando diversas abordagens. Mais do que isso, no entanto, existe muito mais fundamentação investigativa disponível sobre outras manifestações alinhadas com posicionamentos da direita política, como bem demonstra esta edição da revista Faces de Clio.
Ainda discorrendo sobre as pesquisas e seus pesquisadores, o dossiê da presente edição se vincula diretamente com uma rede de pesquisa internacional homônima, “Direitas, História e Memória” ( https: / / direitashistoria.net / ). Fruto de um significativo crescimento das investigações acerca das direitas, a rede congrega pesquisadoras e pesquisadores de diversos países que se dedicam a analisar as direitas, no plural, uma vez que não se compreende tal posicionamento político como algo monolítico. A rede de investigação também existe formalmente no Brasil reconhecida como Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (ANPUH) desde 2015, sendo composto por suas células estaduais em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Desde 2014, no entanto, a rede de pesquisa se manifesta através de eventos acadêmicos e de publicações direcionadas para a temática abordada. Nesta edição da revista Faces de Clio, inclusive, estão presentes textos de vários membros da rede, com destaque para os artigos escritos pelos seus coordenadores gerais, Janaína Cordeiro e Odilon Caldeira Neto, e para um importante membro internacional, Werner Bonefeld, da Universidade de York.
A publicação desta edição acontece em momento muito oportuno para semear as reflexões sobre as direitas. Percebe-se, atualmente, a emergência de atores e grupos políticos que se vinculam com discursos e pensamentos ditos de direita não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Em nosso país, estamos testemunhando um processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff que, para além do mérito do crime sobre a qual é acusada, é significativamente impulsionado por grupos de direita. Em manifestações recentes nas ruas do país, tornou-se evidente, mais uma vez, a dicotomia direita e esquerda. Em caminho preocupante, agravam-se as manifestações de extremismo e de intolerância política. Mas tal condição não é uma particularidade nossa, ela se revela como uma nova onda mundial de conservadorismo. Na América do Sul, países vizinhos como Argentina e Peru já elegeram governantes provenientes das direitas que expressam tal condição de maneira mais contundente. Mais ao norte do continente, Donald Trump ganha espaço na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos com discursos agressivos que ameaçam estrangeiros e muçulmanos, por exemplo. Na Europa, a extrema direita tem se tornado mais presente no cenário político, conquistando adeptos e mesmo interesses arrojados, como é o caso da saída do Reino Unido da União Europeia.
Em suma, as ideias das direitas estão presentes nos discursos políticos de vários locais do mundo atual. Ainda que identificadas, é preciso que mais análises se desenvolvam sobre seus conteúdos, principalmente no que se refere a revelar os excessos que extrapolam alternativas sobre modos de condução da economia ou atuação do Estado, mas as perspectivas que colocam em risco os direitos e as liberdades.
A edição que ora se apresenta da revista Faces de Clio traz em seu dossiê uma ampla abordagem sobre tais direitas na história. Nele é possível encontrar análises sobre regimes, movimentos e partidos políticos, religiosidade, gênero, trajetórias, abordagens econômicas e sistêmicas. Oferecendo, assim, uma frutífera contribuição para a compreensão do mundo atual.
Abrem a edição Lívia Magalhães e Janaína Cordeiro, Professoras substituta e efetiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) respectivamente. As historiadoras analisam a relação existente entre o futebol e as ditaduras militar na Argentina e no Brasil por meio dos discursos de Presidentes que se apropriaram dos êxitos de seus países nas Copas do Mundo de futebol de 1970 e 1978 para fortalecer seus projetos nacionais e seus regimes de governo.
Odilon Caldeira Neto, Professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), explora as “novas direitas” no Brasil, analisando as especificidades da Frente Nacionalista, um grupo de orientação neofascista na atual conjuntura de crise política e de polarização ideológica.
Há também uma especial participação do Professor Werner Bonefeld, da Universidade de York – Reino Unido, que, em seu artigo, apresenta algumas de suas reflexões sobre o ordoliberalismo alemão, cuja ideologia é apontada como a orientadora da zona do Euro. Em sua abordagem, o autor recupera as ideias de Carl Schmitt que estão presentes em tal ideologia para ampliar a sua compreensão sobre democracia e estrutura de decisão.
Dialogando com a literatura, Natália Guerellus, pós-doutoranda em História na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), analisa a trajetória política da escritora cearense Rachel de Queiroz, que fez parte em sua juventude do Partido Comunista e, mais tarde, apoiou o golpe de 1964. A autora explicita o pensamento político de uma das mais destacadas escritoras brasileiras do século XX, que, ao longo de sua vida, realizou um notório deslocamento em seu posicionamento no espectro político.
No campo religioso, Alexandre de Oliveira, doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC / RS), apresenta seus apontamentos sobre a atuação do cardeal Sebastião Leme e os mecanismos adotados pela Igreja Católica frente aos desafios do Estado laico. Atuando nos anos 1930, Dom Leme almejava organizar o clericato brasileiro, assim como as próprias bases da instituição religiosa.
O português George Gomes, doutorando na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, contribui com a atual edição abordando a relação intelectual existente entre o português António Sardinha e o brasileiro Gilberto Freyre. O autor tenta elucidar a influência do maior doutrinador da direita portuguesa, ideólogo do integralismo daquele país, em um proeminente intelectual do Brasil no século XX.
Por sua vez, Lidiane Friderichs, doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), traz para a análise o neoliberalismo divulgado por meio de uma rede de think tanks, institutos utilizados para divulgação de determinadas ideias políticas e econômicas. A autora aborda suas existências e atuações nos contextos internacional e brasileiro.
Outra contribuição proveniente de uma instituição francesa é a de Marina Duarte, doutoranda em História pela Université Paris Diderot – Paris 7. Em seu artigo, a historiadora mapeia os discursos e os mecanismos de desigualdade que recaem sobre as pessoas trans na França. Marina revela a atuação das instituições médicas, jurídicas e legais e mesmo de certo movimento feminista mais radical que nega o direito de tais indivíduos de se engajarem em seu movimento.
Completando o dossiê, Gustavo Oliveira, mestrando em História na Universidade Federal de Ouro Preto, explora o pensamento do renomado filósofo francês Michel Foucault. Correlacionando suas ideias com a de vários outros autores anarquistas clássicos, a linha condutora da análise do autor baseia-se na questão da autonomia da educação anarquista.
Por fim, encerra a edição a resenha feita por Cecilia Ewbank, pós-graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sobre o livro De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau, de autoria de Mariana Françozo. A obra, que foi publicada em 2014 pela Editora da UNICAMP, recebe uma crítica bem elaborada que se conduz pelo enfoque da trajetória social do gabinete desse importante personagem holandês na história brasileira.
Com isso, acreditamos que a atual edição contribui não apenas com um campo de pesquisa em recente crescimento, mas também com questões e temáticas de importantes reflexões para o mundo atual. Pela via das análises históricas, explora-se a atuação das direitas em diversos segmentos no decorrer dos séculos XX e XXI e suas reinvenções desde a Revolução Francesa, oferecendo maior embasamento para compreensão de suas manifestações contemporâneas.
Nota
1. Obra referencial para o debate acerca das categorias direita e esquerda que é amplamente abordada na historiografia é BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 1995.
Julho de 2016
Antonio Gasparetto Júnior
Nittina Anna Araújo Bianchi Botaro
BOTARO, Nittina Anna Araújo Bianchi; GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.2, n.4, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
Los pueblos amerindios más allá del Estado | Federico Navarrete e Berenice Alcántara
En las últimas décadas ha comenzado a aflorar de la mano de antropólogos, historiadores y arqueólogos, una imagen distinta de las sociedades no estatales americanas que reconoce la variedad de sus formas de organización social, ubicando su protagonismo en la historia junto al de las sociedades estatales con las que han coexistido durante milenios y buscando comprender las interacciones entre ellas. Y lo cierto es que una de las contribuciones más recientes en esta reorientación historiográfica y antropológica de los estudios americanistas ha sido el libro Los pueblos amerindios más allá del Estado, coordinado por Berenice Alcántara Rojas y Federico Navarrete Linares. Se trata de una compilación que se sumerge de lleno en la problemática de la existencia de incontables pueblos indígenas que se sustrajeron con éxito al dominio de los Estados precolombinos, coloniales y republicanos, ese capítulo de la historia del continente americano que ha sido tradicionalmente ignorado tanto por la historiografía como por la antropología. En líneas generales, el libro surge como corolario de un proyecto grupal de investigación coordinado por los editores de esta obra colectiva, pero más específicamente emerge como concreción editorial de las discusiones del coloquio internacional organizado por la Universidad Nacional Autónoma de México llevado a cabo en la ciudad de México D. F. a comienzos de noviembre de 2008, en el que debatieron especialistas de México, Brasil y Estados Unidos. De esta manera, los siete trabajos compilados en este volumen hacen alusión a regiones muy diversas de América e inclusive van más allá, ofreciendo una perspectiva comparativa sin precedentes de los ambientes ecológicos y las prácticas socioculturales que posibilitaron a ciertas sociedades amazónicas, andinas, mesoamericanas, aridamericanas y melanesias escapar de la dominación estatal. Combinan las herramientas disciplinarias de la historia, la arqueología y la antropología para procurar identificar las complejas dinámicas de estas sociedades y sus contradictorias relaciones con los Estados que han intentado sujetarlos a lo largo de los siglos. En conjunto, presentan una perspectiva novedosa que amplifica la visión de las sorprendentes historias y las interesantes culturas de aquellos pueblos que tradicionalmente han sido considerados primitivos o “sin historia”. Leia Mais
Clase. El despertar de la multitud | Andrea Cavalletti
Aunque no circule profusamente, a lo largo de los parágrafos que contiene Clase. El despertar de la multitud, de Andrea Cavalletti, la figura de Walter Benjamin resulta sin duda crucial. El pensamiento benjaminiano, en efecto, y específicamente una nota al pie, otorga al libro una suerte de pivote que permite al autor posicionarse en las dos principales genealogías conceptuales del estudio, a saber, la teoría de las clases sociales y las reflexiones sobre la masa y la muchedumbre. Dicha matriz teórica, como veremos, sirve a Cavalletti para retomar el concepto de clase (devaluado tras la diagnosis –ya fetichizada– de la complejización postfordista de las relaciones sociales en el siglo XX) y tantear su posible reactivación en el terreno socio-político contemporáneo. Aunque sean muchos los nombres que conjugue en su despliegue (esenciales son también la Massenwahntheorie de Broch o Masse und Macht de Canetti), los 55 parágrafos del libro de Cavalletti gravitan sobre los múltiples estratos de la nota de Benjamin, al punto de legitimar su caracterización como un estudio benjaminiano, aunque no verse sobre él, y más aun considerando, retroactivamente, su cierre con una “Apostilla benjaminiana”.
La requisitoria que surge entonces es si, por una parte, y desde una perspectiva, digamos, interna, algunos de los estratos de lectura que contiene el fragmento de Benjamin no son exhaustivamente analizados. En segundo lugar, y ya más directamente sobre el quid del estudio, conviene determinar los alcances que la reactivación de la noción de clase puede poseer y qué campo de relaciones teórico-políticas permite delimitar. En este sentido, y sólo a guisa de ejemplo, resulta altamente llamativo que gran parte de los conceptos que forman parte de la actual cartografía de la filosofía política (la teoría hegemómica posmarxista laclausiana la impolítica de Espósito o la teoría sobre la democracia de Rancière, entre otras) sean totalmente omitidos del estudio. Nos referiremos a estas dos perspectivas de interpretación sobre el libro, luego de abordar sucintamente los aspectos más relevantes del mismo. Leia Mais
Outros Tempos. São Luís, v.13 n. 21, 2016.
Dossiê: América Latina no Século XX: intelectuais, disputas políticas e representações do poder
Apresentação
- Apresentação
- CARINE DÁLMAS, ELISA DE CAMPOS BORGES
Artigos
- “SEM EDUCAÇÃO NÃO HÁ MISSÃO”:aintrodução da formação jesuítica no Maranhão e Grão-Pará (Século XVII)
- KARL HEINZ ARENZ
- ELOGIO, IMPERIALISMO E DISSIMULAÇÃO: os relatos franceses e a natureza brasileira no século XIX
- LUIS FERNANDO TOSTA BARBATO
- O PARTIDO CONSERVADOR NA PROVÍNCIA DOPARANÁ: composição social, conflitos internos e transição de comando político em dois diretórios partidários (Curitiba e Paranaguá, 1876-1879)
- SANDRO ARAMIS RICHTER GOMES
- ESPECTROS DE LUTADORES: história, memória e imprensa em Sobral/CE no início do século XX
- JORGE LUIZ FERREIRA LIMA
- A INVENÇÃO DO ELDORADO MARANHENSE EM NARRATIVAS DE MIGRANTES NORDESTINOS (1930-1970): aportes teóricos metodológicos
- MARCIA MILENA GALDEZ FERREIRA
Dossiê
- UMA NAÇÃO DE ESTRANGEIROS: a imigração na Revista de Derecho, Historia y Letras
- CAMILA BUENO GREJO
- JESÚS SILVA HERZOG: um intelectual entre o Estado e a cultura
- MARIA ANTONIA DIAS MARTINS
- ¿REPRESIÓN O DEMOCRATIZACIÓN?: la clase dominante chilena ante la crisis de la dominación oligárquica (1918-1927)
- ROLANDO ALVAREZ VALLEJOS
- SUBVERSIÓN Y COERCIÓN: izquierdas y derechas en los inicios de la democracia chilena del siglo XX
- VERÓNICA VALDIVIA ORTIZ DE ZÁRATE
- REVISITANDO O MUNDO FELIZ: um estudo das múltiplas imagens sobre os trabalhadores no Primeiro Peronismo (1946-1955)
- MAYRAN COAN LAGO
- UM CIGARRO PARA UM AMIGO: a Guerra Civil Espanhola na Imprensa Comunista Mexicana
- FÁBIO DA SILVA SOUSA
- CONSIDERACIONES SOBRE EL PATRIMONIO HISTÓRICO EN VILLA NUEVA (CÓRDOBA-ARGENTINA) EN TÉRMINOS DE HERENCIAS SOCIALES
- MARÍA LAURA GILI
Estudo de caso
- POBRE DEL CANTOR QUE NO SE IMPONGA CON SU CANCIÓN: conexões transnacionais no álbum Trópicos, de Daniel Viglietti (1973)
- CAIO DE SOUZA GOMES
Entrevista
- BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) E O ENSINO DE HISTÓRIA DAS AMÉRICAS
- CARINE DÀLMAS, ELISA DE CAMPOS BORGES
Resenhas
- TRANSNACIONALIDAD Y CONTACTOS CULTURALES EN UNA HISTORIA DE EDICIÓN: el libro judío en Buenos Aires
- PAULINA IGLESIAS
- A HISTÓRIA DA AMÉRICA LATINA SOB PERSPECTIVA CRÍTICA
- ROMILDA COSTA MOTTA
- INFORMAÇÕES EDITORAIS
- Anissa Ayala Cavalcante
Publicado: 2016-06-30
Revista Eletrônica da ANPHLAC. São Paulo, n. 20, 2016.
História do Caribe – Parte I
Apresentação
- Apresentação – Parte I
- Silvia Cezar Miskulin, Iuri Cavlak
- Dossiê
- Fernando Ortiz e o lugar da Espanha na sua trajetória política e intelectual
- José Luis Bendicho Beired
- A Havana de Vives Escravidão e vadiagem na dinâmica urbana da capital cubana (1823-1832)
- Ynae Lopes dos Santos
- Carnaval como direito: A Revolta Canboulay de 1881, em Porto de Espanha, Trinidad.
- Eric Brasil
- José Martí, tecnologia e modernização
- Fabio Muruci
- Impressões de uma guerra: o discurso de O Estado de S. Paulo sobre a guerra de independência cubana (1895-1898).
- Renato Cesar Santejo Saiani
- Carlos Baliño, pioneiro do marxismo na América Latina
- Luiz Bernardo Pericás
- El activismo social y político de las mujeres durante la República de Cuba (1902-1959)
- Manuel Ramírez Chicharro
- A primeira ocupação militar dos EUA no Haiti e as origens do totalitarismo haitiano
- Everaldo Oliveira Andrade
Artigos
- “El fuego de la libertad”: a conspiração sufocada de negros livres, cativos fugidos da América portuguesa e indígenas em Santa Cruz de La Sierra (1809)
- Bruno Pinheiro Rodrigues
- Imprensa, debates públicos e poder político no Paraguai durante os primeiros anos de ocupação aliada (1869-1870)
- Bruno Felix Segatto
- Resenhas
- Resenha: A cosmologia construída de fora
- Adalto Viera Ferreira Júnior
Publicado: 2016-06-27
Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 17, n.2, 2016.
Artigos
- Interações, Celulares Smartphones e Processos de Ensino e Aprendizagem | Lucinalva Rosangela Panuci, Luciane Guimarães Batistella Bianchini, Cleonice Jose de Souza, Jaqueline de Brito Silva, Carla Mancebo Esteves Munhoz | |
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- As Possibilidades e Contribuições do Hipertexto no Ensino e Aprendizagem | Selma Alice Ferreira Ellwein, Samira Fayes Kfouri | |
- O Fracasso Escolar entre Estudantes do 6º Ano de Escolas Públicas Estaduais de Rio Grande, RS | Celso Ubirajara Soares dos Santos, Patricia Duro Vianna, Fabio Andrade Bulhosa | |
- Os Impactos do Projeto Jovem de Futuro no Processo de Ensino-Aprendizagem na Ótica da Gestão Escolar | Maria Erlândia Moraes, Napiê Galvê Aráujo Silva | |
- Concepção de Alunos sobre as Fases da Lua e os Eclipses Lunar e Solar: Relato de Experiência | Juliana Alves da Silva Ubinski, Dulce Maria Strieder | |
- Brinquedotecas Hospitalares: Parâmetros de Avaliação | Mayara Barbosa Sindeaux Lima, Vera Barros de Oliveira, Celina Maria Colino Magalhães | |
- Educação Permanente em Saúde: a Problemática da Doação de Órgãos | Fernando de Aguiar, Janine Moreira | |
- Formação Pedagógica: a Percepção dos Docentes do Curso de Ciências Contábeis em uma Instituição de Ensino Catarinense | Milla Lúcia Ferreira Guimarães, Gildo Volpato | |
- Química Qualitativa: um Olhar sobre a Mediação utilizando Recursos Digitais | Maria das Graças Gomes, Paulo Henrique Medeiros Theophilo | |
- Uso de Recursos e Estratégias Pedagógicas na Saúde da Família | Marcela Andressa Simões Silva, Maria Angela Boccara de Paula | |
- Cenário Brasileiro do PLE: Contribuições da UFSM em Foco | Grazielle da Silva dos Santos | |
Publicado: 2016-06-23
Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.16, n.1, 2016.
Educação a Distância Comunicação e interculturalidade
Educação a Distância Comunicação e interculturalidade
- Tecnologias digitais de informação e comunicação, interculturalidade e formação docente
- Maria Natália Pereira Ramos
- Trabalho em EAD sob a percepção de docentes de um curso de especialização da UTFPR
- Aline Fornari Dalfovo, Everton Coimbra de Araújo, Shiderlene Vieira de Almeida, Claudete Cargnin
- Resistência docente à educação a distância (EAD): análise de trajetórias em busca de novas epistemologias
- Maria Aparecida da Silva, Lucineide Alvez Costa, Fabiana Pinto de Almeida Bizarria
- As percepções de professores de matemática do ensino fundamental frente as tecnologias digitais na escola
- Kécia Karine Santos de Oliveira, Anne Alilma Silva Souza Ferrete, Divanizia do Nascimento Souza
- Uso pedagógico do ambiente virtual de aprendizagem Moodle como apoio a aula presencial
- Simone Andrade Santos, Shirley Ribeiro Viegas, Márcia Jussara Rehfeldt, Miriam Ines Marchi
- Aprendizagem móvel e interculturalidade: produção científica em cursos de pós-graduação da Universidade Aberta de Lisboa
- Maria Ligia Rangel Santos, Maria Natália Pereira Ramos
- Contribuições do Google docs para suporte à iniciação científica no contexto do estágio supervisionado em cursos a distância
- Ivanderson Pereira da Silva, Luis Paulo Leopoldo Mercado
- Ensinar a aprender, aprender a ensinar: um olhar sobre uma prática pedagógica
- Márcia Jussara Hepp Rehfeldt, Claudionor de Oliveira Pastana, Rogério José Schuck
- Avaliação Cooperativa em Materiais Interativos de Ensino a Distância
- Davi José Di Giacomo Koshiyama, Marcos Alberto Andruchak, José Guilherme Santa Rosa
- Comunicação e afetividade em ambientes virtuais
- Maria de Fátima Goulao
- Influência da afetividade na superação de dificuldades de aprendizagem em um curso militar a distância
- André Tenório, Tatiana Etges Medina, Thaís Tenório
Artigos Gerais
- Capacitação em recursos hidrícos por meio de oficinas temáticas e AVA: proposta metodológica
- Gisele Bacarim, Vania Elisabete Schneider, Laurete Teresinha Zanol Sauer
- PDF ()
- A avaliação na EaD: linguagem, texto e discurso Alguns parâmetros para os cursos EaD da SEED/PR
- Ricardo Hiroyuki Shibata
- A construção do pensar: uma abordagem a partir do uso das TDIC no ensinode matemática
- Katia Maria Limeira Santos, Carlos Alberto Vasconcelos
Bibliografia Comentada
- Bibliografia comentada sobre educação a distância e práticas educativas comunicacionais e interculturais
- Luís Paulo Leopoldo Mercado
Publicado: 2016-06-03
Histórias do Atlântico e Diáspora Africana / Crítica Histórica / 2016
Em 2014, durante o Encontro de História da ANPUH – Seção Bahia, durante a fundação GT Regional História do Atlântico e da Diáspora Africana, fomos provocados pela Professora Ana Paula Palamartchuk, à época editora da Revista Crítica Histórica, para organizarmos o Dossiê que aqui apresentamos. Ele é produto da ação tanto do referido GT, quanto do Grupo de Pesquisa Estudos do Atlântico e da Diáspora Africana, cadastrado no CNPQ e certificado pela Universidade Estadual de Santa Cruz- UESC, em 2005.
O viés que norteou a seleção dos textos é a perspectiva de que uma centralidade da História Marítima, como um fio condutor de pesquisas e do estabelecimento de canais de diálogo entre os estudiosos ainda nos parece algo recente no Brasil. Isso não quer dizer que as pesquisas relativas à história marítima sejam novidade em nosso meio acadêmico. Mas o fato é que as possibilidades de temas, objetos, diálogos e formas de abordagens que se apresentam para uma História Marítima Brasileira são incontáveis. O estudo de diversos processos históricos, quando analisados em perspectiva atlântica, revelam as dinâmicas globais e nuanças que contribuem para um entendimento mais aproximado de suas complexidades.
A ideia de uma “História do Atlântico e da Diáspora Africana” traz consigo alguns significados e conceitos que remetem a sua amplitude temática, geográfica e cronológica. Esses significados e conceitos têm um impacto direto sob a perspectiva pela qual se analisa os fenômenos e processos sociais, sejam eles em suas dimensões sincrônicas ou diacrônicas.
O Atlântico, além de sua conotação geográfica mais imediata – o oceano que interliga as Américas, Europa e África – tem sido pensado e proposto como um espaço de contato e circulação de pessoas procedentes destas três porções de terra e, com elas, suas ideias, memórias, valores, tradições, línguas, literaturas, políticas, economias, culturas. A ideia de Atlântico e a de diáspora africana apresentam-se de modo imbricado e por vezes indissociadas. Com isso não se pretende circunscrever a História Atlântica apenas ao movimento gerado pelo deslocamento de pessoas e ideias, direta ou indiretamente, vinculado ao tráfico de escravos. Ela tem proporções muito maiores, que abarca a circulação de pessoas e culturas materiais e imateriais, das diversas margens do Atlântico. É, sem perder essa perspectiva, que se organizou o Dossiê que aqui se apresenta, cujos objetivos, reafirmamos, são de estimular o debate e a divulgação de pesquisa que discutam a circularidade atlântica de pessoas, ideias, projetos econômicos, políticos, educacionais e culturais, bem como, a presença dos africanos e seus descendentes nas sociedades do Novo Mundo. O amalgama deste dossiê não é um objeto, uma cronologia ou um tema. É um espaço, o Atlântico.
Iniciamos, assim, o Dossiê Histórias do Atlântico e da diáspora Africana, da Revista Crítica Histórica nº 13, com o artigo “A Baía do Pontal – Ilhéus: relações do porto com a cidade – 1911 / 1971”, autoria de Flávio Gonçalves dos Santos, que traz uma breve revisão bibliográfica que situa o leitor para as questões relativas aos estudos atlânticos e portuários. Além disso, o autor analisa as alterações das feições da cidade de Ilhéus, na Bahia, ao longo de 60 anos (1911 / 1971), em virtude da instalação de um porto que pretendia exportar cacau.
Na sequência, apresenta-se o artigo de Cezar Teixeira Honorato, intitulado “Os afrodescendentes e a comunidade portuária”, que discute o perfil da comunidade portuária do Rio de Janeiro no último quartel do século XIX e o primeiro do século XX. Trata-se de um artigo que busca ampliar a compreensão dos modos de organização da comunidade portuária carioca, a partir de formas de associação que os indivíduos cultivavam entre si, formando assim um sentimento de pertença, de reconhecimento recíproco e, enfim, redes de sociabilidades. Sem perder de vista o contexto social e histórico e a multiplicidade de personagens e grupos sociais que ocupava / disputavam o mesmo espaço na região portuária.
Saindo das análises dos portos e se dedicando ao processo de construção naval, o terceiro artigo, de Halysson Gomes da Fonseca, denominado “O ‘zelo patriotico do scientifico ministro’ Francisco Nunes da Costa e a produção naval baiana (1780-1800)” trás para o centro de sua abordagem a utilização de recursos naturais, no período colonial brasileiro, ao analisar os aspectos da exploração madeireira na região norte da Comarca de Ilhéus – Bahia. Trata também da trajetória e atuação do um funcionário da administração colonial portuguesa no Brasil e, ao fazê-lo revela as preocupações da época em relação ao manejo e conservação das espécies de árvores, cujas madeiras eram de interesse à coroa portuguesa para uso na construção naval. O artigo revela ainda, o fluxo atlântico de ideias científicas e humanistas, sobretudo, a partir do planejamento e racionalização da administração dos assuntos da colônia e do uso dos recursos naturais, como as matas.
Os artigos que seguem apresentam outra feição dos Estudos Atlânticos, daqueles a que se convencionou chamar de Atlântico Negro, por relatarem as experiências relativas à diáspora africana e aos modos de vida, ação, resistência e resiliência de africanos e afro-brasileiros.
Assim, apresentamos, ainda dialogando com os séculos XVIII, Matheus Silveira Guimarães, em seu artigo “A população africana na irmandade de Nossa Senhora do Rosário: a cidade da Parahyba e o Mundo Atlântico” analisa a circulação de ideários religiosos no tempo e no espaço, para discutir a atuação de africanos na organização e manutenção da irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade da Parahyba do Norte, na Paraíba. O artigo demonstra como os africanos se organizaram em torno de uma irmandade católica, como forma de manter vivas partes de suas tradições funerárias, nas margens brasileiras do Atlântico, mas também como forma de afirmação ou de reconstrução de hierarquias sociais e políticas próprias, no interior da irmandade religiosa.
Tratando, também de experiências de reconstrução do Mundo Atlântico, Mary Ann Mahony, em seu artigo “A vida e os tempos de João Gomes: escravidão, negociação e resistência no Atlântico Negro”, analisa a história de um quilombola que opta por confessar um crime de tentativa de assassinato de seu senhor, sob o argumento de que estava cansado de viver a vida como um quilombola, livre nas matas de Ilhéus-Bahia, por volta de 1875. Ao discutir a trajetória do africano escravizado, a autora recuperando seu lugar de origem, conecta-o às formas de agir e pensar africanos de sua região, para matizar as possíveis opções feitas por ele para justificar seu ato voluntário de confessar um crime. Analisa também, as possíveis motivações tecidas no bojo da escravidão, que motivaria o crime e, posteriormente, a sentença que foi proclamada pelo júri. Assim, neste artigo, se revela como as teias complexas que moldam as opções e comportamentos de um indivíduo, envolvido pela experiência da escravidão, se estendem de uma margem a outra do Atlântico.
Com um salto no tempo, em relação a experiência do africano João Gomes, o artigo de Bas’Ilele Malomalo, intitulado “Mobilização política dos imigrantes africanos no atlântico sul pela conquista de direitos em São Paulo e Ceará (2012-2016)” descortina, fora das relações escravista, outra faceta da diáspora africana para o Brasil. Fora do escravismo, é verdade, mas ainda matizada por um subproduto dele, o racismo e a violência. Neste artigo, se apresenta as ações política de imigrantes africanos que se organizaram em São Paulo e no Ceará, como forma de combate a intolerância, violência e arbitrariedades a que estão susceptíveis imigrantes africanos no Brasil. O artigo relata uma série de ações e mobilizações ocorridas a partir de dois pontos traumáticos de mobilização e avançaram para a formulação de forma de atuação organizada e coletiva em busca da construção de políticas públicas que assegurem seus direitos de cidadania.
Os artigos aqui reunidos dão uma pequena dimensão das possibilidades e variedades de temas, objetos e recortes que podem ser abrigados sob uma História do Atlântico e da Diáspora Africana. Outros tantos que aqui cabem veremos, oxalá, em outros números desta revista.
Além do dossiê, este número da Revista Crítica História trás a publicação de três artigos na seção de fluxo contínuo, com temas diversos. O primeiro deles, intitulado “Nos bastidores do poder: política e relações familiares no Piauí do século XIX”, discute a organização familiar do Piauí no século XIX e de que forma seus membros atuaram nos espaços de poder por meio de uma estreita rede de alianças. Seu autor, Marcelo de Sousa Neto, é Professor Adjunto da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O segundo, sob a coautoria de Helen Ulhôa Pimentel, Laurindo Mékie Pereira e Bruna Santana Fernandes, chama-se “Cidadania e clientelismo no Brasil oitocentista: uma análise das práticas políticas em Paracatu / MG” e faz uma reflexão sobre as redes clientelísticas estabelecidas na cidade de Paracatu, em Minas Gerais, no século XIX por meio de análise do Livro de Qualificação dos Eleitores desta cidade, de 1876, com o objetivo de traçar o perfil dos cidadãos, as particularidades do sistema eleitoral e as práticas políticas então prevalecentes. Sobre seus autores, Helen Pimentel é doutora pela Universidade de Brasília (UNB) e Professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Laurindo Pereira é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e também Professor do Programa de Pós-Graduação em Historia Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) e Bruna Fernandes é mestranda em História Social na Universidade de Brasília (UNB).
O último artigo desta seção, chamado “Nas entrelinhas da hierarquia e disciplina: os alicerces da profissão naval”, é de Elizabeth Espindola Halpern, psicóloga, capitão-de-fragata da Marinha do Brasil e doutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar de não ser historiadora, Elizabeth faz uma interessante análise sócio-histórica dos conceitos de hierarquia e disciplina a partir da ideia de militar-padrão para compor os exércitos permanentes, especialmente o brasileiro. Portanto, consideramos seu texto interdisciplinar merecedor de publicação em nossa Revista.
Por fim, encerramos o número 13 com a resenha de Ermelinda Liberato sobre o livro Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades, de Arlindo Barbeitos. Ermelinda apresenta com clareza a tese do autor angolano, que trata das relações sociopolíticas entre Angola e Portugal durante o período colonial, abordando temas ainda polêmicos, como raça e miscigenação. Sendo assim, sua resenha retoma a temática do dossiê, quando trata de relações estabelecidas no espaço do Atlântico.
Assim sendo, desejamos a todos boa leitura e profícuas reflexões!
Flávio Gonçalves dos Santos – Professor da Universidade Estadual de Santa Cruz e organizador do dossiê nº 13.
Michelle Reis de Macedo – Professora da Universidade Federal de Alagoas e editora-chefe da Revista Crítica Histórica.
Maceió, junho de 2016
SANTOS, Flávio Gonçalves dos; MACEDO, Michelle Reis de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 7, n. 13, Junho, 2016. Acessar publicação original [DR]
Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação – CARLAN (RAP)
CARLAN, Cláudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação. São Paulo: Annablume, 2013, 214p. Resenha de: RAMALHO, Jefferson. Revista Arqueologia Pública, Campinas, São Paulo, v.10, n. 2, p. 115-119, jun. 2016,
Trabalhar com moedas é algo diferente, inusitado […] é percorrer a história da humanidade em todas as suas facetas. É reunir e integrar dados reveladores de momentos áureos, de crises, de guerras […] É colocar no presente os mistérios do passado (LUDOLF, 2002: 199).
A atenção que moedas recebem é tão antiga quanto elas próprias. São artefatos peculiares e importantes para o estudo da História. A numismática é a ciência que estuda as moedas, podendo atingir um alto grau de precisão técnica e classificação. É um campo de estudo imenso, uma vez que esses pedaços de metal estão repletos de informações sobre os mais diversos interesses da História: Arte, Religião, Economia, Política, sobre sociedades e civilizações. Manoel Severin de Faria, sacerdote católico e numismata português do século XVII aponta que “nas imagens das moedas e suas inscrições se conservava a memória dos tempos, mais que em nenhum outro documento” (LUDOLF, 2002: 199).
A forja de uma ciência própria para o estudo desses pequenos objetos metálicos antigos inicia-se na Idade Moderna com as coleções: a busca pelo passado greco-romano. Francesco Petrarca e Guillame Budé são duas das figuras principais que ajudam a configurar a gênese formal dos estudos das moedas. Com o passar dos tempos e a consolidação do colecionismo, assim como o aumento de material (moedas) disponível para estudo e avanços museológicos, surgem as sociedades numismáticas.
O livro de Carlan, Moeda e poder em Roma, trata – inicialmente – da questão do colecionismo e sua gênese, culminando na ascensão de museus, como o Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro, e de gabinetes numismáticos, como o da Catalunha em Barcelona. Em seguida, apresenta um catálogo de moedas romanas – de grande valor, já que é fundamental para o trabalho numismático – separado por imperador, temas e exergo2 do reverso3. Sendo assim, o centro do livro é a análise de uma coleção composta por 1888 moedas, cunhadas no IV século do Império Romano, do MHN. Trata, também, dos diferentes tipos monetários da Antiguidade Tardia e todo seu contexto socioeconômico, político, e histórico. Por fim, analisa a propaganda por meio da moeda e relaciona a legitimação de poder com a vasta iconografia monetária.
É muito difícil tentar traçar as origens do colecionismo, já que o homem coleciona desde o Paleolítico e é difícil determinar o motivo (SOUZA, 2009: 01). Porém, o resgate do passado greco-romano remonta, como expõe o professor Carlan, aos tempos pós-invasões bárbaras e à formação dos jovens estados modernos. Durante o Renascimento, essa prática floresceu a partir de novos interesses e valores históricos e artísticos. Um trabalho importante, conhecido como um dos primeiros catálogos numismáticos do período foi o Illustrium Imagines elaborado por Andrea Fulvio que contém imagens de diversas moedas e bustos antigos. Além de abundantes e portáteis, a variedade de bustos, cenas, símbolos e figuras estampadas nas moedas antigas encantavam aos numismatas de uma época em que se tinha “fome” por imagens, em especial, greco-romanas. (CUNNALY, 1999: 12)
Já no século XVIII, a Vila Albani torna-se um centro de encontro de colecionadores e estudiosos do período que, como Wicklemann (1717 – 1768), buscavam imitar a cultura Clássica Antiga. A Society of Dilletani, também do XVIII, promoveu campanhas arqueológicas com o objetivo de estudar, conhecer e analisar as ruínas greco-romanas, o que contribuiu para o aumento do material numismático disponível para estudo (CARLAN, 2013: 41).
A atividade do colecionismo é somada aos avanços museológicos iluministas que, através da arte, buscavam um processo de regeneração cultural (burguesia x aristocracia, arte “racional” x arte rococó). O Museu Britânico de Londres é considerado o pioneiro e, de maneira geral, apresentou (e ainda apresenta) – sustentado pela arte – as diferentes etapas da cultura material em diversas sociedades.
Toda essa contextualização e explicação sobre museus é transportada, no texto, para a comparação entre o Gabinete numismático da Catalunha e o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. Ambos tiveram a mesma formação: através de doações em períodos relativamente próximos. Umas das diferenças seria a forte relação entre a fundação do MHN e o nacionalismo. Carlan ainda destaca que a numismática não está presa nos museus já que a moeda é um prato cheio para o estudo da História Econômica, Política, da Arte e as relações sociais existentes em sociedades monetarizadas4 (CARLAN, 2013: 48).
4 No vocabulário numismático, uma sociedade monetarizada é aquela – segundo os padrões modernos – que possui um sistema monetário que adotou a moeda metálica como meio de troca.
A análise seguinte é a de sete peças numismáticas de quatro imperadores diferentes: Constante (1 peça), Constâncio II (1); Honório (2) e Arcádio (3). As moedas antigas devem ser pensadas como um corpus documental que possui um emissor que quer transmitir uma mensagem – por meio de representações e signos – para um destinatário ou receptor. Sendo assim, a moeda possui uma função política, social, administrativa, militar, religiosa e econômica dentro da sociedade Romana (CARLAN, 2013: 64). Para o estudo seguinte no livro, utilizou-se do “esquema de Lasswell”5.
O centro analítico do livro são as 1888 moedas cunhadas nos século IV d.C.. A análise quantitativa executada separou as numárias em três: imperador (de Diocleciano a Galério), reverso (e seus temas) e exergo (local de cunhagem). O estudo recebe ainda, um amplo contexto histórico de cada imperador o que é fundamental para os estudos posteriores a serem elaborados a partir das mesmas numárias. O maior número de moedas do acervo (360) são as de Constantino com ênfase nos temas militares e religiosos. A explicação de Carlan para tal verificação é:
Era preciso pagar o exército, legitimar o poder dos imperadores perante a tropa, homenagear ou favorecer uma determinada legião, demonstrar a segurança do seu governo divulgando a construção de muralhas ou campos militares, representar a sua vitória – a vitória de Roma – sobre um determinado inimigo (CARLAN, 2013: 172).
O contexto histórico apresentado é o do século IV: Tetrarquia e a divisão de tarefas civis e militares entre os imperadores, as reformas da Tetrarquia, o processo de ruralização do Império Romano – ação de mão única -, crise institucional (assassinato de 19 imperadores), guerra contra o Império Persa, as legiões romanas e as modificações da guerra e a análise da economia do período com ênfase no fator numismático: é interessante notar que é neste trecho que Carlan aborda o outro lado da numismática e examina em detalhe a crise dos preços, o valor da moeda, a variação de pureza dos metais usados nas cunhagens e da balança comercial romana.
Por fim, é feito o estudo da moeda, propaganda e legitimação do poder. É fundamental ler os símbolos contidos nos reversos das moedas romanas que constituem um corpo de informação a ser interpretado pelo receptor. Busca-se as intenções e interesses que explicam a motivação do emissor ao cunhar aquele tipo. Sendo assim, faz-se necessário analisar ambos os lados da moeda que compõe um documento vastíssimo que, aliado a outras fontes, nos ajuda a produzir uma interpretação do passado.
De maneira geral, pode-se dizer que a obra de Carlan contribui para o fortalecimento dos estudos numismáticos acadêmicos no Brasil que ainda são considerados, de certa forma, incipientes. Há, entre os historiadores, certo preconceito sobre o uso de moedas como documentos, já que a maioria dos intelectuais da área prefere utilizar a antiga forma de documento: impressa em papel, catalogada e disposta em um arquivo ou biblioteca (CARLAN & FUNARI, 2012: 29).
Tal hábito vem se alterando desde os Annales, que contribuíram para uma nova concepção sobre documentos. A moeda – que sofreu suas devidas alterações ao longo da História – faz parte do cotidiano de todos e revela uma forma de produzir, aliada a outros tipos de fontes, uma interpretação do passado distinta: já que a moeda, antiga ou contemporânea, é capaz de nos dizer muito sobre sociedades, suas concepções, economia, arte, política e tecnicismo (maneiras de produção das moedas). O livro de Carlan é uma leitura interessante para aqueles já inseridos ou não na temática romana da numismática, pois aborda conceitos básicos mesmo durante reflexões mais profundas do tema.
Notas
1 Graduando em História pela Universidade Estadual de Campinas, bolsista do CNPq, meninivitor@gmail.com.
2 Local inferior do campo da moeda, onde se encontra a data e a casa monetária, quando existem tais informações.
3 Face oposta ao Anverso (lado principal da moeda que representa quase sempre a entidade emissora). Na gíria popular é conhecia como “coroa”.
5 Harold Laswell (1902-1978): pioneiro na análise de conteúdos aplicados à política e à propaganda. Levantou teorias sobre o poder da mídia de massa. O esquema de Laswell analisa os meios de comunicação partindo da “análise de conteúdo”: uma série de questionamentos relacionados aos meios de comunicação (no caso do livro de Carlan, a moeda na Roma antiga). Alguns exemplos são: “Quem?; Diz o que?; Em qual canal?; Para quem?; Com quais efeitos?”
Referências bibliográficas
CARLAN, Claudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em transformação, São Paulo, Annablume, 2013.
CARLAN, Claudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Moedas, a Numismática e o estudo da História. 1ª edição, São Paulo, Annablume/Fapemig/Unifal/Unicamp, 2012.
CUNNALLY, John. Images of the Illustrious: the numismatic presence in the Renaissance, Princeton, Princeton University Press, 1999.
LUDOLF, Dulce. “Que é Trabalhar com Moedas” In: O outro Lado da Moeda. Livro do Seminário Internacional. Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional, p.199-200, 2002.
SOUZA, Helena Vieira Leitão de. “Colecionismo na modernidade” In: Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 25. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – História e Ética. Fortaleza: ANPUH, p. 1-9, 2009.
Jefferson Ramalho – Doutorando em História Cultural (IFCH-UNICAMP) como bolsista CAPES e sob orientação do professor Dr. Pedro Paulo Abreu Funari, além de ser mestre em Ciências da Religião (PUC-SP) com licenciatura em História e bacharelado em Teologia. E-mail: cafeacademico@yahoo.com.br
[MPDB]
A Cultura no Mundo Líquido Moderno – BAUMAN (PL)
O autor Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um importante pensador das dinâmicas sociais contemporâneas a partir da sua formação em sociologia e filosofia. Considerando-se um sociólogo crítico, seus estudos acerca da modernidade estiveram pautados no conceito – por ele cunhado – de liquidez, compreendendo que todas as relações no mundo contemporâneo são marcadas pela fluidez em contraponto à solidez presente anteriormente ao período do capitalismo industrial. De origem polonesa, o autor foi professor das universidades de Leeds e Varsóvia, tendo diversos livros publicados que visam explicitar e criticar a era da (pós-) modernidade e da globalização, tempo sinalizado pelo individualismo, a cultura do consumo, as relações líquidas e fluídas, entre outros aspectos. Leia Mais
Angola-Portugal: Representações de Si e de Outrem ou o Jogo Equívoco das Identidades | Arlindo Barbeitos
Resenhar um livro com essa densidade e pormenorização é tão difícil quanto traçar o perfil do autor pois este assume diversas facetas: o intelectual, o professor, o investigador, o nacionalista, o politico, o cidadão, que se resume numa única característica: o profissional. E é com profissionalismo, mas igualmente com muito empenho, dedicação e persistência que Arlindo Barbeitos escreveu a presente obra, pois de outro modo não seria possível empreender essa tarefa com tal densidade de pormenorização. Abordar temas ainda muito sensíveis para a sociedade angolana e portuguesa, como a raça, a miscigenação e todas as conotações daí resultantes, analisar obras essencialmente portuguesas, mas que representam os angolanos da altura (período colonial), parece-nos à partida, uma missão inglória, na medida em que se torna fundamental ter um excelente domínio da história dos dois países, assim como da relação entre os diferentes acontecimentos ocorridos nos dois lados do Atlântico. Leia Mais
Imagens, história e ciência / Domínios da Imagem / 2016
As reflexões acerca do uso de imagem na escrita e no ensino de História ganharam corpo nos últimos anos no Brasil. As representações iconográficas e audiovisuais não apenas ilustram o trabalho do historiador, mas também são objetos de análise em suas narrativas. Nas ciências, a fronteira entre a fidedignidade do que é representado e as concepções artísticas são tênues. A representação de uma planta feita por um naturalista oitocentista ou as imagens captadas por telescópios orbitais no século XXI exemplificam bem a questão, pois em ambos os casos elas são ao mesmo tempo representação e arte, pois o ato de vulgarizar ou divulgar o conhecimento científico congrega tanto o ato da investigação racional quanto certa liberdade artística. Nesse sentido, a proposta desse dossiê é reunir trabalhos que reflitam, explorem ou tomem como objeto a relação entre os usos da imagem na História da Ciência.
Este dossiê apresenta três frentes associadas: história, imagem e ciência. Delas decorrem outras ramificações que transversalmente abordam o eixo temático básico do presente. Abordagens plurais colaboraram para o alargamento da proposta temática, pois contemplou historiadores do político, da arte, da ciência, da literatura, bem como arquitetos, artistas plásticos, antropólogos e biólogos, o que dá multiplicidade e multidisciplinaridade a esta proposta.
Transitando pelo pluriverso da História das Ciências dois artigos abordam questões até hoje pouco aprofundadas na área. Em As primeiras imagens ocidentais da anatomia do útero humano, Vera Cecilia Machline discute um tema caro aos historiadores da Ciência. Afirma que coube à escola liderada por Aristóteles (384-322 a.E.C.) não só os primeiros estudos anatômicos de animais realizados no Ocidente, mas também as primeiras representações visuais a respeito. De acordo com a historiadora, há muito perdidas, sabe-se da existência dessas imagens mercê referências a ’Ανατοµαί (i.e., Esquemas anatômicos) em obras aristotélicas analisando sob diferentes ângulos a multiplicidade do reino animal. Compensando essa irreparável perda, desde o Renascimento ensaiou-se reconstituições de tais ’Ανατοµαί, com base nas descrições verbais nessas obras. Isto se aplica até ao útero de certos animais, incluindo o do ente humano, descrito no início do Livro II da História dos animais. Diante disso, será enfocado a reconstituição algo anacrônica de D’Arcy W. Thompson (1860-1948), bem como a ilustração do útero num manuscrito de c. 850, possivelmente inspirada na descrição presente no tratado ginecológico composto por Sorano de Éfeso (fl. 98-c. 129).
A ampliação do uso da imagem pelas descrições científicas e, especialmente, em sua vulgarização para um público amplo por meio da imprensa periódica é objeto do texto Representações, vulgarização e imagética científicas na imprensa da Corte fluminense do século XIX, do historiador Cesar Agenor Fernandes da Silva, que tenta compreender as nuances e os contornos da vulgarização científica e seu papel no projeto civilizatório para o Brasil veiculado pela imprensa periódica. A questão discutida nesse artigo gira exatamente em torno da difusão dos saberes científicos e as imagens associadas a essa veiculação por meio das publicações periódicas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX. Um dos pontos centrais é justamente descrever como o conhecimento técnico-científico e, sobretudo, o uso público da razão tiveram papel fundamental no projeto de civilização dos homens de letras que viviam no Brasil. Além disso, coloca-se em perspectiva a possibilidade de se pensar possíveis impactos nas representações sobre o mundo pelos brasileiros que tinham contato com essas publicações.
Na interface entre a criação imagético/psíquica e a percepção filosófica, o texto de Elly Rozo Ferrari retoma essa discussão sobre outro prisma. Em Deslocamentos das narrativas viajantes: as fotografias de Mário de Andrade no processo de construção de conceitos da exposição Id: retratos contemporâneos, a artista plástica apresenta o ato fotográfico moderno nas fotografias de Mário de Andrade, pertencentes ao Arquivo do IEB-USP, como gerador de propostas conceituais a fim de discutir a imagem na contemporaneidade em relação à construção de identidades atualizadas neste processo de curadoria. Nesse sentido, analisa a intervenção na concepção fotográfica a partir das narrativas visuais apresentadas sem a intervenção legendada de textos e, a partir dessas relações, discute as representações presentes nesses retratos fotográficos contemporâneos que remetam à estereotipia, à banalização dos registros que, segundo autora, inundam ferozmente os espaços escolares e de cultura.
O espectro desse dossiê é necessariamente amplo, o que possibilita textos de gramaturas bastante diferentes. Em uma seara pouco discutida no âmbito da história da ciência, e mesmo da história política, o texto de Rodrigo Christofoletti apresenta a percepção sui generis do movimento integralista brasileiro sobre Ciência. Em A Enciclopédia do Integralismo frente à Educação, Estética e Poética: ciências da mente e do corpo, o historiador afirma que a tríade essencial do integralismo (Deus, Pátria, Família) teve um corolário bastante divulgado pelo movimento: uma sui generis concepção de ciência, que englobava experiências ligadas à Educação, à Estética e à Poética. Buscava-se com este tripé publicizar a crença integralista de que “o terreno fértil do protagonismo só seria fertilizado por meio do conhecimento, da beleza e da palavra em todos os seus sentidos!”. A ideia de que o binômio ciência/educação sempre foi um dos pilares da civilização era levada à risca pelo movimento integralista. Tal premissa alertava para o fato de que “o acúmulo de conhecimento não se bastava em si, e que era necessário uma educação que rompesse as fronteiras do intelecto, tornando-se o conceito do binômio ciência/educação algo polissêmico”. Este texto analisará as concepções negativas de ciência propaladas pelo integralismo no seu mais importante compêndio a Enciclopédia do Integralismo, publicado de 1957 a 1961.
Outra abordagem trabalhada neste dossiê é construída por textos que transitam pela fronteira entre arquitetura e suas representações imagéticas. O texto Experimentações gráfico-espaciais na confluência dos estudos do Imaginário e das representações da Arquitetura, da dupla Artur S. Rozestraten e Paula Brazão Gerencer, investiga, sob uma perspectiva crítica e experimental, instrumentos metodológicos e fundamentos conceituais advindos do campo de estudos do Imaginário quanto às suas possibilidades de interação com temas e modos de operar próprios do universo das representações da Arquitetura. Além da fundamentação conceitual em Gilbert Durand (1921-2012) e no universo iconográfico do ‘Recueil et Parallèle des édifices de tout genre, ancien et modernes’ de Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834), o texto toma como base experiências construtivas, ensaios como inter-relações visuais entre imagens, estimuladas pelo Atlas Mnemosyne de Aby Warburg (1866-1929). Tais estudos têm a intenção de sondar novas potencialidades das articulações entre imagens, no plano e no espaço, como ferramenta de investigação e construção de conhecimento.
Em contraste com o texto de Machline que abriu o dossiê, o artigo apresentado pela antropóloga Priscila Enrique de Oliveira aborda as políticas públicas de saúde do Sistema de Proteção ao índio. Ideias, escopetas e bacilos: políticas de saúde do SPI e os diálogos com as populações indígenas do Brasil discute primeiramente como as políticas de saúde do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, 1910-1967) foram pensadas, articuladas, colocadas em prática a partir de suas ligações com as políticas e ideais nacionais de civilização e progresso, bem como os pressupostos científicos vigentes no período. Analisa como as sociedades indígenas receberam e responderam a estas ações, enfocando particularmente as diferentes narrativas e lógicas culturais que perpassavam o contato, os diálogos e mediações frente à inserção das ideias de saneamento, higienização, medicalização e cura.
As análises expressas neste dossiê pretendem contribuir para o aprofundamento e a visibilidade de concepções e posicionamentos comprometidos com a ética científica e o respeito à diversidade intelectual. Esperamos que, em tempos de fragilidades éticas, como o que vivemos atualmente, os fundamentos que unem história, imagem e ciência possam ajudar a construir uma sociedade mais sábia de si mesma, e por isso, mais apta a enfrentar mudanças e crises.
Cesar Agenor Fernandes da Silva
Rodrigo Christofoletti
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; SILVA, Cesar Agenor Fernandes da. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina, v. 10, n. 19, jul/dez, 2016. Acessar publicação original [DR]
O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem – RIEGL (S-RH)
RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014 [1903]. 88 p. Resenha de: ROCHA, Mércia Parente; TINEM, Nelci. O culto moderno dos monumentos e o patrimônio arquitetônico. SÆCULUM – Revista de História [35]; João Pessoa, jul./dez. 2016.
Ao elaborarmos esta resenha da obra O Culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem, do historiador da arte austríaco Aloïs Riegl, publicada no início do século passado, em 1903, nos interessou a possibilidade de discutir quais os aspectos que a mantém, juntamente com a Teoria da restauração (1963) de Cesare Brandi, que veio à luz sessenta anos mais tarde, como as mais citadas no debate e na prática da conservação contemporânea do patrimônio arquitetônico, que hoje incorpora as obras da produção moderna do século XX, abarcando um campo interdisciplinar, que inclui entre outras disciplinas, a história, a estética, a filosofia e a própria arquitetura.
É, portanto, na perspectiva de darmos alguma contribuição para esse tema que este pequeno ensaio se coloca. Para tanto, tomaremos como referência duas traduções para a língua portuguesa, a primeira elaborada a partir da tradução francesa, por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini, em 2006, e a segunda, realizada por Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel, a partir do texto original em alemão, no ano de 20143.
Seu duplo vínculo, com a Universidade de Viena (reflexões teóricas) e com o Museu Austríaco de Artes Decorativas (intervenções práticas), lhe permitiu uma abordagem interdisciplinar teórico-prática da História da Arte (proporcionada pela formação no Instituto Austríaco de Pesquisas Históricas) e, ao mesmo tempo, uma compreensão das artes consideradas “decadentes” e a valorização das chamadas “artes menores”, ou seja, lhe permitiu uma visão ampla, diversificada e aberta da história das artes que redundou em uma ótica avançada e uma avaliação crítica dos valores das obras a serem conservadas.
[…] ele teve a audácia […] de negar, pelo menos em teoria, qualquer sistema normativo dos valores, de denunciar a noção de decadência, de renunciar à segregação entre a grande arte e as artes ditas menores.4
Assim como Teoria da restauração de Cesari Brandi5, O Culto moderno dos monumentos de Riegl busca estabelecer princípios operativos como forma de orientar a condução da política de conservação das instituições às quais estavam vinculados, fundamentando suas obras numa consistente relação entre teoria, História e prática, daí sua importância.
A razão da atualidade é clara, as reflexões propostas por Riegl são avançadas para um homem do século XIX, sob o domínio de uma concepção positivista da História.
Se, por um lado, defendia a “evolução” em direção ao progresso da história da arte, por outro, negava a existência de um valor de arte absoluto e advogava apenas um valor relativo e moderno6.
A obra desenvolve-se em três partes. Na primeira, o autor entende que sua tarefa é “definir a natureza do culto moderno dos monumentos, levando em consideração as mudanças ocorridas, com a comprovação de sua relação genética com as fases anteriores de evolução do culto dos monumentos”. A questão da evolução, para ele, era fundamental:
De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentaremos a ideia mais ampla de que aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais etudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O ponto-chave de todo conceito histórico moderno é formado pela noção de evolução.7
Apesar de fundamentar-se em uma visão evolutiva da história, própria do século XIX, o autor desenvolve uma noção de monumento baseada não mais em valores permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.
Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).
Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.
Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.
Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.
Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8
Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.permanentes e objetivos como na Renascença, mas em valores assentados antes na significação, do que na forma, e determinados no presente, pelos sujeitos históricos.
Interessa a Riegl compreender não apenas como os significados são atribuídos aos monumentos, mas como se dá a recepção desses valores pela sociedade e quais as gradações sociais desse acesso (os especialistas, o apreciador de arte médio, as massas).
Entendia que, se até o século XIX prevalecia a tese de que existia um cânone artístico rígido, um ideal artístico objetivo e absoluto, o século XX teria abolido definitivamente essa pretensão da Antiguidade, emancipando todos os períodos conhecidos da arte com seu significado independente, sem abandonar a crença em um ideal artístico objetivo. Assim, a kunstwollen (a vontade artística de uma época), como princípio, admite que a manifestação artística possa assumir diferentes alternativas conforme o momento histórico, a população envolvida e o lugar geográfico.
Consequentemente, a definição do conceito de ‘valor da arte’ deve variar de acordo com a visão adotada. Conforme a mais antiga, uma obra possui um valor da arte, na medida em que responde às exigências de uma estética supostamente objetiva, mas jamais formulada até agora de maneira correta.
Segundo o conceito moderno, o valor da arte de um monumento é medido pelo modo como ele atende às exigências do querer moderno da arte, exigências essas que não foram formuladas claramente e que, a rigor, nunca o serão, pois mudam constantemente de sujeito para sujeito e de momento para momento.
Para nossa tarefa, torna-se uma condição importante esclarecer essa diferença quanto à essência do valor da arte, pois para a preservação dos monumentos, esse princípio orientador terá uma influência decisiva. Se não existe um valor da arte eterno, mas apenas um relativo, moderno, o valor da arte de um monumento não é mais um valor de memória, mas um valor de atualidade.8 Riegl estabelece na sua teoria de valores uma taxonomia em que esses são agrupados em duas grandes categorias: os valores de memória, vinculados ao “aspecto não moderno do monumento” e os valores de atualidade, relacionados não mais à memória, mas às necessidades contemporâneas. E essas duas categorias são tratadas pelo autor nas duas partes finais do livro9.
Para Riegl, dentre os valores de memória (valor de antiguidade, valor histórico e valor de comemoração), o de antiguidade corresponde àquele que se estabelece no decorrer do tempo, através da ação destrutiva da natureza, que age de forma lenta e gradual sobre as obras, provocando sua dissolução e remetendo ao ciclo natural da vida de criação-destruição.
Para ele, o valor de antiguidade seria o mais acessível às massas, e, inevitavelmente, o mais abrangente a partir do século XX. A recepção do valor histórico, pelo contrário, requereria conhecimentos de história da arte e estaria assentada em bases científicas e não atingiria as massas.
O valor de antiguidade tem, portanto, a pretensão de influenciar as grandes massas e se sustenta sobre a possibilidade de incluí-las na mobilização pela defesa do patrimônio. Uma preocupação permanente, ainda hoje não resolvida, nos debates contemporâneos do século XXI.
Contrariando o pensamento de Riegl, a arquitetura moderna torna-se patrimônio ainda no século XX, antes mesmo do tempo ter lhe conferido valor de antiguidade.
Essa ausência de valor de antiguidade, possivelmente, é a principal razão da dificuldade do reconhecimento desse patrimônio pela sociedade em geral.
Por outro lado, essa novidade, impensável para o teórico na época, distancia o patrimônio moderno dos constantes conflitos que se estabelecem entre o valor de antiguidade e os demais valores memória, como entre esses e os valores de atualidade definidos por Riegl, ao menos, enquanto o tempo entre o patrimônio moderno e a sociedade que o reconheceu for tão próximo.
Segundo Riegl, diferentemente do valor de antiguidade, para os valores histórico e de comemoração, interessa a obra em sua forma original e intacta:
O valor histórico é tanto maior quanto mais puramente se revela o estado original e acabado do monumento, tal como se apresentava no momento de sua criação: para o valor histórico, as alterações e degradações parciais são perturbadoras […] Trata-se mais de conservar um documento o mais autêntico possível para a pesquisa futura dos historiadores da arte […] As destruições passadas, imputáveis aos agentes naturais, não podem ser anuladas e, do ponto de vista histórico, elas não devem também ser reparadas. Mas as destruições futuras, as que o valor de antiguidade não somente tolera, mas postula, são inúteis aos olhos do valor histórico […].10 […] o valor de rememoração intencional não reivindica menos para o monumento que a imortalidade, o eterno presente, a perenidade do estado original […] A restauração é, pois, o postulado de base dos monumentos intencionais […].11
O aspecto mais atual no discurso de Riegl é a forma como ele enxerga o valor de arte, sujeito a flutuações de época, e o valor de antiguidade que se baseia na subjetividade e é acessível a todas as classes (o valor mais democrático). Riegl desloca-se de uma visada objetiva para uma subjetiva – quase religiosa – aproximando-se de Ruskin, mas apenas nesse ponto.
Na terceira e última parte do texto, Riegl se debruça sobre os valores que, segundo o autor, respondem às necessidades da sociedade moderna tal qual a obra nova: nos seus aspectos funcionais, sensoriais e espirituais. A estes denomina valores de atualidade, subdividindo-os em duas outras categorias: o valor de uso e o valor de arte. Para esses valores de atualidade, assim como para o valor histórico e de comemoração, interessa a manutenção do estado original da obra.
No caso das obras que continuam sendo utilizadas, no entanto, o valor de uso não pode fazer nenhuma concessão ao valor de antiguidade: “para a maioria, um monumento ainda utilizado deve apresentar, mesmo em nossos dias, a aparência juvenil e robusta de suas origens e recusar as marcas de seu envelhecimento ou de suas fragilidades”12.
Por outro lado, os monumentos dotados de valor de arte, que respondem à exigência da moderna Kunstwollen, ou seja, que satisfazem à aspiração de vontade artística do momento comportam duas exigências: uma refere-se à forma conservada nas suas cores e integridade, denominada por Riegl como valor de novidade, e pode ser apreciada por qualquer indivíduo; a outra, que chama de valor relativo, apenas acessível aos que possuem cultura estética, refere-se à presença nas obras passadas de certas qualidades atuais. Em ambos a necessidade recai sobre a conservação integral do bem.
Considerando que toda obra do passado, em princípio, possui valor histórico, e tendo em conta a ausência do valor de antiguidade no patrimônio moderno, pode-se dizer que são os valores de atualidade que melhor caracterizaram esse patrimônio, portanto, a observação desses valores é fundamental para as intervenções no mesmo.
É importante, porém, esclarecermos que esse fato não autoriza intervenções que recusem toda e qualquer marca do passado. Riegl, ao tratar dos valores de atualidade destaca, por um lado, que poderão ser tolerados “certos sintomas de degradação” e, por outro, esclarece que não existe valor de arte eterno, apenas relativo e que, portanto, as exigências relacionadas a esse valor devem ser consideradas em relação ao valor histórico do monumento, de forma que o mesmo não perca seu caráter de documento.
A formulação teórica de Riegl pressupõe um conflito constante entre os diversos valores presentes nos monumentos e a necessidade de uma abordagem crítica para o enfrentamento do dilema que se estabelece na conservação, uma vez que coexistem em uma mesma obra valores antitéticos.
Segundo Françoise Choay, pela primeira vez na história da noção de monumento histórico e de suas aplicações, Riegl toma distância para:
[..] empreender o inventário dos valores não ditos e das significações não explícitas, subjacentes ao conceito de monumento histórico. De uma só vez, este perde sua pseudotransparência de dado objetivo. Torna-se o suporte opaco de valores históricos transitivos e contraditórios, de metas complexas e conflitivas. Riegl mostra que, no plano da teoria assim como no da prática, o dilema destruição/conservação não pode ser opção absoluta, o quê e o como da conservação não comportando jamais uma solução – justa e verdadeira –, mas soluções alternativas, de pertinência relativa.13
Acertadamente Fabris (2014) afirma que Riegl “antecipa algumas propostas do restauro crítico que foram transformadas em reflexão teórica por Brandi”, em exatos sessenta anos depois. Enfatizando essa perspectiva, na apresentação da edição brasileira da Teoria da Restauração, de 2004, traduzida por Beatriz Mugayar Kühl, Giovanni Carbonara afirma que a reflexão de Cesare Brandi “manifesta uma dívida implícita no que concerne à contribuição teórica de Aloïs Riegl”14. Por isso mesmo, Annateresa Fabris destaca, na introdução à tradução de 2014:
O que resta de seu legado nos dias de hoje? A ideia de que toda intervenção em um monumento não pode prescindir de um juízo crítico, já que o restauro caracteriza-se por ser uma ação sociocultural, a requerer ‘uma investigação preliminar sobre a natureza daquilo que se conserva, a fim de detectar na vasta gama das preexistências, os papéis específicos e as vocações de cada uma delas’. Desse modo, Riegl antecipa as propostas do restauro crítico formuladas no segundo pósguerra por profissionais como Roberto Pane, Renato Bonelli e Agnoldomenico Pica, e transformadas em reflexão teórica por Cesare Brandi.15
Pouco mais de um século após a elaboração da obra de Riegl, e seis décadas da obra de Brandi, é possível afirmar que nenhuma outra obra de tamanha consistência teórica para a conservação surgiu, apesar do alargamento não apenas cronológico e geográfico dos bens patrimoniais ocorrida, segundo Françoise Choay16, a partir da década de 1960 e da ampliação da noção de Patrimônio Cultural, incluindo os bens imateriais desde o final do século passado.
Somado a isso, alguns desafios enfrentados para a conservação do recente patrimônio moderno não encontram precedentes na práxis da conservação como: as novas possibilidades documentais trazidas com o acervo de projetos das obras, os grandes componentes e sua substituição integral, ou as especificidades espaciais dessa arquitetura, abrindo o campo de pesquisa e sugerindo não necessariamente a negação dessas teorias, mas sua revisão e ampliação17.
Ao contrário da questão material, a abordagem dos aspectos espaciais das obras de arquitetura nas teorias da conservação é incipiente e, consequentemente, sua importância tem sido pouco considerada na prática patrimonial.
Em Riegl, embora o valor de uso devesse estar intrinsicamente vinculado aos aspectos espaciais da obra de arquitetura como parte de seu valor artístico, é reduzido apenas à sua dimensão utilitária e, nesse sentido, o foco, para o autor, recai sobre os possíveis conflitos com o valor de antiguidade18.
O autor, ao tratar o valor de uso e o valor artístico como distintos, cria não apenas a possibilidade de conflito entre eles, como a prevalência do valor artístico sobre o de uso, aspecto que é reforçado, posteriormente, na Teoria da Restauração de Brandi.
Por outro lado, o princípio de integração entre espaços interiores e exteriores, inerente à arquitetura moderna, torna-se difícil de ser contemplado quando são entendidos como entidades separadas e estanques e quando há prevalência do espaço exterior, conforme aborda Brandi no capítulo destinado aos “Princípios para a Restauração dos Monumentos”. A diluição desses limites faz com que os dilemas espaciais já existentes na conservação da arquitetura fiquem mais evidentes ou agudos com o patrimônio moderno.
A configuração espacial moderna, ao estar em parte fundamentada nas teorias do espaço arquitetônico do final do século XIX e início do século XX19, coloca em questão a preponderância dada à materialidade nas práticas da conservação dessa arquitetura e aponta para a impossibilidade, ou ao menos a inadequação, de uma abordagem conservativa sem a devida importância que deve ser dada também aos seus aspectos espaciais.
Apesar de muito citadas, as obras de Riegl e Brandi ainda são pouco exploradas na utilização operacional e pouco aprofundadas nos debates e reflexões sobre a questão da conservação do patrimônio artístico ou arquitetônico.
Quais as razões para tão pouca atenção e discussão sobre o tema? As razões estarão no enfraquecimento das relações entre teoria, historia e prática? O problema estaria na crescente complexidade da sociedade contemporânea e na diversidade do corpo patrimonial que dificulta a abordagem teórica no tratamento desse patrimônio? Aprofundar o entendimento sobre essas obras a partir do olhar contemporâneo, como nos ensina Riegl, talvez seja o ponto de partida para a ampliação da discussão da conservação da arquitetura (não apenas moderna), da prática da conservação, bem como do papel das instituições patrimoniais na conservação desse patrimônio.
Notas
3 As duas traduções brasileiras do livro de Aloïs Riegl consultadas são: a primeira, feita a partir da edição francesa, Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse (Paris: Seuil, 1984), publicada pela Editora da Universidade Católica de Goiânia em 2006, e a segunda, feita a partir da edição original em alemão, Der moderne denkmalkultus: sein wesen und seine entstehung (Viena & Leipzig: W. Braumüller, 1903), publicada pela Editora Perspectiva em 2014.
4 ZERNER apud FABRIS, Annateresa. “Os valores do Monumento”. In: RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos: a sua essência e a sua origem. Tradução de Werner Rothschild Davidsohn e Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 19.
5 BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004 [1963].
6 O moderno a que se refere Riegl pertence às transformações modernas do século XIX e não pode ser confundido com o termo utilizado quando nos referimos à produção moderna da arquitetura no século XX.
7 RIEGL, O culto moderno…, p. 32.
10 RIEGL, Aloïs. O culto dos monumentos: sua essência e sua gênese. Tradução da edição francesa por Elane Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentini. Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás, 2006, p. 76-77.
11 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 85-86.
12 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 99.
13 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo:
Estação Liberdade; Editora UNESP, 2001 [1992], p. 13-16.
14 CARBONARA, Giovanni. “Apresentação”. In: BRANDI, Teoria da restauração…, p. 9.
15 FABRIS, Annateresa. “Os valores do monumento”. In: RIEGL, O culto moderno…, p. 20-21.
16 CHOAY, A alegoria do Patrimônio…, passim.
17 ROCHA, Mércia Parente. Patrimônio arquitetônico moderno: do debate às intervenções. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011.
18 RIEGL, O culto dos monumentos…, p. 38-39.
19 Sobre os trabalhos que ao final do século XIX introduzem na teoria da arquitetura o conceito de espaço, até então objeto de estudo em especial da filosofia, destacam-se aqueles elaborados pelos pesquisadores alemães August Schmarsow e Adolf Hildebrand, cujo pensamento está fundado numa visão da arquitetura a partir de seu interior.
Mércia Parente Rocha – Arquiteta, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo do CESED/ FACISA em Campina Grande – PB.
Nelci Tinem -Arquiteta, Doutora em História da Arquitetura Urbana pela Universitat Politecnica de Catalunya. Professora Titular do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba.
[MLPDB]
The Platonic Art of Philosophy – BOYS-STONES et al (RA)
BOYS -STONES, G.; EL MURR, D; AND GILL, C. (Eds.). The Platonic Art of Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. PITTELOUD, Luca. Revista Archai, Brasília, n.17, p. 351-360, maio, 2016.
Cet ouvrage est composé d’une collection d’articles rédigés en hommage à Christopher Rowe et inspirés par les travaux et exégèses de ce dernier à propos de la philosophie de Platon. Les auteurs qui ont contribué à cet ouvrage sont de traditions et d’approches très va- riées et la mise en relation des articles permet un dia- logue inédit entre les différents points de vue. Chacune des contributions se destine à dialoguer avec une des problématiques abordées dans l’œuvre de Christopher Rowe: l’unité philosophique et littéraire de l’œuvre de Platon, la fonction du mythe, l’héritage socratique de Platon, la position platonicienne concernant la vérité et l’être.
Une question centrale discutée dans cet ouvrage est celle du socratisme de Platon. Christopher Rowe dé- fend l’idée que l’objectif de Platon n’est pas de dépeindre le Socrate historique mais de proposer une philosophie socratique: Platon, d’après Rowe, n’a jamais cherché à s’éloigner du personnage de Socrate afin de développer sa propre philosophie (à ce titre une lecture dévelop- pementaliste des dialogues doit être rejetée) mais, au contraire, propose une philosophie réellement socra- tique. Christopher Rowe considère dans ses écrits la question de l’intégration des thèses socratiques (éthi- ques, psychologiques et épistémologiques) dans les dialogues de Platon. Les contributeurs à cet ouvrage sont amenés à réagir et à situer leurs propres interprétations par rapport aux idées défendues par Rowe.
A ce titre, M. Dixsaut défend une vision multidi- mensionnelle et nuancée de la lecture des œuvres de Platon qui, puisque ce dernier a choisi d’écrire des dia- logues, refuse de donner une exposition linéaire de sa philosophie en tant que système. M. A. Fierro exami- ne, afin de justifier l’idée selon laquelle le contexte est primordial dans la lecture d’un dialogue, comment, dans le Phèdre, cohabitent deux visions opposées du corps: la méfiance que de ce dernier peut inspirer comme source de distraction cohabite, dans le même dialogue, avec une vision plus positive où le corps peut être considéré comme un auxiliaire à l’activité philosophique. N. Notomi cherche à montrer com- ment le Phédon ne propose pas une rupture avec la philosophie de Socrate mais, au contraire, développe le message original de l’éthique socratique. D. Sedley argumente que les tensions souvent relevées dans la théorie psychologique de la République (la vision tri- partite des livres 4, 8 et 9 comme s’opposant à celle des livres 5 -7 où serait mis en avant l’intellectualisme socratique) possède en réalité un unité réelle dans le contexte de la vie vertueuse du philosophe, vie défi- nie en tant qu’activité contemplative. T. Johansen se propose d’associer la notion de progression éthique de l’allégorie de la caverne à une vision cosmologi- que plus large telle que présentée dans le Timée afin de résoudre la tension qui existe entre la question de la dimension politique et éthique de cette allégorie et son fondement cosmologique et philosophique basé sur les conclusions des analogies de la ligne et du so- leil. M. M. Mc Cabe interroge l’unité de l’Euthydème dans le cadre de la discussion épistémologique qui émerge dans la rencontre entre Socrate et les sophis- tes. M. Narcy envisage comment le Théétète dépeint un Socrate maitrisant la technique éristique dans son opposition avec Protagoras. toujours à propos du Théétète, U. Ziliolo s’intéresse à la relation entre le Cy- rénaïsme et la position qui identifie la connaissance à la perception. T. Penner met en perceptive la théorie de l’incorrigibilité des perceptions telle que défen- due par Protagoras dans le Théétète avec la notion de « proposition » telle qu’elle est définie dans la séman- tique moderne. Pour Penner, Platon se montre plus intéressé aux « real -world entities » que cela est le cas dans ces théories sémantiques modernes. D. O’Brien rejette l’idée commune, en logique moderne, que l’être ne serait pas un prédicat en montrant que, dans le Sophiste, pour Platon, le non -être, non pas défini en tant que ce qui n’est d’aucune façon, mais décrit comme ce qui est différent possède une réalité propre: l’être peut lui être prédiqué au sens où le non -être (ce qui est autre) est. Finalement, l’ouvrage se termine par trois contributions concernant les dimensions politique et historique de l’œuvre de Platon: S. Broadie étudie la notion de véracité de récit de l’Atlantide, M. Tulli pose la question de l’intérêt et du respect de Platon pour l’histoire à propos de la transmission du récit de Critias et enfin, M. Schofield invoque l’importance de l’amitié dans le cadre de la théorie politique des Lois.
L’ouvrage, au travers des contributions de D. Sedley, C. Gill et D. El Murr, propose également un traitement intéressant d’une discussion centrale dans l’œuvre de Christopher Rowe: l’intellectualisme socratique et les tensions qu’une telle théorie semble entraîner, notam- ment quant à la question de l’unité de l’âme. Ce dernier a défendu l’idée que Platon n’a jamais abandonné l’intellectualisme socratique au profit d’une vision tripartite de l’âme. en ce sens, Sedley affirme que la théorie de la tripartition représente un mode de discours, peutêtre trompeur, mais sans doute inévitable, à propos de la vie incarnée humaine lors de laquelle la plupart des mortels fonctionnent comme s’ils étaient sous l’influence de forces irrationnelles, alors qu’en réalité ces forces ne font pas partie de leur vraie na- ture. Ainsi, ce qui définit réellement le philosophe ne sera pas, comme le note Sedley, le contrôle raisonné des passions irrationnelles, mais l’accès à un niveau de cognition dans lequel les motivations corporelles disparaissent petit à petit et, dans cet état cognitif, le corps et ses passions ne recéleront plus qu’une in- fluence motivationnelle minimale. Autrement dit, la vraie nature de l’âme est unitaire (intellectuelle), elle n’est décrite comme ayant des parties que du point de vue de la condition humaine qui se considère comme divisée par les passions corporelles, mais, de fait, cette division n’ est pas réelle. C. Gill conclue sa contribu- tion sur cette problématique en affirmant que, sans doute, Platon cherche à défendre une vision unifiée de sa psychologie dans laquelle les théories socratique et platonicienne de l’âme se trouveraient, dans la République, intégrées au sein d’un argument cohérent sans que cela impliquerait une quelconque contradiction.
La question de l’intellectualisme socratique est évi- demment liée au statut du Bien tel qu’il est décrit dans la République. D. El Murr cherche à montrer que les critiques qui ont fait de ce Bien métaphysique, une entité tant abstraite qu’elle ne serait pas pratiquement réalisable (prakton) reposent sur une mauvaise com- préhension du statut de ce Bien: en effet ce dernier, en tant que principe ontologique suprême, confère l’être (ousia) aux entités qui possèdent la réalité et la stabi- lité suffisante pour être accessibles à l’intellect. Autre- ment dit, le Bien qui est responsable de la distinction entre le sensible et l’intelligible. or cette objectivité suprême du Bien implique également une valeur éthi- que et politique. La République cherche à distinguer entre ce qui est réellement juste et ce qui n’ est juste qu’en apparence. Cette distinction ne peut être garan- tie que par l’existence du Bien qui est toujours l’ultime objet du désir. Je peux désirer l’apparence de la justice car je pense que cette dernière est bonne pour moi, mais je ne peux pas désirer l’apparence du bien. Au contraire je désire toujours ce qui est mon propre bien. Autrement dit, je peux désirer quelque chose de façon superficielle, car je pense que cette chose m’ est profitable, mais je ne peux nullement désirer ce profit en apparence. Cette thèse qui fonde l’intellectualisme socratique ne peut être justifiée que s’il existe une réalité d’une valeur ontologique éminente qui puisse être l’objet du désir humain. or cette réalité est le Bien. C’est au final cette prééminence du Bien qui garantit la distinction entre a) le sensible et l’intelligible et b) ce qui est réellement X et ce qui n’ est X qu’en appa- rence, de sorte que le Bien de la République possède une forte valeur pratique. Platon ainsi ne semble pas faire de la Forme du Bien une entité déconnectée de la vie morale.
Luca Pitteloud – Universidade Federal do ABC (Brasil). E-mail: luca.pitteloud@gmail.com
Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 16, n. 5, 2015.
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Publicado: 2016-05-25
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Publicado: 2016-05-21
Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos – CAMARGO; VILLAR (BMPEG-CH)
CAMARGO, Eliane; VILLAR, Diego. Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. 304p. Resenha de: REITER, Sabine. Acabou o tempo dos mitos? Uma historiografia caxinauá moderna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.11, n.2, mai./ago. 2016.
O livro “Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos” é uma coletânea trilíngue (em caxinauá1, português e espanhol) de textos com relatos sobre o passado remoto e mais recente dessa etnia indígena que vive na região fronteiriça entre o Brasil e o Peru. Foi organizado por Eliane Camargo e Diego Villar, uma linguista e um antropólogo, em colaboração com Texerino Capitán e Alberto Toríbio, dois caxinauás de diferentes comunidades do rio Purus, localizadas no lado peruano da fronteira. Com cerca de 2.400 integrantes, o grupo étnico no Peru é menos extenso em número do que seus mais de 7.500 parentes no lado brasileiro, mas – devido ao maior isolamento na primeira metade do século XX – todos ainda falam a língua nativa, comparados aos caxinauás brasileiros, entre os quais há uma parte que fala apenas português2.
Apesar da presença de missionários em suas aldeias, a partir dos anos 1960, os caxinauás peruanos também conseguiram manter viva maior parte da cultura tradicional, enquanto, no Acre, os caxinauás – que conviviam com uma população não indígena nos seringais desde a época da borracha – perderam quase por completo os antigos costumes. Foi nesse grupo peruano que Camargo começou a pesquisar há mais de 25 anos e, principalmente, entre 2006 e 2011, quando levantou e arquivou dados de língua e cultura desse povo no âmbito do programa Documentation of Endangered Languages (DOBES, 2000-2016), com projeto de documentação sediado no Instituto Max-Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA), em Leipzig, e na Université X de Paris, em Nanterre (DOBES, 2000-2016).
Neste livro, publicado em 2013, Camargo foi responsável pelas transcrições e traduções ao português dos textos orais, em boa parte provenientes do acervo digital do projeto DOBES. Villar, que é pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas na Argentina e especialista de culturas pano, por sua parte, responsabilizou-se pela versão espanhola dos textos. Além disso, os dois organizadores restringiram-se a elaborar algumas frases introdutórias e comentários aos textos narrativos em notas de rodapé, onde explicam ao leitor o contexto narrativo, construções linguísticas e conceitos culturais. A escolha dos textos assim como a sua edição para formato escrito, no entanto, coube a uma equipe de jovens caxinauás, coordenada por Texerino Capitán, professor de escola bilíngue, e Alberto Toríbio, principal assistente de pesquisa do projeto DOBES. O livro, como informa Bernard Comrie, então diretor do departamento de linguística do MPI-EVA, na apresentação, é um dos produtos do projeto de documentação da iniciativa DOBES, que, através da perspectiva própria de um povo, “nos fornece uma visão diferente do mundo e a compreensão de nós mesmos” (Comrie, 2013, p. 23-25). Até hoje, é uma das poucas publicações que deixa falar – na sua totalidade – os próprios integrantes de um povo indígena amazônico.
O livro consiste em cinco partes principais. Nelas, os caxinauás informam sobre os hábitos dos seus antepassados, lembrados por alguns idosos e presentes na memória coletiva. Eles falam sobre os encontros com outras etnias pano, inclusive com aquelas encontradas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2008, celebradas pela mídia internacional como “os últimos selvagens”3, e sobre os primeiros contatos com os ‘nauás’, os outros, não indígenas de origem europeia. Relatam sobre as suas experiências em território alheio e nas grandes cidades, e sobre a história de migração e dispersão do próprio grupo, que se iniciou nos tempos míticos com uma briga entre o criador Txi Wa e seu parente Apu, e continuou com acontecimentos em consequência dos primeiros contatos com brasileiros nos seringais. O anexo que segue as partes principais do livro apresenta uma nota sobre a grafia utilizada e um léxico trilíngue extraído dos textos em caxinauá e de termos significativos.
As fontes das narrativas são diversas: cinco dos 25 textos provêm do livro “Rã-txã hu-ni kuï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá)”, de João Capistrano de Abreu (1914), o historiador brasileiro que – em inícios do século XX – montou uma primeira coletânea de mitos, textos históricos e de outros gêneros, em conjunto com dois jovens caxinauás da região do rio Murú, no Acre. A grande maioria dos textos é composta por depoimentos e memórias polifônicas, gravadas dos anos 1990 para cá, e informações obtidas por meio de entrevistas com pessoas mais idosas – todas do grupo peruano, um segmento da população caxinauá que fugiu de um seringal brasileiro no início do século XX. No Peru, esses caxinauás e seus descendentes viviam afastados da sociedade e só foram ‘redescobertos’ ao final dos anos 1940; contato que foi documentado pelo fotógrafo Harald Schultz, em 1951, constituindo um acervo de aproximadamente 80 fotografias, com imagens de uma pescaria e de uma festa.
Uma variedade de trabalhos desse fotógrafo teuto-brasileiro, mostrando cenas cotidianas daquela época, assim como imagens de objetos coletados por ele – que hoje se encontram no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) –, ilustra o livro, junto com fotografias recentes e desenhos feitos por integrantes do grupo especialmente para esta publicação. Entre eles encontramos os kene, grafismos tradicionais reproduzidos na tecelagem, na pintura corporal, em objetos e desenhos de cenas das narrativas, da vida cotidiana e de rituais. O que chama a atenção é que esses desenhos, produzidos em várias épocas, têm uma estilização própria: veem-se pessoas e objetos ‘deitados’ em uma vista de pássaro, para poder mostrar mais do que seria perceptível por meio do simples olhar de um espectador humano.
Todo o material recolhido neste livro foi selecionado pela equipe caxinauá, com o intuito de informar aos seus descendentes (filhos, netos) sobre a própria cultura, sendo veiculado na própria língua, a fim de manter viva a memória e uma identidade própria, como os dois colaboradores caxinauás escrevem no seu prefácio, que termina assim: “por esse motivo quisemos elaborar este livro. Dessa forma podemos todos juntos ler e aprender claramente a tradição” (Capitán; Toribio, 2013, p. 31). Ao mesmo tempo, o livro é um passo importante em direção a uma verdadeira participação dos povos indígenas na sociedade moderna através dos seus próprios discursos. Em uma época em que presenciamos ameaça cada vez mais forte à vida tradicional de povos indígenas em toda a América Latina, é essencial que um público maior tome conhecimento da história desse grupo, a qual reflete, de maneira exemplar, desenvolvimento ocorrido em muitos outros grupos, repetindo-se até hoje. Isso ocorreu desde o primeiro contato desses povos com a sociedade nacional, representada notadamente por bandeirantes/ coronéis, soldados da borracha, viajantes, missionários e pesquisadores, resultando em interferência cultural. Nas palavras dos caxinauás (traduzidas para o português), essa interferência se lê assim: “já nos tornamos nauás com suas roupas e comida. […] já não somos mais caxinauás! […] O governo diz que somos todos peruanos. É assim que falam” (2013, p. 227).
Ao mesmo tempo, a citação deixa bem claro que essa é uma visão de fora, a qual não reflete necessariamente a opinião do falante. A língua pano consegue expressar essas diferentes perspectivas de maneira elegante, através de marcadores de evidencialidade (no caso, -ikiki em akikiki, 2013, p. 226) que indicam, para os membros da comunidade de fala, o compromisso epistemológico com a informação dada. Essa técnica linguística pode até ser interpretada aqui como relevante indício de uma resistência clandestina e de uma mera adaptação superficial.
Uma atitude de ‘acostumação’, longe de ser assimilação por completo, também se manifesta em outro depoimento. Um caxinauá descreve como chegou a trabalhar como mecânico para um missionário americano: “um dia quebrei um parafuso e ele ficou furioso. […], achava que iria me bater. Achei isso porque me tratava assim. […] Depois eu me acostumei com ele. […] com suas palavras fortes” (2013, p. 203). Este trecho mostra mais um aspecto interessante do livro, a abertura para uma perspectiva intercultural: nós, os nauás, ficamos sabendo algo sobre como somos percebidos pelos caxinauás – como pessoas ameaçadoras pelo simples tom da voz! Ao passo que as narrativas exibem, em diferentes partes, uma visão caxinauá, o livro em si já é uma manifestação aberta da luta para a preservação de uma identidade própria.
Comparado com outras manifestações escritas na língua caxinauá, principalmente com a obra do grande historiador brasileiro do começo do século XX, este livro se destaca como marcador de uma mudança na percepção e no tratamento do elemento ‘indígena’ na sociedade. Enquanto o livro de Capistrano possui, sobretudo, relatos míticos, este é uma historiografia, em grande parte, de fatos vividos pelos caxinauás nos últimos 100 anos. Quem escolheu o material de “Rã-txã hu-ni ku-ï” foi o próprio Capistrano, tendo os dois caxinauás como fornecedores de informação e tradutores; aqui, os agentes principais são caxinauás, que selecionaram os textos baseados em critérios de informatividade a um público caxinauá atual e jovem4. Os textos de Capistrano também já eram traduzidos para o português na época, e existia uma explicação de ortografia destinada ao leitor brasileiro erudito. Porém, aquela tradução palavra por palavra deixou o texto original parecer ‘desajeitado’ ao leitor brasileiro monolíngue. Certamente, não fornece uma base para ser elaborada hoje em dia na educação bilíngue indígena, já que a ortografia desenvolvida pelo historiador autodidata em linguística não reflete bem a estrutura morfofonêmica da língua, não sendo legível para os caxinauás de hoje. A mesma crítica da ortografia inadequada pode se fazer a várias publicações recentes nessa língua indígena no Brasil. A maioria dos livros em caxinauá publicada, tanto no Brasil como no Peru, porém, é dirigida ao ensino nas escolas bilíngues, enquanto este livro pode ser de interesse de um público diversificado, mono e bilíngue, jovem e adulto, estudante e professor, leigo e acadêmico, voltado aos caxinauás e a cada pessoa que tenha curiosidade de conhecer outra perspectiva do mundo. Além de valorizar a cultura caxinauá, ele representa uma restituição ao grupo de coleta de relatos históricos, efetuada por pesquisadores, contribuindo igualmente para a difusão da diversidade do patrimônio cultural imaterial da Amazônia indígena.
Notas
1 O caxinauá pertence à família linguística pano.
2 Esses são os números oficiais do Instituto Socioambiental (Ricardo, B.; Ricardo, F., 2011, p. 12), que divergem consideravelmente de números informados em outras fontes, por exemplo, no site Ethnologue (Lewis et al., 2016). Segundo o Ethnologue, atualmente todos os caxinauás adquirem a língua nativa. Como o nível de conhecimento da língua indígena é uma questão política no Brasil, há diferenças entre os números oficiais em relação ao que se pode observar in situ.
3 Veja, por exemplo, Seidler; Lubbadeh (2008).
4 Neste contexto, pode-se questionar se o resultado realmente representa o ‘olhar caxinauá’, já que a equipe consiste de caxinauás escolarizados, parcialmente trabalhando na educação infantil, que, portanto, internalizaram um discurso padrão para texto escrito.
Referências
CAPISTRANO DE ABREU, João. Rã-txa hu-ni-ku-ï: grammatica, textos e vocabulário caxinauás. A lingua dos caxinauás do rio Ibuacú, affluente do Murú (Prefeitura de Tarauacá). Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1914. [ Links ]
CAPITÁN, Tescerino Kirino; TORIBIO, Alberto Roque. Prefácio. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 31. [ Links ]
COMRIE, Bernard. Apresentação. In: CAMARGO, Eliane. VILLAR, Diego (Org.). Huni kuin hiwepaunibuki: a história dos caxinauás por eles mesmos. La historia de los cashinahuas por ellos mismos. São Paulo: Edições SESC, 2013. p. 17-19. [ Links ]
DOCUMENTAÇÃO DE LÍNGUAS AMEAÇADAS (DOBES). Cashinahua. A documentation of Cashinahua language and culture. [S.l.]: Projeto DOBES, 2006-2011. Disponível em: <http://dobes.mpi.nl/projects/cashinahua/?lang=pt>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]
LEWIS, M. Paul; SIMONS, Gary F.; FENNIG, Charles D. (Ed.). Ethnologue: languages of the world. 19. ed. Dallas, Texas: SIL International, 2016. Disponível em: <http://www.ethnologue.com>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]
RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Ed.). Povos indígenas no Brasil: 2006-2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. [ Links ]
SEIDLER, Christoph; LUBBADEH, Jens. Neuentdeckter Indianerstamm: “Das kann der Anfang vom Ende sein”. Spiegel Online, 30 maio 2008. Disponível em: <http://www.spiegel.de/wissenschaft/natur/neuentdeckter-indianerstamm-das-kann-deranfang-vom-ende-sein-a-556720.html>. Acesso em: 8 abr. 2016. [ Links ]
Sabine Reiter – Universidade Federal do Pará. E-mail: sabine_reiter@yahoo.com
[MLPDB]
Cautivas Troyanas. El mundo femenino fragmentado en las tragedias de Eurípides – RODRÍGUEZ (RA)
RODRÍGUEZ, Cidre E. Cautivas Troyanas. El mundo femenino fragmentado en las tragedias de Eurípides. Córdoba: Ediciones El copista, 2010. Resenha de: MARISCAL, Lucia Romero. Revista Archai, Brasília, n.17, p.221-230, maio, 2016.
En el ya bastante poblado panorama de los estudios sobre Eurípides, Cautivas Troyanas de Rodríguez cidre (RC en lo sucesivo) constituye una aportación valiosa a la investigación que sigue la línea de seleccionar en el corpus del tragediógrafo una serie de piezas según criterios temáticos, dramatúrgicos o cronológicos (por citar los más recurridos). De este modo se consigue destacar la diversidad de los tratamientos trágicos de los aspectos en cuestión, al tiempo que se indagan las continuidades que eventualmente permiten hablar de la singularidad de Eurípides en el contexto del género, la literatura o la cultura de su tiempo. En su monografía, RC ha seguido un criterio temático- -dramatúrgico para constituir su elenco entorno a la figura de las mujeres troyanas que en la tragedia que podemos todavía leer (y hasta ver representada) son siempre cautivas. Nos quedamos, pues, con Andrómaca, Hécuba y Troyanas, para atender a la manera euripidea de poner en escena mujeres en el trance de la esclavitud, un trance considerado en tres dimensiones diferentes de la textualidad dramática, que dan relieve trágico a las mujeres de la que fue Troya sobre el fon- do de su condición femenina, tal como la vieron los (hombres) griegos: el léxico del lecho, la imagen del animal y la acción del lamento.
RC dedica sendos capítulos a cada una de las perspectivas señaladas, a los que hace preceder de una introducción en la que la autora aborda el ‘estado de la cuestión’ de uno de los temas sobre los que la bibliografía es abrumamdoramente extensa, como es el de la mujer en la antigüedad clásica griega y su representación en el medio teatral trágico. RC procede con rigor en la selección de los estudios que considera relevantes de una corriente histórico -crítica difícil de resumir y de hacer converger. En este primer apartado introductorio la autora expone igualmente su líneas metodológicas básicas, que conciernen a la documentación y asesoramiento de los estudios de historia antigua como referente cultural de autor y público, a los que se aplica un procedimiento filológico -literario de escrupuloso seguimiento y comentario léxico.
El primer capítulo está dedicado a “Los lechos en Andrómaca, Hécuba y Troyanas ”. En él se aportan datos cuantitativos –número de apariciones de los términos que designan denotativa, connotativa o tropológicamente al lechocon datos cualitativos de inconmensurable valor: en qué contextos, bajo qué focalizaciones dramáticas, y con qué valencias mito- lógicas, simbólicas y de realia tanto en el imaginario poético de la obra como en el universo cultural com- partido por público y autor. Así, para el caso de la obra Andrómaca, la autora explora los conceptos de ‘esposa legítima’, ‘concubina’ o ‘esclava de lecho’ en la obra y en algunos textos no literarios de la época, particularmente en relación con la ciudad de Atenas. Al mismo tiempo, se exploran otros términos capitales en esta tragedia, como el del hijo no legítimo o bastardo (nóthos) o el de la complicada relación de authéntes. El lecho, tantas veces invocado en la obra bajo múltiples advocaciones, resume el problema de la fertilidad y de la infertilidad femenina que condicionan la identidad misma de la mujer (ápais y paidopoiós) en el mundo antiguo. Andrómaca converge en torno al problema del lecho compartido, de la vigilancia masculina so- bre la mujer, y del carácter relacional de esta última en función del lecho al que queda unida o del que es separada. El lecho es fuente de confrontación entre mujeres y también entre mujeres y varones cuando la guerra o la falta de prudencia o virtud alteran el ideal del lecho único, legítimo y fértil. Únicamente los dioses, en este caso Tetis, pueden hacer valer el privilegio de la unión consagrada por un lecho divino, aun cuando la tradición mítica de la diosa la hiciera en principio reluctante a la unión en el lecho con un mortal como Peleo.
Todas las referencias al lecho en Hécuba están, en cambio, teñidas de una sombra de muerte, por lo que el apartado dedicado a esta tragedia se subtitula, con razón, “los tálamos de Hades”. La autora va más allá del topos que en la tragedia relaciona el sacrificio de don- cellas con unas bodas en el Hades. como señala R.C., incluso las referencias al lecho que unen a casandra como mujer botín con Agamenón están al servicio del personaje cuya muerte capitaliza la primera parte de la obra, i.e. Políxena, a la que inútilmente intenta salvar su desesperada madre. En la segunda parte, Po- lidoro y los hijos de Poliméstor acaparan una escena llena de cadáveres. El único personaje masculino que hace referencia al lecho en esta pieza es, precisamen- te, Poliméstor y para él el lecho es un mobiliario del interior de la tienda en la que Hécuba lo acoge a él y a sus hijos con una familiaridad doméstica que se va a transmutar en una grotesca y horrenda trampa mortal. Los lechos de las troyanas del coro de esta tragedia también guardan una penosa relación con la muerte, en este caso la muerte de sus esposos en la toma de la ciudad que ellas rememoran con dolor. El destino que les aguarda es, como el de casandra, el de compañeras de lecho tomadas por la lanza enemiga. La yuxtaposición entre los lechos felices y legítimos del pasado y los lechos enemigos y esclavos del presente acentúa el horror y la compasión por las troyanas.
Precisamente en Troy ana s esa confrontación entre el esplendor y la felicidad de los lechos del pasado y la miseria de los lechos esclavos del futuro inminente es una de las imágenes más recurrentes por parte de los personajes femeninos de esta obra, especialmente Hécuba y el coro. La autora subraya que, excepto Atenea, la diosa virgen, todos los personajes, tanto femeninos como masculinos, mortales e inmortales, mencionan en más de una ocasión el lecho con marcadas acepcio- nes sexuales. El trauma de las troyanas es su condición de mujeres -botín y así lo asumen también personajes masculinos como Poseidón y Taltibio. Únicamente casandra hace mención al lecho en un desconcertan- te sentido matrimonial o nupcial, que estará teñido, a su vez, de muerte, como episodio final de una guerra cuya victoria la joven atribuye a los troyanos.
El segundo capítulo versa sobre los procesos de animalización en Andrómaca, Hécuba y Troyanas. La metáfora animal es empleada tanto por las cautivas troyanas como por otros personajes en referencia a las cautivas y contrastan, dentro de cada obra, con las imágenes animales aplicadas a los otros personajes del drama. Así, en Andrómaca, por ejemplo, la protagonista es agresiva a la hora de calificar a su antagonista Hermíone como equidna, animal más peligroso aún que las sierpes. A ella y a su padre Menelao, que la hostigan a salir del templo en el que se ha refugiado, los tilda la protagonista de buitres. En cambio, una imaginería animal doméstica y frágil es la que designa a Andrómaca y Moloso, conducidos por sus enemigos como víctimas sacrificiales, como oveja y cordero. Por supuesto, el topos del polluelo o pichón que es arran- cado del regazo de su madre encuentra su desarrollo en el tratamiento del desamparo infantil en esta obra. sin embargo, también la desarbolada Hermíone es ob- jeto de asimilación con un ave, a la que ella misma se compara en su desesperado intento de huir de la apurada situación en la que se encuentra. La joven es designada en los términos imagísticos que traducen en el imaginario poético antiguo el estatuto de la parthenos como potrilla que ha de ser domada en el matri- monio, aunque en su caso sus progenitores sean devaluados por su comportamiento en la guerra de Troya y ella misma, infértil, sea asimilada una novilla estéril.
La cautiva troyana que acumula un mayor número de asimilaciones animales en la primera parte de Hécuba es Políxena, a quien su madre, las troyanas del coro, ella misma e incluso el heraldo Taltibio designan como cervatilla, potrilla, pájaro, cachorra, ruiseñor y novilla. En la mayoría de estas imágenes predominan las connotaciones de la caza y el sacrificio, al que, de hecho, la joven será entregada en lugar de una víctima sacrificial animal. Las metáforas, cargadas de resonan- cias épicas, líricas y trágicas, desarrollan asociaciones y emociones en personajes y público que contrastan con el discurso libérrimo que el poeta pone en labios de la joven y con el comportamiento ejemplar de la misma narrado por el heraldo. En uno y otro caso la asombrosa humanidad de la joven subraya la diferencia respecto a la analogía con el mundo animal. con todo, el tropo animal sirve para destacar el pathos del sacrificio de la víctima, cuyo carácter inmaduro es puesto de relieve en la comparación, que posee, ade- más, connotaciones sexuales a través de la asimilación tópica del sacrificio con el rito matrimonial.
En Troyanas las metáforas del mundo animal se aplican tanto a vencedores como a vencidos para su- brayar la fragilidad de estos así como la agresividad de aquellos. Hécuba se asimila a sí misma con un zángano, animal inútil, tara como esclava anciana e infértil, que ha perdido su condición regia. En cambio, su nuevo amo, odiseo, es calificado por ella como ‘bestia mordedora’ de lengua bífida debido a su habilidad oratoria mordaz y a su reptar sinuoso y adaptaticio. Las imágenes del polluelo y las aves vuelven a incre- mentar el pathos de la indefensión de un niño, Astia- nacte, y de una Troya que resuena con lamentos que- jumbrosos. Pero es, sobre todo, la imagen animal del yugo la que con más frecuencia aparece en esta obra donde el yugo de la esclavitud y de la unión sexual como mujeres -botín afecta en mayor grado a las cau- tivas troyanas. La autora señala que la imaginería del yugo al que se es uncido como animal domesticado aparece cuatro veces en Andrómaca, dos en Hécuba y hasta en ocho ocasiones en Troyanas, que tematiza, como ninguna otra, el trauma de la pérdida de la ciu- dad y, por lo tanto, de la libertad y de los lazos fami- liares legítimos, especialmente los que tienen relación con el lecho. Estas mujeres, como desarrolla sobre todo Andrómaca muy elocuentemente, serán uncidas al yugo de la esclavitud sexual como mujeres tomadas por la lanza.
La imaginería animal alcanza su efecto trágico más atroz cuando la víctima animal sacrificial es sustituida por una víctima humana. son las mujeres, particularmente las doncellas, quienes suelen protagonizar estas escenas en las que la víctima degollada no es una ternera o un buey, como se esperaría, sino una joven cuya sangre es asimilada tanto a la sangre de las víctimas del sacrificio religioso propiciatorio como a la de la pérdida de la virginidad en la consumación del matrimo- nio. La autora desentraña el complejo de asociaciones y valores simbólicos que en el imaginario antiguo y en la cultura científico -médica de la época ostenta especialmente el cuello femenino, abertura que comunica con la vagina en la representación del cuerpo de la mujer en la antigüedad. En “la negra sangre de las degolladas”, R-C analiza el vocabulario que tanto en Andrómaca como en Hécuba y Troyanas remite a la degollación de víctimas humanas, como los frustra- dos intentos de muerte sobre Andrómaca y Moloso en la primera; el sacrificio de Políxena y la muerte de los hijos de Poliméstor en la segunda, y las muertes de Príamo, Políxena y Astianacte en la tercera. si bien es el sacrificio de Políxena en Hécuba el que recibe un tratamiento poético más extenso, en todas estas trage- dias queda subrayado el carácter impío del sacrificio en el que, en el lugar de un animal, es una persona quien es herida mortalmente y cuya sangre se derrama.
El capítulo segundo concluye con el análisis de la imaginería poética que presenta a la mujer bajo el espectro de lo monstruoso, la forma más extrema de representación de la triple alteridad de las cautivas tro- yanas como mujeres, enemigas y esclavas no griegas. En Andrómaca, de hecho, la estrategia dialéctica de Menelao frente a Peleo es subrayar la alteridad de la protagonista, cuyos rasgos bárbaros y hostiles, como oriunda de un pueblo enemigo vencido al alto precio de la guerra, prácticamente la asimilan a las sirenas con las que ya habían sido identificadas otras mujeres en la obra. Pero la exégesis más original y persuasiva de este último apartado se encuentra en el análisis de la segunda parte de Hécuba, donde la metamorfosis de la protagonista en una perra de piedra relaciona al personaje con la monstruosa Escila. Esta interpretación no es excluyente de las ya propuestas y conocidas acerca del valor simbólico de la perra como imagen de maternidad feroz y como Erinia vengadora. Los argumentos mitológicos, literarios y metateatrales que aporta la autora hacen plausible la equivalencia entre Hécuba y las troyanas que la ayudan a ejecutar su ven- ganza con Escila como peligro y señal de navegantes. En Troyanas, casandra se presenta a sí misma como una de las tres Erinias mientras que Helena es incre- pada y referida por el resto de personajes (femeninos y masculinos) como hija de deidades destructivas y como un ser devastador. La belleza deletérea de He- lena la asimila sutilmente a figuras de lo monstruoso como Gorgonas, sirenas y Harpías. Estas analogías indirectas enriquecen el sentido del texto con todas sus implicaciones ideológicas.
El tercer y último capítulo versa sobre el duelo y su tratamiento en las tres tragedias seleccionadas. En Andrómaca todo intento de duelo termina por ser interrumpido: no solamente el que la protagonista renueva al principio de la obra, sino también el que la desesperada Hermíone intenta llevar a cabo sobre sí misma y, sobre todo, el que el anciano Peleo, a falta de otro familiar femenino, ejecuta sobre el cadáver de su nieto Neoptólemo. Gestos y palabras son ana- lizados con detalle en esta obra en la que la falta de hijos es el tema preponderante que relaciona a estos personajes tan distintos entre sí. Algo parecido sucede en Hécuba, si bien aquí los cadáveres se acumulan sin poder ser llorados ni enterrados con propiedad. Un difuso lamento permanente recorre una obra en la que se confunden los papeles de quien llora y quien ha de ser llorado. En cambio, en Troyanas el treno es constante de principio a fin y es, con mucho, la obra en la que se acumula un mayor registro léxico referi- do al duelo. con todo, tampoco en esta obra el duelo de las cautivas se lleva a cabo en la forma habitual o esperada. Debido a su situación de mujeres privadas de una ciudad que vemos arder ante nuestros ojos y de una comunidad que ha sido aniquilada, las cautivas troyanas no logran sino una imitación distorsionada de unos ritos que tratan en vano de llevar a cabo. El duelo por Astianacte y por la ciudad son los que al- canzan un mayor desarrollo poético y dramatúrgico, con la impresionante escena del escudo y con los ges- tos físicos finales de Hécuba y el coro que, más que llorar a sus muertos, los invocan.
Todos los capítulos se cierran con conclusiones parciales que resumen las ideas principales de los mismos. A ellos se añaden las conclusiones finales que culminan un libro que supone una inestimable contribución a los estudios del teatro clásico griego y de la mujer en la literatura y el pensamiento atenien- se de época clásica. La actualización bibliográfica y la selección pertinente de la misma son también de gran utilidad tanto para especialistas como para el público universitario en general.
Lucia Romero Mariscal – Universidad de Almería (España). E-mail: lromero@ual.es
Republicanismo Inglês: Uma Teoria da Liberdade | Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros
No dia 31 de dezembro de 1958 Isaiah Berlin, em uma aula inaugural na Universidade de Oxford, retomaria de forma contundente as duas conceitualizações de Benjamin Constant sobre liberdade, a saber: a liberdade negativa e positiva. A primeira, tendo Thomas Hobbes como ídolo maior, se referiria à liberdade como ausência de restrição, em que o agente, mesmo podendo sofrer forças externas de persuasão, poderia agir sem coação. Já a segunda emanaria de Aristóteles e contagiaria filósofos como Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau e Hegel. Nela, a liberdade seria a capacidade de determinar a própria ação, sem ser influenciado por forças externas. Os dois conceitos, conclui Berlin, seriam indispensáveis para a modernidade.
A essa interpretação, publicada imediatamente como panfleto pela Clarendon Press e como livro onze anos depois na coletânea Four Essays on Liberty, Quentin Skinner rebateu os argumentos de Berlin com o seu livro-panfleto Liberdade Antes do Liberalismo (1998), em que resgatava um terceiro conceito de liberdade, este muito caro à tradição republicana, a liberdade neorromana. Para Se utilizar da própria metodologia de Skinner, o livro de Alberto Barros vem justamente em direção a essa contenta, atacando as pretensões liberais de Isaiah Berlin e corroborando com o republicanismo de Philip Pettit e Quentin Skinner. Leia Mais
Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935 – FAYE (RFA)
FAYE, Emanuel. Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935. Trad. Luis Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações, 2015. Resenha de: PELBART, Peter Pál. Heidegger nazista? Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.28, n.44, p.719-727, maio/ago., 2016.
Não foi o primeiro nem terá sido o último terremoto a abalar o perímetro “heideggeriano” na publicação de Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: Sobre os seminários de 1933-1935, de Emanuel Faye1 . Filho de Jean Pierre Faye, conhecido estudioso da linguagem totalitária e cáustico adversário da recepção acrítica da obra de Heidegger na França, o autor se debruça sobre os seminários ministrados pelo filósofo nos dois primeiros anos subsequentes à ascensão de Hitler ao poder, bem como sobre documentos, discursos e cartas inéditas do período, liberados pela família apenas em 2001. Com essa pesquisa farta em documentação, citações e testemunhos, o quadro já desenhado por Hugo Ott e Victor Farias ganha cores mais sinistras. Então, vejamos. Em agosto de 1933, na qualidade de reitor da Universidade de Freiburg, Martin Heidegger pronuncia as seguintes palavras diante do Instituto de Anatomia Patológica da cidade: “O povo alemão está em vias de reencontrar agora sua essência própria e de tornar-se digno de seu próprio destino. Adolf Hitler, nosso grande Führer e chanceler, através da revolução nacional-socialista, criou um Estado novo […] Para todo povo, a primeira garantia de autenticidade e grandeza está no seu sangue, no seu solo e no seu crescimento corporal”. No ano seguinte, poucos dias antes de renunciar à função de reitor, ele escreve ao ministério de Karlsruhe, insistindo na criação de uma “cátedra de professor ordinário de doutrina racial e de biologia hereditária”, para ensinar aos estudantes “a visão do mundo nacional-socialista e o pensamento da raça”. Eugen Fischer, teórico do eugenismo e um dos primeiros defensores do genocídio dos povos ditos “inferiores”, próximo de Heidegger, nomeia um protegido seu para o cargo. Num seminário do período, Heidegger assim define uma raça, em total sintonia com o que circulava na época: “O que nós chamamos de ‘raça’ entretém uma relação com o que liga entre si os membros de um povo — conforme sua origem — pelo corpo e pelo sangue.” No entanto, a biologia não bastaria para o filósofo da Floresta Negra como critério decisivo. Assim, os não-arianos — entenda-se, os judeus — devem ser definidos antes de tudo pela sua natureza desenraizada, já que são desprovidos de solo (um povo sem-terra não é um povo) e desprovidos de mundo (como os animais, aliás), e por conseguinte, simplesmente não pertencem à história do Ser. Aliás, o desenraizamento que caracteriza o mundo ocidental não poderia ter outra proveniência — a judeidade predominante. Se tal metafísica da raça justifica uma separação absoluta entre arianos e judeus, ela ganha, nas palavras de Heidegger, a conotação de uma guerra, com todas as consequências que esse termo pode carregar no período em que é enunciado. Ao traduzir polemos por guerra (Krieg), combate (Kampf) e confrontação (Auseinandersetzung), o filósofo acrescenta em seu seminário de 1933-1934 essa nota, da qual não está ausente a marca de seu amigo e interlocutor Carl Schmitt: “O inimigo é aquele, qualquer um, que faz pairar uma ameaça essencial contra a existência do povo e de seus membros. O inimigo não é necessariamente um inimigo exterior, e o inimigo exterior não é necessariamente o mais perigoso. Pode até parecer que não haja inimigo nenhum. A exigência radical consiste então em encontrar o inimigo, em trazê-lo à luz ou talvez até mesmo em criá-lo, a fim de que se dê esse surgimento contra o inimigo e que a existência não seja bestificada. O inimigo pode ter se entificado sobre a raiz a mais interior da existência de um povo, e contrapor-se à essência própria deste, agir contra ele. Tanto mais acerbo e duro e difícil é então o combate, pois só uma parte ínfima deste consiste em ataque recíproco; com frequência é ainda bem mais difícil e laborioso detectar o inimigo enquanto tal, levá-lo a desmascarar-se, não iludir-se a seu respeito, estar pronto para o ataque, cultivar e aumentar a disponibilidade constante e iniciar o ataque no longo prazo, tendo em vista a aniquilação total (völligen Vernichtung)”2 . Como se vê, a ontologização do anti-semitismo promovida por Heidegger não é capaz de ocultar o fundo racista, apenas lhe fornece, com seu pathos heróico, um verniz pretensamente filosófico. Com razão, Faye se pergunta se não teríamos aí a antecipação teórica, difundida em seu seminário, da “solução final”, assim como o “crescimento corporal” mencionado mais acima, seria a justificação prévia para a expansão territorial do III Reich.
A doutrinação a que Heidegger submeteu seus alunos nesse período não terá constituído um episódio circunstancial, um desvio de rota, uma incompreensão política momentânea. Foi, ao contrário, a expressão fidedigna e assumida de uma visão de mundo coerente, que precedeu a ascensão do nazismo e se prolongou para além do período do reitorado, e até mesmo da própria queda de Hitler. Claro, sempre se pode alegar que o discurso anti-semita era corrente por toda parte na Alemanha da época, o que escusaria Heidegger da expressão usada em carta escrita a sua futura esposa Elfride já em 1916: “A judaização (Verjudung) de nossa cultura e das universidades é assustadora e penso que a raça alemã deveria encontrar força interior suficiente para atingir o topo”3 . Mas o que entender por judaização, termo retomado por Heidegger na década seguinte, em um contexto onde tal palavra ganharia um alcance funesto, e sobretudo na pena de um autor que, alega-se, foi atento como poucos neste século ao sentido, alcance e responsabilidade das palavras? Será tal judaização o domínio exercido por judeus em várias esferas da cultura? Ou da economia, finanças, ciências? Algo próximo, então, do sinistro documento produzido pela polícia política do czar, Os protocolos dos sábios de Sião, demonstrando o complô mundial dos judeus? Ou algo mais profundo e vasto, mais abrangente e perigoso?
Não se trata apenas de evocar os episódios pessoais ou medidas administrativas, documentos oficiais ou relações comprometedoras, mostrando como desde o início de seu reitorado Heidegger se ajusta com afinco às instruções antissemitas do Ministério (perfilamento, Gleichschaltung), introduzindo o princípio de chefia vertical em todas as instâncias da universidade (Führung), abolindo as eleições e pregando uma concepção de liberdade universitária dirigida apenas para o “engajamento espiritual e comum no destino alemão”. Isso sem contar a defesa dos campos de trabalho e educação, de saúde da raça, as conexões diretas com as associações de estudantes e seu franco ativismo nazista, com placas antissemitas disseminadas no campus e autos-da- -fé que o filósofo jamais interditou — muito ao contrário. Faye trata de adentrar no âmago do ensinamento de Heidegger no período, e o que vem à tona é nada menos do que uma filosofia penetrada de nazismo de cabo a rabo, onde se desdobra uma apologia da superioridade alemã do ponto de vista historial, e por conseguinte o lugar exclusivo da Alemanha na possibilidade de encetar um “novo começo” que pudesse ressoar com o começo grego — e que o movimento nacional-socialista estaria em vias de encarnar. Para tanto, os termos de Combate (Kampf), Sacrifício (Opfer), Destino (Schicksal), Comunidade do povo (Volkgemeinschaft), Sangue e Solo (Blut und Boden), Adestramento (Zucht), Raça (Rasse, Stamm, Geschlecht), Dirigente (Führer), Popular-nacional (volkisch), também presentes em Mein Kampf ou nos discursos diários de Hitler, são abundantemente utilizados pelo filósofo, empacotados em aura metafísica ou onto-historial. Seja no seminário Sobre a essência e os conceitos de natureza, de história e de Estado, seja no Hegel, sobre o Estado, ministrados em 1933 e 1934, aparece a relação primordial entre o Povo, entendido como a Comunidade de raça, e o Führer, que é identificado com o Estado.
O que não pode deixar um filósofo indiferente é a equivalência que se explicita entre Povo e ente, Estado e Ser: “O povo, o ente, entretém uma relação muito precisa com seu ser, com o Estado” (Das Volk, das Seiende hat ein ganz bestimmtes Verhältnis zu seinem Sein, zum Staat)4 . Assim, a diferença ontológica aparece à luz de seu substrato político nazista. É esse o sentido mesmo do livro de Faye — mostrar que essa filosofia veicula uma ideologia nazista, o que levanta a questão de saber se ainda pode ser considerada uma filosofia. Sendo o objetivo último dessa ideologia a afirmação de si de um povo específico ou a exclusividade de uma única raça com direito a habitar e dominar a Terra, ela é acompanhada de um cortejo de noções: a Técnica como manifestação da potência natural de um povo — ponto de vista esse revirado após a derrota nazista — assim como o Trabalho enquanto tarefa suprema em favor do Estado: “Só existe um ‘estado de vida’ alemão. É o estado do trabalho, enraizado no fundo portador do povo e livremente ordenado na vontade histórica do Estado, cuja marca (Prägung) é pré-configurada no movimento do Partido Nacional-Socialista dos trabalhadores alemães.”5 Com o pathos da grandeza, da veneração, da formação de uma elite à altura da missão, tudo indica que a questão “O que é o homem?” se converte em “Quem é o homem?”, de modo que a pergunta esquecida sobre o sentido do Ser aparece aí como a pergunta perfilada sobre o Destino do povo alemão, num contexto em que o eros do povo em relação ao Estado desenharia uma nova possibilidade, um novo começo. “Quando hoje o Führer fala continuamente da reeducação em direção à visão de mundo nacional-socialista, isto não significa: inculcar um slogan qualquer, mas produzir uma transformação total, um projeto mundial, com base no qual ele educa o povo como um todo. O nacional-socialismo não é uma doutrina qualquer, mas a transformação do mundo alemão e, como acreditamos, do mundo europeu”6 . A visão de mundo deve estar na base de uma filosofia, e não dela derivar. A hipótese de Faye é que a posição de Heidegger a respeito não mudou depois do reitorado, apenas se intensificou e se radicalizou. Assim, na obra escrita entre 1936 e 1938, e publicada apenas em 1989, Beiträge zur Philosophie, aparece a equivalência já prenunciada entre cristianismo, bolchevismo, racionalismo, ocidentalismo e […] judaismo. Ao apontar o fundamento judaico desse conjunto, Heidegger o explicita como “maquinação” (Machenschaft), termo que recobre um leque de sentidos, todos atribuíveis à figura do judeu, desde a manipulação, o engodo, o complô, até o próprio cálculo, rendimento, tecnicismo, predomínio da vontade de poder. Curiosamente, mas este é apenas um parêntese anedótico, Deleuze é talvez o primeiro no mesmo século a assumir alegremente o caráter “desenraizado” (“desterritorializado” e “desterritorializante”) da filosofia, bem como sua dimensão “maquínica” (veja-se O anti-Édipo) — não seria o “esquizo”, o judeu de Heidegger, porém positivado?
Fechado o parêntese, chegamos assim, num crescendo, à mais terrível das questões. Segundo os textos da época, para Heidegger morrem apenas aqueles que “podem” morrer, isto é, que trazem em si a “possibilidade” da morte. E só pode morrer, estritamente falando, aquele cujo ser lhe dá tal “poder, aquele que está no ‘abrigo’ da ‘essência’ do Ser”. Os exterminados nos campos de concentração não trazem essa “possibilidade”, já que estão forcluídos da história do Ser; eles não são “mortais”. Portanto, no sentido rigoroso, não morreram. O negacionismo aí presente só pode contar como “mortos” os próprios alemães — não os ciganos, russos, poloneses, populações inteiras gazificadas, etc. Eis o comentário de Faye: “O conteúdo do texto de Heidegger supera em abjeção o racismo nacional-socialista e a aniquilação física, moral e espiritual que ele visava”.
Com razão o leitor desse livro há de se perguntar como tudo aquilo que colheu em Heidegger sobre o “Ser-aí”, a Angústia, a Solidão, o Cuidado, a Abertura, todo o domínio do existencial, podem coadunar-se com o que acaba de ser evocado. Infelizmente, no contexto descrito mesmo tais noções vão aparecendo em sua coloração volkisch. Eis, por exemplo, a conclusão da sétima sessão do seminário de inverno de 1933-1934: “É somente ali onde o Führer e aqueles que ele conduz se ligam em um único destino e combatem pela realização de uma ideia que pode crescer essa ordem verdadeira. Então, a superioridade espiritual e a liberdade implementam-se enquanto dom profundo de todas as forças do povo, ao Estado, enquanto treinamento mais severo, jogo, resistência, solidão e amor. Então, a existência e a superioridade do Führer arraigaram-se no ser, na alma do povo para ligá-la original e passionalmente à tarefa”. Os filosofemas, os clichês, a pseudo-profundidade, a poesia (Lacoue-Labarthe já declarou que toda a segunda fase da obra de Heidegger em torno do poético é inteiramente kitsch!) — é essa mistura que fascinou mais de uma geração de filósofos, que Faye revira do avesso para mostrar seu fundo abjeto.
Isso tudo, diga-se de passagem, dez anos antes da publicação na Alemanha do que se poderia traduzir como Cadernos Negros, espécie de diário escrito por Heidegger entre 1930 e 1970, onde o filósofo como que abre sua caixa preta, e explicita como em nenhum outro lugar seu anti-semitismo (metafísico! exclamarão seus defensores) e sua relação de fé nos princípios do movimento nacional-socialista — confirmando tudo o que ainda poderia parecer uma interpretação maledicente. Na esteira dessa publicação recente, coordenada por Peter Trawny, e do terremoto filosófico daí advindo, a Bibliothèque Nationale em Paris acolheu um colóquio intitulado Heidegger et les“Juifs”, disponível na íntegra no Youtube7 . Se o livro de Faye produziu um impacto menor na ocasião de sua publicação há dez anos atrás, não é porque o seu teor e as informações ali coletadas fossem pouco bombásticas, mas talvez porque sua postura tão categórica e combativa foi imediatamente estigmatizada como “anti-heideggeriana” e, portanto, desqualificada. Outro foi o caso de Trawny, menos suspeito não só por ter sido o responsável pela edição dos Cadernos Negros, mas por ter assumido uma posição mais nuançada do que Faye em seu livro Heidegger et l´antisémitisme: Sur les “Cahiers noirs”. Isso não evitou que fosse virulentamente criticado por Michèle Cohen-Halimi e Francis Cohen em Le cas Trawny, acusado de ter tentado edulcorar o anti-semitismo do filósofo através de sua enunciação onto-historial — como em Poe da carta roubada, onde mostrar tudo é a melhor maneira de ocultar do que se trata.
Para além das querelas e dos estigmas, e mesmo que se discorde de inúmeras apreciações mais gerais de Faye, e repetitivas à exaustão, sobretudo aquelas em que ele põe em dúvida a estatura da filosofia de Heidegger, na contramão de uma reverência que várias gerações de pensadores lhe asseguraram, de Sartre a Badiou, passando por Jean Luc Nancy e Barbara Cassin, é inegável o trabalho de pesquisa minucioso e o farto material inédito trazido pelo livro.
Talvez a hipótese lateral que Faye deixa entrever seja pertinente, na esteira dos documentos a que teve acesso: Heidegger ansiou por ser uma espécie de profeta do nacional-socialismo, em paralelo ao Führer e para além dele. Hoje, aliás, fica difícil de entender de outra maneira por que razão ele teria programado em detalhe a publicação de seus Cadernos Negros para o final da edição dita integral de suas obras — como que no lugar de seu coroamento. Certamente não para retratar-se — ele o teria feito em vida, se assim o desejasse. Para reiterar a validade da aposta, que apenas os séculos vindouros poderiam confirmar? A provocação de uma ouvinte no Colóquio da Bibliothèque Nationale não pode deixar de ressoar, depois da leitura desse livro de Faye, tão sulfuroso quanto doloroso: deveríamos colocar Heidegger ao lado de Kant e Hegel, na estante dos maiores filósofos da História, ou, ao invés disso, ao lado dos ideólogos oficiais do nacional-socialismo, tais como Rosenberg e Baeumler, ou mesmo Carl Schmitt e Ernst Jünger? O fato de que tal pergunta pôde ser formulada é um indício, entre outros, de que a querela em torno de Heidegger está longe de chegar ao seu fim8
Notas
1 Emanuel Faye, Heidegger, a introdução do nazismo na filosofia: sobre os seminários de 1933-1935, trad. Luis Paulo Rouanet, São Paulo, É Realizações, 2015 [Heidegger, l´introduction du nazisme dans la philosophie: autour des séminaires inédits de 193301935, Paris, Albin Michel, 2005]
2 Martin Heidegger, Gesamtausgabe, 36/37, Frankfurt-am-Main, Vittorio Klostermann, 2001.
3 Carta de 18 de outubro de 1916, “Mein liebes Seelchen!”, Briefe Martin Heideggers an seine Frau Elfride 1915-1970, editadas e comentadas por Gertrude Heidegger, Munique, 2005, p.51.
4 M. Heidegger, Über Wesen und Begriff von Natur, Geschichte und Staat, sétima sessão, fragmento da § 5; ver Theodor Kisiel, “Heidegger als politischer Erzieher: der NS-Arbeiterstaat als Erziehungsstaat, 1933-34”, Norbert Lesniewski (ed), Frankfurt, Berlim, Lang, 2002, p.87 (anexo), cit por E. Faye.
5 M. Heidegger, Der Ruf zum Arbeitsdienst, Gesamtausgabe 16, Frankfurt, Vittorio Klostermann, p.239, cit por E. Faye.
6 M. Heidegger, GA 36/37, op. cit., p 225, cit por E. Faye.
7 PETER TRAWNY. Colloque. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Aiem3GNkeu8>.
8 Uma das mais lúcidas análises do teor regressivo e conservador da “radicalidade” atribuída a Heidegger foi feita por Leo Strauss ainda em 1941, ao mostrar como a geração do entre-guerras na Alemanha nutria um “niilismo” difuso, composto por um ódio pela civilização ocidental, desprezo pela democracia liberal, ojeriza pela utopia comunista, veneração por uma cultura (Kultur) de elevação seletiva, sacrifício, combate e belicismo. Strauss deplora que os intelectuais da época tenham aberto as portas para que essa “emoção” desembocasse na adesão a Hitler. A conferência “Sobre o niilismo alemão” foi proferida em 26 de fevereiro de 1941 no seminário As experiências da Segunda Guerra Mundial, promovido pela Graduate Faculty of Political and Social Scienceda New School for Social Research, em Nova York. O texto de referência, datilografado pelo autor, e posteriormente revisto por ele, só foi publicado postumamente (Strauss faleceu em 1973), em 1999, simultaneamente na revista Commentaire, nº 86, em francês, e em inglês na revista Interpretation, Queen’s College, Nova York, v.26, nº 3.
Peter Pál Pelbart – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E- mail: ppelbart@uol.com.br
[DR]
El futuro es un país extraño: una reflexión sobre la crisis social de comienzos del siglo XXI | Josep Fontana I Làsaro
A tópica do imperativo da esperança do mundo melhor remonta ao Gênesis, ao dilúvio e aos tempos imemoriais. Mas foi a partir do século 18, no torvelinho da corrente de dessacralização do fluxo da vida, que essa categoria ganhou o sentido de progresso e evolução permanente que sugere que dias melhores sempre virão. A leitura retroativa indicava que a vida das pessoas vinha de melhora em melhora desde o êxito dos Otomanos sobre Constantinopla. O século 19 não simplesmente ia amplificar os ganhos da revolução industrial do ferro, do algodão e da especialização do trabalho como avançaria sobre diversos campos de inovação científica e tecnológica que desembocaria na belle époque da fin-de-siècle. Esse tempo sublime, eivado de sentimentos de identificação e de necessidades de reconhecimento, levaria os mandatários germânicos após Bismarck a querer contar para além de suas fronteiras impondo aos demais a outorga de seu lugar ao sol. Leia Mais
Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning – HALL et. al. (B-RED)
HALL, J.; VITANOVA, G.; MARCHENKOVA, L. (Eds.). Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogos com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira: novas perspectivas]. Mahwah, New Jersey; London: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. 241 p. Resenha de: MELO JÚNIOR, Orison Marden. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.2 São Paulo May./Aug. 2016.
A obra Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira: novas perspectivas] – doravante Dialogue with Bakhtin – traz, em seu título, dois temas de grande interesse para os estudos da Linguística Aplicada: a abordagem dialógico-discursiva da linguagem apresentada e discutida pelo Círculo (de Bakhtin) e os estudos voltados ao processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua ou de uma língua estrangeira1. A preposição with [com] – Dialogue with Bakhtin – posiciona a obra dentro do escopo real de diálogo entre os temas, tendo em vista não haver, nos escritos do Círculo, um ensaio específico sobre o ensino de línguas estrangeiras, não permitindo que esse Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] fosse apresentado como Bakhtin’s Dialogue [Diálogo de Bakhtin]. Essa observação torna, portanto, a obra, mesmo publicada em 2005, bastante relevante para as pesquisas no campo do discurso, em especial a Análise Dialógica do Discurso (ADD), por perceber a amplitude dos seus estudos, chegando ao campo do ensino de línguas, bem como para as pesquisas sobre o ensino de línguas (segunda e/ou estrangeira), por ser impactada pela concepção (dialógica) de linguagem do Círculo. É importante a lembrança, entretanto, de que Bakhtin discorre sobre questões de estilística no ensino de língua materna (russo) em um ensaio que, traduzido para o português por Sheila Grillo e Ekaterina Américo, foi publicado pela Editora 34 em 2013. Segundo Beth Brait, em sua apresentação à obra, “Bakhtin também se preocupava com um ensino [ensino da língua russa no ensino médio] que, tratando abstratamente a língua, não lograva de fato ensinar seu comportamento vivo aos alunos” (2013, p.9-10)2.
Dialogue with Bakhtin é organizado por Joan Kelly Hall, da Pennsylvania State University, Gergana Vitanova, da University of Central Florida, and Ludmila Marchenkova, da Ohio State University, ou seja, por três pesquisadoras de diferentes universidades que, em um encontro da American Association of Applied Linguistics [Associação Americana de Linguística Aplicada], em 2002, mostraram interesse em compartilhar os seus estudos sobre a filosofia de linguagem de Bakhtin e as implicações dessa concepção na aprendizagem de línguas. Ao ser publicada em 2005, a obra tornou-se, portanto, a primeira, nos Estados Unidos, a explorar a relevância dos estudos bakhtinianos para as pesquisas e as práticas pedagógicas voltadas à aprendizagem de segunda língua e/ou língua estrangeira.
Com 241 páginas, Dialogue with Bakhtin é dividido em dois blocos, sendo o primeiro o maior: enquanto a primeira parte do livro (p.9-169), intitulada Investigations into Contexts of Language Learning and Teaching [Investigações em contextos de aprendizagem e ensino de língua], é composta de sete capítulos, em que cada um apresenta um estudo de caso específico, a segunda parte (p.170-231), intitulada Implications for Theory and Practice [Implicações para a teoria e prática], traz três capítulos de discussão teórica (Capítulo 9: Language, Culture, and Self: The Bakhtin-Vygotsky Encounter [Língua, cultura e o indivíduo: um encontro entre Bakhtin e Vygotsky], Capítulo 10: Dialogical Imagination of (Inter)cultural Spaces: Rethinking the Semiotic Ecology of Second Language and Literacy Learning [Imaginação de espaços (inter)culturais: repensando a ecologia semiótica da aprendizagem de segunda língua e de letramento] e Capítulo 11: Japanese Business Telephone Conversations as Bakhtinian Speech Genre: Applications for Second Language Acquisition [Conversas de negócios ao telefone no Japão como gênero do discurso bakhtiniano: aplicação na aquisição de segunda língua]. É importante a menção, no entanto, de que o livro abre com um capítulo introdutório, escrito pelas organizadoras. Intitulado Introduction: Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning [Introdução: diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira], o texto se inicia com uma discussão sobre os estudos voltados à aprendizagem de língua e sobre a influência que a visão formalista exerceu sobre essa área do conhecimento. Diante das limitações impostas por essa perspectiva teórica no campo da linguagem (o que inclui o ensino de línguas estrangeiras), as autoras apresentam a contribuição de Bakhtin para a compreensão de um novo conceito de linguagem, que, deixando de ser entendida como um conjunto de sistemas fechados de formas normativas, é apresentada como “constelações dinâmicas de recursos socioculturais que estão fundamentalmente vinculados aos seus contextos sociais e históricos” (p.2)3. Com base nessa concepção de linguagem, apresentam, ainda que rapidamente, os conceitos de enunciado, gênero do discurso e dialogismo, e apontam para duas implicações da assunção dessa perspectiva para o entendimento do processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua e/ou língua estrangeira, ou seja, a compreensão (por professores e alunos) de que (1) a língua é viva e de que (2) a aprendizagem acontece na interação social (e não na cognição individual do aluno).
Por ser uma obra voltada às implicações da teoria dialógica no campo do ensino de segunda língua e língua estrangeira, Hall, Vitanova e Marchenkova compilam sete pesquisas empíricas na primeira parte do livro. Como não há uma explicação sobre a ordenação dos capítulos, faremos a sua breve apresentação segundo a própria distinção entre ensino de segunda língua e de língua estrangeira, reconhecendo que outros critérios poderiam ser adotados, como o nível de escolaridade dos alunos-sujeitos de pesquisa ou os conceitos da ADD utilizados. Quase todas as pesquisas estão relacionadas com o ensino de inglês, quer como segunda língua (English as a Second Language – ESL) quer como língua estrangeira (English as a Foreign Language – EFL). Apenas uma voltou-se ao estudo de suaíle em uma universidade americana, ou seja, ao suaíle como língua estrangeira (Swahili as a Foreign Language – SFL).
Os capítulos relacionados a ESL são os capítulos 2, 3, 4, e 8. O capítulo 2, intitulado Mastering Academic English: International Graduate Students’ Use of Dialogue and Speech Genres to Meet the Writing Demands of Graduate School [O domínio do inglês acadêmico: o uso do diálogo e dos gêneros do discurso por alunos estrangeiros de pós-graduação a fim de suprir as exigências da escrita acadêmica em cursos de pós-graduação], é o resultado de uma pesquisa feita por Karen Braxley da University of Georgia. Concentrando-se, em especial, nos conceitos de dialogismo e gêneros do discurso, ela busca ajudar cinco alunas de pós-graduação a apropriar-se dos gêneros acadêmicos escritos.
No capítulo 3, intitulado Multimodal Representations of Self and Meaning for Second Language Learners in English-dominant Classrooms [Representações multimodais do ser e do significado para aprendizes de segunda língua em salas de aula em Língua Inglesa], Ana Christina DaSilva Iddings da Vanderbilt University, John Haught e Ruth Devlin, ambos da University of Nevada, analisam, apoiados no conceito de dialogismo e na sua relação com o heterodiscurso e a noção de sentido, as relações entre signo, significado e língua estabelecidas por duas alunas estrangeiras, uma da Tailândia e a outra de Cuba, recém-chegadas aos EUA, em uma sala de aula do terceiro ano do ensino fundamental. Escolhemos usar o termo heterodiscurso (em vez de plurilinguismo ou heteroglossia) conforme apresentado por Paulo Bezerra em sua tradução do ensaio de Bakhtin O discurso no romance. Para Bezerra (2015), o termo heterodiscurso “traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua dimensão histórico-antropológica” (p.247)4.
O capítulo 4, Dialogic Investigations: Cultural Artifacts in ESOL Composition Classes [Investigações dialógicas: artefatos culturais em aulas de redação de inglês como segunda língua], apresenta a pesquisa de Jeffery Lee Orr da University of Georgia feita com cinco alunos estrangeiros no primeiro ano de curso universitário. Com base no conceito de dialogismo e na sua relação com significado e ideologia, o pesquisador busca demonstrar a seus alunos a natureza dialógica da língua, contribuindo dessa forma para o seu desenvolvimento ideológico.
No capítulo 8, Authoring the Self in a Non-Native Language: A Dialogical Approach to Agency and Subjectivity [Ter autoria de uma língua não nativa: uma abordagem dialógica aos conceitos de agente e subjetividade], Gergana Vitanova, da University of Central Florida, busca analisar, a partir de conceitos de agência e autoria, como cinco imigrantes do leste europeu nos EUA podem ter autoria dos seus discursos em uma segunda língua e como podem exercer um papel de agente. Essa pesquisa é apresentada de forma completa na obra Authoring the Dialogic Self [Dando autoria ao ser dialógico], publicada em 20105.
Os capítulos relacionados à língua estrangeira são o 5, 6 e 7, sendo o 5 e 6 a EFL (inglês como língua estrangeira) e o 7, a SFL (suaíle como língua estrangeira). No capítulo 5, intitulado Local Creativity in the Face of Global Domination: Insights of Bakhtin for Teaching English for Dialogic Communication [Criatividade local em face da dominação global: insights de Bakhtin no ensino de inglês para a comunicação dialógica], Angel M. Y. Lin, da City University of Hong Kong, e Jasmine C. M. Luk, da Hong Kong Institute of Education, a partir do conceito de dialogismo e da sua relação com o heterodiscurso e a criatividade linguística, investigam como a prática do ensino de língua inglesa reflete e refrata a hegemonização da língua no país e como os professores podem recriar a sua ação pedagógica a fim de auxiliar os alunos a por em diálogo a língua inglesa e os estilos e as variações linguísticas do seu idioma local e a usar a própria criatividade linguística deles. O texto, muito mais reflexivo do que empírico (apesar da amostragem do trabalho feito com 40 alunos do ensino médio em Hong Kong), chama a atenção para os currículos escolares que necessitam promover o acesso dos alunos ao heterodiscurso social, dando-lhes espaço para tornar o inglês “uma língua própria ao povoá-la com seus significados e vozes” (p.95)6, permitindo, dessa forma, “o enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem do inglês como uma língua para a comunicação globalizada e para o questionamento de temas locais e globais que concernem os diferentes papéis e posições das diferentes formas de uso do inglês no mundo” (p.96)7. Esse posicionamento das pesquisadoras, na contramão de posições hegemônicas da língua inglesa e de seu ensino, remete ao conceito de World English [inglês mundial], apresentado por Kanavillil Rajagopalan, em seu artigo The Concept of ‘World English’ and its Implications for ELT [O conceito de inglês mundial e suas implicações no ensino de língua inglesa]8. Para o autor, “falar inglês é simplesmente outra maneira de chamar a atenção ao fato de que ele [o World English] é uma arena onde interesses e ideologias conflitantes estão constantemente em jogo” (p.113)9.
O capítulo 6, ainda no campo de EFL, é intitulado Metalinguistic Awareness in Dialogue: Bakhtinian Considerations [Consciência metalinguística em diálogos: considerações bakhtinianas]. O texto apresenta a pesquisa feita por Hannele Dufva e Riikka Alanen, da University of Jyvaskyla, com 20 crianças entre 7 e 12 anos em uma escola de ensino fundamental na Finlândia. As pesquisadoras, com base nos conceitos de dialogismo de Bakhtin e de mediação de Vygotsky, visam a investigar a consciência metalinguística (na ação) de alunos e a sua relação com a aprendizagem de língua estrangeira.
No último capítulo a ser apresentado, o 7º., intitulado “Uh uh no hapana”: Intersubjectivity, Meaning, and the Self [“Uh uh no hapana”: intersubjetividade, significado e o ser], Elizabeth Platt, da Florida State University, investiga, com base no conceito de dialogismo e da sua relação com intersubjetividade e a noção de sentido, como duas alunas estrangeiras em um curso de pós-graduação produzem sentido a partir do conhecimento limitado que tinham do suaíle (SLE), língua-alvo das aulas, e como construiriam a sua própria identidade de aprendizes dessa língua.
Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é, portanto, não apenas um diálogo com a concepção de linguagem proposta pelo Círculo (de Bakhtin), mas um diálogo entre pesquisas e pesquisadores de diferentes universidades em diferentes partes do mundo que, ao se apropriarem total ou parcialmente do aporte teórico do Círculo ou ao promoverem um encontro de Bakhtin com outros autores, refletem sobre o ensino de segunda língua ou língua estrangeira. A riqueza da obra fica estabelecida pelo fato de ela trazer não uma “aplicação” dos conceitos para a área do ensino de línguas, mas de promover um diálogo entre as duas áreas, permitindo que o ensino seja impactado por essa concepção de linguagem, que vê a interação verbal como a sua realidade fundamental (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.127)10.
Por conseguinte, o conceito de dialogismo, ou de concepção dialógica da linguagem, foi bastante recorrente entre os pesquisadores. No entanto, ao trazerem Volochínov para o centro de suas discussões por meio da obra Marxismo e filosofia da linguagem (2010), apenas Dufva e Alanen, no capítulo 6, na seção Discussion [Discussão], apontam para o fato de o autor russo ter ventilado a questão da aprendizagem/assimilação de língua, que, para ele, só acontece quando os indivíduos “penetram na corrente da comunicação verbal” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.111)11. Entretanto, em nenhum momento, nem Dufva e Alanen, nem os outros pesquisadores apresentam a discussão que Volochínov desenvolve sobre a diferença entre sinal e signo, sendo sinal o conteúdo imutável, abstraído do domínio da ideologia, e a relação desses conceitos com a aprendizagem de línguas. Segundo Volochínov (2010, p.97), quando a assimilação de uma língua estrangeira se encontra no nível da sinalidade (como sinal), do mero reconhecimento, “a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”12. O próprio Volochínov traz uma nota de rodapé em que discorre, de forma abreviada, sobre métodos eficazes de ensino de línguas vivas estrangeiras e assevera que “um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua […], mas na estrutura concreta da enunciação, como um signo flexível e variável” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.98)13. Acreditamos que essa discussão enriqueceria a obra, pois permitiria que seus leitores compreendessem que, apesar de não haver um ensaio específico sobre o ensino de línguas (estrangeiras), o tema não passou despercebido do Círculo, chegando a ser formalmente discutido por Bakhtin (2013)14 e de forma mais abreviada por Volochínov (2010)15.
Por fim, Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é uma grande contribuição para a Linguística Aplicada no que tange ao diálogo feito com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira. Esperamos, portanto, que a obra seja mais divulgada em nosso país, tendo em vista o crescimento do número de pesquisadores da área de ensino de línguas estrangeiras que passam a adotar a perspectiva dialógica da linguagem nas suas práticas pedagógicas, bem como de analistas do discurso que ampliam o seu escopo de pesquisa para discursos voltados ao ensino de línguas.
1É necessário se estabelecer a diferença entre a aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira. Segundo o Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics (2010), apesar de aprendizagem segunda língua ser um termo mais genérico, ao ser contrastado com o de língua estrangeira, passa a ter um sentido mais específico: diferentemente da aprendizagem de língua estrangeira, a aprendizagem de segunda língua acontece em um espaço onde essa língua exerce um papel importante de comunicação, comércio, escolaridade, etc. Como exemplo dessa definição, poderíamos citar as seguintes situações: ao fazermos, como falantes do português brasileiro, um curso de inglês em uma universidade estadunidense, o inglês é estudado (e abordado) como segunda língua. Entretanto, se estudarmos inglês em uma escola de idiomas ou em um curso de Letras-Inglês no Brasil, como o oferecido pela UFRN, o inglês é estudado (e abordado) como língua estrangeira. [RICHARDS, J.; SCHMIDT, R. Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics. 4.ed. Harlow, England: Pearson Education, 2010.]
2BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino de língua. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Américo. São Paulo: Editora 34, 2013.
3No original: “dynamic constellations of sociocultural resources that are fundamentally tied to their social and historical contexts”.
4BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.
5VITANOVA, G. Authoring the Dialogic Self: Gender, Agency and Language Practices. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 2010.
6Texto no original: “a language of their own by populating it with their own meanings and voices”.
7Texto no original: “to enrich the learning of English as a language for globalized communication and for interrogating both local and global cultural issues revolving around the differential roles and statuses of different ways of using English in our world”.
8RAJAGOPALAN, K. The Concept of ‘World English’ and Its Implications for ELT. ELT Journal, vol. 58, n. 2, p.111-117, 2004. Disponível em: [http://eltj.oxfordjournals.org/content/58/2/111.full.pdf+html]. Acesso em: 27 fev. 2016.
9Texto no original: “to speak of English as a world language is simply another way of drawing attention to the fact that it is an arena where conflicting interests and ideologies are constantly at play”.
10BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2010.
11Para referência, ver nota de rodapé 10.
12Para referência, ver nota de rodapé 10.
13Para referência, ver nota de rodapé 10.
14Para referência, ver nota de rodapé 2.
15Para referência, ver nota de rodapé 10.
Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal, RN, Brasil; junori36@uol.com.br
Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective – DUBUCS; BOURDEAU (FU)
DUBUCS, J.; BOURDEAU, M. (Eds.). Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective. Dordrecht: Springer, 2014. (Series: Logic, Epistemology, and the Unity of Science). Resenha de: CARNIELLI1, Walter. Ser computável não é o mesmo que ser construtivo. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.244-246, mai./ago., 2016
This book is a collection of essays focusing on the relationship between computability and constructivity. Taking into account the 80 years that have passed since Alan Turing’s seminal paper of 1936, the papers in the book examine two lines of development: on the one hand, the restrictions, generalizations and other modifications of the original Turing machines, resulting from the pressure that the notion of computability experienced from the explosive demand for applications, but also from encounters with concepts that are in principle stranger to Turing machines, such as Kolmogorov complexity and linear logic. On the other hand, some of the papers examine a more conceptual question, namely the interconnections between computability and constructivity. An especially important topic is whether the notion of computable function has to be taken as primitive, or can be founded on recursion theory.
Chapter 1, “Constructive Recursive Functions, Church’s Thesis, and Brouwers Theory of the Creating Subject: Afterthoughts on a Parisian Joint Session” by Göran Sundholm (p. 1-35) discusses the interdependence between recursive functions and constructivity, a topic that will also be examined in Chapter 6 by another author. It is argued that constructive functions cannot be replaced by recursive functions. Nonconstructive mathematics (apparently) fail to have a computational meaning. But what about the converse? Sundholm asks: “Is every function used in constructive mathematics recursive?” The answer has been negative since Heyting and Skolem: in constructivism, the primitive notion of a function cannot be replaced by that of a general recursive functions. The first part of this chapter explains why. A second topic discussed by Sundholm is the so-called Theory of the Creative Subject, which has already been called “provocative, attractive and dangerous” by A.S. Troelstra in his Principles of Intuitionism (1969).
The Theory of the Creative Subject, controversial even within intuitionism, was proposed by Brower as a method of constructing counterexamples for classical theorems based on the activity of an idealized mathematician. It is well known that this method, in a version formulated by G. Kreisel and J. Myhill, can be reconstructed in a certain kind of Kripke model. By analyzing the controversy regarding the Theory of the Creative Subject, and the related Kripke’s Schema (which basically asserts for each statement A the existence of a sequence that witnesses the validity of A) Sundholm shows, in this dense paper, how Kripke’s Schema can be used as a replacement for the Theory of the Creative Subject, and how this theory can be proved to be classically consistent, despite some of its apparent paradoxical unfoldings.
Chapter 2, “The Developments of the Concept of Machine Computability from 1936 to the 1960s” by Jean Mosconi (p. 37-56) investigates the relation between computation and machines, explaining how Turing’s ideas were gradually adopted and conveniently modified, leading to a close model of contemporary computers. Although Mosconi emphasizes the notion of constructive objects and the general notion of an algorithm on the light of Turing machines, I think that the reader should also take into consideration an illuminating paper by E.G. Daylight (2015), which explains why a certain group of scholars somehow associated with the Association for Computing Machinery (ACM) became interested in Turing’s work and made him, in retrospect, ‘the father of computer science.’ It seems instructive to read this chapter keeping in mind the misleading conception that Turing’s ideas were immediately appreciated by people involved in computing, after his 1936 inception of Turing machines.
Chapter 3, “Kolmogorov Complexity in Perspective Part I: Information Theory and Randomness” by Marie Ferbus-Zanda and Serge Grigorieff (p. 57-94) studies Kolmogorov complexity and the related notion of randomness. Kolmogorov complexity theory, or algorithmic information theory, was independently introduced by R.J. Solomonoff, A.N. Kolmogorov, and G. Chaitin, in parallel with C.E. Shannon’s information theory, but with different motivations. Both theories are intimately connected to computers, as they aim to provide measures of information by using the idea of the bit as a unity. As proposed by Chaitin, the notion of complexity can be used to provide a notion of randomness, via the so-called algorithmic definition of randomness, by relying on the capabilities and limitations of digital computers. This chapter, with a more technical nature, explains the main concepts and proofs related to these topics, also expounding other related notions of complexity, such as L. Levin’s monotone complexity and K.P. Schnorr’s process complexity.
Though not directly emphasized in this chapter, it is worth noting the intimate connection between the famous Gödel’s incompleteness proof and the theory of random numbers, as made clear in several works by Chaitin (the most relevant papers in this respect are cited in the chapter’s bibliography). As far as the most known proofs of Gödel’s incompleteness theorem are based on a version of the paradox of Epimenides, there is a similar proof of randomic incompleteness based on a variant of Berry’s paradox. This relevant result on measuring randomness, together with other results such as P. Martin-Löf’s, showing that randomness is equivalent to incompressibility, points to the possibility of using randomness as a foundation for probability theory, as explained in the chapter.
Chapter 4, “Kolmogorov Complexity in Perspective Part II: Classification, Information Processing and Duality” by Marie Ferbus-Zanda (p. 95-134) is a sequel to the previous chapter, with a more conceptual look at Kolmogorov algorithmic information theory. The chapter proposes to take this theory seriously as a mathematical foundation of information classification, discussing how the notions of compression and information content are related to classification and structure, and more generally to database and information systems. Google’s method of extracting information from the gigantic, unstructured databank represented by the World Wide Web (bottom-up model) and the relational database method based on pure logic (top-down model) to organize data, as proposed by E.F. Codd in 1970, are paradigmatic cases of classification and structure of information studied in this intricate chapter. Such models are the basis for the duality between the two modes of definition of mathematical objects: iterative definitions, and inductive (or recursive) definitions. The chapter makes clear how foundations of mathematics, information theory, and real-world applications are closely connected.
Chapter 5, “Proof-Theoretic Semantics and Feasibility” by Jean Fichot (p. 135-157) deals with foundations of constructibility by examining interpretations of constructive reasoning according to which the meaning of logical constants is determined by the way they are used in a language, or in other words that the meaning of the logical constants can be specified in terms of the introduction rules governing theman idea that amounts to G. Gentzen’s proof-theoretical investigations, complemented with the view that elimination rules are strictly unnecessary and can be obtained as a consequence of introduction definitions. This involves, however, the idealization behind canonical proofs, with dangers to feasibility. By examining the notions of polytime functions (introduced by S. Bellantoni and S. Cook in 1979), and a modification of linear logic, the light affine logic, introduced by A. Asperti in 1998, Fichot outlines a proof-theoretic semantics for feasible logic and for first-order light affine logic, evaluating their consequences.
Chapter 6, “Recursive Functions and Constructive Mathematics” by Thierry Coquand (p. 159-167) again takes up a fundamental question already treated in Chapter 1: is the theory of recursive functions necessary for a rigorous treatment of constructible mathematics? The chapter explains that, from the point of view of constructive mathematics, recursive functions are not needed for the foundations of constructible mathematics, and that mathematics done from an intuitionistic viewpoint does not rely on any notion of algorithm. This is hardly a novelty: in our book, Computability: Computable Functions, Logic, and the Foundations of Mathematics (Epstein and Carnielli, 2008, Chapter 26)2, it is explained in clear terms that recursive analysis is quite different from Brower’s intuitionism, and also how Bishop criticizes Brower’s work as too imprecise and infinitistic, and recursive analysis as too formal and limited. Indeed, it is well known that Bishop takes the notion of constructive function as primitive, refusing to identify it with any formal notion. This chapter, however, enriches its arguments with some brief accounts on the work of Heyting, Skolem, Novikoff, and Lorenzen, besides Bishop.
Chapter 7, “Gödel and Intuitionism” by Mark Atten (p. 169-214) closes the book, discussing how Brouwer’s intuitionism inspired the work of Gödel, with reflections in his famous Dialectica Interpretation. The interest of Gödel for Husserl and Brouwer is comparable to Gödel’s fascination with Leibniz, and can explain Gödel’s belief that the phenomenology of Husserl would prove useful for his program of “developing philosophy as an exact science” and the Dialectica Interpretation as a phenomenological contribution to intuitionism. An appendix to Gödel’s archives shows how he anticipated the concept of autonomous transfinite progressions of theories (the idea of generating a hierarchy of theories via a bootstrapping process, introduced in the literature by G. Kreisel in 1958) while working on his incompleteness proof.
The present book is the result of a meeting under the same name, “Constructivity and Computability in Historical and Philosophical Perspective”, held at the École Normale Supérieure in Paris, in December 2006. As the back cover states, this book contributes to the unity of science by aiming to overcome disagreements and misunderstandings that stand in the way of a unifying view of logic, and I believe it reaches its aims by weaving a deep and detailed account linking the mathematical and philosophical aspects of constructibility and recursivity, showing the limitations of both constructivist and classical mathematics.
Although at some points it is a bit difficult to read, as often happens with collections of texts sewing together pieces with different patterns and styles, this book is highly recommendable for logicians, philosophers, mathematicians, and computer scientists who want to understand how their fields interact.
Notas
1 Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. Barão Geraldo,13083-859, Caixa postal: 6133, Campinas, SP, Brasil. E-mail: walter.carnielli@cle.unicamp.br
2 See also the Brazilian edition, Computabilidade: Funções Computáveis, Lógica e os Fundamentos da Matemática (Carnielli and Epstein, 2009).
Referências
CARNIELLI, W.A.; EPSTEIN, R.L. 2009. Computabilidade: Funções Computáveis, Lógica e os Fundamentos da Matemática. São Paulo, Editora UNESP, 415 p.
DAYLIGHT, E.G. 2015. Towards a Historical Notion of ‘Turing the Father of Computer Science’. History and Philosophy of Logic, 36(3):205-228. https://doi.org/10.1080/01445340.2015.1082050
EPSTEIN, R.L.; CARNIELLI, W.A. 2008. Computability: Computable Functions, Logic, and the Foundations of Mathematics. Socorro, Advanced Reasoning Forum, 370 p.
TROELSTRA, A.S. 1969. Principles of Intuitionism. Berlin, Springer, 111 p. (Lecture Notes, no. 95). https://doi.org/10.1007/BFb0080643
Walter Carnielli – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência. Campinas, SP, Brasil. E-mail: walter.carnielli@cle.unicamp.br
[DR]
Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas – GHINS (FU)
GHINS, M. Uma introdução à metafísica da natureza: Representação, realismo e leis científicas. Curitiba: Editora Universidade Federal do Paraná, 2013. Resenha de: CID2, Rodrigo Reis Lastra. Uma crítica à metafísica conectivista de Ghins. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.2, p.233-243, mai./ago., 2016´.
O livro de Michel Ghins (2013), Uma introdução à metafísica da natureza, é uma interessante tentativa de produção de uma metafísica das ciências. Esse é um projeto relevante, pois, se as nossas teorias científicas têm alguma relação com o mundo, gostaríamos de saber qual é. Uma metafísica das ciências nos diria o que fundamentalmente há no mundo e como isso se relaciona com os objetos teóricos das ciências. Este livro pretende justamente isso a partir de quatro capítulos. No primeiro, o autor introduz o problema da objetividade das nossas teorias científicas, vistas como modelos e leis para explicar fenômenos. No segundo capítulo, explora o debate entre realismo e antirrealismo em filosofia das ciências, defendendo que o mundo pode fazer as nossas teorias aproximadamente verdadeiras. No terceiro, mostra duas das principais concepções em metafísica das leis da natureza, as quais considera inadequadas para fundamentar a regularidade e a contrafactualidade, expondo, posteriormente, sua própria concepção das leis como sustentadas em propriedades disposicionais. Finalmente, no quarto capítulo, apresenta o debate sobre quais são as propriedades fundamentais, as categóricas ou as disposicionais, defendendo um realismo científico moderado com uma metafísica mista, tendo propriedades irredutíveis de ambos os tipos, sendo as leis científicas fundadas nos poderes causais existentes no nosso mundo, o que legitimaria que sejam chamadas de leis da natureza. Embora não tenhamos encontrado problemas em sua concepção de teoria científica, temos algumas críticas à sua adoção de uma metafísica dos poderes.
Ghins começa dizendo que a motivação principal da pesquisa científica é explicar e prever fenômenos. Para isso, os cientistas precisam ter uma atitude objetificante (chamada de “abstração primária”), na qual tomam o objeto do estudo separado de seu contexto holístico e tentam realizar observações independentes de suas subjetividades individuais. Com essa finalidade, eles abstraem algumas propriedades dos fenômenos dignas de interesse (o que se chama de “abstração secundária”) – apreensíveis por outras pessoas nas mesmas condições – e as organizam por meio de relações, formando um sistema. De modo mais específico, um modelo teórico é uma estrutura que satisfaz certas proposições, e ele é construído da seguinte forma, segundo Ghins: (i) estrutura perceptiva – primeiro selecionam-se as propriedades relevantes do fenômeno; (ii) modelo de dados – depois, são feitas medições particulares dessas propriedades com os instrumentos apropriados e esses dados são coletados, sendo os modelos de dados homomórficos à estrutura perceptiva; (iii) (sub)estruturas empíricas (também teóricas) – as informações obtidas nos modelos de dados são generalizadas e relacionadas numa subestrutura teórica de um modelo, de modo a permitir a previsibilidade; (iv) modelo teórico – relaciona as subestruturas empíricas com condições específicas (ceteris paribus); (v) teoria – uma classe de vários modelos que visam a dar conta de todo um domínio abrangente de tipos de objetos. “Por exemplo, a estrutura das medidas dos períodos orbitais pode ser embutida na classe dos modelos de dois corpos da mecânica clássica de partículas” (Ghins, 2013, p.22). Vejamos as Figuras 1 e 2 apresentadas por Ghins.
Para ser científica, além de empiricamente adequada, uma teoria precisa respeitar as condições de universalidade, simplicidade e poder explicativo (Ghins, 2013, p.24). O que será privilegiado depende de critérios pragmáticos, dados os objetivos da teoria, mas ainda assim uma teoria será mais empiricamente adequada quanto mais suas previsões forem precisas em relação às mensurações3. Uma teoria é empiricamente adequada “quando, para qualquer modelo de dados relevante, ela contém subestruturas empíricas homomórficas adequadas” (Ghins, 2013, p.22); é por isso que ela permite a previsibilidade. E ela não é empiricamente adequada “se as predições da teoria não forem conformes às observações nem for possível construir, com base na teoria, uma estrutura empírica homomórfica aos novos resultados” (Ghins, 2013, p.23).
Figura 1. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas. Figure 1. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.23).
Figura 2. Abordagem de Ghins da formação de teorias científicas.
Figure 2. Ghins’ account on the formation of scientific theories. Fonte: Ghins (2013, p.27).
Sobre a universalidade, para Ghins (2013, p.25), quanto mais geral a teoria, mais preferível. Por exemplo,
a mecânica de Newton unifica a mecânica celeste de Kepler e a mecânica terrestre de Galileu […] A teoria unificadora, além de aumentar em muitas vezes a exatidão das predições, permite também predizer novas observações e, com isso, aumentar o poder preditivo, ou seja, em última instância, construir teorias empiricamente adequadas a um maior número de observações.
Com relação à simplicidade, ao poder explicativo e sua relação, eles geralmente são pensados como opostos, pois, quanto mais poder explicativo uma teoria possui, mais complexa ela se torna; no entanto, a complexidade dificulta o trabalho teórico, de modo que mais simplicidade seria preferível. Todavia, simplicidade demais – como uma teoria que apenas descreve os fatos do mundo – é inadequado, pois nada seria explicado.
Mesmo tendo a relação entre simplicidade e poder explicativo em vista, esta última noção não é facilmente caracterizável, dadas as distinções nas concepções sobre o que é uma teoria. “Hempel e Oppenheim identificam justamente o poder explicativo de uma teoria à sua capacidade de efetuar predições a partir de leis gerais” (Ghins, 2013, p.25); contudo, eles possuem uma concepção sintática de teoria, isto é, pensam uma teoria como um conjunto de proposições, dentre as quais contam as leis como proposições mais gerais. Há também uma outra visão, chamada de “concepção semântica” das teorias, que subestima o papel das leis e toma as teorias como classes de modelos. A alternativa desenvolvida por Ghins, chamada por ele de “teoria sintética”, é híbrida, no sentido de que uma teoria científica é vista como “um conjunto de modelos e de proposições satisfeitas (tornadas verdadeiras) por esses modelos” (Ghins, 2013, p.26)4. Em sua abordagem, uma teoria só é explicativa quando descreve mecanismos causais. Mas o que é um mecanismo causal?
Para Galileu e Descartes, um mecanismo é um conjunto de partes dotadas de formas geométricas cujas posições e velocidades estão relacionadas entre si. […] Para a ciência matematizada, um mecanismo nada mais é que um conjunto de grandezas – posições, velocidades, acelerações, formas geométricas, massas etc. – que mantêm entre si relações matemáticas. […] De modo bastante amplo, um mecanismo é um modelo, uma estrutura de elementos quantificáveis organizados por relações matemáticas, isto é, leis – e, agora acrescento, leis causais (Ghins, 2013, p.30).
O que são leis causais e o que são leis não causais? Um dos exemplos de lei trabalhado no livro de Ghins é a lei geral dos gases (PV=KT), fundamentada na teoria cinética dos gases. Ela é considerada uma lei de coexistência, por não ser temporal; portanto, ela não seria uma lei causal. Segundo Ghins, uma lei causal deve ser uma equação diferencial com uma derivada em relação ao tempo, já que
um mecanismo explicativo no sentido geral é um sistema cujo domínio, isto é, o conjunto das grandezas que são seus elementos, satisfaz leis de natureza causal. […] [Um] mecanismo não é mais que um sistema de propriedades quantificadas que tornam verdadeiras as leis causais, as quais descrevem a evolução dos valores daquelas propriedades ao longo do tempo. (Ghins, 2013, p.31).
Mesmo assim, a teoria cinética dos gases é explicativa, porque, ainda que a lei dos gases ideais não seja causal e, consequentemente, não descreva mecanismo algum, a teoria cinética explica como a variação nômica indicada na fórmula ocorre, a saber:
[…] a pressão resulta dos choques das moléculas com a parede do recipiente e a temperatura é proporcional à energia cinética média das moléculas do gás. […] A explicação da lei dos gases perfeitos repousa sobre leis5 fundamentais e causais que descrevem o comportamento de corpos considerados como pontos massivos sem extensão (Ghins, 2013, p.28).Segundo Ghins, “a lei de Boyle-Mariotte não descreve um processo causal. Ela descreve uma situação num estado de equilíbrio. Para obter uma explicação, é necessário se referir às leis causais que descrevem os processos microscópicos” (2013, p.44). Por outro lado, as leis da teoria cinética de Maxwell-Boltzman, sobre a qual a explicação da lei de Boyle-Mariotte se apoia, são leis causais, já que são proposições que descrevem processos causais possíveis. As leis dessa teoria cinética são leis causais, porque as leis da mecânica são temporais, porque elas permitem explicar as variações temporais de propriedades determinadas ao longo de um processo ao reportá-las a causas definidas e porque “essas leis possuem termos que assumem a forma de derivadas temporais e que propomos identificar a efeitos. As variações de velocidade – as acelerações – são efeitos cujas causas são as forças pelas quais são produzidas as acelerações” (Ghins, 2013, p.43).
Mas em que medida pode-se aceitar que os modelos de nossas teorias representam corretamente a realidade? Em que medida pode-se acreditar que as leis científicas são verdadeiras? Essas são tanto questões ontológicas sobre a realidade dos objetos teóricos quanto questões epistemológicas sobre os limites do conhecimento científico. Construímos estruturas teóricas para dar conta de fenômenos, que, na realidade, são holisticamente apreendidos, e não isoladamente como o objeto científico. A dúvida, tal como expôs Bas van Fraassen, segundo Ghins, é “como uma entidade abstrata, como uma estrutura matemática, pode representar uma coisa que não é abstrata, uma coisa na natureza?” (2013, p.34). Essa objeção é conhecida pelo nome de “objeção da perda da realidade”.
A resposta de Ghins é dizer que ela se funda na ideia equivocada de que o cientista representa a realidade em seu modelo de dados e, consequentemente, nas subestruturas teóricas, nos modelos e nas teorias. “Quando um cientista afirma que o volume de um gás é igual a 1 dm3, ele pretende afirmar uma verdade a respeito de certas entidades fenomênicas. Asserções desse tipo não são representações” (Ghins, 2013, p. 35), mas são antes tentativas de descrição de certos aspectos da realidade. Para haver qualquer representação possível de uma entidade, tem de haver uma descrição anterior de suas propriedades. Tomar essas descrições de propriedades como se fossem representações implica criar uma distinção difícil de ser sustentada entre a contemplação do fenômeno do ponto de vista de lugar nenhum e as próprias construções representacionais. Toda contemplação de fenômeno é a partir de um ponto de vista, por mais que o ponto de vista seja intersubjetivo. As estruturas perceptivas, embora abstraídas dos objetos, não são estruturas abstratas, mas antes concretas, já que são apreendidas de situações particulares. Por exemplo, observamos uma bola de bilhar e vemos que ela tem a propriedade volume; não estamos representando a propriedade presente na bola como volume, mas estamos abstraindo uma propriedade da bola, a qual chamamos de “volume”, e depois medindo sua quantidade de acordo com uma medida convencionada. O que promove a objetividade, nessa concepção, é o acordo intersubjetivo com relação às estruturas perceptivas e aos modelos de dados (Ghins, 2013, p.38). E a posição metafísica defendida sobre a verdade, em Ghins, é a correspondentista (uma proposição é feita verdadeira – ou aproximadamente verdadeira – por algo do mundo), ainda que se assuma que nenhuma teoria da verdade como correspondência atualmente é satisfatória.
Poder-se-ia contra-argumentar a Ghins dizendo que não são apenas as propriedades abstraídas que têm de ser remetidas ao mundo, mas também as operações matemáticas. Sabemos que “volume” diz respeito a uma certa propriedade observável de um objeto, mas ao que diz respeito o termo “+”? Certamente, não significa “juntar”, pois podemos somar sem juntar coisas. Pode significar “reunir num conjunto”; mas conjunto é também um objeto matemático, que ainda não está se relacionando com a realidade. A objeção da perda da realidade, quando entra no domínio dos operadores matemáticos, leva a difíceis problemas… Não temos uma solução satisfatória para eles, mas cremos que Ghins também não. Talvez ninguém tenha. Se for o caso que ninguém tenha, então a melhor solução é deixarmos o nosso juízo em suspenso enquanto não obtivermos uma resposta satisfatória e continuarmos utilizando as operações matemáticas até lá.
Uma outra objeção que poderia ser feita, expressa pelo próprio Ghins, é que, embora não haja representação na estrutura perceptiva, nem no modelo de dados, nem na subestrutura teórica, existe representação quando começamos a criar modelos teóricos e teorias nas quais falamos sobre entidades inobserváveis.
No caso dos gases, é fácil verificar, por observações imediatas, que aquilo que está contido dentro de um recipiente tem de fato um volume, uma pressão e também o que podemos chamar de grau de calor. […] Por outro lado, a identificação de um gás com um conjunto de partículas que se movem e são dotadas das propriedades de possuir uma massa e de mover-se a certa velocidade é muito mais problemática. […] As partículas constitutivas de um gás não são visíveis e suas velocidades médias não são nem observáveis nem individualmente mensuráveis (Ghins, 2013, p.40-41).
Veja que a objeção aqui não é contra as observações imediatas, mas antes contra a explicação com inobserváveis que a teoria fornece para o fenômeno.
A resposta do autor é que, na medida em que a teoria tem adequação empírica, além das condições já descritas, isso é um forte indício, embora não uma razão suficiente, em favor de sua interpretação realista moderada, na qual as leis científicas podem ser aproximadamente verdadeiras. E não é razão suficiente por causa de uma objeção conhecida pelo nome de “argumento da subdeterminação da teoria” pelas estruturas perceptivas e pelos modelos de dados: “[…] visto que, em princípio, é sempre possível construir várias teorias incompatíveis entre si, mas que salvam as estruturas perceptivas relevantes, não temos nenhuma razão para acreditar na verdade, ao menos aproximada, de apenas uma dentre elas” (Ghins, 2013, p.41).
A resposta de Ghins (2013, p.41) é dizer que não basta indicar que pode haver teorias alternativas, mas deve-se fornecer alguma ou mostrar que uma já está sendo construída. Ele aceita que as teorias são realmente subdeterminadas pelos dados e, por isso, acaba aceitando que apenas a adequação empírica não garante a verdade de uma teoria. Ainda que se coloque a capacidade explicativa na história, haverá as dificuldades de dizer o que é uma boa explicação e como o fato de algo ser uma boa explicação, que é algo patentemente epistêmico, se relaciona com a verdade, que é algo metafísico. Pode-se dizer que uma teoria explicativa nos abre um acesso cognitivo a certas realidades externas e inobserváveis. E isso pode ser feito, sem muita dificuldade, segundo Ghins, ao aceitarmos a verdade das leis causais e uma noção de explicação baseada em mecanismos descritos por leis causais. O que Ghins defende é que (2013, p.45)
Nossas crenças na existência de objetos inobserváveis, tais como as moléculas, as partículas elementares, o campo gravitacional, os vírus, os genes, as placas tectônicas etc., encontram sua justificação a partir de considerações análogas àquelas que justificam nossas crenças na existência de entidades observáveis […] Da mesma forma, nossa crença na existência dos elétrons é justificada pela possibilidade de medir suas diversas propriedades de carga, spin e massa por meio de métodos independentes que proporcionam resultados precisos e convergentes.
A possibilidade do erro existe nessa concepção, e ela é remetida à própria possibilidade do erro no que diz respeito a entidades observáveis pelos nossos sentidos. Porém nós conseguimos diminuí-la ao repetirmos as observações, utilizando também outros sentidos além da visão e verificando se nossas observações são concordantes – o que, no caso do objeto científico, pode ser pensado como os instrumentos de mensuração. Por exemplo, no caso das moléculas (Ghins, 2013, p.44),
temos que dispor de métodos de mensuração que permitam determinar o valor da velocidade média, da massa e do número de moléculas. Além disso, é preciso que esses processos de medida da velocidade média e do número de moléculas sejam independentes dos métodos de mensuração da temperatura e da pressão.
Isso já ocorre, dado que podemos medir o mol de um gás por métodos independentes que fornecem resultados que convergem com um alto grau de precisão.
Outro argumento avaliado pelo autor é o conhecido “argumento do milagre” (ou no-miracle argument). Este nos diz que o realismo é a melhor explicação do sucesso empírico (previsões de mensurações bem-sucedidas) de nossas teorias, pois, se nossas teorias não são ao menos aproximadamente verdadeiras, então seu sucesso empírico é um milagre. Assim, ou aceitamos que as propriedades inobserváveis postuladas por uma teoria bem-sucedida seriam de entidades reais cuja existência é independente de nossos desejos, de nossas medidas e da nossa linguagem, ou aceitamos o sucesso, por milagre, da teoria.
Segundo Ghins, pode-se objetar a esse argumento que ele não é um argumento decisivo a favor do realismo e tem um caráter científico contestável, já que não tem a forma da explicação científica, baseada em leis causais, para dar conta da relação entre a verdade e o sucesso empírico. A solução de Ghins (2013, p.47) é dizer que a concordância entre as mensurações é mais exigente que o sucesso empírico, de modo que pode fundamentar melhor a verdade – ao menos a verdade aproximada – de uma teoria. Além disso, ele não pretende “explicar – e, certamente, não de modo científico – a concordância entre as mensurações de uma propriedade pela existência de uma entidade que a possui” (p. 47). O objetivo de Ghins, com o argumento do milagre, não é contrastar uma pseudoexplicação milagrosa com uma explicação de fato, mas fazer uma analogia entre razões para crer na existência de, por exemplo, um abacaxi, com diversas propriedades observáveis, e de um objeto, como um elétron, que só tem propriedades inobserváveis.
É possível, no entanto, objetar ainda que, na medida em que não conhecemos o mecanismo causal operante nos nossos instrumentos de mensuração, não podemos conhecer os mecanismos causais que viemos a conhecer a partir dos instrumentos de mensuração. Entretanto, isso não leva em consideração que, na experiência sensível ordinária, os mecanismos causais dos nossos sentidos (nossos instrumentos sensíveis de medição) não nos são totalmente conhecidos. Na experiência científica, diz-nos Ghins, os mecanismos causais dos instrumentos científicos de medição são bem conhecidos e descritos por meio de leis causais fundamentais. Ainda que isso não seja bem o caso e que não conheçamos perfeitamente o mecanismo causal dos nossos instrumentos de medida, conhecê-lo perfeitamente não é necessário para coletarmos dados com precisão; por exemplo, Galileu conseguiu dados precisos sobre os corpos celestes, mesmo sem conhecer as leis óticas envolvidas no telescópio.
O objetivo de Ghins até aqui é defender uma versão moderada – dado permitir a falsificação de teorias – de realismo cientifico, a qual ele pensa dar conta das objeções da perda da realidade e da subdeterminação da teoria, “argumentando [sobre entidades observáveis] que o êxito de nossas construções representacionais sustenta-se na verdade de proposições predicativas acerca dessas entidades” (2013, p.49-50). E sobre as entidades inobserváveis, Ghins crê que a razão pela qual as teorias têm poder explicativo permite-lhe falar verdadeiramente (aproximadamente) sobre elas. No entanto, o poder explicativo é uma exigência epistêmica, que o mundo não precisa cumprir, de modo que aquele não forneceria razões suficientes para crermos nas entidades inobserváveis das teorias. Por isso, Ghins critica o argumento do milagre como uma razão para crermos nas entidades inobserváveis postuladas pelas teorias. Embora esse argumento favoreça sua analogia entre razões para crer na existência de entidades observáveis e de não observáveis, ele não é aceito como conclusivo pelo autor. Sua razão principal a favor do realismo dessas entidades teóricas é que “estabelecemos nossas crenças na existência de entidades observáveis por observações repetidas e variadas, [e] defendemos a existência de entidades inobserváveis por meio de métodos de mensuração que sejam diversos e que proporcionem resultados concordantes” (Ghins, 2013, p.50). Seja qual for o caso, Ghins nos diz que, para crer na existência de certas entidades, seja um abacaxi ou um elétron, realizamos observações rigorosas e concordantes. Em nossas teorias científicas, segundo Ghins, expressamos, além de certas propriedades de certas entidades, também leis gerais que são satisfeitas pelos modelos teóricos de nossas teorias. Mas há uma grande divergência filosófica sobre a existência dessas leis científicas como leis da natureza. Por exemplo, segundo Ghins, Bas van Fraassen e Ronald Giere, seguidores da abordagem semântica das teorias científicas, defendem que o conceito de lei, além de ser problemático, é simplesmente inútil para compreender a natureza das teorias e da prática científica, que se utilizaria apenas de modelos. Outros filósofos, como Hempel e Oppenheim, defendem uma concepção sintática, na qual uma teoria é apenas um conjunto de proposições, das quais algumas são leis. Ghins discorda de ambos, por pensar que eles empobrecem as teorias científicas, já que não as representam adequadamente; por isso, ele constrói uma teoria híbrida, chamada por ele de “teoria sintética”, que aceita que as teorias são constituídas de modelos (teoria semântica) com leis (teoria sintática) satisfatíveis por tais modelos.
Mas o que seriam, na realidade, essas leis? Para responder essa pergunta, o caminho de Ghins é o seguinte: (i) avaliar a teoria regularista das leis; (ii) avaliar o necessitarismo contingencialista das leis; (iii) defender sua teoria necessitarista das leis metafisicamente necessárias como (Ghins, 2013, p.51, sic.)
proposições universais pertencentes a teorias empiricamente adequadas e explicativas, [e (…)] consideradas como sendo aproximada e parcialmente verdadeiras a propósito de sistemas reais. Uma teoria científica é composta de um conjunto de modelos e de proposições [d]entre as quais algumas alcançam o estatuto de leis.
Uma lei científica poderia ser considerada também uma lei da natureza, “se for possível elaborar argumentos em favor da existência de entidades metafísicas, tais como, por exemplo, disposições naturais ou poderes causais, que a tornassem aproximadamente verdadeira” (Ghins, 2013, p.52), e Ghins tenta fazer isso, mostrando que a regularidade e a contrafactualidade das leis se fundamentam nas propriedades disposicionais.
O regularismo (pelo menos na sua forma ingênua) toma as leis como proposições condicionais materiais, quantificadas universalmente, que são feitas verdadeiras pelos estados de coisas particulares, ou seja, toma-as como regularidades. Nessa concepção, as leis são verdadeiras, porém não necessárias. O primeiro problema que surge para o regularista é o chamado “problema da identificação”, que é a conjunção de dois problemas, a saber, (i) o problema (epistêmico) de saber como distinguir leis de regularidades meramente acidentais e (ii) o problema (ontológico) de indicar qual é o fato acerca do mundo que confere a uma regularidade seu estatuto nomológico. Por exemplo, seria dizer o que faz ser uma lei a regularidade de que toda pedra de urânio tem menos de 1 km3 e que não está presente na regularidade de que toda pedra de ouro tem menos de 1 km3 (já que consideramos este último como um mero fato contingente), e dizer quais critérios utilizaremos para distinguir um tipo de generalização de outro.
O regularismo sofisticado de Mill-Ramsey-Lewis, para responder 1, o problema epistêmico, diz-nos que uma lei é uma proposição universal que figura “como teorema (ou axioma) em todos os sistemas dedutivos verdadeiros que combinam simplicidade e força da melhor maneira” (Ghins, 2013, p. 54). Como simplicidade e força explicativa são opostos, seria adequado que mantivéssemos a melhor combinação entre eles. E ser um teorema ou axioma faz as leis serem algo mais que meras regularidades, a saber, elas são regularidades que estão presentes em todos os sistemas dedutivos verdadeiros equilibrados. Leis vácuas, como a lei newtoniana, que não são satisfeitas por nenhum sistema real, seriam leis na medida em que contribuem para maior simplicidade da totalidade da construção axiomática. Essa resposta certamente alivia um pouco o problema da identificação para o regularista, ao menos em sua parte epistêmica; porém, com relação à parte ontológica, “Lewis permanece silencioso sobre o que, na realidade do mundo, torna um sistema axiomático mais satisfatório que outro segundo seu critério de ‘melhor equilíbrio de simplicidade e força’” (Ghins, 2013, p.55). Outros problemas dessa forma de regularismo são que: (a) poucas teorias são axiomatizadas no sentido de Lewis e algumas não são nem axiomatizáveis, (b) o equilíbrio entre os critérios de simplicidade e força não foi precisado adequadamente, (c) e esses critérios são subjetivos, já que são epistêmicos e que não há necessidade alguma de a realidade os respeitar.
O neorregularismo de Psillos (2002, p.154 in Ghins, 2013, p.57), por sua vez, “defende uma posição realista segundo a qual a simplicidade de um sistema axiomático reflete a simplicidade objetiva da organização das regularidades fatuais”. Isso salva o regularismo do problema ontológico, mas, supostamente, segundo Ghins, o deixa à mercê do problema epistêmico, pois, ainda que identifique as leis com um tipo de regularidade e atribua simplicidade e uma estrutura nomológica para o próprio mundo, a contrapartida objetiva da lei não é acessível à observação direta, tal como desejaria que fosse o espírito empirista do regularista, e, consequentemente, não seria possível para o regularista distinguir as leis das regularidades que não são leis.
Não sabemos se esse argumento é bom, pois, se já aceitamos que o regularista pode distinguir leis de acidentes pelo fato de as leis possuírem uma posição especial nos melhores sistemas dedutivos, então o fato de ele atribuir a simplicidade desses sistemas dedutivos à existência de simplicidade no mundo não o impede de manter a distinção que resolveria o problema epistêmico. Ele não precisa de uma contraparte empiricamente acessível da lei; precisa somente de uma distinção, que, a princípio, poderia ser mantida, ao manter-se o espírito lewisiano, pela distinção de a lei ser um teorema ou axioma dentro de todos os melhores sistemas dedutivos para os fatos do mundo.
Um outro problema sério e persistente para qualquer forma de regularismo – na verdade, para qualquer forma de contingencialismo com relação às leis – é o problema da contrafactualidade. Se as leis do regularista são contingentes, elas não podem garantir a verdade de condicionais contrafactuais – condicionais cujo valor de verdade do antecedente é o falso. Tais condicionais são considerados trivialmente verdadeiros segundo a lógica de predicados de primeira ordem, se vistos como condicionais materiais comuns, já que um condicional material só é falso no caso de a antecedente ser verdadeira e a consequente ser falsa, e verdadeira em qualquer outra situação. Mas, na literatura filosófica, há muito trabalho sobre as condições de verdade dos contrafactuais que não os trivializariam. O fato de as leis regularistas não garantirem a verdade não trivial dos contrafactuais as deixa mais afastadas das leis científicas, já que estas garantiriam a contrafactualidade, diz-nos Ghins.
No entanto, pensamos nós, há uma objeção realizável por Lewis (1973), que tem uma teoria na qual ele tenta dar condições de verdade para os contrafactuais em termos de o que é o caso no mundo possível mais próximo. Um dos critérios para a proximidade entre os mundos é a semelhança de leis. Assim, no regularismo lewisiano, um contrafactual tal como “se Fa fosse o caso, Ga teria sido o caso” seria verdadeiro, se no mundo possível mais próximo Fa e Ga são o caso. Esse mundo possível é aquele com as mesmas leis que o nosso, mas com a antecedente do contrafactual sendo verdadeira. Uma objeção ao pensamento de Lewis é que seu contrafactual seria verdadeiro em muito menos situações do que as que esperaríamos. Um contrafactual cuja verdade surge a partir da verdade em todos os mundos possíveis relevantes, em vez de apenas no mais próximo, garante essa abrangência da verdade contrafactual, que não está presente na garantia da verdade contrafactual de Lewis. A abrangência científica da verdade dos contrafactuais chega a casos em que até algumas das leis não se mantêm (i.e., no caso de alguns contrafactuais contralegais), enquanto o mesmo não podemos dizer da teoria de Lewis.
O necessitarismo de Dretske-Armstrong-Tooley também não escapa das críticas do autor. Aquele nos diz que uma lei da natureza é uma relação universal contingente de necessitação entre universais imanentes, que garante (mais que a total contingência) a verdade no mundo atual, mas não em todos os mundos possíveis. E a relação de necessidade que opera ao nível dos universais implica também uma relação de necessidade ao nível dos indivíduos particulares que os exemplificam: N(F,G) → (x) N(Fx,Gx). Mas, a partir dessa definição, temos um problema, conhecido pelo nome de “problema da inferência”, de explicar a conexão entre a necessidade armstronguiana (necessitação) no nível dos universais e a do nível dos particulares6. A resposta de Armstrong é que a relação causal do domínio dos particulares e a necessitação são uma e a mesma relação, dado que os universais estão presentes nos particulares – o que tornaria a inferência acima, em algum sentido, analítica. Diferentemente do regularismo, o necessitarismo de Armstrong permitiria que a necessitação fosse observável, já que ele diz que observamos a necessitação, isto é, a causalidade, quando, por exemplo, sentimos o peso do nosso corpo. Um governista ante rem (teórico das leis como relações universais entre propriedades universais transcendentes), pensamos nós, também poderia dar conta desse problema ao dizer que a causalidade singular é instância da necessitação e que observamos, indiretamente, a necessitação por meio da observação da causalidade singular, tal como observamos, indiretamente, o azul universal ao observarmos uma instância sua em algo particular. De todo modo, observar os poderes das coisas também não é algo tão incontroverso assim.
Além de tomar essa observabilidade como bastante controversa, Ghins julga que há um problema não resolvido por necessitaristas (problema esse também para regularistas), a saber, distinguir propriedades naturais de não naturais. O problema é que, se não houver distinção e as propriedades de Goodman (propriedades como verzul) forem avaliadas pelos cientistas, teremos leis mutáveis no nosso sentido, embora imutáveis no de Goodman.7 Outros problemas, ainda, para o necessitarismo de Armstrong é que ele não dá conta de leis probabilísticas adequadamente – segundo Ghins, van Fraassen, em Laws and symmetries (1989, p.109-116), mostrou que a solução armstronguiana não era adequada – e nem de leis não causais (como as leis de conservação), além de não mostrar que a necessitação e a causalidade singular são a mesma relação.
Pensamos que é possível, tanto para teorias aristotélicas como a de Armstrong quanto para as teorias platônicas como a de Tooley, dar conta de leis de conservação como deriváveis de outras leis; por exemplo, se toda lei diz como uma forma de energia se transforma em outra, mas não há leis que determinem como a energia se extingue ou aumenta, então, por lógica apenas, chegamos à conclusão de que a quantidade total de energia deve ser sempre a mesma. Há proposições necessárias (se as leis forem necessárias) implicadas por leis que não são elas próprias leis, pois não são relações de necessitação entre universais. As leis probabilísticas, no entanto, são problemáticas; mas acreditamos que são problemáticas para qualquer teórico que seja: regularista, conectivista (metafísico dos poderes), governista in rebus (leis como universais imanentes) ou governista ante rem (leis como universais transcendentes).
Dados os problemas que Ghins (2013, p.64) aponta nessas concepções, sua proposta é
identificar epistemicamente as leis científicas como sendo proposições de forma lógica universal e (aproximadamente) verdadeiras, empregadas para construir teorias científicas explicativas empiricamente bem sucedidas. […] Segundo essa proposta, proposições universais podem ser chamadas de leis somente no contexto de uma teoria, como na concepção de Mill-Ramsey-Lewis. […] [Sua ideia é que] não se resolve o problema da identificação determinando o fundamento da necessidade das leis, mas estabelecendo sua verdade no contexto de uma teoria científica.
Assim, uma proposição é uma lei científica se ela fizer parte, como um teorema ou axioma, de uma teoria científica, interpretada realisticamente, que contém, entre outras coisas, proposições gerais com o status de lei. E essas leis científicas seriam leis da natureza na medida em que a verdade aproximativa das leis científicas é sustentada em poderes universais realmente existentes, que se expressam nas disposições essenciais das entidades naturais. Acreditamos que a proposta de identificar a lei científica com um teorema/axioma de alguma teoria científica é interessante, pois captura nossas intuições sobre a lei científica, mas identificar as leis científicas com poderes, e não com leis da natureza, essa proposta já é um tanto debatível.
A ideia de uma metafísica dos poderes é justamente apresentar qual é o fundamento modal que as leis científicas teriam, já que, a princípio, se elas são proposições descritivas, não podem logicamente implicar proposições que contenham modalidades, como os contrafactuais. Portanto, se há algo que conecta leis e proposições contrafactuais, temos de saber o que é. E, além disso, temos de explicar a existência de regularidades na natureza. As teorias anteriormente apresentadas têm problemas com a contrafactualidade, por causa da contingência; o regularismo, mais especificamente, têm problemas também com explicar a existência de regularidades na natureza, pois, se o que torna as leis verdadeiras são meras regularidades, aquelas apenas descrevem estas e não explicam por que estas acontecem; e o necessitarismo de Armstrong, embora dê conta da explicação da regularidade, tem os problemas indicados anteriormente, acredita Ghins. Se tivermos conseguido fugir dos problemas que afetam também a concepção conectivista de Ghins, então a posição governista seria, pelo menos, equivalente, em poder explicativo, àquela.8
A concepção de Ghins é de que o que torna verdadeira a proposição ‘p é uma lei,’ fundamentando assim a força modal de p, é a existência de poderes causais irredutíveis e essenciais às entidades que os têm (constituem necessariamente suas identidades). Mas o que é ter um poder causal, isto é, uma propriedade disposicional? Diz-nos Ghins (2013, p.69-70):
Uma entidade x possui a disposição D de manifestar a propriedade M em resposta ao estímulo T nas circunstâncias A, se e somente se, na eventualidade da entidade x ser submetida a T no ambiente A, x necessariamente manifestar M. Formalmente, temos (Bird, 2007, p.36-37):
D A,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx (a)
Esse último enunciado pode ser considerado uma definição da propriedade disposicional D A,T,M . Então, é analiticamente verdadeiro e necessário que □DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx (b)
Por exemplo, os copos de certos tipos de vidro têm a capacidade de se quebrar em certos tipos de circunstâncias (como quando sofrem certa quantidade de impacto e estão ausentes circunstâncias que agiriam como “antídotos” do processo causal). É em virtude dessa capacidade, poder ou propriedade disposicional que é necessário que o copo se quebre quando submetido a uma tal circunstância. E a relação entre essas disposições e a identidade de certos objetos é necessária; elas fazem parte da essência de tais objetos. Assim, seria parte da essência dos corpos frágeis que eles tenham uma disposição para se quebrar em certas circunstâncias. Se algo não tem esse poder de se quebrar, simplesmente não é um corpo frágil.
Um primeiro problema que vemos nessa concepção é a imaterialidade de um poder. Um copo de vidro tem o poder de se quebrar. Onde está esse poder? Você pega o vidro, leva para o microscópio e tudo que você vê são moléculas, uma junto à outra. Não vê poder algum de se quebrar; na verdade, não vê poder algum. Se há poderes nas coisas, eles são imateriais, estão presentes de algum modo estranho nas coisas. O teórico dos poderes tem de explicar como as coisas têm poderes. O teórico das leis, se for também categoricalista, dirá que a capacidade dos objetos advém de suas propriedades categóricas estarem submetidas a leis da natureza, e não que há capacidades ocultas em cada um dos objetos. É contra-argumentável que a imaterialidade das leis também atesta contra elas. Duas respostas são possíveis. Se defendemos o substantivismo armstronguiano, as leis podem ser cridas como materiais, pelo fato de os universais estarem presentes nas coisas particulares, e, se defendemos o substantivismo ante rem, ao estilo de Tooley (1977), podemos dizer que a imaterialidade das leis é menos problemática que a imaterialidade dos poderes, pois os poderes se movem junto com seus hospedeiros, enquanto as leis não se movem, e o movimento de algo imaterial é algo que, patentemente, precisa de explicação.
Uma objeção que consideramos ainda mais poderosa contra o teórico dos poderes é que ele não consegue descrever algo que um teórico categoricalista conseguiria, como, por exemplo, o resultado do contato de duas partículas como um resultado do contato das capacidades ou potencialidades ou poderes dessas partículas. Veja a seguir (Cid, 2011, p.40).
O conectivista poderia tentar dizer que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo Y9 e que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F quando interagem com as partículas do tipo X, e que não há nada mais para a lei de que XY manifesta F do que esses poderes de X e de Y. O problema de dizer tal coisa é que a manifestação de F estaria sobredeterminada, já que ambas as partículas fariam F ser manifestado. Uma forma de tentar solucionar tal problema é dizendo que as partículas do tipo X têm o poder de manifestar F1 quando interagem com as partículas do tipo Y, que as partículas do tipo Y têm o poder de manifestar F2 quando interagem com as partículas do tipo X, e que (F1˄F2)→F. Poderíamos objetar a essa resposta dizendo que teríamos que explicar, então, como (F1˄F2)→F; e o conectivista não é capaz de explicar isso sem cair novamente no problema da sobredeterminação ou num regresso ao infinito. Pois se (F1˄F2)→F, então: (i) ou F1 está disposto a manifestar F quando estimulado por F2, e F2 está disposto a manifestar F quando estimulado por F1, (ii) ou F1 está disposto a manifestar F3 quando estimulado por F2, F2 está disposto a manifestar F4 quando estimulado por F1, e (F3˄F4)→F. O caso (i) faria F estar sobredeterminado. E com relação ao caso (ii), o problema seria ter que explicar a implicação de F3˄F4 para F, que só seria possível criando um caso como (i), que sobredeterminaria F, ou criando um outro caso como (ii) ad infinitum.
Ainda uma objeção, esta apontada por Ghins, contra uma teoria das disposições é chamada de “objeção da virtude dormitiva”: explicar a capacidade do vidro de se quebrar recorrendo a uma disposição para se quebrar (fragilidade) não nos explica nada sobre a capacidade de se quebrar; é apenas nomear a capacidade que já sabíamos que lá estava. A resposta de Ghins é dizer que, embora atribuir uma disposição não explique o fenômeno, ela nos fornece uma informação importante, de modo que permite que, por exemplo, nos previnamos da manifestação da disposição (protegendo o copo, talvez), além de constituir um convite a buscar o processo físico, químico, psicológico, etc. subjacente à manifestação das disposições. Com essa atribuição de propriedade disposicional, “acrescentamos um elemento suplementar, a saber, que a base desse comportamento regular é uma propriedade disposicional enraizada numa entidade. Ao afirmar tal coisa, operamos uma transição do nível puramente descritivo para o nível modal” (Ghins, 2013, p.73, grifo meu). Como pensamos ter mostrado, um teórico categoricalista, que não aceita a existência de disposições, descreveria a atribuição de propriedade disposicional de uma outra forma, com propriedades categóricas e leis (embora, em seu discurso superficial, possa achar conveniente apenas falar como se houvesse disposições, mas mantendo, em seu discurso profundo, que não há).
Contudo, Ghins sabe o quão debatível é falar de propriedades disposicionais irredutíveis e ele acaba adentrando na discussão sobre se, fundamentalmente, o que há na realidade são propriedades disposicionais irredutíveis ou se são propriedades categóricas irredutíveis. As propriedades categóricas seriam as propriedades primárias das coisas sobre as quais estariam fundamentadas todas as outras propriedades. Por exemplo, Armstrong (1983) pensa que as propriedades primárias são a forma, o tamanho e a organização interna, e que cores, sabores e disposições em geral são qualidades secundárias fundadas nas primárias. A ideia é que “as qualidades primárias, conforme se supõem, são definíveis independentemente de qualquer disposição das entidades que as possuem […] as qualidades primárias tornam possível a ação dos corpos uns sobre os outros e, em particular, a ação deles sobre os nossos órgãos sensoriais” (Ghins, 2013, p.75); elas seriam propriedades espaçotemporais.
Algumas objeções a essa ideia, feitas por Ghins, são que quantidades, tais como a carga ou a constante de Coulomb, não poderiam ser reduzidas a propriedades espaçotemporais e que é duvidoso que a estrutura do elétron, se ela existir, seja espacial. Para sanar esse problema, ele sugere que, na classe das propriedades categóricas, devemos incluir as propriedades e relações correspondentes aos símbolos matemáticos empregados na formulação das teorias científicas. Isso permitiria ainda a distinção entre propriedades categóricas e disposicionais, já que um elétron possuiria uma massa e uma carga, independentemente da possibilidade de interagir com outras massas e cargas. A dificuldade que prevemos com essa concepção é explicar o que seriam cargas, por exemplo, sem reduzi-las a algo que contenha uma disposição para atrair/repelir. Certamente o categoricalismo estrito não poderia aceitar cargas como propriedades categóricas. Ele teria de reduzir essas capacidades de atrair/repelir a propriedades categóricas governadas por leis. Sobre os símbolos matemáticos, a dificuldade é explicar o que, ontologicamente, são eles; mas essa é uma dificuldade, inserida no seio da filosofia da matemática, que todos os teóricos, das leis e dos poderes, enfrentam.
A teoria de Ghins, diferentemente de teorias estritamente categoricalistas (como o regularismo e o necessitarismo armstronguiano), é mista, por aceitar a existência tanto de propriedades categóricas, pensadas de modo abrangente, quanto de propriedades disposicionais – em vez de tentar reduzir estas últimas a propriedades categóricas. Ele pensa assim, porque, por exemplo, “ao lado de suas propriedades categóricas, o elétron possui igualmente propriedades disposicionais, tal como a capacidade de interagir com partículas e campos em conformidade a certas equações matemáticas como, por exemplo, as leis de Maxwell” (Ghins, 2013, p.84).
A razão para essa concepção mista é que, embora seja razoável supor o categoricalismo e, consequentemente, que as propriedades A, T e M – de DA,T,M x ↔ (Ax ˄ Tx) □→ Mx – possam ser caracterizadas exclusivamente por propriedades categóricas, ainda seria preciso que a definição não recorra a modalidades, já que as propriedades categóricas não seriam propriedades modais. O categoricalismo toma as propriedades como tendo uma natureza passiva; nele, “as propriedades modais não são inerentes às entidades que exemplificam as propriedades F e G, mas lhe são externamente impostas. Se o sal possui a disposição a dissolver-se em água, é porque existe uma relação de necessitação que liga a propriedade de ser sal à propriedade – complexa – de dissolver-se em água” (Ghins, 2013, p.81-82). Assim, o categoricalista deveria dar conta da implicação modal □→, à direita da bicondicional, sem usar, no lado esquerdo, propriedades modais. Isso parece uma tarefa impossível de realizar, segundo Ghins. Ele nos diz que isso é o “suficiente para fazer fracassar toda tentativa de reduzir inteiramente o significado de uma propriedade disposicional àquele de propriedades categóricas” (Ghins, 2013, p.81) e para fornecer razões para a crença em poderes irredutíveis a propriedades categóricas.
O que poderíamos responder a isso é que, em primeiro lugar, a tentativa de redução não é semântica, mas ontológica. Os categoricalistas estritos querem reduzir toda disposição a propriedades categóricas governadas por leis, e não o significado desses termos. Eles têm do lado esquerdo a necessitação conectando as propriedades, constituindo assim a lei. A lei, junto com as instâncias das propriedades governadas pela lei, fazem as coisas terem de acontecer em conformidade com a lei. A disposição do vidro de se quebrar é reduzida à lei sobre como se quebram conexões físicas entre certos tipos de moléculas junto com as instâncias das propriedades da lei presentes no copo de vidro. Nenhum dos universais da lei é ele mesmo modal, nem a necessitação e nem as propriedades relacionadas. As razões para uma lei ser necessária não estão na forma da lei, mas em outros argumentos (alguns deles apresentados em Cid, 2016). Assim, o substantivismo também pode respeitar o requisito de mostrar como algo naturalmente não modal implica frases modais. De todo modo, é ainda possível de se responder que não há necessidade alguma de redução das modalidades, que elas são um aspecto primitivo. Não acreditamos que este seja o melhor caminho de resposta – preferimos o primeiro –, mas também é viável.
As disposições, diz-nos Ghins, por conectarem necessariamente certos tipos de ocorrências com certos tipos de manifestações, dão conta da contrafactualidade. Elas também fornecem uma explicação das regularidades descritas pelas leis científicas. De fato, as leis científicas são suscetíveis de nos informar sobre a natureza interna das coisas de certos tipos de um modo preciso. Além disso, as disposições também podem dar conta das leis probabilísticas de modo elegante, diz-nos o autor, pois podemos identificar as tendências das coisas com as disposições probabilísticas.
Mas todas as entidades têm disposições irredutíveis? Precisamos postular a existência de poderes causais? Ghins pensa que sim, por causa de três argumentos (2013, p.89), os quais apresento a seguir.
- Argumento I:
Se somos dotados de poderes causais, então temos a capacidade de agir sobre sistemas que são prima facie “inanimados” e “inertes”, isto é, sistemas que são à primeira vista passivos e desprovidos de poderes internos. […] Visto que reagem de modo diferenciado e previsível a determinadas ações nossas, parece razoável supor que os sistemas externos sejam dotados de uma capacidade interna de reagir de uma maneira específica.
Diríamos aqui que, se somos dotados de poderes causais, nada se segue sobre se os objetos também são dotados de poderes causais. Pode ser o caso que poderes causais venham apenas do livre-arbítrio e que apenas seres com livre-arbítrio os tenham (já que os exemplos paradigmáticos de capacidades que temos envolvem situações com opções, como a capacidade de se levantar, quando se está sentado). Além disso, se esse for um argumento a favor de adotar poderes causais irredutíveis, ele assume que somos dotados de poderes causais. Mas um categoricalista estrito nunca aceitaria isso. O que temos são propriedades categóricas, e sua subsunção a leis torna existente a ilusão de que temos capacidades. O modo diferenciável e previsível em que as coisas reagem pode igualmente ser explicado por propriedades categóricas governadas por leis.
- Argumento II:
Poucas pessoas duvidam que um elétron submetido a um campo eletromagnético se comportará em conformidade com as equações de Maxwell. Se admitirmos que tais contrafactuais sejam verdadeiros, seremos conduzidos a postular a existência de disposições internas, poderes ou potências, que obrigam os sistemas que as possuem a comportarem-se de certa maneira precisamente porque esse comportamento corresponde à sua natureza ou essência.
Tal como argumentamos no parágrafo anterior, não há razões para postular a existência de disposições internas para as coisas; só precisamos de leis da natureza (obrigando os sistemas) e as propriedades categóricas (constituindo os sistemas). Além disso, se postulamos disposições, postulamos infinitas disposições para cada objeto existente, pois são infinitas as situações nas quais podem ocorrer diferentes coisas com os objetos. Costumamos pensar que os objetos particulares têm um número finito de propriedades, e não um número infinito de propriedades disposicionais.
- Argumento III:
Se postularmos a existência de poderes causais que se manifestam nos processos descritos pelas leis científicas, alcançaremos uma imagem geral e coerente da realidade cujo comportamento tem como base as essências das substâncias.
Isso pode até ser verdade. A imagem geral numa metafísica dos poderes é coerente; no entanto, de modo mais preciso, ela tem certos problemas com a noção de poder que têm de ser solucionados, para que essa coerência se mantenha nas perspectivas menos gerais. De todo modo, é argumentável que uma concepção que não se utilize de poderes e fique apenas nas propriedades categóricas é, além de coerente, mais simples e mais intuitiva. Não estou argumentando em favor disso aqui, neste texto, mas apenas dizendo que isso é argumentável, já que uma concepção governista pode dar conta dos problemas apresentados por Ghins.
Em resumo, a concepção de Ghins (2013, p.85-86) nos diz que
As propriedades categóricas são as propriedades matemáticas e quantificáveis referidas pelos símbolos matemáticos que figuram nas leis científicas. […] [As] disposicionais, em circunstâncias favoráveis, lhes permitem comportar-se em conformidade com leis. […] A modelização restringe-se às propriedades categóricas. O que torna as leis verdadeiras são, antes de tudo, os modelos, os quais são estruturas matemáticas. Somente quando consideramos a aplicação desses modelos a sistemas reais é que entram em jogo as propriedades modais de tais sistemas. […] As leis científicas são proposições universalmente verdadeiras que integram teorias científicas bem estabelecidas e que descrevem regularidades existentes na natureza. As regularidades descritas nas várias disciplinas encontram seus fundamentos nas naturezas relacionais, reais, de certas entidades e em suas disposições a submeter-se a processos específicos. De acordo com essa interpretação metafísica, o problema ontológico da identificação está solucionado, e as leis científicas também adquirem o estatuto de leis necessárias da natureza. Se as leis fossem outras, um campo eletromagnético ou um elétron não poderia continuar sendo a entidade que é pela simples razão de que uma mudança nas leis se traduziria ipso facto numa mudança nas essências das coisas.
No entanto, ainda que fosse possível mostrar que a existência de poderes causais na natureza nos oferece a melhor explicação possível das regularidades observadas e da verdade dos contrafactuais, isso não justificaria a crença na existência de poderes causais, simplesmente porque não há qualquer garantia a priori de que a realidade respeite nossos critérios de inteligibilidade. Por isso, diz-nos Ghins, para validar qualquer afirmação de existência, a evidência empírica é imprescindível. E, de fato, nós temos uma experiência pessoal dos poderes causais: enquanto sentado, por exemplo, estou consciente da minha capacidade de me levantar e caminhar. Ainda que os fundamentos metafísicos das leis sejam os poderes universais, o nosso acesso epistêmico a elas e às demais propriedades naturais depende exclusivamente do sucesso dos modelos científicos e da observação de regularidades recorrentes. Se há disposições irredutíveis, que fundamentam a verdade aproximada dos modelos teóricos, ao sustentar as leis científicas que seriam satisfeitas por esses mesmos modelos, que, por sua vez, foram criados a partir da abstração da realidade nas estruturas perceptivas e nos modelos de dados, então o objetivo de Ghins de criar uma teoria sintética, realista moderada e que fundamente metafisicamente as ciências terá sido cumprido. De modo geral, o que Ghins pretende com esse livro é mostrar que não é irracional acreditar nas disposições essenciais das entidades naturais como fundamentos da verdade aproximativa das leis científicas. E nós concordamos que irracional não é, embora a ideia de poder esteja cercada de mistérios e dificuldades; pensamos, ainda, que, mesmo que não existam poderes irredutíveis, toda a perspectiva de ciência de Ghins pode ser mantida, pois leis da natureza realmente existentes poderiam fundamentar a verdade aproximada das leis científicas, por sustentarem os mecanismos que as leis e os modelos científicos tentam descrever.
Notas
1 Agradeço à CAPES pela bolsa de doutorado sanduíche, na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Belgique), com a qual foi possível obter a orientação do Dr. Alexandre Guay e ter conversas pessoais com o Dr. Michel Ghins.
2 Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Av. Serra da Piedade, 299, Morada da Serra, Sabará, MG, Brasil. E-mail: rodrigorlcid@hotmail.com
3 Aqui vale uma nota, a saber, que uma teoria “mística” – como a previsão do futuro por meio dos búzios – pode acabar sendo empiricamente adequada, no sentido de Ghins, se ela obtém previsões bem-sucedidas e se mede algo no mundo para isso; no entanto, na medida em que essas teorias místicas não costumam ser estatisticamente bem-sucedidas em suas previsões, elas não são empiricamente adequadas. O fato de que elas poderiam ser bem-sucedidas e, assim, empiricamente adequadas nos mostra que ou o conceito de empiricamente adequado não é adequado para restringir o domínio das ciências e para justificar suas práticas ou, no caso de uma teoria mística ser bem-sucedida, teríamos que aceitá-la como empiricamente adequada (tão empiricamente adequada quanto as ciências). Mas o que justifica a prática científica, distinguindo-a de teorias místicas, acredito que nos diria Ghins, é a intersubjetividade da estrutura perceptiva e do modelo de dados.
4 Há um conflito aparente entre a ideia de que as leis são tornadas verdadeiras por modelos e a ideia de que os poderes causais são o fundamento das leis. Se os poderes causais fundam as leis, então são eles, e não os modelos, que as fazem verdadeiras. Além disso, se modelos e proposições têm o mesmo estatuto ontológico de serem entidades representacionais, portadores de valor de verdade (truth bearers) ou de algum outro valor (como adequação/inadequação), um não pode ser o veridador do outro, já que veridadores não são entidades representacionais. Mas é argumentável que um modelo é justamente o modelo de um poder causal. Se esse for o caso, então, se for o poder ou se for o modelo do poder que tornam a lei verdadeira, isso não fará diferença. O ponto, talvez, aqui, seja apenas um preciosismo terminológico, no qual diríamos que um modelo é feito verdadeiro (ou aproximadamente verdadeiro), tal como uma lei científica, por um poder causal, embora o modelo satisfaça sempre a lei científica. Embora uma lei científica e um modelo teórico só sejam aproximadamente verdadeiros, dada a distância entre a teoria e a realidade, a relação de satisfação entre o modelo e a lei não é aproximada. Se um modelo não satisfaz a lei, ele tem de ser mudado ou a lei tem de ser mudada. A escolha entre mudar o modelo ou a lei é pragmática.
5 Leis mais gerais da mecânica estatística de partículas.
6 O problema da inferência também pode ser expresso em outros termos, com menos compromissos ontológicos, se pensarmos que o que devemos explicar é a condicional: N(F,G) → (x)(Fx→Gx). Esta formulação é preferível, se quisermos tratar do problema sem a pressuposição de que há também o universal da necessitação no domínio dos particulares (o autor usa sua própria formulação, pois se direciona contra a concepção armstronguiana, que, de fato, pensa que a necessitação é idêntica à causalidade singular e, por isso, age também nos particulares). Um universalista transcendentalista crente da necessitação, por exemplo, poderia querer dizer que a necessitação, como universal, transcende os particulares, mas que a causalidade singular entre estados de coisas é apenas uma instância da necessitação. No entanto “(x)(Fx→Gx)” é neutro o suficiente para não pressupor nem a instanciação da necessitação. A condicional nos diz que a necessitação N, relacionando as propriedades universais F e G, implica que tudo que é um F é também um G. Como explicar essa implicação?
7 Michel Ghins, numa conversa privada, disse-me que tem plena noção de que esse problema também se aplica à sua metafísica dos poderes. Sua solução é dizer que ele identifica as propriedades naturais com as propriedades definidas pelas teorias científicas; no entanto, essa solução não é exclusiva ao metafísico dos poderes, mas logicamente possível também a qualquer teórico das leis. Por exemplo, Armstrong (1983), como defensor da necessitação contingente das leis, e Cid (2011), como defensor da necessidade metafísica das leis, sustentam, ambos, que devemos pensar as propriedades naturais como as propriedades indicadas pelas ciências.
8 De fato, eu acredito que o poder explicativo do conectivismo é menor que o do substantivismo, principalmente do substantivismo ante rem. Podem-se encontrar argumentos em Cid (2011). Vou apresentar alguns a seguir.
9 Ou, alternativamente, no caso do defensor dos átomos metafísicos, quando duas partículas do tipo X (do tipo átomo metafísico) interagem do modo Y, elas produzem F.
Referências
ARMSTRONG, D. 1983. What is a law of nature? Cambridge, Cambridge University Press, 180 p.
BIRD, A. 2007. Nature’s Metaphysics. Laws and Properties. Oxford, Clarendon Press, 246 p.
CID, R. 2011. O que é uma lei da natureza? Rio de Janeiro, RJ. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 114 p.
CID, R. 2016. São as leis da natureza metafisicamente necessárias? Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 184 p.
LEWIS, D. 1973. Counterfactuals. Cambridge, Harvard University Press, 168 p.
PSILLOS, S. 2002. Causation and Explanation. Montreal, McGill-Queen’s University Press, 336 p.
TOOLEY, M. 1977. The Nature of Laws. Canadian Journal of Philosophy, 7(4):667-698. https://doi.org/10.1080/00455091.1977.10716190
VAN FRAASSEN, B. 1989. Laws and Symmetry. Oxford, Oxford University Press, 416 p.
Rodrigo Reis Lastra Cid – Doutor em Lógica e Metafísica pelo Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor substituto no Instituto Federal de Minas Gerais. Sabará, MG, Brasil. E-mail: rodrigorlcid@hotmail.com
[DR]
Para além das fronteiras: histórias transnacionais, conectadas, cruzadas e comparadas | Temporalidades | 2016
O presente dossiê de Temporalidades, revista discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, confirma a qualidade desta que já se firmou como uma das mais importantes revistas discentes na área de História publicadas no Brasil, cujo número inaugural foi lançado no primeiro semestre de 2009, estando em seu oitavo ano de existência. Inicialmente semestral, a revista passou a ser, a partir de 2013, quadrimestral. O Conselho Editorial é constituído integralmente por doutorandos e mestrandos do PPGH-UFMG, que têm demonstrado uma dedicação e empenho indiscutíveis e louváveis para manter a periodicidade e a qualidade da revista, que publica artigos recebidos de pesquisadores de instituições de todo o Brasil e, inclusive, de outros países.
O processo de globalização do capitalismo, acentuado após a Segunda Guerra Mundial, praticamente impôs à produção historiográfica, em todos os continentes, ir além da perspectiva nacional, dominante desde o século XIX, e intensificar as perspectivas transnacionais. Leia Mais
História e Fotografia: interdisciplinaridade, arquivo e memória / História Revista / 2016
O tema inicial deste dossiê apontava para uma reflexão sobre a articulação entre História e Fotografia, arquivo e memória, tomando esse entrelaçamento nas suas vertentes diversas e do ponto de vista de uma interdisciplinaridade profícua. A intenção era dar ênfase aos interesses da historiografia e da Cultura Visual, dos estudos sobre a Imagem e, até, uma iconografia, ligada à representação da história e da(s) temporalidade(s) que a atravessa(m). Finalizado o trabalho de leitura e organização dos textos recebidos, concluímos que nossa expectativa foi superada pelas reflexões que seguem, pois nelas se enxerga o vigor da interdisciplinaridade e o rigor das análises teórico‐metodológicas.
Podemos, assim, considerar três eixos fundamentais neste dossiê. Um primeiro prende‐se às questões da teoria da história e da historiografia e tem o seu início numa inédita colaboração do prestigiado filósofo Gérard Bensussan. Com o texto Rosenzweig, Schelling et l’histoire: quelques aperçus, veio mostrar‐nos o enraizamento da teoria da história contemporânea, que conhece em Rosenzweig, Ernst Bloch e Walter Benjamin os mais ferozes críticos da concepção hegeliana da história e de todos os positivismos subsequentes. Ainda nessa linha de reflexão, incluimos o texto de Maria João Cantinho, Aby Warburg e Walter Benjamin: a legibilidade da memória, que, ao partir da relação entre o conceito de memória e imagem (incluindo esta noção a representação fotográfica), examina, nos dois mencionados autores, a forma como a história e o passado podem ser interpelados mais figurativamente e menos como narrativa clássica e tradicional. Tais perspectivas abrem o caminho a uma nova visão, tanto da história como da própria história da arte, pondo a tônica numa imprescindível interdisciplinaridade que contamina toda a historiografia contemporânea.
Um outro eixo, ligado às possibilidades que a técnica e a reprodução imprimiram à fixação do passado, começou a impor‐se cada vez mais na fotografia contemporânea, lançando as bases teóricas para uma reflexão imprescindível: a ideia do arquivo fotográfico tornado indispensável à história. Nessa linha, sobretudo ao nível da fundamentação teórica, que antecede as reflexões de Barthes sobre a importância da fotografia como registro e potencialidade da construção do arquivo, temos o texto do filósofo Márcio Seligmann‐Silva, A fotografia na obra de Walter Benjamin: dialéctica congelada e a “segunda técnica”. Duas abordagens interessam a este texto: 1) o papel da fotografia como possibilidade técnica de reprodução, que permite a fixação do testemunho histórico; 2) o modo como a fotografia – expressão máxima de uma época em que a técnica desmonta todo o valor cultual e ritualístico da arte – alavancou, ela própria, a possibilidade (rizomática) de um novo olhar para a história, contribuindo para a construção da historiografia assentada no conceito de “imagem dialéctica”. Acompanha esse exame teórico‐metodológico o texto de Cristina Susigan, Desastres da Guerra, que aponta para as interrogações em torno da representação pela imagem (da pintura, da gravura e da fotografia), pela história e pelo passado. Parte a autora da análise de Aby Warburg e de Susan Sontag e da forma como a catástrofe e os desastres da história são registrados cada vez com maior precisão e rigor, permitindo a criação do arquivo e do testemunho histórico. Se as relações entre a história e a fotografia sempre foram visíveis e inegáveis a partir da década de 1930, graças à importância crescente da fotografia documental, o registro, entretanto, começou muito antes, com a fotografia trazendo uma capacidade de fixação do passado que se acentuou, eficazmente, nos nossos dias. Esse convívio entre ambas, história e fotografia, nem sempre foi fácil, pois os teóricos da fotografia recusavam a ideia de que a fotografia pudesse ser um mero instrumento de utilização para a história, o que poria em causa a sua autonomia. Certo é que essa relação era imperiosa, e tanto uma como a outra beneficiavam‐se dela, no sentido em que a contextualização histórica dava à fotografia uma nova consistência, convocando‐a à construção da história.
Um último vetor engloba os textos de Miguel Vieira e de João Oliveira Duarte, apontando para uma interdisciplinaridade que se encontra aqui contemplada, pois remete‐ nos para as questões da literatura e da Teoria da Literatura, da hermenêutica e da interpretação da obra de reconhecidos escritores portugueses como Sophia de Mello Breyner Andresen e Rui Nunes, repectivamente. Se Miguel Vieira, no seu texto sobre a poeta Sophia, procura resgatar a importância da obra e da biografia da autora, esse não é o mais importante aspecto do texto, todavia. O modo como a literatura e a poesia incorporam uma tradição da epopeia e da narrativa tradicionais, rememorando a mitologia clássica e assinalando o passado, é convocado na sua máxima expressão na poética de Sophia, que estabelece um diálogo vivo com a poesia, a tragédia e a epopeia gregas. Já o texto de João Oliveira Duarte cuida de outra questão mais contemporânea, que é a do luto e da melancolia na experiência moderna e o modo como essa experiência se inscreve na literatura. Por fim, alcançamos o último texto do dossiê, Imagens e estereótipos na construção de uma visão do Brasil nos anos de 1950, de Marlise Regina Meyrer. Nele, encontramos a associação entre a memória afetiva e a identidade, explicitando como a fixação do passado se inscreve, também, em um processo de procura identitária.
Organizamos o dossiê e apresentamos seus temas por meio do que compreendemos como “vetores” ou “eixos”. Isso porque essa foi a opção teórico‐ metodológica que nos capacitou a dar conta do modo pelo qual os autores circulam entre a história, a fotografia e a imagem, contribuindo para uma reflexão pertinente entre as várias disciplinas que aqui dialogam. A escrita que ruma ao passado é comparável a um trabalho arqueológico. Escava, busca o detalhe e, então, ilumina o passado para dele obter um encontro com a explicação e o sentido.
Fabiana de Souza Fredrigo – Professora Doutora (UFG)
Maria João Cantinho – Professora Doutora (Iade, Portugal)
Organizadoras
FREDRIGO, Fabiana de Souza; CANTINHO, Maria João. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 2, maio / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
O Freudismo: um esboço crítico – BAKHTIN (EPEC)
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. O Freudismo: um esboço crítico. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. 110p. Resenha de: BIANCHI, Cristina dos Santos. Uma análise bakhtiniana/volochinoviana da psicanálise: reflexões necessárias para o estabelecimento de um novo paradigma em ensino de Ciências. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v.18, n. 2, p.201-210, mai./ago. 2016. Ensaio
Resenhar a visão dos autores do Círculo de Bakhtin sobre o freudismo é, no mínimo, uma tarefa complexa, haja vista as controvérsias relativas à obra e a possibilidade de explorar dentro de seu contexto um sem-número de discussões referentes a diversos campos do conhecimento. Nosso intento é aproximar a polêmica da discussão sobre a cientificidade da psicanálise à tensão entre o “científico” e o “humanístico” e suas implicações para o ensino de ciências, que no contexto da pós-modernidade busca sua democratização.
Comecemos pela discussão relativa à autoria de algumas obras do Círculo, como é o caso de O Freudismo: um esboço crítico e de Marxismo e Filosofia da Linguagem, que ainda dividem opiniões. Destacamos três principais, discutidas por Fiorin (2008).
A primeira é que ambas as obras são assinadas pelo amigo Valentin Nikolaevich Volochínov, o que se justifica para alguns autores por uma impossibilidade política de Bakhtin assumir a autoria. Outra é que Bakhtin só é autor dos textos publicados em seu nome ou encontrados em seus arquivos. Um terceiro grupo atribui essas obras aos dois autores, o que nos parece mais conveniente para esta resenha, uma vez que não desejamos nos aprofundar nas questões de pertença autoral.
Uma controvérsia também é situada em relação ao marxismo encontrado na obra – publicada em 1927. Uma vez que o panorama intelectual da época pertencesse a uma URSS sob a influência marxista onde se desenvolvia a sociologia, a filosofia, a psicologia e até a fisiologia da época, não é novidade que tenha imposto restrições a autores não marxistas. Uma orientação neokantiana do autor Bakhtin deflagra um problema para que os marxistas o reivindiquem (FIORIN, 2008). No próprio prefácio “Freud à Luz de uma Filosofia da Linguagem”, o tradutor Paulo Bezerra afirma o marxismo como um “fio condutor” para adentrar o “labirinto da psicanálise”, mas um marxismo “centrado especificamente em Marx, de quem assimila a ideologia como falsa consciência, ao contrário do conceito de ideologia como visão científica de uma classe, formulada por Lênin e transformada posteriormente em axioma.” (p. XIV). Sem a intenção deveras de ir a fundo nesse tema, o fato é que não podemos negar a influência marxista do panorama intelectual, contextualizando a obra à ideologia predominante da época.
Outro fato que precisamos ter em mente é que um mundo “Iluminado” e impulsionado pela ciência funcionava a pleno vapor de fábricas, corroborando a corrente biologicista em que se apoia a psicanálise freudiana e que faz transparecer uma nova categoria de discurso ressaltada pelos autores Bakhtin/Volochínov, o “discurso autoritário”, ratificado pelo próprio Freud (2011 [1925], p. 74) em sua declaração de que a verdade é o objetivo absoluto da Ciência.
No entanto, Freud resgata desse cenário inóspito e massacrante, obscurecido pelas fumaças industriais, o indivíduo, transformado exclusivamente em mão de obra, desafiando a ordem moral e lógica da sociedade moderna (PLASTINO, 2001 apud MORAES et al., 2008). Ainda assim, uma análise bakhtiniana/volochinoviana sobre a psicanálise se detém na dicotomia entre o “objetivismo abstrato” e o “subjetivismo idealista” (BAKHTIN, 1998) traduzida em uma tensão existente entre duas culturas (SNOW, 1995): de um lado a “científica”, de outro a “humanística”, que perdura nos dias atuais sob a forma de disputa entre pressupostos epistemológicos hegemônicos. A resistência dos autores ao inconsciente proposto por Freud, em sintonia com as ideias de Vigotski (EMERSON, 2002), é também uma tônica da obra que se encaixa nessa tensão. Temos então, em O Freudismo, a oportunidade de analisar a crítica bakhtiniana/volochinoviana por suas próprias lentes dialógicas, suscitando reflexões importantes para o ensino de ciências, na busca por superar a dualidade entre as duas culturas citadas.
Bakhtin/Volochínov dividem sua análise em três partes. Na primeira apresentam “O Freudismo e as correntes atuais do pensamento em Filosofia e Psicologia”, depois, fazem a “Exposição do Freudismo” e finalizam com sua “Crítica ao Freudismo”.
O cuidado de Bakhtin/Volochínov em situar histórico-filosoficamente o leitor antes de iniciar sua abordagem da teoria freudiana reflete a importância que dispensam ao marxismo como caminho, ratificada na epígrafe do primeiro capítulo atribuída a K. Marx: “A essência do homem não é algo abstrato, próprio de um indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto de todas as relações sociais.” (p. 3). Destacam, portanto, o “motivo central”, uma “dominante ideológica” do Freudismo: o que teria chamado a atenção da sociedade burguesa europeia para uma teoria proveniente da psicanálise? Teriam sido os êxitos do processo terapêutico? Ou acaso não foi senão a atenção voltada ao organismo biológico com destaque para o poder das pulsões sexuais na determinação do comportamento humano? A corrente biologicista predominante na teoria de Freud se contrapõe oportunamente, na visão do mundo burguês, à ideologia de classe predominante da época: “O ‘sexual’ em Freud é o polo extremo do biologismo em voga, reunindo e condensando numa imagem compacta e picante todos os momentos particulares do anti-historicismo atual.”(p. 10). E apesar da acusação de anti-historicista, não era como Freud enxergava o sujeito, um ser biológico em detrimento do social.
Usamos como exemplo as pulsões e o desejo. As pulsões estão relacionadas com instintos biológicos, contudo dirigida pelo desejo, que tem regulação social e é dirigida pelo princípio do prazer (LIMA; PERINI, 2009).
Mostram-nos também os autores a posição da psicanálise em relação às tendências psicológicas, subjetiva e objetiva. Para Bakhtin/Voloshinov, a diferença que Freud e seus discípulos tentam fazer de sua concepção de psíquico em relação à psicologia então vigente nada mais seria do que uma mudança de terminologia: “Já Freud tenta erigir com os velhos tijolos subjetivos um quase-edifício objetivo inteiramente novo do psiquismo humano. O que é o ‘desejo inconsciente’ senão o mesmo tijolo velho apenas com posição invertida?” (p. 70). Além disso, chamam à atenção de que a interpretação do psíquico é dada pelos enunciados verbalizados, o que não renuncia a introspecção como método, característico da psicologia subjetiva.
Apesar de reconhecermos a busca de Freud por uma legitimação científica – como verificamos em “Sobre Narcisismo: uma introdução”, em que declara que as teorias sobre a psicologia se basearão, um dia, em estruturas orgânicas (FREUD, 2006 apud MORAES et al., 2008) e também quando diz que “a psicanálise na realidade, é um método de pesquisa, um instrumento imparcial, à semelhança do cálculo infinitesimal.” (FREUD, [1910] 2011, p. 100) – seu trabalho muito se distancia do behaviorismo, como também representa avanços sobre a psicologia subjetiva, como por exemplo, sua originalidade referendada pelos próprios autores à sua dinâmica psíquica, a um novo mundo em movimento, em crise, em contraposição ao antigo mundo psíquico passivo e inerte. E é nessa dinâmica que Bakhtin/Volochínov apontam as projeções da realidade social da nova teoria: “Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem enunciou: é produto da interação entre falantes e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu.” (p. 79, grifo do autor), que em nada contraria o freudismo. Freud busca o sujeito imerso em sua ligação com sua infância em relação à sua família e a toda sua vivência.
Assim, Bakhtin/Volochínov tentam comprovar o que não é negado, que a psicanálise possui uma orientação filosófica geral: “O pensamento humano nunca reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser do sujeito cognoscente, o seu ser social concreto.” (p. 22), partindo do princípio de uma luta de status do freudismo, em que adeptos da neutralidade científica precisavam manter sua cientificidade. Um mal-estar causado no meio acadêmico-científico a respeito dessa sustentação para a psicanálise, criticada pelos autores, iria começar também a ser sentido em relação à objetividade da ciência em A lógica da pesquisa científica de Popper, um dos “traidores da verdade” – junto a Lakatos, Kuhn e Feyerabend (THEOCHARIS; PSIMOPOULOS, 1987).
Partindo à exposição do Freudismo, consciência, inconsciente e préconsciente são apresentados como campos em permanente luta, em interações interdependentes, em que para a compreensão da consciência, é necessário desvelar o inconsciente. O inconsciente, portanto, ocupa posição de relevo na teoria de Freud.
Os autores nos mostram as concepções sobre o inconsciente nos três períodos de Freud, com peculiaridades devidas a cada um. Explicam-nos o “Método catártico de tratamento da histeria”, fruto de conclusões do primeiro período, como também “A doutrina do recalque” como um dos conceitos mais importantes da psicanálise.
Explanam sobre o “Conteúdo do inconsciente” na teoria das pulsões, que evolui até o terceiro período de Freud. E uma das peculiaridades desse período, o “Ideal do Ego”, apresentado como o censor das atividades do “Ego” – o “agente do princípio da realidade”, “a razão e o senso comum” (p. 43). Este último também influenciado pelo “Id” – “elemento obscuro interior dos anseios e paixões que às vezes experimentamos tão intensamente em nós mesmos e contraria os nossos argumentos racionais e a boa vontade”. (p. 42, 43).
Porém, uma leitura estéril do cunho social das interações entre inconsciente, consciente, Ideal do Ego (superego) e Id é subentendida a partir do momento que interpretam que o freudismo supõe o indivíduo como um ser isolado, sendo os conflitos assinalados entre consciente e inconsciente pertencentes ao determinismo biológico. Não é o que Freud realmente considera: “A civilização se baseia, em geral, na renúncia aos instintos, e cada indivíduo tem que repetir pessoalmente, no seu caminho da infância à madureza, essa evolução da humanidade até a resignação razoável” (FREUD, [1910] 2011, p. 112-113).
Continuando, Bakhtin/Volochínov explanam o método psicanalítico da “Interpretação de Sonhos”, através das “livres associações”. Para analisar o conteúdo do inconsciente, é necessário que este possa ser localizado e analisado na consciência. Os conteúdos manifestos dos sonhos são associados a pensamentos e imagens livres da consciência, método que se tornou clássico para toda a psicanálise.
Reforçam os autores o biologicismo de Freud: “Cada momento da construção ideológica é biologicamente determinado com rigor.” (p. 57, grifo do autor).
Esse aforismo é, para os autores, o pressuposto da “Filosofia da cultura em Freud” que explica além da origem dos sonhos, a criação de mitos, religiões manifestações artísticas e formas da vida social, encontrando sua expressão máxima na obra de Otto Rank, discípulo de Freud, que escreve o livro O trauma do nascimento. “Segundo Rank, toda a vida do homem e toda a criação cultural não são senão a erradicação e a superação do trauma do nascimento em vias diversas e por meios diversos.” (p. 62, grifo do autor). Bakhtin/Volochínov também trazem à tona a questão de um inconsciente capaz de operar com extrema sensatez moral, levando-nos a questionar sobre o que dizer de um mecanismo tão contextualizado, senão que se trata da expressão de um caráter ideológico. Os autores acreditam que uma volta consciente ao próprio passado, como meio de busca ao inconsciente, necessite de lentes polidas de olhos não influenciados pelo indivíduo, desconsiderando que uma retrospecção possua um potencial de reconstrução autônoma sobre si mesmo.
Certamente que não aproxima, de fato, a realidade psíquica de uma natureza material, concluem os autores, a exemplo da teoria das zonas erógenas, como poderiam pretender Freud e seus seguidores, já que “jamais operam diretamente com a composição material e com processos materiais do organismo corporal; procuram apenas reflexos do somático no psiquismo, isto é, acabam sujeitando todo o orgânico aos métodos da introspecção, psicologizando-o.” (p.
71, grifo do autor). Sendo assim, os autores se sentem autorizados a afirmar que a ideia de alguns partidários de Freud de que a biologia seria a base objetiva da psicanálise, “não se baseia em nada […] em tudo a psicanálise continua fiel ao ponto de vista da experiência subjetiva interior.” (p. 73, grifo do autor).
Pelo que já temos destacado sobre Freud, não é sua metodologia partir da materialização do psíquico. Ao contrário, Freud afirma que seu material de trabalho, o inconsciente, é de difícil tangência, deixando de ser objeto exclusivo de discussão filosófica e tornando-se objeto de experimentação a partir dos métodos hipnóticos experimentados entre 1880 e 1890, antes do nascimento de sua ciência.
Freud, assim, faz exatamente o oposto do que afirmam os autores, trazendo a possibilidade da compreensão de fenômenos antes tratados com a terapêutica de choques elétricos, vistos como disfunções de partes do cérebro.
O campo sexual, entendido pelos autores como o fio condutor capaz de atrair a sociedade burguesa para o freudismo, ao mesmo tempo gerador de conflitos, é visto como uma nova “‘interpretação’ aguda e nova de todos os aspectos da vida que perderam o sentido” (p. 91), ressignificando relações familiares no contexto da sociedade burguesa europeia. Acrescido a isso, os conflitos gerados são circunscritos a esta sociedade, sendo impraticável sua transposição histórica. Uma leitura do sexual em Freud como uma ressignificação e acomodação da vida burguesa deixa escapar sua real contribuição para a ressignificação do sujeito na sociedade. Um indivíduo massificado descobre que possui desejos e que é orientado pelo princípio do prazer, pode ser o primeiro passo na busca de uma vida, até então, negligenciada.
E é claro que a transposição histórica de uma situação referente à sexualidade não é pertinente em teoria alguma, depende da harmonia entre o discurso interior (indivíduo) e o exterior (sociedade), o que não é negado por Freud.
O polêmico “Complexo de Édipo” não poderia ter síntese mais reduzida: “O futuro coitus do homem é apenas uma compensação parcial do paraíso perdido do estado intrauterino.” (p. 39) e a “Vida sexual da criança” é apresentada como o símbolo da inocência e da pureza que passa a seguir instintos de libido como diretrizes de desenvolvimento psicossomático. Eis um ponto que encontrou, segundo o próprio Freud, “uma novidade contrária aos mais enérgicos preconceitos do homem”, e ainda que “são muito poucas as descobertas da psicanálise que esbarram com uma repulsa tão geral e provocam tanta indignação como a afirmação de que a função sexual tem início com a própria vida […]” (FREUD, 2011 [1925], p. 45). Freud é acusado de reducionismo biológico, sendo assim, uma negação de que sua teoria da libido se trata da teoria das energias psíquicas sem um equivalente empírico (FULGENCIO, 2002), pode refletir o próprio preconceito dos autores em relação ao tema, compreensível se considerarmos os tabus impostos pela sociedade até os dias de hoje.
O reducionismo sexual à genitalidade e com utilitarismo reprodutivo é ainda predominante dentro do ensino de ciências, mais preocupado com as doenças do que com a manutenção da saúde e bem-estar, em alusão a uma visão higienista.
Aqui sim imperam determinismos, mas que são socioculturais na construção da sexualidade. A incompreensão do conceito de sexualidade como elaborada por Freud tem em suas raízes as tensões assinaladas entre a legitimação científica em contraponto à validação do humanístico dentro das instâncias epistemológicas valorizadas. Em última análise, reflete a hegemonia de uma ciência racionalista que segmenta e compartimentaliza o indivíduo, separando-o de seus anseios e paixões.
O freudismo também é criticado pelos autores por enclausurar-se dentro de suas próprias teorias, não permitindo chances de permuta com as demais correntes da psicologia. Isso é considerado como uma das grandes falhas da teoria psicanalítica, já que uma escola de pensamento que se apropria de um pilar científico não se permite questionar ou compartilhar ideias com seus pares em potencial.
Porém, a falta de diálogo ocorre também na análise de Bakhtin/Volochínov. Uma preocupação demasiada dos autores em pontuar a teoria freudiana em contraposição à corrente filosófica predominante, e de contradizê-la em sua pretensa objetividade, pode ter lhes furtado a oportunidade de analisar e discutir pontos convergentes com a teoria linguística que se iniciava com o Círculo. Enquanto alguns autores apontam a falta da leitura de obras importantes para sua compreensão (EMERSON, 2002; LIMA; PERINI, 2009), há quem afirme que uma boa leitura da teoria elaborada até então (1927) teria permitido aos autores concluir que a importância da função da linguagem era de fato, concebida por Freud (NOVAES; RUDGE, 2007). Podemos considerar que a psicanálise trabalha com a linguagem, que ao ser expressa, representa o constituinte principal da investigação psicanalítica. E isso é apontado pelos autores como um ponto positivo, mesmo assim, encontramos uma análise freudiana contundente e voltada para a questão específica da comprovação de um sujeito histórico, que nem sequer foi negado por Freud.
Chegamos ao ponto em que devemos refletir sobre o cenário apresentado. Em que ponto a dialética se aproxima do dialogismo? Um discurso sofista em busca da persuasão contra um discurso filosófico em busca da verdade: a retórica como o instrumento privilegiado de poder para os detentores do saber é tão antiga quanto atual. A filosofia ocidental antiga é incorporada pela ciência tomista medieval e vai cedendo ao empirismo da revolução científica a partir do século XVI, até o racionalismo se estabelecer no topo de uma hierarquia epistemológica, basicamente no campo das ciências naturais. Até que no século XIX, os estudos humanísticos reclamam para si um reconhecimento científico, emergindo as ciências sociais. Um conhecimento com o status de científico é o que temos de mais respeitável. E o reconhecimento científico era importante para Freud.
Vemos assim uma disputa, de um lado, Freud na busca de legitimação científica de seu trabalho e de outro, a tentativa de Bakhtin/Volochínov (sem mencionar tantos outros) em provar que a psicanálise não merece a instauração neste pilar. Uma aporia se manifesta onde o discurso autoritário da ciência racionalista, criticado na análise bakhtiniana/volochinoviana, é utilizado pelos próprios autores na defesa de uma análise sociológica da linguagem e da cultura. Presenciamos a disputa em um jogo de forças que determina a hegemonia do discurso, dado através da linguagem. A ciência, mais do que uma construção sociocultural, é um discurso e precisa ser compreendida como tal. O início da contestação de sua autoridade em Popper provoca uma crise de estruturas, que encontra em Foucault (1979) a problematização de seu estatuto político e de funções ideológicas que poderia veicular. Entra em cena uma série de discussões que contestam a neutralidade e a superioridade científica, conhecidas como movimento CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade o que consideramos extremamente frutífero para o desenvolvimento de uma nova visão, uma reorientação almejada para o ensino de ciências, que considere o eixo sociedade, interpretado como a valorização do indivíduo no contexto social contemporâneo de produção científica e tecnológica.
Retomando a psicanálise, sua importância é fundamental para a superação do sujeito cartesiano. Dela emerge uma concepção do humano segundo o qual identidade, sexualidade e desejos “funcionam de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, arrasa com o conceito de sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso, logo existo’, do sujeito de Descartes” (HALL, 2011).
O que podemos concluir desta reflexão que nos auxilie em corroborar os novos rumos apresentados para um ensino de ciências democrático, capaz de formar cidadãos autônomos e ativos no processo de construção de uma sociedade consciente e justa? Em primeiro lugar, a compreensão de que a dinâmica social funciona no contexto das relações da vontade de poder, entendida por Nietzsche como desejo de superação, mantida em uma relação tensional com seu Outro. Todos os movimentos do desenvolvimento do saber se iniciaram e se mantêm como impulso de superação (HATAB, 2010). Em segundo, que a manutenção do status privilegiado tem um custo, o da resistência a movimentos concorrentes, manifesta em um discurso autoritário. Em terceiro, precisamos reconhecer em nós em que ponto temos nos apropriado do discurso autoritário a ponto de torná-lo autoritarista, quer dizer, em que ponto o discurso ciência/humanidade pode nos privar de uma visão holística importante para a superação deste mundo dual.
Tendo em mente este esclarecimento, podemos seguir uma saída para o nó górdio em que nos puseram os mitos das verdades e das necessidades pós-modernas: a construção de um paradigma, já emergente dada a crise do modelo de racionalidade dominante, embasado em uma cultura transdisciplinar (NICOLESCU, 2008), que supere a dicotomia das duas culturas de Snow. Preconizamos o paradigma “de um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2010, p. 37), em que a dualidade “científico” x “humanístico” deixe de ter sentido e em que todo o conhecimento seja autoconhecimento. Por fim, que o conhecimento reconheça no senso comum uma forma de saber indispensável para a ressignificação do existir contemporâneo (MORIN, 2011; SANTOS, 2010).
Referências
BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.
EMERSON, C. O mundo exterior e o discurso interior: Bakhtin, Vigotski e a internalização da língua. In: DANIELS, H. Uma introdução a Vigotski. São Paulo: Loyola, 2002.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. A história do movimento psicanalítico. Artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. (1914-1915b) Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XIV).
FREUD, S. O esquema da Psicanálise. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed Martin Claret, [1910] 2011.
FREUD, S. Autobiografia. In: CLARET, Martin. Freud por ele mesmo. São Paulo: Ed. Martin Claret, [1925] 2011.
FULGENCIO, L. A teoria da libido em Freud como uma hipótese especulativa. Ágora, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 101-111, 2002.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Traduzido por Tomaz Tadeu Silva e Guacira |210| Cristina dos Santos Bianchi Revista Ensaio | Belo Horizonte | v.18 | n. 2 | p.201-210 | mai-ago | 2016 Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
HATAB, L. J. A genealogia da moral de Nietzsche: uma introdução. Tradução de Nancy Juozapavicius.
São Paulo: Madras, 2010.
LIMA, S. M. M.; PERINI, R. Bakhtin e Freud: aproximações e distâncias. Bakhtiniana, São Paulo, v.
1, n. 2, p. 80-99, 2009.
MORAES, L. A. G. de; GONÇALVES, L. R.; BRAGA R. de J.; GREGGIO, T. C.; PRUDENTE, R. C. A. C. A psicanálise entre a desconstrução do indivíduo e uma nova perspectiva cultural. CES Revista de Juiz de Fora, Juiz de Fora, v. 22, p. 239-253, 2008.
MORIN, E. Rumo ao abismo?: ensaio sore o destino da humanidade. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
NICOLESCU, B. O manifesto da transdisciplinaridade. Tradução de Lúcia Pereira de Souza, 3. ed.
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NOVAES, B.; RUDGE, A. M. A função da linguagem em Bakhtin e Lacan. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p. 157-178, 2007.
PLASTINO, C. A. O primado da afetividade: a crítica Freudiana ao paradigma moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 16. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2010.
SNOW, C. P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.
THEOCHARIS, T.; PSIMOPOULOS, M. Where science has gone wrong. Nature, Grã-bretanha, v. 329, p. 595-598, 1987. Disponível em: <http://www.ivorcatt.co.uk/x1cp.pdf>. Acesso em: 31 maio 2014.
Cristina dos Santos Bianchi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rio de Janeiro, RJ – Brasil Mestra em Biologia e integrante do Grupo de Pesquisa em Formação de Professores do Instituto de Física Armando Dias Tavares, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro (SEEDUC). E-mail: crisbianchibr@yahoo.com.br.
[MLPDB]Corporativismo Histórico no Brasil e na Europa / Estudos Ibero-Americanos / 2016
O tema do corporativismo, seja em termos teóricos ou de sua práxis, é fortemente associado pela historiografia aos regimes fascista e parafascistas do período entre guerras, não apenas no clássico caso italiano ou mesmo no modelo português de Oliveira Salazar, mas também, por exemplo, no caso dos regimes menos conhecidos de Dolffus, na Áustria, e do rei Carol II, na Romênia. No Brasil, de igual forma, seus estudiosos associam o corporativismo ao autoritarismo do Estado Novo de Vargas, especialmente destacando suas influências fascistas e o caráter incompleto do corporativismo estatal brasileiro, mero instrumento de dominação de classes.
A esse respeito, observa-se que muitos desses estudos foram realizados entre as décadas de 1970 e 1990, período que coincide, de um lado, com o fim das ditaduras na Europa (Portugal e Espanha) e América Latina (Brasil, Argentina e Uruguai) e a crise do comunismo e, de outro, com a implantação de reformas políticas e econômicas de tipo liberal ou neoliberal nesses mesmos países. Em outras palavras, por hipótese, talvez se possa dizer que esses estudos sobre o corporativismo estavam diretamente ligados às preocupações dos historiadores e demais cientistas sociais, em tempos de transição democrática, de compreender as raízes e o modo de funcionamento do autoritarismo em seus países. Em sentido oposto, portanto, talvez se possa afirmar também que o tema do corporativismo teria deixado de ser relevante para esses mesmos estudiosos em tempos democráticos.
Já a partir de princípios do século XXI, entretanto, observa-se uma retomada do corporativismo como objeto de estudo de historiadores, cientistas políticos, sociólogos e economistas, mas, dessa vez, não apenas no sentido de revisitar o chamado corporativismo histórico e suas relações autoritárias, mas também de compreender suas novas formas de manifestação nas democracias contemporâneas, seja em termos teóricos ou na ação de grupos de interesse e as novas formas de articulação entre o Estado e a sociedade civil.
O presente dossiê, portanto, está em perfeita sintonia com o seu tempo presente, como bem ilustram os textos a seguir publicados de importantes pesquisadores brasileiros, portugueses, italianos e espanhóis sobre a teoria e a práxis do corporativismo, desde os anos 1930 até hoje. Nesse mesmo sentido, de modo a enfatizar também sua atualidade e proximidade com os mais recentes debates internacionais sobre a temática do corporativismo, deve-se ainda destacar que este dossiê está diretamente vinculado às ações da Rede Internacional de Estudos do Corporativismo – International Network for Studies on Corporatism and the Organized Interests (NETCOR), criada em Lisboa em princípios de 2015. Além disso, este dossiê da revista Estudos Ibero-Americanos também dialoga com outro já publicado pela revista Espacio, Tiempo y Forma1, da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED), de Madri, e com o dossiê a ser publicado ainda nesse ano pela Universidade de Coimbra.
O primeiro texto, de Álvaro Garrido, toma como referência o caso português para propor uma discussão teórica sobre a questão do corporativismo. Segundo ele, há uma recente revitalização teórica do corporativismo pelas Ciências Sociais, mas com abordagens que tendem a dispensar a categoria da historicidade. Em geral, como bem demonstra o autor ao longo do seu estudo, os estudiosos da temática têm se ocupado especialmente da teoria e ação dos grupos de interesse, da questão dos corpos sociais intermediários e das formas de articulação entre o Estado e a “sociedade civil”, vendo o corporativismo como um “fenômeno total” e o desvalorizando enquanto fenômeno histórico.
A seguir, Alessio Gagliardi e Marco Zaganella analisam a teoria e a práxis do corporativismo italiano, respectivamente nas décadas de 1920 e 1930 e após o período do fascismo, durante a Primeira República italiana (1948-93). Gagliardi se propõe não apenas a analisar a estrutura institucional do corporativismo fascista, seu sistema de leis, regulações e procedimentos, mas também suas reais ações e atividades, destacando as “reais” consequências desse modelo italiano, diferentes do seu viés ideológico. Zaganella, por sua vez, propõe o que diz ser uma análise do corporativismo depois do corporativismo, ou seja, indo além das por ele chamadas colunas de Hércules do Fascismo e atendo-se no seu estudo durante a Primeira República italiana.
Os demais textos, de Francisco Palomanes Martinho, Marco Aurélio Vannucchi, Larissa Rosa Correa e Valéria Lobo se dedicam ao estudo de diferentes perspectivas do corporativismo brasileiro. Martinho revisita em seu estudo o período de criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), não apenas no sentido de analisar seu processo de criação e institucionalização do mundo do trabalho no Brasil, mas também de compreender o papel desempenhado por suas elites políticas e intelectuais na definição desse modelo. Vannucchi, por sua vez, toma como referência a representação profissional dos advogados no Brasil para analisar um aspecto próprio do corporativismo nacional, a duplicidade dos organismos de representação profissional dos grupos que ele define como classe média profissional perante o Estado, dividida entre seus conselhos profissionais e sindicatos. Nesse sentido, em sua opinião, o corporativismo brasileiro de classe média se aproximaria mais da modalidade societal que da estatal. Já Larissa Correa propõe uma nova discussão sobre as instituições que compõe o sistema corporativista no Brasil – Justiça do Trabalho, sindicatos e Ministério do Trabalho, mas a partir das experiências acumuladas dos trabalhadores em seus contatos com esses órgãos, com o objetivo de analisar como estes teriam sido capazes de ressignificar sua linguagem corporativista ao longo dos anos 1950 e 1960, durante os chamados períodos do populismo e da ditadura militar. Valéria Lobo, por fim, embora admitindo que a gênese do corporativismo no Brasil e seu desenvolvimento estão diretamente associados ao autoritarismo do Estado Novo, se propõe a analisar as relações contemporâneas entre corporativismo e democracia. Segundo ela, apesar de ser alvo de críticas à direita e à esquerda, nenhum dos seus críticos teria revelado “uma preferência intensa pela superação do modelo”. Sendo assim, questiona-se a autora, não seria mais pertinente postular-se o aprimoramento dos dispositivos corporativos ainda presentes com vistas ao aperfeiçoamento da democracia no Brasil?
Por fim, ao final do dossiê, deve-se ainda mencionar a realização de uma entrevista com o historiador Fernando Rosas, um dos principais estudiosos do Estado Novo e do corporativismo português, abordando desde questões sobre o regime e seu modelo de organização social e econômica até uma comparação entre os chamados corporativismo histórico e neocorporativismo.
Nesses termos, portanto, espera-se que os textos ora editados possam não apenas contribuir para a revisão e aprofundamento do debate historiográfico sobre o corporativismo histórico e sua ocorrência no Brasil, sua teoria e práxis, mas também para a proposição de novas formas de abordagem (temática e teórica) acerca dessa temática e de um olhar mais contemporâneo sobre suas novas formas de manifestação em tempos democráticos.
Nota
1 Espacio, Tiempo y Forma. Construindo o Estado Corporativo: as experiências históricas de Portugal e Espanha. Madri: UNED, año 2015, n. 27.
Luciano Aronne de Abreu – Professor do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutor em Estudos Históricos Latino Americanos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: História do Rio Grande do Sul, Era Vargas e Autoritarismo. É autor dos livros Getúlio Vargas: a construção do mito (Edipucrs, 1997) e Um Olhar Regional sobre o Estado Novo (Edipucrs, 2007).
Paula Borges Santos – Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC / UNL), onde coordena o Grupo de Investigação Justiça, Regulação e Sociedade e realiza o pós-doutoramento, com apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Doutora em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, publicou: Igreja Católica, Estado e Sociedade (1968-1975): o caso Rádio Renascença (Imprensa de Ciências Sociais, 2005), que recebeu o Prêmio Fundação Mário Soares; A Questão Religiosa no Parlamento (1935-1974) (Assembleia da República, 2011) e A Segunda Separação. A Política Religiosa do Estado Novo (Almedina, 2016).
ABREU, Luciano Aronne de; SANTOS, Paula Borges. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 2, maio-ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro – COWLING (RBH)
COWLING, Camillia. Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2013. 344p. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes dos. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.
Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes poderiam ter sido heroínas dos folhetins e romances que enchiam de angústia e compaixão a alma dos leitores do final do século XIX. Negras, cativas ou ex-escravas, essas mulheres foram em busca do aparato legal disponível em Havana e no Rio de Janeiro, respectivamente, e fizeram de sua condição e do afeto materno as principais armas na longa luta pela liberdade de seus filhos na década de 1880. Todavia, a saga dessas mulheres não era fruto da vertente novelesca do século XIX e tampouco foi fartamente estampada nos jornais da época. Para conhecer e nos contar essas histórias, Camillia Cowling fez uma intensa pesquisa em arquivos do Brasil, de Cuba, Espanha e Grã-Bretanha, tecendo com o cuidado que o tema demanda a trajetória de mulheres negras – libertas e escravas – que entre o fim da década de 1860 e a abolição da escravidão em Cuba (1886) e no Brasil (1888) utilizaram o aparato legal disponível nas duas maiores cidades escravistas das Américas para lutar pela liberdade de seus filhos e filhas.
A fim de dar corpo a uma história que muitas vezes é apresentada como estatística, a autora examinou uma série de documentos legais produzidos a partir da década de 1860 para compreender os caminhos traçados por algumas mulheres em busca da liberdade. Em pleno diálogo com as importantes bibliografias sobre gênero e escravidão produzidas nos últimos anos, Camillia Cowling nos brinda com um livro sobre mulheres negras, maternidade, escravidão e liberdade, demonstrando como as histórias de Ramona, Josepha e outras tantas libertas e escravas, longe de serem anedotas do sistema escravista, podem ser tomadas como portas de entrada para a compreensão mais fina da dinâmica da escravidão no Novo Mundo nas duas últimas localidades em que essa instituição perdurou.
A complexidade do tema abordado e o ineditismo das articulações entre história da escravidão nas Américas, abolicionismo, dinâmica urbana, agência de mulheres negras, maternidade e processos jurídicos se expressam na forma como a autora organizou sua obra.
Na primeira parte de seu livro, Camillia Cowling trabalhou com a relação entre escravidão e espaço urbano naquelas que foram as maiores cidades escravistas das Américas, Havana e Rio de Janeiro. Analisando as dinâmicas de funcionamento da escravidão urbana, a autora sublinhou que as cidades não devem ser tomadas como mero pano de fundo dos estudos sobre escravismo nas Américas, e assim construiu uma narrativa que corrobora boa parte do que a historiografia aponta: a força que a escravidão exerceu sobre o funcionamento dessas urbes. Tal força poderia agir tanto nas especificidades geradas em torno das atividades executadas pelos escravos urbanos – sobretudo no que tange à maior autonomia dos escravos de ganho -, como nos sentidos e usos que essas cidades passaram a ter para a população escrava e liberta, a qual muitas vezes fez do emaranhado espaço citadino esconderijos e refúgios de liberdade. O engajamento jurídico das mulheres escravas e libertas frente às políticas graduais de abolição de cada uma dessas cidades é, pois, apresentado como mais uma característica da complexa dinâmica que permeou a escravidão urbana no Rio de Janeiro e em Havana.
A escolha pelas duas cidades não foi aleatória, muito menos pautada apenas por índices demográficos. Ainda que a autora tenha anunciado trabalhar com base na metodologia da micro-história, a abordagem comparativa que estrutura sua análise se pauta no diálogo com perspectivas mais sistêmicas da escravidão das Américas, principalmente com as balizas que norteiam a tese da segunda escravidão (Tomich, 2011). Como vem sendo defendido por uma crescente vertente historiográfica, a paridade entre Havana e Rio de Janeiro – pressuposto fundamental da análise de Camillia Cowling – seria resultado de uma série de escolhas semelhantes feitas pelas elites de Cuba e do Brasil em prol da manutenção da escravidão desde o último quartel do século XVIII até meados do século XIX, mesmo em face do crescente movimento abolicionista. Tal política pró-escravista (que também foi levada a cabo pelos Estados Unidos) teria permitido que a escravidão moderna se adequasse à expansão capitalista, criando assim um chão comum na dinâmica da escravidão nessas duas localidades, inclusive no que concerne às possibilidades legais que os escravos acionaram para lutar pela liberdade – possibilidades essas que se ampliaram após a abolição da escravidão nos Estados Unidos. Não por acaso, as capitais de Cuba e do Brasil transformaram-se em espaços privilegiados para que mulheres negras, apropriando-se do próprio conceito de maternidade e ressignificando-o, utilizassem as leis abolicionistas reformistas, nomeadamente a Lei Moret de Cuba (1870) e a Lei do Ventre Livre do Brasil (1871), para resgatar seus filhos do cativeiro.
Os caminhos percorridos pelas mulheres escravas e libertas e as muitas maneiras por meio das quais elas conceberam a liberdade (de seus filhos e delas próprias) passam a ser examinados pormenorizadamente a partir da segunda parte do livro. A pretensa universalidade do direito sagrado da maternidade foi uma das ferramentas utilizadas nos discursos abolicionistas do Brasil e de Cuba, os quais apelavam para um sentimento de igualdade entre as mães, independentemente de sua cor ou condição jurídica. Como destaca a autora, a evocação do sentimento de emoção transformou-se numa estratégia importante do movimento abolicionista que, a um só tempo, pregava a sacralidade da maternidade e ajudava a forjar um novo código de conduta da elite masculina, que começava a enxergar a mulher escrava de outra forma.
Camillia Cowling demonstra que a sacralidade universal da maternidade foi apreendida de diferentes formas nas sociedades escravistas. Se por um lado, a partir da década de 1870, tal assertiva ganhou força quando a liberdade do ventre ganhou status de lei, por outro lado a pretensa igualdade que a maternidade parecia garantir para as mulheres muitas vezes parecia restringir-se ao campo jurídico, mais especificamente, à luta gradual pela liberdade. Revelando uma vez mais a complexidade dos temas abordados, Camillia Cowling destaca que esses mesmos abolicionistas muitas vezes descriam na feminilidade das mulheres negras (brutalizadas pela escravidão), colocando-se contrários às relações inter-raciais, embora defendessem a manutenção das famílias negras.
Todavia, nesse contexto, o ponto alto do livro reside justamente no exame das estratégias empregadas pelas mulheres negras para lutar, juridicamente, pela liberdade não só de seu ventre, mas de seus filhos. A compreensão que essas mulheres tinham das leis graduais de abolição; o entendimento também compartilhado por elas de que as cidades do Rio de Janeiro e de Havana não eram apenas espaços privilegiados para suas lutas, mas também uma parte importante para a definição do que a liberdade poderia significar; e as redes de solidariedade tecidas por essas mulheres, que muitas vezes extrapolavam os limites urbanos, são algumas das questões trabalhadas pela autora.
Os desdobramentos dessas questões são muitos, a maioria dos quais analisada por Camillia Cowling na última parte de seu livro. As concepções que as mulheres negras desenvolveram sobre liberdade e feminilidade com base na maternidade merecem especial atenção, pois elas permitem, em última instância, redimensionar os conceitos de escravidão e, sobretudo, de liberdade nos anos finais de vigência da instituição escravista das Américas e nos primeiros anos do Pós-abolição. Se é verdade que, assim como aconteceu como Josepha Gonçalves e Ramona Oliva, a luta jurídica pela liberdade de seus filhos não teve o desfecho desejado e eles continuaram na condição de cativeiro, os caminhos e lutas trilhados por elas não só criaram outras formas de resistência à escravidão – que por vezes, tiveram outros desfechos -, como ajudaram a pautar práticas de liberdade e de atuação política que ganhariam novos contornos na luta pela cidadania plena alguns anos depois.
O tratamento dado pela autora sobre a luta de mulheres/mães pela liberdade de seus filhos e a forma por meio da qual ela enquadra tais questões naquilo que se convém chamar de “contexto mais amplo” faz que Conceiving Freedom possa ser tomado como uma importante contribuição nos estudos da escravidão urbana, não só por sua perspectiva comparada, mas também por trabalhar num território de fronteira da historiografia clássica, demonstrando que os limites entre o mundo escravista e o mundo da cidadania não podem ser balizados apenas pela declaração formal da abolição da escravidão. A luta começou antes dessas datas oficiais e continuou nos anos seguintes, sobre isso não restam dúvidas. Todavia, o protagonismo desse movimento não se restringiu às ações dos homens que lutaram pela abolição. Ao invés de fechar uma temática, o trabalho de Cowling indica novos caminhos num campo que poderá trazer contribuições promissoras para os estudos da escravidão e da liberdade nas Américas.
Por fim, vale ressaltar que num momento político como o atual, em que tanto se fala, se discute e se experimenta o empoderamento de mulheres negras, o livro de Camillia Cowling é igualmente bem-vindo. Não só por iluminar trajetórias que foram silenciadas ou tratadas como simples anedotas (demonstrando que a luta não é de hoje), mas igualmente por permitir repensar os moldes e os modelos por meio dos quais as histórias e as memórias da escravidão e da luta pela liberdade são construídas.
Referências
TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011. [ Links ]
Ynaê Lopes dos Santos – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Adjunta de História da Escola Superior de Ciências Sociais CPDOC-FGV. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: ynae.santos@fgv.br.
Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado – NICOLAZZI (RBH)
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 484p.Resenha de: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.
Tanto já se escreveu sobre Gilberto Freyre, e particularmente sobre Casa-grande & senzala, que está cada vez mais difícil se dizer alguma coisa nova e significativa sobre o autor ou sobre o livro de 1933. O risco de “chover no molhado”, como o próprio Nicolazzi diz, é bastante grande. Entre os estudiosos anteriores de Casa-grande, Nicolazzi está mais próximo de Ricardo Benzaquen, cujo trabalho reconhece como inspirador, mas oferece uma visão propriamente sua da obra de Freyre.
Um estilo de História é uma versão ligeiramente modificada de uma tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2008, que recebeu o prêmio Manoel Luiz Salgado Guimarães da Anpuh em 2010. Apesar de Nicolazzi não ter aproveitado esse lapso de 7 anos entre a defesa e a publicação de 2015 para fazer referência aos estudos publicados nesse intervalo, dá uma contribuição original para a montanha do que se pode chamar de “Estudos Freyreanos”, examinando Casa-grande de vários ângulos. Como o próprio autor confessa logo no início, seu livro é “um conjunto de ensaios travestido em tese universitária”, o que é muito apropriado no caso do estudo de um autor que adorava o gênero ensaístico e descrevia até mesmo sua volumosa obra de novecentas e tantas páginas, Ordem e Progresso, como um “ensaio”. O que mantém Um estilo de História mais ou menos coeso é o argumento do autor de que Freyre escolheu um estilo de representação do passado, um modo de proximidade, que diferia muito das representações anteriores empregadas por antigas histórias do Brasil; e que esse estilo pode ter mesmo sido adotado por Freyre em resposta direta a Os sertões.
Para justificar sua tese sobre representações, Nicolazzi adota o método de leitura atenta (close reading) dos textos para chegar a conclusões sobre o estilo, as estratégias literárias e os modos de persuasão tanto de Euclides da Cunha quanto de Gilberto Freyre. Seus sete ensaios-capítulos são organizados em três seções. A primeira se inicia com um relato da recepção de Casa-grande no Brasil (em outras palavras, representações de uma representação), e daí se volta para os dez prefácios do autor, nos quais ele se defendia contra más representações de sua obra, ou deturpações, e conversava, por assim dizer, com seus resenhistas. A segunda seção, que compreende mais dois ensaios, deixa Freyre de lado para se concentrar em Euclides da Cunha. A terceira seção retorna a Freyre, com três capítulos dedicados respectivamente a viajantes, memórias e ao próprio gênero do ensaio. Nicolazzi considera Freyre um viajante que privilegiava o testemunho de outros viajantes e oferecia aos seus leitores a sensação de estarem viajando ou no espaço ou no tempo. Também enfatiza a importância das memórias em Casa-grande: as do próprio autor, as de sua família e as dos indivíduos que entrevistou, o mais famoso dos quais foi o ex-escravo Luiz Mulatinho. O livro termina com um ensaio sobre o ensaio, refletindo sobre ensaios históricos e sobre a tradição brasileira do ensaísmo, a fim de buscar a singularidade da contribuição de Freyre para essa tradição.
Um estilo de História é fruto de uma leitura vasta e variada, que inclui não somente a historiografia, de Heródoto a Hayden White, mas também filosofia, literatura, psicologia, sociologia e antropologia, os campos nos quais o próprio Freyre estava muito à vontade. Nas páginas de Nicolazzi, Paul Ricoeur está ao lado de Wolf Lepenies, Roland Barthes ao lado de Clifford Geertz, Oliver Sacks de Quentin Skinner, François Hartog de Walter Benjamin, Jean Starobinski de Frank Ankersmit, Michael Baxandall de Gérard Genette, além de outros. Enfim, tantos nomes, tantas luzes a iluminar um texto.
Assim como a justaposição do livro de Euclides com o de Sarmiento, Civilização e barbárie, se tornou um tópos, o mesmo aconteceu com a comparação e o contraste entre Os sertões e Casa-grande, que novamente coloca a representação do “outro” versus a representação de “nós” em pauta. No entanto, Nicolazzi desenvolve esse contraste de modo interessante e valioso, focalizando pontos de vista. Segundo ele, o contraste essencial entre Freyre e Euclides – cujo trabalho Freyre estudou cuidadosamente e sobre o qual escreveu mais de uma vez – é que Euclides exemplifica o que Claude Lévi-Strauss chamou de “olhar distante”, observando e representando outra cultura como se estivesse pairando alto no ar; uma cultura que ele via como oposta à sua própria, ou seja, uma representando a civilização, e a outra, a barbárie. Sua estratégia literária era a do naturalista, registrando detalhes com o espírito de um cientista, uma espécie de Émile Zola do sertão. Em contraste, Freyre, como um antropólogo no campo, tentava chegar perto dos escravos e ainda mais perto dos senhores (e das senhoras) de engenho sobre os quais escreveu. Como Michelet – e diferentemente de Euclides – Freyre tentava evocar o passado, suprimir a distância e identificar-se com os mortos e com tudo o que já se foi. Ele pode até ser criticado – e o foi por Ricardo Benzaquen – por estar “correndo o risco de uma proximidade excessiva”.
Há muito a ser dito em favor desse contraste. Afinal de contas, Freyre disse em certa ocasião que “o passado nunca foi, o passado continua”. Sua “história íntima” e sua “história sensorial” tentavam exatamente tornar os leitores capazes de ver, ouvir, cheirar, sentir o gosto e até mesmo tocar o passado. O elemento autobiográfico em Casa-grande, enfatizado ainda mais em 1937 em seu Nordeste, é efetivamente central, e a confusão entre a vida do autor, de sua família e de sua região natal (ilustrada pelo uso frequente que Freyre faz da primeira pessoa do plural) é, na verdade, reminiscente de Michelet.
No entanto, a oposição entre distância e proximidade precisa ser qualificada, se não mesmo questionada – do mesmo modo como o próprio Freyre gostava de primeiro estabelecer, para depois solapar as categorias opostas de sobrados e mocambos, ordem e progresso, e assim por diante. Pois Freyre não era adepto de polaridades rígidas – que não davam conta dos paradoxos, contradições e complexidades da realidade humana – e se apelava para oposições binárias, sua estratégia era sempre enfraquecê-las por meio de mediações entre opostos, para o que o uso de termos recorrentes como quase-, para-, semi- se adaptava muito bem.
Assim, no que diz respeito à proximidade que Freyre pretenderia ter de seu objeto de estudo, deve-se acrescentar que ele também era capaz de ver seu próprio país com olhos estrangeiros. Seu emprego recorrente de textos escritos por viajantes como evidência não somente dá aos leitores a sensação de “estarem lá”, como Nicolazzi sugere, mas também os provê com distanciamento, já que os viajantes são frequentemente estrangeiros que podem ver mais facilmente o que nativos não veem. De qualquer modo, em algumas de suas passagens menos memoráveis, Freyre escorrega de seu estilo usualmente vívido e subjetivo e cai, por assim dizer, numa linguagem acadêmica, objetiva, escrevendo no capítulo 1, por exemplo, que “por mais que Gregory insista em negar ao clima tropical a tendência para produzir per se sobre o europeu do Norte efeitos de degeneração … grande é a massa de evidências que parecem favorecer o ponto de vista contrário”. Aqui, como em outros pontos da obra, a proximidade e a subjetividade do estudo da sociedade patriarcal dão lugar ao distanciamento e à objetividade. Pode-se, pois, descrever Casa-grande muito apropriadamente como um livro híbrido, não somente no sentido de combinar técnicas científicas e de ficção, como Nicolazzi aponta, mas também por se mover entre o fora e o dentro, entre distância e proximidade.
Como uma boa tese de doutorado, Um estilo de História é extremamente minuciosa e, em certos aspectos, ainda “cheira” a uma tese no sentido de que o autor não parece saber bem quando parar, repetindo argumentos e mesmo citações (uma delas três vezes) a fim de fortalecer seu argumento. Os leitores, ou ao menos alguns deles, podem ter às vezes a sensação de que Nicolazzi está usando uma marreta para abrir uma noz. Como muitas teses brasileiras, Um estilo de História está também sobrecarregada de reflexões sobre método e teoria, assim como apoiada em grande bagagem intelectual, desconsiderando, às vezes, o princípio conhecido como “o rifle de Chekhov”. Chekhov certa vez aconselhou os escritores a “removerem tudo que não tem relevância para a estória. Se você diz no capítulo primeiro que tem um rifle pendurado na parede, no segundo ou no terceiro esse rifle tem necessariamente de ser usado para atirar em alguma coisa. Se não for para ser disparado, então o rifle não deveria estar pendurado lá”. Do mesmo modo, se a Metahistory de Hayden White é discutida na introdução, como foi o caso, os leitores seguramente têm o direito de esperar que o livro de White seja usado mais tarde, discutindo, por exemplo, se Casa-grande & senzala foi “encenada” como uma comédia ou romance. Essas expectativas, no entanto, são frustradas.
Outra questão que importa levantar diz respeito ao uso acrítico que Nicolazzi fez, algumas vezes, dos escritos autobiográficos de Freyre, especialmente de seu “diário da juventude”. Esse texto ocupa lugar importante no livro para reforçar seu argumento sobre a legitimidade que as experiências vividas por Freyre dão ao estilo de história que escolheu escrever. Há evidências de que esse diário “da juventude”, publicado em 1975, não foi efetivamente redigido entre 1915 e 1930, tal como o Freyre maduro – tão envolvido em self-fashioning – quis fazer crer. Ele era, na verdade, exímio na arte da autoapresentação, produzindo com esmero a imagem que os leitores deveriam ter dele. Nicolazzi reconhece isso logo na primeira parte de seu livro. No entanto, várias vezes utilizará esse “diário”, ou ensaio-memória, como se ele representasse fielmente o que o autor fizera ou pensara quando ainda estava para escrever Casa-grande. É de se crer que esses deslizes se devam ao fato de o livro incluir textos escritos em momentos diversos, e que falhas ou descuidos como esses compreensivelmente escaparam na revisão.
Não obstante esses pequenos senões, Um estilo de História é livro inovador e perspicaz que elucida, inspira e instiga a curiosidade do leitor. É também valioso por tratar de ideias de proximidade e distância nos moldes de alguns estudos recentes e refinados sobre “distância histórica”, em especial os desenvolvidos por Mark Phillips e alguns de seus colegas. Particularmente interessante é a diferenciação que Phillips faz entre distância e distanciamento, o primeiro uma postura espontânea entre os historiadores, o segundo uma estratégia proposital usada por alguns deles para trazer o passado para perto do leitor, como num close-up, quando assim acham importante, ou distanciar o passado para obter outros efeitos. Enfim, a retórica da proximidade e da distância como uma ferramenta que alguns historiadores usam conscientemente, como um romancista, para causar determinados efeitos em seus leitores, é uma linha de estudos fecunda à qual o livro de Nicolazzi pode ser associado. E, nesse sentido, Um estilo de História tem o grande mérito de potencialmente acenar para um novo e promissor fio a ser seguido pelos estudiosos de historiografia e de Gilberto Freyre.
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke – Research Associate, Centre of Latin American Studies, University of Cambridge. Cambridge, UK. E-mail: mlp20@cam.ac.uk.
Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RBH)
SCOTT, Rebecca J. Hébrard, Jean M. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Ed. Unicamp, 2014. 296p. Tradução de Vera Joscelyne. Resenha de: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.
Doze milhões de pessoas foram transportadas involuntariamente do continente africano para as Américas entre os séculos XV e XIX para serem vendidas como escravas. Em Provas de liberdade, Rebecca Scott e Jean Hébrard reconstituíram a trajetória de uma delas, Rosalie, de nação Poulard, e seguiram seus descendentes por cinco gerações historiando grandes temas da era contemporânea como a abolição da escravidão de africanos, a cidadania e as lutas contra o racismo.
Rebecca Scott, professora de História da América Latina e de Direito da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, é conhecida do público brasileiro por seu livro Emancipação escrava em Cuba, cuja abordagem da desintegração da escravidão na colônia espanhola deu poder explicativo para a mobilização de escravos e libertos e teve um impacto significativo na historiografia brasileira da escravidão. Jean Hébrard é um dos diretores do Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain da École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França, e professor visitante de História da América Latina e Caribe na Universidade de Michigan. O livro, publicado em inglês em 2012, rendeu aos autores dois prêmios da American Historical Association concedidos a livros sobre a História das Américas e sobre História Atlântica, em 2012, e um da Sociedade Americana de Estudos Franceses e do Instituto Francês de Washington para livros sobre temas comuns à França e às Américas, em 2013. Como Papeles de libertad, foi publicado em Cuba pelas Ediciones Unión e na Colômbia pelo Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH). A edição brasileira, da Editora da Unicamp, contou com tradução de Vera Joscelyne e revisão técnica por equipe coordenada pelos autores e incluiu ilustrações, um mapa e um índice apenas onomástico – quando a edição original tinha índice remissivo onomástico e temático.
Provas de liberdade, como todo bom livro, tem diferentes camadas de entendimento e apreciação. Historiadores de qualquer área vão reconhecer a extensão da pesquisa e a originalidade da proposta metodológica; os especialistas na área de escravidão vão observar as contribuições historiográficas, e o público não especialista terá uma leitura prazerosa, emocionante e surpreendente.
Como relatam os autores, a pesquisa começou com a descoberta de uma carta no Arquivo Nacional de Cuba enviada da Bélgica por Edouard Tinchant ao general cubano Máximo Gomez no fim do século XIX. Nela, Tinchant declarava simpatia pela causa da independência de Cuba e associava a sua trajetória e a de sua família às lutas por cidadania e contra o racismo. Scott e Hébrard partiram, então, a verificar e reconstituir a história dessas pessoas que “personifica[vam] uma conexão entre três das maiores lutas antirracistas do ‘longo século XIX’: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos, e a Guerra Cubana pela independência” (p.17). O método, que os autores batizaram de “micro-história em movimento”, consistiu em seguir o rastro documental da família de Edouard Tinchant, duas gerações para trás e duas para a frente, por meio de documentos públicos e privados de todo tipo, garimpados em arquivos de oito países em três continentes e, na falta deles, preencher os vazios com dados que se associavam às trajetórias seguidas tanto por proximidade quanto por probabilidade. Sabendo, por exemplo, pela certidão de nascimento da mãe de Edouard, Elisabeth, que a mãe dela era Marie Françoise, conhecida por Rosalie, negra de nação Poulard, Scott e Hébrard puderam situar seu local de origem, a colônia francesa do Senegal, e o período aproximado de sua venda para o tráfico atlântico entre a Senegâmbia e Santo Domingo, o final da década de 1780. A falta de registros pessoais da primeira fase da vida da mulher que mais tarde se chamaria Rosalie foi então contornada pelos autores com o recurso a relatos contemporâneos de europeus, a documentos sobre a escravidão na colônia francesa do Senegal e à literatura secundária sobre a África Ocidental, o Islã na África e o tráfico atlântico do final do século XVIII.
No início da década de 1980, quando a área de estudos de escravidão começava a ganhar contornos e os especialistas ainda cabiam em um auditório, esboçava-se uma transição entre abordagens: de um lado, a do sistema de organização do trabalho e exploração dos trabalhadores, que dialogava com as teorias econômicas, e de outro, a das relações entre sujeitos históricos com autodeterminação, que abria o leque de influências disciplinares para incluir a sociologia, a antropologia e a linguística. Nessa fase, os historiadores passaram a observar mais de perto os mecanismos de reprodução do sistema, seus “segredos internos”, e com isso o comportamento dos grupos sociais, seus interesses e conflitos. O reconhecimento do protagonismo dos sujeitos históricos das camadas subalternas abriu espaço para que se multiplicassem as pesquisas em que a escala de análise dos diversos temas – trabalho, família, resistência, identidade étnica, práticas mágicas e religiosidade, entre outros – fosse a do indivíduo.
Depois de três décadas de grande florescimento e efervescência, a abordagem centrada nas pessoas escravizadas se vê às voltas com críticas acerca da representatividade dos sujeitos escolhidos e também da relevância dos seus achados para o entendimento dos grandes processos da História. Por isso, Provas de liberdade é ao mesmo tempo um libelo em defesa do jogo de escalas e uma demonstração de como proceder para incorporar o protagonismo dos sujeitos em uma análise dos processos históricos.
Os autores não trataram seus personagens como típicos ou excepcionais. A cada momento, na geração de Rosalie, de sua filha Elisabeth, de seu neto Edouard Tichant ou dos sobrinhos e sobrinhos-netos dele, Scott e Hébrard buscaram retratar momentos difíceis de tomada de decisão, de escolhas entre diferentes caminhos possíveis. Cada capítulo acaba com alguém embarcando rumo a uma nova fase na vida, sempre sob pressão ou ameaça. Foi assim quando Rosalie, já liberta, mas sem documento oficializado de sua liberdade, teve que fugir de Saint Domingue para Cuba com a filha Elisabeth em 1803, ou ainda quando a africana embarcou Elisabeth com sua madrinha para New Orleans, na Louisiana, em 1809 e voltou para o Haiti, agora independente. Foi ainda o caso da escolha feita por Elisabeth e seu marido, Jacques Tinchant, ele também filho de emigrantes haitianos de origem africana, de partir com quatro filhos para a França, país onde teriam direitos civis que não eram reconhecidos às pessoas livres de cor na Louisiana escravista da década de 1840. Foi igualmente a escolha de Edouard, nascido na França em 1841, de se juntar a dois de seus irmãos que trabalhavam em manufaturas de charutos em New Orleans. Na Louisiana, Edouard se engajou num batalhão de pessoas de cor durante a Guerra Civil, do lado da União, e depois entrou para a política, sendo eleito deputado da Assembleia Constituinte da Louisiana durante a Reconstrução, quando defendeu a igualdade de direitos civis, políticos e públicos para todos os cidadãos. Em cada trajetória e em cada momento vemos sujeitos fazendo escolhas em condições adversas, reagindo às limitações impostas pela conjuntura, protagonizando eventos e processos históricos como as transformações da escravidão e sua abolição, o pós-emancipação, ou mesmo a resistência ao nazismo na Segunda Guerra Mundial, história que antes víamos apenas de longe.
O diferencial metodológico do livro está na aproximação com o campo do Direito. Em primeiro lugar, os autores lançaram um novo olhar para os registros individuais. Sob a lupa do historiador cuidadoso, os documentos revelaram histórias complexas da aquisição e exercício de direitos (à propriedade, à liberdade, à nacionalidade, à cidadania), desnaturalizando-os e inscrevendo-os num campo de disputas. Assim, o direito à propriedade sobre escravos pode vir de uma apropriação ilegítima, posteriormente formalizada, como a que aconteceu entre milhares de ex-escravos de Saint Domingue que migraram para Cuba e depois para a Louisiana, onde a escravidão persistia: acabaram reescravizados. Em segundo lugar, Scott e Hébrard convidam os leitores a perceber como os protagonistas conferiam importância aos documentos escritos, mesmo que às vezes não pudessem ler. Essa consciência levou Rosalie a fazer questão de uma carta de alforria mesmo já sendo emancipada, pois nos territórios para onde iria ainda havia escravidão e ela sabia que precisaria provar sua condição. Nisso, percebemos que o entendimento sobre o significado e mesmo o conteúdo dos documentos sempre esteve em disputa entre as diversas forças sociais (incluindo as autoridades), e que as pessoas frequentemente se moviam na incerteza; não havia garantia plena de que uma pessoa livre de cor não fosse reescravizada, pois a fronteira entre escravidão e liberdade era bem mais porosa e cinzenta do que antes imaginávamos. Por último, é preciso ressaltar novamente a importância da abordagem simultânea em diferentes escalas, pois, ao narrar a história pelo fio condutor dos embates dessa família pelo reconhecimento de direitos – à liberdade, à respeitabilidade, à dignidade e igualdade perante a lei – os autores fizeram uma história social centrada na luta por direitos, sobretudo direitos humanos, no período entre a Revolução Francesa e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o protagonismo dos negros, mulheres e povos submetidos à colonização forçou sua ressignificação e ampliação até serem reconhecidos como universais.
Em suma, Provas de liberdade é uma obra acadêmica rigorosa e inovadora que os leitores terão o prazer de ler como um romance.
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. beatriz.mamigonian@ufsc.br.
Experimentalismo no Ensino Secundário nos anos 1950 e 1960 / Cadernos de História da Educação / 2016
A partir dos anos 1950, o ensino secundário brasileiro conheceu diversas iniciativas que concorreram para a sua renovação. Um foco de reflexão pedagógica colocou-se no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), criado em 1955, a partir da parceria estabelecida por Anísio Teixeira, diretor do INEP, e a UNESCO. Embora de forma não prioritária, no INEP / CBPE o ensino secundário foi objeto de pesquisas tanto em nível nacional como nos seus centros regionais de pesquisa. Nesse órgão educacional ganhou destaque as análises de Jayme Abreu, técnico muito próximo a Anísio Teixeira, que coordenou a Campanha de Inquéritos e Levantamentos do Ensino Médio e Elementar e atuou no INEP até a década de 1960. Sobre o ensino secundário, realizou pesquisas, representou o Brasil em congressos internacionais e publicou diversos trabalhos em forma de artigos científicos e de livro. De outra parte, em 1953, a Diretoria do Ensino Secundário do MEC criou a Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES) que tinha como intuito qualificar e certificar os professores leigos nesse nível de ensino por meio de cursos realizados nas férias. Para incrementar a sua ação em nível nacional, quatro anos depois, a CADES instituiu a revista “Escola Secundária”, tendo uma linha editorial voltada para as questões didáticas, que publicava relatos de experiências de diferentes disciplinas dos cursos ginasial e colegial (DALLABRIDA e SOUZA, 2014).
A renovação mais contundente nesse nível de escolarização foi colocada em marcha pela Diretoria do Ensino Secundário (DESe) do MEC na gestão de Gildásio Amado. Em meados de 1958, a DESE viabilizou a oficialização das “Instruções sobre a natureza e a organização das classes experimentais”, que autorizavam, a partir do ano letivo seguinte, a instalação de classes experimentais no ensino secundário, preferencialmente no curso ginasial. Essa legislação prescrevia o desenvolvimento das aptidões individuais dos alunos, que se efetivava na limitação de até trinta alunos por sala de aula e na possibilidade de os discentes optarem por disciplinas e atividades educativas. E também estipulava exigência em relação ao corpo docente, que deveria ter reuniões regulares, sendo agrupado por classes, particularmente para viabilizar a integração de “disciplinas-saber”. Desta forma, a partir de 1959, começaram a ser implantadas, em um punhado de colégios – especialmente no curso ginasial, o primeiro ciclo do ensino secundário – as classes secundárias experimentais, que construíram uma marcante renovação no ensino secundário brasileiro. Em 1962, quando fechou o ciclo de quatro anos do curso ginasial, havia no Brasil 46 estabelecimentos de ensino secundário que tinham feito ensaios renovadores, sendo que a maioria se localizava nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro (Cunha; Abreu, 1963).
Nesse pequeno conjunto de experiências educacionais renovadoras, a classe experimental secundária que ganhou maior relevo foi aquela realizada no Instituto Estadual Narciso Pieroni do município paulista de Socorro, coordenada pelas professoras Lygia Furquim Sim, Olga Bechara e Maria Nilce Mascelani. As chamadas Classes de Socorro chamaram a atenção do Secretário Estadual de Educação do Estado de São Paulo, Luciano de Carvalho, inspirando um novo projeto educacional: os ginásios vocacionais. Para tanto, por meio da Lei 6.052, de 3 de fevereiro de 1961, foi criado o Serviço de Orientação Vocacional (SEV), que estruturou o ensino industrial no Estado de São Paulo. No início desse ano, Maria Nilde Mascelani assumiu a coordenação do SEV e iniciou a implantação dos ginásios vocacionais, que tiveram como referência as classes secundárias experimentais, mas intensificaram o engajamento político. A experiência dos ginásios vocacionais desenvolveu-se na década de 1960, sendo terminada, de forma autoritária, após o endurecimento do regime militar colocado em marcha pelo AI-5 (Chiozzini, 2014). Desta forma, nos anos 1950 e 1960, as classes secundárias experimentais e os ginásios vocacionais se converteram nos principais ensaios escolares de renovação do ensino secundário.
Nesta direção, o presente dossiê procura refletir sobre experiências educativas no ensino secundário durante as décadas de 1950 e 1960 que tiveram como clave o experimentalismo pedagógico no Brasil e no Uruguai. O texto “’Nueva Educación’ y enseñanza secundaria en el Uruguay (1939-1963)”, do historiador Antonio Romano, reflete sobre transformações significativas no ensino secundário uruguaio implementadas a partir da Segunda Guerra Mundial, especialmente a partir da apropriação das classes nouvelles, dando destaque para o papel das revistas na circulação de ideias pedagógicas. De outra parte, esse trabalho reflete sobre o Plano de Estudos de 1963, proposto pelo Diretor Geral do Ensino Secundário, professor Alberto Rodriguez, que introduziu uma nova estrutura no ensino secundário, prevendo cinco anos de formação geral e integral e um ano de caráter pré-profissional. A partir dessa nova configuração escolar, foram implantados, na capital e no interior do nosso país vizinho, os chamados “liceus de ensaio”, marcados pelo experimentalismo pedagógico. O artigo de Antonio Romano abre caminho para um diálogo historiográfico sobre o ensino secundário entre os países do Mercosul e / ou da América Latina.
Os textos sobre a renovação do ensino secundário no nosso país obedecem, grosso modo, um critério cronológico. Assim, o trabalho de Letícia Vieira e Norberto Dallabrida colocam o foco sobre o pioneirismo de Luís Contier na apropriação das classes nouvelles no Brasil, que começou a quebrar o rígido ensino secundário formatado pela Reforma Capanema que ainda vigorava após o Estado Novo. Aborda o estágio do professor Contier no Centre International d`Études Pedagogiques (CIEP), no início dos anos 1950, e os primeiros usos que ele realizou das classes nouvelles francesas no Instituto de Educação Alberto Conte, localizado em São Paulo. De outra parte, explora o processo da oficialização das classes secundárias experimentais pelo Ministério da Educação, em meados de 1958, bem como a implantação das mesmas a partir do início do ano seguinte. O artigo de Sérgio Roberto Chaves Júnior lê as chamadas classes integrais – nome dado às classes secundárias experimentais – no Colégio Estadual do Paraná, que se apropriaram especialmente do Método por Unidades Didáticas desenvolvido no Colégio de Nova Friburgo. Essa experiência renovadora é constatada em vários aspectos, entre os quais são destacados a educação integral, a integração curricular – particularmente das disciplinas História e Geografia – e as atividades extraclasse como o clubismo.
No texto “Educação renovada no Estado de São Paulo: a experiência pioneira do ensino continuado e as práticas escolares do Experimental da Lapa (1961-1971)”, Carlos Eduardo Bizzocchi analisa a cultura escolar de corte escolanovista praticada em uma escola que ficou conhecida como Grupo Escolar – Ginásio Experimental Dr. Edmundo de Carvalho, popularmente chamado Experimental da Lapa. Esse trabalho histórico foi realizado sobremaneira a partir de fontes estimulantes como os relatórios das unidades da escola e os chamados “cadernos” – onze publicações que relatam e avaliam a prática educativa no Experimental da Lapa. Maria Odete Pereira Mundim, Carlos Henrique de Carvalho e Décio Gatti Júnior trazem à baila os encaminhamentos de criação e o funcionamento da Escola Vocacional de Aprendizagem Industrial de Uberlândia, localizada no Estado de Minas Gerais, especialmente na década de 1960. É importante frisar que esse colégio técnico foi pautado, a partir de 1962, pelas prescrições da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, que fixou as Diretrizes e Base da Educação Nacional, unificando formalmente os cursos secundário e técnico, criando o ensino médio e permitindo a flexibilização curricular por meio do oferecimento de “disciplinas-saber” escolhidas por cada escola.
Este dossiê é coroado com um trabalho que procura cotejar as relações entre as classes secundárias experimentais e os ginásios vocacionais assinado por Daniel Ferraz Chiozzini e Sandra Machado Lunardi Marques. As aproximações entre esses dois ensaios educativos de corte inovador confluem para uma discussão sobre o experimentalismo e para a educadora Maria Nilde Mascelani, que atuou na Classes de Socorro e coordenou o projeto dos ginásios vocacionas. No entanto, esse texto produzido a quatro mãos também explora, de forma instigante, as diferenças entre as classes experimentais dos anos 1950 e os ginásios vocacionais da década de 1960. Enfim, esse exercício comparativo é muito salutar e pode estimular novas investigações em torno da renovação do ensino secundário.
Referências
CHIOZZINI, Daniel Ferraz. Memória e História da Inovação Educacional no Brasil: o caso dos Ginásios Vocacionais (1961 / 1970). Curitiba: Appris, 2014.
CUNHA, Nádia; ABREU, Jayme. Classes Secundárias Experimentais: balanço de uma experiência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro. v. XL, n. 91, p.90-151, 1963.
DALLABRIDA, Norberto; SOUZA, Rosa Fátima de. “O todo-poderoso império do meio”: transformações no ensino secundário entre a Reforma Francisco Campos e a primeira LDBEN (à guisa de apresentação). In: Entre o ginásio de elite e o colégio popular: estudos sobre o ensino secundário no Brasil (1931-1961). Uberlândia, MG: EDUFU, 2014. p.11-30.
Norberto Dallabrida – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágios de pós-doutorado concluídos na Université Rene Descartes – Paris V e na Universidad de Alcalá de Henares (Espanha). Professor de História da Educação e pesquisador da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: norbertodallabrida@hotmail.com
Daniel Ferraz Chiozzini – Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, com estágio de pós-doutorado concluído na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: danielchiozzini@yahoo.com.br
DALLABRIDA, Norberto; CHIOZZINI, Daniel Ferraz. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 15, n.2, maio / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
História do ensino de geometria e de desenho / HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática / 2016
É com enorme prazer e satisfação que aceitei o convite para ser a editora responsável pelo terceiro número da HISTEMAT, com a singularidade de contemplar artigos sob uma mesma temática: História do ensino de geometria e de desenho. Trata-se do primeiro número temático da HISTEMAT, que reuniu investigações com foco em dois saberes escolares: o Desenho e a Geometria. Os artigos analisam uma multiplicidade de aspectos, como as rivalidades entre as propostas para o ensino de desenho e de geometria, as conexões com as artes, ciências, jogos, tecnologias, a participação na formação de professores, assim como suas especificidades para os diferentes níveis de escolaridade.
O primeiro artigo, de Glaucia Trinchão, retoma a sua tese de doutorado “O DESENHO como objeto de ensino: História de uma Disciplina a partir dos Livros Didáticos Luso-Brasileiros Oitocentista” de 2008, referência primeira dos estudos sobre a história do ensino de Desenho no Brasil e amplia sua narrativa com estudos recentes. Na sequência, o pesquisador francês e autoridade internacional nos estudos sobre história do ensino de Desenho e da Geometria, Renaud D‘Enfert, nos apresenta a disputa pelo desenho geométrico na escola primária e secundária francesa, do final do século XIX e início do século XX.
Três artigos discutem o Desenho em diferentes estados brasileiros. O processo de escolarização da disciplina Desenho da Escola Normal de Belo Horizonte é minuciosamente examinado por Ismael Neiva e Thais Fonseca, revelando as confrontações entre o desenho geométrico e o desenho artístico nos programas de 1906 a 1946. O artigo de Jorge Gaspar e Lucia Villela aborda o ensino de Desenho nos programas do Distrito Federal no final do século XIX e início do século XX analisando as mudanças na obra Perspectiva de Observação. E, completando a tríade, Thaline Kuhn e Cláudia Flores analisam o ensino de Desenho dos programas dos grupos escolares catarinenses realçando a educação dos sentidos e da observação.
Finalizando os artigos que tiveram como objeto de investigação o Desenho, o parecer de Rui Barbosa e as revistas pedagógicas cariocas e paulistas são tomados como fontes por Marcos Guimarães e Wagner Valente para concluir que o saber a ensinar e para ensinar Desenho defendidos por Barbosa são, em certa medida, reapresentados nos discursos veiculados pelos periódicos pedagógicos.
Este número da HISTEMAT apresenta, ainda, para os cinco próximos artigos, o ensino de geometria como objeto de investigação e levam em consideração resultados de dissertações de mestrado defendidas entre 2014 e 2015, no âmbito do projeto “A constituição dos saberes elementares matemáticos: A aritmética, a Geometria e o Desenho no curso primário em perspectiva histórico-comparativa, 1890-1970” desenvolvido pelo GHEMAT – Grupo de Pesquisa em História da Educação Matemática.
Claudia Frizzarini e Célia Leme analisam a matéria Formas presente nos programas do estado de São Paulo de 1894, 1925 e 1934 e estabelecem um diálogo com a mesma rubrica escolar em tempos atuais. Ivanete Santos indaga sobre a diferença entre Geometria e saberes geométricos nos estudos de Sergipe e dos demais participantes do projeto supracitado. Os saberes geométricos nos programas do primeiro ano primário da região sudeste nas décadas de 1930 a 1950 são objeto de estudo de Juliana Fernandes e Rosimeire Borges, apontando que todos os programas trouxeram instruções para que os alunos pudessem relacionar os saberes geométricos ao seu cotidiano. Márcio D’Esquivel e Claudinei Sant’Ana analisam mudanças e permanências dos saberes geométricos para o ensino primário na Bahia entre 1835 a 1925 evidenciando uma progressiva definição de papeis distintos para o Desenho e a Geometria. Referências e práticas da professora Alda Lodi são examinadas por Silvia Barros e Cristina Oliveira destacando que a Geometria ensinada às normalistas passava pelo estudo dos objetos que as rodeavam, propondo situações simples e corriqueiras da vida cotidiana.
Vicente Garnica apresenta projeto de pesquisa do GHOEM – Grupo de História Oral e Educação Matemática, cujo objetivo central é a tradução de livros antigos para o português, discutindo duas obras: de Lacroix e de Lewis Carroll no que diz respeito à História do ensino de Geometria. Os pesquisadores portugueses Anabela Teixeira e Jorge Silva apresentam jogos antigos que envolvem conceitos geométricos examinando suas potencialidades pedagógicas. Encerra o número, o artigo de Vincenzo Bongiovanni que nos traz exemplos e relatos de experiência vivenciada com a chegada da tecnologia na disciplina de Geometria ministrada em cursos de formação de professores em Educação Matemática.
Como já dito, o presente número aglutina resultados de pesquisas relevantes para o processo de consolidação da área específica de história da educação matemática. Em particular, é surpreendente a quantidade e qualidade de estudos que tomam como centro da investigação os saberes escolares, propriamente os saberes de desenho e de geometria, um campo promissor para a Educação Matemática, compreender os processos de organização e transformação desses saberes ao longo do tempo. É preciso ainda ressaltar e valorizar o impulso que se identifica nas pesquisas desenvolvidas de forma coletiva em projetos de âmbito nacional e internacional, como parte significativa dos artigos publicados neste número.
Sucesso à HISTEMAT e vamos em frente!
Uma excelente leitura!
Maria Célia Leme da Silva
SILVA, Maria Célia Leme da. Apresentação. HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática. São Paulo, v.2, n.2, 2016. Acessar publicação original [DR]
Catolicismo e Política nos séculos XX e XXI / Revista Brasileira de História das Religiões / 2016
Este dossiê é fruto dos esforços reunidos na Rede de Pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo (RHC), criada por Renato Amado Peixoto, Gizele Zanotto, Cândido Rodrigues e Rodrigo Coppe Caldeira em meados de 2015. Procuramos juntar aqui vários historiadores ligados à RHC que apresentam o resultado de suas pesquisas, levadas a cabo em instituições de diferentes regiões do Brasil, do Chile, da Argentina e da França.
Esta amostra revela não apenas uma riqueza de objetos de estudo, mas também de diferentes aproximações históricas no fazer teórico-metodológico dos artigos. Noutras palavras, pensamos que o presente dossiê traz contribuições interessantes ao campo de estudos do catolicismo no século XX ao mesmo tempo em que se constitui em mais um passo importante rumo à consolidação da RHC, na medida em que se integra ao esforço de produção das coletâneas “Catolicismos e sociabilidade intelectual no Brasil e na Argentina”, lançado em 2014 e “Manifestações do pensamento católico na América do Sul”, de 2015.
Os variados objetos de pesquisa aqui presentes, estudados em temporalidades e espacialidades históricas diversas, expressam a atualidade e a proficuidade das abordagens que se voltam para pensar as relações entre as formas de manifestação do catolicismo com a política e o político. Da leitura do conjunto dos textos o leitor poderá dialogar com temas, objetivos, fontes e abordagens as mais singulares, mas que guardam entre si os liames do pensar essa interface nos séculos XX e XXI.
Poder-se-á notar que as preocupações dos diferentes autores e objetos aqui tratados se voltam, em termos gerais, a pensar as relações entre a História das Religiões e a História Política, importante e controverso problema que interessa não apenas aos seus pesquisadores, mas também a todo o campo da História, uma vez que nos permite aventar aproximações, conceitos e métodos para a compreensão e explicação do tempo presente,
Nesse sentido, os integrantes do dossiê “Catolicismo e Política nos séculos XX e XXI” privilegiaram certos aspectos dessas interações, tais como o estudo das atuações de agentes importantes à hierarquia ou ao laicato da Igreja Católica no Brasil. Este é o foco do artigo de Milton Carlos Costa sobre Dom Antônio Macedo Costa e a sua “teologia do poder”; do estudo de Carlos André Silva de Moura a respeito de Dom Sebastião Leme e o seu projeto de “politização do clero”; das reflexões de Rogério Luiz de Souza e Edison Lucas Fabrício sobre Leonel Franca e as relações entre modernidade e totalitarismo; do artigo de Leandro Garcia Rodrigues acerca das trocas de missivas entre Frei Betto, Leonardo Boff e Alceu Amoroso Lima em tempos de ditadura e repressão política.
Um segundo conjunto de textos volta o seu olhar analítico para pensar as manifestações das relações entre catolicismo e política expressas em jornais, revistas e movimentos. Este é o caso do estudo de Rodrigo Coppe Caldeira e Albert Drummond acerca da questão da imoralidade nas páginas de O Diário Católico; da análise de Ianko Bett sobre a Revista Catolicismo e o anticomunismo; do artigo teórico-metodológico de Renato Amado Peixoto sobre o conceito de colusão e a sua aplicação no exame da relação entre o catolicismo e a extrema direita, no caso da criação da Ação Integralista norte-rio-grandense; do artigo de Omar Acha revelando as atividades da Ação Católica Argentina por meio da política associativa nas décadas de 1930-1970;
O último conjunto de artigos trabalha com as relações objetivas entre catolicismo e a política partidária. Isabelle Clavel aborda, a democracia-cristã na França através do exame do Movimento Republicano Popular (MRP) e das suas metamorfoses frente à realpolitik, à cultura política republicana e à laicidade. Por sua vez, Marcos Fernández Labbé analisa a democracia cristã chilena dando especial atenção ao desenvolvimento histórico do pensamento católico em torno da ação política e laica na década de 1960.
Desse conjunto de autores, textos e abordagens o leitor poderá extrair as linhas de contato, as singularidades, as rupturas e também as permanências entre as diversas expressões do catolicismo em suas relações com a política e o político.
Vale ressaltar que se aponta que o campo ainda se ressente da falta de novos investimentos, mesmo que a ‘Nova História Política’ já tenha sinalizado, há várias décadas, a abertura de possibilidades e sinalizado outros métodos, aproximações teóricas e enfoques, e que, mais recentemente, a ‘Critical Religion’ e, especialmente, a ‘virada pós-secularismo’ tenham apontado novas perspectivas para se ressituar as relações entre o religioso e o político. Finalizando a edição temos os artigos livres e uma resenha que tematizam relações entre as crenças e os discursos religiosos.
Maio de 2016
Cândido Rodrigues, Renato Amado Peixoto e Rodrigo Coppe Caldeira.
RODRIGUES, Cândido; PEIXOTO, Renato Amado; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.9, n.25, maio / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
Escritas de si, literatura e cinema: diálogos (auto)biográficos | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2016
[A narrativa] está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura […], no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas […]
Roland Barthes1
Na epígrafe, Roland Barthes nos diz que as narrativas, por sua quase infinita diversidade (histórica, literária, biográfica, autobiográfica, cinematográfica…), e por sua onipresença na história da humanidade, representam formas de manifestação inalienáveis do ser humano, onde quer que ele se encontre, não importando o momento de sua vida, e em qualquer tempo histórico. Nessa quase infinita diversidade, os seres humanos encontram nas narrativas biográficas e autobiográficas um modo próprio de ser e de contar a história de vida de outrem (biografia) e a história de sua própria vida (autobiografia), constituindo e constituindo-se enquanto seres sociais, racionais, líricos, históricos, místicos, políticos, artísticos, míticos… Leia Mais
Perspectivas recentes da História Medieval no Brasil / Revista Brasileira de História / 2016
Muito embora os estudos medievais no Brasil não possuam longa tradição, uma observação mais atenta mostra que seu desenvolvimento acompanhou de perto a institucionalização dos estudos históricos no país. Exemplo significativo disso é que a reunião que deu origem à Anpuh – a Associação Nacional dos Professores Universitários de História (atual Associação Nacional de História) -, acontecida em 1961 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, foi um momento decisivo também para os estudos medievais. Eurípedes Simões de Paula, professor da Universidade de São Paulo e autor da primeira Tese de Doutorado em História defendida no Brasil, um trabalho na área de História Medieval, coordenou a discussão, cujo resultado foi a veemente e unânime defesa da especialização como condição necessária à interação efetiva entre ensino e pesquisa. Entendia-se que formar medievalistas, inclusive incentivando estágios em centros de excelência no exterior, significava sustentar a importância do próprio conhecimento histórico no país.
As moções aprovadas em Marília por representantes das principais instituições de ensino e pesquisa histórica brasileiras dependiam, para se efetivar, de repercussão na política nacional de ciência e tecnologia. Essa repercussão foi conquistada, mas levou tempo até sua efetivação. A separação entre a História Antiga e a História Medieval permaneceu algo raro nas universidades públicas ou privadas até o final dos anos 1970 – como também era raro encontrar especialistas dessas áreas ministrando as respectivas disciplinas. Foi somente a partir dos anos 1990 que o Brasil passou a contar com um número considerável de centros de formação de Mestres e de Doutores; foi também a partir desse período que as instituições de fomento puderam acompanhar de forma mais efetiva as demandas decorrentes do crescimento da Pós-Graduação.
Desde então, assistimos à ampliação considerável dos grupos de pesquisa, à diversificação das temáticas abordadas e a um aumento sem precedentes do número de pesquisadores na área de História Medieval. Os setenta programas de Pós-Graduação atualmente existentes na área de História – cerca de metade deles estabelecida nos últimos 10 anos – permitiram que se criasse um ambiente cada vez mais favorável à pesquisa em História Medieval e à formação de medievalistas. Essa expansão dos estudos medievais explica o aparecimento recente de uma série de balanços sobre a área. Artigos, e mesmo um livro, procuraram refletir sobre os estudos medievais no Brasil, contrapondo passado e futuro das pesquisas e do ensino e estabelecendo perspectivas para sua inserção social.[1]
Nossa intenção com este dossiê é bastante distinta. Não se trata de olhar para o que já foi feito, mas de oferecer ao leitor um panorama da pesquisa recente na área de História Medieval no Brasil. É claro que não se trata de um panorama completo, o que exigiria – felizmente, diga-se de passagem – um espaço bem maior do que o de um dossiê. Trata-se aqui de apresentar, efetivamente, alguns resultados desse futuro presumido pelos balanços realizados. Os textos aqui reunidos mostram a pujança temática da área, a atualidade de seu diálogo com as ciências sociais e a persistência de sua autocrítica.
“A Cronaca di Partenope e o Reino de Nápoles: contribuições de e para a historiografia brasileira no século XXI”, artigo de Igor Teixeira, propõe um estudo do Ms. Italien 301 Cronaca di Partenope, levando em conta o acesso digital aos manuscritos e as habilidades necessárias para a análise, procurando responder à questão: “Em que este estudo pode contribuir para os estudos medievais no Brasil?”.
Em seu artigo, intitulado “Algumas experiências, perspectivas e desafios da Medievalística no Brasil frente às demandas atuais”, Aline Dias da Silveira discute alguns dilemas das pesquisas brasileiras na área de História Medieval, bem como a originalidade de seu olhar sobre a historiografia europeia.
Em “Uma calamidade insaciável: espaço urbano e hegemonia política em uma história dos incêndios (880-1080)”, Leandro Rust dedica sua atenção aos incêndios que devastaram os espaços urbanos do Regnum Italicum nesse período de 200 anos. O autor questiona as interpretações tradicionais que ou naturalizam essas ocorrências como fatalidades ou acidentes, ou buscam explicá-las como epifenômenos de uma suposta desordem feudal. Para Leandro Rust, o aparecimento documental dos incêndios teria raízes políticas.
Maria Filomena Coelho, em seu artigo “Cartas políticas da Dinastia de Avis: a arte de ditar o bem comum (século XV)”, pretende analisar algumas cartas escritas no século XV por personagens-chave da dinastia de Avis, a partir da noção de “cultura política”. Essa noção permite que a análise vá além da retórica, tal como era tradicionalmente entendida a epistolografia, permitindo ao historiador compreender uma trama discursiva complexa, que, embora pareça seguir fórmulas, não deixa de atender às circunstâncias e aos casuísmos da política, mas, sobretudo, que propõe e evoca valores políticos, como o do bem comum.
Esperamos, com este dossiê, apresentar algumas pesquisas que são, em última instância, o resultado da especialização e da institucionalização dos estudos medievais no Brasil. E, assim, divulgá-las não apenas a colegas e a estudantes que desejam aproximação com a área, mas também àqueles que, confiantes em que a pujança dos estudos humanos e sociais repousa no diálogo e no entendimento mútuo, estão interessados em estabelecer novas interlocuções.
Nota
1. ALMEIDA, 2008; 2012; BASTOS; RUST, 2009; COELHO, 2006; FRAZÃO, 2013; MACEDO, 2003; RIBEIRO, 2001.
Referências
ALMEIDA, Néri de B. La formation des médiévistes dans le Brésil contemporain: bilans et perspectives (1985-2007). Études et Travaux. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre (BUCEMA), v.12, p.145-159, 2008. Disponível em: http: / / cem.revues.org / 6652. [ Links ]
______. L’histoire médiévale au Brésil: du parcours solitaire à l’inclusion dans le champ des sciences humaines, In: ALMEIDA, Néri; CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo; MEHU, Didier. Pourquoi étudier le Moyen Âge? Les médiévistes face aux usages sociaux du passé. Paris: Publications de la Sorbonne, 2012. p.125-143. [ Links ]
BASTOS, Mario J.; RUST, Leandro. “Translatio Studii”. A História Medieval no Brasil. Signum, n.10, p.163-188, 2009. [ Links ]
COELHO, Maria Filomena. Breves reflexões acerca da História Medieval no Brasil. In: SILVA, Leila Rodrigues (Dir.) Atas da VI Semana de Estudos Medievais do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Rio de Janeiro: PEM, 2006. p.29-33. [ Links ]
FRAZÃO, Andreia. Os estudos medievais no Brasil e o diálogo interdisciplinar. Medievalis, v.1, n.2, p.1-15, 2013. [ Links ]
MACEDO, José Rivair. Os estudos medievais no Brasil: catálogo de teses e dissertações. Porto Alegre: UFRGS, 2003. [ Links ]
RIBEIRO, Maria Eurydice B. Os estudos medievais no Distrito Federal. In: MALEVAL, Maria do Amparo T. (Dir.) Atas do III Encontro Internacional de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: ágora, 2001. p.155-158. [ Links ]
Marcelo Cândido da Silva – Universidade de São Paulo (USP), Laboratório de Estudos Medievais (LEME). São Paulo, SP, Brasil. Professor de História Medieval da USP, Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME) e Pesquisador do CNPq E-mail: candido@usp.br
Néri de Barros Almeida – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). Campinas, SP, Brasil. Professora de História Medieval da Unicamp, Coordenadora do Núcleo Unicamp do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: neridebarros@gmail.com
SILVA, Marcelo Cândido da; ALMEIDA, Néri de Barros. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.72, mai. / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
Direito, História e Ciências Sociais / Estudos Históricos / 2016
Os estudos sobre o campo do Direito consolidaram-se no Brasil nas últimas décadas. Pode-se sugerir que a ampliação do interesse da História e das Ciências Sociais em relação à temática se vincule ao crescente protagonismo do Judiciário na vida pública do país no pós-ditadura militar. O vigor dessa área de estudos evidencia-se na existência de simpósios e grupos de trabalhos especializados organizados no interior das principais entidades de História e Ciências Sociais brasileiras.
A produção acadêmica sobre o Direito, com forte traço interdisciplinar, desdobra-se em análises sobre ideias, práticas, instituições e agentes jurídicos. Além disso, proporciona reflexões sobre as fontes documentais e as metodologias utilizadas, e estimula o aprofundamento da reflexão teórica sobre o tema.
Assim, este número de Estudos Históricos pretende exprimir, ainda que parcialmente, a diversidade temática e de perspectivas que distinguem a produção atual sobre o campo do Direito.
O primeiro artigo, O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil oitocentista, de Mariana Paes, examina as bases jurídicas da posse da liberdade no quadro da sociedade escravista do século XIX. O segundo artigo, A organização da justiça militar no Brasil: Império e República, de Adriana Barreto e Angela Moreira, oferece um panorama da estruturação e atuação deste ramo da Justiça no período imperial e republicano.
Os três artigos seguintes tratam da Primeira República. Em Vadiagem e prisões correcionais em São Paulo, Alessandra Teixeira, Fernando Salla e Maria Gabriela Marinho problematizam o controle e a repressão à vadiagem. Pedro Cantisano, em Direito, propriedade e reformas urbanas, aborda as reformas urbanas realizadas no Rio de Janeiro no início do século XX sob o prisma dos debates jurídicos por elas gerados em torno do direito à propriedade. Já o artigo A atuação do Supremo Tribunal Federal na crise da Política dos Estados na Primeira República, de Leonardo Sato e Priscila Gonçalves, versa sobre o periodismo jurídico, pelo estudo da revista O Direito.
Mariana Silveira, em Direito, ciência do social, articula a participação política dos bacharéis com a produção intelectual que veiculavam em periódicos especializados no primeiro governo Vargas. O artigo posterior, O sentido democrático e corporativo da não-Constituição de 1937, de Luciano Abreu, analisa a questão da legitimidade da carta constitucional em questão. Ainda no âmbito da Era Vargas, Walter Guandalini Jr. e Adriano Codato, em O Código Administrativo do Estado Novo, refletem sobre a estrutura político-administrativa do regime instaurado em 1937.
O último artigo, Constitucionalismo e batalhas políticas na Argentina, de Fabiano Engelmann e Luciana Rodrigues Penna, investiga as relações entre o constitucionalismo e a política naquele país.
O dossiê Direito, História e Ciências Sociais completa-se com o texto Sobre a história constitucional, de Andrei Koerner. Com ele, Estudos Históricos inaugura a seção Ensaio bibliográfico, destinada a publicar balanços da literatura nacional e estrangeira recente relacionada à temática do número.
Encerram a presente edição da revista os três textos lidos na cerimônia de outorga dos títulos de professoras eméritas da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV / CPDOC) a Angela de Castro Gomes e Lucia Lippi Oliveira. Os títulos foram concedidos pela Congregação do CPDOC, e a cerimônia ocorreu no dia 14 de março deste ano. Em Pioneiras e construtoras, Luciana Heymann destaca a contribuição institucional ao CPDOC das professoras homenageadas pela Congregação. Bernardo Buarque, em Socióloga com olhar histórico ou historiadora com perspectiva sociológica?, percorre a produção intelectual de Lucia, enquanto Paulo Fontes, em Sensei Angela de Castro Gomes, assinala aspectos fundamentais da obra de Angela.
Luciana Heymann Quillet – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).
Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).
Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).
Os editores
HEYMANN, Luciana Quillet; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.29, n.58, maio / ago. 2016. Acessar publicação original [DR]
Educação e pesquisa online | Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais | 2016
Para iniciar a conversa sobre Educação e pesquisa online
Este dossiê apresenta algumas reflexões sobre as transformações que o desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação (TIC) trouxe para a sociedade contemporânea em diferentes áreas do conhecimento entre elas a educação. Estas transformações, iniciadas desde a última década do século XX, ganharam maior amplitude no atual século XXI principalmente a partir da utilização das tecnologias móveis que operam por meio de conexões com redes do tipo wi-fi, 3G ou 4G.
O denominamos de tecnologias móveis são os dispositivos como smartphones, tablets e computadores do tipo personal digital assistants (PDA) que criam grupos não contíguos em espaços físicos que transformam e reinventam espaços urbanos como ambientes onde multiusuários podem interagir. Estas tecnologias potencializam que pessoas distantes fisicamente possam se comunicar em espaços híbridos, conectados por meio de rede móvel, ao mesmo tempo em que se deslocam pelo espaço físico habitado por outros sujeitos com quem muitas vezes também interagem simultaneamente. Leia Mais
História e Teatro no Brasil pós-64 / Varia História / 2016
No emblemático ano de 1968, o destacado dramaturgo Dias Gomes publicou um artigo em número especial sobre o teatro brasileiro na Revista Civilização Brasileira, então periódico de referência, apontando o que considerava uma singularidade do teatro: era a arte da palavra, que acontece diante do público.
O abuso de adjetivos, embora escape a uma regra básica de redação da narrativa historiográfica, foi voluntário até aqui. Visa a destacar a força da ideia (re)criada pelo texto de Dias Gomes, corrente à época e que se perpetuou, longa e fortemente, na memória social sobre a arte engajada: o teatro seria a expressão artística de resistência mais destacada durante a ditadura militar brasileira, por algumas razões.
Por um lado, pelos projetos políticos e estéticos que engendrou, por vezes conflitantes, que queriam cumprir o papel de conscientizar o público, fosse promovendo a “catarse”, o distanciamento e / ou o estranhamento com relação à realidade imediata (Napolitano, 2001, p. 109). Por outro, pelas relações conflituosas – estratégicas e, por vezes, cômicas – que se desenvolveram entre os profissionais da área de teatro e os órgãos de repressão e censura. E, ainda, pela natureza mesma da arte dramática, que combinaria a força da literatura, “a arte da palavra” do engajamento sartreano clássico, com a possibilidade de tocar corações e almas, exortando os sujeitos à ação no momento da encenação.
Foi nesse cruzamento de peculiaridades que se construiu a temática desse dossiê da Varia: História e Teatro no Brasil Pós-64. O que se propõe é um panorama com diferentes abordagens da relação entre esses dois campos de saber / fazer – a história e o teatro – num contexto específico da nossa história, qual seja, o período que se inaugurou com o golpe civil-militar de 1964. Essa encruzilhada temática, constituída das características específicas de cada campo, e de novas, produzidas no encontro entre eles, aponta-nos uma série de problemas, dos quais se destacam três.
Em primeiro lugar, desde o campo de pesquisa em que se unem a história e o teatro, é preciso considerar especificidades teórico-metodológicas. Para além da letra – ou seja, do roteiro teatral e das fontes dele derivadas, imediatamente, como os processos de censura – o teatro é uma modalidade artística de difícil apreensão. Os espetáculos, o momento de realização da arte, são voláteis. Como apreender os sentidos de uma prática cultural que foi pensada para durar instantes, há décadas? Ademais, as fontes relativas ao processo da produção cultural raramente duram no tempo e, quando permanecem, dificilmente estão ordenadas e reunidas em arquivos próprios. Então, pesquisar uma história do teatro, ou a história por meio do teatro, implica lidar diretamente com especificidades teórico-metodológicas que vêm ganhando corpo há relativamente pouco tempo, especialmente na historiografia brasileira.
Uma segunda questão que cabe destacar é a construção de uma historiografia sobre o período da ditadura militar. O período ainda se pode inscrever na chamada “história do tempo presente”, com as delicadezas epistemológicas que envolvem a categoria. Desde a proximidade dos acontecimentos, que acabam atribuindo à memória individual e social uma força que pode chegar a comprometer a coerência dos procedimentos teórico-metodológicos da pesquisa histórica, até a dificuldade de acesso a fontes de pesquisa, o campo de pesquisa sobre a ditadura militar vem se (re)estruturando a partir de tais delicadezas. No entanto, apesar de recente, tem uma produção importante, tendo crescido consideravelmente, em número e complexidade, sobretudo nos últimos quinze anos. E, como se pode observar nas muitas teses e dissertações produzidas sobre os mais variados temas, bem como nos balanços historiográficos constantes das coletâneas publicadas nas duas efemérides do Golpe de 64 (em 2004 e 2014), o campo tem-se ocupado de qualificar melhor as interpretações sobre o período, por meio de pesquisas que ressignificam as memórias sobre o período e se beneficiam da recém-abertura de arquivos.
Finalmente, uma terceira questão são as mitologias sobre as relações entre teatro e política durante a ditadura militar, derivadas das duas anteriores. Os abusos de memória sobre esse período recente da história brasileira e a dificuldade de se realizar pesquisas sobre história e teatro acabaram perpetuando lembranças de graves embates entre artistas e censura, boa parte delas apoiada na lógica maniqueísta em que o bem absoluto reside na resistência. Essa lógica, por um lado, não considera as estratégias de acomodação e conciliação tão comuns nos conflitos políticos brasileiros, inclusive nesse período, como pondera Rodrigo Patto Sá Motta (2014, p. 14). Por outro, produziu relativa lacuna de pesquisas sobre obras de teatro que se não se enquadram em posição política definida ou alinhadas “à direita”.
A partir de abertura de arquivos, organização e disponibilização de importantes séries documentais, novos diálogos conceituais com a historiografia do período e construção de conceitos e metodologias próprios para essa interface, as relações entre o teatro e a história do Brasil contemporâneo vêm sendo revisitadas. Essa historiografia recente tem produzido novas visões sobre velhos fatos, assim como tem construído novos fatos históricos, a partir de acontecimentos já conhecidos pela memória social. E os três artigos que compõem esse dossiê compõem essa “nova” historiografia.
Reinaldo Cardenuto analisa montagens teatrais e televisivas, numa comparação temporal entre realizações das décadas de 1960 / 70 e suas respectivas adaptações atuais. O autor analisa as obras Eles Não Usam Black-Tie e A Grande Família, nos dois contextos – ambas de autores ligados ao Teatro de Arena e, originalmente, relacionadas à proposta de crítica, contestação e conscientização política. Encarando a dificuldade de analisar a efemeridade dos espetáculos e a dificuldade de acesso às fontes audiovisuais, aponta uma tendência marcante do drama contemporâneo de esvaziamento do conteúdo político, em favor da construção de um humor tributário à comédia de costumes.
Saindo do circuito do teatro de companhias e voltado para o mercado, Leon Kaminski propõe uma leitura dos Festivais de Inverno de Ouro Preto (UFMG), entre 1967 e 1979. Analisa esse projeto de extensão como um espaço de criação e trocas culturais, dando especial atenção ao teatro, às suas relações com as demais performing arts e com os limites impostos pela censura oficial e extra-oficial praticada durante a ditadura militar brasileira. A partir, sobretudo, dos documentos institucionais sobre o festival e de notícias de periódicos, o autor apresenta grupos e propostas dramáticas que se constituíram no âmbito do evento, bem como os que compuseram aquele circuito cultural. Analisa, também, as tensas relações entre estado, sociedade e campo artístico na produção de sentidos sociais para obras dramáticas e práticas culturais no período.
Miliandre Garcia analisa a constituição de um espetáculo de caráter quase mitológico no imaginário sobre a arte de resistência contra a ditadura militar, a I Feira Paulista de Opinião (1968). O exame vertical do processo de censura do espetáculo – articulando roteiro, anotações de censores, pareceres técnicos e documentos anexados -, cotejado com propostas dramáticas do período, legislação e outros processos de censura, construiu uma interpretação singular sobre a obra. O roteiro, em termos políticos e estéticos, é considerado peça de resistência cultural, que guarda permanências das propostas anteriores e anuncia o que viria a ser a tônica dos anos 1970. As relações com a censura, que chegam no âmbito da justiça comum, são interpretadas como um processo de desobediência civil, característica específica dessa resistência cultural.
Olhares novos sobre esse objeto em construção – História e teatro no Brasil pós-64 – os três artigos apresentam ao leitor a possibilidade de refletir sobre as relações entre arte dramática e sociedade, política e estética, passado e presente, fontes e pesquisador, entre tantas outras combinações possíveis.
Com a “arte da palavra” (engajada ou não), nossos autores.
Referências
GOMES, Dias. O engajamento é uma prática de liberdade, Revista Civilização Brasileira – Caderno Especial de Teatro e Realidade Brasileira, ano IV, p. 7-17, 1968. [ Links ]
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos. Estudos Históricos, n. 28, p. 103-124, 2001. [ Links ]
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014. [ Links ]
Miriam Hermeto – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: miriamhermeto@gmail.com
HERMETO, Miriam. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.59, mai. / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]
“Proletarios de todos los países…’perdonadnos!” El humor político clandestino en los regímenes de tipo siviético y el papel deslegitimador del chiste em Europa central y oriental (1917-1991) – VÁRNAGY (RTA)
VÁRNAGY, Tomás. “Proletarios de todos los países…’perdonadnos!” El humor político clandestino en los regímenes de tipo siviético y el papel deslegitimador del chiste em Europa central y oriental (1917-1991). Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 2016. 372p. Resenha de: GÓMEZ, Diego Hernando. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.445‐450, maio/ago., 2016.
Este libro es una mordaz y corrosiva crítica de los “socialismos realmente existentes” en Europa. El autor, de izquierdas y admirador del pensamiento de Karl Marx, aclara en el Prólogo (pp. 7 a 11) su postura en contra del capitalismo depredador, el imperialismo y la política exterior de los Estados Unidos. Su hipótesis central, “exagerando y a la manera de un chiste” (p. 359), es que la caída del Muro de Berlín y la implosión de la Unión Soviética no fueron provocados por la política del Papa Wojtyla, ni los muyahidines de Afganistán, ni la Guerra de las Galaxias de Ronald Reagan, tampoco Gorbachov o la ineficiencia del sistema soviético, sino que fueron incitados por los chistes y el humor clandestino.
En la Introducción (pp. 13 a 24), cita a Bertolt Brecht: “No se debe combatir a los dictadores, hay que ridiculizarlos”, y cuenta que comenzó a coleccionar chistes sistemáticamente luego de leer un libro de Agnes Heller, Ferenc Fehér y György Márkus (discípulos de György [Georg] Lukács de la Escuela de Budapest) en el cual se narra el siguiente: Un día Stalin hizo comparecer a Radek, que era bien conocido por su cinismo y dado a decir cosas que otros ni siquiera se atrevían a pensar.
Stalin le dijo: Me han informado, camarada Radek, que te expresas de mí de un modo irónico. ¿Has olvidado que soy el líder del proletariado del mundo? Discúlpame, camarada Stalin – replicó Radek –, ese chiste en particular no lo inventé yo.
Existe un debate sobre la naturaleza paradojal del humor, y la pregunta que trata de responder el autor es si los chistes políticos clandestinos (prohibidos) en los regímenes de tipo soviético fueron efectivamente un factor de deslegitimación o tuvieron un papel inoperante y nulo. Su hipótesis es que los chistes efectivamente pesaron en el proceso de deslegitimación política de estos regímenes, desestructurando y poniendo “patas arriba” el orden establecido.
Los chistes hacían constante referencia a la brecha entre la propaganda y la realidad concreta, reflejando una doble vida que diferenciaba claramente lo público de lo doméstico. Con esos chistes, se pretendía mostrar las incongruencias y distorsiones en un mundo dicotómico entre la ideología oficial dominante y las circunstancias materiales reales, produciendo una risa liberadora de las constricciones, pues se revelaban las contradicciones entre ambas esferas.
En el primer capítulo, “Teorías del humor” (pp. 25 a 69), se hace un análisis acerca de las teorías del humor, la risa y el chiste, mostrando las diferentes perspectivas que resultan en casi un centenar de teorías documentadas con respecto al tema. El autor aborda la historia del pensamiento occidental, desde el Antiguo Testamento y los Evangelios, pasando por la risa homérica, las comedias de Aristófanes y la filosofía griega, tanto Platón como Aristóteles. También analiza la “seriedad oficial” medieval, el pensamiento de Tomás de Aquino, la interpretación de Humberto Eco en El nombre de la rosa y el Carnaval del Medioevo, que producía un “mundo al revés” en donde la risa de los campesinos era una revuelta en contra de todo lo establecido.
Thomas Hobbes desarrolló la teoría de la superioridad, comenzada por Platón, afirmando que la risa es de los poderosos. Con Immanuel Kant, apareció la teoría de la incongruencia, pues lo que provoca risa tiene que ver con una expectativa que queda en la nada. Herbert Spencer consideró a la risa como un desahogo de energía y Sigmund Freud retomó esta teoría de la descarga, discurriendo que el humor y los chistes son un alivio que permite la expresión de tensiones sexuales y agresivas de una manera socialmente aceptable.
En el segundo capítulo, “Humor político” (pp.71 a 111), Várnagy, desde una perspectiva general, considera que los chistes expresan concentradamente eventos sociales y políticos, dando cuenta del humor político en la Antigüedad y el Medioevo y, con la invención de la imprenta y la lucha entre católicos y protestantes, muestra el surgimiento de toda una corriente de chistes anticlericales. El humor político podía ser peligroso – Daniel Defoe fue a la picota por su parodia de los Tories – y cuestionador – Jonathan Swift escribió un ensayo crítico de las condiciones paupérrimas de Irlanda debido al colonialismo inglés.
Hubo chistes políticos durante la Revolución Francesa, sobre Napoleón y muchos otros temas candentes. Así que, en el siglo XIX, debido a la vigilancia y la censura, se produjo la aparición de la prensa clandestina en muchos países. El cabaret se convirtió en un eficiente medio de crítica, extendiéndose por toda Europa y, en la Alemania nazi, el humor fue empujado a la clandestinidad. Además, se destaca que el humor patibulario de los chistes (anti) nazis fue una importante forma de resistencia.
El tercer capítulo, “Humor político ‘comunista’” (pp. 113 a 173), trata específicamente sobre el humor “comunista”. En ese punto, el autor hace notar que los chistes políticos clandestinos eran vitales en esos países porque eran un instrumento para expresar quejas y críticas. Menciona también que la persecución por contar chistes se remonta a la Antigüedad y ya está registrada en la Grecia clásica; en la Unión Soviética era considerado como una “actividad contrarrevolucionaria”.
Anekdot es la palabra rusa para “chiste político clandestino” y era una forma de desmentir la política oficial. Su tremenda popularidad, de acuerdo a Várnagy, socavó y deslegitimó al régimen soviético. Se hace referencia a la influencia del humor judío, armenio y georgiano, las diferencias entre la esfera pública y la doméstica, los chistes sobre la estupidez, y se realiza una periodización del humor político “comunista” desde la década de 1920, pasando por el estalinismo, el deshielo, la década de 1960, el centenario del nacimiento de Lenin, el estancamiento brezhneviano y los cambios producidos por Gorbachov, con ejemplos concretos de una recopilación de chistes tanto en la Unión Soviética como en todos los países de los socialismos realmente existentes en Europa.
El capítulo cuatro, “Chistes en la Unión Soviética” (pp. 175 a 273), es una colección de humor clandestino desde 1917 hasta 1991. Se cita a Karl Marx cuando éste dice que “La última fase de una forma histórica mundial es su comedia” (Introducción a la Contribución de la crítica de la Filosofía del Derecho de Hegel de 1844). Se presenta aquí una síntesis de la vida en la URSS: ¿Cómo es la vida en la Unión Soviética? Con Lenin era como estar en un túnel: rodeados de oscuridad pero con una luz adelante que nos guiaba. Con Stalin era como andar en autobús: uno conduce, algunos están sentados [“estar sentado” en ruso es sinónimo de “estar en prisión”], el resto temblando. Con Jrushchov era como estar en un circo: un hombre habla y todos los demás se ríen. Con Brezhnev era como estar en el cine con una mala película: todos están esperando que el espectáculo termine y, finalmente, Gorbachov es quien descorre las cortinas para que la gente salga.
El capítulo quinto, “Chistes en Europa central y oriental” (pp. 275 a 335), selecciona y recopila el humor prohibido de Alemania, Bulgaria, Checoslovaquia, Hungría, Polonia, Rumania y Yugoslavia. La migración del humor fue una característica de todos esos países, y el mismo chiste podía contarse sobre Ulbricht, Ceaucescu o Rákosi: En Bucarest hay una larga fila de más de dos kilómetros para comprar pan. Uno de los posibles clientes, furioso, grita: “¡Voy a matar a Ceaucescu!”, y se va corriendo. Regresa una hora después y le preguntan: “¿Lo mataste?” “No, la cola allí era más larga…”.
Otro chiste, más específicamente nacional, referido a la fuerte religiosidad de los polacos y claramente subversivo, es el siguiente: Un político francés visita Polonia. El domingo expresa su deseo de ir a misa y se le asigna un alto funcionario para que lo acompañe.
“¿Es usted católico?”, le pregunta el francés.
“Creyente, pero no practicante”.
“Por supuesto, ya que usted es un comunista”.
“Practicante, pero no creyente”.
El último capítulo, “Humor y deslegitimación” (pp. 337 a 359), se discurre el tema de la legitimidad en la URSS y los países del bloque en Europa, donde el autor considera que los chistes reflejaban la crisis de los valores socialistas y el quebranto de su legitimidad, pues atacaban las bases y fundamentos mismos de la ideología, subvirtiendo al sistema y produciendo una inversión del mundo. Introduce aquí el pensamiento del ruso Mijaíl Bajtín, en La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento. El contexto de Francois Rabelais, en que analizó el carnaval medieval y la conciencia popular, el divorcio entre el lenguaje oficial y la realidad concreta. Várnagy afirma que la incongruencia entre ambos se daba tanto en el Medioevo como en la Unión Soviética, y la naturaleza rebelde del carnaval y la risa fueron una fuerza liberadora y revolucionaria. El humor carnavalesco produjo la desestructuración de la cultura oficial y la deslegitimación del orden existente.
En síntesis, el autor tiene en cuenta que las tendencias centrales de los chistes apuntaban a los mismos fundamentos del sistema, abarcando un rango excepcionalmente amplio, desde aspectos de la vida cotidiana hasta los eventos políticos más importantes. Los chistes fueron una respuesta integral a todo el cuerpo doctrinario, desacreditando el carácter científico de la teoría y la práctica, y revelando la traición al pensamiento de los fundadores, lo que produjo una pérdida de legitimidad que subvirtió todo el esquema del bloque soviético.
El libro es un trabajo sumamente original, exhaustivo en el análisis del tema, con recopilación de materiales inexistentes en lengua española y, por momentos, tan divertido que resulta imposible no soltar una risa franca. Además, contiene una importante bibliografía (pp. 361 a 372) en varios idiomas y más de 80 ilustraciones poco conocidas (fotos, afiches y caricaturas).
Tomás Várnagy, húngaro‐argentino, es profesor de Filosofía, doctor en Ciencias Sociales y enseña Teoría Política en la Universidad de Buenos Aires.
Diego Hernando Gómez – Sociologo e historiador de la Universidad de Buenos Aires (UBA). Trabajo en la Universidad del Salvador y ETER. Argentina rodia85@hotmail.com
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Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história – COLLING (RTA)
COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história. Dourados: Editora da UFGD, 2014. 114p. LIMA, Nicolle Taner de. Questões que atravessam os tempos: os discursos e a construção do corpo feminino. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.451-456. maio/abr. 2016.
Alguns discursos atravessam os tempos. Podem mudar um pouco seus trejeitos, assumir uma nova roupagem, modificar seus termos, mas ainda impactam a vida das pessoas, seus valores, suas práticas cotidianas. “Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na história” trata desses discursos e nos leva a refletir sobre estas permanências, sobre a historiografia, acerca dos corpos femininos – nossos corpos – na História.
Em pouco mais de cem páginas, introdução e dois capítulos, poucas notas de rodapé e um texto leve e forte para ser lido em uma tarde, Ana Maria Colling1 demonstra que o corpo feminino não é apenas uma construção histórica, é uma confluência dos discursos religioso, médico, psiquiátrico, filosófico, pedagógico, psicológico, jurídico que, juntos, constroem o que é o feminino.
A autora inicia seu texto discutindo o silenciamento das mulheres na História, o fazer historiográfico como algo escrito por homens, sobre homens, para ser lido por homens: o “nós” do discurso universal é sempre masculino. Enfatiza, pois, a importância de se analisar a história sob a perspectiva de gênero e afirma que esta categoria pode nos ajudar a repensar a centralidade do discurso, reconhecendo o androcentrismo da história e questionando os modelos existentes.
Não só a história marginalizou durante muito tempo as mulheres como, junto a outras ciências, se entrelaçou nas tramas dos discursos que “(…) receitam o que é ser homem, o que é ser mulher, e os papéis sociais designados a ambos: descreve como se fazem as mulheres em determinada cultura; como se faz um corpo sexuado feminino” (p. 17).
Pensar a construção deste corpo feminino através das representações das mulheres que colaboraram para se estabelecer o pensamento simbólico que distingue os sexos, definindo os embasamentos teóricos do livro é o tema do primeiro capítulo intitulado “O lastro cultural do feminino”. Recorrendo as/aos autoras/es Linda Hutcheon, Guacira Lopes Louro, Joan Scott e Carole Paterman, Michel Foucault e Jaques Derrida, Colling faz uma defesa da História enquanto construção e da ideia de gênero enquanto diferença de sexos não ditada pela natureza, mas sim pela cultura e pela história.
No segundo tópico desse capítulo, “Michel Foucault, o discurso e as mulheres”, a autora elenca diversas contribuições do pensamento foucaultiano às teorias feministas. Entendendo o discurso como prática social, permeado pelas relações de poder, instalado nas práticas cotidianas, aparatos jurídicos, gestos e costumes, é possível se criticar essa produção discursiva, desnaturalizá-la, problematizá-la, enfim, descontruí-la. Para a autora, a crítica de Foucault ao universalismo e ao essencialismo ofereceu embasamento teórico para que se descontruam práticas, palavras e coisas…
“Tempos diferentes, discursos iguais” é o título do segundo capítulo. Nele, a autora demonstra que a “natureza feminina”, apesar de muitas vezes ser tratada como uma evidência dada, também foi forjada a partir de discursos que relacionavam as mulheres com a irracionalidade, a indiscrição, a histeria, a perversão, ao passo que este forjar também nos associou à fragilidade, moralidade, docilidade, intuição, sensibilidade. Seríamos muito indisciplinadas e irracionais demais, o que nos tornaria incapazes para governar, mas também muito frágeis, moral e emocionalmente; precisaríamos, portanto, por natureza, de sujeição.
A autora questiona essa “natureza feminina” lançando mão de diversos autores que contribuíram para a construção desse discurso e que legitimaram todo tipo de imposição de subordinação às mulheres. Inicia com o discurso filosófico, primeiramente com Platão e sua tese de que as mulheres não deveriam ter o mesmo estatuto dos homens, visto que pariam pessoas, e não ideias (p. 50); depois, Hipócrates e a hierarquização dos corpos a partir da geração, do homem como produtor e da mulher como reprodutora, ele como semente e ela como campo (p. 53); Aristóteles e a menoridade e debilidade das mulheres, visto que a natureza distinguia quem manda e que obedece (p. 55); passa para Jean-Jaques Rousseau e suas ideias sobre a educação pudica e moral que as mulheres precisariam receber (p. 61); e finaliza com Immanuel Kant, para quem nós, mulheres, seríamos memoráveis apenas pela beleza (p. 62).
O catolicismo e o protestantismo, os textos bíblicos e de seus representantes norteiam a discussão do tópico “Discurso Religioso”. A partir de uma discussão bibliográfica que põe em diálogo Padre Antonio Vieira, Calvino e Lutero, Tomás de Aquino e os papas João Paulo II e Bento XVI, a autora reflete sobre as ambiguidades com que estes discursos tratam as mulheres: a condenação bíblica do pecado, a censura da luxúria, a condenação à fogueira em oposição ao ideal mariano de bondade, ternura, maternidade.
Para “Discurso Médico”, a autora recorre a autores de diversas temporalidades, dos gregos ao Brasil Colônia, que utilizavam seus conhecimentos médicos através de experiências com mulheres, para legitimar seu papel na sociedade – o que compete à geração e criação dos filhos, à inferioridade e à sujeição. A curiosidade pelo útero e a aversão à menstruação também possuem espaço nessa discussão, bem como no tópico seguinte, que aborda os discursos psiquiátrico e psicanalítico.
Retomando textos produzidos por médicos a partir do século XVIII sobre a histeria, maternidade e sexo, além dos textos freudianos e sua descrição do feminino como passivo, atrofiado e invejoso do falo, Colling discute a histerização e a normatização do corpo feminino.
Conclui seu livro recuperando algumas ideias articuladas nos capítulos, reafirmando o caráter transgeográfico e transcultural da subordinação das mulheres, que se manteve – e ainda se mantém, mesmo que com outras vestes – através de discursos das mais variadas ciências e religiões. Incita que se escreva uma história que reconheça o processo histórico de exclusão de sujeitos e ao fim, questiona: o que se fará da história para transformá-la e superar a desqualificação do feminino?
Minhas críticas ao livro são escassas, porém há a necessidade de mencioná-las. Uma relação maior entre as permanências e rupturas desses discursos poderia ser interessante para verificarmos esses “discursos iguais” aos quais a autora se refere. Outra questão a se problematizar é a sentença “(…) Foucault libertou as mulheres da sua natureza, permitindo que pudessem tomar para si sua história” (p. 34). Apesar de sua preocupação e do caráter militante de sua obra, estudos feministas ocorriam concomitantemente à produção do filósofo; com todo respeito à autora e à contribuição de Foucault para repensar os discursos de subordinação das mulheres, o termo “libertar” causa o estranhamento e o incômodo – apesar deste ter fornecido as ferramentas para reflexão, esta libertação tem sido conquistada no embate das penas, canetas e teclados, nas universidades, fábricas e ruas, a duros saques e cotidianamente.
Por fim, e mais importante, talvez, seja a definição de qual é o corpo do qual se fala. Se questionamos o universalismo que pretensamente nos inclui à humanidade – os homens, no caso –, precisamos repensar que a categoria mulher também não é universal. Com o advento dos estudos pós-coloniais, decoloniais e, principalmente, das teorias do feminismo interseccional, é necessário pontuar: de que corpo se fala? Uma ponderação seria necessária para se explicar que, acredito, se refira ao corpo da mulher branca e ocidental.
O livro surpreende por seu denso conteúdo em um número tão pequeno de páginas – e tudo em uma linguagem bastante acessível e de leitura prazerosa. Faz-nos refletir sobre a história enquanto construção, sobre a pretensão de universalidade da história e seu sujeito universal, sobre o corpo feminino enquanto construção histórica, filosófica, jurídica, psiquiátrica, etc. Deixa ainda a provocação: o que faremos nós, mulheres, historiadoras, para desconstruir discursos que atravessam os tempos? 1 Ana Maria Colling é graduada em Estudos Sociais (1978) e Geografia pela UNIJUI (1980), possui Especialização em História da América Latina pela UFRGS (1982), Mestrado em História do Brasil pela UFRGS (1994) e Doutorado em História pela PUCRS (2000), com estágio na Universidade de Coimbra, Portugal. Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Grande autora e pesquisadora, é reconhecida no campo de estudos de gênero por seus trabalhos que versam sobre mulheres e ditadura militar no Brasil, a construção histórica do corpo feminino e masculino e acerca das relações de poder e gênero na História, além de pensar as contribuições de Michel Foucault para o campo historiográfico.
Nicolle Taner de Lima – Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES. Brasil. E-mail: nicolletaner@gmail.com
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Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis – NUNES (RTA)
NUNES, Mônica Rebeca Ferrari (Org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015. Resenha de: CUBA, Rosana da Silva. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.18, p.457-462, maio/abr., 2016.
O último Estado da Arte sobre a temática da(s) juventude(s) na produção da pós-graduação brasileira, nas áreas de Educação, Ciências Sociais e Serviço Social foi publicado em 2009 e coordenado por Marília Sposito. Na época, a autora celebra o aumento das pesquisas sobre as juventudes, mas ressalta a necessidade de abarcar os jovens em suas múltiplas inserções: para além dos seus itinerários formativos escolares é possível empreender investigações numa perspectiva mais transversal e compreender como se dão as sociabilidades juvenis na rua, em suas intersecções e atuações em grupos religiosos e família, enfim, abarcar os diversos aspectos que compõem a vida cotidiana juvenil. Neste sentido, o livro organizado por Mônica Rebecca Ferrari Nunes, intitulado “Cena Cosplay: comunicação, consumo, memórias nas culturas juvenis” contribui para enriquecer o mosaico das pesquisas sobre jovens ao conjugar, em diferentes espaços e tempos, as categorias empíricas para uma compreensão dos jovens e a sua inserção no espaço urbano nas grandes cidades do sudeste do Brasil.
Mônica Rebecca Ferrari Nunes é docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), na cidade de São Paulo. Sua área de atuação envolve as áreas de comunicação, nas interfaces de produção midiática, cultura do consumo, processos de memória e cenas da cultura contemporânea.
O livro, segundo a autora, é uma proposta de cartografia, ainda que incompleta, sobre a prática cosplay entendida na tríade prática comunicativa, cultura e consumo. O livro é resultado de trabalho desenvolvido em grupo de estudos (Grupo de Pesquisa, Comunicação, Consumo e Entretenimento) da ESPM e vinculado ao CNPQ, e é organizado em seis partes: Cosplayers e poetas; Percepção, cognição e pertencimento; Moda e estilo urbano; Matérias sonoras; Games e colecionismo; Flânerie. Os textos que compõem a obra são de pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa e situados em diversos percursos acadêmicos, desde mestrandos a pós-doutores, imbuídos de um olhar comum: entender as relações dos jovens do Sudeste do Brasil com o cosplay, suas escolhas pelas representações, a relação com o consumo e a memória que se deseja construir.
A primeira parte é composta por dois trabalhos, de autoria da organizadora – Mônica Rebecca Ferrari Nunes – e de Marco Antônio Bin. Os dois textos versam sobre a compreensão da cena cosplay e da poesia marginal como formas de resistência ao cotidiano, materializadas em performances, sejam elas constituídas pelo prazer de encenar e pela captura dos ídolos para se fazerem ver e ouvir – caso dos cosplayers – ou pela ruptura com as mídias tradicionais e busca de uma visibilidade coletiva – caso dos poetas marginais. Os dois textos denotam para a necessidade de uma compreensão do cosplay juvenil como uma manifestação processual e cultural híbrida, entrelaçando formas de sociabilidades e constituição de identidades e fugindo de um olhar maniqueísta, segundo o qual os jovens cosplayers seriam meros consumidores e/ou reprodutores de ídolos midiáticos.
A segunda parte apresenta dois trabalhos que buscam se debruçar sobre as escolhas dos jovens que desejam e optam por serem cosplayers e a consciência que têm de si mesmos e de seus corpos. Ana Maria Guimarães Jorge e Gabriel Theodoro Soares assinalam o quanto o cosplay deve ser como interpretado não só como prática social, mas também como manifestação social, na medida em que o processo de constituição das identidades na contemporaneidade é marcado pela liquidez (Bauman, 2004). Assim o cosplay é uma possibilidade de constituir grupos para compartilhar vivências e, ainda, escolher representar um personagem que corresponda a determinados valores e significados com os quais há afinidade. Os dois textos constatam a relação entre o cosplay e a busca por um sentido à vida, numa espécie de jogo que propicia um tipo de fuga à vida cotidiana e promove o encontro consigo mesmo e com os seus pares. Essa fuga, contudo, não seria simplesmente fugir à ordem social vivida, mas a construção de outro espaço-tempo com uma ordem própria e condições de pertencimento.
A terceira parte compõe-se de dois textos que tratam sobre moda e sobre como o estilo cosplay influencia e se expande para outros campos. O texto de Tatiana Amendola Sanches aponta vários exemplos de apropriação, por parte de grandes marcas, de estratégias similares aos cosplayers, com modelos vestidos de determinados personagens. Michiko Okano, por sua vez, apresenta as características da “Lolita”, prática que é definida pelos participantes muito mais como um estilo de vida do que como uma subcultura ou cosplayers, seja no Japão ou no Brasil. São analisadas as particularidades e o que há de comum em Lolitas nos dois países e salienta-se que há processos ambíguos que conjugam espetacularização, contestação e a procura de lugar e identificação em uma sociedade que se mostra hostil. As autoras destacam a articulação de consumo e ludicidade que parece constituir-se numa resistência ao mundo adulto e moderno desencantado.
A quarta parte, intitulada Matérias sonoras traz as contribuições de Luiz Fukushiro e Heloísa de Araújo Duarte Valente, em texto que discute a presença da música no universo cosplay: muitos dos cosplayers, ao se apresentarem, adquirem, não apenas as vestimentas, mas, também, as vozes dos seus personagens. Além das vozes, a música constitui-se num elemento chave dos eventos cosplay, e, embora o mercado, de forma geral, não aceite o j-pop (uma apropriação japonesa do pop do Ocidente), ele é abarcado pelos cosplayers. Vera da Cunha Pasqualin, no texto seguinte, destaca o quanto é importante atentar-se para as onomatopéias maciçamente presentes nos mangás e tão importantes quanto as imagens para a compreensão do texto. A autora também analisa as performances de “vocaloides”: pessoas que utilizam um programa para computadores denominado Vocaloid, com vozes gravadas e que podem ser recombinadas, para se apresentarem e cantarem em uma língua que não conseguiriam falar, por exemplo.
A penúltima parte é formada pelos textos de Davi Naraya Basto de Sá e Wagner Alexandre Silva, em torno da temática dos games e do colecionismo. Sá analisa o quanto os games redefinem a memória da mitologia, atualizando estereótipos em um processo constante de reedição. O autor também faz referência à constituição identitária daqueles cosplayers que escolhem determinados personagens: as pessoas são aquilo que desejam consumir. Silva irá mostrar como o colecionismo ligado aos cosplayers difere, em certa medida, da tradição das coleções já estudada pelo filósofo Benjamin. A aquisição dos objetos ocorre também por seus usos e aproximações com determinado personagem, pavimentando a relação de transição de cosplayer a colecionador, relação esta que pode tornar-se mais estreita quando se aumentam os cosplayers que se deseja assumir.
A sexta parte, Flânerie, propõe um passeio por fotografias feitas pelos pesquisadores ao longo de suas pesquisas.
O livro pode ser comparado, imageticamente, a um caleidoscópio que fornece combinações diversificadas à luz do cosplay. Além de proporcionar um aprofundamento ao universo cosplay juvenil presente na região Sudeste do Brasil, contribui para pensar também nas metodologias para se estudar as juventudes. A organizadora cita, por exemplo, a experiência de ter entrevistado duas pessoas que fazem cosplayers via Facebook. Ainda, apresenta uma alternativa à Antropologia, área na qual não tem formação, combinando uma flanêrie e um “engajamento narrativo” com origem em Benjamin e, posteriormente, McLaren.
Por fim, a obra também contribui para debater o consumo na contemporaneidade e o quanto é preciso calibrar o olhar ao debruçar-se sobre a semiosfera cosplay: em tempos modernos – ou pós-modernos – já não é possível compreender as culturas juvenis e a sua relação com o consumo buscando uma motivação linear e unívoca. Temos sujeitos de habitus (Bourdieu) híbridos e, portanto, com identidades que se mesclam e metamorfoseiam, confundindo olhares mais aligeirados.
Referências
NUNES, Mônica Rebecca Ferrari (org.). Cena cosplay: comunicação, consumo, memória nas culturas juvenis. Porto Alegre: Sulina, 2015.
SPOSITO, Marilia Pontes (coord.) Estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), volume 1. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009.
Rosana da Silva Cuba – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Brasil. E-mail: rosana.cuba32@gmail.com
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A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento – CORDEIRO (Tempo)
CORDEIRO, Janaína Martins. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV, 2015. 360 p.p. Resenha de: REI, Bruno Duarte. Comemorações, ditadura e sociedade: o sesquicentenário da Independência do Brasil (1972). Tempo v.22 no.40 Niterói mai./ago. 2016.
A descoberta e a produção de novas fontes, assim como o surgimento de novos métodos e abordagens teóricas, provocaram a renovação dos estudos sobre a ditadura militar. Versões longamente partilhadas e estereótipos estão sendo superados, ao passo que, na esteira das revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade e de um expressivo crescimento do interesse popular, novas informações não param de vir à tona. Silêncios e esquecimentos estão sendo superados. E temas até então tabus passaram a ser encarados, sem parti pris, por uma nova geração de pesquisadores. Como apontam diversos especialistas, vivenciamos uma mudança geracional. Nessa dinâmica, uma questão tem despertado instigantes debates: o pacto social firmado entre regime militar e sociedade brasileira.
É nesse contexto que veio a público o livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, de Janaína Martins Cordeiro (2015). A publicação é derivada de pesquisa desenvolvida, entre 2008 e 2012, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. A tese que resultou no livro trata das relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Demonstra, mais precisamente, como as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno do regime militar.
Cordeiro estruturou seu percurso em nove capítulos. No primeiro, “Funeral de um ditador”, a autora aborda o silenciamento dos apoios que diversos segmentos sociais deram à ditadura militar, fenômeno que, como é sabido, ganhou força na sociedade brasileira junto com a implementação do projeto de abertura política proposto por Geisel. Para Cordeiro, um episódio emblemático do referido fenômeno é o ostracismo ao qual Médici foi relegado. Por meio da análise da repercussão do adoecimento, da morte e do cortejo fúnebre do ex-presidente (1985), a autora explica por que a popularidade obtida por Médici nos anos do “milagre econômico” foi silenciada, chamando a atenção para a importância de tal silenciamento na construção do consenso democrático estabelecido na década de 1980.
O segundo capítulo, “O enterro do imperador foi uma festa”, aprecia outro cortejo fúnebre: o de d. Pedro I – eleito o “grande” herói a ser homenageado durante os festejos do sesquicentenário. Parte da programação das celebrações, o cortejo fúnebre de Pedro ocorreu em um cenário distinto do de Médici. E despertou, de acordo com Cordeiro, sentimentos dessemelhantes aos observados após a morte do ex-presidente. Como demonstra a autora, na ocasião grande parte da sociedade brasileira – deslumbrada com o “milagre econômico” – costumava rememorar com orgulho o passado nacional, associando positivamente Pedro e Médici: o primeiro era lembrado como o responsável pela independência política do Brasil, e o segundo, reconhecido como o comandante da independência econômica.
Em “Uma festa para Tiradentes: os Encontros Cívicos Nacionais e a abertura dos festejos”, terceiro capítulo, conhecemos a mobilização em torno de outro herói nacional. Conforme a autora, embora Pedro tenha sido escolhido o herói “maior” do sesquicentenário, Tiradentes não foi deixado de lado pelo regime militar, que fez uso de diversos elementos associados ao culto de sua figura – como o martírio, o sacrifício em prol da pátria. Como explica Cordeiro, não à toa 21 de abril foi o dia em que ocorreram os Encontros Cívicos Nacionais, que selaram o início oficial dos festejos. Às 18 horas e 30 minutos dessa data, um discurso de abertura pronunciado por Médici foi reproduzido em diversos recantos do país, seguindo-se de cerimônias de hasteamento da bandeira nacional, bem como de diversos eventos artísticos, culturais e esportivos.
O quarto capítulo, “Da solenidade das comemorações à festa do futebol”, investiga a “Taça Independência” – campeonato que contou com a participação de 20 seleções nacionais, número que, como destaca Cordeiro, excedeu em quatro o total de representantes que disputaram a Copa de 1970. A autora demonstra como a “Taça Independência” – evento organizado pela então Confederação Brasileira de Desportos em parceria com a comissão executiva das festividades – constitui-se em um dos elementos reafirmadores do pacto social firmado entre ditadura militar e sociedade brasileira. Além disso, Cordeiro explica como o referido torneio sintetizou não apenas o espírito festivo que permeou as comemorações do sesquicentenário, mas também, de modo geral, os anos do próprio “milagre econômico”.
No quinto capítulo, “D. Pedro I vai ao cinema: ‘Independência ou morte’, as cores do milagre e a memória”, Cordeiro aborda o filme “Independência ou morte” – produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Carlos Coimbra. Segundo a autora, ao contrário do que muitos pensam ainda hoje, a produção cinematográfica – que narra os acontecimentos que levaram à Independência por meio da trajetória de Pedro – não foi uma iniciativa oficial. Tampouco contou com recursos públicos para sua elaboração. Entretanto, como demonstra Cordeiro, “Independência ou morte” foi apropriado pelo regime militar. Inclusive, de acordo com a autora, o filme – talvez em função de seu caráter não oficial – explorou como nenhum outro evento os valores e sentimentos nacionais exaltados ao longo das comemorações do sesquicentenário.
“A Comissão Executiva Central (CEC) entre o consenso e o consentimento” é o título do sexto capítulo. Nessa seção, Cordeiro explica como a CEC, responsável pela execução dos festejos, foi arquitetada por seu líder, o general Antonio Jorge Corrêa, assim como pelos intelectuais de instituições civis que a compunham – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Associação Brasileira de Imprensa, Conselho Federal de Cultura, entre outras. Ademais, a autora demonstra que a referida comissão acumulou uma quantidade expressiva de correspondências, que não eram apenas institucionais. Conforme Cordeiro, grande parte das cartas endereçadas à CEC foram enviadas por populares, o que proporcionou à autora a oportunidade de analisar, também no sexto capítulo, um vasto painel de opiniões de cidadãos comuns sobre as festividades do sesquicentenário.
Em “O sesquicentenário das vozes dissonantes”, sétimo capítulo, Cordeiro aborda um conjunto de opiniões divergentes ao regime militar. A autora alega não ser possível defender uma tese acadêmica sobre o consenso social estabelecido em torno da ditadura militar sem verificar as múltiplas vozes dissonantes também presentes na sociedade brasileira. Embora minoritárias e diversificadas entre si, tais vozes expressavam, segundo Cordeiro, importantes correntes de opinião. Dentro dessa perspectiva, a autora explica por que o estudo das referidas correntes é um aspecto crucial para uma melhor compreensão das complexidades inerentes ao pacto social instituído entre regime militar e sociedade brasileira, tal como o lento processo de abalo desse mesmo pacto a partir da segunda metade da década de 1970.
No oitavo capítulo, “O colorido fim de festa: a apoteose final da ditadura”, Cordeiro analisa alguns eventos associados ao encerramento das celebrações do sesquicentenário – notadamente, as paradas militares de 7 de setembro, um espetáculo de som e luz ocorrido no Museu do Ipiranga e a Feira Brasileira de Exportação: Brasil Export 72. De modo geral, a autora demonstra como é que – por meio da utilização de tais eventos, que contaram com ampla participação popular – a ditadura militar conseguiu estabelecer diálogos com a sociedade brasileira. Para Cordeiro, o escopo central dos referidos diálogos era chamar a atenção, por meio de usos políticos do passado, para o presente considerado favorável – marcado, em grande medida, pelo “milagre econômico”, assim como por uma expectativa otimista em relação ao futuro do país.
Por fim, em “Anos de chumbo ou anos de ouro? Uma história sempre em reconstrução”, nono capítulo, Cordeiro desenvolve um balanço final sobre as relações estabelecidas entre ditadura militar e sociedade brasileira. A partir da abordagem da oposição “anos de chumbo” versus “anos de ouro”, a autora analisa a complexidade dos comportamentos sociais sob o regime militar. Cordeiro debate, mais especificamente, atitudes como a passividade e a indiferença, que, assim como a colaboração ativa, contribuíram, de acordo com a autora, para a construção do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Ao mesmo tempo, formula reflexões sobre a construção de uma memória social sobre o período do regime militar, lançando luzes sobre determinados mitos, silêncios e esquecimentos.
Ao tomar as comemorações do sesquicentenário como objeto de estudo, Cordeiro nos ajuda a compreender melhor as relações firmadas entre ditadura militar e sociedade brasileira. Em outras palavras, nos auxilia a pensar o tema a partir de um ângulo de visão que vai além das conhecidas interpretações maniqueístas criadas sobretudo a partir do contexto da redemocratização. E que ainda hoje são bastante reiteradas em alguns espaços de debate político. Como se sabe, tais versões costumam apreender o assunto por meio do estabelecimento de polos antagônicos – Estado repressor versus sociedade vitimizada, colaboradores versus resistentes, bem versus mal, entre outros. A autora demonstra que, mais do que isso, existiu uma “zona cinzenta” – eivada de diversidades e ambivalências – situada entre os polos citados, em que se podem observar variadas formas de se comportar diante do regime militar.
Entre esses comportamentos, é possível verificar, de acordo com Cordeiro, um conjunto de práticas de consentimento em relação à ditadura militar, que, por sua vez, contribuíam para reafirmar o consenso social estabelecido no período. Como exemplo, posso citar, entre diversas outras atitudes analisadas pela autora, a conduta dos torcedores brasileiros durante a “Taça Independência”, que, empolgados com a competição, lotavam as arquibancadas dos estádios nos jogos do “escrete canarinho”. Como explica Cordeiro, esses torcedores compunham, de fato, a mise-en-scène do regime militar, participando ativamente dos festejos oficiais, vestindo o verde e o amarelo, carregando suas bandeiras, cantando o hino e as canções de apoio, ovacionando Médici ao vê-lo na tribuna de hora do estádio.
Dentro desse prisma, Cordeiro defende que, mais do que um mero instrumento de manipulação e controle ideológico, as celebrações do sesquicentenário constituíram-se em um mecanismo de reafirmação do consenso social estabelecido em torno da ditadura militar. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, que os brasileiros não eram agentes passivos diante das estratégias de propaganda política promovidas pelo regime militar, que só ganhou força porque, de fato, encontrou resposta na sociedade. Ajuda-nos a compreender também, que, entre a adesão e a resistência, existia uma diversidade de comportamentos sociais que, juntamente com a coerção, a repressão, a propaganda e a censura, contribuíram para a sustentação da ditadura militar ao longo de seus anos de vigência.
De modo geral, Cordeiro trata o regime militar como um produto social. Ou seja, como algo que foi gestado no interior da própria sociedade brasileira. Dessa forma, a autora evidencia as fragilidades de versões longamente partilhadas, como as que defendem que a ditadura militar só foi viável em função das instituições e práticas coercitivas e manipulatórias, ou, então, que a sociedade brasileira foi essencialmente resistente ao regime militar. Indo de encontro a essas versões, Cordeiro demonstra, mais precisamente, como é que, ao longo da ditadura militar, foi formado um consenso social pautado por padrões não democráticos. Consenso esse que, como explica a autora, não foi encarado como algo problemático por grande parte dos cidadãos brasileiros.
Em vista do exposto, ela classifica nossa última ditadura como de caráter “civil-militar”. Nesse ponto, discordo dela. De acordo com o que tem afirmado Carlos Fico, acredito que não é o consentimento ou, até mesmo, o apoio engajado que define a natureza dos eventos da história, mas sim a efetiva participação dos agentes em sua configuração. Nesse sentido, parece-me ser pertinente classificar o golpe de 1964 como de feitio “civil-militar”, pois, além do apoio, ele foi efetivamente dado por civis. Porém, ainda conforme o autor, compreendo que a ditadura subsequente ao golpe foi eminentemente militar. Afinal, como Fico chama a atenção, muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares, justamente porque punham em risco seus projetos de poder. Mas isso é assunto para ser discutido mais detalhadamente em outra oportunidade.
Controvérsias à parte, o que cabe destacar neste momento é que Cordeiro, afinada com a recente renovação dos estudos sobre o regime militar, apresenta análise qualificada e original. A partir da abordagem de aspectos variados das comemorações do sesquicentenário, a autora demonstra como – em um momento conhecido por muitos como “anos de chumbo” – a ditadura militar se apresentou como legítima, sendo, inclusive, capaz de convencer parcelas significativas da sociedade brasileira. Ao percorrer esse caminho, aponta para a necessidade de compreendermos melhor o complexo período do governo Médici: anos de chumbo e, simultaneamente, de ouro, marcados pelos horrores causados por graves violações aos direitos humanos, mas, também, pelos sentimentos de orgulho e otimismo em relação à pátria, que experimentava o “milagre econômico”.
Bruno Duarte Rei – Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) – Rio de Janeiro- Brasil. E-mail: br.duarterei@gmail.com.
PÉREZ, Juan Manuel Santana; PÉREZ, German Santana. La pesca en el banco sahariano, : siglos XVII y XVIII. Madri: Catarata, 2014. Resenha de: HONORATO, Cezar Teixeira. Canários e a pesca no banco saariano (séculos XVII e XVIII). Tempo v.22 no.39 Niterói jan./abr. 2016.
Acabo de ter acesso ao livro dos irmãos Santana Pérez, intitulado La pesca en el banco sahariano: siglos XVII y XVIII, que me causou uma agradável surpresa. Primeiramente, por ser um excelente exercício de história global em tempos de pós-modernidade. Em segundo lugar, por ser um tema pouquíssimo estudado: a pesca.
O livro parte de questões gratas à historiografia clássica ao se apoiar nos princípios da Escola dos Analles, em que a influência braudeliana1 é nítida, além dos pressupostos marxianos em suas mais variadas vertentes. Por tais razões, antes de ser um trabalho tão somente monográfico acerca da pesca, nos dá um painel primoroso do Antigo Regime, especialmente na Espanha dos séculos XVII e XVIII.
As grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais do período fluem ao longo do texto, colocando o tema da pesca saariana praticada nas ilhas Canárias no universo mais amplo em que se inseria a região na transição feudal-capitalista, inclusive em termos dos conflitos das monarquias ibéricas acerca do domínio do Atlântico Sul.
Mas talvez a maior contribuição em termos de uma história global esteja na própria estrutura do livro, na qual questões relacionadas com o mundo do trabalho, a dinâmica das empresas, as características das embarcações e da equipagem utilizada nos principais tipos de pesca, as questões geográficas e ecológicas que foram determinantes no avanço da exploração pesqueira na costa saariana desde o período estudado até os dias de hoje se articulam em um único texto.
A pesca, embora seja uma atividade humana existente desde os primórdios e envolvendo um grande número de pessoas, pouco tem sido observada pelos historiadores. Quando muito, atenta-se para os vários tipos de interdição e controles exercidos pelos Estados visando a controlá-la. Base da alimentação da sociedade, especialmente no caso do pescado salgado, movimentava negócios e trabalhadores com o registro de empresas pesqueiras desde o século XVI no arquipélago de Canárias, ganhando força ao longo dos séculos seguintes, objeto de estudo dos autores.
Os autores já apresentam na introdução o quadro geral do período, destacando-se a opção cronológica quando apontam que, no início do século XVII, foram realizadas as últimas incursões dos espanhóis, ainda com traços das cruzadas, especialmente nas ilhas na costa noroeste africana. Já a escolha do final do século XVIII até quando se aprova a Constituição espanhola de 1837 se deve não só à conjuntura mais global como à conclusão dos tratados de paz com os governantes africanos.
Ainda na introdução temos a descrição das principais fontes utilizadas na pesquisa. Nesse ponto, a surpresa é maior pela amplitude de arquivos pesquisados na França, na Inglaterra e, obviamente, nos vários arquivos espanhóis, com destaque para os das ilhas Canárias. A tipologia variada das fontes e as dificuldades de pesquisa inerentes ao trabalho com manuscritos aumenta ainda mais a importância do trabalho.
No primeiro capítulo, logo merecem destaque a análise detalhada do processo de trabalho da pesca com forte influência de uma excelente base antropológica e o cotidiano do trabalho pesqueiro, identificando cada categoria de trabalhadores envolvidos, suas principais tarefas e a remuneração específica de cada uma, mostrando como eram já bastante complexas as relações de produção no setor. A utilização de dados estatísticos acerca das viagens ocorridas no período, dos custos e da remuneração dos trabalhadores, inclusive de sua dieta alimentar durante o período no mar, torna o trabalho uma referência no tema.
O mesmo se pode dizer das empresas, que, após serem identificadas, tiveram um tratamento dos dados acerca de custos e lucros de algumas das excursões pesqueiras, da rede de negócios envolvendo a pesca, da salga, para, finalmente, terem apresentada a comercialização do pescado, culminando com a análise da contabilidade de uma companhia pesqueira, a Santo Domingo, dos primeiros anos do século XIX.
O segundo capítulo surpreende desde o início pelo domínio do conhecimento acerca da geografia do território de Berbería, local do banco saariano, que se localizava desde o Marrocos e o Saara Ocidental até Arguin, o território mais próximo do arquipélago das Canárias e com maior capacidade pesqueira, razão para os conflitos com os portugueses, que também exploravam a região.
Seguindo os autores, pode-se perceber que a costa africana é uma das regiões marítimas mais produtivas do planeta, pela maior quantidade de peixes passíveis de salga em razão de suas características físicas, envolvendo salinidade, temperatura das águas, correntes marítimas etc. para a pesca de merluza, cherne, bogas ou corvinas, ao contrário da pesca litorânea das Canárias, na qual merece destaque a pesca da sardinha.
No terceiro capítulo, após uma densa descrição do banco de Arguin, os autores investem no processo de ocupação/uso da região pesqueira desde o início do século XVI, inclusive com a apreensão de escravos e a questão da pesca pré-industrial na região. Embora discordemos de sua ideia acerca da própria definição de pesca pré-industrial, seus argumentos são bastante convincentes.
Um dos pontos altos do livro está no quarto capítulo, no qual são analisados o consumo e o comércio de pescado durante os séculos XVI e XVIII. Impressionam a acuidade e o ineditismo da questão da dieta alimentar da população – normalmente negligenciada pela historiografia tradicional -, bem como a importância do pescado fresco (o mais caro) ou salgado, além de lagostas e ostras, na complementação proteica da população, chamando a atenção para seu alto consumo entre os mais pobres.
Preparado de várias formas (frito, cozido, assado ou escabeche), o pescado, que era a base da alimentação dos mais pobres – sempre tendo as Canárias como referência -, não tinha muito prestígio entre os mais ricos, que valorizavam a carne, e, embora largamente consumido, nem era muito considerado como nutritivo pela população em geral, por sua leveza e facilidade de digestão.
Ainda nesse capítulo, merece destaque a impressionante análise da comercialização do pescado, os preços praticados e a preocupação da administração em garantir a qualidade das mercadorias que iam à venda e que seriam consumidas pela população, com uma quantidade impressionante de dados estatísticos extraídos das fontes.
Outra parte se abre com a análise da relação entre a produção de sal e as pescarias. A utilização do sal e a secagem do pescado, com destaque para peixes como o bacalhau, eram fundamentais para garantir sua vida útil com qualidade e para que todo o processo de transporte e comercialização não gerasse adulteração na qualidade, mesmo após longas e demoradas viagens.
O que, para um leitor pouco atento, pode parecer uma digressão ao falar da questão do sal desde a Antiguidade, demonstra a profunda erudição dos autores, e mais, como a busca de uma história total é claramente apresentada no livro, demonstrando o quanto era fundamental a utilização do sal na pesca saariana, representando parte considerável dos custos de produção do pescado.
No sexto capítulo, a obra se dedica a analisar a emergência dos discursos da ilustração e sua relação com a pesca no banco saariano. Tais discursos foram fundamentais para a construção de projetos políticos para o setor. Por meio das iniciativas oficiais, dizem os autores, os ilustrados trataram de fomentar a pesca não só nas Canárias, mas em toda a Espanha, embora poucas das medidas surtiram o efeito esperado.
No último capítulo, os autores apontam ainda para novos projetos relacionados com a pesca que se tentou implementar na Espanha como um todo desde o final do século XVIII até o início do seguinte na região saariana. Entre eles, merece destaque a caça à baleia, seguindo o que ocorria em outros países da Europa, fundamental em razão do aumento mundial de seu azeite.
Outro projeto que entra em debate no mesmo período aponta para a preocupação da pesca predatória tanto nas Canárias quanto no banco saariano. A tentativa de proibir “redes de arrasto” com cota de malha pequena foi uma das medidas visando a evitar a diminuição da oferta pesqueira.
Finalmente, nas conclusões, os autores retomam muitas das questões desenvolvidas ao longo do denso texto e apontam a permanência nos dias de hoje de muitas das práticas da pesca e de barcos, em que pese o avanço da grande pesca industrial.
Por todas essas razões, acredito que se trata de um livro fundamental para o entendimento da história das ilhas Canárias, da África saariana, da própria dinâmica da sociedade da transição feudal-capitalista, considerando um tema ainda pouquíssimo estudado entre nós. Trata-se de uma obra madura de professores catedráticos da Universidade de Las Palmas de Gran Canarias. Pois tais razões, não temos dúvida de esse livro já se tornou uma referência fundamental para aqueles que queiram estudar tais assuntos, podendo servir de inspiração para os pesquisadores brasileiros em busca de novos temas e de “maneiras de fazer história”.
1Especialmente BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. Tradução do Ministério da Cultura Francês. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983. 2 v.
Cezar Teixeira Honorato – Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Brasil. E-mail: cezarhonorato@gmail.com.
Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888)
A publicação de Flores, votos e balas, de Angela Alonso, é mais do que bem vinda ao mercado editorial brasileiro, tão escasso de títulos com perspectivas historiográficas abrangentes. Seu amplo escopo, sua variação de escalas e sua escrita envolvente certamente o tornarão uma obra referencial para o público mais geral, interessado em conhecer em detalhes os conflitos, os projetos, os personagens, as estratégias de luta e os principais eventos que, reunidos, marcaram o movimento abolicionista brasileiro, elemento central do processo que levou ao fim da escravidão no país. A fortuna crítica do livro, no entanto, não se esgotará aí, já que alguns de seus postulados deverão propiciar a retomada de um dos grandes debates da historiografia brasileira, que versa sobre as causas que levaram ao fim do cativeiro em 1888, e podem suscitar um profícuo diálogo sobre a temporalidade da escravidão oitocentista no país.
Antes de entrar nessas questões, convém primeiro apresentar os pressupostos que estruturam a obra, fundamentais para entender seu argumento. Por meio de uma estratégia narrativa que parte das trajetórias individuais dos principais nomes do abolicionismo e do escravismo nacional, Angela Alonso buscou fornecer uma visão de conjunto do primeiro movimento social de massas do país. Para isso, recorreu à chamada “abordagem relacional”, ancorada principalmente na sociologia histórica de Charles Tilly, para postular que a compreensão do abolicionismo deve levar em conta três variáveis históricas: movimento social, Estado e contramovimento. Isso, em outras palavras, significa dizer que a atuação dos abolicionistas não é tomada de forma isolada, mas sempre com base nas dinâmicas sociais e políticas que a condicionam.[1] Nas palavras de Alonso, “as conjunturas políticas são a chave para entender […] todas as […] táticas abolicionistas” (p. 18). A proposição não é de pouca monta. Além de ir na contracorrente de boa parte dos estudos sobre abolição produzidos nas últimas décadas, que reduzem as múltiplas dimensões do processo histórico ao sequenciamento de séries judiciais, ela traz implicações diretas para as conclusões apresentadas pela autora.
Ao tomar a luta organizada para dar fim ao cativeiro como parte de um todo mais amplo, um dos principais ganhos historiográficos de Flores, votos e balas é demonstrar a historicidade do movimento abolicionista brasileiro, tradicionalmente descrito como uma unidade estanque, que se alastrou progressivamente pela sociedade até alcançar seus objetivos. Do emprego da abordagem relacional, portanto, decorre diretamente uma das ideias centrais do livro, a de que a atuação do movimento abolicionista foi constituída por três fases distintas: a primeira, das flores (1868-78), marcada pela forte atuação dos antiescravistas no espaço público dos grandes centros urbanos do país; a segunda, dos votos (1878-85), na qual o foco dos militantes recaiu sobre a macropolítica imperial; e a terceira, das balas (1885-88), quando os abolicionistas, cansados dos seguidos fracassos parlamentares, partiram para a desobediência civil e passaram a incentivar clandestinamente as fugas em massa de cativos. Nesse ponto, não há o que discordar. Os argumentos da autora são mais do que convincentes quanto à historicidade do abolicionismo.
Mas nem só de flores é feito o livro. Sua outra ideia central, que diz respeito à importância do abolicionismo para o fim da escravidão, é mais discutível que a anterior. Segundo Angela Alonso, o resultado obtido em 1888 não “foi nem obra dos escravos, nem de princesa” (p. 17) e – poderíamos acrescentar, de acordo com outras passagens do livro – nem fruto de condições econômico-demográficas, mas resultou diretamente da atuação de André Rebouças, Joaquim Nabuco, Luís Gama, José do Patrocínio e companhia. Com essa abordagem, a autora se afasta da interpretação que vincula o fim da escravidão às ações da família real, da explicação mais estruturalista da Escola de São Paulo (especialmente da obra de Emília Viotti da Costa) e de parte da corrente historiográfica que focou suas análises na agência escrava; e, assim, afina-se às concepções de Seymour Drescher e outros autores sobre o abolicionismo anglo-saxão como motor da história da emancipação dos cativos. O postulado, no entanto, acaba funcionando como uma faca de dois gumes: de um lado, reintroduz o movimento abolicionista como uma das variáveis centrais para a compreensão do processo que levou ao fim do cativeiro no país, cobrindo uma importante lacuna deixada pelas produções das últimas quatro décadas; de outro, joga de escanteio a participação dos escravos e as transformações econômicas e demográficas ocorridas nas últimas décadas do Império, ambas pouco incorporadas ao livro.
Vejamos como isso ocorre ao longo da obra, começando pelo problema da participação dos escravos. Como se sabe, um dos grandes avanços da história social consistiu em mostrar como a atuação dos cativos na década de 1880 teve impacto direto para a derrocada do sistema escravista brasileiro. Isso, no entanto, pouco aparece no livro de Angela Alonso, provavelmente porque a trinca de variáveis com as quais a autora trabalha (movimento, Estado e contramovimento) não leva em conta, por exemplo, a atuação dos cativos, agentes que não podem ser classificados nem como abolicionistas (movimento) e muito menos como escravistas (contramovimento). Assim, durante a fase das balas, as fugas em massa que atingiram principalmente as regiões cafeicultoras são vistas na maior parte do tempo como reflexo da militância antiescravista. Mesmo que a autora tenha feito questão de ressaltar que “o combate à escravidão não foi obra exclusiva dos abolicionistas” e que “havia ações autônomas dos escravos” (p. 305), essas dimensões não são efetivamente integradas à narrativa do livro.[2]
Algo semelhante acontece com as transformações econômicas e demográficas, igualmente relativizadas em função do emprego da abordagem relacional. Ao afirmar que “os fatores decisivos para que [a escravidão] acabasse quando acabou foram políticos” (p. 336) – seguindo indicação de Robert Slenes em artigo clássico3 -, Angela Alonso desconsidera evidências de ordem econômica e demográfica às quais ela mesma faz referência ao longo do livro. Isso ocorre, por exemplo, quando a autora analisa a ampliação do movimento abolicionista na década de 1880, que contou com um público “desvinculado da escravidão” por conta do “tráfico interprovincial [que] aglomerava escravos nas regiões de agricultura de exportação e nas famílias de posse” (p. 145); e quando explica a tática abolicionista de libertação dos cativos de determinadas províncias e cidades do país (especialmente p. 194, 213, 266). Ao contrário do que a autora defende, esses exemplos podem servir para refletir sobre o peso que as dimensões econômica e demográfica exerceram para o desfecho do processo abolicionista. Teriam sido essas variáveis tão relevantes quanto as ações dos sujeitos históricos? Ou ainda, como afirma a autora, a ação política teria sido preponderante sobre as outras duas?
Uma resposta pode ser dada analisando-se mais de perto a relação entre tráfico interprovincial e a estratégia abolicionista de suprimir a escravidão província por província. Para Angela Alonso, “demografia e economia tiveram sua relevância”, mas “não [são] suficientes” para explicar essa tática, pois nesse caso – como nos demais – “decisivo foi mesmo o fator político” (p. 194). Ora, a relevância da economia e da demografia são tão centrais quanto a da política para explicar o fim da escravidão em determinadas partes do Império, já que foi a dinâmica da economia mundial que criou as condições para a atuação dos militantes abolicionistas. Dois exemplos podem ajudar a explicar melhor o que queremos dizer.
O Ceará – primeiro território libertado pelos abolicionistas – foi uma das províncias brasileiras mais afetadas pela paralisação da produção algodoeira norte-americana que se seguiu à Guerra Civil (1861-1865). Na década de 1860, incentivados pela forte demanda da indústria britânica, ávida pela matéria-prima que lhe faltava, muitos pequenos e médios agricultores locais passaram a se dedicar ao cultivo da fibra, abandonando a produção de gêneros alimentícios. A crise do setor, contudo, chegou mais rápido do que se esperava. Incapazes de competir com os novos produtores que ditavam o preço do produto no mercado mundial (Índia e Egito) e cada vez mais prensados pela recuperação da produção norte-americana no início dos anos 1870, os cearenses foram aos poucos abandonando a cultura algodoeira. Em resultado, desfizeram-se paulatinamente de seus cativos, vendendo-os para os cafeicultores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, necessitados de mão-de-obra para tocar a expansão de sua produção. No início dos anos 1880, em razão da dinâmica da economia global, eram poucos os cativos que restavam na província, abrindo o caminho para a formulação de uma política abolicionista local.[3]
No Rio Grande do Sul, outro processo histórico, mais lento, levou a resultados parecidos. Desde a revogação das Corn Laws, em 1846, os produtores de grãos argentinos souberam tirar proveito da abertura do mercado britânico de cerais, avançando suas fronteiras agrícolas. Para atender às crescentes demandas de trigo no centro da economia mundial e dar vazão aos grãos cultivados cada vez mais no interior do país, Estado e investidores privados fizeram investimentos maciços em transporte ferroviário a partir dos anos 1870. Com isso, conseguiram não apenas transformar a Argentina em um dos principais fornecedores de trigo para a Grã-Bretanha, mas também auxiliaram indiretamente os criadores de gado, que se valeram de toda infraestrutura criada para exportação de cereais, especialmente do barateamento do custo dos transportes, para tornarem seu produto mais competitivo. Na década de 1870, já era patente aos produtores rio-grandenses que seu charque não era capaz de concorrer com seus rivais argentinos, até mesmo no mercado interno. Em crise, desfizeram-se paulatinamente de seus escravos, vendendo-os para os pujantes centros produtores de café, os mesmos para os quais estavam rumando os escravos do Ceará. [5]
Sem as condições materiais criadas pela economia global, os abolicionistas teriam encontrado uma realidade muito diversa para livrar a província do Ceará, a cidade de Porto Alegre e outros municípios gaúchos da existência de escravos na década de 1880. Foi graças às crescentes desigualdades regionais do Brasil induzidas pela dinâmica econômica global que a militância deles se tornou viável e apareceu, como Alonso destaca, a figura dos presidentes de província favoráveis à causa, elemento importante para sacramentar a abolição nos territórios mencionados. Como se vê, é discutível afirmar, nesse caso, que a política foi um fator mais decisivo que os demais. Uma explicação que dê conta da totalidade da libertação de alguns territórios, assim como de todo o processo abolicionista, precisa trabalhar com as intersecções entre política e economia. Ainda que esse não tenha sido o propósito da autora, dado seu foco no movimento abolicionista, é forçoso dizer que ela poderia ter dialogado mais com a bibliografia que descreve os processos econômicos globais e seus impactos no Império do Brasil para situar melhor as possibilidades de atuação dos agentes históricos que estudou.
Ainda assim, o ponto mais questionável de Flores, votos e balas reside na categoria “escravismo de circunstância”, que Angela Alonso cunhou tendo por base uma leitura muito particular dos discursos emitidos pelos escravistas brasileiros. Para a autora, o termo descreve a atuação de Paulino Soares de Sousa e seu grupo a partir de 1871, quando teriam sido “compelidos pela conjuntura a justificar a situação escravista, sem defender a instituição em si” (p. 59). Tal afirmação, pode-se dizer, resulta de uma determinada compreensão da temporalidade da escravidão oitocentista brasileira. Como deixa evidente no primeiro capítulo, a autora, inspirada na obra de Seymour Drescher, entende a sequência de abolições ao redor do mundo como uma unidade histórica. Ainda que as enquadre em dois grandes ciclos – o primeiro, grosso modo, de 1791 a 1850, e o segundo da década de 1850 a 1888 -, essas abolições são descritas como pertencentes a um mesmo processo histórico de aproximadamente cem anos (p. 27-32). Essa perspectiva joga para um ponto cego diversos fenômenos históricos. Daí, provavelmente, o silêncio de Alonso sobre o período que vai de meados da década de 1830 à década de 1860, quando houve um reforço da escravidão tanto no Brasil, como em Cuba e nos Estados Unidos. Naquele lapso de tempo o cativeiro passou por uma nova configuração, atrelando-se de forma única à economia mundial e de forma diversa aos regimes representativos do século XIX. [6]
No Império do Brasil, o reforço da escravidão materializou-se com a ascensão do grupo conhecido como Regresso, núcleo histórico do futuro partido Conservador, que empreendeu uma verdadeira política da escravidão, estabelecendo alianças com proprietários e políticos das principais regiões de agricultura exportadora e atuando de forma conjunta no Parlamento e nos espaços públicos do Rio de Janeiro em aberta defesa do tráfico negreiro e do cativeiro. [7] Paulino Soares de Sousa, o filho, personagem que no livro de Angela Alonso sintetiza o “escravismo de circunstância”, foi o grande herdeiro da geração que havia ascendido nos escalões da macropolítica imperial defendendo a escravidão. Seu escravismo, portanto, não tinha nada de circunstancial. Representou, ao contrário, o ponto de chegada de uma vertente do liberalismo que buscou fazer frente ao projeto catapultado pela Grã-Bretanha de gerenciar a exploração social do trabalho por meio da liberdade individual. Paulino e seus seguidores protegiam com unhas e dentes o cativeiro como parte de um projeto civilizacional cuja estrutura residia na mais longa escravização possível de africanos e de seus descendentes. Tanto ele como a geração que o antecedeu costumavam projetar o fim da escravidão para um ponto futuro, desde que esse futuro fosse suficientemente longe da política do presente. Seu escravismo de linha do horizonte – vê-se o fim dele, mas ele nunca é alcançado – não era circunstancial. Encarnava a lógica da ideologia escravista imperial. Entender isso é, no fim das contas, compreender a temporalidade da escravidão brasileira no século XIX, elemento fundamental para avaliar de forma plena o abolicionismo que surgiu nos anos 1860.
É importante frisar que os aspectos discutidos acima não diminuem a importância do livro, que traz significativos avanços para a compreensão do processo abolicionista brasileiro. Entre eles, vale a pena mencionar a relação de Abílio Borges com a carta enviada pela Sociedade Francesa pela Abolição da Escravidão a D. Pedro II em 1866 (p. 34-43); a compreensão do movimento abolicionista como um movimento moderno por excelência (p. 20); o impacto da Guerra Civil norte-americana para a crise da escravidão brasileira (p. 31); e a preocupação com a escala global do abolicionismo e do escravismo nacionais, sempre vistos à luz de seus congêneres cubanos e norte-americanos (p. 103, 127, 291-93, 300, 305 e 327). Por todos esses motivos, Flores, votos e balas cravou lugar entre as leituras obrigatórias para aqueles que estão preocupados em compreender as variáveis históricas que conduziram ao fim da escravidão no Brasil. Concordando-se ou não com suas ideias, a obra precisará ser enfrentada pelos especialistas da área – apresentando ainda a vantagem de poder ser desfrutada pelo público mais geral.
Notas
1.A metodologia da obra é trabalhada de forma mais minuciosa em ALONSO, Angela. O movimento abolicionista como movimento social. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 100, nov. 2014,
2.A bibliografia sobre o tema é extensa. Ficam aqui as indicações de MACHADO, Maria Helena P T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas (1830-1888). 2ª edição. São Paulo: EDUSP, 2014; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. São Paulo: Unicamp, 2010; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes de. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. 2ª edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2008; e XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. São Paulo: Centro de Memória/Editora da Unicamp, 1997.
3.SLENES, Robert W. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci del Nero da (ed.). Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986, pp. 103-55.
4. Sobre o tema, ver CANABRAVA, Alice P. “A grande lavoura”. In: Sérgio Buarque de Holanda (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico, vol. 6: Declínio e Queda do Império,pp. 103-66; BECKERT, Sven. Empire of Cotton: A Global History. New York: Alfred A. Knopf, 2014; e SLENES, Robert W. The Brazilian internal slave trade, 1850-1888: regional economies, slave experience, and the politics of a peculiar market. In: JOHNSON, Walter (ed.). The chattel principle: internal slave trades in the Americas.New Haven: Yale University Press, 2004, pp. 325-370. A título de curiosidade, vale lembrar que a biografia de João Capistrano de Abreu esteve estreitamente vinculada ao movimento descrito no parágrafo. O historiador era oriundo de família cearense que plantou algodão nos anos 1860, no contexto da Guerra Civil norte-americana, e vendeu seus escravos no decênio seguinte, quando a competição internacional se acirrou. Foi, inclusive, com o dinheiro da venda de um deles que Capistrano conseguiu pagar a passagem para o Rio de Janeiro e tentar a sorte na capital imperial. Sobre o tema, cf.. REIS, José Carlos. Capistrano de Abreu (1907). O surgimento de um povo novo: o povo brasileiro. Revista de História, São Paulo, 138 (1998), 63-82.
5. FAIRLIE, Susan. The Corn Laws and British Wheat Production, 1829-76. The Economic History Review,New Series, Vol. 22, No. 1 (Apr., 1969), pp. 88-116; MARRISON, Andrew (ed.). Free Trade and its Reception, 1815-1960. London; New York: Routledge, 1998; ZEBERIO, Blanca. Un mundo rural en cambio. In: BONAUDO, Marta (dir.). Nueva História Argentina, tomo 4: Liberalismo, Estado y orden burgués (1852-1880). Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1999, p. 293-362; SLENES, Robert W. Op. cit.; e SCHEFFER, Rafael da Cunha. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850-1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 2012.
6. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. Trad. Port. São Paulo: EDUSP, 2011; BLACKBURN, Robin. The American Crucible: Slavery, Emancipation, and Human Rights.London; New York: Verso, 2011; BERBEL, Marcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; e PARRON, Tâmis. A política da escravidão na Era da Liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846.Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
7. Além dos trabalhos referidos na nota acima, cf. YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios (no prelo); e ESTEFANES, Bruno Fabris; PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain El. Vale expandido: contrabando negreiro e a construção de uma dinâmica política nacional no Império do Brasil. Almanack.Guarulhos, n. 07, p. 137-159, 1º semestre de 2014.
Alain El Youssef – Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: alayoussef@yahoo.com.br
ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Resenha de: YOUSSEF, Alain El. Nem só de flores, votos e balas: abolicionismo, economia global e tempo histórico no Império do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 205-209, maio/ago., 2016.
Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império | Jurandir Malerba, Cláudia Heynemann e Maria do Carmo Teixeira Rainho
Em 1965, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira e Bacalhau cantaram, em samba-enredo do Império Serrano, uma história dos grandes bailes da história da cidade do Rio de Janeiro.[1]2 Um dos destacados pelos compositores, o último d'”Os cinco bailes da história do Rio”, era o baile da Ilha Fiscal, que o governo da monarquia promoveu em 9 de novembro de 1889 em homenagem à visita de oficiais chilenos ao país – poucos dias antes, portanto, do fim do regime. O tema não era novidade para a escola: em 1953 o Império ficou na segunda colocação no desfile com o samba “O último baile da Corte imperial”, assinado por Silas de Oliveira e Waldir Medeiros. Em 1957, foi a vez da Unidos de Vila Isabel relembrar a efeméride, indo para a avenida com o samba “O Último Baile da Ilha Fiscal”, de Paulo Brandão, ainda que sem tanto sucesso. A presença do baile da Ilha Fiscal nos três sambas sugere sua força como marco para a memória urbana do Rio de Janeiro.
O último e nababesco baile da monarquia brasileira ressurge no livro Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império (EdiPUCRS, 2014), organizado por Jurandir Malerba, Cláudia Heynemman e Maria do Carmo Rainho. O livro reúne artigos de especialistas nas mais diversas áreas (moda, música, gastronomia, esportes e política) sobre uma notável coleção de documentos que o capitão de fragata José Egydio Garcez Palha organizou recolhendo menus, carnês de bailes, partituras musicais e comentários variados na imprensa sobre o baile, seus participantes e seus promotores. Recolhida entre 1889 e 1891, a coleção pertence desde 1930 ao Arquivo Nacional.
Um dos pontos destacados pelos organizadores na apresentação da obra reside no farto manancial de informações sobre diferentes aspectos do fazer cotidiano da cidade que se queria moderna. Desde nuances do fazer da mais alta política em suas recepções diplomáticas aos cochichos e maledicências sugeridas na imprensa, passando pelas preferências estéticas da elite imperial em sua frequência a casas da moda, cabeleireiros e confeitarias, a coleção realça a grandiosidade daquele baile sob a ótica dos personagens da própria época. Mesmo quem não esteve entre os aproximadamente 4 mil presentes à grandiosa festa pôde sentir de perto a grandeza do momento. Do Cais Pharoux dava para apreciar a suntuosidade da Ilha Fiscal fartamente iluminada por fogos de variadas cores, 700 lâmpadas elétricas e 60 mil velas. Do cais, ademais, partiam as damas e senhores da sociedade rumo ao baile.
A recepção aos chilenos se estendeu para além do baile, tendo durado dois meses. Nesse tempo, um interlúdio: a república fora proclamada bem no meio da visita dos convidados daquele país, chegados ao Rio em meados de outubro e partindo da cidade em finais de novembro. Em que pese a mudança de regime, mantiveram-se as variadas atividades propostas aos ilustres visitantes. Não fosse a república, teriam ainda as conversas sobre o baile rendido mais um tanto? Seja como for, o fato é que, 15 de novembro à parte, a grandeza do ultimo baile da monarquia imprimiu sua marca indelével na memória da cidade.
“Dê-me um pouco de magia, de perfume e fantasia e também de sedução”: impressões sobre as festas chilenas.
No livro, os capítulos de autoria de Victor Melo, Carlos Sandroni, Laurent Suaudeau, Carlos Ditadi e de Maria do Carmo Rainho apresentam por meio da análise da imprensa o que os organizadores chamam de “clima de opinião”. De fato, brotaram comentários os mais variados nos jornais da cidade, incluindo a observação de costumes e práticas de elite não tão bem assimiladas por alguns dos convidados presentes no baile. Algo a se estranhar, a princípio, pois segundo Melo, coordenador do Laboratório de História e do Esporte e Lazer da UFRJ, “a cidade já estava acostumada e apreciava atividades públicas” de monta, desde teatros ao turfe e ao remo, passando por festividades religiosas e sociedades dançantes (p. 118-119; 158).
De fato, se nos fiarmos no samba de Ivone, Silas e Bacalhau, a tradição festiva da cidade vem de longe. Segundo o musicólogo Carlos Sandroni, na ausência de formas de comunicação como o rádio, eram as bandas musicais, geralmente militares, que embalavam as festas, numa mobilidade impressionante que lhes permitia tocar em locais diferentes no mesmo dia. Sua onipresença não marcaria apenas a importância e formalidade de ocasiões solenes. Pelo contrário, elas botavam as pessoas para dançar. No baile de Ilha Fiscal tocou-se de tudo: quadrilhas, valsas, polcas e lanceiros animaram os presentes madrugada adentro, até quase o sol raiar, prática comum, aliás, em outros bailes frequentados pelos cariocas (p. 138-140).
Ao som da música, o detalhe das práticas ditas civilizadas – inclusive porte e vestimenta adequados para as danças – passava como forte signo de distinção, aspecto que apontava proximidades políticas e maneiras de inclusão no regime, tema que perpassa toda a obra. Victor Melo, em capítulo sobre as práticas esportivas, apresenta as disputas entre grupos de elite por receber a comissão chilena em seus clubes de remo e de turfe, preferência entre os cariocas mas que dividia as elites. Esses clubes serviam de ponto de encontro e aproximação entre grupos de preferência política comum, como republicanos ou monarquistas, respectivamente (p. 121; 129). Idem para o porte nessas ocasiões ou mesmo à mesa: estima-se que o refinadíssimo banquete oferecido aos chilenos no baile da Ilha Fiscal tenha custado aos cofres públicos 250 contos de Réis, segundo Suaudeau, que é chefe de cozinha, e Debati, pesquisador no Arquivo Nacional, quase 10% do orçamento da província do Rio (p. 162). Repleto de iguarias da culinária estrangeira, especialmente francesa, o banquete foi alvo de crítica de parte da imprensa pelos seus custos e também pelo pouco apreço às “iguarias puramente brasileiras”, segundo matéria n’O Paiz (p. 166). Convidados e garçons também foram alvo da crítica de jornalistas: homens fumando, conversando alto, acotovelando as senhoras, atirando restos de comida ao chão receberam comentários reprovadores. Assim como os criados, considerados desleixados e um tanto “esquecidos” (p. 107, 165). As senhoras não foram poupadas: entre os objetos encontrados após o baile, havia até mesmo espartilhos e “algodões em rama”, usados por debaixo dos espartilhos para dar corpo às mulheres (p. 107). Ao que parece, os algodões perdidos – e que demandavam o manejo, digamos, mais complexo da vestimenta feminina – não foram poucos, segundo Sandroni (p. 144). Não haveria ocasião melhor para manejos mais quentes. Afinal, a proximidade de corpos em danças regradas (ou nem tanto) realçava um tipo particular de experiência sensual que legava às senhoras assíduas frequentadoras de baile a “fama de assanhadas”.
A falta de civilidade pareceu quase geral, segundo observadores, incluindo a adequação da roupa à ocasião. Perder espartilhos não era pouca coisa: frequentada como foi por “senhoras e cavalheiros da fina flor fluminense” (p. 144), festas como a oferecida aos chilenos inscrevem-se, segundo Rainho, especialista em História da Moda, numa “cultura das aparências” que ganhava força entre a elite carioca especialmente nos anos finais do Império. O baile da Ilha Fiscal gerou um apagão no comércio de modas na cidade: não havia costureiras, maisons e cabeleireiros suficientes para tanta dama convidada. Ao mesmo tempo que manuais de etiqueta ensinavam cada vez mais a circunspecção feminina, as roupas atuavam como um poderoso meio de sedução que não cabia nesses manuais (p. 199).
“Algo acontecia, era o fim da monarquia”: aproximações entre cultura e política.
Segundo Rainho, além do mais, algo chamava a atenção nos comentários na imprensa sobre o grandioso baile: a ausência de comentários sobre a vestimenta dos oficiais chilenos (p. 201). Sebastião Uchoa Leite, poeta e ensaísta, em texto originalmente publicado em 2003 para o projeto que deu origem ao livro, apresenta um ponto interessante nesse sentido. Em grande parte dos comentários e reportagens sobre a recepção dos chilenos havia “um clima de oposição crítica ao próprio status quo reinante no país” (p. 101).
“Espécie de miragem”, ainda segundo Leite, o baile teria sido o ponto culminante do significado das “festas” para a monarquia. A observação não deixa de ser paradoxal, dado que a corte de Pedro II era avessa a grandes festividades. Jurandir Malerba, professor da PUCRS, lembra que o último baile no Paço Imperial ocorrera em 1852 após o encerramento das atividades do Parlamento (p. 39). Nesse ínterim, a família imperial teria se contentado com apresentações teatrais um tanto amadoras e para poucos convidados. No que Malerba lança uma hipótese interessante: considerando a destreza política de Dom Pedro II e sua saúde já frágil que cada vez mais servia como justificativa para seu distanciamento da condução direta da política nacional, o baile da Ilha Fiscal pode ter sido calculado para encenar “o grand finale de seu reinado” (p. 42-43).
Minuciosamente representado como signo de civilização em terras americanas, o Império do Brasil apresentava também seu lado moderno por meio de sua capital, o Rio de Janeiro. Cláudia Heynemann, supervisora de pesquisa no Arquivo Nacional, chama atenção para o vasto roteiro de visitas da comissão chilena, que em muito se aproximava daqueles propostos por livros de viagem do oitocentos (p. 57). Malgrado a presença de alguns problemas como calçamento e arborização, o processo de modernização pelo qual passava a cidade na segunda metade do XIX entrelaçava natureza e cultura por meio de obras como as do Passeio Público, do Campo da Aclamação e do Jardim Botânico (p. 65), uma modernidade ao mesmo tempo pedagógica e disciplinar (p. 70). Cidade já bastante grande, que contava com 226 mil pessoas livres e quase 5 mil escravos segundo o censo de 1872, o Rio de Janeiro se complexificava: novos bairros foram criados, acompanhados pela expansão do serviço de trens e bondes. Novas práticas de sociabilidade surgiam a seguir marcadas por hábitos europeizados, segundo Vivien Ishaq, doutora em história. A rua do Ouvidor mantinha o cetro de polo dos modismos e do bom gosto, mas cada vez a cidade também se dividia em várias se considerarmos os usos distintos dos espaços pelos grupos de diferentes camadas da sociedade (p. 81-84).
Em comum a todos os artigos de Festas Chilenas está o destaque para o baile como espaço de autorrepresentação tanto das elites imperiais quanto do próprio regime: esse ponto é especialmente destacado por Sebastião Uchoa Leite e Jurandir Malerba. Leite, ao sublinhar aspectos políticos de ocasiões festivas, neste caso por meio da imprensa através das críticas a usos e maneiras apresentados no baile, afasta o caráter “ameno” da ocasião. Houve encontros entre os aproximadamente 4 mil presentes mas havia também tensões (p. 109-110), presentes já no momento de seleção dos convidados. Malerba, ao realçar o baile como momento político, o faz invertendo o argumento recorrente de que a monarquia apostava, ali, no início de um esplendoroso terceiro Reinado, sob a batuta de Isabel e secundada por seu esposo, o conde d’Eu. Para o autor, o baile foi um último lance político mas com repercussões na esfera da cultura: era a memória da monarquia que estava em jogo.
Malerba distancia-se, assim, do argumento de José Murilo de Carvalho de que o baile teria sido um “golpe de publicidade” pró-continuidade monárquica, pensado por este autor em grande medida a partir de obras ficcionais de Machado de Assis. Em sua argumentação, Malerba oferece ao monarca (e ao regime como um todo) o papel de agente de sua história – e da representação da memória de seu reinado. Ainda que lançado como hipótese, o argumento é interessante na medida em que se aproxima de discussões mais recentes no campo da cultura acerca de sua percepção como manancial de estratégias referendadas pelo contexto, e não como um todo encerrado em si mesmo (segundo uma concepção vulgar e equivocada, porém corrente, de sistema).
Na esfera da historiografia contemporânea, a micro-história propõe um importante debate nesse sentido. Sua aproximação com a antropologia, especialmente aquela proposta por Clifford Geertz, promoveu o entendimento da cultura como um campo no qual o sentido dos símbolos deve ser entendido na análise de situações sociais específicas – é exemplar a “descrição densa” da briga de galos balinesa proposta por Geertz.[2] Mais especificamente, a micro-história investe seu esforço de análise nas ressignificações dos símbolos em situações de disputas sociais, tendo em vista a reflexividade dos sujeitos e sua capacidade de ação racional – como não se lembrar, por exemplo, do pensamento do moleiro Menocchio, estudado por Carlo Ginzburg?[3] Para Giovanni Levi, em artigo de revisão das tendências de análise na micro-história, “a abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado [tomando o] particular como seu ponto de partida […] e prossegue, identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico”.[4] Longe da dicotomia que prevaleceu em discussões sobre agência e estrutura ou, de modo mais específico, entre cultura e política, Festas Chilenas lança um olhar sobre a esfera cultural que em muito se alimenta do próprio contexto político. Embora o imperador não ofertasse bailes de monta havia décadas, isso fazia parte do script do fazer monárquico. A suntuosidade da ocasião parecia acenar, assim, menos para o futuro que para o passado de grandiosidade da própria monarquia.
O samba do Império Serrano traz tais elementos para dentro da cena: “o luxo, a riqueza, imperou com imponência” ainda no baile da Independência. No baile da Ilha Fiscal se brindava “aquela linda valsa, já no amanhecer do dia”. “Iluminado estava o salão, na noite da coroação” de Pedro II. Acompanhando os cinco grandes bailes da cidade eleitos pelos compositores, dois localizam-se nos tempos do reinado de Pedro II. Ainda que o recurso ao fausto das festas apresentadas no samba tenha relação com a própria lógica de composição interna do samba-enredo, que ganhava novo formato especialmente nas mãos de Silas de Oliveira,[5] na memória urbana do Rio de Janeiro aquele momento parecia estar encravado como digno de rememoração. Não foi esse o único samba, aliás, a lembrar o baile: mesmo que o samba de 1953, também de Silas, tenha sugerido que nem imperador nem a corte esperavam o fim da monarquia, o esplendor do baile agradara a todos, inclusive os homenageados.[6]
Na esteira da hipótese de Malerba, que vê o baile como grand finale à luz do modus operandi do regime monárquico e de suas lógicas de formação de laços centralizados na figura de Pedro II (“não se faz políticas sem bolinhos”, lembrava o barão de Cotegipe), seria interessante perceber as inscrições desse último movimento do regime não apenas na memória da cidade, mas na memória popular urbana do Rio. Mesmo que todos os artigos da obra considerem, por exemplo, matérias em jornais como expressão de olhares algo debochados e um tanto críticos do baile, da elite imperial e do regime em si, a aproximação dessa perspectiva com outras do restante da população da cidade poderia iluminar mais o argumento central. Poucos anos mais tarde João do Rio chamaria a atenção para a forte presença de símbolos imperiais entre a população pobre e negra da capital da agora república.[7] Os grupos de capoeiras que desmantelavam conferências de republicanos e, após a abolição, a própria guarda negra suscitavam temor frequente entre os grupos aderentes ao novo regime instaurado enquanto os chilenos nos visitavam. Embora nossas fontes disponíveis não o expressem de maneira discursiva, alguns aspectos da cultura popular da cidade parecem ter alguma coisa a nos dizer sobre os significados não só do último baile da monarquia, mas do regime monárquico como um todo, mais tarde cantados “em sonho” na memória urbana carioca.
Notas
1. Vale escutar o áudio do samba-enredo da escola daquele ano, de autoria dos três, intitulado “Os cinco bailes da história do Rio“. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=laEBlDSZQZc . Acesso em 10 de abril de 2016.
2. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas.Rio de Janeiro: LTC, 2008.
3. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes:o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
4. LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In BURKE, Peter (org). A escrita da história:novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992, p. 154-155.
5. VALENÇA, Rachel; VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1981.
6. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
7. Ver, por exemplo, a crônica “Os Tatuadores”, no livro A alma encantadora das ruas:crônicas. Organização de Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
Carlos Eduardo Dias Souza – Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP São Paulo, SP, Brasil. E-mail: kdudiaz@gmail.com
MALERBA, Jurandir; HEYNEMANN, Cláudia; RAINHO, Maria do Carmo Teixeira (Orgs.). Festas Chilenas: sociabilidade e política no Rio de Janeiro no ocaso do Império. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014. Resenha de: SOUZA, Carlos Eduardo Dias. O quinto baile da história do Rio. Almanack, Guarulhos, n.13, p. 210-214, maio/ago., 2016.