nserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave – FURTADO; NAKAMURA (TES)

FURTADO, Juarez Pereira; NAKAMURA, Eunice (orgs.). Inserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave. São Paulo: Editora FAP-Unifesp, 2014. 432 p. Resenha de: SOALHEIRO, Nina. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

O livro Inserção social e habitação de pessoas com sofrimento mental grave demanda fôlego do seu leitor, o mesmo que foi necessário aos organizadores e autores para nos apresentar os resultados de um trabalho assumidamente longo e complexo. Organizado por um profissional da saúde coletiva com larga experiência no campo da saúde mental e uma antropóloga que tem seus estudos também voltados para o campo, o livro reúne pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento, mas orientados por uma metodologia rigorosamente interdisciplinar. Por isso não é uma leitura fácil nem dada a simplismos; ao contrário, vai muito além dos limites conceituais já consagrados no campo da atenção psicossocial.

Desde o título, o livro deixa claro que os organizadores e autores falam de inserção social e não de ‘reinserção social’ ou ‘reabilitação psicossocial’; falam de habitação e não apenas de ‘residências terapêuticas’ ou ‘serviços residenciais terapêuticos’; falam de pessoas com sofrimento mental e não de ‘portadores de transtornos mentais’ ou ‘pacientes psiquiátricos’. E demonstram que não são dados a caminhos fáceis, já que escolhem falar de pessoas com sofrimentos graves. Isso já nos dá uma boa medida da obra, a qual apresenta uma pesquisa inovadora no campo da saúde mental e atenção psicossocial, esta tão carente de sistematizações de fôlego, seja pela complexidade de fazê-lo, seja por nos contentarmos apenas com aquilo que nos cabe fazer.

A pesquisa que deu origem ao livro é resultado de indagações teóricas e políticas da equipe, a partir dos novos desafios trazidos pelo conjunto de mudanças implementadas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, particularmente na área de suporte social a moradias e habitação de pacientes com sofrimento mental grave. Dentro desse contexto de consolidação de uma saúde mental pós asilar, o livro ressalta a diferença fundamental entre morar e habitar: morar refere-se ao espaço, conforto e proteção que constituem a residência; habitar, ao modo de apropriação da moradia, inclui a história e o estilo de ser daquele que vive nela.

O campo da pesquisa é constituído por três municípios diferentes, duas capitais estaduais e um município contíguo a uma região metropolitana, os quais foram definidos por terem uma rede de saúde mental diversificada e já consolidada. A equipe de pesquisadores foi composta a partir da característica qualitativa, interdisciplinar e participativa do estudo, reunindo pesquisadores de quatro importantes áreas de conhecimento para abordagem do tema: antropologia, arquitetura, saúde coletiva e psicanálise. Uma perspectiva interdisciplinar sem pretensões holísticas, apenas baseada num roteiro comum e no compartilhamento exaustivo da experiência com o ‘objeto’ e campo.

Dessa forma, os resultados apresentam um conjunto de análises muito ricas, organizadas tanto por categorias específicas a cada uma das áreas de conhecimento quanto por um esforço de síntese e reconstrução do objeto através dos diferentes olhares. O livro e seu conjunto de capítulos materializam aquilo que insistentemente temos afirmado sobre a natureza interdisciplinar e intersetorial da atenção psicossocial e a necessidade intrínseca ao campo de agregar múltiplos saberes e abordagens. Para isso os organizadores estruturam o trabalho em três partes que reconstituem o longo caminho percorrido pela equipe da pesquisa.

A primeira parte, intitulada “Morar, habitar, inserir: perspectivas da arquitetura, antropologia, psicanálise e saúde coletiva”, representa um esforço de sistematização e compartilhamento com o leitor dos aspectos teóricos e conceituais de cada uma das áreas de conhecimento. Sem se ater a um mero exercício epistemológico acadêmico, o texto é radicalmente focado no objeto e no compromisso social da pesquisa.

A partir dos autores arquitetos vem a compreensão da casa como lugar de proteção das intempéries e a poética da nossa eterna relação com ela, sempre em construção. Apresentam-na em suas múltiplas dimensões de fundação, abrigo e construção material de nossa presença no mundo. E, sobretudo, relatos que trazem um olhar profundamente crítico das distorções presentes nos serviços estudados, detalhes que muitas vezes não conseguimos enxergar.

Os autores antropólogos trazem uma contribuição importante para o nosso campo, na medida que desvelam a insuficiência das definições simplistas de inserção social e ressaltam o valor de uma perspectiva etnográfica ‘de dentro’, aquela que analisa o pertencimento das moradias ao conjunto da organização social e cultural que produz exclusão.

Os autores da saúde coletiva não poupam esforços para situar o leitor na historicidade das políticas públicas para a área no Brasil, incluindo também um breve painel de experiências nacionais e internacionais relevantes. Discutem políticas e projetos de suporte social a moradias e habitação, sem abrir mão da dimensão simbólica envolvida nessa construção, sempre presente no livro como um todo. O que é muito bem ilustrado com a referência ao caso de um senhor que, chegando num Serviço Residencial Terapêutico no qual finalmente consegue uma vaga, deposita sua sacola sobre a cama e surpreende com a frase: “Agora posso viajar!”. Os espaços públicos de moradia têm que comportar pertencimento e errâncias, ser porto seguro para andanças que agora incluem o voltar.

Por fim, os autores psicanalistas ressaltam a importância da articulação entre singular e universal para a construção do habitar. Apostam na natureza essencialmente simbólica desta construção, única para cada sujeito, sem projeto comum para todos. A nós restaria apenas acompanhar os modos de habitar o mundo e o campo do Outro onde os sujeitos podem encontrar sua casa.

A segunda parte do livro é intitulada “Processos de investigação”, formada por sete capítulos que, segundo os organizadores, traduziria o ‘como fizemos’. Inclui reflexões teóricas sobre os diferentes métodos e técnicas de pesquisa utilizados e, mais importante, a narrativa dos pesquisadores sobre a experiência de campo. Um ‘campo’ na verdade constituído pela equipe em interação com os diferentes territórios de vida dos sujeitos pesquisados, trazendo experiências de imersão etnográfica e biográficas. Aqui encontramos uma pesquisa essencialmente qualitativa, levando a termo aquilo que é a potência desse modo de investigação: dar consistência a mundos obscuros e invisíveis, os quais só são acessíveis com extrema aproximação de rotinas e de vidas.

Em cada um dos capítulos encontramos pesquisadores sem medo do seu próprio estranhamento de mundos caóticos e sem pudor de nos fazer participar dos seus diálogos internos, mas sem deixar de sempre retornar ao seu papel de análise e reflexão dessas experiências. Um trabalho essencialmente etnográfico, na medida em que há uma imersão no campo de estudo, sistematizando experiências de compartilhamento com os sujeitos em seu espaço de vida e utilizando técnicas voltadas para uma descrição densa e profunda do universo sócio/cultural.

Destaca-se aqui o texto “Entre corredores e labirintos: a narrativa como fio de Ariadne”, uma referência mitológica ao desafio de adentrar labirintos da vida e conseguir sair. E os labirintos aqui incluem não só os espaços protegidos dos serviços, as instituições estudadas, mas também os becos, ruelas e os lados escuros e obscuros da cidade. Dessa forma, o trabalho dos pesquisadores prossegue ancorado num desenho de pesquisa suficientemente ousado para investigar com rigor metodológico ‘a vida como ela é’, desnudando poderes, abusos e solidariedades no mundo de pessoas que aprendem a viver com um olho aberto e outro fechado.

São descrições de personagens reais que apresentam modos singulares de habitação, que falam sobre uma relação complexa entre a vida íntima e a ordem esperada aos espaços públicos, que demonstram como os modos de habitar tem a ver com as histórias e marcas de cada um. O habitar é uma construção que conecta mundo interno e universo social e cultural, produzindo infinitos modos de viver a vida. Há o Rivaldo que vive numa casa inacabada, há o Anastácio que ainda não encontrou sua casa, mas construiu formas próprias de se proteger, há a Armênia, uma hóspede itinerante da cidade…

Encontramos também uma reflexão mais voltada para a sistematização dos desafios apresentados por uma política suficientemente construída para que possa ser avaliada, mas ainda em construção, de forma a comportar uma ação reflexiva sobre posturas e práticas, e incorporar novos saberes. Nesse ponto é importante a característica do livro de incorporar tanto a experiência dos estudantes e seu olhar crítico quanto a análise crítica de pesquisadores experientes. Com coragem suficiente para enxergar e descrever as novas iatrogenias geradas no interior do modelo, os desafios de formar cuidadores facilitadores e não dificultadores dos processos de (des) institucionalização.

Finalmente, na terceira parte do livro, os autores reafirmam o caráter avaliativo da pesquisa e o compromisso de todos na construção de convergências e consensos que resultem em reflexões avaliativas que possam subsidiar ajustes de rota e decisões para o enfrentamento dos desafios próprios às políticas públicas em construção. Há um esforço de síntese do trabalho investigativo das quatro áreas envolvidas – antropologia, arquitetura, saúde coletiva e psicanálise – que resulta na discussão do que envolve habitar uma casa protegida pelo campo do terapêutico, habitar uma casa, habitar uma grande cidade.

A dimensão do processo de pesquisa traduzido em livro nos impede de incluir neste espaço uma descrição pormenorizada da análise de dados e dos resultados do trabalho. Neste momento, remetemos o leitor ao próprio livro onde ele vai encontrar um conjunto de recomendações e proposições que possam ser fio condutor em seus próprios labirintos. São reflexões que nos levam a conceber lugares de moradia como uma construção sensível e orientada para as necessidades íntimas e sociais daqueles que têm sofrimentos psíquicos graves. Parece que a nós, cuidadores e pesquisadores de todas as áreas, resta-nos a aprendizagem da (des) institucionalização, o acompanhamento de muitas vidas construídas para sobreviver à crueldade da exclusão social e a luta política por cidades que nos comportem a todos.

Nina Soalheiro – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: ninasoalheiro@fiocruz.br

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(P)

Poética – ARISTÓTELES (RA)

ARISTÓTELES. Poética. Edição bilíngue. Tradução, Introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. Resenha de: FRANCO, Irley Fernandes. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 417-425, set., 2016.

Poética pertence ao grupo dos chamados escritos esotéricos, ou acroamáticos 1  (como eram nomeados pelos primeiros estudiosos de Aristóteles), isto é, escritos ou anotações “do que foi ouvido”ou lido 2. Mais do que isso, a Poética  é considerada, por seu caráter incompleto, fragmentário e muitas vezes desconexo, como o exemplo mais perfeito desse gênero aristotélico. Não só não foi escrita para ser publicada, tal os escritos “exotéricos”(ἐξωτερικών συγγράμματα) 3, os diálogos perdidos que o próprio estagirita teria publicado em vida, como é, dentre os “não publicados”, o mais condensado e enigmático. Ela é talvez parte daquele outro gênero, para o qual já havia apontado Cícero, em suas observações acerca dos escritos morais aristotélicos 4: o dos “Comentários”(hoje identificado aos acima citados “esotéricos ou acroamáticos”), gênero que abrange desde os tratados enciclopédicos com argumentação rigorosa e sofisticada, até as anotações mais descuidadas, como, aliás, parece ser aqui o caso. À palavra “comentários”equivale o termo grego ὑπομνήματα, ie, o conjunto de notas que servem para trazer à lembrança determinados temas, possivelmente já tratados (em aulas?) e certamente já publicados.

O próprio Aristóteles jamais usou a terminologia acima citada. na Poética,  ele se refere a “escritos publicados”(1454b18: ἐκδεδομένοι λόγοι) justificando o fato de não estar aí explicando os temas que estão sendo tratados, o que fortemente sugere que esta fosse a única classificação dada por ele à sua obra: “publicados”e “não publicados”. na passagem em questão, ele está certamente se referindo ao diálogo Dos poetas (Περὶ ποιητῶν), livro exotérico perdido, mencionado em catálogos antigos e do qual restam-nos apenas fragmentos. neste livro, o filósofo, conhecido e admirado, desde a Idade Média pelo rigor de seus argumentos, teria feito todas as articulações essenciais referentes à matéria esquematicamente apresentada na Poética.

A Poética, ademais, não chegou inteira aos nossos dias. Ela sobreviveu, como os demais escritos acroamáticos, mas, à diferença deles, nunca foi comentada ou revisada durante o período de grande atividade exegética, sobretudo no séc. II com Alexandre de Aphrodisias. Do séc. III ao V, a Poética  parece ser totalmente desconhecida. E, conforme o catálogo que nos foi transmitido por Diógenes Laércio (Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres  3 48), ela era composta de dois livros. Um segundo volume teria sido dedicado à comédia e disso sabemos através tanto da própria Poética, onde se lê, no capítulo VI (1449 b21) “da imitação em hexâmetros e da comédia trataremos depois”, quanto de outros tratados de Aristóteles, principalmente a Retórica, que, em dois lugares diferentes, — I, 11, 1372 a 1; III, 18, 1419 b5 —, refere-se ao “γελοῖος”(engraçado, risível) de que já tratara na Poética. a Política, quando menciona que o sentido de catarse será esclarecido ἐν τοἶς περὶ ποιητικῆς (“nos [livros] sobre a poesia”) e tal esclarecimento não aparece no livro I, também nos leva a supor a existência desse segundo livro.

Há ainda o problema peculiar da transmissão do texto da Poética, pois ela descende de quatro manuscritos autônomos: o Parisinus Graecus 1741 (sécs. X-XI), somente descoberto no séc. XVIII, o Ricardianus  46 (séc. XII), a versão latina (Moerbeke, 1278), e o Parisinus Árabe 2376 (c. séc. X) 5, o que agrava bastante a situação já fragmentária do texto acroamático, porque, com a passagem dos séculos, e à medida que os manuscritos foram sendo descobertos, o texto foi também se transformando, sofrendo intercalações, acréscimos, omissões etc. a tradução que ora se comenta usa o texto estabelecido por Rudolf Kassel, edição relativamente recente (1965) e amplamente adotada pelos especialistas em Aristóteles. a versão de Kassel tem a preferência dos scholars porque considera com muita atenção as quatro fontes acima citadas do texto aristotélico. De fato, somente Kassel conseguiu sintetizar de maneira satisfatória esses quatro manuscritos.

Sendo essa, então, a situação em que nos encontramos diante da Poética, considere-se o valor de uma tradução que, além de enfrentar as dificuldades naturais do grego antigo, — língua a que poucos têm acesso — tenha ainda como perspectiva dar a esse texto coerência e unidade. Pois foi essa a tarefa ciclópea a que se entregou Paulo Pinheiro. a fim de dar ao leitor condições de pensar a partir do texto original, pois é essa a finalidade de toda tradução, nosso tradutor não só foi à fonte grega como generosamente a ilustrou com fartas e elucidativas notas, única maneira de garantir que o mais “torturado”dos textos aristotélicos — como o qualificou Eudoro de Souza 6  — ganhasse corpo e clareza. Sem notas, permaneceria ininteligível a maior parte das teses apresentadas na Poética. Tampouco fariam sentido aqueles pontos que nos parecem intransponíveis se não os relacionamos com outras obras do corpus aristotelicum, principalmente com a Ética Nicomaqueia e com a Retórica.

Essa é, pois, a vantagem de termos um tradutor filósofo. E, de fato, em língua pátria, essa é a primeira tradução que tenta dar conta, através de notas explicativas, do vasto material conceitual trazido pela Poética. Termos como μίμεσις, μύθος, κάθαρσις, τύχη, πράξις, ἁρμαρτία etc., alguns hoje caros à teoria da literatura, e cujos sentidos têm sido exaustivamente investigados por estudiosos da Poética, são aí brevemente mencionados, como se fizessem parte de um vocabulário com o qual os leitores já devessem estar familiarizados. Da mesma forma, a maior parte das teses de Aristóteles sobre a poesia é aí lançada sem maiores explicações.

Assim, por exemplo, e em especial, a famosa teoria aristotélica da catarse, cujo sentido aqui somos obrigados a deduzir da definição desesperadoramente lacunar de tragédia, resumida por nosso filósofo em um único parágrafo (cap. VI). as poucas teses aí desenvolvidas, algumas de grande importância para a atual disciplina da Estética, como é o caso do problema da origem da tragédia e da comédia — tema que se tornou caro à filosofia desde O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, de Nietzsche — o são de modo extremamente econômico.

A edição em comento é bilíngue, mas a tradução é perifrástica; sacrifica a forma ao conteúdo. É natural que assim seja, uma vez que o texto parece ser, como já dissemos, um conjunto de anotações descuidadas e que têm por finalidade trazer à memória o que antes já foi ensinado e escrito. o texto é, sem exagero, além de curto (15 páginas, ou 30 colunas) 7, extremamente condensado e tem, no geral, uma estrutura gramatical bastante irregular, sendo seus conteúdos, os mais complexos, tratados inúmeras vezes através de “frases quebradas”. o grego “ao lado”permite-nos constatar a infinidade de anacolutos que nos obrigam a “interpretar”, em lugar de simplesmente “traduzir”.

Nem sempre concordamos com as escolhas do tradutor. algumas vezes, porque destoam de nossas próprias interpretações, tais como a de μύθος por “en- redo”, φόβος por “pavor”, ἁρμαρτία por “erro”, e assim por diante. Já em outros casos, porque consideramos que a escolha do tradutor não reflete todo o conteúdo semântico do termo de origem. Tal é, por exemplo, o caso da tradução de πάθος (1452b 10) por “comoção emocional”. Ora, “comoção emocional”é expressão fraca para significar a violência que se abate sobre o herói trágico e que se dá após o reconheci- mento (άναγνώρισις) e a reviravolta (περιπέτεια), momento tópico, clímax da tragédia complexa. Πάθος é o terceiro elemento da trama (μύθος) e é definido por aristóteles como “uma ação destrutiva ou dolorosa”(1452b 12: πάθος δέ ἐστι πρᾶξις φθαρτιὴ ἢ ὀδυνηρά). o uso da palavra “emocional”sugere uma situação estritamente psicológica, mais presente na mente do que na ação, como se o psicológico estivesse separado e distante da ação. De acordo com a passagem, entre- tanto, o πάθος trágico é uma ação e não uma “emoção”.

Poder-se-ia pensar, por essa razão, que se trata aí de uma tradução que obriga seus leitores a aceitar e seguir suas próprias opções sem lhes dar a possibilidade de reflexão. Mas não é esse o caso, pois nosso tradutor justifica e generosamente explica cada uma de suas escolhas, como o faz justamente em relação ao termo cuja tradução acabamos de criticar: πάθος. Em nota ao termo, Paulo Pinheiro cita diversas traduções já oferecidas na longa história dos estudos da Poética. assim, Eudoro de Souza, traduz por “catástrofe”, Magnien e Hardy, por “événement pathétique”, Dupont-Roc e Lallot por “effet violent”, Else, por “suffering”e, finalmente Halliwell mantém simplesmente “pathos”.

Como observação final, destacamos a importância, muitas vezes negligenciada, da Poética para o pensa- mento e cultura ocidentais. Tomando como exemplo as poesias épica e trágica, Aristóteles, diverge radical- mente de seu mestre Platão, e dá à poesia a dignidade de um domínio próprio, que não mais depende de propostas políticas ou de uma filosofia moral. Pode-se dizer que, pela primeira vez, a mimesis poética é pensada como tendo uma potência própria e que, desde aí, não parou de contar a sua história. os cânones aí introduzidos para a composição da boa tragédia acabaram se tornando paradigmáticos para os demais gêneros literários e, através deles, para outras formas de produção artística, fazendo da Poética  um dos livros mais poderosos e influentes da história da literatura ocidental.

Notas

1 ἀκροαματικά, do verbo ἀκροάομαι, “ouvir”, “escutar”, don- de ensinamentos orais.

2 Ao contrário de Platão, que parece desprezar a escrita (vide principalmente Fedro 275a-276a e Carta VII 341a-d), Aristóteles era um grande amante da leitura —Platão o apelidou de “o leitor”(άναγνώστης) na academia – e teria sido o inventor do que hoje chamamos de “biblioteca”. Segundo Estrabão (séc. I  a.C), ele « foi o primeiro a colecionar livros e teria ensinado os reis do Egito o modo como organizar uma biblioteca.” Sabemos, além disso, que ele possuía uma coleção particular de livros, a qual, mais tarde, colocou à disposição de seus alunos do Liceu.

3 A expressão aparece em vários autores da antiguidade, por ex., Clemente de Alexandria (c. 250 d.C.), aulo Gélio (séc. I  d.C.), Jâmblico (séc. III) e Cícero. Este último refere-se aos escritos “exotéricos”de Aristóteles de modo extremamente elogioso: “flumen orationis aureum fundens “(a cademici Libri 2 119), “dicendi incredibili quadam cum copia tum suavitate “(Topica 1, 3).

4 Cic. Fin. V 5, 12.

5 Em sua Introdução, Paulo Pinheiro comenta brevemente as questões relativas à tradição manuscrita do texto grego. Para uma abordagem ultra detalhada do tema, ver Yebra (1992). Ver também Else (1967) e Eudoro de Sousa (1966). 6 Em sua Introdução à Poética (1966).

7 Comparativamente, a Metafísica tem 114 páginas e a Ética Nicomaqueia 98 páginas. Cf. Whalley (1970, p.77-106).

Referências

ELSE, G. F. (1967). Aristotle Poetics (translated with an introduction and notes). Ann arbor, University of Michigan Press.

RACKHAM, H. H. (1931). Marcus Tullius Cicero. De Finibus Bonorum et Malorum, V 5, 12. Loeb Library. Cambridge, MA.

SOUSA, E. de (1996). Poética  de Aristóteles. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndice. Porto Alegre, Globo.

YEBRA, V. García (1992). ΑΡΙΣΤΟΤΕΛΟΥΣ ΠΕΡΙ ΠΟΙΗΤΙΚΗΣ. ARISTOTELIS ARS POETIKA. POÉTICA DE ARISTÓTELES. Edición trilíngue. Madrid, Editorial Gredos.

WHALLEY, G. (1970). On translating aristotle’s Poetics. University of Toronto Quarterly, vol.39, n.2, January, p.77-106.

Irley Fernandes Franco – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). E-mail: irley.franco@gmail.com

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Experience and Teleo­logy in Ancient Historiography. ‘Futures Past’ from Herodotus to Augus­tine – GRETHLEIN (RA)

GRETHLEIN, J. Experience and Teleo­logy in Ancient Historiography. ‘Futures Past’ from Herodotus to Augus­tine. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. Resenha de: SIERRA, César. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 407- 416, set., 2016.

Lo primero que me ha venido a la mente tras leer la propuesta de Jonas Grethlein es que se trata de un libro que trabaja las técnicas de los historiadores para generar sensaciones en los lectores. Concretamente aborda cómo la historiografía desarrolló una narrativa empática, destacando los siguientes rasgos: teleología, enárgeia  (viveza en la narración) y mímesis. Por descontado que el análisis es mucho más rico y elaborado pero destaco las que, a mi juicio, son los recursos más analizados en el libro. El autor parte de una larga investigación sobre este tema lo cual se nota en la calidad del resultado.

La estructura del libro se divide en una introducción metodológica y tres apartados centrales: I) experien ce: making the past present; II) Teleology: the power of retrospect; y III) Beyond experience and teleology. en la primera parte se aborda el estudio de Tucídides, Jenofonte, Plutarco y Tácito; en la segunda tenemos a Heródoto, Polibio y Salustio; y, finamente, se analizan las Confesiones de agustín de Hipona. Una trayectoria que abarca prácticamente toda la antigüedad clásica y orienta la obra hacia una perspectiva global de la historiografía. Todo ello viene acompañado de una edición esmerada, que cuenta con los siempre útiles índices onomásticos y de pasajes citados además de una recopilación bibliográfica final. Magnífica edición como es habitual en las publicaciones de Cambridge University Press.

No muchos historiadores están en condiciones de abarcar con solvencia un período tan amplio como propone Grethlein y ello es muy loable, como también lo es su atención a las diferentes sensibilidades y escuelas historiográficas modernas. La selecta bibliografía en varios idiomas da buena cuenta de mi aserto. Por mi parte, centraré la discusión en aquellos autores que más he trabajado: Heródoto, Tucídides, Jenofon- te, Polibio y Plutarco.

Respecto a Heródoto, el autor destaca el uso de la retrospección en su conocidas digresiones (p.185). Desde mi punto de vista, el autor selecciona muy bien los pasajes en los que Heródoto introduce al público en el relato. Por ejemplo, las lágrimas de Jerjes en el Helesponto cuando contempla su ejército en todo su esplendor cruzando el paso y se lamenta de que toda esa muchedumbre desaparecerá con el tiempo, reflexión sobre lo efímero de la grandeza y la vida huma- na (Hdt.7.56.2). al respecto Grethlein capta muy bien que esta alusión a lo que ve y dice el monarca persa es una técnica narrativa para poner al público en una situación en la que el pasado se hace presente. También es muy destacable su análisis del lenguaje críptico de los oráculos, que precisan de una elevada hermenéutica para ser descifrados. en concreto, el autor centra su atención en los signos (sêmeîon) que introducen los oráculos en la narración de Heródoto, un presagio a menudo interpretado erróneamente por los humanos. Valgan como ejemplos el oráculo que vaticinó la ruina de Creso (Hdt.1.54.1), interpretado erróneamente por el monarca lidio, y el famoso oráculo sobre la muralla de madera que debía proteger a los atenienses frente a Jerjes, bien descifrado por Temístocles (Hdt. 8.51.1). Creo que el autor acierta al señalar que la obra de He- ródoto con frecuencia traslada al lector adelante en el tiempo y prueba de ello es que la Historia termina con la toma de Sesto por la Liga de Delos, los infortunios amorosos de Jerjes con su hermana y las enigmáticas palabras de Ciro I sobre la degeneración moral de los persas. Todo ello introduce la idea de que un imperio decae mientras otro nace (p. 206 -207).

En cambio, la descripción moral o psicológica de los protagonistas persas no está suficientemente bien trabajada. Bajo mi punto de vista, las cualidades y defectos de personajes como Jerjes o Leónidas respon- den a modelos que tienen sus raíces en la épica griega. Por ejemplo, Jerjes representa un monarca arrogante y despótico, comparable en algunos rasgos al agamenón homérico; que contrasta con el sacrificio de Leó- nidas cuyo trágico destino es similar al de aquiles 1. Por tanto, Heródoto simplifica los rasgos de la perso- nalidad de los protagonistas persas con la voluntad de acercarlos al público griego. Todo ello influye también en su relato historiográfico.

El análisis de Grethlein sobre Tucídides se centra en el ‘presentismo’ y la elaborada técnica del ateniense a la hora de introducir pequeños detalles en la narración. Me ha gustado especialmente el análisis del célebre discurso fúnebre de Pericles (p. 50), presentado como un argumento fuertemente teleológico. También la costumbre del ateniense al avanzar los planes estratégicos y después narrar los eventos, de esta manera el lector puede aventurar el resultado. el autor está muy acertado destacando que se introducen pequeños de- talles en la descripción de batallas o se define el estado de ánimo de los ejércitos con la intención de generar empatía en el lector. Son datos intrascendentes para la comprensión del fenómeno objeto de estudio pero que sirven para captar la atención del lector y generar un escenario. Por ejemplo, en el debate sobre la suerte de los mitilenos (Th.3.36) el autor llama la atención sobre el suspense creado por Tucídides (p.44). Como sabemos, se decidía en asamblea la suerte de los sublevados de Mitilene y, en una primera votación, los atenienses decidieron ejecutarlos a todos, enviando una nave con dicha orden; no obstante, tras deliberar mejor la situación decidieron no suprimirlos a todos y enviaron otra nave que tuvo que adelantarse a la anterior para transmitir las órdenes correctas. esto se puede explicar de muchas maneras pero, como indica Grethlein, es notable la intención de Tucídides de generar un suspense trágico.

Acerca del análisis que se realiza en el libro so- bre la obra de Tucídides, sólo reseñar que sería recomendable incluir una valoración sobre la ‘Pentecontecia’. en mi opinión, hay una división básica a nivel metodológico entre el libro I y el resto de la obra de Tucídides. El primer libro cumple la función de prefacio donde se aborda el pasado griego anterior a la guerra del Peloponeso desde una óptica fuertemente teleológica, por ejemplo: los episodios de Pausanias y Temístocles, la ‘ arqueología’, la citada ‘Pentecontecia’. La cuestión está muy estudiada y pienso que ayudaría a completar el buen enfoque que el autor ha realizado sobre Tucídides 2.

Personalmente considero que el mejor capítulo del libro es el dedicado al estudio de  la Anábasis  de Je- nofonte. en esta ocasión el foco de la narración pasa del exterior al interior de la acción. el autor percibe muy bien el giro narrativo que toma la Anábasis tras la muerte de los generales griegos (An.3.1.4) y el cambio total de contexto tras Cunaxa. Ciertamente a partir de la emboscada que termina con el mando de la tropa mercenaria, la narración se aproxima gradualmente hacia Jenofonte, quien adquiere protagonismo en la improvisada dirección de los Diez Mil. Se destaca el valor narrativo de los diálogos y discursos a sabiendas de que el lector interpreta que son de primera mano. Lo anterior genera una sensación casi novelesca de la narración que tiene su punto álgido en la llegada de los griegos al mar (p.60). Para mantener el ‘presentismo’ y la tensión narrativa, Jenofonte utiliza un gran abanico de recursos: descripción, focalización interna, discursos, presagios y finales abiertos. estos rasgos otorgan a la Anábasis un carácter ‘empírico’ muy particular.

Lo único objetable a este apartado es que el autor no haya realizado alguna anotación al hecho de que Tucídides también fue protagonista de la acción histó- rica. Como sabemos, el historiador era estratego cuando anfípolis cayó en manos del espartano Brasidas (Th.5.10). Su participación y responsabilidad en este conflicto condicionaron su interpretación del suceso, valorando positivamente a Brasidas y negativamente a Cleón 3. Hubiera sido interesante valorar los recursos expositivos de Tucídides en relación a este suceso y al conjunto de la obra.

La buena dinámica que el autor sostiene a lo largo del libro se mantiene en su análisis de Polibio. en este caso abunda en la enárgeia, con especial atención al ambiente que se vivió durante la proclamación de la libertad griega patrocinada por Flaminino en los Jue- gos Ístmicos (Plb.18.46.12), o la vívida descripción del paso de escipión entre los cadáveres del campo de ba- talla en Zama (Plb.38.20.1). Sin embargo, lo que más me ha llamado la atención son las interesantes aportaciones sobre teoría de la historia que se plantean tras valorar el uso del término historíe  en Polibio (1.3.4). No cabe duda de que este análisis rompe con la monotonía del libro y enriquece su aportación. No obstante, merecería la pena realizar un análisis más completo para apreciar la evolución del término desde el siglo V a.C. hasta ese preciso pasaje donde se utiliza en su acepción moderna. De esta forma apreciaríamos mejor le peculiaridad que propone Polibio 4 (p.230). Por lo demás, el capítulo nos parece de lo más edificante.

Finalmente, llegamos al apartado que más desentona con el buen nivel del libro. Para un libro de esta temática considero que no es acertada la inclusión de Plutarco y su Vida de Alejandro. el autor es consciente del problema que supone añadir una biografía, máxime cuando el propio Plutarco sostiene que no escribía historia (Plu. Alex. 1.1). Personalmente no me convence la justificación de Grethlein en las prime- ras páginas del capítulo. No digo que sea imposible el análisis, sólo pienso que los objetivos, la finalidad y el público potencial de la biografía y la historiografía no coinciden. aparte podemos considerar la diferencia metodológica entre ambos géneros. No obstante, comprendo la posición del autor al señalar que Plutarco no era refractario a la historiografía, de hecho, para elaborar sus biografías utiliza en gran medida fuentes históricas. en este sentido, Historia y biografía mantienen un delicado equilibrio pero considero el víncu- lo insuficiente. Por ejemplo, en Sobre la malevolencia de Heródoto, el biógrafo sostiene que un historiador debe decantarse por la narración de los actos buenos y nobles (Plu.Mor. 855C) 5. Esta elección del evento historiable es legítima por parte de Plutarco pero tiene evidentes implicaciones sobre la técnica narrativa. Así pues, la Vida de Alejandro será una narración con una potente enárgeia como corresponde a los objetivos del género literario al que pertenece. al margen de todo esto, considero que el autor conoce bien la obra de Plutarco y maneja con criterio la bibliografía.

Como conclusión general, al libro quizás le falte analizar cómo afectaron todas estas técnicas narrativas a la ecuanimidad del relato historiográfico. De la misma manera que el autor describe la sensación que se traslada al lector también se puede valorar las intenciones del historiador al construir el relato. así, la cuidada descripción de un suceso y la minuciosa incorporación de detalles no sólo generan empatía en el lector sino que trasladan una opinión. Dicho de otra manera, el historiador impone su punto de vista con la intención de manipular la memoria colectiva. Por ejemplo, situémonos en el contexto de la guerra del Peloponeso y, concretamente, en los prolegómenos de la campaña en Sicilia. Desde mi punto de vista el objetivo de Tucídides es mostrar lo desacertado de la inva- sión y lo ignorante que era el dêmos ateniense acerca de la extensión, riqueza y poder de la isla. Para fundamentar esta tesis, Tucídides introduce previamente una digresión etnográfica y geográfica sobre Sicilia, detalla las diferentes posturas de Nicias y alcibíades en la asamblea e incluso reflexiona sobre el interés de los jóvenes ateniense en emular las gestas de sus an- cestros; utilizando muchas de las técnicas que el autor desarrolla en el libro. Dicho de otro modo, hay una voluntad de generar una opinión y no sólo que el lector experimente una sensación. Por descontado, cuando al historiador no le interesa, todos los detalles y los esfuerzos por recrear la acción histórica desaparecen.

Con todo, considero que Experience and Teleology es un libro muy interesante y que aporta importantes elementos de debate a la historiografía y sus técnicas literarias. Si bien he mostrado algunos puntos de des- acuerdo, ello se debe a que el libro genera una profunda reflexión y deja una buena sensación en el lector. Por tanto, un libro totalmente recomendable.

Notas

1 En un trabajo anterior sugerí que Heródoto realiza un con- traste entre el ‘mal gobernante’ Jerjes/a gameón y el ‘buen gobernante’ Leónidas/a quiles y Temístocles/Odiseo; Sierra (2011).

2 Por ejemplo, cito los artículos clásicos de Konishi (1970) y Westlake (1955).

3 Una buena síntesis se encuentra en Mazzarino (1974, p. 253 -257).

4 De nuevo un tema muy trabajado, remito a otro clásico; Meier (1987).

5 Un análisis interesante de este escrito desde la historiografía se encuentra en Marincola (1994).

Referências

KONISHI, H. (1970). Thucydides’ Method in the episodes of Pausanias and Themistocles. AJPh 91 n.º1, p.52 -69.

MARINCOLA, J. (1994). Plutarch’s refutation of Herodotus. Classical World 25, p.191 -203.

MAZZARINO, S. (1974). Il pensiero storico classi­co. v.1, Roma -Bari, Laterza.

MEIER, CH. (1987). Historical answers to histori- cal questions: the origins of history in ancient Greece. Arethusa 20 n.º1 -2, p.41 -57.

SIERRA, C. (2011). Jerjes, Leónidas y Temístocles: modelos griegos en el relato de Heródoto. Historiae 8, p.65 -91.

WESTLAKE, H. D. (1955). Thucydides and the Pentekontaetia. CQ 5 n.º1, p.53 -67.

César Sierra – Università della Calabria (Italia). E-mail: cesar.sierra@e-campus.uab.cat

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Greek Models of Mind and Self – LONG (RA)

LONG, A. A. Greek Models of Mind and Self. London: Cambridge (MA), Harvard University Press, 2015. Resenha de: PEDRO JUNIOR, Proscurcin. Revista Archai, Brasília, n.18, p. 395- 406, set., 2016.

O mais recente livro de Anthony A. Long, professor emérito da Universidade da Califórnia – Berkeley, contempla o momentoso tema referente aos chamados modelos de “espírito” e do “eu”, em inglês “models of mind and self ”, no contexto da Literatura e Filosofia na Grécia antiga1. Trata -se de um livro que apresenta, segundo o autor, o resultado de um caminho de pesquisas feitas ao longo de uma vida dedicada ao pensamento sobre o mundo grego antigo. Na verdade, o livro acabou por se constituir no ano de 2012, ao final de uma série de aulas magnas realizadas na Universidade de Renmin, em Pequim, na China. Em que pese o leitor pudesse esperar uma obra gigantesca sobre o tópico, em razão da magnitude do período histórico compreendido (Homero até Plotino), Long escreve um livro por demais compacto, com apenas 231 páginas, o que faz com que o mesmo tenha um caráter propedêutico e seja recomendado para aqueles que desejam ter um contato inicial com uma interpretação atual, não obstante tradicional, sobre a compreensão psicológica do “eu”e do “espírito”na cultura grega antiga. Após um breve prefácio e uma introdução explicativa, o autor elabora cinco capítulos que tratam sobre o citado assunto. Ao final, apresenta um epílogo, notas e um índice remissivo.

Na introdução do livro, a forma de aproximação empreendida pelo autor fica, desde logo, clara. Após sua crítica a abordagem hegeliana de Eduard Zeller, o autor expressa uma rejeição à interpretação linear histórico -desenvolvimententista das noções referentes a ideia de “eu”e “espírito”entre os gregos. Contudo, como apontarei nesta resenha, Long acaba se comprometendo com a mesma posição ao confrontar em seu livro a noção de “alma”em Homero com posições como as de Sócrates, Platão ou Aristóteles. Como o próprio autor afirma, é difícil deixar de lado a visão desenvolvimentista, o que torna qualquer abordagem sobre tais questões “particularmente traiçoeira”.

O autor afirma que não há uma compreensão primitiva do “eu”em Homero, apenas por ele ter elaborado um texto alguns séculos antes de Platão. Isso significa que não se deve interpretar o poeta como incapaz de entender a constituição mental e corporal dos seres humanos ou afirmar que Homero teria “uma compreensão ainda confusa”(p. 3) 2, a ser melhor desenvolvida por Platão e Aristóteles. A compreensão do que seria a alma, o espírito e o eu em Homero torna -se, assim, a temática do primeiro capítulo do livro. A discussão começa com o famoso emprego do uso do termo psyche 3 em Homero. É sabido que a psyche tem um outro sentido nos versos épicos. A palavra pode se re- ferir ao “espírito morto”, ao “Totengeist “(veja -se otto, 1923, p.26), ou seja, informando o evento morte nos versos do poema épico, ou pode também referir -se à qualidade de se estar simplesmente vivo. nesse contexto, Long entende como fundamental a diferença entre mortais (brotoi) e imortais (athanatoi) e enfatiza que aquilo que irá persistir após a morte dos mortais será chamado de psyche.

A fim de mostrar o entendimento de Homero sobre o que chamaríamos hoje de “fisiologia e psicologia humanas”, Long decide, a partir daí, trabalhar com a distinção grega de soma e psyche e concentrar-se no significado desses termos. Assim, ele conclui que Homero vê a “identidade humana”como “completamente corporal ou física”(p. 25). Ele cita os versos iniciais da Ilíada  para indicar que, quando Homero fala dos heróis que se tornaram carniça e foram “eles próprios”atirados aos cães e aves (IL. i, 4 -5), o termo “eles próprios”(autous) seria indicativo de que tal “identidade humana”seria apenas corporal. Entretanto, o que não fica claro na análise é que, se a identidade das personagens fosse apenas corporal, por que Homero ilustraria a cena com al- mas que caminhariam ao Hades? Parece -me que a passagem refere -se muito mais aos “corpos”(dos heróis) do que ao “eu”dos mesmos e muito mais ao que restou fisicamente, em contraste ao que permanece enquanto “identidade”no Hades.

Ao lembrar da riqueza terminológica dos versos épicos e ao citar alguns termos homéricos, que mais propriamente se referem à “alma”ou ao “espírito”(phren, noos, thumos, kradie  ou etor), o autor critica Bruno Snell. Long afirma que o erro de Snell foi o fato de ele não ter lido Platão. no entanto, ele não percebe que sua análise comete um erro semelhante: concentrar -se na análise evolutiva de certas palavras, no caso em específico, no termo psyche. Long observa que as dessemelhanças nas compreenções anímicas de Homero e Platão dizem respeito muito mais “ao destino postmortem da psyche “(p. 30). A princípio, o autor consegue discernir bem as abordagens. Contudo, ao citar o famoso monólogo de odisseu, que conversa com seu thumos (Od. 20.17 -18), excede ao afirmar que a maior parte das personagens homéricas só seriam movidas por emoções. Há cenas, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, que comprovam um agir humano não apenas motivado por emoções ou meramente impulsivos.

O autor frisa que, em Homero, a palavra que se refere ao “espírito”é thumos. no entanto, termos como esse são mais indicativos e complicados de se adequa- rem a um único termo geral correspondente 4. A meu ver, o melhor teria sido denominar esse âmbito geral concernente à “alma”de “esfera anímico -espiritual”, o que englobaria as noções de “alma”, o que concerne ao todo interno que se opõe ao corpo, e de “espírito”, aquilo que gira em torno da ação intelectiva ou do intelecto. Também discordo de Long, quando este afirma que em Homero não existiria um elemento racional na alma das personagens. Tanto nas cenas de monólogos, em que personagens buscam conter a reação do thumos, quanto em cenas vinculadas ao agir sexual impulsivo, como é, por exemplo, o caso da cena que envolve o episódio do cinto de Afrodite (IL. 14.155 -355), verificamos que há em jogo partes ou porções contrastantes da “alma”. no primeiro caso, observa -se que uma porção da alma pode refrear o agir vinculado à porção que motiva o agente a agir apenas por ódio ou rancor (Od. 20.17 -18), no segundo, uma porção intelectiva (noos) submete -se a outra porção presa a um agir apenas motivado pelo desejo ardente (Proscurcin Jr., 2014, p.198 -199).

No capítulo 2, o autor aborda Hesíodo, Píndaro, Empédocles e Heráclito, a fim de estabelecer uma outra visão da psyche  mais próxima do sentido do divino. Todavia, simplifica demais a sua análise, ao classificar a “identidade humana”homérica como “psicosomática”e a platônica como “psíquica”. Como antes, Long foca -se no conceito evolutivo da palavra psyche. Faltou a observação dos contextos que envol- vem os termos anímicos noos, thumos, phren  ou ker, antes de se decidir pela conclusão definitiva de que a “alma”homérica é “um todo psicossomático”5. Em algumas passagens, como a que trata do autocontrole de Aquiles sobre um impulso colérico (IL. 1. 188 -192) ou o já citado monólogo de odisseu, vemos como é impossível atribuir a certas ações um resultado advindo do que se poderia chamar de mistura “psicossomática”. Será que não há aí uma funcionalidade anímica que impediria o impulso de desejos corporais? Já não há em cenas como essas uma diferenciação plausível? A meu ver, o problema está no método empregado pelo autor, muito mais vinculado a mudança dos significados de um único termo grego (psyche), do que a uma análise contextual mais ampla de passagens dos poemas épicos, envolvendo passagens que constam os termos phren, noos, thumos etc.

Na sequência, ao abordar Hesíodo, particularmente a estória das idades do homem (Op. 109 -210) e a estória de Prometeu (Th.535 -616), o autor afirma que tais narrativas teriam um caráter teológico, indicando que o homem teria sido outrora semelhante aos deuses, mas, posteriormente, estaria sofrendo uma espécie de expiação. Segundo ele, o texto de Hesíodo, com suas estórias sobre justiça, crime e punição, antecipa em muito a psicologia moral que Platão irá elaborar depois. Para ele, o diferencial de Hesíodo foi conectar a “bondade da alma”com o bom agir de um indivíduo, “separando completamente a prosperidade”da questão do “benefício material”, o que possibilitou o entendimento de “prosperar”vinculado a noção de “caráter virtuoso”. Para Long, esse é o caminho que Sócrates fez ao separar a “bondade da alma”de quais- quer benefícios corporais ou materiais (Ap. 29d).

No capítulo 3, a preocupação está na forma como a orientação retórica distingue -se da orientação filosófica. novamente, embora tenha criticado a abordagem evolucionista, Long parte justamente dessa perspectiva para analisar, p. ex., o quão distante a concepção de isócrates estaria daquela estruturada por Homero. Para ele, não haveria um funcionalismo na épica grega e, de forma semelhante ao que Snell elaborou em seu livro (1955, p. 33), ele defende que não haveria uma distinção entre “funções físicas e órgãos anatômicos de seres humanos”em Homero. As palavras para indicá-las seriam as mesmas e, por isso, Long conclui que não haveria a possibilidade de diferenciar o órgão de sua função. A evolução, para Long, ocorre quando o corpo se subordina a alma, como pode comprovar em textos de retóricos (Górgias) e filósofos (Sócrates e Platão). o capítulo 4 preocupa- -se com a teoria psicológica de Platão, em específico, com a tripartição da alma empreendida na República. É claro que o autor toca no tema das divisões estruturais em classes de indíviduos na cidade e como isso é analogamente observado na divisão da alma de cada indivíduo. o mais importante, segundo Long, é como Platão diferencia a parte que governa das partes subordinadas a essa. Segundo ele, na República, há um princípio segundo o qual “no universo, na política e na alma, uma coisa, e somente uma coisa, está devida- mente qualificada a controlar e exercer a autoridade sobre todas as coisas”, esta coisa é “a razão ou o raciocínio, expressado em grego por meio do substantivo logismos, do adjetivo logistikos e do verbo logizesthai “(p.129). Ao aproximar a teoria psicológica de Platão à análise de Homero, e para tanto o autor menciona a citação de Platão do mencionado monólogo de odis- seu (IL. 20.17 -18), comete -se o equívoco de informar que Platão (R.4.441b) apenas lê ali um “conflito de desejos”e não um conflito entre “razão e ódio, muito menos [como] uma luta entre diferentes partes da alma”(p.136). Lamentavelmente, mais uma vez, a investigação do autor assemelha -se a de Snell, quando esse afirma que o thumos ou o noos seriam apenas órgãos anímicos humanos e não as partes da alma de Platão (Snell, 1955, p.40).

Long deveria ter avaliado melhor a aparição contextual de termos como thumos, noos  ou phren em Homero, isso teria lhe possibilitado verificar que tais lexemas regem o agir intelectivo de certos personagens, em situações em que esses podem ser levados por desejos ou impulsos. Homero emprega os termos não apenas como uma mera localização de órgãos, mas como funções anímicas vinculadas ao agir das personagens. o citado exemplo do monólogo de odis- seu poderia ser melhor explorado, se o autor verificas- se os versos imediatamente anteriores (Od.20.9 -13). Nessa passagem, Homero afirma que odisseu “pen- sou (mermerize) em muitas vias (polla) segundo o seu phren (kata phrena) e segundo seu thumos (kai kata thumon)”(Od. 20.10). Se é indicado no texto que ele pensou de acordo com seu phren e com a ajuda do thumos, algo está a apontar que é a partir daí que Platão retira a conclusão de que a parte “thumoeides “assiste a parte racional (logistikon) e é seu auxiliar natural (R. 4.441a2). Faltou uma leitura contextual de Platão.

Quando Platão comenta essa passagem citada da Odisseia  (20.17 -18), esclarece: “Pois é claro aqui que Homero considera como distintas, uma da outra, a porção racional que pensa sobre o que é melhor e o que é inferior, e a porção colérica, destituída de razão, que é repreendida por aquela”(R. 4.441b -c). Platão observa tal separação com clareza e vê na personagem de odisseu uma porção racional que rege uma outra, thumética, desprovida de logos. Entre o que Long de- fende e o que diz Platão, há uma enorme distância. Do mesmo modo, a simples afirmação de que “as personagens de Homero são movidas pelo thumos mais do que guiadas pela razão”(p.145 -146) parece ser muito plana, em razão do próprio contexto da Odisseia.

No capítulo final, o autor concentra -se no estudo do estoicismo. o objetivo torna -se “investigar a dimensão teológica da psicologia moral grega”(p. 163). nesta parte do livro, as questões sobre o “divino”ou a “divindade”(daimon) e seu correlato grego “felicidade”(eudaimonia) são abordadas. Long defende a tese de que os filósofos gregos, ao invocarem o divino em sua ética e sua psicologia, “propõem uma conexão essencial entre a melhor vida que existe no universo, a saber, a vida divina, e a melhor vida que seres humanos podem alcançar ou aspirar alcançar”(p.168). Atribuir ao “espírito”o caráter de divino, implica em dizer que os seres humanos podem alcançar um pata- mar de excelência, felicidade e contentamento incomparáveis. Para tanto, requer -se “o cultivo da racionalidade”e sua priorização. Esse é o melhor capítulo do livro. Long interpreta, de forma precisa, ao afirmar que o que diferencia a doutrina estóica é a circunstância de que todo corpo natural tem algo de divino em si e os seres humanos podem reconhecer isso. Realmente, a capacidade racional humana possibilita o contato com o que há de divino em nós e nos permite alcançar a felicidade. o “poder de raciocinar”é, para Epiteto, equivalente ao “espírito divino”. nenhuma outra faculdade tem esse poder de estudar a si mesma e tudo que a cerca. Essa faculdade de raciocinar é o que também nos possibilita distinguir o que é bom ou mal (“fatos e valores”). Essa combinação entre ética e psicologia é o que diferencia, segundo o autor, a escola estóica e estabelece um sentido inovador de “identidade humana”aos gregos, conectando a humanidade comum que temos em todos nós a nossa individualidade específica.

O livro de Long é, sem dúvida, uma contribuição importante para os estudos do “eu”(self) e do “espírito”ou “alma”(mind) na cultura grega antiga. Portanto, é recomendável a sua leitura. no entanto, como apontado, deve -se ler o livro com certo distanciamento crítico, em razão de certos parâmetros tradicionais adotados nas leituras e comparações envolvendo especialmente os textos de Homero. Se o autor não comparasse Homero a certos filósofos posteriores da forma como fez, estabelecendo uma tese primitivista, talvez o texto ficasse mais bem ajustado ao objetivo proposto.

Notas

1 O âmbito conotativo das palavras “mind “e “self “é am- plo. A primeira pode significar “alma”ou “mente”e, a segunda, “ego”ou, no anglicismo adaptado, “self ”.

2 Todas as traduções são de minha autoria.

3 A discussão sobre o sentido de psyche em Homero é anti- ga e remete -se a trabalhos como os de Völcker (1825), rohde (1898) ou Zielinski (1922). Cf. Proscurcin Jr.(2014, p. 47 -48).

4 Para Wilamowitz, thumos é “Seele”e não necessáriamente “Geist”(1927, p.195). no entanto, é importante levar em consi- deração que o thumos pode ser visto como uma parte funcional da alma em Homero (Proscurcin Junior, 2014, p.49).

5 Nesse aspecto, as análises de Thomas Jahn são certamente mais profundas e esclarecedoras.

Referência

JAHN, T. (1987). Zum Wortfeld ‘Seele‑Geist’ in der Sprache Homers. München, C. H. Beck.

OTTO, W.F.(1923). Die Manen oder von den Un‑ formen des Totenglaubens. Berlin, Springer.

PROSCURCIN JUNIOR, P. (2014). Der Begriff Ethos bei Homer. Heidelberg, C. Winter.

SNELL, B. (1955). Die Entdeckung des Geistes. Hamburg, Claassen.

WILAMOWITZ‑MOELLENDORFF, U.(1927). Die Heimkehr des Odysseus. Berlin, Weidmann.

Pedro  Proscurcin  Junior – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil); Pontificia Universidad Católica de Chile pedroproscurcin@uni-bonn.de

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The Alexandrian Epitomes of Galen vol. 1: On the Medical Sects for Beginners; The Small art of Medicine; On the Elements According to the Opinion of Hippocrates – WALBRIDGE (RA)

WALBRIDGE, J. The Alexandrian Epitomes of Galen vol. 1: On the Medical Sects for Beginners; The Small art of Medicine; On the Elements According to the Opinion of Hippocrates. A parallel English-Arabic text translated, introduced, and anno- tated. Utah: Brigham Young University Press, 2014 Resenha de: BRITO, Rodrigo Pinto de. Revista Archai, Brasília, n.18, p. p. 389-394, set., 2016.

The book is edited, translated, introduced and an- notated by John Walbridge, who earned his PhD in 1983 from Harvard University. Nowadays, Walbridge is Professor of Near Eastern Languages and Cultures at indiana University Bloomington, his researches are mainly in the area of islamic Philosophy, Religion and Sciences. Walbridge has been writing books and pa- pers on the islamic culture, especially on the islamic reception of the Greek culture in Medieval period. As examples, in 1992 he published The Science of Mys- tic Lights: Qutb al-Din Shirazi and the Illuminationist Tradition of Islamic Philosophy: a monograph about the philosophy of Qutb al-Din Shirazi, an iranian phi- losopher of the 13 th  century who was influenced by Platonism, Avicennian Neoplatonist theory of emana- tions and iranian Mythology. In 1996, he published Sacred Acts, Sacred Space, Sacred Time: a very com- plete work on the Baha’i religion, which began in 19 th century iran. The book fills a great gap offering gen- eral information about the sociological features of the religion, its history, law and rites for instance. Last but not least, the book accurately also explains the Baha’i scriptures.

Returning to the theme of the Greek influences on the islamic Mysticism, in 1996, Walbridge published The Leaven of the Ancients: Suhrawardi and the Herit- age of the Greeks. This book dialogues with the above mentioned book which was published in 1992, since Suhrawardi, the main character here, was the person who mostly influenced the work and thought of Qutb al-Din Shirazi, theme of Walbridge’s book of 1992. The Leaven of the Ancients consists of a translation of the Suhrawardi dream with Aristotle, accompanied by Dr. Walbridge’s commentaries which explain, for instance, the reasons that made Suhrawardi develop a mystical approach of islamic religion, leaving the Aristotelian influences on the sciences and advanc- ing a Neoplatonic tradition “leaded”by Pythagoras, Plato and Hermes trismegistus. The whole context and background of the transmission of Platonic and Neoplatonic thought and philosophy and their recep- tion by Suhrawardi is explained in 2001 in Walbridge’s book: The Wisdom of the Mystic East: Suhrawardai and Platonic Orientalism.

In 2013, Walbridge published God and Logic in Islam: The Caliphate Of Reason, a very welcomed book, since Walbridge shows that, despite the violence and fundamentalism which are usually thought as inner features of islamic religion, in Medieval period the islamic laws and theology were developed through great rational arguments and debates, quite often founded in philosophical grounds, and the same can be said about the sciences. Maybe the rationalism is the way for bringing back the islamic Golden Age and, consequently also stopping the fundamentalism.

Regardless of the quality and importance of Walbridge’s works for the area of the Near Eastern studies, the parallel English-Arabic translation of On the Medical Sects for Beginners; The Small art of Medicine; On the Elements According to the Opinion of Hippocrates (in: The Alexandrian Epitomes of Galen vol. 1) can easily be considered as his major work, and the main feature which makes the book so outstanding is the excellence: of the introduction, commentaries, translations, appendices, glossary and bibliography, and we must not forget also the high quality of the Arabic typography. in short, the book is very complete as a whole and each part is excellent in itself. it is a unique source for comprehending the reception of the Galenism by Medieval Arabic thinkers.

Regarding the current volume of The Alexandrian Epitomes of Galen, the introduction offers useful ex- planations on the issues treated, and it is divided in the following chapters: The Alexandrian medical curricu- lum (subdivided in: The medical school in Alexandria; The Alexandrian medical syllabus; Alexandria and the Islamicate medical curriculum); The Alexandrian epitomes (subdivided in: Genre, form, and title; Style and content of the epitomes; History and authorship of the epitomes; Possible authors of the epitomes; Plausibil- ity of the Arabic accounts and dating the epitomes; The Arabic translation; Galen’s three texts and their Alexandrian epitomes); The edition and translation (subdivided in: Previous versions, editions, and translations; Descriptions of manuscripts; Textual history and edit- ing methods; Other editorial policies; Division of the texts; Glosses and scholia; Translation; Annotation). As usual, this introductory chapters and subchapters are followed by one chapter on Abbreviations and Conventions.

After that, we have the complete, parallel and bilingual translation of the following Alexandrian epitomes of Galen: On the Medical Sects for Beginners; The Small art of Medicine; On the Elements According to the Opinion of Hippocrates, annotated. This study also provide us with three appendices: the former offers a list of Greek and Islamicate Physicians; the second one offers more info on The Three Schools of Medicine; and the third one is a brief explanation of The Structure and Terminology of the Eye in the Epitome of The Small Art. Finally we also have a very complete and exciting Arabic-Greek-English Glossary; a very useful and updated Bibliography; and a very good Index.

Obviously, the book is aimed to be read by scholars and professors even if the way the author wrote it as well as the exhaustive amount of information available could make it a “bestseller”. Unfortunately the theme of the book, despite being extremely interesting, is still forgotten by most scholars, even those whose works deal with the History of Medicine or History of Phi- losophy. i sincerely hope that this great book can fill the huge gap left by the oblivion of the transmission of one of the major trends of Late Ancient thought, Galenism, to Medieval thinkers.

Referências

WALBRIDGE, J. (1992). The Science of Mystic Lights: Qutb al-Din Shirazi and the Illuminationist Tradition of Islamic Philosophy. Harvard, Harvard University Press.

_(1996). Sacred Acts, Sacred Space, Sacred Time. Welwyn, George Ronald.

_(1999). The Leaven of the Ancients: Suhrawardi and the Heritage of the Greeks. New York, State University of New York Press.

_(2001). The Wisdom of the Mystic East: Suhrawardai and Platonic Orientalism. New York, State University of New York Press…

_(2013). God and Logic in Islam: The Caliphate Of Reason. Cambridge, Cambridge University Press.

_(2014). The Alexandrian Epitomes of Galen vol. 1: On the Medical Sects for Beginners; The Small art of Medicine; On the Elements According to the Opinion of Hippocrates. A parallel English-Arabic text translated, introduced, and annotated by john Walbridge. in: Islamic Translation Series. Utah, Brigham Young University Press.

Rodrigo Pinto de Brito – Universidade Federal de Sergipe (Brasil). E-mail: www.rodrigobrito@gmail.com

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Arquivo – APCBH. Belo Horizonte, v.3, n.3, 2016.

  • REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 3, n. 3, setembro de 2016 – ISSN: 2357-8513
  • Sumário
  • AGRADECIMENTOS
  • EDITORIAL –_ 06
  • ARTIGOS A Planta Geral da Cidade de Minas e algumas considerações sobre o projeto e o meio ambiente ___08
  • Patrícia Rodrigue Bálbio de Lima Sob o Asfalto do progresso: os rios invisíveis da zona urbana de Belo Horizonte –_25
  • Alessandro Borsagli Brenda Melo Bernardes1 O grande ceifeiro, o Caranguejo e o Cemitério do Bonfim ___ 46
  • Ethel Mizrahy Cuperschmid Angélica Siqueira de Castro Sarah Campos Cardoso Maria Tereza Paulino Leal da Silva Ana Luísa Moreira Silva Maria do Carmo Salazar Martins Bairro Santa Tereza: uma história lastreada na documentação de diferentes instituições de Belo Horizonte __ 61
  • Maria Letícia Silva Ticle A Parceria entre a Câmara Municipal de Belo Horizonte e o Arquivo Público da Cidade: digitalização de documentos, trajetória e resultados -79 2
  • Thais Marcolino dos Santos Uma experiência de Educação Patrimonial na Escola: método de se reconhecer pessoas e lugares como referenciais ___95
  • Luiz Divino Maia Ocupação William Rosa: um produto de uma sociedade segregacionista e especulativa –_ 116
  • André Lucas Magalhães dos Santos Silva Ewerton Junio da Silva Laet Thell Victor de Andrade Rodrigues A influência da implantação do circuito cultural na percepção dos usuários da Praça da Liberdade –_ 128 Gabriel Caldeira Gomes Glaycon de Souza Andrade Gustavo Augusto Andrade de Oliveira Thales Peixoto Soares Tradição e inovação na arte, cultura e sociedade de Belo Horizonte: tensões entre modernização e modernismo (1897-1930) __ 142
  • André Mascarenhas Pereira Entrevista – Vilma Camelo Sebe – APCBH ___ 165
  • SEÇÃO – ARQUIVO NA SALA DE AULA Proposta Pedagógica 1 __169
  • Julia Ferreira Veado

Tempo bom, tempo ruim: identidades, políticas e afetos | Jean Wyllys

Em entrevista a Antônio Abujamra em 2013, o Deputado Federal pelo PSOL – Partido Solcialismo e Liberdade – do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, afirmou que sua ida para o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo em 2005 foi resultado das leituras que fez sobre as ideias do italiano Antonio Gramsci, acerca do posicionamento estratégico dentro do sistema: “mudar de dentro”. Importa afirmar que Gramsci foi um combatente contra o avanço do fascismo na Europa da primeira metade do século XX e elaborou uma espécie de manual sobre como o enfrentamento das questões e contradições da sociedade capitalista podem ser encaradas. Ao sujeito que se coloca na luta (ou na militância) dentro de um partido político ou outra instituição de cunho engajado, deu o nome de intelectual orgânico. Mal poderia imaginar o grande filósofo que, décadas depois de tombar na batalha, o fascismo ainda seria o inimigo a ser vencido. Leia Mais

História da República Romana | Henrique Modanez Sant’Anna

Ao analisar a obra The Cambridge Ancient History: The Last Age of the Roman Republic, 146–43 B.C. (BOWMAN; CHAMPLIN; LINTOTT, 1992), uma das obras mais influentes sobre o período, e que lida apenas com os acontecimentos da segunda metade do período da República Romana (509 a.C. – 31 ou 27 a.C.), fica claro a qualquer leitor bem informado que ele estará diante de uma cadeia quase interminável de acontecimentos importantes que não só serão importantes para a compreensão do mundo romano, mas também para todas as reinterpretações históricas decorrentes destes eventos. Afinal, este período abrange acontecimentos diversos e muito complexos, como as guerras entre Roma e Cartago pela hegemonia mediterrânica, os processos de lutas sociais pela aquisição da cidadania pelas populações da Itália, a questão agrária defendida pelos irmãos Graco, a revolta de Espártaco, a expansão do Império romano e a consequente corrupção nos tribunais para controlar o envio de magistrados que iriam extorquir as províncias, Pompeu e os piratas no Oriente, César e a Gália no Ocidente, os triunviratos e, por fim, as guerras civis entre César e Pompeu, mas também aquelas que tiveram lugar com Otávio e Antônio, entre eles, mas também contra Brutus e Cássio, além da guerra contra o filho de Pompeu. Isso somente para enumerar alguns dos acontecimentos que possivelmente serão lembrados por qualquer curioso sobre o período que venha a ter contato com esse imenso compêndio. Leia Mais

Do Pacto e Seus Rompimentos: os Castros Galegos e a condição de traidor na Guerra dos Cem Anos | Fátima Regina Fernandes

O princípio da territorialidade começa a ser delineado na Baixa Idade Média, ainda que a experiência jurídica medieval, segundo Paolo Grossi (2014), possa ser caracterizada pela existência de um pluralismo no âmbito do direito. “Pluralidade de tradições e de fontes de produção no interior de um mesmo ordenamento jurídico” (GROSSI, 2014, p. 65). Ciente desta complexidade de tradições e de interpretações jurídicas coexistentes, é que Fátima Fernandes se propõe a discutir a condição de degredados e de traidores em um contexto específico, ou seja, durante as guerras entre Portugal e Castela, iniciadas em 1369. Após o assassinato do legítimo rei de Castela, Pedro I (23 de Março de 1369), por seu irmão bastardo, Enrique de Trastâmara (Henrique II), o rei português D. Fernando apoiado por várias cidades da Galiza e por partidários de Pedro, o Cruel, reivindica a coroa castelhana alegando ter-lhe direito por ser bisneto de Sancho IV. Essas guerras representavam, portanto, quadros da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), pois Pedro de Castela era partidário dos ingleses e seu meio-irmão Enrique, inicialmente dos franceses (NASCIMENTO, 2011). Leia Mais

Violência no Século XX: entre trauma, memória e história (I) / Boletim Historiar / 2016

Foi com grande satisfação que acolhemos o convite da Revista Boletim Historiar para realizar um Dossiê com os trabalhos realizados pelos alunos do curso Violência no Século XX: entre trauma, memória e história, oferecido no Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, no primeiro semestre de 2016.

Franz Rosenzweig, filósofo judeu-alemão que lutou na I Guerra Mundial, em seu Estrela da Redenção, obra escrita em cartões postais desde as trincheiras dos Balcãs, lembra-nos do significado daquela guerra como a preeminência da humanidade em marcha em relação aos homens de carne e osso: “Que o homem se enterre como um verme nas entranhas da terra nua, diante dos tentáculos sibilantes da morte cega e impiedosa, que ele possa sentir lá, em sua violência inexorável, o que normalmente ele nao sente jamais: que seu eu passaria a ser apenas um isso se viesse a morrer, e que cada um dos gritos ainda contidos em sua garganta possa clamar seu eu contra o implacável que o ameaça desse aniquilamento inimaginável… diante de toda essa miséria, a filosofia sorri com seu sorriso oco”[1]

O longo século XX testemunhou diferentes formas de violência – genocídios, colonialismos, guerras nacionais e civis, lutas por autodeterminação, movimentos civis armados, revoluções, golpes de estado, atos de terrorismo que desafiaram tradições de sociabilidade e pacificação, construídas com alguma esperança e com fundamentos éticos, desde o iluminismo. Um importante repto vem se impondo à reflexão historiográfica, uma vez que esses fenômenos, de pertubadora violação de vidas e de direitos, movidos por formas cada vez mais sofisticadas de violência, promoveram traumas, medos, ressentimentos, melancolia, vingança, ódio e desesperança. Uma atmosfera recorrente de sentimentos morais difusos, confusos e de difícil apreensão ontológica e epistemológica, impõe-se, além das estruturas, dos fatos e da temporalidade moderna, como desafio crucial para os que enfrentam de algum modo o tema da violência em suas variadas manifestaçoes. Há, nesse cenário, descontinuidades narrativas, geralmente negligenciadas pelos historiadores, mas obviamente presentes no recalcamento dos que viveram e sobreviveram à violência desse longo século. Inevitavelmente, essa miríade de fenómenos históricos violentos precipitaria uma viragem epistemológica pós-estruturalista, que só a partir no desfecho da II Guerra Mundial ganha maior ênfase. O curso “Século XX: entre trauma, memória e história”, teve como objetivo explorar um certo tipo de produção historiográfica que vem assumindo desde o final da II Guerra Mundial o papel nada confortável de tratar o tema da memória e da história em tempos sombrios.

O conjunto de trabalhos elaborados no curso e que perfazem esse dossiê, qualifica-se pela diversidade de focos, abordagens e temas que resultaram da reflexão sobretudo das formas em que a história e a memória esgrimam pela legitimidade narrativa de circunstâncias que envolvem violência, violações, genocídios, como também pelo desafio de refletir e elaborar narrativas sobre a atmosfera dos sentimentos morais que nasce dessas circunstâncias.

Algo de surpreendente resulta desses trabalhos. Cada um ao seu modo dialoga com teorias, métodos, narrativas, interpretações, literatura que direta ou indiretamente correspondem à questões tratadas ao longo do curso. Há desde temas sobre história, memória e a I Guerra Mundial, sobre monumentos, patrimônios históricos, sobre holocausto e sentimentos morais, sobre justiça de transição e o conceito de história, sobre testemunho, trauma e homossexualidade, sobre cinema e conflitos, sobre cultura de guerra e Guerra Fria, sobre memória, opinião pública e imprensa, sobre violênciae literatura de ficção, sobre dilemas da identidade nacional, enfim, um leque extenso de variações sobre o mesmo tema da violência-história-memória. O resultado vocês terão a oportunidade de conferir no Dossiê que ora se apresenta no Boletim Historiar e que, esperamos, possa colaborar com debates e pesquisas no campo da história da contemporaneidade, séculos XX e XXI.

Nota

[1] Franz Rosenzweig, L’Etoile de la rédemption, Paris, Seuil, 1982, p. 11.

Monica Grin

Silvia Correia


GRIN, Monica; CORREIA, Silvia. [Violência no Século XX: entre trauma, memória e história-1º Volume]. Boletim Historiar. São Cristóvão, n.17, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas – KOCH (RED)

KOCH, Ingedore Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Contexto, 2015. 173 p. Resenha de: SEARA, Isabel Roboredo. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas é o livro mais recente de uma das figuras incontornáveis da Linguística brasileira: Ingedore Villaça Koch. Essa obra pioneira teve sua primeira edição em 2004, publicada pela editora Martins Fontes. A edição atual, de 2015 (Contexto), foi revista e reformulada.

Nela a autora partilha, com todo o seu vasto público-leitor, a sua concepção de Linguística Textual, assumindo uma postura científica distante das gramáticas tradicionais e perscrutando, de forma inovadora, os contributos das ciências cognitivas e sociais para a fixação deste novo campo disciplinar. Koch procede a uma resenha dos principais trabalhos mundiais que estão na base desta nova ciência, evidenciando como, ao longo das últimas décadas, têm sido várias as concepções de texto e como estas têm repercutido na evolução dessa disciplina linguística, que se iniciou a partir de uma perspectiva de base gramatical, passando posteriormente por uma abordagem discursivo-pragmática, até se ancorar, nos dias de hoje, numa dinâmica sociocognitivista e interacional.

A obra divide-se em duas grandes partes: na primeira, a autora traça o panorama da trajetória da Linguística Textual, detendo-se principalmente em análises interfrásicas e gramaticais do texto (nomeadamente a visão da pura gramática de texto e a visão semântica), para expor detalhadamente a virada pragmática e, posteriormente, a sociocognitivo-interacionista. Nessa parte inaugural, ela aborda ainda os princípios da construção textual de sentido, designadamente os processos de construção da coesão textual do sentido e da coerência.

Na parte II, a linguista aborda os principais objetos de estudo da disciplina: referenciação; formas de articulação textual; estratégias textual-discursivas de construção do sentido; marcas de articulação na progressão textual; a intertextualidade e, por fim, os géneros do discurso.

Essas duas partes capitais da obra situam-se, naturalmente, entre a introdução e a conclusão, que merecem uma atenção especial, na medida em que, diferentemente da maior parte dos manuais de Linguística, que apresentam nesses itens de abertura e fechamento simples apresentações e resumos do explanado, em Introdução à linguística textual: Trajetória e grandes temas, isso não acontece.

Na Introdução, Koch desperta e cativa a nossa atenção ao enunciar algumas perguntas muitíssimo pertinentes que atestam o lugar e o papel da Linguística Textual, comprometendo-se a esclarecer ao longo do texto a centralidade dessa ciência ou teoria da linguagem, que a autora prognostica encontrar-se numa fase de inegável consolidação. Na sequência desse desafio que nos é colocado, procede à recensão das várias concepções de texto que, ao longo dos tempos, fundamentaram os estudos de Linguística Textual, elencando, desde logo, a sua evolução por décadas e anotando, a par e passo, os nomes cimeiros, quer da Linguística europeia, quer da Linguística brasileira, que contribuíram para a evolução da análise transfrásica e gramatical do texto para o processamento de base sociognitiva e interaccional.

Na Parte I, intitulada Análises Interfrásicas e Gramáticas de Texto, traça-se a fase inicial da Linguística Textual, cujos contributos pioneiros datam da segunda metade da década de 60 do século passado até aproximadamente à década de 70, em que a atenção era privilegiadamente dada aos mecanismos interfrásicos, de cunho gerativista, estruturalista e funcionalista, em que o texto era entendido como uma sucessão de unidades linguísticas, constituídas mediante uma concatenação pronominal ininterrupta. São referidos, a esse propósito, os contributos de Halliday & Hasan (Cohesion in Spoken and Written English. London: Longman, 1976), sobre os processos correferenciais anafóricos e catafóricos, e dos linguistas alemães Isenberg (Der Begriff “Text”. In: der Sprachteorie. ASG- Beritch, n. 8 Berlim, 1968) e Vater (Determinantien. Trier: Laut, 1979), sobre anáforas de tipo associativo, que se limitavam, porém, a porções textuais de maior ou menor dimensão, sem ousarem outros avanços. Nessa fase titubeante da Linguística Textual surgiu a necessidade de elaboração de gramáticas textuais, à semelhança das já existentes gramáticas de frase, a partir do pressuposto de que existe uma competência textual para além da competência linguística, de base chomskiana. A virtualidade desse novo olhar foi a de encarar o texto como uma unidade linguística hierarquicamente superior (ou mais elevada, nas palavras da autora). Em prol dessa perspetiva surgiram as gramáticas textuais de Weinrich (Tempus: besprochene und ezahtle Welt. Sttütgart: Koklhammer, 1964. [1971: edição modificada]), Petofi(Zu einer Grammatischen Theorie spralischer texte. LiLi, ano 2, fas.5, 1973, p.31-58) e Van Dijk (Some Aspects of Textgrammars. The Hague: Mouton,1972).

A essa primeira fase seguiu-se a abordagem semântica, em que se defendia que apenas à semântica do texto cabia explicar a estrutura dos significado de um texto e as relações de sentido, tendo sido esses pressupostos amplamente desenvolvidos por Dressler (Einführung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1972), Charolles (Introduction aux problèmes de la cohérence des textes. Langue Française, 38, 1978, p.7-41) que, em 1978, apresenta as macrorregras de coerência textual, e Fillmore (The Case for Case. In: BACH, E. & HARMS, R.T. (eds.). Universals in Linguistic Theory. New York: Rinehart & Winston, 1968, p.1-88.1969), entre outros.

Todavia, a partir da metade da década de 1970, a perspectiva pragmática acaba por se impor a partir quer das teorias de base comunicativa, quer a partir dos postulados da teoria dos atos de fala e da teoria da atividade verbal, subscrevendo-se com esse novo olhar a necessidade de encarar o texto como produto de uma atividade mais complexa, como instrumento de realização de intenções comunicativas e sociais do falante, tal como foi preconizado nomeadamente por Heinemann, em 1982. São realçados os contributos de alguns linguistas europeus: do linguista alemão Wunderlich, subscritor da Teoria da Atividade Verbal, que introduziu uma série de questões de cariz enunciativo, particularmente o conceito de dêixis; de Isenberg (Einige Grundbegriffe für eine linguistische Textherorie. In: DANÉS, F. & VIEHWEGER, D. (eds.). Probleme der textgrammatik. Berlim: Akademic Verlag, 1976, p.47-146), que defende a importância dos planos de texto e dos propósitos comunicativos; de Schmidt (Textheorie. Probleme einer Linguistik der sprachichen Kommunication. München: Fink, 1973) que, por seu turno, sublinha a necessidade de entender o texto na sua dimensão sociocomunicativa; as ideias subscritas por Heinemann&Viehweger (Textlinguistik: eine Einführung. Tübingen: Niemeyer, 1991), que se centram no conceito pragmático de “ação verbal” e que alicerçam a ideia do texto como resultado de um processo de comunicação; e, por fim, van Dijk que, nomeadamente na sua obra Studies in the Pragmatics of Discourse (Studies in the Pragmatics of Discourse. Berlim: Mouton 1981) e em outras posteriores, subscreve a necessidade de ter em linha de conta “as relações funcionais do discurso” que estão na base da coerência pragmática.

Seguindo esta démarche cronológica, segue-se a apresentação da virada cognitivista que ocorre na década de 80, em que se entende que todo texto passa a ser considerado como resultado de operações mentais, sendo fundamental para sedimentar essa ideia a obra de Beaugrande e Dressler (Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer, 1981), que postulam essa multiplicidade de operações cognitivas interligadas que subjazem à elaboração e produção textuais. A novidade dessa abordagem reside, pois, na percepção de que o processamento textual é estratégico e não é indissociável das características dos usuários da língua e do conhecimento episódico e enciclopédico que convocam na construção textual. As estratégias interacionais afirmam-se, nesse sentido, como estratégias socioculturalmente determinadas, com o objetivo do sucesso da interação verbal, destacando-se as estratégias de preservação das faces, que envolvem o uso de formas de atenuação e de polidez, entre outras.

Na sequência dessa visão, surge a perspectiva sociocognitivo-interacionista, com base na interiorização de que os processos cognitivos não são exclusivamente individuais, mas concomitantemente sociais. Essa ideia foi, de resto, subscrita amplamente por Koch em trabalho conjunto anterior (Koch, I. e Lima, M. Sócio-cognitivismo. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A.C. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, filosóficos e modelos de análise. São Paulo: Cortez, 2004) que, defendendo a abordagem interacionista, considera as ações verbais como “engajamento” em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente, reforçando a dimensão sociointeracionista da linguagem.

No último capítulo da I Parte da obra, a autora procede, com todo o rigor, a uma recensão dos princípios de construção textual do sentido a partir da obra de Beaugrande e Dressler (1981), explicitando o conceito de coesão textual e ilustrando com exemplos significativos de elementos que podem ter, no texto, função coesiva. A autora explicita igualmente os conceitos de coerência, situacionalidade, informatividade, intertextualidade, intencionalidade, aceitabilidade que estão presentes nas postulações de Beaugrande & Dressler para, em seguida, os poder questionar, criticando, por exemplo, a separação tecida pelos autores entre fatores centrados no texto e no usuário e defendendo a introdução de outros fatores. Subscreve, a partir de Marcuschi (Linguística do texto: o que é e como se faz. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Série Debates 1, 1983), a introdução de “fatores de contextualização”, que contribuem para a ancoragem do texto em determinada situação comunicativa. Apresenta, por outro lado, os conceitos de consistência e relevância, a partir dos trabalhos de Giora (Segmentation and Segment Cohesion: on the Thematic Organization of Text. Text, 3 (2), 1983, p.155-181) e acrescenta a relevância do conceito de “focalização”, que a autora trabalhou em estudo conjunto desenvolvido com Travaglia (A coerência textual. São Paulo: Contexto, 1987) para subscrever que, na abordagem sociocognitiva e interacionista, a coerência deve ser encarada como uma construção “situada” dos interlocutores.

Na Parte II, o leitor depara-se com a explicitação detalhada dos conceitos anteriormente abordados, sendo agora explanados com a clareza e a sabedoria que advêm da longa e marcante experiência docente de Ingedore Villaça Koch, convocando, por isso, par e passo, exemplos pertinentes que, seguindo com fidelidade os conselhos da retórica clássica, prendem a atenção do leitor.

Detém-se primeiramente na referenciação como atividade discursiva, tema que, de resto, foi amplamente trabalhado por Koch e Marcuschi em múltiplos trabalhos e que se sustenta na ideia-chave de que a discursivização ou textualização do mundo é, ela-própria, um processo de (re)construção do real. Quer para as formas de ativação de referentes no modelo textual, quer para a progressão referencial, a autora esclarece as diferentes estratégias de referenciação, sistematizando e exemplificando com textos curiosos e atualizados da imprensa brasileira.

A sistematização é um dos recursos pedagógicos mais eficientes, convocado por Ingedore Koch para recensear, por exemplo, as funções cognitivo-discursivas das expressões nominais referenciais, permitindo-lhe demonstrar que os “referentes” são objetos do discurso, construídos e reconstruídos continuamente na interação verbal.

Para abordar as formas de articulação ou progressão textual, a autora, denotando de novo o seu saber enciclopédico, ilustra com exemplos de versos do consagrado poeta português Fernando Pessoa, convocando, de seguida, poemas do carioca Olavo Bilac, excertos literários de Machado de Assis e do Padre António Vieira, mostrando como o ecletismo literário pode conviver com os exemplos de enunciados do quotidiano, confirmando, assim, que os processos e estratégias linguísticas estão presentes em todo tipo de textos.

É de interesse capital nesta obra o capítulo dedicado às estratégias textual-discursivas de construção do sentido, que desempenham uma série de funções cognitivo-interativas e que subjazem à facilitação da compreensão e descodificação dos enunciados, visando, por isso, assegurar o sucesso da interação. Os exemplos que a autora convoca, como já anteriormente sublinhamos, atestam a variabilidade das fontes, que nesse ponto são completados com exemplos da língua falada, retirados do corpus do projeto NURC. São, pois, criteriosamente definidas as estratégias formulativas, como as inserções, as repetições e parafraseamento retóricos e deslocamento de constituintes, sempre ilustradas com exemplos esclarecedores, de que nos permitimos destacar as repetições e os parafraseamentos retóricos e que, como curiosamente, a linguista justifica, visam seguir o velho ditado português (“água mole em pedra dura”), na medida em que contribuem para o reforço da argumentação.

Por sua vez, quando a autora aborda a questão das estratégias metadiscursivas, parte da proposta de outros autores para conceber, com mais clareza e simplicidade, a sua proposta de classificação em três categorias, as metaformulativas, em que inclui as correções, as paráfrases e repetições saneadoras; as modalizadoras ou metapragmáticas, que têm como objetivo preservar a face do locutor e recorrem sobretudo a estratégias de atenuação e de desresponsabilização ilocutória; e, por fim, as metanunciativas, em que o enunciador autocomenta o seu próprio dito.

Para a eficácia das estratégias, é naturalmente necessário o uso de articuladores textuais ou marcadores discursivos, pelo que a autora se fixa, nesse momento capital da obra, na descrição pormenorizada e sistematizada dos diferentes tipos de marcadores, categorizando-os com base nas suas funções: marcadores de conteúdo proposicional, discursivo-argumentativos, textuais e metadiscursivos. Criteriosamente definidos e exemplificados, tornar-se-á fácil para qualquer estudante interiorizar esses conteúdos centrais da Linguística Textual.

No final da Parte II, a autora faz uma pequena incursão em dois temas centrais para a Linguística Textual: o da intertextualidade e o dos gêneros do discurso, temas que foram já abordados em anteriores trabalhos da pesquisadora. Convoca os principais trabalhos de linguistas franceses para debater as questões de intertextualidade implícita, esclarecendo e ampliando a centralidade da noção de “détournement” (GRÉSILLON, A.; MAINGUENEAU, D. Polyphonie, proverbe et détournement. Langages 73, 1984, p.112-125) e interligando com o conceito de polifonia, que a autora subscreve como de maior amplitude do que o de intertextualidade.

A derradeira reflexão sobre gêneros textuais é uma súmula brilhante dos trabalhos anteriores, desde os estudos pioneiros de Bakhtin até aos mais recentes trabalhos da Escola de Genebra, para defender a importância do conhecimento e da interiorização da multiplicidade de gêneros existentes que contribuem para habilitar os sujeitos na aquisição de uma maior competência linguística, comunicacional e, sobretudo, interacional.

A obra se encerra com uma reflexão sobre o futuro da Linguística Textual, em que Koch, como uma das suas principais fundadoras no Brasil, reflete, com competência e autoridade, sobre a necessidade crescente de a Linguística Textual construir pontes, não apenas com as ciências ditas humanas, mas com outros campos de conhecimento, visando, desse modo, a edificação de uma ciência integrativa, multi e transdisciplinar, em diálogo permanente com todas as outras disciplinas que têm como objeto de estudo a construção social dos sujeitos, o conhecimento e a linguagem, em suma, a interação social.

Em suma, há obras cuja leitura devemos recomendar e que, pelo rigor, transparência e poder de síntese, configuram o que comummente apelidamos de “bíblia”. Esta é indubitavelmente a ‘bíblia’ para todos os que queiram conhecer e aprofundar os seus conhecimentos sobre Linguística Textual. A sua forte difusão no Brasil e em Portugal atesta já a sua relevância nos estudos linguísticos em língua portuguesa.

Isabel Roboredo Seara – Universidade Aberta e Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal; isabelseara@uab.pt.

Estudos discursivos à brasileira: uma introdução – BARONAS (RED)

BARONAS, R. (Org.). Estudos discursivos à brasileira: uma introdução. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. 190p. Resenha de MARCHEZAN, Renata Coelho. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Estudos discursivos à brasileira: uma introdução, organizado por Roberto Leiser Baronas, reúne, com prefácio de Diana Luz Pessoa de Barros e posfácio de Kátia Menezes de Souza, seis estudos sobre o discurso, em diferentes abordagens teóricas, praticadas por pesquisadores brasileiros: a análise do discurso e a semiótica, ambas de orientação francesa, e a análise dialógica do discurso.

O título do livro com a expressão “à brasileira” e o da introdução – “Ciências brasileiras de lingua(gem): teorias de discurso” -, assinada pelo organizador, despertam curiosidade e perplexidade, que vão se resolvendo com a leitura.

Segundo Baronas, a proposta da obra é inspirada, principalmente, no artigo de divulgação científica, Uma teoria brasileira do idioma, de Marcelo Módulo e Henrique Braga (Revista Língua Portuguesa. n. 78, 2012), que dá destaque às pesquisas de Ataliba Teixeira de Castilho, em particular sua Nova gramática do português brasileiro ( São Paulo: Editora Contexto, 2010), e na conferência de Rodolfo Ilari que, no GEL de 2013, homenageia o professor brasileiro Isaac Nicolau Salum, apreciando a originalidade de seu método de análise sintática do texto por meio de esquemas em garfos.

Considerando essas reflexões uma afirmação da “existência não só de uma linguística no Brasil, mas também de uma linguística do Brasil” (BARONAS, 2015, p.16), Baronas detém-se na área do discurso para destacar as “teorias brasílicas do discurso”.

Como se sabe, há correntes na área do discurso, de base francesa, em cuja denominação se costumou acrescentar o adjetivo pátrio como uma espécie de sobrenome que, no entanto – vale lembrar, não é atribuído pelo pai ao filho que nasce, mas a ele já em idade madura, pelo outro, que o institui e legitima. Mesmo assim, parece quase inevitável que, também no domínio do conhecimento, para não dizer da ciência, se respondesse ao chamamento, do nosso contexto atual e suas forças centrífugas, para a afirmação das identidades, das diferenças, das heterogeneidades.

O próprio Baronas reconhece o “tom de manifesto” de sua introdução, em que, fazendo referência à gramatiquinha de Mário de Andrade, defende que nas pesquisas sejamos brasileiros, sem sermos nacionalistas.

Em relação a essa brasilidade, no entanto, a primeira nota de rodapé da introdução é elucidativa e oportuna: “Quando utilizamos a designação Ciências brasileiras de lingua(gem), não o fazemos com o intuito de negar o caráter universal da ciência, mas buscamos dar destaque à singularidade das ciências desenvolvidas por pesquisadores brasileiros no âmbito da linguagem” (BARONAS, 2015, p.15).

E é esse mesmo o objetivo atingido: a compilação de trabalhos indica a singularidade de pesquisas brasileiras já consolidadas na área do discurso. Baronas convida estudiosos que trabalham, em ordem de publicação, com a Teoria do silêncio, de Eni Orlandi, a Semiótica da canção, na esteira de Luiz Tatit, a Semântica do acontecimento, formulada por Eduardo Guimarães, a Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos, de Sírio Possenti, a Análise dialógica do discurso verbo-visual, desenvolvida por Beth Brait, e a Abordagem foucaultiana do discurso, proposta por Maria do Rosário Gregolin e seu grupo de estudos, o GEADA (BARONAS, 2015, p.22). As reflexões, caracterizadas como introdutórias nessas teorias, oferecem também apurados desenvolvimentos, sempre acompanhados de exemplificação analítica.

O silêncio existe para poder (não) dizer, de Lucília Maria Abrahão e Sousa, assinala que, em As formas do silêncio, o movimento dos sentidos, Orlandi (Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997) abre um campo, na teoria discursiva fundada por M. Pêcheux, para problematizar e refletir sobre as formas do silêncio que operam na constituição do sujeito e do sentido. Nesse contexto teórico mais amplo, e em relação com seus conceitos, entre eles, posição-sujeito e formação discursiva, Orlandi propõe três formas de silêncio: o silêncio fundador, o silêncio constitutivo e o silêncio local. Diferentes modos de significar o silêncio, que a autora do capítulo apresenta e exemplifica.

Em Semiótica e canção: uma paixão brasileira, Flávio Henrique Moraes e Mônica Baltazar Diniz Signori consideram a semiótica da canção, desenvolvida por Tatit (cf. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994), “um importante e original ramo da semiótica greimasiana”, um avanço na teoria. Assim sendo, com o objetivo de expô-la, percorrem, com rigor e clareza, um caminho teórico que vai das bases da semiótica, principalmente com F. Saussure e L. Hjelmslev, à consolidação da teoria, com A. J. Greimas, às recentes contribuições da semiótica tensiva, de C. Zilberberg, até chegar à semiótica da canção, de Tatit, que, com a marca da coerência teórica, permite descrever conjuntamente a melodia e a letra da canção.

Soeli Maria Schreiber da Silva e Carolina de Paula Machado, em Semântica do acontecimento: princípios teóricos, metodológicos e análises, apresentam o percurso de constituição da Semântica do acontecimento, realizado por Guimarães (Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas, SP: Pontes, 2002), em interlocução, principalmente, com a Análise do Discurso de orientação francesa e com as teorias enunciativas de E. Benveniste e O. Ducrot. Trata-se de uma análise interpretativa dos sentidos, que tem como conceito central a enunciação, entendida como acontecimento histórico, social e político.

Fernanda Góes de Oliveira Ávila e Roberto Leiser Baronas, em Teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos: a piada levada a sério, destacam, da ampla contribuição de Possenti para o estudo do discurso, sua formulação dos estereótipos (Humor, Língua e Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2010), que desdobra o conceito de simulacro de Dominique Maingueneau e expõe o funcionamento do humor, da piada. Os autores do capítulo buscam explorar a teoria dos estereótipos em análises de uma série de piadas do Joãozinho, conhecido personagem de piadas que circulam entre nós.

No capítulo De presidentes a presidenciáveis: verbo-visualidade na esfera jornalística e político-partidário, Maria Helena Pistori mostra a pertinência de uma análise dialógica da verbo-visualidade. Retoma diversos trabalhos em que Brait (cf., por exemplo, Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana. Revista de estudos do discurso. São Paulo, v. 8, n. 2, p.43-66, Jul./Dez. 2013) propõe e defende essa tese, seja evidenciando a concepção ampla de linguagem do Círculo de Bakhtin, seja elencando os diversos momentos em que, aí, se considera o visual (mas não o verbo-visual), seja investigando os trabalhos bakhtinianos de temática vizinha. Pistori, engajando-se também na análise dialógica da verbo-visualidade, consegue apresentar, no espaço reduzido de um capítulo, uma densa caracterização da análise dialógica do discurso e, igualmente, mostrá-la em atividade, na análise de um objeto verbo-visual.

No último capítulo do livro, Por uma análise arquegenealógica do discurso, Pedro Navarro situa-se no domínio de pesquisa tão fomentado por Gregolin (cf., por exemplo, GREGOLIN, M. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA, M. C.; POSSENTI, S. (org.). Mídia e rede de memória. Vitória da conquista: Edições UESB, 2007, p.39-60), o que traz as reflexões de M. Foucault para a análise do discurso. É essa mesma a proposta do texto: examinar o método arquegenealógico como uma possibilidade de estudo do discurso, e explorá-lo em análises de capas de revista. Para tanto, o autor orienta-se por obras de Foucault e expõe a relação que as reflexões estabelecem entre história e poder. Nesse caminho, detém-se em questões como o descentramento do sujeito, a consideração da história como monumento, a constituição de séries enunciativas e os processos de subjetivação.

Os capítulos reunidos na obra mostram, assim, diferentes correntes teóricas que têm o discurso como objeto. Diante dessa diversidade – também tratada, recentemente, em obra organizada por Brait e Souza-e-Silva (Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012) -, pode-se perguntar o que possibilita o reconhecimento do campo de estudo, além da unidade conferida pelo nome. Barros inicia seu prefácio refletindo sobre isso: os estudos do discurso “recuperam a instabilidade própria da linguagem”. Situam-se, assim, em um ponto de inflexão da linguística, o da problematização de seus axiomas (manifestados na eleição de um dos pares de suas dicotomias: língua vs. fala, competência vs. performance, enunciação vs. enunciado, linguístico vs. extralinguístico). Continuando a reflexão de Barros, considera-se aí também o questionamento de um nível de abstração que não mais satisfaz. O interesse pelo instável, além do estável, pelo acontecimento (termo que, aliás, está presente na configuração de todas as teorias discursivas aqui mencionadas), além da estrutura, não é, evidentemente, apanágio apenas do objeto discursivo (nem mesmo da disciplina linguística), mas, certamente, se trata de um objeto mais sujeito às instabilidades e, portanto, à necessidade de apreendê-las.

Concordando ainda com as reflexões de Barros, no prefácio (Estudos do texto e do discurso no Brasil. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São Paulo, v. 15 (n. especial), p.183-199, 1999), os estudos do discurso no Brasil têm raízes institucionais e retribuem, com a constante formação de profissionais, com produção de incontestável importância para o âmbito do discurso e para a teoria da linguagem, de modo geral. Ao examinar o quadro da área no Brasil, Barros ainda aponta nossa disposição para alargar os objetos construídos, para encarar novos corpora, para inovar os métodos, em outras palavras, para enfrentar as instabilidades. Entende que é assim que temos caminhado, sem criar outra teoria, outro paradigma, mantendo o rumo, em “adequada conciliação entre a novidade e a tradição”.

O conjunto de capítulos, organizados por Baronas, oferece um balanço dos estudos discursivos no Brasil, expondo teorias adotadas, suas interlocuções frutíferas com outros centros, seus desenvolvimentos e avanços. É, certamente, uma obra representativa, que merece leitura atenta dos pesquisadores da área.

Renata Coelho Marchezan – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Araraquara, São Paulo, Brasil; renata_marchezan@uol.com.br.

 Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski – MCCAW (B-RED)

MCCAW, Dick. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski]. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Resenha de GONÇALVES, Jean Carlos. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.

Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski foi escrito por Dick McCaw, professor de Drama e Teatro no Departamento de Drama e Teatro – Práticas de Performance da Royal Holloway, University of London, tendo sido publicado em 2015 em língua inglesa, e ainda sem tradução para o Português.

Fruto de uma iniciativa inédita, a obra examina as conexões entre o pensamento do autor russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) e a produção teatral de diretores e pesquisadores teatrais contemporâneos de Bakhtin: Konstantin Stanislavsky (1863-1938), Vsevelod Meyerhold (1879-1940) e Jerzy Grotowski (1933-1999).

Esse estudo, extremamente pertinente e relevante, não só para aqueles que pesquisam e/ou se interessam pelos estudos teatrais, mas para todos que buscam conhecer e aprofundar seus conhecimentos sobre a obra de Bakhtin, oferece muito mais que um apanhado de referências sobre a aproximação do filósofo russo com a produção teatral de sua época. Trata-se da apresentação de um detalhado esboço sobre as relações entre técnicas, conteúdo e forma (estética) do teatro à luz dos estudos da filosofia da linguagem, elaborados por Bakhtin e o Círculo.

De um encontro quase acidental, durante um processo de pesquisa para uma peça dos Medieval Players (1981-1992), companhia teatral de que McCaw fazia parte, se estabelece entre o pesquisador e os estudos bakhtinianos uma profícua e duradoura relação que deu origem à sua tese de doutorado e posteriormente ao presente livro.

Bakhtin and Theatre discute a produção de três diretores/pedagogos que estavam constantemente questionando a si mesmos e uns aos outros sobre a natureza do teatro e do trabalho do ator. Embora Bakhtin mencione Stanislavsky e arrisque alguns apontamentos sobre a interpretação teatral em sua obra, seus livros não fazem qualquer referência a Meyerhold ou Jerzy Grotowski. Por sua vez, os escritos dos três profissionais de teatro examinados neste estudo não apresentam menção à teoria bakhtiniana.

A maior parte do argumento de Bakhtin and Theatre é traçada a partir de preocupações levantadas na produção intelectual inicial de Bakhtin, especialmente no que se refere aos textos Para uma filosofia do ato responsável (Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010) e O autor e o herói na atividade estética (in: Estética da criaçã o verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-192), escritos entre 1920 e 1924. McCaw defende que esses textos, quando compreendidos como uma “filosofia por outros meios” podem subsidiar e ampliar questões sobre a personagem e a empatia, reverberando na aprendizagem e no desenvolvimento do ator.

McCaw questiona, por exemplo, se a noção de evento de Bakhtin pode ter alguma conexão com o conceito de circunstâncias dadas de Stanislavsky. Conceito este que se interessa, entre outros aspectos, pela criação da personagem teatral em uma dimensão expandida, ao considerar sua exterioridade como constitutiva da composição cênica (incluindo aí desde marcas discursivo-enunciativas de identidade como idade, classe social e gênero até perspectivas de ordem mais técnica como figurino, maquiagem e espaço cenográfico).

No que diz respeito à iniciativa de McCaw de investigar possíveis aproximações com um campo de estudos que não foi amplamente tratado na produção intelectual bakhtinana, é bom destacar o reconhecimento da obra por Caryl Emerson (Princeton University/EUA), que a aponta como um livro de referência que insere Bakhtin nas artes do espetáculo ao demonstrar como seu pensamento pode ser vivo e criativo quando o lugar privilegiado de reflexão é o teatro1.

O livro é dividido em seis capítulos, sendo que o primeiro fornece uma visão do pensamento de Bakhtin; os três capítulos seguintes examinam questões teatrais que surgem a partir de um diálogo entre os primeiros escritos de Bakhtin e Stanislavsky; os dois últimos capítulos exploram a forma como estas questões são desenvolvidas, reformuladas e respondidas por Meyerhold e Grotowski.

Depois de considerar como inegável a aproximação entre Bakhtin e os estudos da cena, cada ensaio traça a evolução cronológica do seu pensamento, destacando os principais conceitos associados a cada período de escrita. A primeira parte é visivelmente dedicada à discussão de seus primeiros manuscritos, que fornecem grande parte do material conceitual que embasa teoricamente todas as reflexões presentes ao longo do livro.

O primeiro capítulo – Bakhtin e o teatro – apresenta as obras pelas quais Bakhtin é mais conhecido, destacando-se aí o seu estudo sobre Dostoiévski. Também se constituem como alvo de reflexão algumas noções que percorrem a trajetória bakhtiniana, por meio de uma visita, breve, porém pontual, aos textos O discurso no romance (in: Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. São Paulo: HUCITE/UNESP, 1993, p.71-210), escrito em 1934-35, Formas de tempo e de cronotopo no romance (in: Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/UNESP, 1993, p.211-362), de 1937-38 e revisto pelo autor em 1973, e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1987), sua tese de doutorado, de 1940, publicada em 1965.

No segundo capítulo – Tempo e espaço no romance e no teatro – McCaw se debruça sobre a questão da ação na relação com o espaço, mais especificamente ao se perguntar como uma ação pode ser experimentada pela pessoa que a executa. É na centralidade da filosofia do ato, como discutida por Bakhtin, que o texto se encaminha para discussões sobre o tempo, o espaço e a significação nos universos bakhtiniano e stanislavskyano.

O Capítulo 3 – Atuação psicofísica – examina como a abordagem de Stanislavsky para a formação do ator pode se ampliar a partir das ideias de Bakhtin sobre a ação incorporada, ou seja, como a relação entre mente e corpo na experiência do sujeito no mundo (vida cotidiana) interessa, para além de uma análise de cunho mais literário, ao campo de estudo das artes do corpo e da performance.

O quarto capítulo – Criando uma personagem – traz o tema da autoria em Bakhtin e sua contribuição para a investigação da interpretação do ator. Por meio de uma abordagem situada na reflexão bakhtiniana sobre eu e o outro, o texto estabelece relações com a noção de irrepetibilidade, aferindo alguns questionamentos a respeito do espetáculo teatral como evento único e singular, o que lhe confere o status de arte efêmera e, ao mesmo tempo, (re)apresentada por noites seguidas para diferentes públicos e em diferentes espaços, resultando em diversas possibilidades de produção, circulação e recepção de sentidos, tanto na/da própria obra cênica e seu acabamento sempre provisório, quanto nos/dos inúmeros aspectos subjetivos que interferem na atuação e na apreciação cênicas.

No quinto capítulo – Meyerhold, a Revolution in the Stage – o autor aborda questões sobre como a ação do outro pode ser vivida por mim e como nós (eu e o outro) podemos lidar com o valor estético da ação. O autor afirma que uma possível conexão entre Bakhtin e Meyerhold vem da referência de ambos à Commedia dell’Arte. Foi a Commedia dell’Arte que levou Meyerhold a ultrapassar a fase de suas produções simbolistas de ordem mais estáticas, e foi o mesmo referencial de imagens populares que levou Bakhtin a um discurso filosófico denso e significativo sobre a obra de Rabelais.

No capítulo 6 – Grotowski, Beyond Theater – McCaw referencia a forte influência do trabalho de Stanislavsky e Meyerhold, sugerindo que, se Grotowski começou entusiasmado pelo Teatro Total de Meyerhold, ele terminou com um Teatro do Ato Total – O seu Teatro Pobre (expressão utilizada para ressaltar a importância de uma concepção de encenação desvinculada de recursos cênicos, compreendidos por Grotowski como acessórios desnecessários ao fazer teatral). A leitura desse capítulo coloca o leitor em contato com a exigência de Grotowski por um evento de significação, que ocorre em tempo e lugar reais, mesmo que protegido pela aura da ficção e para o qual não há álibi, ou seja, está dada a aproximação com a perspectiva de Bakhtin, para quem o sujeito, ao agir, está imerso em um ato responsivo do qual não pode se esquivar.

Nas conclusões do livro, o autor defende seu objetivo de mostrar que as questões sobre a atuação, e mais amplamente sobre teatro, tocam em temas e processos que são fundamentais para a nossa compreensão de nós mesmos e das outras pessoas. Bakhtin oferece duas explicações de tempo e espaço: a primeira é uma descrição fenomenológica da experiência de ser como corporificação, isto é, só é possível ser no tempo e no espaço. Mais tarde ele iria elaborar uma teoria dos gêneros ou formas de tempo e espaço em materialidades diversas. McCaw argumenta que a primeira é, particularmente, útil e aplicável à arte do ator, enquanto a segunda tem relação direta e uma contribuição inquestionável para as teorias teatrais e suas especificidades.

Para concluir, Dick McCaw afirma que as ideias de Bakhtin sobre o tempo e o espaço interessam às artes da cena porque obrigam um estudante de teatro a perceber as diferentes formas de vida, criação e compreensão do sentido de se fazer teatro, que não é o mesmo de se dedicar à escrita ou à crítica do romance. O autor adverte ainda que, mesmo encontrando na obra bakhtiniana alguns poucos apontamentos sobre atuação, estilos teatrais e arquitetura cênica, a produtividade de aplicação das teorias de Bakhtin diretamente ao campo das práticas teatrais precisa ser cautelosa, especialmente no que se refere à ética e à estética da personagem, ou seja, nem toda acepção de personagem em Bakhtin pode ser perfeitamente direcionada à esfera da criação cênica, com suas minudências e características próprias.

A relevância da obra Bakhtin and Theatre – Dialogues with Stanislávsky, Meyerhold and Grotowski destaca-se no cenário da pesquisa em teatro e linguagem, sobretudo, pelo estilo didático e aprofundado que seu autor escolhe para fazer imersões pontuais e certeiras nos temas abordados ao longo do livro. Na difícil tarefa de se comunicar com leitores e pesquisadores de Bakhtin e do teatro, o livro é de caráter ímpar e instigante, por proporcionar um olhar refinado e sofisticado para obra e vida de três ícones do teatro do século XX. Desse modo, as inovações de Stanislávsky, Meyerhold e Grotowski sobre as formas de fazer/praticar/pensar/teorizar/treinar/vivenciar o teatro na contemporaneidade, a partir de suas pesquisas e experimentos, ganham, na relação com a perspectiva bakhtiniana, pelas mãos de Dick McCaw, outro approach que certamente enriquecerá os referenciais bibliográficos de todo pesquisador que pretenda espiar e descobrir o teatro por um enfoque dialógico.

1A esse respeito, cf. EMERSON, C. Bakhtin and the Actor (with constant reference to Shakespeare) https://www.academia.edu/21884973/Bakhtin_and_the_actor_with_constant_reference_to_Shakespeare

Jean Carlos Gonçalves – Universidade Federal do Paraná – UFPR; Curitiba, Paraná, Brasil; PUC-SP/CNPq; jeancarllos@ufpr.br

Marcelo Cabarrão Santos – Secretaria de Estado da Educação – SEED; Curitiba, Paraná, Brasil; celocabarrao@gmail.com.

Leibniz: A very short introduction – ANTOGNAZZA (FU)

ANTOGNAZZA, M.R. Leibniz: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SANTOS, César Schirmer dos. Uma introdução atualizada a Leibniz. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.17, n.3, p.390-391, set./dez., 2016.

Leibniz escreveu tanto que levará muito tempo até que sejam finalmente publicadas suas obras completas. Otimistas falam em décadas, pessimistas falam em séculos. Levando isso em conta, tudo o que podemos fazer é apresentar um retrato das obras de Leibniz a partir do material disponível. É exatamente isso o que a professora Maria Rosa Antognazza faz nesse pequeno e poderoso livrinho.

Maria Rosa Antognazza é professora do King’s College de Londres. No seu currículo encontramos artigos como “The hypercategorematic infinite” (2015) e “Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz” (2014), além de livros como Leibniz: An intellectual biography (2008) e Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century (2007).

O livro é muito bem organizado. O capítulo 1 trata da biografia de Leibniz. Tal como Spinoza, Leibniz teve que trabalhar para sobreviver. Jurista por formação, Leibniz trabalhou como diplomata e também como engenheiro de minas, entre tantas outras atividades. Tal amplitude no espectro de ofícios foi possível por causa da enorme curiosidade de Leibniz, mas também por sua genialidade e brilhantismo. Nas horas vagas, e também em horas, dias e anos em que ele deveria est ar se ocupando das tarefas a ele delegadas pelos seus exasperados empregadores, Leibniz deu contribuições decisivas à física, à matemática e à filosofia.

O capítulo 2 trata da lógica de Leibniz. Aqui vemos o quanto Leibniz foi importante para o desenvolvimento da ciência da computação. Em uma Europa fragmentada por guerras religiosas, Leibniz propôs que decidíssemos disputas religiosas, e quaisquer diferenças de opinião, através do cálculo. Para isso, seria preciso identificar os conceitos fundamentais, aqueles que compõem outros conceitos e que fazem parte das opiniões, e defini-los com precisão. Uma vez feito isso, poderíamos usar uma máquina – um análogo do ábaco, por exemplo – para calcular quem tem razão em uma disputa. Este projeto não foi realizado por Leibniz, e nós sabemos por quê. É preciso uma linguagem que a máquina entenda, e um meio da máquina passar das informações fornecidas a conclusões. Ora, é isso o que temos com nossas linguagens de programação e nossos processadores digitais. Isso Leibniz não tinha como produzir, mas vislumbrou.

O capítulo 3 trata dos projetos de enciclopédias e academias de ciências propostos por Leibniz. A Alemanha da virada dos séculos XVII-XVIII era um conjunto de “cidades-est ado” relativamente independentes. Algumas dessas unidades políticas eram suficientemente grandes para abrigar as universidades requeridas para formar os trabalhadores especializados, outras se viravam de outras maneiras. Uma dessas maneiras era o ensino através de enciclopédias, o que deu a Leibniz a ideia de uma enciclopédia organizada não em ordem alfabética, mas sim na ordem das razões. Primeiro os conhecimentos fundamentais, depois aqueles que imediatamente se seguem desses, e depois o campo aberto de conhecimentos que se seguem do que já foi descoberto. Essa proposta est á de acordo com a visão de Leibniz da pesquisa científica como uma tarefa coletiva, a qual requer instituições com financiamento garantido, o que levou Leibniz a propor imposto sobre o consumo de cigarro como meio de gerar recursos para a pesquisa.

Os capítulos 4-9 tratam da metafísica de Leibniz. Os capítulos 4-5 tratam de três elementos da metafísica de Leibniz: o princípio de identidade, o princípio de não contradição e o princípio da identidade dos indiscerníveis. Leibniz desdobra o princípio de identidade, segundo o qual A = A, em uma concepção na qual, seja qual for a verdade que se apresente, essa verdade é tal que o predicado est á contido no sujeito. No caso de algumas verdades da forma gênero-espécie isso é fácil de aceitar, pois parece analítico que ouro é um mineral, alface é um vegetal e baleia é um animal. Nesses casos, entender a definição do sujeito da frase é suficiente para se ver que a frase é verdadeira, pois visivelmente o predicado est á incluído no sujeito. Mas Leibniz defende que as verdades descobertas pelas observações de fatos empíricos também são assim. Tomemos uma verdade do tipo espécie-indivíduo, como Judas traiu Jesus Cristo. Não parece que o predicado esteja incluído no sujeito. Mas, para Leibniz, assim é, pois a propriedade de ter traído Jesus Cristo faz parte da identidade de Judas. Se Judas não tivesse traído Jesus Cristo, Judas não seria Judas. Dizer que Judas não traiu Jesus Cristo, então, seria mais do que enunciar uma falsidade, pois seria violar o princípio de não contradição, pois seria uma negação de uma instância de A = A.

O capítulo 6 trata da noção de realidade de Leibniz. Real, para Leibniz, é Deus, antes de tudo. O que quer que esteja na mente de Deus é real, e tudo o que é possível est á na mente de Deus, pois Deus só não pensa o que fere o princípio de não contradição, e o que não fere o princípio de não contradição é possível. Ou seja, o domínio do real é o domínio do possível. O domínio da existência é mais restrito, pois os únicos possíveis que são criados são aqueles que formam o melhor conjunto de compossíveis.

Os capítulos 7-8 tratam da questão da atividade da substância. Nenhum ser humano tem como conhecer cada um dos predicados que fazem com que Judas seja o indivíduo que ele é, pois é uma questão de fato se Judas fez isso ou aquilo, e nós só podemos saber disso através da história. Mas podemos conhecer duas coisas sobre qualquer substância individual, incluindo Judas. Primeiro, que cada substância tem cada um dos seus atributos, pois do contrário seria uma substância diferente daquela que é, se é que seria uma substância. Segundo, que cada substância individual é um princípio de ação, pois, do contrário, não seria uma substância. Leibniz concorda com Spinoza que toda substância age, mas conclui disso que nós agimos, em vez de concluir que não somos substâncias.

O capítulo 9 trata do atual est ado do debate sobre a filosofia de Leibniz. A principal questão que ocupa os especialistas em Leibniz é o estatuto ontológico do corpo na filosofia madura de Leibniz. Há dois problemas centrais. O primeiro problema é saber se, na fase final da sua investigação, Leibniz chega a uma noção estável e coerente de corpo. Há razões para duvidar disso. É possível que, pouco antes de morrer, Leibniz estivesse experimentando diversas posições, sem se comprometer com uma ou outra. O segundo problema é o que seria o corpo, para Leibniz, se for possível apresentar sua filosofia madura como uma proposta completa e coerente. Há duas posições. De acordo com a leitura idealista, Leibniz trata os corpos como meros fenômenos. De acordo com a leitura realista, Leibniz trata os corpos como entes com lugar na realidade criada e existente. A posição realista tem ganhado terreno, como podemos ver no artigo “Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690)”, de Edgar Marques (2010), professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mas ainda há muito o que ser debatido.

Em resumo, est a breve introdução à vida e obra de Leibniz traz os elementos básicos para que o público visado conheça o fundamental da filosofia de Leibniz de acordo com o est ado atual da pesquisa. Estudantes e professores de graduação têm bastante a ganhar com essa leitura.

Referências

ANTOGNAZZA, M.R. 2015. The hypercategorematic infinite. The Leibniz Review, 25:5-30.

ANTOGNAZZA, M.R. 2014. Primary matter, primitive passive power, and creaturely limitation in Leibniz. Studia Leibnitiana, 46(2):167-186.

ANTOGNAZZA, M.R. 2008. Leibniz: An intellectual biography. Cambridge, Cambridge University Press, 653 p.

ANTOGNAZZA, M.R. 2007. Leibniz on the Trinity and the incarnation: Reason and revelation in the seventeenth century. New Haven, Yale University Press, 349 p.

MARQUES, E. 2010. Leibniz acerca de almas, corpos, agregados e substâncias na discussão com Fardella (1690). Kriterion: Revista de Filosofia, 51(121):7-20. https://doi.org/10.1590/s0100-512×2010000100001

César Schirmer dos Santos – Universidade Federal de Santa Maria. Departamento de Filosofia. Cidade Universitária. Santa Maria, RS, Brasil. E-mail: cesar.santos@ufsm.br

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[DR]

 

(In) Tolerâncias Religiosas: práticas Modernas e problemáticas Contemporâneas | Temporalidades | 2016

Por que, afinal, e ainda, a Intolerância? Ou de como pode ler a História as fraquezas humanas diante da fé…

Passados quinhentos anos, comemorados neste calendário cristão de 2017, desde que Martinho Lutero afixou suas 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, um dos momentos-ápice que marcam o advento da Reforma Protestante, talvez nem o próprio monge agostiniano pudesse imaginar os rumos doravante tomados pelo cristianismo e os desdobramentos de sua proposta.

Também, pudera: a História nunca se caracterizou por ser ciência do “se”, afirmando-se mais pelo que julga tangível do que embasada por suposições mais ou menos críveis, nem tampouco aventurou-se seriamente a concluir sobre o que ainda não ocorreu, apesar do interessante título de uma das mais famosas obras de outro religioso de renome e muitíssimo conhecido entre nós – a História do Futuro, do Padre António Vieira – esta, apesar da designação, não era o que entendemos em essência como obra de História, voltada para questões outras, preocupada com o Quinto Império, que teria Portugal como raiz de uma árvore de infinitos galhos, potência cristã a disseminar o Evangelho pelo mundo. Um sonho que não se cumpriu. Leia Mais

40 anos de independência em África / Estudos Ibero-Americanos / 2016

Quatro décadas de independência: da cartilha ideológica às contingências políticas e sociais nos PALOP

Em nosso texto de chamada de artigos para esse dossiê [1] destacamos o fato de que, decorridos 40 anos das independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, estes países enfrentaram profundas mudanças em seus regimes políticos, assumindo colorações ideológicas diversas, quando não antagónicas, e uma acelerada e, em alguma medida, imprevisível, transformação social. Por tudo isso, tais países assumem hoje perfis muito diferentes das sociedades colonizadas de outrora, mas também dos ideais de dirigentes nacionalistas e, ainda, das análises de vários estudiosos que se lançaram a interpretar as dinâmicas dos processos independentistas.

Mais do que um balanço exaustivo da vida política desses países ao longo dos quatro decénios de independência, os textos a seguir propõem posicionamentos e perspectivas diversas quanto à observação de suas múltiplas vivências. Reflexões sobre as trajetórias políticas, económicas, sociais e culturais, mas também acerca do saber histórico elaborado em relação a estes países.

Ainda assim, apesar dos olhares diversos presentes no dossiê, alguns temas serão recorrentes, mesmo que nem sempre explicitados, dadas as abordagens originais e singulares. Exatamente por isso acreditamos ser importante destacar alguns deles e estabelecer um diálogo inicial, com questionamentos e aproximações que podem ajudar o leitor a perspectivar novas abordagens e a refletir a partir de ângulos que o tempo e o processo histórico sugerem ou permitem. Dessa forma, nossa proposta é a de nos debruçarmos, nesse momento inicial, em três temas que atravessam a maior parte das discussões que serão travadas a seguir. São eles o nacionalismo, o Estado e o socialismo.

O nacionalismo, no caso dos países contemplados nesse dossiê, tem dois momentos: o da luta de libertação nacional e o da sua concretização em políticas atinentes à construção das entidades políticas. É sobre este segundo momento que os textos a seguir irão se deter. De fato, o caminho da vinculação entre a edificação da nação e a construção do Estado foi trilhado demasiadas vezes. E é preciso ter atenção a essa postura de sobreposição. Embora a construção do Estado possa albergar um forte nacionalismo, em determinadas circunstâncias, o nacionalismo ou estratégias políticas também nacionalistas podem assumir posições de confronto em relação ao Estado em questão. Portanto, não devemos confundir o processo de construção do Estado com o forjar de uma identidade nacional, política e cultural entre populações amiúde heterogéneas [2].

Por outro lado, passados 40 anos das independências é possível admitir que alguns elementos centrais da ideologia do Estado colonial passaram para o seu sucessor [3], como é o caso das prerrogativas de mando dos europeus, presumidamente superiores porque portadores de uma qualquer ideia de ‘civilização’, e que foram transferidas para os africanos letrados da geração nacionalista, a quem – pela vitória das armas, quando foi o caso, ou pela ausência de concorrentes ou fragilidades desses – coube governar os seus concidadãos iletrados.

A vitória na guerra, ou na diplomacia, resultou numa ocupação do espaço político, que passou a ser definida por seus detentores como o equivalente da legitimação popular aos movimentos independentistas. O acesso ao poder ficou resolvido mas, apesar da reivindicada liderança política e da (arrogada e, ao tempo, pouco questionada) consonância de objetivos com o povo, o mesmo não sucedeu com a representatividade política e social, sobretudo com o passar do tempo e o fim da alegria prenhe de esperança que as independências inauguraram. Os anos subsequentes às independências alargaram o fosso entre as intenções políticas e as percepções populares acerca da sua segurança, dos seus sonhos e até mesmo da sua sobrevivência.

Uma vez decretada a adopção do socialismo, este, rapidamente, se traduziu num rebaixamento das expectativas e na aplicação voluntarista de preceitos inadequados às diversidades sociais existentes. Não se verificou um processo de construção de novos horizontes, mas, sim, a imposição de metas e normas concebidas nos distantes gabinetes governamentais. A antevisão ou a intuição da possibilidade do fracasso estiveram presentes desde o início, como confirmam as fissuras nos partidos únicos e os malabarismos intelectuais, tentando teorizações sobre transições políticas heterodoxas, a fim de dar conta do socialismo africano.

Não por acaso, todo o esquema interpretativo da luta de classes subjacente à luta contra a opressão colonial foi abandonado. Não se considerou mais existir nem a desigualdade nem a divergência ou a colisão de interesses, em razão da nova determinação quanto a uma suposta homogeneidade social. Só o estrangulamento da expressão da dissenção pela ampliação do único partido auxilia no entendimento do baixo volume do descontentamento por mais de uma década nas zonas territoriais sobre o alcance dos governos. Vale lembrar que Angola e Moçambique enfrentariam ainda uma prolongada guerra civil, que apesar de ser uma demonstração da insatisfação interna, precisa ser compeendida também, e de forma incontornável, como fruto da lógica perversa da Guerra Fria.

Porventura, apenas se preservou, mesmo que formalmente, a ideia do suicídio da pequena burguesia – implicitamente tida como aliada do Estado colonial – que deveria renascer pela adesão aos fins do povo. Tal tese, conveniente para a tomada do Estado, articulava-se a ideia de desenvolvimento económico e a necessária transformação sociocultural. Porém, o Estado logo passou a estar sujeito à discricionariedade dos mandantes. Assim, e de modo ambíguo, a pequena burguesia citadina, mais próxima ao Estado e respectivas ramificações, acabou beneficiada em detrimento dos camponeses a quem supostamente se destinava a revolução – em grande medida, mesmo se forçadamente, os obreiros das lutas. Numa síntese simplista, prevaleceram as alianças dos partidos históricos da libertação com os quadros urbanos necessários para a gestão de um Estado.

Para assegurar a unidade nacional fortaleceu-se a figura do povo, assim mesmo, no singular, atropelando os particularismos, transformados em demandas regionalistas ou étnicas [4], quando não, obscurantistas. Desejos, vivências, ritos e línguas anteriormente cantadas em verso como africanas e, por isso, anticoloniais e libertárias, passaram a ser exemplos de posturas tribais, antinacionalistas. Previsivelmente, cerceava-se o espaço para se discutir sobre qual nacional se estava falando.

Os movimentos triunfantes enjeitaram as clivagens étnicas. Mas esta rejeição – alavancada na retórica e nos propósitos socialistas – não equivaleu à supressão de fronteiras internas, por vezes, claramente percebidas como tal por segmentos de governados. Na Guiné Bissau, por exemplo, a indicação de juízes para sectores com os quais não tinham nenhuma relação podia corresponder a uma salutar tentativa de homogeneidade e equidade por parte do novo Estado. No entanto, não deixava de ser entendida como intrusiva e fonte de arbitrariedade por aqueles a quem o juiz se dirigia.

Os princípios do “socialismo científico”, como era pregado nos Palops, eram estranhos para as populações rurais, a esmagadora maioria da população dos novos países, e, por isso mesmo, seu coletivismo e sua forma impositiva e centralizada quanto à distribuição dos produtos lembravam tanto a arregimentação quanto a violência do tempo colonial. A adesão aos projetos e aos planos de produção agrícola seria pequena. Em resposta, o caminho mais fácil para os dirigentes era o de acusarem os camponeses de serem reacionários.

Por outro lado, a política de viés urbano e nacionalista, assim como o socialismo, não eram de todo estranhos aos jovens das gerações citadinas, com acesso ao pequeno crescimento da educação formal na última fase colonial. Sobretudo, se tivermos em consideração que alguns desses jovens passaram por um período de intensa agitação política a partir do 25 de abril. Travaram contato com algumas correntes e tendências políticas, quase sempre de orientação socialista, apresentadas até mesmo pelas forças militares portuguesas que se preparavam para regressar a Portugal. Essa efervescência prolongou-se, pelo menos até que se proclamasse a independência, quando, então, os horizontes políticos começam a se reduzir rapidamente.

É preciso referir ainda que apesar das independências dos Cinco terem ocorrido mais de uma década após a grande onda de 1960, quando 18 países africanos ficaram independentes, a lógica política permanecia polarizada entre socialistas e capitalistas. Mais do que isso, apesar das evidências quanto à crescente distância entre discurso político e prática política, o contexto de enfrentamento presente no continente não favoreceu o surgimento de sinais de alerta acerca de possíveis correções de rota. Os regimes africanos, que não só os dos Palops, aspiravam ao desenvolvimento e afirmavam que esse seria alcançado pela mão forte do Estado, conduzido pelo partido único, fosse qual fosse a linha ideológica. Noutros termos, a ênfase no Estado não foi um atributo dos que se apresentavam como socialistas.

Em especial na década de 80, os erros internos e as alterações na arquitetura das trocas comerciais internacionais foram minguando sonhos e capacidades. Os Estados não conseguiam mais dar conta das necessidades elementares de seus cidadãos. Nos anos 90, a crise política e econômica desses países resultaria numa maior liberdade para os indivíduos, primeiro, insinuada e, depois, confirmada com a institucionalização de eleições regulares, ainda que não em todos os níveis, mais do que com uma observância estrita do Estado de direito democrático.

Ora, o processo de institucionalização da democracia representativa aprofundou a apartação dos Estados, apropriados por pequenos grupos, relativamente às sociedades. Dessa forma, a relação entre governantes e governados, mediada pelo Estado, tornou-se rala, quando observada na lógica da representação e da imagem de defensores eleitos para a defesa de determinadas práticas e ideias. Mas, ao mesmo tempo, é esse Estado o ente que divulga, mais do que promove, o sentimento de unidade e é ele que concentra o principal da renda nacional. Podemos assim melhor entender o disperso sentimento na população de raiva e atração em relação a esse Estado e aos políticos que se assenhorearam dele.

Como persuasivamente o demonstrou Messiant [5], o curso da política em Angola pautou-se pela construção de um Estado que, graças às rendas do petróleo, logrou sobreviver independentemente da falência ou precarização da restante economia e do empobrecimento social. Mais do que a ideologia socialista depreciadora de idiossincrasias culturais, ditas tribalistas e étnicas, foi a extrema concentração de poder escorada nessas rendas e justificada pelo conflito militar, que fez com que o MPLA não se pautasse pela clivagem étnica, apontada de forma simplista por alguns estudiosos como estando na origem das divergências entre as correntes nacionalistas antes da independência e da guerra civil que lhe sucedeu. De resto, finda esta guerra em 2002, as eleições não comprovaram a existência de uma fidelidade étnica, ao invés, tenderam, a atenuar a respectiva importância [6]. A descompressão política e social e o desafogo dos réditos do petróleo levaram a amplas vitórias eleitorais do MPLA, concretamente nas eleições de 2008.

Na esteira de outras análises sobre a atomização dos indivíduos e da dificuldade de afirmação da sociedade civil, pressionados pelo poder político [7], o texto de Nuno Vidal foca-se na rigidez e na relação hierárquica que parecem fazer parte da estrutura de poder construída pelo MPLA, independentemente dos oportunos e inteligentes enunciados do partido quanto a uma necessária humildade no reconhecimento dos erros, sempre mirando com tal estratégia futuras vitórias eleitorais [8].

A coberto do centralismo democrático, a consolidação e a centralização do poder nas figuras dos dois presidentes – Agostinho Neto e Eduardo dos Santos – cingiram os procedimentos decisórios a um núcleo assaz restrito, no qual, todavia, se evidenciou uma tensão entre duas perspectivas sobre as opções políticas para o país. Desde praticamente os primórdios da independência, ao mesmo tempo que se proclamavam os objectivos socialistas, abdicava-se de tais políticas, abrindo-se espaço à informalidade que se tornaria a norma das práticas não só dos diversos actores sociais como dos agentes públicos, corroendo decisiva e definitivamente o ideário socialista. Poucos anos após a independência, já a ambiguidade se tornava corriqueira.

O caminho foi o da construção de um poder personalizado, baseado, entre outras práticas, na exemplar punição dos agravos à figura do Chefe, como é mister num sistema hegemonizado pela racionalidade patrimonial, como assinala VIDAL.

Com o apoio involuntário da ameaça externa e da guerra movida pela UNITA, assistiu-se a uma trajectória de crescendo de poder de Eduardo dos Santos. Em diferentes fases, o acúmulo de poder pela sua pessoa passou pela submissão dos próximos do MPLA – que se digladiavam entre si em nome de lemas ideológicos que o tempo tornaria irrelevantes para o devir da hegemonia política em Angola –, pela cooptação de dissidentes e adversários e, ainda, pelo “apertado controle [d]os novos espaços de liberdades civis e políticas” formalmente criados nos anos 90.

Para os defraudados com os trilhos dos países por cuja independência lutaram ou a que aderiram de forma exaltada, quatro décadas, que correspondem a uma vida, são mais do que suficientes para um balanço.

Relativamente a Moçambique, considerando o lapso temporal desde 1975 como suficiente para uma avaliação do caminho percorrido e tendo presentes as promessas da luta pela independência, Sheila KHAN pergunta acerca da concretização das esperanças, começando pela conclusão de que o país se traiu a si mesmo, citando os que perguntam se quem traiu a nação não foram aqueles que por ela lutaram.

Não só as promessas de equidade e de progresso não se realizaram como o país esteve sujeito a uma atroz guerra civil, cujo espectro ressurgiu ao cabo de cerca de 20 anos para, em 2014, parecer ser arredado e de novo aflorar em 2015.

Neste ambiente, ao mesmo tempo que se cultiva a memória da heroicidade no tempo da luta contra o colonialismo [9], os silêncios sobre a guerra civil são ainda pesados e muito mais facilmente se fala do recurso às armas do que das soluções para se lhes colocar um termo. Refira-se, as hostilidades parecerão à Renamo a única forma de se fazer ouvir e, em última análise, à Frelimo um meio de se manter no poder. A avaliar pelos episódios bélicos desde 2013, dir-se-ia que ambos pretendem ou só aceitam negociar em função da avaliação das vantagens da situação militar.

A propósito das actuais negociações para sanar o conflito entre a Frelimo e a Renamo [10], Sheila KHAN refere a incapacidade que a Frelimo tem demonstrado no tocante ao processo de descentralização do poder [11] e, em especial, à governação das províncias, com isso criando obstáculos à integração política da Renamo e avolumando as tensões políticas e sociais.

Dir-se-á que nenhuma democracia pode brotar destes expedientes tácticos. De resto, é possível pensar numa democracia de que um dos integrantes é a guerra intermitente ou de baixa intensidade, em todo o caso, de intensidade bastante para transmitir insegurança e levar as pessoas a escolher, não programas políticos, mas os chefes mais poderosos, de quem esperam protecção e auxílio?

Se quatro décadas bastam para um balanço, então, para as conclusões a retirar do caso de Moçambique, importa pensar que o povo mudou e que para parte significativa desse povo o ideário nacionalista ou os pergaminhos da luta não dizem nada. Já no campo dos governantes, pouco mudou, por vezes só a retórica com que se justificam no poder, o qual tendencialmente opera à margem dos mecanismos institucionais de tomada de decisão, mormente, os da democracia representativa adoptada na década de 1990.

Relativamente a Cabo Verde, Cláudio FURTADO revê as quatro décadas desde a independência da perspectiva da disputa pela imposição de um sentido para a história recente do arquipélago, sentido a inscrever numa memória histórica nacional. Aludir a essa disputa pelo triunfo na imposição de um sentido para a história de Cabo Verde corresponde, afinal de contas, a uma outra forma de falar das divergências em torno da independência, desdobradas seja na incomum mudança da bandeira, seja na pugna pela regionalização reivindicada pela ilha de S. Vicente, ilha que, após 1975, perdeu protagonismo para o centralismo da capital. Em parte, as divergências do momento da independência ficaram por resolver até ao presente.

A independência de Cabo Verde acabou por ser negociada com o PAIGC, tendo as outras organizações sido preteridas em vista da sintonia entre o Movimento das Forças Armadas e o PAIGC, em parte resultante da conjuntura e do reconhecimento internacional do PAIGC.

De resto, independentemente do acordo de Lisboa em 1974 não prever a transferência do poder para o PAIGC, preconizando, antes, a preparação as eleições para o futuro parlamento cabo-verdiano, com poderes constituintes e a quem incumbiria a declaração da independência de Cabo Verde, dificilmente se poderá pensar que não estivesse no horizonte das partes signatárias a assunção do poder pelo PAIGC, considerada inevitável mas para a qual, a dado passo, também o MFA contribuiu.

Ainda assim, no dizer de Cláudio FURTADO, desde a revolução de Abril em 25 de Abril de 1974 à independência, em 5 de Julho de 1975, assistiu-se a intensa movimentação política, a disputas por hegemonia de projetos políticos e de sociedade. Cumpre dizê-lo, tal não era o desígnio do PAIGC, como, aliás, não era de nenhum dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Anos de guerra e a conjuntura internacional, com eco num Portugal exaurido pela guerra colonial, ditaram a edificação de regimes monolíticos como o modelo mais apropriado para a reconstrução política e social nos Cinco. Seus dirigentes quiseram crer que tal processo seria diverso do histórico de conflitos e tensões que atravessara o continente desde as independências.

Nem o tendencial monolitismo sobrevindo à independência, nem os progressos económicos e sociais fizeram calar as diferenças, as divergências e a multiplicidade de visões de mundo e de projetos políticos para a sociedade cabo-verdiana. FURTADO elenca o affair trotskismo, a progressiva dissonância do monolitismo do regime entre a diáspora, a disputa geracional em finais da década de 1980 que, por efeito da conjuntura internacional pautada pelo desabamento a Leste, levou a que Cabo Verde enveredasse pela implementação da democracia representativa [12], depois generalizada pelo continente africano. No caso de Cabo Verde, a democracia inaugurou-se com a emergência do debate em torno da configuração política do arquipélago, debate que a hegemonia do PAIGC cerceara em 1975.

Dos Cinco, Cabo Verde era o país potencialmente mais pobre, razão, aliás, para que, entre camadas populares e mais vulneráveis de Cabo Verde, grassar a ideia de que a independência constituía um risco desnecessário, atenta, ademais, a disposição do colonizador em não deixar voltar a repetirem-se as tragédias das fomes dos anos 40. A tal pessimismo de parte da população, a elite política impôs a sua certeza voluntarista no desenvolvimento que, alcançável com a independência, vergaria a pobreza crónica. Na realidade, as apreciações sobre Cabo Verde padeciam de um erro, a saber, o de não considerar o avanço que o arquipélago levava no domínio da instrução e do que, vagamente, se definiria como um substrato cultural sedimentado por décadas de emigração pelas várias partes do mundo. Tenha sido, ou não, por causa da criteriosa aplicação dos recursos ditada pela pobreza, a verdade é que Cabo Verde alcançou indicadores impensáveis ao tempo da independência. Menos por via da evolução política do que pelo curso dos debates parecerá que a independência está em causa. Ou, segundo Cláudio FURTADO, pelo menos o seu questionamento estaria subjacente aos dilemas cultural-identitários [13] que, no plano político, constituem os desafios para o presente e o futuro de Cabo Verde.

O texto de Victor MELO fala-nos de realizações do pós-independência num domínio menos conhecido, o do desporto, encarado como manifestação cultural na qual se espelha o percurso do país. Ele foca o caso do golfe que, levado para a ilha de São Vicente por ingleses, aí se pratica até aos dias de hoje, depois de um processo de adopção e de apropriação pelos nativos. Como foi encarado o golfe, desporto de contornos elitistas, pelos dirigentes do PAIGC? Na resposta a esta questão inscrevia-se a aplicação do projecto político do PAIGC e, ainda que de forma subliminar, o confronto entre uma nova capital política e uma ilha considerada avessa aos propósitos de homogeneização social do PAIGC triunfante em Cabo Verde em 1974-1975.

A despeito do monolitismo ideológico e do consequente viés classista à luz do qual se encaravam as manifestações desportivas, as mudanças na política desportiva começaram ainda na vigência do partido único, no início da década de 1980, e, como assinala Victor MELO, elas prenunciavam a renúncia à modelação ideológica pelos dirigentes de todas as vertentes socioculturais e de todas as solidariedades horizontais no arquipélago. Basicamente, tal mudança consistia em deixar renascer o golfe, na esteira do que, argumentando com o enraizamento popular da modalidade, os defensores da modalidade ensaiavam dignificá-la, considerando o golfe como uma prática de afirmação do cabo-verdiano forçosamente contra o colonizador. Deste modo, e ainda que de forma circunscrita, relativizavam-se os feitos na guerra na Guiné-Bissau.

A implementação da democracia representativa trouxe maior abertura para o mundo e, associada à maior liberdade de expressão e de identificação com referentes do mundo – sobretudo, clubes do país outrora colonizador – acarretou debates sobre o enraizamento da identidade cabo-verdiana. Diferentemente do futebol, o golfe, mormente na ilha de S. Vicente, seria o campo de afirmação de um desporto local, cabo-verdiano, contra uma projectada alienação de bens ao capital estrangeiro. Tal seria um item de uma discussão mais vasta sobre o lugar do turismo no desenvolvimento e, afinal, de inserção do país no fluxo de capitais e na circulação de pessoas.

Não por acaso, cabo-verdianos de diferentes quadrantes perfilharão a necessidade de inserção do país no mundo pelo que tem de mais singular, a sua vertente cultural, que, como nos diz MELO, constitui “uma forte construção identitária que vem do período colonial, sofre abalos no início do período da independência, se ajusta nos anos 1980, é reconfigurada no momento de adoção do multipartidarismo, entra em crise na primeira década do século XXI, mas, de fato, jamais é abandonada e funciona com um importante esteio para a nação”.

Retornando à relação entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, em que se forjou a independência do arquipélago, não se descarte a sugestiva ideia de Havik de que o projecto de unidade entre Cabo Verde e Guiné Bissau derivou da própria concepção colonial [14]. A admitirmos como possível esta proposta, o pensamento nacionalista e de libertação da África, esgrimido pelo PAIGC, teria servido de nova roupagem para o sentimento de superioridade e o paternalismo dos cabo-verdianos para com os guineenses, atitudes decantadas ao longo de séculos.

Como teria sido a evolução política se em vez de um projecto político utópico conducente à criação de um Estado bi-nacional se tivesse à época da sua emancipação criado um governo de uma entidade política una, Guiné e Cabo Verde? Certamente, a separação não seria tão fácil como a ocorrida com o golpe de Novembro de 1980, em razão do qual o projeto de construção de um Estado bi-nacional conheceu seu termo, pelo que, a partir de então, os cabo-verdianos se sentiram livres para desabafar nas ruas que eles nada tinham a ver com os da Guiné… com o que talvez exprimissem de forma subliminar a sua dissonância em relação ao regime.

Ao tempo, que Estado e que nação se construíam, ou não, no continente, no território da Guiné-Bissau? Para TRAJANO FILHO, a noção relevante de nação na Guiné-Bissau é a da nação crioula em decantação há séculos por força da constante interacção entre os recém-chegados, europeus ou africanos, e os habitantes das praças existentes nos rios das costas do território.

Se a avaliação da construção da ideia de nação ou do fortalecimento e estruturação do Estado na Guiné-Bissau se pautar por critérios funcionais ou pelos critérios político-ideológicos fundadores da luta, para TRAJANO FILHO, a avaliação do tempo transcorrido pelas promessas da era da independência só pode conduzir à constatação de um fracasso. Tal sentença aplicar-se-á aos resultados quer da procura de uma sociedade igualitária e homogénea, deduzida dos pressupostos marxistas da ideologia nacionalista, quer da sucedânea concepção de sociedade liberal determinada pelo mercado, uma e outra conducentes à concentração de riqueza, à desigualdade e à violência. Ora, para TRAJANO FILHO, o polimórfico projecto crioulo (noção distinta de mestiço ou de cabo-verdiano) da nação na Guiné-Bissau refere-se a uma profundidade histórica plurissecular e, sendo assim, por exemplo, a luta de libertação foi um momento e, podemo-lo supor, a ideologia nacionalista foi uma roupagem ou um instrumento.

Sendo a luta pela independência o destino necessário da sociedade crioula, uma vez renascido na década de 1950, o desejo de autonomia, que o avanço colonialista soterrara nos primeiros decénios de novecentos, leva TRAJANO FILHO a afirmar que “uma contradição se consolidou no coração do projeto para a nação do PAIGC ou, o que dá no mesmo, da sociedade crioula desde o início do movimento nacionalista: confronto paradoxal entre o retorno às origens idealizado na utopia de Cabral (1973), que sugeria um devir igualitário e horizontal para a futura nação, e a estrutura verticalizada da sociedade crioula, sempre supondo formas de incorporação da diferença que geravam hierarquias do tipo gerontocrático e patrimonialista”.

A luta trouxe uma quantidade imensa de gente desejosa de incorporação no mundo crioulo, cuja capacidade de absorção era escassa. Assim, nas precárias condições de vida e de escassez de recursos, a incorporação nem sempre passou pela adesão à comunidade de sentimento que é a nação, mas, lembra o autor, a corporações organizadas em redes ralas, encabeçadas pelos novos “homens grandes”, gerando, por exemplo, frustrações e ressentimentos.

Segundo TRAJANO FILHO, o projecto de nação crioulo, polimórfico ao longo do tempo, depende da capacidade de determinação das fronteiras de absorção de elementos europeus e africanos ou indígenas. Se a sociedade crioula perder esse controlo da absorção desses elementos acabará como que descrioulizada, isto é, subsumida a um dos elementos que, durante séculos, a constituíram, a saber, o mundo africano tradicional ou as formas de vida europeizadas. Em todo o caso, da perspectiva da nação construída da base para o topo, com ou sem interferência do Estado, para TRAJANO, a nação, mesmo que não mais a crioula, está em construção na Guiné-Bissau, facto comprovado pelo facto de o crioulo ser cada vez mais a língua nacional. Também formas de sociabilidade crioulas como o carnaval começam a ser celebradas e vividas fora das praças.

Uma das dificuldades na Guiné Bissau traduz-se na incapacidade de falar da clivagem relativamente aos cabo-verdianos. Como se aludiu, enquanto projecto da sociedade crioula, a nação guineense ergueu-se da base para o topo para sacudir os agentes coloniais e os “sempre imprevisíveis cabo-verdianos”, a cuja presença e às clivagens dela decorrentes, TRAJANO FILHO não atribui as dificuldades de desenvolvimento do projeto nacional na Guiné-Bissau.

Como o autor aduz acerca dos balanços possíveis desde a independência, a “resposta com alguma dimensão de razoabilidade passa necessariamente (…) pelos enquadramentos de hipóteses subjacentes, na maior parte das vezes implícitas e, com alguma recorrência, furtivas”. Tal também vale, podemo-lo supor, para a discussão acerca dos cabo-verdianos, cuja presença na Guiné-Bissau era discutida mais abertamente entre os vários movimentos e grupos nacionalistas do que passou a ser depois de o PAIGC se tornar o movimento hegemónico e, naturalmente, desde a independência até aos dias de hoje [15].

Também encontramos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe, descritos por Marina BERTHET, sobretudo como atores de uma história invisível, enquanto trabalhadores agrícolas num arquipélago que, significativamente, passou de uma colónia dedicada à exportação da monocultura do cacau a um país independente que ensaiou impulsionar o seu desenvolvimento económico no acréscimo de produção e de produtividade nessa mesma monocultura.

Nestas circunstâncias, aflora a pergunta: no arquipélago, a independência significou uma rutura com as instituições coloniais? Para responder a esta questão, Marina BERTHET foca a sua atenção na permanência das roças e da monocultura do cacau, segundo ela, um dos fatores da apartação entre os políticos independentistas e o comum dos ex-contratados, após a independência cidadãos – como, sublinhe-se, já o eram no fim do período colonial, por oposição ao pretérito regime de privação de direitos civis e políticos denominado indigenato – mas cuja condição social manteve similitudes com a prevalecente no tempo colonial.

Para o MLSTP, que implementou um regime de partido único de coloração socialista para a governação do arquipélago após a independência, a questão passou a ser a de manter as roças operacionais e de tentar fixar aí a mão-de-obra contratada no tempo colonial [16]. O MLSTP também tentou, no quadro dos trabalhos cívicos, lograr a prestação da mão-de-obra citadina. Após a adesão inicial devida à exaltação da independência, a mão-de-obra citadina passaria a aderir de forma algo contrafeita, pelo que não só se revelaria pouco útil mas até improdutiva ou improfícua. Já em relação aos trabalhadores das roças, ex-serviçais contratados ou seus descendentes, uma vez desmentida a crença na maior entrega ao trabalho em resultado da nacionalização das roças, os políticos recorreriam à coerção através da aplicação de disposições disciplinares arbitradas por directores ilhéus aos trabalhadores.

Assim, em torno da ideia de que a manutenção das roças foi o motivo de desafeição dos trabalhadores importados que ficaram por São Tomé e Príncipe relativamente aos políticos são-tomenses, importa indagar o conteúdo laboral e social da preservação das roças enquanto instituição totalizante. Independentemente da nacionalização ter quebrado uma promessa de acesso à terra, implícita nas palavras de ordem que aludiam à terra a quem a trabalha, os antigos serviçais viram as roças ser destruídas por práticas ruinosas de directores ilhéus que tinham substituído os patrões brancos, práticas que os antigos serviçais não poderiam deixar de considerar dolosas, mesmo se não o podiam dizer publicamente.

Paralelamente à anunciada ruína das roças, desde os anos 80 foram-se esboçando intentos de uma reforma agrária que, alterando a estrutura da propriedade, deveria permitir não apenas a reprodução da cultura cacaueira mas igualmente a diversificação da agricultura, proporcionando uma acumulação interna e diferenciações económicas indutoras de ascensões sociais. Porém, a divisão e atribuição das terras fez-se segundo critérios de conveniência política – e de conveniência económica, de lógica rentista, dos elementos da nomenclatura política –, pelo que, uma vez mais, os antigos serviçais contratados permaneceram como os desapossados de terra numa terra onde, a despeito da proclamada irmandade africana, não deixavam de ser estrangeiros.

Gerhard SEIBERT foca as várias débacles – as da reforma agrária e a do petróleo – com consequências na pobreza tornada endémica e na permanente dependência do país da ajuda externa desde 1975, justamente o oposto da promessa de desenvolvimento anunciada pela independência.

No tocante à evolução política de São Tomé e Príncipe, Gerhard SEIBERT realça as questiúnculas entre os independentistas, antes e depois do 25 de Abril, de que saiu triunfante Pinto da Costa. Após 1975, na senda do acúmulo de poder no quadro do regime de partido único de coloração socialista, Pinto da Costa logrou afastar Miguel Trovoada, sujeito a prisão e a exílio, donde voltaria para arrebatar a vitória na eleição presidencial aquando da adopção da democracia representativa em 1990.

Enquanto factor de insucesso do país, SEIBERT salienta a instabilidade política, que atribui ao continuum de conflitos pessoais, sem conteúdo ideológico ou político, antes derivados das disputas pelas oportunidades e recursos disponibilizados pelo Estado. Daí decorrem a volatilidade dos engajamentos políticos e o permanente rearranjo das alianças e dos antagonismos, materializado no trânsito dos indivíduos pelos vários partidos. Porém, e sem embargo de tentativas abortadas de golpe de Estado, os conflitos vêm sendo resolvidos dentro de uma aparente normalidade institucional. Por regra, os resultados eleitorais têm sido aceites e respeitam-se os direitos humanos e as Frelimos cívicas e políticas.

Enquanto isso, o desempenho económico não podia ser mais frustrante. Ainda que os dirigentes tenham delineado uma política em torno da agricultura, esta não terá concitado muitas esperanças entre os ilhéus, cujas expectativas, na linha da tradicional demarcação dos filhos das roças – também a seus olhos, cidadãos de segunda –, estavam colocadas no Estado.

Por algum tempo, o ‘surgimento’ do petróleo na década de 1990 fez renascer os sentimentos nacionalistas, dada a expectativa de uma rentável exploração petrolífera. Mas até agora a prospecção não conduziu a quaisquer resultados, cerceando uma exaltação nacionalista fundada, já não na promessa da homogeneidade social de há quarenta anos, mas na mirífica riqueza advinda do petróleo.

Em meados da década de 1970, quando as colónias portuguesas lograram aceder à independência, já parecia passar o tempo da euforia das independências africanas. Porém, a luta ideológica reflectida na bipolaridade estava no seu clímax. Também por isso, os Cinco pareciam depositar crença na sua solução socialista.

Com diferença de caso para caso, observaram-se sucessivos distanciamentos dos resultados relativamente aos propósitos iniciais, fossem os do tempo da luta, fossem os dos princípios programáticos. As dificuldades económicas – na década de 1980, sentidas em toda em África mas, em particular, nos países de economia centralizada e de orientação socialista [17] – e a conjuntura internacional levaram à adoção da democracia representativa. Com maiores ou menores dilações e dificuldades, este foi o caminho nos Cinco que trocaram as veredas socialistas pela via da economia de mercado, expectavelmente condicionado à tentativa de preservação e reprodução da posição hegemónica dos políticos.

Como assinalou FALOLA, a razão pela qual líderes africanos responderam positivamente às pressões no sentido da boa governação e da democracia foi, não um sincero desejo de mudança ou progresso, mas o estarem pressionados pelas consequências do fim da Guerra Fria. Porém, atualmente, já se assiste a um movimento no sentido do autoritarismo [18]. Com efeito, parece ecoar em várias partes do continente a via autoritária que, implicitamente, se identifica com o crescimento económico (cujo expoente deixou de estar alojado nas sociedades democráticas). Apesar da salvaguarda formal dos mecanismos democráticos, parecem já distantes os tempos da arrebatada crença na democracia, no respaldo dos anos de sufoco dos regimes ditos socialistas. Entre as liberdades e o crescimento económico, a balança parece inclinar-se para este e para a governação de pulso forte, resignadamente aceite por não se distanciar do comum da experiência de governação das sociedades.

Não sabemos quanto tempo vigorará o actual desenho político em África e no mundo. Mas, onde os Estados (fortes e fracos, falhados ou adaptados) fracassaram na criação das nações ainda em gestação – como o denunciam a angolanidade, a cabo-verdianidade, a moçambicanidade, a são-tomensidade –, nasceram países e nacionalidades que parecem referentes para a vida dos cidadãos.

Notas

1. Além dos textos abaixo referenciados, este dossiê compõe-se da entrevista concedida por David BIRMINGHAM a Alexsander GEBARA, A historiografia de David Birmingham, da entrevista feita por Ana Cristina PEREIRA e Rosa CABECINHAS ao cineasta Licinio AZEVEDO sobre Moçambique, Um país sem imagem é um país sem memória… e, ainda, pela resenha A descolonização portuguesa e as batalhas da memória do livro O Adeus ao Império da autoria de Maria Inácia REZOLA.

2. Cf.: SMITH 1995, p. 33.

3. Cf.: YOUNG 2004, p. 29.

4. Cf.: MAMDANI 1996, p.183.

5. Cf.: MESSIANT 2006, p. 145.

6. Cf.: BITTENCOURT 2015: 244

7. Por exemplo, Vidal 2007.

8. Por exemplo, http: / / expresso.sapo.pt / internacional / 2016-08-17- Eduardo-dos-Santos-exortaMPLA-a-assumir-erros-do-passado-para-ganhar-eleicoes, acesso: 23 ago. 201

9. Em particular em Moçambique, assinale-se a profusão de testemunhos e memórias sobre a guerra colonial.

10. Não será difícil encontrar quem opine pelo fracasso das negociações, mormente após o assassinato de Jeremias Pondeca (cf. http: / / www.verdade.co.mz / destaques / democracia / 59729-jeremiaspondeca-membro-senior-do-partido-renamo-assassinado-na-capital-de-mocambique, acesso: 22 de outubro de 2016), que se segue a outros de que nunca se apuraram os autores. Jeremias Pondeca era conselheiro de Estado e o Presidente Filipe Nyusi esteve presentes nas cerimónias fúnebres (http: / / www.voaportugues.com / a / mocambique-rende-homenagem-jeremias-pondeca / 3547812 html, acesso: 22 de outubro de 2016). Contudo, parte dos moçambicanos inculpará a Frelimo pelo sucedido. Outra parte dos moçambicanos considerará essa responsabilidade como decorrente do exercício de poder que se deve nortear pelas garantias de segurança da população, aliás, corriqueiramente uma das razões de adesão ao partido no poder.

11. Fincando-se no texto constitucional, a Frelimo tem rejeitado entregar à Renamo a governação das províncias onde esta teve uma votação maioritária. Diversamente, encetou um processo de criação paulatina de autarquias locais (de momento, 53), para cujas eleições tem obtido uma esmagadora maioria de vitórias. Assim, de permeio com a observância dos mecanismos de democracia representativa (e independentemente de alegações sobre fraudes, alegações que não encontram respaldo nas missões internacionais de observação eleitoral), a partilha de poder tem-se revelado mínima. Enquanto isso, tem-se verificado a rotação na titularidade dos cargos de poder detidos por elementos da Frelimo, incluindo o de Presidente da República.

12. Após a recusa de tal passo no congresso do PAICV de 1988 e das críticas em Cabo Verde, e não só, às intenções de Pinto da Costa de democratização política em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde acabaria por ser o primeiro dos Cinco a realizar eleições democráticas.

13. Não deixa de ser interessante este dilema identitário que percorre cabo-verdianos – sobretudo, os intelectuais – e que parece dividir ilhas, como o indiciam, por exemplo, as movimentações em torno da regionalização. Independentemente do que esta proposta contém de instrumental no tocante à capitalização de dividendos políticos contra a macrocefalia da Praia, ela pode ser também uma forma implícita de negar a vocação africana resultante da ligação ao continente (NASCIMENTO 2016). Porventura, muitos cabo-verdianos anuirão a que a inserção no contexto regional africano e nas estruturas políticas do continente não preenche toda a matriz identitária cabo-verdiana. Apesar da reafricanização dos espíritos coetânea da luta, por conta da qual a africanização parecia incrustar uma matriz identitária autêntica, parte dos cabo-verdianos teria muitas dúvidas quanto a tal africanização dos espíritos. De outra forma, não se entenderia a acrimónia que perpassou nas trocas de acusações entre responsáveis guineenses e cabo-verdianos após o Movimento Reajustador de 1980 na Guiné-Bissau (que TRAJANO elencou como o “outro paradigmático”). Se assim foi, e é, sem se negar uma identificação difusa de parte dos cabo-verdianos com África, poder-se-ia perguntar que África polariza tais sentimentos.

14. Citado por NEWITT 2015: 32. Em todo o caso, para passar de sugestiva a convincente, tal hipótese demandaria uma acurada investigação sobre o curso e a metamorfose de sentidos políticos dos referentes culturais, a começar pela própria memória da presença de cabo-verdianos na Guiné.

15. Opiniões de senso comum defendem com vigor que na base dos problemas da Guiné-Bissau não estão as clivagens étnicas ou socio-culturais, mas a presença do crioulo. Avaliar opiniões de rua como esta requereria profundo trabalho de investigação, desde logo para situar essa figura do mestiço, que, podemos alvitrar, é uma metonímia de “cabo-verdiano” que o pudor académico ou a conveniência política impede de nomear. A este respeito, consulte-se, entre outras obras, DJALÓ 2013.

16. Note-se, algumas das políticas ensaiaram beneficiar os trabalhadores, com destaque, como a autora assinala, para o aumento dos salários logo após a independência. Porém, cumpre dizer que o MLSTP ensaiou igualmente repor o comando autoritário (KEESE 2011) em nome do povo mas exercido por ilhéus a quem os trabalhadores imigrados não reconheceriam nem competência nem idoneidade. Tal gerou a corrosão das relações laborais e o abandono das roças. Para uma perspectiva de conjunto sobre a evolução das roças no pós-independência, veja-se EYZAGUIRRE 1986.

17. Por exemplo, CHABAL 2002: 90.

18. Ver, por exemplo, FALOLA 2004: 273

Referências

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Augusto Nascimento – Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa (Portugal). É colaborador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Foi cooperante em São Tomé e Príncipe entre 1981 e 1987. Doutor em Sociologia na especialidade de Economia e Sociologia História pela Universidade Nova de Lisboa e Agregação em História, na especialidade História Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa. É autor dos livros O fim do caminhu longi (Ilhéu Editora, 2007); Ciências sociais em São Tomé e Príncipe: a independência e o estado da arte (Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007); Vidas de S. Tomé segundo vozes de Soncente (Ilhéu Editora, 2008); Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe (Prefacio, 2008); Histórias da Ilha do Príncipe (Oeiras, 2010), Desporto em vez de política no São Tomé e Príncipe colonial (7letras2013). Tem como principais áreas de interesse a história recente de África e, em particular, a de São Tomé e Príncipe.

Marcelo Bittencourt – Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos da UFF (NEAF). Possui Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado em Antropologia pela Universidade de São Paulo e Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense. Suas pesquisas estão relacionadas com os seguintes temas: Angola, África Austral, colonialismo, lutas de libertação e esportes. Publicou, entre outros, Dos jornais às armas. Trajectórias da contestação angolana (Vega, 1999); Estamos juntos! O MPLA e a luta anticolonial 1961-1974 (Kilombelombe, 2008).


NASCIMENTO, Augusto; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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As verdades da ficção / História e Cultura / 2016

Introdução – verdades e ficções

Ao propormos um dossiê intitulado “As verdades da ficção”, é claro que estávamos pensando na série de debates que se travou, ao longo das décadas de 1960 e 1970, no campo da historiografia. As palavras “verdade” e “ficção” remetem, para todos que têm uma certa familiaridade com essa produção intelectual, em especial à obra de Hayden White, que, sob forte influência de um aparato teórico forjado no campo da teoria literária, tirou o sono dos historiadores tradicionais. O uso de obras ficcionais como fonte de conhecimento histórico ou social vem de longa data, contudo. [1] White, por sua vez, ao aproximar ambos os termos, inverte o sentido epistemológico: não é mais a obra ficcional que dá acesso, em alguma medida, a um conhecimento histórico ou sociológico — a alguma dimensão do que chamamos de real; se trata, agora, de ressaltar que o uso de elementos ficcionais pela narrativa histórica impossibilita ver a história como fonte objetiva de conhecimento.

O dossiê tem exatamente a finalidade de revisitar essa questão, que, verdade seja dita, já não causa o mesmo furor de outrora. O próprio Hayden White andou fazendo, recentemente, uma mea culpa, ainda que pela metade. Em The Practical Past, ele reconhece que ter usado, para tratar da escrita historiográfica, o conceito de ficção sem ressaltar que este seria “um tipo de invenção ou construção baseada em hipóteses, mais do que uma maneira de escrita ou pensamento focada em entidades puramente imaginárias ou fantásticas” (WHITE, 2014, p. xii), abriu espaço para mal-entendidos desnecessários. Em certa medida, o livro de Peter Gay, Represálias selvagens — cujo título do epílogo, “As verdades das ficções”, não custa lembrar, inspirou o presente dossiê —, é uma reposição da questão entre literatura (ou ficção) e história (ou verdade) em tempo do refluxo da vaga cética. Daí que possa sair mais ou menos incólume com uma afirmação como a de que “pode haver história na ficção, mas não deve haver ficção na história” (GAY, 2010, p. 150), a qual seria tachada de conservadora um quarto de século atrás.

Pelo número de artigos recebidos — 30 para ser mais exato —, nota-se que o interesse pelo assunto continua considerável. Ao chamarmos a atenção para ficção, um termo mais genérico do que literatura, pintura ou cinema, buscávamos, além da referência aos debates provocados pelo uso do conceito por Hayden White, ampliar o máximo possível o número de objetos ficcionais, aqui pensados quase como sinônimo de artísticos, que servissem de ponto de partida para reflexão. Não é de se estranhar que a grande maioria das contribuições tenha se debruçado sobre objetos literários. Além da formação dos organizadores ter sido nesse campo do conhecimento, há uma forte tradição na academia brasileira, que se mantém atuante especialmente em São Paulo, que relaciona o estudo da literatura ao da sociedade.

A proposta, como se vê, foi bastante aberta; não indicamos preferência por análises de objetos concretos ou formulações mais teóricas. Queríamos apenas retomar o debate, de modo a termos uma ideia do estado da arte nas pós-graduações do país. E os resultados que ora apresentamos dão bem conta dessa diversidade. Para abri-lo, contudo, escolhemos dois artigos recentes, produzidos no cenário internacional, que se debruçam sobre os desafios mais recentes a respeito da relação entre ficção e história — ou, mais precisamente, literatura e história. O primeiro, “História literária e história da leitura” foi escrito por Judith Lyon-Caen, professora da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Seu olhar é de historiadora e se volta para as práticas de leitura e para os estatutos dos romances franceses produzidos ao longo dos anos iniciais da Monarquia de Julho, uma perspectiva, portanto, que se distancia do texto, espaço privilegiado no campo das Letras. O recurso às cartas e aos debates suscitados na imprensa pela publicação em folhetim dos Mistérios de Paris, de Eugène Sue, entre 1842 e 1843, é uma saída interessante da historiografia para lidar com o que Peter Burke (2011, p. 21) chama de “território não familiar” sobre os quais os historiadores têm se aventurado desde que, já há algumas décadas, decidiram ampliar seu rol de questões e, dessa maneira, de fontes e métodos.

Em certa medida, a metáfora do distanciamento [2] também tem uma função importante em “Narratologia no arquivo da literatura”, o ensaio de Margaret Cohen, professora de Literatura Comparada e Francesa da Universidade de Stanford. Não só a História, como todas as áreas das Humanidades, que é para usar uma expressão um tanto fora de moda, têm passado por um processo de redefinição de propósitos, objetos e métodos. O primeiro passo de Cohen diz respeito ao afastamento da leitura cerrada (close reading), que foi, por muito tempo e das mais diversas formas, [3] o paradigma dominante nos estudos literários (principalmente os anglo-saxões). O mais interessante da sua reflexão, contudo, está na tentativa de aparelhar metodologicamente uma demanda recente dos estudos literários, que têm encontrado nos arquivos um conjunto grande e importante de obras que foram negligenciadas pela crítica tradicional. Isso deve ser feito, segundo Cohen, sem abandonar a especificidade do objeto literário, ainda que este precise ser repensado noutros termos. Os ensaios de Judith Lyon-Cahen e Margeret Cohen, portanto, lidam, de maneiras distintas, com os desafios abertos aos seus respectivos campos, cruzando fronteiras e incorporando novos objetos, métodos e fontes.

Em verdade, como não poderia deixar de ser, o cruzamento de fronteiras é a tônica desse dossiê. Um bom exemplo dessa prática salutar é o ensaio de Everton Demétrio, “Sertão, nação e narração”. Aqui, a obra (e, mais especificamente, a narrativa) de Guimarães Rosa funciona como um modelo incômodo aos relatos que buscam recuperar e dar sentido a um passado e a uma geografia, uma vez que revela a impossibilidade de fazê-lo sem a remissão a uma alta dose de invenção. O sertão, de Ariano Suassuna dessa vez, também serve como objeto, ponto de chegada para ser mais exato, da reflexão teórica proposta pelo artigo de Jossefrania Vieira Martins, intitulado “História, literatura e representação”, na qual alguns pontos clássicos da relação entre esses campos do conhecimento são retomados.

Vale a pena notar, ainda que brevemente, duas questões. A despeito de termos recebido contribuições dos mais diversos Departamentos, os selecionados acabaram ficando restritos aos de História e Letras, o que, pelo que foi dito acima, não é de se estranhar. Contudo, em sua grande maioria, foram os historiadores que se aventuraram pelos meandros da teoria, mesmo que, como nos dois casos apresentados acima, houvesse sempre um objeto literário como suporte da reflexão. A exceção aqui é o artigo de Geruza Almeida, “Realidade e ficção, trauma e afeto”, que explora, com uma densidade teórica incomum, esses conceitos, em especial o de trauma. Um conceito que, é sempre bom lembrar, tem sido usado com bastante frequência pelos estudos historiográficos e literários que se debruçam sobre as questões da Shoah, no caso europeu, e das ditaturas, no sul-americano. [4]

Uma possível razão — e este é a segunda questão que gostaríamos de destacar — talvez seja ainda a forte presença de Hayden White, quando o assunto é a relação entre história e ficção. Na verdade, White reinou quase que soberanamente (mesmo em ensaios onde não é mencionado, como o de Everton Demétrio) em todos os trabalhos. O que causa estranheza não é esse fato, mas sim que as respostas ao ceticismo epistemológico no tratamento da ficção — como, para ficarmos em poucos exemplos, é o caso de Carlo Ginzburg (2002), [5] Peter Gay (2010) e Sidney Chalhoub (2003) — ainda não tenham sido incorporadas ao instrumental teórico apresentado nos trabalhos que lemos. [6]

Os artigos provindos dos Departamentos de Letras, por sua vez, se dedicaram a análises mais concretas, que fizeram dos textos ficcionais escolhidos pontos de partida para as discussões mais diversas. Tendo em vista o aparato conceitual de que se vale Hayden White, todo ele oriundo da Teoria Literária, é curioso notar sua ausência desse lado do debate. Aqui, o ceticismo epistemológico parece não ter vez, muito pelo contrário. Tome-se o artigo de Bruna Tella Guerra, “A armadilha de Padura”, como exemplo. Ela estuda, dentre outros livros do escritor cubano Leonardo Padura, O homem que amava os cachorros, um romance histórico recheado de dados, chamando em causa, contudo, sua dimensão estética e fazendo dela fonte de conhecimento. A literatura latino-americana, dessa vez da Argentina, também é o mote do trabalho de Iuri de Almeida Müller, intitulado “Verdade e ficção em Glosa e A armadilha, de Juan José Saer”. Além de apontar, junto com artigo de Bruna Tella Guerra, para uma retomada da produção literária do subcontinente, que andou em baixa por muito tempo nos Departamentos de Letras, o texto de Müller permite vislumbrar o tratamento dado à relação entre ficção e verdade a partir do ponto de vista de um ficcionista e como essa reflexão é incorporada na feitura dos romances do escritor argentino Juan José Saer.

Outra boa nova é a forte presença da literatura contemporânea auxiliando nas reflexões sobre ficção e realidade. Em “Desconstrução do exílio nos contos ‘Paris não é uma festa’ e ‘London, London ou Ajax, Brush and Rubbish, de Caio Fernando Abreu”, Thereza Bachmann se debruça sobre a prosa desse escritor curitibano de modo a poder discutir uma certa percepção do exílio, sedimentada entre aqueles que permaneceram no país durante a ditadura cívico-militar de 1964. Os contos de Caio Fernando Abreu trazem para primeiro plano uma dimensão nada idílica ou edulcorada desse processo, ressaltando, dentre outros problemas, o da exploração do trabalho.

De modo geral, especialmente em se tratando de literatura, essa relação entre literatura e realidade tem como objeto privilegiado de estudo produções mais distantes no tempo, daí que tenhamos louvado os estudos que a encaram a partir de produções contemporâneas. O artigo de Sébastien Rozeaux, “Do mito à realidade”, por sua vez, retorna ao século XIX brasileiro para estudar a peça de Araújo Porto-Alegre, A estátua amazônica, de 1851. Contudo, seu trabalho não se faz nem nos moldes clássicos, por assim dizer, dos estudos do período — como é o caso de Antonio Candido (2004) e Roberto Schwarz (2000a e 2000b) —, nem o toma como parte do processo constitutivo da nação, outra linha de força que, mesmo não sendo mais hegemônica, ainda tem lá seu peso. Rozeaux lê a peça em relação ao seu contexto imediato de produção, que foram as expedições científicas do naturalista francês Francis de Castelnau.

Por fim, encerrando o dossiê, temos o artigo de Hezrom Vieira Costa Lima, “Escravidão e(m) quadrinhos”. Ao fazer uso de uma forma ficcional como a dos HQ’s, considerada por alguns um produto rebaixado, sem maiores interesses, para entender o alcance de novas concepções historiográficas, o autor inova não só no objeto que escolhe, como também na inversão do sentido do que foi proposto no dossiê. Em linhas gerais, o que temos é a ficção, iluminando, seja de maneira teórica, seja de forma mais concreta, algum aspecto da realidade. O que Hezom Lima faz é inverter o sentido desse processo. Agora são as mudanças produzidas pela nova história social da escravidão — crítica de uma concepção que representa o negro escravizado de maneira passiva, trazendo para primeiro plano as suas mais diversas formas de agência, mesmo aquelas que não se mostram de maneira evidente — que dão uma forma distinta ao enredo ficcional.

Notas

1. Uma relação que, como se sabe, é feita desde que o mundo é mundo — uma declaração intencionalmente nada acadêmica. Para ficarmos mais próximo ao nosso paradigma epistemológico, cf. Lepore (2008), que, num texto tão curto quanto provocativo, chama a atenção para a produção ficcional do século XVIII, quando romances ainda podiam se arvorar à autodenominação de História. Já num período de constituição da História como disciplina em busca de uma metodologia, digamos assim, científica, cf. Peter Burke (2008, em especial seu primeiro capítulo “A grande tradição”), que discute, ainda que brevemente, as obras de Jacob Buckhardt e Aby Warburg. Em se tratando deste e de toda uma tradição intelectual que se formou a partir do seu legado, cf. Carlo Ginzburg (1989).

2. Para uma reflexão ainda mais radical a respeito da necessidade de distanciamento do texto nos estudos literários, cf. Moretti (2005 e, especialmente, 2013).

3. O próprio pós-estruturalismo, a última grande moda a tomar de assalto os Departamentos de Letras ao redor do país, não deixa de ser, nas palavras de Derrida (1995, p. 31), um “ultra-estruturalismo”.

4. Para uma síntese, cf. Seligmann-Silva (2002).

5. Carlo Ginzburg é um dos casos mais interessantes a esse respeito, porque, além do debate teórico travado em Relações de força, ele ainda dedicou um conjunto de ensaios para pensar as maneiras através das quais o objeto figurativo (ficcional, portanto) pode servir como conhecimento histórico. Além do clássico “De A. Warburg a E. H. Gombrich”, já citado, sua retomada crítica dos trabalhos de Roberto Longhi sobre Piero dela Francesca é das mais interessantes. Cf., em especial, o “Prefácio (1981)” e o Apêndice IV, “Datação absoluta e datação relativa” (Ginzburg, 2010)

6. Vale a pena também ressaltar que essas breves reflexões não têm nenhuma pretensão “científica”. A amostragem, se não é pequena, tampouco é representativa a ponto de nos permitir tirar conclusões mais sólidas. O que deixamos aqui são, antes de tudo, simples insights, os quais podem funcionar como ponto de partida para aqueles que, por ventura, possam vir a se interessar por eles.

Referências

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WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston: Northwestern UP, 2014.

Rodrigo Cerqueira – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Sociologia — Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: drigocerqueira@gmail.com

Leandro Thomas de Almeida – Doutor em Teoria e História Literária (IEL / Unicamp) — Pós- doutorando — Departamento de Teoria e História Literária — Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, SP – Brasil. Bolsista Fapesp. E-mail: leandroth@gmail.com


CERQUEIRA, Rodrigo; ALMEIDA, Leandro Thomas de. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 2, set., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História oral: narrativas de memória, acervos e a pesquisa em História da Educação / Cadernos de História da Educação / 2016

“Será preciso, contudo, não esquecer que tudo tem início não nos

arquivos, mas com o testemunho, e que, apesar da carência

principal de confiabilidade do testemunho, não temos nada melhor

que o testemunho, em última análise, para assegurar-nos de que algo aconteceu.” (RICOEUR, 2007, p. 156).

A afirmativa de Ricoeur propõe a reflexão acerca do valor da memória oral no processo de produção da narrativa historiográfica. No meio acadêmico, percebemos o quanto pode ser potente pesquisar a História da Educação, tendo como aporte metodológico a História Oral. Tal evidência nos mobilizou a organizar esse dossiê que reúne uma comunidade de pesquisadoras que se preocupam em pensar a educação, tendo como principal referente a memória oral como documento.

Entendemos que essa metodologia se constitui em um importante recurso para compreensão de tempos pretéritos. Por meio dela, podem ser investigadas múltiplas questões, sobretudo relacionadas à apropriação e difusão de modelos pedagógicos, práticas educativas e aspectos que tratem, de modo geral, dos itinerários dos agentes da educação.

Qual a importância da História Oral na contemporaneidade? O que significa trabalhar nessa perspectiva? Em um passado recente, preponderava um entendimento de que através dessa metodologia seria possível recuperar o passado por meio da voz dos oprimidos, daqueles relegados ao silêncio, devolvendo a eles o lugar que lhes havia sido negado nas tramas da História. Nas últimas décadas, diante das discussões propostas pela História Cultural, com relação à ampliação da noção de documento, ressignificou- se o papel da História Oral na pesquisa historiográfica. As concepções iniciais, importantes naquele contexto, foram problematizadas, em especial, o poder irrefutável conferido ao testemunho em primeira pessoa. Beatriz Sarlo questiona essa infalibilidade, mas defende a legitimidade da História Oral, afinada às perspectivas da História Social e Cultural. Neste sentido, desloca-se o foco das pesquisas “para as margens das sociedades modernas, modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os pormenores cotidianos, articulados numa poética do detalhe e do concreto” (Sarlo, 2007). Portanto, o que constituiu a História Oral no passado não precisa ser descartado em sua totalidade, ou seja, há que se dizer que o trabalho com essa metodologia, por estar atrelado às subjetividades de cada sujeito entrevistado, traz consigo o princípio de democratização dos agentes da História.

No segundo quartel do século XX, os debates sobre narrativas de memória e sua relação com a História da Educação adquiriram certa visibilidade e, paulatinamente, ofereceram perspectivas de inteligibilidade para o passado das instituições escolares, das práticas educativas, do cotidiano da sala de aula, das memórias de professores e alunos, entre outros temas. A História da Educação, como zona de fronteira que se aproxima das teorias da História, busca construir sua identidade disciplinar, reforçar suas ligações com outras ciências, abrir-se às novas realidades e diversificar as abordagens. Atualmente, a pesquisa neste campo de conhecimento inova em relação à sua compreensão do passado recente e, nesse contexto, são valorizadas as memórias orais da educação / escolarização.

Em uma tentativa de articular a História da Educação e os pressupostos que norteiam a História Oral, apresentamos a ideia de um dossiê que tematize as questões mencionadas. A proposta é publicar estudos que examinem a complexidade da memória produzida pela oralidade, em suas distintas interfaces com a História da Educação. Desse modo, tem-se como objetivo oportunizar espaço de diálogo para que pesquisadores possam expor suas investigações inseridas nessas interfaces.

Alícia Civera, por meio das narrativas de três professores exilados pela Ditadura Franquista, analisa a construção de uma memória escolar relacionada aos modelos pedagógicos da Escola Normal Espanhola, nos anos quarenta do século XX. Ao mobilizar aspectos relacionados às especificidades da História Oral, a autora considera essa metodologia um modo de capturar as tradições pedagógicas, sem que necessariamente haja uma explicitação racional a respeito. No entanto, percebe que essas tradições e formas de atuar dos estudantes estão representadas em suas identidades, em seus afetos.

Com o objetivo de analisar itinerários formativos e práticas educativas vivenciadas no ensino primário em escolas de Caxias do Sul / RS, Terciane Luchese, a partir das memórias de docentes nascidos nas duas primeiras décadas do século XX, busca compreender os fazeres e os saberes de cinco professoras, todas elas formadas para atuarem no ensino primário. As memórias, somadas a outros documentos, compõem o campo empírico que, com o apoio teórico da História Cultural, permitem tematizar as práticas educativas de docentes entre os anos 1920 e 1960.

O acervo de fontes orais intitulado “Projeto Memória Lassalista”, o qual integra as coleções de documentos sob a guarda do Museu Histórico La Salle (MAHLS) do Unilasalle Canoas, é o objeto de estudo de Cleusa Garbin. Nessa pesquisa, a autora problematiza o depositário da coleção, as bases históricas e teóricas do Projeto, a sua constituição e operacionalização e as possibilidades de utilização. Além disso, estabelece uma discussão acerca das perspectivas futuras do Projeto. As complexidades e os desafios em relação à produção, tratamento, preservação e socialização de acervos orais são tematizados no artigo.

Claricia Otto, no período que compreende os anos 1930 e 1960, discute os resultados de uma pesquisa sobre a ação docente de religiosas da atual Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas (CICAF), em escolas primárias de Santa Catarina. Para tanto, se vale de memórias de dez religiosas, professoras aposentadas dessa Congregação. A análise evidenciou aspectos do cotidiano escolar daquele período e entendeu que as professoras tiveram papel fundamental na constituição de determinada cultura escolar, especialmente no que concerne ao vínculo com a religião católica na escola laica.

Uma discussão acerca de professores leigos que atuaram em escolas isoladas e multisseriadas nas décadas de 1940-1960 no município de Pelotas / RS é o que propõem Patrícia Weiduschadt e Giana Lange do Amaral. A análise se constituiu a partir de quatro entrevistas que tematizam o pertencimento docente à etnia pomerana alemã e a religião luterana. Neste sentido, os conceitos de memória e identidade problematizam as memórias coletivas, reelaboradas no tempo presente.

Por fim, o artigo “Memórias de escola em colônias agrícolas judaicas no Rio Grande do Sul: narrativas orais do acervo do Instituto Cultural Marc Chagal (1904 – 1930)” investiga alguns aspectos acerca dos processos de escolarização dos primeiros imigrantes judeus fixados em colônias agrícolas no RS. Por meio das narrativas de memória de sujeitos que viveram sua infância naquelas comunidades, procura-se recompor uma História acerca das primeiras escolas naqueles espaço e tempo determinados. As narrativas visibilizam elementos, tais como o significado da escola para o povo judeu, as dificuldades de acesso e locomoção à escola, a presença de crianças de origem não judia na escola e, sobretudo, o papel da Jewish Colonization Association, conhecida no Brasil como ICA, e seu papel determinante no apoio aos processos de escolarização do Imigrantes Judeus.

Referências

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

Dóris Bittencourt Almeida – Doutora em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora Adjunta IV de História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: almeida.doris@gmail.com

Luciane Sgarbi S. Grazziotin – Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: lsgarbi@unisinos.br


ALMEIDA, Dóris Bittencourt; GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi S. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 15, n.3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Religiões, religiosidades e biografias: indivíduos e crenças / Revista Brasileira de História das Religiões / 2016

Caro leitor,

A Chamada Temática, aqui publicada, consiste em estabelecer a importância dos estudos biográficos para o estudo das religiões, religiosidades e crenças. Enfatizamos a importância em investigar a trajetória do sujeito concreto, inserido na história, com capacidade de influenciar o meio no qual vive ou viveu. A partir do estudo de biografia e contexto (LEVI, 1998), destacamos a singularidade dessas trajetórias, relacionando o individual com o contexto histórico. Este indivíduo é / foi alguém atuante, pertence a uma crença instituída que lhe dá / deu suporte e permite / permitiu seu discurso e sua prática como tradução do grupo ao qual pertence / pertencia. Quando o indivíduo fala a partir de sua adesão religiosa o faz utilizando códigos referenciais, morais, comportamentais do grupo em que é elemento participante. Utilizar a biografia como documento implica relacionar a história do indivíduo ao seu papel enquanto agente histórico, de intermediário entre as crenças instituídas pelo grupo, do qual participa, e as práticas na sociedade em que vive. Nossa proposta foi materializada nos sete artigos que compõem a Temática.

Maria Betania Albuquerque e Dannyel Teles de Castro analisam a trajetória de vida e os saberes construídos por Rosalina, uma curadora da ilha de Colares, no Pará e como ocorrem os processos de construção e transmissão desses saberes. As práticas de cura realizadas por Rosalina englobavam elementos de diversas tradições (umbanda, esoterismo, Nova Era) configurando um hibridismo religioso e um constante processo de bricolagem de seus saberes.

André Leonardo Chevitarese e Rodrigo Pereira abordam a trajetória de vida de Joãozinho da Gomeia, dirigente de uma casa de candomblé fluminense de origem interétnica Angola que funcionou entre a década de 1940 até 1971, no Rio de Janeiro.

A biografia de Jacobina Maurer, conhecida como a principal liderança do movimento Mucker, do Rio Grande do Sul é abordada por Haike Roselane Kleber da Silva.

Edilece Souza Couto analisa a trajetória de Dom Jerônimo Tomé da Silva, segundo arcebispo do período republicano na Bahia (1893-1924) no contexto das mudanças socioeconômicas e religiosas da primeira república.

Magno Francisco de Jesus Santos discute a trajetória polissêmica do arcebispo Dom Luciano José Cabral Duarte, a partir de seu envolvimento com os camponeses da região da Cotinguiba, em Sergipe nas ações de reforma agrária na década de 1960 e suas relações com o Governo Militar.

O artigo de Elisangela Oliveira Ferreira apresenta a trajetória do missionário negro, João de Deus Penitente, que pregou em uma vasta região das capitanias de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, no século XVII. Sua motivação era ensinar a doutrina cristã aos seus “irmãos pretos” que, de acordo com ele, viviam pelo interior do Brasil desamparados da fé católica.

Wilton Carlos Lima da Silva Lima Silva, Rogério de Carvalho Veras analisam e estabelecem analogias entre biografias protestantes e discurso hagiográfico de longa tradição na literatura cristã, a partir de três biografias de protestantes brasileiros publicadas entre 1935-1950.

Finalizando a edição temos artigos livres e resenha.

Agradecemos a todos os autores que enviaram suas contribuições e desejamos boa leitura!

Solange Ramos de Andrade

Renata Siuda-Ambroziak

Organizadoras


ANDRADE, Solange Ramos de; SIUDA-AMBROZIAK, Renata. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.9, n.26, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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(Auto)biografias, fotografias, acervos e escritas de formação | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2016

Os estudos (auto)biográficos, inicialmente circunscritos aos textos narrativos e a suas potencialidades, nas últimas décadas, têm encontrado outras fontes e múltiplas possibilidades de pensar e problematizar os espaços biográficos e sua expansão. Num movimento muito semelhante ao ocorrido em outros campos epistemológicos, o amadurecimento do campo da pesquisa (auto)biográfica começa a se evidenciar, pela diversificação de interesses e abordagens, e pela sofisticação de sua produção, para além de seu universo inicial, das letras e da história (e, por consequência, dos textos narrativos), e da educação (e, portanto, da entrevista narrativa). As possibilidades abertas para a pesquisa e a compreensão dos mundos da vida humana são múltiplas e o dossiê (Auto)biografias, fotografias, acervos e escritas de formação procura dar materialidade a três dessas perspectivas.

A ideia de se pensar a (auto)biografia a partir da fotografia, como extrato de um momento vivido, como um retrato instantâneo de um acontecimento, no qual a memória ganha uma materialidade – até mesmo, na efêmera fotografia digital – e indaga quem a observa com signos e símbolos de um tempo passado, impressos nas vestimentas, nos comportamentos, nas expressões, nos gestos que sedimentam algo da psicologia ou da mentalidade de um tempo, nos dá algum indício de como estas fontes podem significar alguma diferença nas pretensões de nosso campo de estudo. São um passo rumo a uma outra dimensão representacional. Leia Mais

Sérgio Buarque de Holanda: 80 anos de Raízes do Brasil / Revista Brasileira de História / 2016

Sérgio Buarque de Holanda e seu mais famoso livro, Raízes do Brasil, vêm despertando a atenção de pesquisadores de vários campos do conhecimento – história, ciências sociais, literatura etc. – há décadas. Ou melhor, desde as últimas décadas do século XX, já que o interesse pelos grandes autores do pensamento social brasileiro, entre os quais Sérgio Buarque, pode ser datado, grosso modo, dos anos 1980. A própria categoria, “pensamento social brasileiro”, também nome de Grupo de Trabalho da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), difundiu-se a partir de então. Do mesmo modo, mais especificamente nos domínios dos historiadores, o estudo dos chamados intérpretes do Brasil foi se impondo como uma exigência, na medida em que a história da historiografia se tornou área de trabalho e especialização, delimitada, estabelecida e florescente, além de contar com muitos participantes. Os debates ocorridos em mesas-redondas e seminários temáticos da Anpuh, em todo esse período, sejam regionais ou nacionais, são indicadores do fato.

Os anos 1990 e seguintes registraram, assim, o aparecimento de diversas pesquisas que se dedicaram à trajetória de autores e livros; a seus contextos de ação e produção editorial; aos diálogos que mantiveram com o “pequeno mundo intelectual” de sua época; à recepção que tiveram quando do lançamento de seus livros; à fortuna crítica posterior de suas obras etc. Com vários instrumentais teórico-metodológicos, o que só fez enriquecer o conjunto, a bibliografia sobre o tema cresceu em número e sofisticação. Um movimento que se articulou à afirmação da história cultural no Brasil e no mundo, com atenção especial sendo dirigida à história do livro e da leitura, à história dos intelectuais, à história dos conceitos, à história das ciências e à história da historiografia, como mencionado. A quantidade e variedade de fontes para o desenvolvimento desse trabalho também se multiplicou, bem como a preocupação em traçar os vínculos entre o que se pensava e fazia no Brasil e fora do Brasil.

Pode-se dizer, contudo, que alguns autores ocuparam lugar de relevo nessa reconfiguração do campo da história e das ciências sociais, e esse é caso de Sérgio Buarque de Holanda e de seu livro de estreia. Raízes do Brasil foi publicado em 1936 pela editora José Olympio, a mais prestigiosa do país na época, inaugurando a coleção Documentos Brasileiros. Ela era então dirigida por Gilberto Freyre, também prefaciador do volume, um nome já consagrado por livro igualmente clássico: Casa-grande e senzala (1933).

Na historiografia, Sérgio Buarque de Holanda se afirmaria – como certamente desejou desde os anos 1950 – entre as maiores referências da disciplina, talvez ao lado, apenas, de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Nem tanto, me parece, de Caio Prado Júnior, cuja contribuição não tem, até hoje, o status que a de Sérgio Buarque ganhou. Quanto a Oliveira Vianna, para retomar as referências de Antonio Candido em seu famoso prefácio à 5a edição de Raízes do Brasil, de 1969, o caminho seguiu outro curso. Nas ciências sociais, ambos são reconhecidos entre os maiores pensadores da sociedade brasileira, formando com Alberto Torres, Sílvio Romero, Azevedo Amaral e outros, um conjunto de intérpretes decisivos para o contexto histórico anterior à redemocratização de 1945. Porém, de antípoda de Sérgio Buarque, Oliveira Vianna foi se tornando seu interlocutor, o que deu mais dinamismo às análises sobre esses autores e permitiu melhor conhecimento do campo intelectual das décadas de 1930 e 1940.

Uma transformação que tem claros vínculos com o crescimento dos estudos interdisciplinares sobre a construção de memórias individuais e coletivas, em que se reconhecem os esforços dos próprios indivíduos e dos guardiões de sua memória em produzir uma imagem de intelectual para seus contemporâneos e para a posteridade. Algo que igualmente interferiu na própria forma como todos os autores que contribuíram para o conhecimento (histórico ou qualquer outro) são pensados e tratados nas pesquisas mais recentes: sem mitificações e em redes de sociabilidade. Uma postura que busca uma mais proveitosa compreensão e, por conseguinte, uma melhor avaliação de suas contribuições, o que gera maior reconhecimento e não o contrário.

Justamente por tudo isso, a comemoração dos 80 anos da primeira edição de Raízes do Brasil não poderia passar em branco em uma revista como a RBH. Mas, também por tudo isso, considerei, como organizadora do Dossiê, que essa era uma excelente oportunidade para tratar de Sérgio Buarque de Holanda como um autor que teve uma rica e instigante trajetória, com atuação multifacetada como intelectual, tanto antes como depois de seu mais famoso livro. Este, portanto, é um Dossiê que parte de Raízes do Brasil, não se atendo, propositadamente, a esse livro, embora ele seja central para muitos dos artigos que o compõem, como o leitor verá.

O Dossiê é composto por sete artigos. Como abertura, temos o texto de Ronaldo Vainfas, sugestivamente intitulado “O imbróglio de Raízes: notas sobre a fortuna crítica da obra de Sérgio Buarque de Holanda”. Nele, Ronaldo começa por observar como a recepção desse livro, de um lado, acabou por obscurecer a produção historiográfica posterior de Sérgio Buarque, que só começou a ter reedições praticamente nos anos 1970; e de outro, paradoxalmente, como Raízes demorou a ser reconhecido quando de sua publicação, pois sua segunda edição data de 1948, 12 anos depois da primeira. Demarcando a parca repercussão inicial do livro, ele chega ao citado prefácio de Antonio Candido, que produz um duradouro e quase canônico enquadramento do livro e do autor, este como o de um “democrata radical”. A partir daí, o texto se abre para o debate de diversas questões que têm marcado as apreciações sobre a obra de Sérgio Buarque, algumas delas que serão discutidas com mais ênfase em outros artigos do Dossiê. Estão em pauta o planejamento inicial de Raízes, que envolveria o projeto de uma “Teoria da América”, e as ideias que ele abraçava ou rejeitava ao escrevê-lo. Outra vez, volta-se à apreciação de Candido que, vale lembrar, data de momento em que o Brasil mergulhava nos anos sombrios e violentos da ditadura civil-militar, instalada em 1964. Nessa viagem sobre o imbróglio de Raízes, muitos dos mais atentos analistas de Sérgio Buarque são visitados, o que tece para o leitor uma espécie de mapa de por onde andar para melhor conhecer o autor de tantos e tão diferenciados comentadores. Por fim, o próprio Sérgio é também mobilizado como figura decisiva que é na construção da fortuna crítica de sua obra, em especial porque o leitor é advertido de que nem todas as questões têm respostas completas.

Os dois artigos que se seguem versam sobre as raízes de Raízes do Brasil, escolhendo abordagens originais e provocadoras. Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro produzem um inusitado encontro, com doses de desencontro, entre os literatos Sérgio Buarque de Holanda e Lima Barreto, no Rio de Janeiro das décadas iniciais da Primeira República. Fazem-no como uma estratégia para recuperar os desdobramentos do ambiente político e estético da capital federal sobre os intelectuais que aí trafegavam, dando destaque aos anos 1920, quando Sérgio Buarque estabelece constante interlocução com Mário de Andrade, sendo, ao lado de Prudente de Morais Neto, um dos editores da revista modernista Estética. No artigo, os autores se beneficiaram muito do fato de terem organizado juntos a edição crítica comemorativa dos 80 anos de Raízes do Brasil, bem como de estarem trabalhando nas biografias de Lima Barreto (Lilia) e de Sérgio Buarque (Pedro). Dois autores que praticamente nunca são cotejados, porque frequentemente vistos como opostos: Sérgio, um modernista, e Lima, um antimodernista, nas letras e na vida. Porém, na vida e na história intelectual muitas vezes as coisas não são bem assim. É o que pretendem demonstrar, sobretudo no que diz respeito às desconfianças sobre o liberal regime republicano; algo que poderia ter ressoado em Raízes, anos depois. Da mesma forma que Ronaldo, Lilia e Pedro concluem seu texto com “discreta inquietação”.

Sérgio da Mata em “Tentativas de desmitologia: a revolução conservadora em Raízes do Brasil” mergulha fundo em um dos pontos que mais têm agitado os debates sobre autor e livro, desde que eles começaram a se fazer. Trata-se de esquadrinhar as leituras e apropriações do jovem Sérgio Buarque, no que se refere à “constelação de autores ligados à chamada ‘revolução conservadora’ alemã da época da República de Weimar”. Ou seja, a questão do germanismo desse intelectual, que teria voltado ao Brasil com um plano do livro (não executado), o que faz Sérgio da Mata recolocar em pauta e dialogar com diversos e recentes estudos sobre essa questão, levando-nos a Berlim e aos bastidores de Raízes. Recorrendo à documentação inédita e investindo numa escrita de tom biográfico – “quase sempre, a biografia de um livro está umbilicalmente ligada à de seu autor” -, ele constrói sua interpretação valendo-se, para prazer do leitor, de correspondência e anotações feitas por Sérgio Buarque em seus livros, agora acessíveis pela disponibilização da biblioteca na Unicamp.

Já os dois artigos que dão continuidade ao Dossiê podem ser lidos em duas chaves fundamentais, uma de forma e outra de conteúdo, que poderiam ser enunciadas como “a escrita de Sérgio Buarque de Holanda: o ensaio e as fronteiras”. Assim, Fernando Nicolazzi, para situar Raízes do Brasil na tradição do ensaio de interpretação histórica, gênero muito praticado no Brasil durante a primeira metade do século XX, dedica-se a fazer uma longa análise das formas de escrita do que eram os estudos históricos desde 1830 até 1930 / 40. O artigo é minucioso ao acompanhar intelectuais, como o romântico Gonçalves de Magalhães, passando por autores de textos famosos, produzidos no IHGB – como o discurso do cônego Januário da Cunha Barbosa, a proposta de Von Martius e a dissertação de Cunha Matos -, para chegar a Varnhagen, Sílvio Romero, Pedro Lessa e também Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna. É dessa forma que ele examina “as condições de emergência da tradição do ensaio”, para defender que nelas estão presentes “as relações entre a erudição crítica, definidora do método histórico, e a intenção sintética, característica da filosofia da história moderna”. Dessa forma, acredito, o artigo vai se prestar aos interessados nos debates travados no período, a respeito da escrita não só da história como também das ciências sociais, todas ainda muito próximas, quando não inseparáveis, da literatura.

Robert Wegner é o autor do artigo que vai apontar o contexto de elaboração do projeto que marcaria a trajetória de Sérgio Buarque após Raízes do Brasil. Segundo ele, tal projeto é concebido como uma alternativa à tradição ibérica que reinava no livro de estreia, constituindo-se no estudo da história da sociedade paulista. Assim, ele vai se centrar na expansão territorial e nos caminhos que levaram “os paulistas” ao traçado de novas fronteiras para o Brasil. Daí o tema das bandeiras e monções, que tinham, aliás, forte tradição no estado, bastando lembrar os nomes de Afonso Taunay, Alcântara Machado, Alfredo Ellis Jr., Cassiano Ricardo e outros, na poesia, no romance e na pintura histórica, por exemplo. Por isso, seu belo título: “A montanha e os caminhos: Sérgio Buarque de Holanda entre Rio de Janeiro e São Paulo”.

Dois artigos encerram o dossiê, voltando-se, mais uma vez, para os projetos de Sérgio Buarque e a fortuna crítica de sua obra. Giselle Martins Venancio e André Furtado irão focar no trabalho desenvolvido pelo autor ao organizar a coleção História Geral da Civilização Brasileira (HGCB), publicada pela editora Difusão Europeia do Livro (Difel) nas décadas de 1960 e 1970. Assumindo o formato de coletânea, considerado inovador ante o modelo experimentado com sucesso desde os anos 1920 / 30, como ilustram as coleções Brasiliana (da Companhia Editora Nacional) e Documentos Brasileiros (da José Olympio), a HGCB inauguraria outro tempo em termos editoriais. A essa coleção Sérgio Buarque se dedica com afinco, sendo o organizador dos volumes sobre Colônia e Império. Neste último caso, entretanto, ele acabaria sendo o principal autor, o que conduz o artigo a uma análise sobre o tipo de tratamento que foi dado à monarquia brasileira. Retomando a questão do projeto de “teoria da América”, presente em artigos anteriores, Giselle e André defendem que Sérgio Buarque o teria em mente ao situar o Império sob a ótica da historiografia latino-americana, inovando ao estabelecer novos marcos cronológicos para o período.

No último artigo, de Thiago Lima Nicodemo, Sérgio Buarque e Antonio Candido se encontram mais uma vez, desta feita no traçado de uma biografia cruzada, que remete ao tema da construção de memória daquele autor, mas em outra perspectiva. A interlocução montada entre os dois parceiros ressalta questões-chave no trato com intelectuais, quais sejam, os processos de apropriação de ideias, os dilemas e formas de engajamento político e os esforços para a delimitação de uma “obra” que guarde coerência com a figura de um “autor”. Dessa maneira, acredito que o Dossiê se soma à produção já vasta e cuidada sobre Sérgio Buarque de Holanda, inovando em pontos muito frequentados e polêmicos, o que é marca de boa contribuição intelectual.

Ângela de Castro Gomes – Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF); professora visitante nacional sênior da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). E-mail: angelamariadecastrogomes@gmail.com


GOMES, Ângela de Castro. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Interdisciplinaridade e Educação | Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais | 2016

A perspectiva de lançamento de um dossiê sobre Interdisciplinaridade e Educação na Revista EDaPECI objetiva uma análise interdisciplinar, ao congregar pesquisas empíricas e estudos teóricos que usam estas concepções em seus processos de investigação ou que estudam como estes artefatos estão sendo incorporados em atividades de ensino ou de aprendizagem.

A seleção dos artigos deste dossiê teve sua gênese no 3º Congresso Internacional de Interdisciplinaridade em Educação (III CIIE), realizado entre os dias 07 a 09 de novembro de 2016, em Catalão – Goiás. Os artigos selecionados e aprovados pela comissão científica do evento foram novamente analisados, revisados e ampliados, visando proporcionar aos autores e à comunidade acadêmica e científica uma ampliação conceitual e epistemológica dos resumos apresentados no evento. Leia Mais

Arte e Ciência, um processo operativo / Varia História / 2016

Apresentamos, nesta nossa publicação, três textos que se inserem no dossier da Revista Varia do Departamento de História da UFMG. Nossa preocupação foi dispor ao estudioso da história da arte alguns textos inéditos dedicados à reflexão do objeto artístico. Estes estudos discutem e investigam a arte sob pontos de vista não apenas históricos ou sob as vestes culturais, mas analisam ainda sob concepções formalistas, numa dinâmica imagética mais atual, apesar dos temas aqui exibidos não disporem de uma mesma cronologia, ao contrário, insistimos numa abordagem diversificada, tanto sob o ponto de vista da forma, como do espectro cultural. Optamos igualmente por uma estrutura diversificada dos temas, muito mais que um processo homogêneo e linear.

É importante ver a História da Arte estudada em sua conjuntura ampla nas possibilidades de investigação. Não apenas uma pesquisa filológica ou de pura catalogação ou inventário, mas um estudo mais abrangente e interdisciplinar. Estão aqui não apenas o curioso objeto como uma pintura ou uma construção arquitetônica, mas um processo operativo vinculado a dispositivos culturais arraigados ao universo de produção do próprio objeto.

O nosso propósito foi o de discutir aspectos do objeto artístico, mas contemplando a História Cultural e a História da Arte (e também a história da ciência) em suas múltiplas e diversas formas de apresentação imagética. Este dossier pretendeu abranger toda e qualquer abordagem no âmbito cultural, seja especificamente com discussões formalistas em relação à arte, seja em reflexões históricas e metodológicas. O universo imagético pressupõe-se a partir de estudos entre os tons culturais, entre as formas e a iconografia. Uma engrenagem voltada para debates profícuos e específicos da História da Arte e da História da Ciência. Este universo tenciona abarcar toda a discussão da imagem como arte, desse modo, novas problematizações, novos conceitos e novas dinâmicas foram utilizados numa experiência interdisciplinar, o que permitiu uma discussão mais profícua e menos engessada dos conceitos tradicionais da História da Arte. O leitor terá em mãos temas (assuntos) diluídos entre os três artigos de modo a promover uma interlocução entre os textos e sua interação nos diferentes conteúdos aqui apresentados. Essa organização permitirá avançarmos em assuntos diversos sem ter de seguir uma linha condutora exclusiva.

leitor-estudioso perceberá nossa preocupação desde o discurso formal, até a discussão histórico-cultural. Não está esquecido o artista e a obra; os trânsitos culturais – legados culturais artísticos; os vestígios e a construção histórica da arquitetura; o saber ver e as discussões culturais; as variantes arquitetônicas e cenográficas; a história da imagem como construção de um ideal cultural; a literatura científica; as considerações técnicas e os processos operativos na obra de arte. Nossas discussões permearam todos esses temas e, sendo assim, os artigos, que hora se apresentam estão inseridos numa ampla contextura. Tencionou-se estimular a abertura de novas propostas metodológicas no estudo do objeto artístico com vistas a renovar as investigações com novas sugestões de pesquisas. O organizador espera que este dossier exponha um tributo essencial aos estudos sobre o conhecimento artístico tanto a partir de enfoques específicos da arte como também da História da Arte, do que vale lembrar que história da arte é, história e arte.

Não nos custa lembrar que a História da Arte ocupa um lugar de destaque nas Ciências Sociais, no entanto, é conveniente realizar uma revisão crítica de seus métodos para então conhecer seus fundamentos e a realidade científica de seus posicionamentos operacionais (ou operativos), sejam no campo da teoria ou das disposições da práxis. A revisão prática historiográfica da arte permitirá saber como se estruturar esta História da Arte e em que situação ela existe. Damos aqui apenas algumas das ferramentas para que o leitor possa construir seu imaginário.

Sabe-se que a História da Arte se formou ao longo de décadas como resultado de conceitos operativos e critérios de investigação diante do manancial de obras artísticas. O uso dos discursos, dos seus métodos depende de circunstâncias plenamente culturais. A principal questão é o enfoque. Muda-se isto, e, consequentemente, a História da Arte apresenta novo leque de proposições. Segundo alguns autores, tantas histórias da arte, quanto práticas historiadoras.

Contextualizado nestas poucas observações o dossier proposto pretendeu absorver reflexões sobre a produção artística em suas mais variadas seções. Os autores escolhidos, Sara Fuentes, Beatriz Hidalgo e Alfredo Morales são investigadores (e professores) que se preocupam com a dinâmica clara e objetiva da Arte, mas igualmente com suas estruturas históricas e contribuições científicas nas diversidades das análises: tudo apresentado numa problemática inédita. No artigo El perfil de Andrea Pozzo como maestro de perspectiva encontramos uma diversa análise e um estudo metódico do jesuíta trentino e um dos perspécticos mais influentes do século de setecentos desde o estudo sistemático da perspectiva, passando pelo simulacro arquitetônico, tudo transformado num método didático e prático, publicado em forma de dois tomos no fim do século XVII, com uma repercussão global entre os séculos XVIII e XIX, atingindo não apenas o Continente Europeu, mas avançando para as Américas e ainda o Oriente. As análises são bem construídas exemplificando não apenas a formação cultural de Pozzo, mas também seus enfoques técnicos e suas preocupações em atender ao artista praticante da pintura de falsa arquitetura com pressupostos perspécticos, isto é, a quadratura ou a pintura de Sotto in sù, como ele mesmo denomina em seu texto. Já o estudo de Beatriz Hidalgo, com o título A originalidade técnica no desenho de Goya e seus contemporâneos. Abordagens sobre o desenho na segunda metade do século XVIII, nos apresenta um estudo instigante sobre “a arte do desenho”, uma expressão artística de grande variedade e que aqui concentra seus esforços durante o século XVIII num dos mais significativos artistas espanhóis: Francisco Goya. O desenho não é apenas a representação da forma sobre um suporte, como o papel, uma parede ou mesmo coberturas abobadadas e cupuladas, mas o desenho expressa o contexto de uma época, de um mecanismo estilístico e, naturalmente, um contexto operativo-cultural. Enfim, adaptações e estratégicas culturais que motivaram Goya em suas criações, mas também com outros artistas, como a autora bem demonstra (ou demonstrou). O estudo de Alfredo Morales sobre Cartografía y cartografía simbólica. Las “Theses de Mathematicas, de Cosmographia e Hidrographia” de Vicente De Memije nos brinda com um tema abordado de modo original e que cobre a rota marítima entre a Península Ibérica e as Filipinas. Para além de apresentar um contexto histórico abordando a missionação no Oriente, este texto expõe de modo analítico e meticuloso nova proposta cartográfica que se pode chamar artística, não apenas por suas concepções imagéticas / simbólicas, mas porque atrela-se a outro valor científico / funcional. Mudanças de paradigmas, evidências num novo contexto entre o espaço tridimensional e a representação no papel. Além da restituição gráfica operacional do relevo territorial e seu controle, o autor nos mostra a fruição consciente de um novo espaço conhecido não apenas em contexto específico da gnomônica, mas em espectros culturais por meio do vasto universo das belas estampas que escondem um mágico universo simbólico que entre Ocidente e Oriente preenchia todo o imaginário dos “homens do mar” e suas dinâmicas de apreensão entre espaço projetado e mensurabilidade, entre áreas percorridas e ícones / imagens em seus mais intrínsecos significados.

Assim, espero que a diversidade destes textos possa ser um estímulo para o jovem leitor e estudioso da arte, mas também do pesquisador mais acurado e determinado em pesquisas específicas, em novos processos e em novas dinâmicas interdisciplinares.

Magno Moraes Mello – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: magnomello@gmail.com


MELLO, Magno Moraes. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.60, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política – GOMES; HANSEN (RTA)

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 488p. Resenha de: SANTOS, Márcia Regina dos. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379, set./dez., 2016.

A obra Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política, organizada pelas historiadoras Angela de Castro Gomes e Patricia Santos Hansen reuniu um total de quatorze autores, os quais se dedicaram a ampliar o debate sobre as questões que tratam das práticas culturais protagonizadas por sujeitos históricos identificados como intelectuais. Angela de Castro Gomes, graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1969), Mestra e Doutora em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/IUPERJ-1987), constituiu-se uma importante referência com pesquisas nos temas de história política do Brasil República, história de intelectuais, cidadania e direitos do trabalho, Justiça do Trabalho, historiografia, memória e ensino de história. É o seu quinquagésimo livro entre publicações, organizações e edições e, foi organizado em parceria com a também historiadora Patricia Santos Hansen, graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 1998), Mestra em História Social da Cultura pela mesma instituição (2000) e Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP, 2007). O livro apresenta uma proposta de refinamento teórico, o qual visa a debater as operações culturais que foram multiplicando e diversificando as formas de disseminar conhecimentos e a mediação cultural que ocorre por diversos meios, sujeitos e escalas. Num movimento de ampliar a significação do intelectual contemporâneo, a autora denomina-os como “homens da produção de conhecimento e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social” (p. 10). Dessa forma, oferece estudos desenvolvidos na mesma direção, a qual problematiza e debate a ação de alguns homens e mulheres como mediadores culturais.

Os artigos que compõem a obra estão organizados em três partes. A primeira parte do livro, nomeada de Trajetórias e projetos, agrupou textos sob a perspectiva da ação de intelectuais no âmbito da tradução e edição, bem como, os percursos por eles realizados num processo de disseminação de livros e textos. O artigo de Kaomi Kodama delineia o campo de atuação do ator social, o qual compreendeu como “vulgarizador” (p. 42), a partir das traduções da obra de Louis Figuier que circularam no Brasil. A ideia de mediação estava focada em apresentar as novidades científicas para um público não especializado com objetivo de educar pela ciência. A autora Patrícia Tavares Raffaini  utilizou dois livros franceses para crianças no intuito de abordar a questão das traduções e a dimensão das escolhas editoriais. Nesse sentido, editores e tradutores atuam na construção de imaginários sociais oferecendo aos leitores as suas escolhas, projetando produções de sentidos. O artigo de Ângela de Castro Gomes apresenta a mediação entrecruzada por um projeto literário de intercâmbio luso-brasileiro infantil promovido pela autora/editora lusa Ana de Castro Osório. Por meio de obras que têm personagens viajantes que vivenciam a cultura do outro, a autora/editora investe seus esforços em projetos que poderiam ser nomeados de mediação cultural transnacional.

No âmbito educacional, evidenciando uma dimensão política na mediação cultural, a autora Gabriela Pellegrino Soares debate a atuação de professores em diferentes regiões do Vice-Reino da Nova Espanha (hoje, região do México), no sentido de que disseminaram ferramentas culturais – e também políticas – as quais contribuíram nos sentidos e práticas da participação camponesa na Revolução Mexicana, deflagrada em 1910. Diferentemente do olhar coletivo sobre uma classe de intelectuais, o autor Joaquim Pintassilgo estudou o percurso biográfico de Orbelino Geraldes Ferreira e a sua relação com o estabelecimento de uma vertente pedagógica chamada “escola ativa” (p. 148), em Portugal, durante o regime salazarista. Os dois últimos artigos dialogam no sentido de discutirem diferentes escalas de mediação, em diferentes lugares sociais. No primeiro caso, a mediação promovida na região rural, com materiais distribuídos para o letramento de populações com dificuldades de recursos e, no segundo caso, a mediação promovida a partir de cargos docentes que possibilitaram a produção de livros e a disseminação de ideias. No entanto, ambos ocorrem em situações adversas, nas quais os mediadores oscilaram entre promover a ilustração e não se expor às austeridades políticas do período.

A segunda parte da obra nomeada Lugares e mídias aborda a ação dos intelectuais mediadores por meio dos suportes de divulgação utilizados. O artigo de Ana Paula Sampaio Caldeira discutiu a atuação de Benjamin Franklin Ramiz, quando esteve à frente da Biblioteca Nacional, na concretização do projeto editorial dos Anais da Biblioteca Nacional. Num esforço de inserir a Biblioteca nas práticas internacionais de circulação e divulgação cultural, Ramiz mobilizou outros intelectuais da época para contribuir nas diversas edições dos Anais durante a sua gestão. A autora chama a atenção para a ausência de Capistrano de Abreu – funcionário da Biblioteca Nacional à época – nas edições organizadas por Ramiz, uma vez que, Capistrano de Abreu se tornaria uma referência como intelectual de sua geração. O artigo de Eliana Dutra discutiu os contextos de mediação intelectual. Nesse sentido, abordou o caráter transnacional e transcultural da mediação por meio da circulação das revistas elaboradas para disseminar entre os países o que era produzido. Foram analisadas revistas do Brasil, Argentina e França para pensar uma possível triangulação de produções literárias que, por conseguinte, divulgavam concepções identitárias. O artigo de Francisco Palomanes Martinho tratou da mediação na questão dos discursos disseminados pela revista antiliberal e antidemocrática intitulada “Ordem Nova”. Os redatores da revista, em especial Marcello Caetano apoiavam um retorno monárquico às vésperas do golpe de Estado que mergulharia Portugal num período ditatorial. Revisitando teorias e acontecimentos históricos que se reportavam aos primórdios do liberalismo, os redatores elaboravam uma mediação político-cultural, com vistas a fortalecer sua ideologia antidemocrática. Sob a perspectiva da mediação pela oralidade, o artigo de Giovane José da Silva analisa os scripts dos programas de “Metodologia da História do Brasil” do projeto “Universidade no Ar”, escritos e narrados por Jonathas Serrano. Nesse contexto, ainda que a mediação ocorresse pela oralidade transmitida pelo rádio, foi privilegiada a perenidade do suporte escrito utilizando o envio de materiais aos inscritos na formação por meio do sistema de correios, configurando assim, um aprendizado específico, mesclado por narrativas orais e escritas.

Na terceira e última parte da obra, nomeada Leituras e ressonâncias, o conjunto de textos tem como foco as apropriações, releituras e aproximações feitas acerca de obras, autores e veículos de comunicação em relação às conjunturas vigentes em tempos e espaços demarcados. O artigo de Mara Cristina de Matos Rodrigues problematiza a noção de intelectual mediador a partir da articulação entre criação e mediação intelectual na trajetória de Érico Veríssimo. A autora discute os múltiplos tempos e lugares experienciados pelo autor, os quais lhe conferiram atuação tanto na mediação de conhecimentos históricos para um público infantil escolar, no diálogo cultural transnacional a partir de sua estada nos EUA, quanto na criação de uma literatura com “uma sofisticada arquitetura temporal” (p. 347) como a obra de sua maturidade O tempo e o vento. A autora elucida o trânsito possível inscrito na condição de intelectual e infere sobre a ampliação do entendimento de mediação. O artigo de Luciano Mendes de Faria Filho aborda a problemática da elaboração dos prefácios para obras já escritas e como as redes de sociabilidades podem interferir na produção de sentidos. O projeto em questão se refere à publicação das obras completas de Rui Barbosa. A sociabilidade do responsável pelo projeto editorial – Gustavo Capanema – mobilizou intelectuais que corroborassem com a política da publicação, incidindo sobre a forma como a obra foi prefaciada e os direcionamentos da leitura. Esse tipo de mediação intelectual tem, inclusive, argumentos para descaracterizar o próprio conteúdo da obra, uma vez que, os prefácios funcionam como protocolos de leitura. Nessa mesma clave, o artigo de Patricia Santos Hansen aborda a edição da obra A defesa nacional em comemoração ao centenário de seu autor, Olavo Bilac. A autora debate a problemática da apropriação dos escritos numa perspectiva de atender demandas políticas posteriores à publicação em, pelo menos, meio século. Da mesma forma, é possível perceber uma subversão narrativa na mediação entre diferentes culturas políticas.

Os dois últimos artigos são convergentes na questão da identificação de sujeitos históricos como intelectuais. O artigo de Giselle Martins Venâncio destaca as tensões da “fundação de uma prática historiográfica dita moderna” (p. 437) por meio da análise da mediação intelectual elaborada no âmbito das publicações de coleções e revistas científicas que se mobilizaram em notabilizar uma historiografia nacional. Nesse sentido, a autora aponta a emergência de nomes e grupos que estabilizaram como referenciais ao passo que outros, permaneceram invisibilizados. Por fim, a historiadora Libânia Nacif Xavier propõe em seu artigo a construção de “interfaces entre a história da educação e a história social e política dos intelectuais” (p. 464). Num diálogo acerca dos conceitos de redes de sociabilidade, trajetórias intelectuais e geração, a autora problematiza o lugar dos sujeitos classificados como intelectuais e a sua atuação na mediação. Num esforço teórico de ampliar o entendimento do conceito de intelectuais mediadores como categoria de análise nas pesquisas, a autora infere sobre a necessidade de construir uma sensibilidade para que o historiador, ao munir-se de fontes, conceitos e pesquisas, priorize as escolhas que melhor contribuam para os seus objetivos. E, nesse sentido, compreender e visibilizar os homens e mulheres que atuaram na produção e disseminação cultural do país e do mundo.

Márcia Regina dos Santos – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: marcia0705@gmail.com

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Capitalismo tardio e os fins do sono – CRARY (A-EN)

CRARY, Jonathan. 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de QUEIROZ, Luciana Molina. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, sept./dec., 2016.

No primeiro episódio da série da BBC Black Mirror, chamado The National Anthem, o primeiro ministro britânico é chantageado pelos sequestradores de um membro da família real e obrigado a realizar em rede nacional um ato absolutamente constrangedor e degradante, sob a pena de ser responsável pela execução da Princesa Susannah caso não cumprisse as exigências por eles colocadas. Enquanto todos os habitantes do país são mostrados em torno de televisores acompanhando de maneira horrorizada a coragem e decisão do primeiro ministro, a Princesa anda por ruas completamente desertas, sem que ninguém fosse capaz de constatar que ela já havia sido liberada por seus raptores. O argumento dos sequestradores (e, portanto, do episódio) é um dos aspectos mais interessantes abordados por Jonathan Crary em seu livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono: o modo como experiências de gerações inteiras são completamente moldadas a partir da programação da cultura de massa. Um grande evento, como a Copa do Mundo, e mesmo as grandes tragédias, como a morte de um ídolo pop ou o recente ataque ao Charlie Hebdo, assim como a catástrofe do 11 de setembro, são exibidos e acompanhados com viva atenção em escala global. Nesse sentido, a história pessoal de um indivíduo é filtrada por aparelhos.

Tal como Black Mirror, o ensaio de Crary por vezes parece ficção científica. O próprio autor admite que parte de casos extremos para demonstrar a relação entre sono e capitalismo tardio, tais como acidentes industriais noturnos que vitimaram várias pessoas enquanto dormiam. Esses exemplos, que parecem parte de uma distopia ou de um cenário catastrófico num universo cyberpunk, podem facilmente levar o leitor de simpatias tecnofóbicas a desejar voltar a um mundo basicamente pré-capitalista e rural, no qual máquinas não mediavam nossas vidas. É verdade que, hoje, a tecnologia é tão bem aceita dentre os habitantes da cidade grande que qualquer crítica a ela sempre está sob suspeita de ter motivação conservadora ou nostálgica sem mais. Por isso, é vital estarmos alertas à identificação da agenda política e das bases teóricas em que se firmam as críticas à técnica. É necessário lembrar, por mais trivial que possa parecer, que a crítica marxista em geral deixa claro que se opõe ao uso da técnica feito pelo capital, e não à técnica por si, algo ambivalente no discurso de Crary, por vezes mais ansioso em denunciar a alienação do sujeito derivada da dissolução das noções de comunidade e pertencimento existentes nas sociedades tradicionais do que propriamente em esmiuçar a coisificação do sujeito em uma sociedade em que o capital adquire inúmeras vantagens quando aliado à técnica.

Apesar dos exageros de tom apocalíptico, algo subjaz de terrivelmente verdadeiro na exposição de Crary: a preocupação com a tendência do capitalismo a tudo colonizar e instrumentalizar. “Existem agora pouquíssimos interlúdios significativos na existência humana (com a exceção colossal do sono) que não tenham sido permeados ou apropriados pelo tempo de trabalho, pelo consumo ou pelo marketing” (CRARY, 2014: 24), argumenta. Há, então, incompatibilidade entre as demandas do mercado e as necessidades de uma vida humana saudável. Em uma época marcada pelo estranhamento e pela reificação, em que se sedimenta a crença de que não se pode encontrar prazer no trabalho, o tempo/espaço referente ao trabalho e o referente ao lazer são reinseridos em um continuum, talvez ainda mais pernicioso, posto que ainda se caracteriza pela alienação, e não tem ruptura ou escapatória. Nesse sentido, compreendemos as altas taxas de adoecimento físico e psíquico exibidas pelos professores universitários. Não só porque também se encontram subsumidos nesse mesmo imperativo categórico do publish or perish, mas também porque a mercadoria-fetiche por excelência do acadêmico, o conhecimento, e suas configurações em livros, cursos on-line e transmissões ao vivo do evento sobre comunismo em Bogotá ou Istambul parecem multiplicados pelas indicações realizadas pelos bancos de dados das lojas online e pelas atualizações das redes sociais. Em meio a curtidas de fotos do bebê do colega de trabalho, aparecem para ele inúmeras indicações de leitura. A todo instante se exige do acadêmico que esteja up-to-date, e em seus aspectos regressivos isso implica que ele deve se inteirar das novidades do mundo intelectual, sejam essas importantes ou frívolas. Faz parte do funcionamento da indústria acadêmica a existência de intelectuais pop star como o Žižek e de best sellers da economia como O capital no século XXI, de Thomas Piketty, pois eles são marcas da impotência do acadêmico para ignorar informações. Pertencer à comunidade acadêmica é algo que ironicamente reduz o tempo do intelectual junto às suas próprias inquietações teórico-existenciais, no corpo a corpo de seu objeto de pesquisa, e o reinsere na lógica capitalista – menos um intelectual autônomo e mais um autômato 24/7.

O horror da tese de Crary nos persuade porque mesmo o sono, esse último reduto do ser humano contra a produtividade capitalista, vem sendo progressivamente desguarnecido. Se há alguns anos o sonho ainda era visto como uma zona impassível de ser ocupada pelo capitalismo, o autor demonstra, através da análise da cultura de massas, que até ele aparece em filmes como A Origem, de Christopher Nolan, como algo passível de ser entendido por critérios de rentabilidade. É como se no imaginário popular já estivesse consolidado o desejo de eliminar o que Crary considera a última barreira para a expansão capitalista: o sono e o descanso. Isso o leva a empreender uma crítica a um só tempo corajosa e selvagem ao pai da psicanálise, que teria em sua primeira formulação a respeito dos sonhos afirmado que todo sonho é a realização de um desejo do sonhador (afirmação que ganharia um ad hoc quando Freud se colocou com a devida atenção a questão do sonho traumático). Para o estadunidense, essa formulação do sonho como algo existente somente como anseio individual, somada à crítica de Freud aos movimentos gregários em sua análise da psicologia das massas, teria acarretado graves equívocos teóricos e práticos. Freud nunca teve o interesse explícito e primordial de se comprometer com algum partido ou ideário político ao erguer as bases de seu trabalho. Mas Crary defende que subterraneamente haveria ali uma concepção de desejo ideologicamente favorável à manutenção desse estado de coisas, em que o privatismo dos gadgets pessoais se tornaria um sintoma externo do individualismo crescente. Para ele, “a privatização dos sonhos por Freud é apenas um sinal de uma supressão maior da possibilidade de seu significado transindividual. Por todo o século XX, pensou-se que os anseios estivessem ligados exclusivamente a desejos individuais – desejar a casa dos sonhos, o carro dos sonhos ou férias” (CRARY, 2014: 118).

Contudo, ainda parece ser a psicanálise, aliada às ciências sociais, o principal ferramental teórico para se compreender o desejo individual manifesto no sonho como algo formulado no estado de vigília a partir de vivências historicamente situadas. Nesse sentido, é útil voltar à “indústria cultural”, conceito cunhado por Adorno e Horkheimer. Ao nos chamar a atenção para o grande número de experiências compartilhados pelas mídias, Crary poderia ter ido além, e especulado como que essas experiências também moldam desejos e, combinando aspectos da teoria dos sonhos de Freud e da exposição de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, poderíamos então nos questionar se a indústria cultural, ao contrário do que ele pensa, já não foi capaz de entrar no terreno insondável do sonho, submetendo-o ao menos em parte à lógica do capitalismo tardio. Afinal, um aspecto comum ao sonho e à mercadoria é justamente o modo como ambos são expressão de um desejo. Ainda que as pessoas sejam capazes de se associar a padrões de consumo diversificados, é inegável que muitas necessidades são moldadas pelo fetichismo da mercadoria, esse “passe de mágica” pelo qual de repente nos vemos absolutamente ávidos em adquirir determinado objeto convencidos de que há nele algo capaz de mudar nossas vidas. A cultura de massas, que engloba a publicidade, a imprensa e os meios de comunicação, bem como suas trocas com a indústria do entretenimento e do lazer, participa de uma equação na qual os desejos individuais tornam-se cada vez menos idiossincráticos, tendo em vista que são em alguma medida formados por uma estrutura totalizadora que é recebida coletivamente. Se isso vem ocorrendo, então os desejos já são em certo sentido transindividuais – sem dúvida não do jeito que pretende Crary, mas sim a partir de uma massificação dos objetos desejados e da própria faculdade de apetecer, que também pode ter como princípio algum anseio de ordem local, nacional ou mesmo mundial. As grandes detentoras dos meios de comunicação que buscam influenciar politicamente uma eleição ou sugerir para o público como deve se sentir e pensar a respeito de uma manifestação política ou sobre a possibilidade do país sediar uma Copa ou as Olimpíadas são capazes de atestar isso. Torna-se claro, então, que a questão que deve ser colocada não é a de se é possível sustentar algum desejo coletivo, mas antes se deve ter como foco o modo como esse desejo pode se dar.

Se Crary não desejava que sua crítica aos meios de comunicação e novas tecnologias fosse confundida com mera tecnofobia, teria feito bem em especificar de maneira mais rigorosa as diferenças entre individualismo e individualidade, pois, diante de sua argumentação, por vezes temos a impressão de que a única solução para o que observamos seria voltar a um modelo de sociedade pré-moderna, em que não havia possibilidade para a constituição forte de sujeito. Falta a ele ter uma visão mais dialética da coletividade, pois em seu ensaio retorna como falta o principal impasse relativo à cultura de massas (já presente no debate marxista, e mais especificamente nas disputas entre adornianos e benjaminianos): a relação entre o individual e o coletivo. Apontada como contribuintes do individualismo social, a cultura de massas no entanto reproduz uma estrutura que é recebida coletivamente, e que tem força suficiente para em alguma medida homogeneizar as massas em relação a uma visão de mundo e a um comportamento a favor do capitalismo. O blockbuster hollywoodiano, por exemplo, não só nos provê firmes noções de beleza e de erotismo, como também as associa a objetos e mercadorias específicos, tornando-se assim uma instância capaz de formar desejos associados ao estilo de vida existente no capitalismo. O sujeito não só se autodefine e se comporta como um consumidor como também naturaliza esse comportamento. Marcuse inteligentemente disse que, no capitalismo de hoje, a indústria cultural muitas vezes viria a substituir a lei paterna. Como construir utopias e desejos coletivos se a cultura de massas justamente opera a partir da falta de autonomia individual? Trata-se de uma das tarefas fulcrais da práxis política hoje: construir uma coletividade que se baseie não num comportamento comumente associado às massas, de irracionalidade quase animalesca (no retrato de Freud) ou de rebanho (como já aparecia na obra de Nietzsche), mas sim num comportamento em que as individualidades, de egos fortes e críticos, não se tornem facilmente massa de manobra de uma personalidade carismática e autoritária, como demonstram os usos feitos pelo nazismo da técnica, mas possam antes se agregar em torno da construção de uma utopia comum de motivações emancipadoras.

Luciana Molina Queiroz. Mestra em Filosofia pela UFMG e doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.E-mail: lucianamqueiroz@gmail.com

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Slavery and forced migration in the antebellum south – PARGAS (Tempo)

PARGAS, Damian Alan. Slavery and forced migration in the antebellum south. New York: Cambridge University Press, 2015. 281p. Resenha de: OLIVEIRA, Joice. Vidas desfeitas e vidas refeitas: novas reflexões sobre a experiência escrava no comércio interno de cativos. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.

A migração interna e forçada de escravos não é novidade nos estudos dedicados à escravidão. Há algumas décadas, os historiadores têm movido esforços com o intuito de compreender os aspectos, sobretudo políticos, econômicos e demográficos, concernentes ao comércio interno de escravos. Nessa empreitada, temas como o número e o perfil dos indivíduos negociados, as formas e os envolvidos na organização comercial, os determinantes da oferta e demanda de mão de obra cativa e os debates em torno da legalidade daquele comércio figuram como centrais em pesquisas recentes. No entanto, a perspectiva dos escravos em relação à experiência vivida nesse comércio e a posterior reconstrução de suas vidas ainda permanecem lacunares na produção acadêmica.

No que concerne à historiografia norte-americana, é notável que historiadores como Michael Tadman (1989), Walter Johson (1999), Steven Deyle (2005) e Robert Gudmestad (2003) tenham se concentrado no comércio interno de escravos no sul dos Estados Unidos no período anterior à Guerra Civil. Essa historiografia perscrutou a extensão e a organização do comércio interno, bem como seus efeitos, sobre os proprietários, negociantes e escravos. Ela indagou sobre o cotidiano daqueles que aguardavam a venda nos mercados de cativos e sobre o impacto daquela atividade na formação da jovem nação norte-americana. E, mais ainda, inquiriu sobre como os negociantes, o comércio interno e a própria escravidão foram vistos pela sociedade ao longo do tempo. Contudo, tais estudos não tinham por propósito privilegiar a percepção escrava diante da violência de serem comercializados. A exceção ocorre com Heather Andrea Williams (2012), que, por meio de uma proposta analítica distinta, investiga os sentimentos e as ações de escravos que foram separados de seus familiares pelo comércio interno e passaram parte de suas vidas tentando reencontrá-los.

É justamente a partir desse cenário historiográfico que o historiador holandês Damian Alan Pargas circunscreve seu objeto de pesquisa: Slavery and forced migration in the antebellum south é o resultado de uma minuciosa investigação realizada nos arquivos norte-americanos e tem o objetivo de trazer à tona a experiência dos indivíduos subjugados ao comércio interno. Pargas revela as percepções escravas diante de cada etapa do processo de comercialização de suas vidas, incluindo o período de adaptação do forasteiro à nova realidade. Para tanto, o autor se debruça sobre uma vasta série documental, focando tanto as narrativas cativas quanto as entrevistas de ex-escravos e refugiados nos estados do norte estadunidense e no Canadá. A pesquisa recorre, ainda, aos registros e memórias de senhores de escravos, aos diálogos entre cativos e viajantes, aos anúncios de escravos fugidos e a registros oficiais referentes à população escrava.

Nesse intento, a advertência metodológica inicial de Pargas é notável. Apesar de a historiografia comumente sinonimizar comércio interno e comércio interestadual, é necessário, segundo o autor, diferenciar três tipos de migração forçada: a de longa distância (interestadual), a local e a urbana. Essa classificação se sustenta na justificativa de que a quantidade de milhas percorridas impactava diretamente as reações e as possibilidades futuras dos escravos. Exatamente apoiado nessa distinção, o historiador engendra uma análise comparativa da experiência de cativos nascidos nos Estados Unidos, contrastando e assemelhando a trajetória daqueles que enfrentaram o comércio de longa distância com a de outros, que vivenciaram o comércio local e urbano.

Como os escravos vivenciaram as diversas formas de migração forçada ao longo do século XIX? O que eles sabiam sobre esse comércio e como tentaram resistir ou negociar os termos de sua remoção? Em que medida esses escravos foram capazes de se adaptar às novas comunidades, ao novo regime de trabalho e à nova relação senhor-escravo? Como se caracterizava a relação dos forasteiros com outros cativos? Em que medida o comércio interno contribui para o desenvolvimento de identidades escravas mais amplas? Essas são algumas das perguntas elaboradas por Pargas, que, concomitantemente, compõem a estratégia metodológica e narrativa do livro, bem como fomentam novas reflexões compatíveis não apenas com o contexto norte-americano, mas também com outros lugares, nos quais o comércio interno de seres humanos foi uma realidade.

O livro está dividido em duas partes, “Migração” e “Assimilação”. A primeira, como sugere o título, acompanha as várias etapas do movimento migratório de pessoas pertencentes à chamada “migration generations” – cativos americanos que viveram entre a Guerra Revolucionária (1775-1783) e a Guerra Civil (1861-1865). Esse movimento obrigou milhares de escravos a cruzarem as fronteiras do Upper South em direção ao Lower South, bem como o deslocamento de outros numerosos cativos dentro de um mesmo estado. Por vezes ainda, a sina foi dupla, uma vez que, em alguns casos, os escravos foram submetidos a ambos os percursos.

É precisamente ao exame das causas dessa onda migratória e à avaliação das diferentes formas de organização do comércio que o primeiro capítulo do livro se dedica. No que se refere ao comércio interestadual, Pargas observa que parte das negociações no período entre 1820-1860 pode ser explicada por fatores relacionados com o declínio e a ascensão produtiva de culturas distintas no país. Mais especificamente, o comércio de pelo menos 875 mil escravos estaria relacionado com o declínio na produção de tabaco em estados como Maryland e Virginia (Upper South) e o vertiginoso crescimento da produção de algodão e açúcar em estados como Texas, Alabama, Mississipi e Louisiana (Lower South) – que, juntos, importaram 75% dos escravos. O aumento da demanda pela mão de obra escrava e a consequente elevação dos preços nas áreas em expansão econômica atraíram o interesse de senhores das regiões em decadência, que enxergavam na venda de seus cativos uma possível solução para seus problemas. Por sua vez, no que concerne às migrações locais, Pargas as classifica como permanentes ou temporárias. No primeiro caso, elas eram decorrentes da imprevisível situação financeira dos senhores, que podiam rapidamente enriquecer e migrar em busca de novas terras – carregando consigo seus escravos – ou falir e negociar seus cativos para pagar as dívidas. Já as migrações temporárias eram o resultado da locação de escravos para trabalharem em propriedades agrícolas no interior do estado ou nos centros urbanos por determinado período.

Diante da iminência da comercialização, os escravos lutaram para preservar, acima de tudo, a unidade familiar. Para isso, negociaram os termos de sua remoção, apelaram para a consciência de seus senhores e, quando nada funcionou, cometeram atos como fuga, ataque contra senhores, automutilação, infanticídio e suicídio. Esse protagonismo é o tema do segundo capítulo, cujo argumento central versa sobre o modo como as reações escravas variavam conforme o tipo de comércio, o conhecimento sobre o local de destino e, principalmente, o impacto da migração sobre as famílias. À vista disso, Pargas afirma que se, por um lado, havia poucas chances de evitar as separações familiares no comércio interestadual, por outro os escravos comercializados no mercado local e urbano podiam ser mais bem-sucedidos, principalmente quando se encarregaram de encontrar seus próprios compradores na vizinhança ou negociaram diretamente com os compradores nos leilões e nos mercados.

A venda era o primeiro passo rumo a uma jornada que poderia se estender de acordo com o destino e a organização do comércio. Segundo essas circunstâncias, Pargas perscruta, ao longo do terceiro capítulo, o modo como os escravos viveram e sentiram cada etapa do processo de remoção. Para o autor, a experiência mais difícil foi a dos escravos do comércio interestadual, que, privados de comida e descanso, acorrentados e maltratados pelos negociantes, eram obrigados a marchar durante semanas pelos rincões do Lower South até chegarem aos mercados, onde eram confinados em celas e dali só saíam para uma nova e penosa caminhada, dessa vez em direção à sua futura morada. Apesar de o percurso geralmente ser mais curto para os comercializados no mercado local e urbano, Pargas ressalta que eles também sofriam as humilhações de serem tratados como mercadorias, principalmente durante a avaliação física realizada pelos potenciais compradores, momento que era particularmente cruel para as mulheres, frequentemente abusadas sexualmente.

Terminada a remoção, uma complicada fase começava na vida daqueles indivíduos: a assimilação. Assim que adentravam a nova propriedade, os escravos se tornavam forasteiros e eram compelidos a se adaptar à nova realidade, dentro da qual o trabalho tinha importância primordial. Ciente disso, Pargas se indaga no quarto capítulo sobre como a mudança de ocupação promoveu dificuldades e/ou oportunidades para os recém-chegados. Segundo o historiador, os escravos oriundos de outros estados encaravam as maiores adversidades, uma vez que o processo de aprendizado do trabalho poderia ser extremamente penoso, especialmente se ocorria durante a colheita do algodão ou do corte da cana-de-açúcar. Pargas acrescenta ainda que, tanto na esfera doméstica quanto nos centros urbanos, os escravos podiam usufruir de algumas vantagens, como melhor alimentação e vestuário, no caso dos que viviam na casa-grande, e maior mobilidade e menor vigilância, para os que viviam nas cidades. No entanto, Pargas salienta que, apesar do entusiasmo de muitos escravos, que enxergavam na vida fora da lavoura a oportunidade de uma vida melhor, dividir o teto com seus senhores ou trabalhar nas indústriass podia ser ainda mais degradante.

No capítulo seguinte, o autor examina em que medida a relação com os senhores/feitores e as condições materiais dos escravos foram alteradas com a migração forçada. Segundo ele, apesar de o tratamento recebido pelos recém-chegados às lavouras no Lower South variar conforme o tamanho da propriedade e com a presença ou o absenteísmo dos senhores, as reclamações referentes à falta de alimentação, vestuário e moradia adequada eram comuns. Além da precariedade material, os recém-chegados eram mais suscetíveis às punições. Nas lavouras, eram castigados principalmente por erros relacionados com o trabalho, e nos centros urbanos sofriam por infringir códigos de comportamento com os quais não estavam familiarizados.

Após acompanhar a experiência dos escravos durante a remoção e a adaptação à nova realidade, Pargas finaliza seu livro estudando o esforço empreendido pelos forasteiros para se integrarem à nova comunidade e reconstruírem suas vidas. Nesse intento, o autor problematiza a noção de comunidade escrava monolítica e a existência de uma coesão entre os escravos capaz de garantir a fácil interação (Berlin, 2003). Para o autor, as diferenças de idioma, sotaque, religião, costumes e, até mesmo, o chauvinismo regional eram obstáculos significativos à integração entre os recém-chegados e os antigos moradores. De acordo com o historiador, os escravos submetidos ao comércio interestadual manifestaram a chamada dupla orientação, fenômeno que combinava o desejo de voltar para seus antigos lares com a necessidade de se integrar à nova condição de sobrevivência. Diante desse imbróglio, encontraram na criação de laços familiares uma chance para o recomeço e nas histórias contadas a seus filhos uma esperança de manter viva a memória de um lar e tempo pretérito.

Por meio de uma escrita fluida e cativante, Damian Alan Pargas tece uma consistente análise historiográfica alinhavada às fontes históricas, que, além do mérito de investigar a experiência dos escravos em cada etapa da migração forçada, vai ainda mais longe, ao perscrutar o processo de adaptação e integração dos recém-chegados às novas comunidades, e isso narrado, cuidadosamente, a partir da percepção escrava. No entanto, algumas ressalvas são necessárias.

Apesar de insistir nas distinções entre os tipos de comércio interno, Pargas dedica a maior parte de sua pesquisa à experiência dos que viveram o comércio interestadual, tornando a narrativa, por vezes, um pouco repetitiva. E, em alguns momentos, as diferenças entre a vivência no comércio local e urbano parecem muito tênues. Ademais, ao considerar a família como parte essencial do processo de adaptação e integração dos escravos, o autor se concentra, basicamente, no casamento, negligenciando a importância da família extensa (Malone, 1992). Ainda sobre o aspecto familiar, o autor não avalia que a integração dos escravos poderia ocorrer de maneira diferente em propriedades recém-formadas e em propriedades estabelecidas de longa data, ou seja, naquelas em que a comunidade escrava tinha alto grau de consolidação das redes de parentesco e solidariedade. Nesse segundo caso, as chances de inserção do forasteiro poderiam ser limitadas. E, no que diz respeito às propriedades de formação recente, em que havia poucos núcleos familiares e a maioria dos escravos era composta por homens adultos e solteiros, as possibilidades de constituir famílias e criar uma rede de parentesco poderiam ser ainda menores.

Não obstante tais considerações, por fim cabe enfatizar que as contribuições promovidas por Pargas extrapolam a historiografia americana e podem encorajar novas pesquisas sobre o comércio interno de escravos em outras localidades, inclusive no Brasil. Embora a historiografia brasileira se dedique a essa temática desde 1970 e já tenha realizado importantes avanços na compreensão da dinâmica daquela atividade,1 pouco se sabe sobre seu impacto na vida dos cerca de 400 mil escravos comercializados no império brasileiro após o fim definitivo do tráfico atlântico de africanos. Diante dessa lacuna, alguns historiadores e historiadoras têm direcionado suas atenções para os locais de saída do comércio interestadual com o objetivo de compreender o modo como eles reagiram à ameaça da venda e da provável dissolução familiar.2 Mas, ainda assim, os estudos dedicados à experiência durante a migração, adaptação e integração dos cativos nos locais de chegada são muito escassos.3 Nesse cenário historiográfico, as questões investigadas por Pargas podem incentivar novas buscas nos arquivos brasileiros, que se, por um lado, não guardam dezenas de biografias de escravos, por outro estão abarrotados de registros de batismo e de casamentos, processos-crimes, registros de meia-siza, procurações e tantos outros documentos que, uma vez correlacionados, podem contar sobre como viveram, sentiram e reagiram aqueles que foram submetidos à violência do comércio interno.

Referências

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1Para citar alguns: Neves (2000), Slenes (2004), Motta, (2012) e Scheffer (2012).

2Para citar alguns: Mattos (1998), Pires (2009) e Ferreira Sobrinho (2011).

3Algumas exceções são: Machado (1987), Rocha (2004) e Oliveira (2013).

Joice OliveiraDoutoranda pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Campinas – Campinas, Brasil. E-mail: oliveira.joicef@gmail.com.

Linguagem e discurso : modos de organização – CHARAUDEAU (A-RL)

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso : modos de organização. São Paulo: Contexto, 2014. 256p. Alfa – Revista de Linguística, São José Rio Preto, v.60 n.3 São Paulo set./ dez. 2016.

Organizado por Aparecida Lino Paulikonis e Ida Lucia Machado, o livro “Linguagem e fala: esquemas organizacionais”, de Patrick Charaudeau, publicado pela Contexto, é o resultado de um esforço conjunto do Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso (ICDA, Rio), de a Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FURJ) e o DAC (Centro de Análise de Discurso) da Universidade Federal de Minas Gerais (FUMG), Faculdade de Artes, no Brasil, e o Center d`Analyse Du Discours ( CAD), de Paris XIII, na França. Durante anos, os laboratórios mencionados mantiveram contato com o CAD, por meio de convênio entre CAPES / COFECUB, e essas parcerias trouxeram contribuições interessantes para a pesquisa. No entanto, apesar desses relacionamentos importantes, os pesquisadores perceberam que uma parte importante dos estudos de Patrick Charaudeau ainda não estava ao alcance do público brasileiro. Uma vez evidente essa lacuna, e reconhecida a importância do trabalho de Charaudeau, pesquisadores do contexto brasileiro reuniram-se em torno de alguns de seus escritos, especialmente aqueles que refletem as linhas gerais de sua Teoria Semiolinguística, traduzindo e adaptando-os ao idioma português, o que resultou em este livro.

Os organizadores apontam para a noção de “adaptação” e mencionam que é possível que muitos pesquisadores que já estudaram a Teoria Semiolinguística reconheçam algumas passagens de trabalhos publicados desse autor. No entanto, sob a supervisão do próprio autor, essa equipe organizou uma mistura de vários escritos, transformando esse trabalho em novo material, em comparação com uma tradução simples. Nessa perspectiva, muitos conceitos foram revisados ​​ou remodelados nesta edição, várias tabelas foram revisadas e apresentadas novamente, de acordo com o estado atual da teoria, várias outras reformulações ganharam tons contemporâneos e os exemplos foram trazidos à realidade do contexto brasileiro. O trabalho é justificado por várias razões. O linguista que o inspirou sempre expôs conceitos inovadores sobre Análise do Discurso, entre os quais a “Lei da Língua” e os papéis atribuídos aos diferentes sujeitos participantes, sujeitos fitossociais e aqueles que trabalham com a linguagem, internos e externos a essa Lei; a importância atribuída ao sentido explícito e implícito, sempre considerando as circunstâncias do discurso que determinam tal ato; os contratos que os regem, os diferentes procedimentos discursivos pelos quais o discurso pode ser organizado e de ordem expositiva, descritiva, narrativa e argumentativa (CHARAUDEAU, 2014, p.10). O livro segue duas das principais linhas de pensamento de Patrick Charaudeau. O primeiro apresenta uma reflexão sobre o discurso, os protagonistas do ato da linguagem e sua relação com o sentido discursivo; o segundo destaca princípios básicos que se referem à organização discursiva de diferentes atos de comunicação que enfrentamos como sujeitos falantes durante nossas vidas. Vale ressaltar que, em determinados momentos, os organizadores questionam a forma como os esquemas de organização da fala são abordados pelos livros didáticos e o ensino da língua portuguesa nas escolas (CHARAUDEAU, 2014, p.107). Com o objetivo de entender melhor esta questão, os professores apresentam uma definição e uma função atribuída a eles, todas devidamente explicadas através de exemplos de textos jornalísticos, literários e da internet, além de livros didáticos. questionar a maneira como os esquemas de organização da fala são abordados pelos livros didáticos e pelo ensino da língua portuguesa nas escolas (CHARAUDEAU, 2014, p.107). Com o objetivo de entender melhor esta questão, os professores apresentam uma definição e uma função atribuída a eles, todas devidamente explicadas através de exemplos de textos jornalísticos, literários e da internet, além de livros didáticos. questionar a maneira como os esquemas de organização da fala são abordados pelos livros didáticos e pelo ensino da língua portuguesa nas escolas (CHARAUDEAU, 2014, p.107). Com o objetivo de entender melhor esta questão, os professores apresentam uma definição e uma função atribuída a eles, todas devidamente explicadas através de exemplos de textos jornalísticos, literários e da internet, além de livros didáticos.

O trabalho visa: 1) mostrar a visão de Charaudeau sobre a Lei da Língua. É um fenômeno rico e complexo da comunicação, atividade que ocorre no teatro da vida individual de cada um e cuja colocação em cena resulta de vários componentes lingüísticos e situacionais; 2) divulgar ao público brasileiro noções consistentes e claras analítico-discursivas, excelentes ferramentas teóricas que podem ser aplicadas na análise de diferentes “corpora” vinculados a esse tema tão fluido e fascinante que é o Discurso (CHARAUDEAU, 2014, p. 10) Em seu prefácio, traduzido por Angela MS Correa, o próprio Patrick Charaudeau afirma que o livro é um trabalho de adaptação desse grupo de pesquisa brasileiro a partir de algumas de suas anotações e espera que o material permita a todos os pesquisadores e professores, bem como todos os amantes da linguagem , analisar as especificidades dos discursos que circulam na sociedade brasileira, pois é verdade, segundo ele, que todo discurso é um testemunho das especificidades culturais de cada país. Ao fazer tal afirmação, o autor mostra a importância do trabalho para todos os pesquisadores brasileiros que dedicam parte de seu tempo ao estudo da análise de linguagem e discurso. Essa posição atende aos objetivos propostos pelos pesquisadores de três laboratórios que não mediram esforços para criar oportunidades, através da publicação deste livro, de disseminar as idéias de Charaudeau no contexto brasileiro. “Uma problemática semiolinguística no estudo da fala” é o título da primeira parte do livro, com foco no tratamento de problemas na análise do discurso. No inicio, Ao se aproximarem dos limites do território da Análise do Discurso, os organizadores apontam que propõem realizar um primeiro caminho, chamado por eles de “campo da linguagem”, deixando claro que tal exploração não será de natureza não histórica e não exegética . O texto traz algumas reflexões sobre o que certas teorias linguísticas e semióticas propõem como atitudes diante da linguagem, destacando, entre as conclusões, que o processo de comunicação não é resultado de uma única intenção, uma vez que é necessário considerar não apenas o que poderia ser declarado intenções do emissor, mas também o que diz que o idioma age sobre a relação particular que vincula o emissor e o destinatário. A idéia é que um determinado ato de linguagem pressuponha que nos perguntemos sobre ele, sobre as diferentes leituras que é provável que ele sugira, o que nos leva a considerá-lo como um objeto duplo, constituído por um explícito (o que é expresso) e um implícito (lugar de múltiplos sentidos que dependem das condições de comunicação) (CHARAUDEAU, 2014, p.17). Como resultado, o texto traz a afirmação de que uma Análise Semiolinguística do Discurso é semiótica ao examinar um objeto que só se constitui através da intertextualidade. O último depende dos assuntos da língua, buscando extrair dela um possível significante. O texto também afirma que uma análise do discurso semiolinguística é lingüística, devido ao fato de o instrumento utilizado para interrogar o sujeito ser construído a partir de um conceito estrutural de fatos do trabalho desenvolvido por quem trabalha com a linguagem. Em outras palavras, essas diferentes atitudes em relação à linguagem apresentadas por Charaudeau se referem a diferentes maneiras de ver os objetos,

O texto chama a atenção para o fato de levar o leitor a pensar em certas questões, que resumem os objetivos da proposta semiolinguística. Esses questionamentos referem-se a conceitos de signos, comunicação e competência linguística e funcionarão, a partir de agora, como eixos em torno dos quais outras seções do livro serão desenvolvidas. Como resultado, no primeiro semestre, é possível ver a ênfase na questão da dupla dimensão, explícita e implícita, do fenômeno da linguagem. De maneira bastante didática, a partir de definições e exemplos por meio de equações e diagramas, os organizadores lideram a discussão sobre o Núcleo Metadiscursivo. A relação dialógica do ato de fala, enquanto produção e interpretação, é evidenciada, por exemplo, pela explicação de contratos e estratégias de fala. As situações de comunicação são apresentadas em detalhes e os assuntos da linguagem são definidos: destinatário, intérprete, locutor e comunicante. O ato de linguagem como ato inter-enunciativo implica o suposto conhecimento que circula entre os protagonistas da linguagem; o sujeito, produtor do ato de linguagem e o interlocutor, sujeito desse ato. A questão da produção e recepção, em relação à linguagem como encenação, é um ponto central do trabalho.

Terminando a primeira parte do livro, os pesquisadores afirmam que, para analisar um ato de linguagem, é importante considerar não apenas a intenção do sujeito que se comunica, mas também quem o texto induz a falar ou que assuntos o texto induz a conversa, que, de uma perspectiva semiolinguística, dá origem a possíveis ações interpretativas.

A segunda parte do livro trata da organização do discurso e é dividida em princípios de organização do discurso, modo de organização da enunciação, modo de organização descritivo, modo de organização narrativa e argumentativa. Esses cinco textos são divididos em vários tópicos muito didáticos, apresentando exemplos ilustrativos, o que facilita a compreensão da leitura. Ao enfocar os princípios de organização da fala, os organizadores enfatizam que o livro é uma adaptação da última “Gramática do Significado e Expressão”, produzida por Patrick Charaudeau em 1992, direcionada aos leitores brasileiros e cujo conteúdo é o verdadeiro fundamento da linguagem: o discurso (CHARAUDEAU, 2014, p.67). Como o foco está na comunicação, o texto descreve que comunicar é agir e, portanto,

Finalmente, o livro concentra-se em encenações discursivas e gêneros a partir de reflexões envolvendo o assunto comunicação, textos e gêneros. Como a pesquisa nesse campo da análise de discurso ainda não é conclusiva, os organizadores apresentam uma tabela com algumas correspondências entre modos de discurso e gêneros.

Em relação ao modo de organização da enunciação, os editores, de maneira emblemática, retornam o foco aos protagonistas, aos seres da fala, internos à linguagem. O texto descreve que enunciar é organizar as categorias da linguagem e distinguir as três funções do modo de enunciação: estabelecer uma relação de influência entre o falante e o ouvinte (comportamento ALOCUTIVO), revelar os pontos de vista do falante (comportamento ELOCUTIVO) e retornar à fala de um terceiro personagem (comportamento DELOCUTIVO) (CHARAUDEAU, 2014, p.82).

Posteriormente, o trabalho explica os procedimentos dessa construção enunciativa, classificados como lingüísticos e discursivos. Para ilustrar, são apresentados alguns procedimentos do primeiro item: interpelação, liminar, autorização, sugestão, apreciação, possibilidade, proclamação, declaração, promessa. Os procedimentos discursivos são descritos em diferentes modos de organização da fala, ao longo do trabalho, considerando que provêm dos efeitos do conhecimento, realidade / ficção, confidencialidade e gênero (cenário descritivo), a fim de envolver o leitor nos modos, estatutos e pontos de intervenção visão do narrador (cenário da história) na posição diferente do sujeito argumentativo e valores atribuídos aos argumentos (cenário argumentativo). Depois de mostrar uma imagem ilustrativa dos procedimentos enunciativos de construção, descrevendo a relação entre comportamentos enunciativos e as especificações enunciativas, bem como as categorias de linguagem correspondentes, cada uma dessas categorias de linguagem é discutida em detalhes. Numa abordagem criativa e crítica, os organizadores discutem, finalmente, os modos de organização descritivo, narrativo e argumentativo, questionando a metodologia com a qual esses modos de organização são abordados nos exercícios escolares. Com o objetivo de esclarecer essas abordagens errôneas, é possível implicar, nesses três textos finais, a tarefa de definir esses modos e suas funções. Os exemplos ilustrativos de diferentes fontes, como artigos de jornal, livros didáticos, textos literários e textos da internet foram explorados com eficiência, o que pode levar os professores a pensar sobre as abordagens linguísticas a serem usadas nas aulas.

Também se destacou a equipe responsável pelo trabalho de tradução, constituído por Angela Maria da Silva Correa (ICDA-RIO), Emília Mendes (NAD-FUMG), Lilian Manes de Oliveira (ICDA-RIO), Lucia Helena Martins Gouvêa (ICDA). -RIO), Marco Barbosa Venicio (ICDA-RIO), Norma Cristina Guimarães Braga (ICDA-RIO) e Rosane Santos Mauro Monnerat (ICDA-RIO). A dedicação desses profissionais possibilitou, através de um competente trabalho de tradução, a circulação das idéias de Charaudeau no contexto brasileiro.

É um trabalho cheio de méritos, dentre os quais merecem destaque os exemplos ilustrativos e a maneira didática de definir os termos. A linguagem e a fala podem ser caracterizadas como instrumentos para analisar adequadamente as especificações dos discursos que circulam na sociedade brasileira.

Além de contribuir para o enriquecimento das discussões sobre Análise do Discurso, este livro divulga as idéias de Patrick Charaudeau. Nesse sentido, este livro não se destina apenas a estudiosos da linguística, mas também a todos aqueles que desejam entender melhor o processo de comunicação. Em suas 256 páginas, o trabalho pode atingir a meta que se estabeleceu e esclarecer as anotações de Charaudeau, tornando-se, portanto, relevante também para iniciantes nas teorias da análise de discurso, especialmente na Teoria Semiolinguística.

Antonio Escandiel de SOUZA – UNICRUZ – Universidade de Cruz Alta. Cruz Alta – RS – Brasil. 98005-000 – asouza@unicruz.edu.br

O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862) – CARATI (HU)

CARATTI, J.M.. O solo da liberdade: as trajetórias da preta Faustina e do pardo Anacleto pela fronteira rio-grandense em tempos do processo abolicionista uruguaio (1842-1862). São Leopoldo: Oikos/Editora Unisinos, 2013. 454 p. Resenha de: VOGT, Debora Regina. Os limites da fronteira na posse dos cativos após o fim da escravidão no Uruguai. História Unisinos n.20 n.3 – setembro/dezembro de 2016.

A história do cotidiano, das disputas internas que muitas vezes não estão claras nos documentos, durante muito tempo passou alheia à historiografia. Interessava-nos a história global, das estruturas do sistema e do movimento maior que a tudo envolvia. O fenômeno da micro-história demonstra a mudança de visão sobre o passado. Nesse sentido, não é mais somente a grande estrutura que nos interessa, mas os indivíduos que fazem parte do jogo e que sentido eles deram para os contextos em que viveram. O Menocchio2, de Carlos Ginzburg, tornou-se inspiração para muitos personagens que desvendam uma faceta historiográfica que há algum tempo era desconhecida.

No entanto, é preciso salientar que o acesso a esses “homens e mulheres comuns” em geral não ocorre por suas falas autorais. Nós os encontramos nos documentos da justiça, no julgamento da Inquisição – caso de Menocchio – ou em outras fontes em que suas falas aparecem como testemunhos. Isso não invalida essa narrativa, mas demonstra a busca por esses sujeitos, que, por não representarem a elite letrada, muitas vezes estiveram distantes da historiografia.

Essas histórias são excepcionais ao mesmo tempo em que são normais, ou seja, ao mesmo tempo em que têm seus dramas particulares, também são coletivas, já que compartilham experiências com inúmeros indivíduos contemporâneos. No caso da pesquisa em questão, os indivíduos compartilharam a vida fronteiriça, sofrendo os impactos das relações do império com o Prata, especialmente o Uruguai.

Tais fenômenos estiveram presentes também na historiografia sobre a escravidão, e o livro de Jônatas Caratti se insere nessa linha. Assim, autores como Azevedo (2006), Grinberg (2006) e Pena (2006) são exemplos na visão do escravo como personagem, que tem desejos, voz e luta também por sua liberdade. Esses trabalhos analisam, por exemplo, a atuação de advogados abolicionistas nos pleitos através das ações de liberdade, de manutenção da liberdade e da reescravização.

Nesse contexto, são analisadas as disputas, acomodações e transformações da vida escrava e suas diversas formas de luta pela liberdade. Da mesma forma como Menocchio, os personagens em geral nos falam indiretamente através das fontes – a fala dos escravos é terceirizada –, mas nem por isso são perdidas, já que são capazes de demonstrar as lutas cotidianas e as possibilidades de liberdade no mundo atlântico.

Além dos mencionados, Paulo Moreira (2003, 2007), João José Reis (Reis e Silva, 1989), Márcio Soares (2009) e Hebe Matos (1995) são outros historiadores que problematizam o papel do escravo, as disputas envolvidas nas leis abolicionistas e as noções de propriedade e direito.

Entre a visão de concessão e conquista escrava é de se destacar o papel da alforria como veículo de disputas entre os senhores “homens de bem” e os escravos. Essa luta pela liberdade, representada pela busca da alforria, é a inspiração do livro e resume o objetivo do livro, sendo o país fronteiriço “o solo da liberdade”. Os dois personagens do livro escrito por Jônatas Caratti, embora crianças ainda são representativos dessa conjuntura que, dentro do sistema preestabelecido, busca os espaços possíveis de negociação, conciliação e até luta jurídica.

Desta forma, Jônatas Marques Caratti, em sua dissertação de mestrado, transformada em livro – O solo da liberdade – percorre o caminho da micro-história, procurando apresentar as relações, disputas e esperanças de liberdade na sociedade escravista brasileira. Seu ponto de partida são as leis abolicionistas uruguaias e seu impacto na região de fronteira no Rio Grande do Sul. No território de fronteira, senhores e escravos negociam e tomam parte do jogo de relações e acordos em busca de seus objetivos.

O historiador elege dois personagens, representativos em suas fontes, e, através deles, procura mostrar o contexto social e a luta pela liberdade dos negros escravizados. Faustina e Anacleto são duas crianças que desde cedo conhecem a escravidão e, embora talvez não soubessem, são também reflexos dessa sociedade que, escravocrata, convive de forma muito próxima com o vizinho Uruguai, que havia colocado fim à escravidão, transformando a região pós-fronteira no “solo da liberdade”. É importante destacar que as trajetórias tornaram-se excepcionais pela quantidade de fontes documentais encontradas, o que permitiu que se produzisse uma narrativa verossímil e plausível para os sujeitos; já quanto a outros, não revelados pela documentação, jamais teremos conhecimento de sua existência. De acordo com Jônatas, os dois processos lhe chamaram inicialmente atenção pela quantidade de anexos e por tratarem de questões mais amplas que somente o tráfico de escravos na fronteira, demonstrando a vida social que se estabelecia dentro dessa dinâmica.

É importante destacar que a reflexão sobre crianças escravas é, de certo modo, ainda recente na historiografia. A própria ausência de fontes e o descaso com que eram tratadas, muitas vezes, fazem com que a pesquisa e análise de suas condições sejam ainda incipientes. Além disso, a mortalidade infantil era alta, fazendo com que muitos não chegassem à vida adulta3. Desta forma, a própria possibilidade de refletir sobre a situação de duas crianças escravas torna o trabalho instigante e aberto a novas reflexões.

O livro une pesquisa séria de um historiador que escreve com rigor e ética com a vida pessoal de alguém que também vive na fronteira, já que, hoje, Jônatas é professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA).

No final do livro há um diário de bordo, escrito de forma pessoal, com o relato de suas caminhadas pela região sul do estado e os encontros com sua pesquisa, as esperanças e os desafios de um historiador. Por meio de uma narrativa cativante, Jônatas permite ao leitor caminhar com ele, perceber suas escolhas, as limitações apresentadas pelas próprias fontes e as descobertas no caminho rico e intrigante que é a pesquisa histórica.

Os personagens escolhidos pelo pesquisador são exemplos de situações que ocorriam de forma expressiva no período analisado. A escravização de sujeitos que podiam ser considerados livres foi comum nesse período. Sendo assim, a importância de Anacleto e Faustina não se restringe à situação em que viveram, mas mostra o contexto social da época e propicia perceber as lutas pela liberdade e as formas como os acordos e arranjos ocorriam.

Esse horizonte, de certa forma ainda novo na historiografia, dá vida e complexidade a sujeitos que em nossos documentos se restringiam a números de escravizados. No texto de Jônatas, eles estabelecem relações, sonham com a liberdade, juntam dinheiro para consegui-la, fazem acordos, são complexos e demonstram as formas como os indivíduos reagiram a situações em que eram colocados.

Uns dos principais documentos analisados por Jônatas, assim como outros historiadores, são os judiciais, são eles que mais fornecem informações ao pesquisador. Ali é possível perceber a visão não só dos personagens principais, mas quem presenciou o ocorrido e também os réus, que apresentavam sua própria defesa. Ou seja, demonstram a complexidade das relações dentro da sociedade escravista e quais os caminhos encontrados pelos que faziam parte desse contexto. Cada argumento é analisado pelo pesquisador, demonstrando a riqueza de detalhes da narrativa e aproximando-nos da visão desses sujeitos do passado. Documentos como esses, por sua vez, abundam nos arquivos, como afirma Paulo Roberto Moreira – orientador e autor da apresentação do livro – faltava, contudo, alguém que com atenção de debruçasse sobre essa documentação com questionamentos plausíveis e tecesse a narrativa historiográfica.

O livro, por sua temática e também pela metodologia do pesquisador, caminha em várias frentes, que vão do micro ao macro, abrindo várias formas de reflexão e interpretação. No texto, transparece tanto o contexto nacional como a realidade regional, com suas particularidades, transpassada pela fronteira. Além disso, aspectos políticos, econômicos e sociais são explorados, demonstrando a dinâmica das relações, no aspecto particular e global. Seus personagens foram escolhidos entre dezenas de outros, e, por meio deles, observamos a sociedade do oitocentos: foram eles as lentes escolhidas pelo autor em sua narrativa.

Faustina nasceu livre em Cerro Largo, no ano de 1843, filha da preta, descrita como “gorda e velha” da Costa da África, Joaquina Maria, que era de Jaguarão. Sua mãe havia fugido através da fronteira para o Uruguai e lá viveu como livre até o encontro com os que raptaram sua filha. No outro país, Joaquina Maria encontrou um companheiro, Joaquim Antônio, sendo Faustina fruto dessa união. A menina foi arrancada de seus pais em uma noite de 1852 por um homem chamado Manoel Noronha, que se descreveu nos depoimentos como “capitão do mato”, lavrador, Capitão da Guarda Nacional e agarrador de negros fugidos. Quando preso, ele apresentou ao júri uma lista com 266 cativos fugitivos que pretendia perseguir e devolver aos respectivos senhores, em troca de recompensa.

Anacleto, por sua vez, nasceu em Encruzilhada do Sul como propriedade de Antônio de Souza Escouto, até que este o enviou para trabalhar em sua fazenda em Tupambahé, Uruguai, por volta de 1858. É importante lembrar, no entanto, que por lá a abolição já havia ocorrido, ou seja, do outro lado Anacleto era um homem livre. O menino teria ido ao Uruguai com 7 anos, idade considerada como fim da infância e início da vida de trabalho, já que se vivessem até essa idade, as crianças escravas demonstravam sobreviver ao elevado índice de mortalidade infantil. No Uruguai, Anacleto foi carregado por dois homens e trazido de volta ao Brasil; em 1860, foi vendido como escravo.

A história de Jônatas tem enredo, personagens e acontecimentos. Seu relato nos envolve e nos aproxima dos personagens, fazendo-nos torcer pelo sucesso de suas empreitadas e a conquista da liberdade. Isso não significa que a narrativa seja simplificadora; pelo contrário, ela é complexa e demonstra o rigor da pesquisa com documentação produzida pelo autor.

Faustina e Anacleto foram levados como cativos a Jaguarão, local estratégico na fronteira do Império e ali foram vendidos como escravos. O capitão do mato Noronha legalizou a posse de Faustina, comprando-a da senhora de sua mãe. Noronha revendeu-a em Pelotas com lucro considerável, o qual posteriormente a vendeu ao Capitão José da Silva Pinheiro. O historiador demonstra, por meio de suas fontes, que a crença de que a sociedade era composta por grandes senhores de escravos em muitos casos não se sustenta. Assim, boa parte dos compradores tinham poucos escravos que eram, por vezes, dados como heranças a herdeiros, fazendo parte do patrimônio da família. No entanto, mesmo numa sociedade tão desigual para esses sujeitos, conseguimos perceber as possibilidades de ação e a luta constante pelo sonho da liberdade.

Anacleto transformou-se em Gregório e foi vendido a Francisca Gomes Porciúncula, que o adquiriu na ausência do marido, o português Manoel da Costa. “Dona Chiquinha” e “seu Maneca” foram cúmplices desse sequestro, comprando Anacleto mesmo sabendo que ele era roubado. “Seu Maneca” era funileiro e viajava pelos centros urbanos provinciais alugando seus serviços; assim, quando foi a Rio Grande, repassou Gregório ao negociante de escravos José Maria Maciel, que o vendeu para o charqueador Miguel Mathias Velho. Uma mistura de sorte com coincidência fez Anacleto visto por um tropeiro o reconheceu como filho de Marcela e escravo furtado de Escouto.

Após essas desventuras encontramos as autoridades públicas, o uso da lei, a procura pelos criminosos, suas justificativas e a forma como a sociedade escravocrata se organizava. Os que são chamados a depor apresentam suas escrituras de compra e venda e, na ausência delas, passa-se a suspeitar de crime de compra ou venda ilegal de cativos. Através do método comparativo usado por Jônatas, percebemos e reconhecemos as proximidades e diferenças entre os personagens escolhidos pelo pesquisador.

A trajetória de Faustina ocorreu no contexto do Tratado de Extradição de Criminosos e Devolução de Escravos, assinado em 1851 entre o Império Brasileiro e a República Oriental; por isso, contou com o apoio dos chefes políticos e de autoridades uruguaias. Como ela nasceu em Cerro Largo, o Estado a defendeu como um caso de soberania e resistência ao imperialismo brasileiro.

Seus sequestradores, no entanto, foram absolvidos, marca de uma sociedade que ainda não questionava a escravidão. Contudo, ela voltou para seus pais, diferentemente do que ocorreu com Anacleto. Os dois processos são semelhantes e demonstravam, segundo o professor, a possibilidade de uma análise de comparação. A própria sentença que os réus receberam era a mesma, baseada no art. 179 do Código Criminal de 1830: “reduzir pessoa livre à escravidão”. Os réus responderam pelo mesmo crime e as vítimas eram crianças entre 10 e 12 anos. Esses são dois movimentos que aproximam o leitor da sociedade escravocrata sul rio-grandense em suas relações com o Uruguai. No entanto, há diferenças entre os dois casos, e isso, de acordo com Jônatas (Caratti, 2013, p. 57), o instigou a estabelecer a narrativa de forma comparada. Relacionar as experiências foi um caminho frutífero e promissor para a história social não só para a região da fronteira, mas também para a compreensão do Brasil nesse momento.

Anacleto nasceu no Brasil, de ventre escravo, e trabalhou no Uruguai como cativo, mesmo após a abolição da escravidão nesse país. Nesse caso, o promotor do caso, Sebastião Rodrigues Barcell, usou a ideia de “solo livre”, ou seja, vivendo em Estado onde havia sido abolida a escravidão, Anacleto seria considerado livre. Contudo, não sabemos exatamente por que – e aqui está o ponto em que a própria documentação limita o pesquisador – ele aparece no inventário de seu senhor Escouto, em 1865, então com 15 anos de idade. Possivelmente parecesse radical aplicar a lei, já que havia dezenas de fazendeiros que estariam nessa situação, além do potencial subversivo dentro da escravaria local.

Tendo como base os dados que encontrou nos arquivos, o autor recria contextos, compõe cenários e imagina cenários plausíveis diante do que suas fontes demonstram sobre seus personagens. Todos eles, é importante salientar, produzidos com base em intensa pesquisa na documentação, cruzamento de fontes e de leituras realizadas pelo historiador. Não à toa, Jônatas compara seu texto a uma peça de teatro e nos agradecimentos refere-se a si mesmo como diretor: “[…] Qualquer tropeço do diretor, e o fracasso ou sucesso de sua peça, é de sua inteira responsabilidade […]” (Caratti, 2013, p. 12). Sua narrativa e análise é um múltiplo labirinto que se abre e se transforma, demonstrando as multifacetadas vivências dos indivíduos que fazem parte de sua peça.

São várias as metodologias utilizadas por Jônatas em seu texto, já que ele trabalha com fontes diversas.

Assim, encontramos reflexões sobre as alforrias, sobre o mundo do trabalho escravo – com dados de compra e venda e leitura de pesquisadores da área –, escolha dos padrinhos, tráfico de escravos e comércio de cativos.

A narrativa do professor é instigante por colocar um elemento que, muitas vezes, está ausente na historiografia: a imprevisibilidade. Ao mesmo tempo que Anacleto e Faustina tinham seus próprios objetivos, suas vidas se entrecruzam com a visão de outros, que relacionavam-se entre si e por vezes determinaram seu futuro. O indivíduo e a sociedade, representada pela vontade de vários, são também reflexões possíveis da trama apresentada pelo professor. Segundo o próprio historiador, sua metodologia, inspirada na micro-história, trata de questões “inesperadas” e também as analisa de forma “experimental”; além disso, seu objetivo é explorar as fontes e os dados encontrados, mesmo quando poucos (Caratti, 2013, p. 55).

Se a narrativa por vezes esfria os conflitos que eram inerentes ao momento em que foram narrados, podemos afirmar que na narrativa de Jônatas por vezes afloram paixões, já que ele nos aproxima, como poucos, dos personagens por ele tratados. Assim, quando Joaquina Maria foi levada para depor, estava em “estado de alienação” e “chamava por sua filha”. Faustina estava no rancho de seus pais, escondida em um barril, quando dois homens a levaram. Mesmo que a mãe afirmasse que juntava dinheiro para a compra de sua liberdade, os homens, num cálculo frio, raciocinaram que a menina daria mais lucro e suportaria mais a viagem que a mãe e resolveram levar a garota. O que sentia essa mãe? Como isso a alterou emocionalmente ao ponto de não conseguir depor? A aflição dessa mulher demonstra não só a rede de relações entre senhores e escravos, as tentativas de fuga, mas também a sensação de completa instabilidade vivida pelos cativos nesse contexto.

De um lado, os donos de escravos, que viam como fundamental a utilização de mão de obra escrava em suas estâncias no lado uruguaio. De outro, o medo de que os escravos usassem a lei a seu favor e garantissem sua própria liberdade. A descrição das trajetórias de Anacleto e Faustina procura elucidar essas questões, que são o eixo principal da pesquisa do historiador.

Essa reflexão sobre os personagens, seus anseios e desejos faz com que o trabalho de Jônatas se insira na historiografia recente sobre escravidão, que não os trata como “coisas” ou como engrenagens de uma estrutura. Eles têm nomes, desejos, sonhos e lutam pela liberdade diante das possibilidades apresentadas.

Anacleto e Faustina não foram vítimas de um crime comum, mas estiveram envolvidos em conflitos sobre posse de escravos, fronteira e limites do Estado. Passaram por Melo, Jaguarão, Pelotas, Encruzilhada, Tupambahé e Rio Grande. Assim, o limite da pesquisa de Jônatas não é local, mas temporal, procurando perceber as diversas interfaces que permeiam a vida dos protagonistas de suas tramas. No decorrer do livro, o autor nos leva a cada um desses lugares, com dados levantados dos arquivos e bibliografia especializada, apresentando um quadro social amplo da sociedade sul-rio-grandense. A mobilidade é uma constante em sua obra: “[…] Tropeiros tocando o gado pela fronteira, escravos fugindo estrategicamente em embarcações, juízes e delegados retirados e colocados em vilas, como se fossem peças de um jogo de xadrez: tudo indica que essa gente não vivia na monotonia” (Caratti, 2013, p. 64).

Tal como em uma peça teatral, acompanhamos os personagens na narrativa de Jônatas, envolvemo-nos com suas trajetórias e percebemos suas vidas como mostras de um tecido social. O historiador, desta forma, nos abre outras cortinas: da complexidade do social e da dinâmica das relações que se dão entre o micro e macro. Um livro instigante, que poderia ser filme e que mostra que é possível unir boa narrativa com rigor acadêmico.

Referências

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GINZBURG, C. 1987. O queijo e os vermes. São Paulo, Companhia das Letras, 256 p.

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GRINBERG, K. 2006. Reescravidão, direitos e justiça no Brasil do século XIX. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direitos e justiça no Brasil: ensaios de história social. Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, p. 4-13.

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MOREIRA, P.R.S. 2003. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre, EST, 358 p.

MOREIRA, P.R.S. 2007. Introdução. In: P.R.S. MOREIRA; T. TASSONI, Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre, EST, p. 7-15.

PENA, E.S. 2006. Burlar a lei e revolta escrava no tráfico interno no Brasil meridional, século XIX. In: S.H. LARA; J.M.N. MENDONÇA (org.), Direito e justiça no Brasil: ensaios de história social.

Campinas, Editora Unicamp, Centro de Pesquisa de História Cultural, p. 161-197.

REIS, J.J.; SILVA, E. 1989. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo, Companhia das Letras, 152 p.

SOARES, M. 2009. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750-c. 1830. Rio de Janeiro, Apicuri, 265 p.

Notas

2 Domenico Scandella ficou conhecido como Menocchio graças a Carlo Ginzburg, que procurou compreender o mundo do moleiro através dos arquivos da Inquisição. Seus ensinamentos renderam-lhe a qualificação de herege, sendo morto e torturado na fogueira (Ginzburg, 1987).

3 “Poucas crianças chegavam a ser adultos, sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos nos portos cariocas […] no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros, os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos, dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade, 80% até os cinco anos” (Góes e Floretino, 2002, p. 180).

Debora Regina Vogt – Doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Analista técnico educacional da rede SESI/SP. Av Paulista, 1313, 01311-923, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: vogt.deboraregina@gmail.com.

Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica – BONTEMPI JÚNIOR (C)

BONTEMPI JÚNIOR, Bruno. Laerte Ramos de Carvalho e a constituição da história e filosofia da educação como disciplina acadêmica. Uberlândia: Edufu, 2015. Resenha de: MUSTAPHA, Samir Ahmad dos Santos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 666-671, set/dez, 2016.

Bruno Bontempi Júnior apresenta em livro a tese defendida em 2001. O autor conseguiu, no trabalho trazer à luz uma geração de intelectuais da educação que, nas décadas de 50 e 60 (séc. XX), se constituiu em importante espaço científico e de atuação nos fatos políticos do período.

O livro retrata a evolução da universidade como espaço de pesquisa e de formação de quadros intelectuais para uma carreira no ambiente de uma cátedra. Também observa o processo de ambientação em uma cadeira e a definição de saberes em disciplinas, no caso, a constituição do campo de história e filosofia da educação. Leia Mais

La nación imperial. Derechos, representación y ciudadanía en los imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos (1750-1918) | Joseph M. Fradera

La gestación de La nación imperial, obra singular y monumental que consta de 1376 páginas repartidas en dos volúmenes, es fruto de un proceso de maduración que viene a ampliar el campo de acción de varios estudios que el historiador catalán Josep María Fradera ha realizado sobre el colonialismo español decimonónico, entre los que destacan Gobernar colonias (1999) y Colonias para después de un imperio (2005). En su nuevo libro, el autor ha decidido salir del ámbito estrictamente peninsular al comprobar la similitud entre las leyes especiales ideadas por Napoleón para las posesiones ultramarinas francesas a finales del siglo XVIII y el nuevo rumbo de los imperialismos europeos y norteamericano a lo largo del siglo XIX. Las fórmulas de especialidad que Fradera localiza en los principales imperios contemporáneos se verificarían hasta las descolonizaciones iniciadas en 1947 y – algo que queda fuera de los límites cronológicos del libro sin ceñir sus intenciones intelectuales – tendrían repercusiones hasta la actualidad.

Para llevar a cabo su investigación, Fradera cuestiona las categorías de los estudios coloniales y nacionales. En un cambio de escala analítica, el historiador desvela modalidades de concesión y restricción de derechos comunes a distintos imperios, más allá del enfoque clásico y circunscrito del Estado-nación [1]. Con todo, Fradera insiste en el hecho de que su trabajo no se debe comprender como un estudio de historia comparada en la acepción usual de la disciplina, ya que su propósito, como afirma, está menos “pensado para oscurecer las diferencias” que para “razonar las similitudes de casos muy diversos” (p. 1295). En este sentido, siempre vela por matizar las categorías generales de los imperios con las especificidades propias de los espacios considerados. Esta articulación entre lo macro y lo micro le permite centrar su análisis en las experiencias respectivas de los actores de la época [2].

En palabras de Josep M. Fradera, el giro historiográfico global actual “es en algún sentido una venganza contra la estrechez que impusieron las historias nacionales, el férreo brazo intelectual de la nación-estado” [3]. No es baladí indicar que Fradera, joven militante antifranquista, dio sus primeros pasos en la Universidad Autónoma de Barcelona a inicios de los años setenta, en el contexto de la revisión historiográfica alentada por las descolonizaciones posteriores a la Segunda Guerra Mundial [4]. Impregnado por este cambio epistemológico y por las aportaciones más recientes de la historia global, el nuevo estudio de Fradera propone un marco interpretativo que contempla los imperios en sus interrelaciones y supera la anticuada dicotomía entre metrópolis y colonias. Siguiendo a especialistas como C. A. Bayly, Jane Burbank, Frederick Cooper y Jürgen Osterhammel, el historiador catalán quiere demostrar que los imperios desempeñaron un papel activo en la fabricación y la evolución de la ciudadanía y de los derechos, siempre con la idea de denunciar los nacionalismos contemporáneos, así como los atajos teleológicos y esencialistas que pudieron generar en el plano historiográfico.

Más allá de sus orientaciones metodológicas – e intelectuales -, La nación imperial constituye una aportación de primera importancia al ser, que sepamos, el primer estudio redactado en castellano que brinda un abanico espacio-temporal de semejante trascendencia. Al cotejar los grandes imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos entre 1750 y 1918 (con algunos apartados dedicados a Portugal y Brasil), el libro proporciona un análisis pormenorizado del proceso sinuoso que empieza con el advenimiento de la idea de libertad a raíz de las revoluciones atlánticas de finales del siglo XVIII y principios del XIX, hasta la consagración de la desigualdad a nivel mundial a lo largo de las centurias siguientes.

Uno de los designios centrales del libro es evidenciar el modo en que las tensiones que sacudieron los grandes imperios occidentales a raíz de la era revolucionaria desembocaron en la adopción de fórmulas de especialidad o de “constituciones duales”, esto es, constituciones que establecían marcos legislativos distintos para las metrópolis y las posesiones coloniales. Es más, Fradera considera la práctica de la especialidad “como la columna vertebral del desarrollo político de los imperios liberales” (p. XV). Según explica, el proceso revolucionario que arrancó con el carácter radical y universalista de la idea de libertad presente en la Declaración de Independencia de Estados Unidos de 1776 y en la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano francesa de 1789 conoció una involución notable en el siglo siguiente. La reconstrucción de los imperios tras las revoluciones supuso una delimitación cada vez más marcada en términos de representación entre metropolitanos – es decir, ciudadanos masculinos de pleno derecho – y ultramarinos, cuyos horizontes igualitarios se fueron desvaneciendo a medida que avanzó el ochocientos.

Fradera sostiene que el arduo equilibrio entre integración y diferenciación descansó sobre interrelaciones constantes entre metropolitanos y coloniales. Al comparar múltiples arenas imperiales, el autor muestra también que los paralelismos de ciertas políticas de especialidad respondieron a un fenómeno de emulación en las prácticas de gobierno colonial entre distintas potencias. Por otra parte, una perspectiva de longue durée le permite comprobar que los regímenes de excepción sobrevivieron al ocaso del mundo esclavista atlántico y se reinventaron con los códigos coloniales de la segunda mitad del siglo XIX para extenderse a territorios de África, Asia y Oceanía. El título del libro, al asociar dos conceptos que no se solían pensar como un todo, sugiere, en última instancia, que las transformaciones de los imperios fueron determinantes en la forja de las naciones modernas.

El libro está estructurado en cuatro partes organizadas cronológicamente. La parte liminar resalta el carácter recíproco de la construcción de la idea de libertad entre los mundos metropolitanos y ultramarinos en los imperios monárquicos francés, británico y español durante los siglos XVII y XVIII. Los derechos y la capacidad de representación no se idearon primero en los centros europeos para ser exportados luego a las periferias, sino que se fraguaron de forma simultánea. Este enfoque policéntrico servirá de base analítica para explicitar la estrecha relación entre colonialismo y liberalismo que se impondrá tras la crisis de los imperios monárquicos en el Atlántico.

“Promesas imposibles de cumplir (1780-1830)” es el título de la segunda parte del libro. Se centra en la quiebra de los imperios monárquicos y muestra cómo la adopción de nuevas pautas constitucionales para las colonias y el advenimiento de situaciones de especialidad en el marco republicano contrastaron con los valores radicales sustentados por las revoluciones liberales de la época.

La independencia de las Trece Colonias, pese a la igualdad de principio que conllevaba, no supuso una ruptura con los patrones socioculturales instaurados por los británicos en el continente americano. La joven república norteamericana circunscribió la ciudadanía a sus habitantes blancos y libres (valga la redundancia) y estableció una divisoria basada en el origen sociorracial y el género. Indios, esclavos, trabajadores contratados y mujeres no tenían cabida en la “República de propietarios”, aunque permanecían en el “Imperio de la Libertad”.

Para Gran Bretaña, la separación de las Trece Colonias marcó un cambio de era e implicó una serie de transformaciones que llevaron la potencia a extenderse más allá del mundo atlántico – donde le quedaban, sin embargo, posesiones importantes – para iniciar su swing to the East, esto es, el desplazamiento de su dominio colonial hacia el continente asiático y el Pacífico. La administración de situaciones diversas del Segundo Imperio, que ya no se resumía a la ecuación binaria del hiato entre connacionales y esclavos, implicó tomar medidas políticas para gobernar a poblaciones heterogéneas que vivían en territorios lejanos. Entre los ejes principales del gobierno imperial, cabe destacar el papel central otorgado a la figura del gobernador y la no representación de los coloniales en el parlamento de Westminster, si bien se toleraban formas de representación a nivel local.

En Francia, las enormes esperanzas igualitarias suscitadas en 1789 fueron canalizadas dos años después con la adopción de una Constitución que sancionaba la marginalidad de los coloniales y establecía raseros distintos para medir la cualidad de ciudadano. Establecer un régimen de excepción en los enclaves del Caribe francés permitía posponer la cuestión ardiente de la esclavitud – abolida y restablecida de forma inaudita – y mantener a raya a los descendientes de africanos, ya fuesen esclavos o libres. Se postergaría igualmente la idea de una representación de los coloniales en la metrópolis.

La fórmula de “constitución dual” inventada en Francia encontraría ecos en España y Portugal. Los dos países ibéricos promulgaron sus “constituciones imperiales” respectivas en 1812 y 1822, en un contexto explosivo marcado por el republicanismo igualitario y el ejemplo de la revolución haitiana. Mientras que la Constitución española de 1812 limitaba los derechos de las llamadas “castas pardas”, los constitucionalistas portugueses hicieron caso omiso de los orígenes africanos, pero, en cambio, excluyeron a los indios de la ciudadanía. Pese a sus diferencias, los casos españoles y portugueses guardan similitudes que tienen que ver con el fracaso de sus políticas liberales de corte inclusivo en los años 1820, y con el retroceso significativo en términos legislativos que desembocarían en el recurso a regímenes de excepción a partir de la década siguiente.

La tercera parte de La nación imperial, intitulada “Imperativos de igualdad, prácticas de desigualdad (1840-1880)”, versa sobre la expansión de los imperios liberales en las décadas centrales del siglo XIX, época marcada por la estabilización de las fórmulas de especialidad y de los regímenes duales.

El imperio victoriano tuvo que encarar situaciones conflictivas muy diversas en sus posesiones ultramarinas heterogéneas. La resolución del Gran Motín indio de 1857-1858 constituyó una crisis imperial de primer orden que permitió a Gran Bretaña demostrar su capacidad de gobierno en el marco de una sociedad compleja y de un territorio enorme que no se podía considerar como una mera colonia. La India británica era, en palabras de Fradera, “un imperio en el imperio” (p. 504) que carecía de la facultad para autogobernarse y que, por lo tanto, tenía que ser administrada y representada de manera transitoria por la East India Company. El caso de las West Indies era distinto en la medida en que aquellas se podían definir como colonias. La revuelta sociorracial de habitantes del pueblo jamaicano de Morant Bay en 1865 y la sangrienta represión a que dio lugar tuvieron un impacto considerable en la opinión pública británica, ocasionando nuevos cuestionamientos sobre los efectos reales de la abolición de la esclavitud y el rumbo de la política caribeña. Como consecuencia, el Colonial Office decidió suprimir la asamblea jamaicana y conferir a la isla el estatuto de Crown Colony, lo que constituía una regresión constitucional en toda regla. La conversión de la British North America en dominion de Canadá en 1867 se resolvió de manera más pacífica, aunque la población francófona y católica sufrió un proceso de aminoración frente a los anglófonos protestantes, mientras que los pueblos indios de los Grandes Lagos perdieron sus tierras ancestrales.

Los sucesos revolucionarios de 1848 en Francia volvieron a abrir pleitos que el golpe napoleónico de 1804 había postergado. Se decretó finalmente la abolición definitiva de la esclavitud, sin resolver satisfactoriamente la situación subordinada de los antiguos esclavos. La Segunda República también heredó un mundo colonial complejo. Fue a raíz de la toma de Argel en 1830 cuando la política colonial francesa comenzó a diferenciar las “viejas” de las “nuevas” colonias. Mientras que en las primeras las personas libres gozaban de derechos políticos y de representación relativos, las segundas – a imagen de Argelia, que estaría regida por ordenanzas reales – se apartaban del espectro legislativo. En el marco de este replanteamiento imperial, se procedió a una redefinición múltiple de la ciudadanía, que se medía, entre otras cosas, según la procedencia geográfica de cada uno: metropolitanos, habitantes de las “viejas” colonias y, al pie de la escala simbólica de los derechos, habitantes de las “nuevas” colonias.

En Estados Unidos, los términos de la ecuación se presentaban de forma algo distinta. En efecto, a diferencia de los imperios europeos, las fórmulas de especialidad se manifestaron en el interior de un espacio que se entiende comúnmente como “nacional”. Con todo, dinámicas internas fraccionaron profundamente el espacio y la sociedad de este “imperio sin imperialismo” (p. 659). La expansión de los Estados esclavistas en el seno del “imperio de la libertad” constituyó una paradoja que solo se resolvería – aunque no totalmente – con la guerra de Secesión. De hecho, la “institución peculiar”, como se la llamaba, ponía al descubierto la diversidad social, étnica y cultural de una población norteamericana escindida en grupos con o sin derechos variables. La expansión de la frontera esclavista no solo concernía a los esclavos, sino que afectaba a poblaciones indias desposeídas de sus tierras y recolocadas en beneficio de oleadas sucesivas de colonos norteamericanos procedentes del Este y de europeos.

El carácter del Segundo Imperio español se aclaró con la proclamación de una nueva Constitución en 1837, que precisaba en uno de sus artículos adicionales que “las provincias de ultramar serán gobernadas por leyes especiales”. A pesar de que dichas leyes nunca fueron plasmadas por escrito, quedan explícitas en la práctica del gobierno colonial. A años luz de las promesas igualitarias de las primeras Cortes de Cádiz, las nuevas orientaciones políticas para Cuba, Puerto Rico y Filipinas pueden resumirse en una serie de coordenadas fundamentales: la autoridad reforzada del capitán general, el silenciamiento de la sociedad civil, la expulsión de los diputados americanos y la política del “equilibrio de razas” (es decir, la manipulación de las divisiones sociorraciales y la defensa de los intereses esclavistas).

La cuarta y última parte del libro, que lleva por título “La desigualdad consagrada (1880-1918)”, coincide con la época conocida como el high imperialism. Sus páginas prestan especial atención al desarrollo y consolidación de enfoques de corte racialista. El hecho de que las ciencias sociales se hicieran eco de las clasificaciones raciales propias del desarrollo de los imperios a partir de la segunda mitad del ochocientos demostraba que el Derecho Natural del siglo anterior ya no estaba al orden del día.

El mayor imperio liberal de la época, Gran Bretaña, refleja muy bien la exacerbación de la divisoria racialista con respecto al Segundo Imperio. Los discursos que defendían la idea de razas jerarquizadas se nutrieron de los debates en torno a la representación de los coloniales e impregnaron los debates relativos al imperio. Tal fue el caso, por ejemplo, de Australia, donde se excluyó de los derechos a una población tasmana diezmada por la violencia directa e indirecta del proceso de colonización. Sin embargo, conviene no olvidar que los discursos racialistas actuaron como coartada de la demarcación entre sujetos y ciudadanos.

Argelia fue una pieza esencial del ajedrez político de la Tercera República, en particular, porque se convirtió en laboratorio para las legislaciones especiales del Imperio francés. El Régime de l’indigénat representó la quintaesencia del ordenamiento colonial galo. Este régimen de excepción dirigido inicialmente contra la población musulmana de Argelia fue el broche de oro jurídico de las fórmulas de especialidad republicana hasta tal punto que fue exportado al África francesa y a la mayoría de las posesiones del sudeste asiático y del Pacífico. Esta política de marginalización y de represión propia de la lógica imperial se tiñó de acusados acentos etnocentristas para justificar la “misión civilizadora” de Francia.

La Revolución Gloriosa de 1868 llevó el Gobierno español a mover ficha en sus tres colonias. Si la Constitución del año siguiente anunciaba reformas políticas para Cuba y Puerto Rico, las islas Filipinas quedaban sometidas a la continuidad de las famosas – e inéditas – “leyes especiales”. El ocaso del sistema esclavista explicaba en buena medida el cambio de rumbo colonialista en los dos enclaves antillanos, así como sus dinámicas propias. El archipiélago filipino pasó por un proceso de transformación económica, acompañado de reformas locales de alcance limitado y por una racialización política cada vez más intensa. Los fracasos ultramarinos de la España finisecular tendrían repercusiones en el espacio peninsular con la exacerbación de no pocos afanes de autogobierno a nivel regional.

Estados Unidos conoció serias alteraciones en su espacio interno tras la Guerra Civil. La reserva india, que emergió en el último tercio del siglo XIX, era un zona de aislamiento cuyos miembros no gozaban de derechos cívicos y a los se pretendía incluir en la comunidad de ciudadanos mediante políticas de asimilación. En este sentido, las reservas eran espacios de la especialidad republicana. La victoria de los unionistas distó mucho de significar la superación del problema esclavista y, sobre todo, de sus secuelas. El hecho de que el voto afroamericano se convirtiera en realidad en el mundo posterior a 1865 – conquista cuya trascendencia conviene no subestimar – no impidió que las elites políticas blancas siguieran llevando las riendas del poder, tanto en el Norte como en el Sur. En los antiguos Estados de la Confederación, ya no se trataba de mantener la esclavitud, sino de preservar la supremacía blanca. La segregación racial, que se puede asemejar a una práctica de colonialismo interno, contribuyó a instaurar situaciones de especialidad en las que los afroamericanos serían considerados como súbditos inferiores. En el ámbito externo, el fin de siglo sentó algunas de las bases futuras de este “imperio tardío” (p. 1276). Estados Unidos expandiría sus fronteras imperiales al ejercer su dominio sobre las antiguas colonias españolas y al formalizar el colonialismo que practicaba de hecho en Hawái y Panamá.

Resulta difícil restituir de forma tan sintética los mil y un matices delineados con una precisión a veces quirúrgica en los dos gruesos volúmenes que componen La nación imperial. La elegancia del estilo, la erudición del propósito y los objetivos colosales del libro – que se apoya en una extensa bibliografía plurilingüe – acarrean no pocas repeticiones. Pese a una edición cuidada, se echa en falta la presencia de un índice temático (además del onomástico) y de una bibliografía al final de la obra. Estos escollos, que incomodarán sin duda al lector en busca de informaciones y análisis sobre temas específicos, no cuestionan de modo alguno el hecho de que La nación imperial sea un trabajo muy importante y sin parangón.

Creemos que Josep María Fradera ha alcanzado su objetivo principal al mostrar, como indica en sus “reflexiones finales”, que “la crisis de las ‘monarquías compuestas’ (…) no condujo al Estado-nación sin más, sino a formas de Estado imperial que eran la suma de la comunidad nacional y las reglas de especialidad para aquellos que habitaban en los espacios coloniales” (p. 1291). Otra de las grandes lecciones del libro es que el etnocentrismo europeo no basta para explicitar el modo en que se articularon definiciones y jerarquizaciones cada vez más perceptibles de las poblaciones variopintas de imperios cuyas fronteras políticas, sociales y culturales fueron mucho más borrosas de lo que se suele pensar. El racismo biológico a secas nunca estuvo en el centro de las políticas imperiales, aunque pudo manifestarse puntualmente para justificar algunas de sus orientaciones. Lejos de responder a esquemas estrictamente dicotómicos, las lógicas imperiales, además de relaciones de poder evidentes, estuvieron condicionadas por una tensión permanente en cuyo marco la capacidad de representación – por limitada y asimétrica que fuese -, la sociedad civil y la opinión pública fueron decisivas. En última instancia, el largo recorrido por las historias imperiales invita a adoptar una mirada más crítica acerca de problemáticas tan actuales como el lugar ocupado por ciudadanos de segunda categoría en el interior de antiguos mundos coloniales que no han resuelto las cuestiones planteadas por el despertar de los nacionalismos, la inmigración de nuevo cuño y la construcción de apátridas modernos.

Notas

1. Al respecto, véase Jane Burbank y Frederick Cooper, “Empire, droits et citoyenneté, de 212 à 1946”, Annales. Histoire, Sciences Sociales, 3/2008, pp. 495-531.

2. Sobre el valor heurístico del vaivén entre varias escalas de análisis puede consultarse el estudio de Romain Bertrand, “Historia global, historias conectadas: ¿un giro historiográfico?”, Prohistoria, 24/2015, pp. 3-20.

3. Josep M. Fradera, “Historia global: razones de un viaje sin retorno”, El Mundo, 04/6/2014 [http://www.elmundo.es/la-aventura-de-la-historia/2014/06/04/538ed57f268e3eb85a8b456e.html].

4. Jordi Amat, “Josep María Fradera y los estados imperiales”, La Vanguardia, 23/5/2015.

Karim Ghorbal – Institut Supérieur des Sciences Humaines de Tunis, Universitéde Tunis El Manar (Tunísia). E-mail: karim.ghorbal@issht.utm.tn


FRADERA, Joseph M. La nación imperial. Derechos, representación y ciudadanía en los imperios de Gran Bretaña, Francia, España y Estados Unidos (1750-1918). Barcelona: Edhasa, 2015. 2 vols. Resenha de: GHORBAL, Karim. Los imperios de la especialidad o los márgenes de la libertad y de la igualdad. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 287-295, set./dez., 2016.

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Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos | Élisée Reclus

In every object, mountain, tree, and star – in every birth and life,

As part of each – evolv’d from each – meaning, behind the ostent,

A mystic cipher waits infolded.[1]

Walt Whitman, Shakspeare-Bacon Cipher. Leaves of grass

Em 1866, o geógrafo francês Élisée Reclus (1830-1905) publicou na prestigiada Revue des deux mondes um de seus textos mais conhecidos, Do sentimento da natureza nas sociedades modernas. O texto fez um enorme sucesso e influenciou uma geração de pensadores e escritores do período, abordando temas que permeariam os escritos e as ideias no século XIX. O artigo foi traduzido e publicado em português numa primeira edição em 2010 e agora saiu reimpresso pela Intermezzo e pela Edusp, com ótima tradução e projeto editorial de Plínio Augusto Coelho.

Élisée Reclus foi um dos maiores viajantes do século XIX. Numa época em que as ciências humanas ainda não haviam se dividido em especializações, ele foi, sobretudo, um humanista, um intelectual, um ensaísta. Andava pelo globo, pensando em diferentes problemas, vendo sociedades distintas, celebrando a natureza em contraste com o que dizia ser a dura vida das cidades. No texto que dá título ao livro, “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, publicado em maio de 1866, é a montanha que domina a paisagem e sua escrita. Para ele, a montanha, ou a subida e a conquista da montanha, seria a metáfora perfeita para exprimir seus ideais de solidariedade, fraternidade e liberdade entre os povos.

Mais tarde, em sua extensa obra escrita, Reclus escreveria um livro inteiramente dedicado à montanha, História de uma montanha, de 1880. Nesse livro, as ideias sobre a montanha se misturam com antigas mitologias – a montanha evocando um arquétipo abstrato, quase uma pirâmide sagrada. A montanha fez parte do imaginário europeu do século XIX e muitos pensadores se debruçaram sobre o tema no período. O filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900), por exemplo, escreveu sobre as raízes de uma montanha mágica, o Olimpo, em seu primeiro livro, O nascimento de uma tragédia no espírito da música, publicado em 1872.[2] Nietzsche contrapôs a calma e a serenidade clássicas aos espíritos dionísicos da mística, da música, da dança e da embriaguez do vinho. A montanha, na verdade, estava no centro do mito fundador da cultura grega e assim ela aparece nos escritos e desenhos de vários pensadores e artistas ao longo do século XIX – como tema, como personagem, como símbolo, como desejo de aventura.

A imagem da montanha esteve presente também em pensamentos e livros matemáticos como foi o caso do astrônomo escocês Charles Piazzi-Smith (1819-1900), que na época publicou seu livro de grande sucesso A Grande Pirâmide: seus segredos e mistérios revelados. Piazzi-Smith fez uma teoria matemática para provar que a Pirâmide de Gizé guardava uma relação geométrica e matemática especial de medidas.[3] Ao citá-lo em seu estudo, Reclus faz referência a uma espécie de matemática sagrada contida na natureza e nas montanhas.[4]

Aquele que escala uma montanha não será entregue ao capricho dos elementos como o navegador aventurado nos mares; bem menos ainda como o viajante transportado por ferrovia, um simples pacote humano tarifado, etiquetado, controlado, depois expedido a hora fixa sob a vigilância de empregados uniformizados. Tocando o solo, ele retomou o uso de seus membros e de sua liberdade. Seu olho serve-lhe para evitar as pedras da senda, medir a profundidade dos precipícios, descobrir as saliências e a anfractuosidades que facilitarão a escalada dos paredões.[5]

A natureza foi um tema clássico durante o iluminismo do século XVIII. Ao voltar-se para esse tema no texto que dá título ao livro, Reclus estava evocando diversas ideias e filósofos, como Voltaire e Rousseau, mas recolocando-os num novo contexto, o de sua época, com a forte influência romântica. O poeta inglês lorde Byron (1788-1824), George Gordon, é citado diversas vezes em sua obra como exemplo de revolucionário por sua atuação na Grécia, bem como Giuseppe Garibaldi (1807-1882), e as guerras de unificação da Itália.[6]

Cidade e natureza, montanha e nacionalidade, sentimentos e geografia são ideias aparentemente distantes que se encontram tanto ao longo deste texto especificamente, e também em toda sua obra. Reclus escreveu suas impressões sobre a natureza e a sociedade, quase como se pintasse um quadro em que as pinceladas formam a paisagem se o quadro for visto de certa distância, um quadro impressionista. Na mesma época em que Reclus editou seu livro sobre a montanha, um de seus contemporâneos, o pintor Paul Cézanne (1839-1905), começou uma série de quadros sobre o Mont Saint-Victoire, na Provence. Se o geógrafo colocou o sentimento da natureza e o poder da montanha em livros, Cézanne traduziu esses sentimentos em quadros de paisagens.[7]

Reclus é um ícone para os geógrafos, estudado e publicado há muitas décadas – é uma espécie de pai fundador, ao lado de Vidal La Blache.[8] Sua influência é comparável à de Jules Michelet (1798-1874) para os historiadores, uma inspiração, um mito, um pensador profundo e genial para sua época. Os dois, Reclus e Michelet, provavelmente se conheceram já que uma irmã de Reclus se casou com um genro do historiador.[9]

Quando o texto sobre o sentimento da natureza saiu na Revue des deux mondes, Reclus começava seu período de maior prestígio intelectual, escrevendo para uma das mais influentes revistas do mundo.[10] Quarto filho de um professor e pastor calvinista nascido numa pequena cidade do interior da França, Sainte-Foy-la-Grande, Jean-Jacques Élisée Reclus teve vários irmãos igualmente influentes no século XIX, como etnógrafo Élie, o também geógrafo Onésime, o explorador Armand, o cirurgião Paul. Com o irmão Élie, que viria a ser seu parceiro intelectual, ele cursou dois anos na faculdade de teologia protestante de Montauban, quando desistiu de seguir os passos do pai. De lá partiu para Berlim, onde começou seus estudos de geografia e tornou-se rapidamente discípulo do geógrafo alemão Carl Ritter (1779-1859).

Eram os anos 1850 e a política fervia na França. Em 2 de dezembro de 1851, Luis Napoleão Bonaparte (1808-1873), sobrinho de Napoleão, dissolveu a Assembleia Nacional Francesa para estabelecer o Segundo Império. Sob o impacto dos acontecimentos e seduzido pelos ideais socialistas, Reclus voltou à França para se engajar na luta contra o império, pela república. A partir desse momento, o geógrafo passou a escrever com propósito político, para difundir seus saberes na tentativa de ilustrar o público e fazê-lo compreender os diversos problemas do globo. Para se entender o texto “Do sentimento da natureza nas sociedades modernas”, um dos mais conhecidos do geógrafo, é preciso compreender suas andanças pelo mundo. Além disso, é o texto inspirador dos ideais de viagens e viajantes do século XIX.

Exilado da França logo após o Segundo Império ter início, Reclus passou alguns anos em Londres – onde foi até a Irlanda, que o impressionou com a fome endêmica que, de 1847, ainda castigava o país. Em Londres ele trabalhou como professor, ganhando miseravelmente até que seguiu para a América como preceptor de uma família de fazendeiros ricos, dona de plantations, que seguia para a Nova Orleans, nos Estados Unidos. Na América do Norte, Reclus viveu por dois anos, entre 1853 e 1855, onde viu e escreveu sobre a escravidão.

Seus escritos sobre os Estados Unidos representam três textos do livro agora editado, “Da escravidão nos Estados Unidos: o código negro e os escravos” (1860), Da escravidão nos Estados Unidos: os plantadores e os abolicionistas” (1861) e “John Brown” (1867), os dois primeiros publicados na Revue e o último na revista La Coopération. A experiência dos anos em que viveu no sul do país foi marcante e Reclus tornou-se um ferrenho abolicionista.

É de se notar que os anos em que habitou a plantation foram de intensa discussão política e que, pouco depois, os Estados Unidos entrariam em conflito com a Guerra de Secessão (1861-1865), sendo que os textos foram publicados a quente, ou seja, com a guerra na iminência de começar e logo depois do início. O objetivo de Reclus era entender a guerra americana e apresentá-las para os leitores de todo o mundo, dada a enorme influência da Revue no mundo.

São os Estados Unidos que servem de parâmetro para que o geógrafo entenda a América do Sul e mais especialmente o Brasil. A comparação é uma constante, como podemos notar no artigo “As repúblicas da América do Sul, suas guerras e seu projeto de federação”, publicado na Revue de 1866. No texto, a comparação com a Guerra do Paraguai (1864-1870) é direta e o geógrafo faz a mesma análise de províncias do Sul versus províncias do Norte. Da mesma maneira, o texto foi escrito a quente, no calor dos acontecimentos, e também tentava dar uma visão geral para o leitor da geografia, do povo e dos acontecimentos que se desenrolavam.

Eliesée Reclus voltou à França em agosto de 1857, quando ele encontra o pensador anarquista Mikhail Bakunin (1814-1876), de quem se tornou amigo, ao lado de seu irmão Élie. Juntos fundariam a sociedade secreta Fraternité Internationale. Entre 1867 e 1868, Reclus publicou a obra que lhe daria reconhecimento internacional, La Terre, description des phénomènes de la vie du globe. Mais tarde, esse volume se transformaria na sua maior obra, Nouvelle Geógraphie Universalle.

O livro agora publicado traz um apanhado da obra de Reclus e, entre os textos escolhidos, está um de seus mais conhecidos escritos anarquistas póstumos, “A evolução, a revolução e o ideal anarquista”. Nele o geógrafo resume sua filosofia política em escritos que estabelecem estreita ligação entre natureza, sentimentos, política e filosofia de vida – o geógrafo era vegetariano.

Elisée Reclus esteve no Brasil em julho de 1893.[11] Na ocasião, ele deu uma conferência na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (que se transformaria na Sociedade Brasileira de Geografia), fundada em 1883, pelo então senador imperial Manuel Francisco Correia (1831-1905).[12] Já era teórico mundialmente conhecido e a Sociedade fez sessão especial no dia 18 de julho apenas para recebê-lo. Reclus visitava o país para recolher subsídios para o 19º volume de sua Nouvelle Geógraphie Universalle.

A vinda de Reclus para o Brasil foi organizada e patrocinada pela editora francesa Hachette e foi a última de suas grandes viagens pelo continente americano. O Brasil realmente aparece no 19º volume da Nouvelle Geógraphie Universalle – a Amazônia e seus rios dominam a escrita e ajudam a formar o imaginário da época sobre região, com comparações com outros grandes rios de civilizações distantes, como o Nilo, no Egito. Os textos sobre a região já estavam entre as preocupações do geógrafo, que poucos anos antes havia escrito “O Brasil e a colonização: a Bacia das Amazonas e os indígenas”, para a Revue de deux mondes em 15 de junho, e “As províncias do litoral, os negros e as colônias alemãs”, em 15 de julho, ambos em 1862. Os dois textos fazem parte do volume agora editado. Poucos anos depois, em 1899, o Brasil passou a ser o personagem principal de um livro totalmente dedicado ao país, Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística.[13]

A influência de Reclus sobre o pensamento brasileiro do período foi grande. O geógrafo fez parte de um grupo de pensadores e cientistas estrangeiros que pensaram sobre a nação e a nacionalidade. Wilma Peres da Costa já abordou a existência desse primeiro nacionalismo brasileiro composto por uma narrativa erudita europeia de intelectuais franceses que chegaram ao Brasil com a Missão Francesa. Pouco mais tarde, a influência de viajantes e escritos de estrangeiros sobre o d. Pedro II era significativa a ponto de moldar um determinado discurso de grande impacto nos pensadores brasileiros.[14]

A maneira como o Reclus foi lido e entendido pelos brasileiros fez parte desse movimento e moldou a maneira como os próprios brasileiros se viam. Inspirado pelo romantismo, Reclus escrevia sobre um país de natureza exuberante, marcado pelas chagas da escravidão. Joaquim Nabuco certamente leu o geógrafo, bem como Euclides da Cunha. Este, por exemplo, falou da importância de Reclus para sua obra em uma carta para Coelho Neto em 30 de junho de 1908, enquanto preparava seu livro nunca realizado sobre a Amazônia, Um paraíso perdido.[15]

Para os historiadores, Reclus, o geógrafo, abre muitas portas de análise e possibilidades de conhecimento. Viagens e viajantes são a primeira a mais óbvia porta para o estudo de Reclus – mas muitas outras se entreabrem ao longo do extenso volume agora publicado, como o das relações entre Brasil e Estados Unidos, a do nascimento da geografia e das diferentes áreas humanidades, da história das cidades, das publicações e da importância da Revue des deus mondes, da história do marxismo e do anarquismo.

Notas

1. Em cada montanha, árvore e estrela – em cada nascimento/ e vida/ integrando cada sentido/ e se desdobrando dele, por trás da/ manifestação/ uma cifra mística espera dobrada.

2. Bradbury, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 97-119.

3. Crease, Robert. A medida do mundo: a busca por um sistema universal de pesos e medidas. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 139-147. O astrônomo Piazzi-Smith fez sua teoria para se contrapor ao estabelecimento do sistema métrico francês. Foi seu livro que deu subsídios para que se criassem diversas sociedades antimétricas no século XIX.

4. Duarte Horta, Regina. “Natureza e sociedade, evolução e revolução: a geografia libertária de Elisée Reclus”. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 51, janeiro-junho 2006. Consulta 21/07/2016. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000100002

5. Reclus, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/ Edusp, 2015, p. 52.

6. Clark, John P. e Martin, Camile. Anarchy, geography, modernity: the radical social thought of Elisée Reclus. Lanham: Lexington Books, 2004, p. 247.

7. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003.

8. Ver, entre tantos outros livros sobre a história da geografia, a recente publicação de Larissa Alves de Lira. O Mediterrâneo de Vidal de La Blache. São Paulo: Alameda Editorial, 2015.

9. Atanassoglou-Kallmyer, Nina. Cezanne and Provence: the painter in his culture. Chicago: Chicago University Press, 2003, p. 284.

10. Na mesma época ele também passou a fazer guias de viagem para a editora Hachette, patrocinadora de muitas de suas viagens.

11. Cardoso, Luciene Carris. “A visita de Élisée Reclus à sociedade de geografia do Rio de Janeiro”. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, vol. 1, n. 1, 2006 (ISSN 1980 – 9387). Consulta em 18/7/2016. (http://www.socbrasileiradegeografia.com.br/revista_sbg/luciene%20p%20c%20cardoso.html)

12. As diferenças e os conflitos entre a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foram explorados por Luciene Carris Cardoso no artigo “Notas sobre o papel da sociedade de geografia do Rio de Janeiro e sua contribuição sobre o saber geográfico no Brasil.” Revista Fenix de História e Estudos Culturais. Vol VII, ano 7, n.2. Consulta 19/7/2016. http://www.revistafenix.pro.br/PDF23/ARTIGO_12_LUCIENE_PEREIRA_CARRIS_CARDOSO_FENIX_MAIO_AGOSTO_2010.pdf

13. Reclus, Élisée. Estados Unidos do Brasil: geografia, etnografia, estatística. Tradução e breves notas de barão de F. Ramiz Galvão e anotações sobre o território contestado pelo barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899.

14. Costa, Wilma Peres. Narrativas de viagem no Brasil do século XIX: formação do Estado e trajetória intelectual. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006

15. Nogueria, Nathália Sanglard de Almeida. Margear o outro: viagem, experiência e notas de Euclides da Cunha nos sertões baianos. Rio de Janeiro: tese de doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 39.

Joana Monteleone – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: joana@alamedaeditorial.com.br


RECLUS, Élisée. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas e outros escritos. São Paulo: Intermezzo/Edusp, 2015. Resenha de: MONTELEONE, Joana. Elisée Reclus, o geógrafo impressionista. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 296-302, set./dez., 2016.

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History in the Digital Age | WELLER Toni

Esta obra trata do papel do historiador na era digital e do impacto da informática na área de História, dirigindo-se tanto a historiadores em exercício quanto a estudantes de História. Na introdução do livro, Toni Weller, pesquisadora visitante da Universidade de Montfort, no Reino Unido, assume que, atualmente, a História enfrenta desafios impostos pela crescente utilização do mundo digital no fazer historiográfico. Entre eles, talvez o principal esteja em definir uma postura rigorosa e profissional no tratamento de fontes e temas disponibilizados pelas mídias digitais. Discutir esse desafio é o intuito de History in the Digital Age.

O livro é dividido em quatro partes, além da introdução: “Re-Conceptualizing History in the digital age”, “Studying History in the digital age”, “Teaching History in the digital age” e “The future of History in the digital age”. Como os títulos sugerem, a divisão estrutura-se em pontos de tensão nas relações entre a era digital e o oficio de historiador em sentido amplo, compreendendo as diferentes áreas de atuação profissional: estudo, pesquisa e ensino.

Os três capítulos da primeira parte do livro tratam das dificuldades no uso de certas plataformas digitais e das possibilidades investigativas que elas fornecem. David J. Bodenhamer, em “The spacial humanities: space, time and place in the new digital age”, examina os limites do Historica Geographical Information System (HGIS) [1] quando utilizado para representar dados subjetivos como, por exemplo, noções de espaço e de espacialidade que afetam a percepção de “nós” e do “outro” (p. 25). Há também a atual impossibilidade dentro do GIS de representar o mundo como esfera proveniente da cultura e das relações políticas, e não simplesmente como delimitação físico-geográfica. De acordo com o autor, o HGIS provoca o “achatamento” do mundo, uma vez que o ambiente físico se apresenta deslocado de seus agentes e fenômenos culturais (p.26). Assim não seria possível deduzir da análise dos dados do sistema, por exemplo, que o crescente desmatamento da Mata Atlântica se deu por fatores humanos e não puramente climáticos. Para o autor, se esse empecilho pudesse ser resolvido pelos historiadores, estaríamos diante de uma forma completamente nova de olhar para o passado, tornando nossos modos de apreensão e compreensão muito mais complexos.

Luke Trenidinnick é o autor do segundo capítulo, “The making of history: remediating historicized experience”, que trata de como as lentes do mundo digital alteram nossa visão do passado. Aqui a luz da subjetividade no fazer historiográfico é mais uma vez acesa, abordando o impacto da digital na percepção do presente e do passado por formas de disseminação, compartilhamento e representação criadas em redes sociais. Para o autor, a “digitalização do mundo” traz a novidade da historicidade do documento digitalizado como parte da narrativa histórica, o que o desloca em parte de seu contexto original, transferindo-o do mundo físico para o da esfera digital. Há aqui uma discussão em torno da questão do armazenamento do documento digital, uma vez que a web não é, por natureza, um arquivo centralizado com mecanismos inteligentes de busca, mas um emaranhado mais ou menos caótico de dados massivos.

O último capítulo da primeira parte, “A method for navigating the infinite archive”, um esforço conjunto de William J. Turkel, Kevin Kee e Spencer Roberts, elucida o uso potencial do vasto campo de informações aberto pela era digital, o qual expandiu exponencialmente a disponibilidade de documentos e arquivos – nascidos digitais ou digitalizados – à disposição do historiador. Segundo os autores, mecanismos de busca, de feeds e newsletters, dentre outros, por ser ferramentas que analisam os símbolos contidos no documento, permitem que o historiador se preocupe mais com a interpretação de suas fontes que com a quantidade das fontes em si.

Os cinco capítulos subsequentes configuram a segunda e terceira partes do livro, que tratam da relação entre tecnologias digitais, estudo e ensino de História. Jim Mussel, em “Doing and making: History as a digital practice”, salienta que o ambiente virtual não é uma simples réplica do real, existindo em seus próprios termos e experiências. Segundo o autor, os meios de pesquisa digitais utilizam uma perspectiva diferente da humana, baseada em Optical Character Recognition (OCR) [2], uma tecnologia na qual a localização dos termos depende em grande medida da qualidade da digitalização do documento. Em muitos casos, por má digitalização ou pela ilegibilidade ótica do OCR, documentos não se submetem aos mecanismos de busca, ficando relegados ao uma espécie de limbo digital. Isso faz que, por mais vasta que seja a quantidade de itens digitalizados em determinada série, coleção ou acervo, ainda possa haver obstáculos à plena exploração dos documentos. O que se mostra aqui é uma cultura que diverge da cultura impressa, implicando nova dinâmica tanto na pesquisa quanto na escrita do historiador.

Rosalind Crone e Katie Halsey, em “On collecting, cataloguing and collating the evidence of reading”, trazem à tona outra condição específica do mundo digital. Ao analisar a plataforma Reading Experience Database (RED) [3], as autoras expressam desconforto com a tendência do mecanismo em oferecer uma história parcial dentro da narrativa histórica, pois os relatos se encontram deslocados de sua localidade inicial de experiência e do seu contexto específico. Com a catalogação da experiência de leitura de pessoas do passado, a informação sofre deslocamento de seu aporte original, visto que se perde a dimensão que engloba não somente a fisicalidade do documento que contém o relato da experiência, como também as circunstâncias em que ele foi produzido. Por exemplo: o papel do documento pode conter traços químicos específicos da época de sua elaboração, sendo possível deduzir dele informações além das que estão escritas. A transcrição esvazia então parte da experiência. Porém, a não ser pelo RED, muitas dessas narrativas seriam inacessíveis à maior parte da população.

O capítulo seguinte, “Writing history with the digital image”, de Brian Maidment, também trata do deslocamento de contextos originais de produção de um documento que a digitalização provoca. As imagens digitalizadas, por exemplo, sofrem mediações como alteração de cor e tamanho, causados, digamos, pela distorção do processo ou pela necessidade de se ocupar menos espaço no servidor. Além disso, a digitalização implica a perda de qualidades físicas do documento, como seu cheiro e textura, o material de que é feito etc. Isso aponta para a necessidade de se criarem metadados relativos ao arquivo digitalizado, em prol da aproximação do historiador com a experiência primordial que originou o documento.

Em “Studying the past in the digital age”, Mark Sandle discute questões derivadas da pesquisa online, como autoria e copyright, a impermanência dos websites e a consequente dificuldade de localizar fontes nesse meio, bem como novas formas de interação entre historiadores por e-mails, fóruns online ou seções de comentários em blogs e sites. Segundo Sandle, há clara democratização tanto da disponibilidade de fontes primárias, livros, artigos e publicações quanto da escrita, disseminação e discussão. Outro ponto importante do texto diz respeito à desigualdade do acesso à tecnologia, o que minaria o potencial de transformação que o mundo digital possui.

O tema é retomado por Charlotte Lydia Riley em “Beyond the crtl+c, crtl+v: teaching and learning history in the digital age”. Riley menciona a forte clivagem geracional entre indivíduos nascidos antes e depois da era digital. Isso influenciaria a educação não institucional desses indivíduos, sendo impossível determinar o impacto social do fenômeno. Outro contraponto geracional que Riley destaca é a resistência de professores acadêmicos ao uso da tecnologia, o que teria efeitos sobre a atualíssima e dramática questão em torno de autoria e plágio, uma vez que traçar a origem de uma ideia ou conceito na esfera virtual é muito mais complicado que no aporte físico dos livros. Esse problema abre precedente para um questionamento constante da idoneidade dos trabalhos acadêmicos, além de borrar as fronteiras entre autoria e refereciamento de ideias alheias em produções acadêmicas.

A parte final da obra debate desafios na prática do historiador na era digital. “New universes or black holes? Does digital change anything?”, de David Thomas e Valerie Johnson, aponta para uma possível obsolescência da palavra arquivo no futuro, uma vez que a tendência atual é a de que todo material digital seja preservado. A eventual extinção dos arquivos poderia anular um papel fundamental que eles desempenham: o processamento dos documentos, sua separação e categorização. Arquivos procedem à análise prévia dos documentos, com sua subsequente organização segundo temas, períodos ou tipos. Eliminado o processo de arquivamento, todas as tipologias adjacentes também desapareceriam, colocando-se os documentos em estado bruto de armazenamento. Tornar-se-ia então papel do historiador construir novas tipologias e catalogações afeitas ao universo da era digital.

History in the Digital Age é uma rica contribuição para o debate já em curso há anos acerca das plataformas e recursos digitais para a investigação histórica. Com o objetivo de servir como panorama geral introdutório, o livro apresenta relevantes questões sobre o universo digital que os historiadores teremos de enfrentar nos próximos anos. É evidente, porém, que enfrentamos dilemas que vão além das limitações na obra apresentadas. A crescente presença do mundo digital no cotidiano altera a própria percepção de tempo histórico. Nesse sentido, também é necessário refletir sobre as implicações do uso digital para além dos computadores, problema apenas levemente pincelado na obra e que mereceria maior desenvolvimento.

Outra questão por realçar é a ideia de democratização do conhecimento associada à esfera digital. É inegável que a pesquisa historiográfica se torna mais fácil mediante o acesso instantâneo a acervos de qualquer parte do mundo. Contudo, não podemos nos desvencilhar do fato de que o acesso à internet é muito desigual no mundo – uma pessoa no Tibete não está necessariamente conectada da mesma forma que outra em Nova York -, e esse limite físico da conectividade (que também é uma forma de limite social) influencia a forma como nos relacionamos com a digitalidade, tornando inevitável a hierarquização da produção e absorção de conhecimento pela plataforma digital. Segundo o Center for World University Rankings, as 10 universidades que estão no topo das 100 melhores universidades do mundo são americanas ou britânicas. O impacto da diferença de acessibilidade aqui não podia ser mais explícito.

As questões apresentadas se agravam ainda mais por ser a internet extremamente amorfa e mutável. A rede mundial de computadores existe como um espaço que, apesar de análogo ao mundo físico (mundo real), se encontra em parte deslocado dele, e isso acaba por torná-la um espaço de experiência que também se encontra parcialmente deslocado do mundo físico. Como então apreender um mundo virtual dentro do mundo real? Como pensar essas espacialidades imateriais contidas dentro de outras espacialidades materialíssimas? Como pensar numa existência da temporalidade própria da digitalidade e o imediatismo que ela proporciona num mundo onde a acessibilidade não é a mesma em todos os lugares? Esses são, em parte, os dilemas que os historiadores enfrentarão na era digital, dentre muitos outros que provavelmente surgirão no futuro. Para sua discussão inicial, History in the Digital Age tem muito a oferecer.

Notas

1HGIS ou Sistema de Informações Histórico-Geográficas (tradução livre) é uma base digital de levantamento geográfico originalmente utilizada para fins econômicos, ambientais e militares, e que permite mapear mudanças geológicas e demográficas que um território sofreu. Atualmente vem sendo cada vez mais utilizada pelos historiadores.

2OCR ou Reconhecimento Ótico de Caracteres é uma tecnologia de pesquisa que utiliza símbolos pré-definidos com base em arquivos de imagem digitalizados, permitindo a edição de documentos digitalizados assim como a localização de palavras especificas dentro de documentos que não se originaram na plataforma digital.

3RED ou Database de Experiência de Leitura faz um levantamento das experiências de leitura dos britânicos, sejam em território nacional ou fora dele, com mais de 30 mil entradas que abrangem dados de 1450 a 1945.

Julia Zanardo – Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: juliazgrespan@gmail.com


WELLER, Toni (Org.). History in the Digital Age. Nova York: Routledge, 2013. Resenha de: ZANARDO, Julia. Desafios do historiador na Era Digital. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 303-307, set./dez., 2016.

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Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, 1570-1640 | David Wheat

Recent studies of colonial and early national Brazil emphasize that the transatlantic slave trade forged not only economic but also cultural and political connections across the South Atlantic. As historians including Walter Hawthorne, Roquinaldo Ferreira, Mariana Candido, Paul Lovejoy, and James Sweet highlight how regular and sustained exchanges between West Africa and Brazil shaped societies on both sides of the ocean, they also offer new geographies for understanding the Lusophone Atlantic. In his new book, David Wheat engages with models of reciprocal exchange and inter-colonial connection in order to redraw the boundaries of the Atlantic World in an earlier period. Analyzing early modern Iberia, Africa, and Latin America as “complementary aspects of a single, unified history” (73), Wheat traces how developments in one area reverberated in the others. Doing so allows him to persuasively argue that the sixteenth- and seventeenth-century Spanish Caribbean should be viewed not as a precursor to the sugar colonies that later came to dominate much of the region, but as a natural extension of economic, social, and political precedents established in West Africa and the Luso-Atlantic world.

In addition to avoiding a teleological analysis of the rise of the plantation complex, Wheat’s innovative and deeply-researched book contributes to a growing body of work aimed at reconceptualizing the Atlantic World and the roles of African people within it. Enslaved Africans and their descendants constituted a demographic majority not just in export-oriented plantation economies, but in settlements that relied on mixed agriculture. In slave societies of this nature, which were first established by the Portuguese in Atlantic islands such as São Tomé and later replicated by Spanish colonizers in the Caribbean, African people performed many of the same functions as peasants in contemporaneous Iberia. Wheat shows how Africans’ diverse labors – as well as their very presence – strengthened Spanish expansion in the Americas. Not unlike their fellow ‘involuntary colonists’ in eighteenth- and nineteenth-century Brazil, these men and women also drew on their experiences in the broader Atlantic World in order to shape the foundations of new American societies in ways that historians are only beginning to appreciate. Drawing on archival materials housed in Colombia, Cuba, Spain, and Portugal, Wheat weaves together the histories and historiographies of Latin America, Iberia, and West Central Africa in order to emphasize a shared past that present-day boundaries tend to obscure. The resultant work highlights the possibilities of extending models of an interconnected Atlantic World backwards in time and across perceived political and geographic borders.

The first half of Wheat’s book is firmly grounded in the history and historiography of West Africa. Responding to critiques of the ‘foreshortening’ of African history, chapter one highlights continuities in African political and cultural identities from the thirteenth through the seventeenth century and beyond. As Wheat surveys key territorial, ideological, and political contests between a host of African states in the Upper Guinea and Senegambia regions, he demonstrates how these conflicts gave rise to slave raiding, which in turn provided captives for export. Attention to the tierra or ethnonyms of these captives – which Spanish officials carefully recorded in sixteenth-century slave ship rosters – allows Wheat to reconstruct the geographic and cultural origins of the enslaved. The fact that these ethnonyms were recognized and retained specific meanings for both Africans and Iberians in the early colonial Americas is important. In contrast to the plantation era, in which the mechanisms of colonial control often reduced Africans to an undifferentiated mass of people, in the early colonial period social and political identities forged in Africa continued to resonate in the diaspora. In his wide-ranging analysis of how events on the continent affected early colonial society, Wheat displays an impressive grasp of African history while also laying a compelling foundation for his interpretation of the Spanish Caribbean as an extension of West Africa.

Attention to the interconnected histories of Africa, Iberia, and the Americas carries into Wheat’s second chapter, which focuses on Angola. While most of the earliest Africans trafficked to the Spanish Caribbean came from Upper Guinea, in the seventeenth century Angola became a major point of embarkation for enslaved people. Arguing that Portuguese colonization of Africa and Spanish colonization of the Americas “mutually reinforced one another” (103), Wheat traces how the creation of the Luso-African state generated many of the captives who were then trafficked to the Caribbean. Elites who profited from the slave trade in Luanda also played active roles as merchants in Caribbean ports, thereby extending their influence and commercial relations across the Atlantic and further cementing ties between Portuguese West Africa and the Spanish colonies. Owing to a combination of factors – including the nature of warfare in West Central Africa and legislation favoring the introduction of enslaved people under age seven – many of the people forcibly transported across the Atlantic in the seventeenth century were children. As Wheat explores in later chapters, this in turn shaped the character of Spanish colonial society, as enslaved children more quickly adapted to Iberian linguistic, religious, and social norms.

Chapter three further develops Wheat’s argument that the character of Spanish Caribbean society was informed by Atlantic Africa. Wheat focuses on Portuguese tangomãos: merchants or mariners who ‘threw themselves’ into Africa, spending longer than one year and one day on the continent. In doing so, Wheat challenges the widespread misconception that the encounter between Africans and Europeans in the Americas always constituted a violent collision between two cultures with no prior experience of one another. Instead, Wheat shows that many men who went to the Caribbean did so after spending extended periods of time in Africa. These tangomãos then drew on their experiences to contribute knowledge of African languages and cultural practices that would have been unknown to colonists who arrived in Spanish America directly from Iberia.

Many tangomãos formed relationships with African women during their time away from Europe, further facilitating both commercial and cultural exchange. These and other gendered relationships inform Wheat’s fourth chapter, in which he emphasizes the predominance and importance of women in free-colored communities in the early Spanish Caribbean. Wheat’s attention to women makes an important intervention in the historiography of early colonial Afro-Latin America, which often focuses on the role of African men as military agents. Equally significant is Wheat’s critique of two notions that often inform discussions of interracial relationships in the colonial era: first, that unions between African or Afro-descended women and European men were generally viewed as illicit or socially unacceptable, and second, that these unions owed to a dearth of white women. While acknowledging the often unequal or exploitative nature of such relationships, Wheat works to dispel these notions by emphasizing the prevalence of legitimate – if often informal – interracial unions both in Africa and in Iberia.

Like their counterparts in Africa, Brazil, and elsewhere in the Atlantic World, women of color in the early Spanish Caribbean occupied a variety of roles. As sexual and marital partners, business people, and the owners of land and slaves, women were instrumental in shaping these societies. Wheat shows that African-born women who were incorporated into Spanish colonial society often shed their ethnonyms in favor of Iberian surnames, suggesting that changes in legal and social status accompanied changes in the identity that individuals claimed or were ascribed over the course of a lifetime.

Chapter five develops Wheat’s central argument that Africans and their descendants fulfilled the role of colonists in the early Spanish Caribbean. By the turn of the seventeenth century, the demographic profile of the Spanish Caribbean had much in common with that of other slave societies throughout the Americas; Africans and their descendants constituted a majority of the population in western Cuba, Hispaniola, Cartagena, Panama, and probably Puerto Rico. The occupations and the experiences of these men and women differed dramatically from those of their counterparts in sugar colonies, however. In these ‘African hinterlands’ of Latin America, free and enslaved black people grew food, raised livestock, and performed many of the same functions as rural peasants in contemporaneous Iberia. Wheat’s expansive view of the early Atlantic allows him to show that Spanish reliance on Africans to fuel self-sustaining farming and ranching economies was not unique; the practice was already well-established by the Portuguese in the Atlantic islands, where enslaved populations labored on mixed-agriculture farms rather than monocultural plantations.

In the final chapter of his book, Wheat further advances the argument that Africans and their descendants played essential roles in expanding Spanish claims to territory and legitimacy in the Americas. Paying careful attention to the terms used to describe Africans in Iberian commercial, legal, and ecclesiastical records, Wheat focuses on the process of acculturation. He argues that the difference between a ‘bozal’ and a ‘ladino’ was more than just place of origin; rather, such terms reflected the possibilities open to individuals of African descent within colonial society. Once again, Wheat artfully reorients the geography of the Spanish Atlantic to include Lusophone Africa. Drawing on historians of the region such as John Thornton and Peter Mark, Wheat shows that acculturation began on the Africa’s western coast, where decades of contact between Portuguese and African merchants provided a basis for mutual exchange. Although What is careful not to overstate African agency, he explores the ways in which Africans helped shape key features of Spanish Caribbean society, situating them as actors rather than passive recipients of the acculturation process. Whether as interpreters or godparents, ‘Latinized’ Africans selectively borrowed elements of Iberian culture in order to adjust – and to help others adjust – to life in the Americas. Wheat also stresses that the acquisition of a European language or religious practice did not necessarily signify the loss of African culture; newly-baptized slaves often shared an ethnonym with their godparents, further illustrating how links forged in Africa continued to inform relationships in the diaspora.

The historiographic stakes of Wheat’s work are high. In six chapters, he challenges the notion that the circum-Caribbean was a marginal or anomalous region of colonial Latin America; redraws the boundaries of the Spanish Caribbean to include Lusophone West Africa; and situates Africans as colonists-albeit involuntary ones-whose labor and presence underpinned Iberian colonial projects while simultaneously shaping early American society. His many interventions promise to inform future scholarship on Latin America and the Caribbean, West Africa, and the role of the Portuguese in the early Atlantic World. Missing from this otherwise ground-breaking and cogently-argued work is a detailed consideration of how Iberian geopolitics impacted the colonial sphere. The origins and specific effects of the Iberian Union-a sixty-year period (1580-1640) during which the same Hapsburg rulers controlled both Spain and Portugal-remain somewhat underdeveloped. Wheat notes that the union facilitated the traffic of some 450,000 enslaved people, as well as the circulation of untold numbers of Portuguese merchants between Iberia, Africa, and the Americas. But one is left wondering whether the unified history he describes would even have been possible without a decades-long era in which the division between Castile and Portugal “was especially blurred” (16). Although Wheat’s decision to devote equal attention to West Africa and the Spanish Caribbean accurately reflects the primacy he affords to events on the ground rather than abstract legislation, drawing the Iberian Peninsula more fully into this story may have further elucidated the inter-continental and inter-imperial exchanges he uncovers.

Studies of the transatlantic slave trade and the rise of the plantation complex continue to offer important insight on African contributions to colonial societies in Brazil and beyond. With Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, David Wheat pushes this model backwards in time, demonstrating the importance of African and Afro-descended peoples in a time and place where the plantation system did not predominate. His nuanced discussion of how events in Africa, as well as West Central Africans themselves, shaped some of the earliest settlements in the Americas significantly broadens and reorients existing understandings of the inter-connected nature of the Afro-Atlantic World. Viewed from the vantage point of West Africa and the Portuguese Atlantic, the early Spanish Caribbean looks not like an aberration in colonial Latin America history, but a natural product of longstanding relations and practices on the African coast.

Tessa Murphy Syracuse – University, Nova York NY, Estados Unidos da América. E-mail: temurphy@maxwell.syr.edu


WHEAT, David. Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, 1570-1640. Chapel Hill: Published for the Omohundro Institute of Early American History and Culture. Williamsburg, VA: by the University of North Carolina Press, 2016. Resenha de: SYRACUSE, Tessa Murphy. New Geographies of the Atlantic World: Connecting Lusophone Africa and Spanish America. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 308-313, set./dez., 2016.

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Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals – GRUEN (C)

GRUEN, Lori. Entangled empathy: an alternative ethic for our relationships with animals. New York: Lantern Books, 2015. Resenha de: MARIN, Ana Paula Foletto; TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 672-677, set/dez, 2016.

Recentemente, empatia se tornou um tópico de interesse em múltiplos campos profissionais (e.g., direito, administração, recursos humanos, etc.), além de alvo de pesquisa em diferentes áreas do conhecimento (e.g., psicologia, filosofia, neurociência, etologia, etc.).

Embora empatia seja um termo constantemente empregado como se o seu significado fosse aceito por todos, é surpreendentemente difícil encontrar uma base comum entre especialistas não apenas no que concerne à melhor maneira de defini-la, mas também de entendê-la. Leia Mais

Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática – SCHWARTZ (C)

SCHWARTZ, Suzana. Motivação para ensinar e aprender: teoria e prática. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: CAMPOS, Paulo Tiago Cardoso de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 21, n. 3, p. 660-665, set/dez, 2016.

O ponto de partida para a elaboração da obra de Suzana Schwartz incluiu uma pesquisa realizada no início de seu doutorado, a qual apurou este resultado: 75% dos 200 respondentes a um questionário, todos professores-alfabetizadores, declararam ser a “falta de motivação para aprender” a razão para a não aprendizagem de seus alunos. A autora afirma que há estudos que revelam decréscimo de motivação para a aprendizagem entre o início da Educação Básica e o quinto ou sexto ano. Na obra, a autora ocupa-se de questões que a inquietam intelectualmente, como: O que leva os alunos ao interesse e esforço para aprender, e em que medida isso depende deles ou do ambiente que os cerca, incluindo a sala de aula e o professor, em especial? Quais são as consequências da ausência de motivação, ou, ainda, da desmotivação, para a aprendizagem? De que maneira a motivação se relaciona com o trabalho docente?

A definição geral de motivação mais destacada pela autora considera que, inicialmente, há motivos ou metas que as pessoas definem (como, por exemplo, a busca de qualificação profissional), enquanto motivação é o processo através do qual os motivos surgem, se desenvolvem e mobilizam comportamentos. É aquilo que produz energia inerente às ações e aos meios de executá-las, e é afetado por fatores cognitivos e afetivos, tendo-se em vista experiências anteriores dos sujeitos, crenças e valores e aspectos contextuais (alguns desses sob controle do professor). Leia Mais

Cidade latinoamericana / Urbana / 2016

Ciudad latinoamericana: teorías, actores y conflictos

A finales del siglo XIX Latinoamérica culmina el tránsito de un sistema de ordenamiento territorial basado en las ciudades-república y hereditario de los sistemas imperiales español y portugués hacia uno caracterizado por repúblicas de ciudades (Mejía, 2013). Al despuntar el siglo XX la ciudad, especialmente cuando llevaba el estatus de capital, se convertía en un espacio dinámico de circulación de personas, mercancías e ideas. Así, simultáneamente durante la primera mitad del siglo pasado, en algunas de ellas se iniciaron debates y reflexiones sobre temas similares como la puesta en marcha de proyectos de urbanismo, la construcción de medios de transporte modernos o la creación de redes de servicios públicos. La difusión de estas discusiones a través de revistas de sociedades profesionales y académicas así como la realización de los primeros congresos internacionales de municipios, o las primeras conferencias internacionales entre grupos de profesionales y expertos locales y extranjeros daban lugar a los primeros intercambios intelectuales a nivel latinoamericano cuyo objeto de estudio era la ciudad misma. Ahora bien, a pesar de las herencias compartidas y de las similitudes entre ciudades, la idea de ciudad latinoamericana surge como proyecto intelectual sólo desde la segunda mitad del siglo XX.

La ciudad latinoamericana es subsidiaria de la construcción de la propia idea de América Latina. Es decir, una noción y un nombre articulados a una doble oposición: como ´nuevo mundo´, opuesto a Europa, y como ´latina´, opuesta a la América Sajona, la del norte (Altamirano, 2005). Esa doble diferenciación es constitutiva de la idea de América Latina, nombre que en determinadas coyunturas político-intelectuales ha eclipsado otros intentos de identificación regional tales como el de Sudamérica, Hispanoamérica, Nuestra América o Iberoamérica.

La referencia a ciudades adjetivadas como latinoamericanas precisa otras consideraciones más específicas. Buenos Aires, Santiago de Chile, São Paulo, Caracas, Lima y Ciudad de México, entre otras, comparten similitudes y diferencias. Su inserción geográfica o el compartir un pasado colonial no permiten su mera identificación y unificación como ´ciudades latinoamericanas´, obviando, por ejemplo, sus dispares procesos de urbanización a lo largo del tiempo.

Una estrategia de abordaje de este asunto ha sido entender la ´ciudad latinoamericana´ como construcción cultural, cuya existencia se verifica entre los años cincuentas y setentas del siglo pasado, es decir, mientras hubo voluntad intelectual de construirla como objeto de conocimiento y acción así como actores e instituciones dispuestos a hacer efectiva esa vocación (Gorelik, 2005).

Realidad y representación, la ciudad latinoamericana comparte diversos procesos sociales, económicos, políticos y urbanos así como se construye conceptualmente a partir de diversas redes e instituciones. Uno de sus interrogantes centrales consistió en cómo abordar e intervenir sobre los procesos de urbanización en América Latina. Las respuestas ensayadas hicieron reaparecer la aludida doble oposición que signaba a la idea de América Latina, en tanto se interrogaban las diferencias respecto a procesos previos de urbanización en contextos centrales así como los eventuales aprendizajes a extraer de los mismos.

La idea de ´ciudad latinoamericana´ fue producida entre la década del cincuenta y del setenta a partir de intercambios intelectuales entre instituciones como la Sociedad Interamericana de Planificación, la Comisión Económica para América Latina, el Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social, la Organización de Estados Americanos, la Organización de las Naciones Unidas, la Comisión de Desarrollo Urbano y Regional de Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, múltiples centros de estudios e investigaciones así como los nacientes organismos de planificación urbana y regional. A pesar de sus diferencias, esas organizaciones promovieron la producción de teorías e investigaciones sobre la ciudad latinoamericana a partir de conceptos desplegados en la propia región. Así, postulaban que los acelerados procesos de urbanización en América Latina tenían diversas especificidades y señalaban inconvenientes respecto a la preeminencia de teorías y herramientas provenientes de ´contextos centrales´. Sin embargo, la propia producción de la idea de ´ciudad latinoamericana´ supuso tanto el accionar de expertos latinoamericanos – muchos de los cuales habían sido formados en los Estados Unidos – como la colaboración e interlocución – a partir de financiamientos, visitas e investigaciones – con instituciones e investigadores de los Estados Unidos y, en menor medida, de Europa.

De los múltiples recorridos posibles para abordar la ´ciudad latinoamericana´, cabe destacar tres momentos protagonizados por una serie de actores (instituciones, académicos y movimientos sociales), ideas (desarrollo, modernización, dependencia) y conflictos.

Tras el fin de la Segunda Guerra Mundial, las ideas promovidas desde organismos como la Comisión Económica para América Latina (Prebisch, 1950), consolidan en América Latina la voluntad político-intelectual de aprovechar las ventajas del sub-desarrollo. Así, buscaron impulsar un “crecimiento hacia adentro” a través de una política de industrialización por substitución de importaciones que hiciera posible la modernización productiva del continente. En ese contexto, las ciudades latinoamericanas son vistas de manera ambivalente. Por un lado, son valoradas como vectores y principales promotoras de esa modernización. Por otro, son abordadas como el escenario de una serie de asincronías que impedían superar los rasgos más persistentes de la sociedad tradicional: urbanización sin industrialización, reducción de las tasas de mortalidad a la par de altos niveles de natalidad, incremento de la migración campo-ciudad sin capacidad de esta última de procesar la presión demográfica, entre otros aspectos (Germani, 1973). Estos elementos configurarían el que sería el principal rasgo de la ciudad latinoamericana: la marginalidad.

El fenómeno de la marginalidad será señalado como el principal obstáculo para el desarrollo. Por un lado, por evidenciar la incapacidad de los sistemas económicos de la región para incorporar al proceso productivo a aquellos grupos que se desempeñan en áreas de escasa cualificación y productividad (Rosenblüth, 1968). Por otro, por la amenaza política que representaba la avalancha popular sobre las urbes en los diferentes formatos de vivienda precaria (barriadas en Lima, callampas en Santiago de Chile, favelas en Río de Janeiro, villas miseria en Buenos Aires, etc.) (Rios, 1960). Asimismo, será definida como la falta de participación y pertenencia a la sociedad de un sector de la misma que queda excluido de la vida urbana moderna por la persistencia en su comportamiento de rasgos culturales rurales y tradicionales (Vekemans y Silva, 1969). La marginalidad inaugura un período pesimista en el pensamiento social de la región, en la medida que pasa a ser identificada como un anatema de la modernización. Sin embargo, al asumir que tenía un carácter transitorio se reforzaba la confianza en las políticas de reforma urbana como posible solución.

A finales de los años 60, la Teoría de la Dependencia consolidará el pesimismo intelectual al reconsiderar el sub-desarrollo y la marginalidad. Éstos ya no serán abordados como una mera etapa susceptible de ser superada, sino como elementos inherentes de la dinámica capitalista que, para su desarrollo, requiere de una división internacional del trabajo en la cual le cabe a América Latina una posición subordinada (Cardoso y Faletto, 1969). Este giro tendrá dos consecuencias para la ciudad latinoamericana: por un lado, la consolidación de una teoría regional que identifica al subcontinente como parte de la periferia capitalista; por otro lado, la comprensión de la marginalidad como un producto de las tendencias estructurales de sociedades de esa periferia dependiente. La existencia de un polo o masa marginal, afuncional para la acumulación capitalista, será el eje central de una teoría de la “Urbanización Dependiente” que buscará articular la historia del fenómeno urbano y sus correspondientes desequilibrios a las sucesivas formas de dependencia de América Latina (Quijano, 1967).

A partir de este punto, el polo marginal dejará de ser definido como masa para ser conceptualizado como un actor central de los procesos de cambio social. Así, a partir de la experiencia de los pobladores chilenos durante el gobierno de Salvador Allende, surge la categoría de “Movimientos Sociales Urbanos”, definidos como una forma novedosa y territorializada de lucha de clases (Castells, 1972). Desde otras claves teóricas y políticas, eran vistos como comunidades que proporcionan nuevas posibilidades para la reconstrucción social urbana en base a las vecindades, vínculos regionales y de parentesco, asociaciones de ayuda mutua y actividad política de pequeños grupos (Morse, 1965). Asimismo, se le atribuirá a estos grupos no solo la condición de víctimas de la expoliación urbana (Kowarick, 1979), sino además la de artífices principales de una ciudad democrática, sobre todo por las tomas y ocupaciones de terrenos que propiciaron, estableciendo lo que se consideró como una fisonomía propia de las ciudades latinoamericanas.

Desde la década del ochenta en adelante, las condiciones políticas y económicas cambian y cobran relevancia categorías alternativas a la ciudad latinoamericana. El reposicionamiento de España propicia la creciente centralidad de lo Iberoamericano, lo que implica el despliegue de nuevas redes de ciudades autodenominadas iberoamericanas – como la Unión de Ciudades Capitales Iberoamericanas o el Centro Iberoamericano de Desarrollo Estratégico Urbano – y la intensificación de la circulación de políticas urbanas promovidas por expertos catalanes, madrileños y andaluces en gran parte de América Latina.

Por otra parte, algunos de los actores que promovieron previamente la agenda de la ´ciudad latinoamericana´ abrazarían otras categorías tales como la de ´ciudades del tercer mundo´, ampliando el universo hacia ciudades de África y Asia. Posteriormente, ese desplazamiento tomará nuevas formas en términos teóricos y políticos alrededor de la idea de ´Sur Global´, deudora de aportes de las teorías poscoloniales.

Durante los años noventas, la problemática de la globalización y sus impactos sobre las ciudades de la región intensificarán la aludida deslatinoamericanización. Esto supuso una creciente focalización en otras geografías y conceptos, en tanto el destino de cada ciudad en América Latina comenzó a ser abordado en relación a actores que trascendían la región y estaban crecientemente desnacionalizados, como ser el capital trasnacional. En un marco de competencia entre ciudades, cada una de éstas buscó insertarse – aún de modo periférico – en un mapa de ciudades globales. Así, conceptos como el de “ciudad global” se deslizan desde lo descriptivo a lo normativo y son difundidos no sólo como categoría de análisis, sino también como el único e inexorable modelo capaz de garantizar la supervivencia de las ciudades en el contexto de globalización.

Las últimas décadas atestiguan el debilitamiento de la ciudad latinoamericana como construcción cultural y como proyecto político e intelectual. Sin embargo, algunos emprendimientos dan cuenta de su perduración aunque desde coordenadas políticas y teóricas diversas. Iniciativas de articulación regional de países, como el Mercosur, tuvieron un correlato en redes de ciudades como Mercociudades. Asimismo, se intensificó la circulación regional de variadas políticas urbanas producidas en América Latina, como ser: Porto Alegre y el presupuesto participativo; Medellín y Curitiba y las intervenciones en transporte urbano y diseño de espacios públicos; Bogotá y su modelo de ciclovías, entre otras. Desde el punto de vista académico, diferentes instituciones y redes perseveran en una interlocución regional, como serla Red Iberoamericana de investigadores sobre Globalización y Territorio y grupos de trabajo específicos del Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, a la vez que diversas iniciativas prosiguen interrogándose sobre la especificidad de la urbanización en América Latina y la necesidad de producir conocimiento en y sobre la región, tales como la Red Latinoamericana de Investigadores sobre Teoría Urbana, entre otras. Por otra parte, variados movimientos sociales articulados con sectores académicos y políticos han insistido en movilizar un imaginario latinoamericano que reivindica una cierta geopolítica de la resistencia regional ante lo que consideran como procesos de urbanización excluyentes, como ser remociones, segregación urbana y gentrificación. En esa dirección, se destaca la apropiación y circulación regional de perspectivas como las del derecho a la ciudad.

Para este número especial tenemos la oportunidad de presentar un dossier que incluye una selección de las ponencias presentadas durante la mesa “La ciudad latinoamericana: teorías actores y conflictos (Siglo XX-XXI)”, la cual tuvo lugar en el IV Congreso de la Internacional del Conocimiento en la ciudad de Santiago de Chile en octubre de 2015. Este evento se desarrolló en los locales de la Universidad de Santiago y tuvo el auspicio del Instituto de Estudios Avanzados (IDEA-USACH). El objetivo planteado en este simposio fue comprender la cuestión urbana en América Latina a partir de las teorías que buscaron pensarla, de los actores que la animaron y de los conflictos que le dieron forma.

En esta ocasión quisimos incluir artículos que abordaran desde disciplinas y perspectivas distintas elementos que permitan comprender procesos asociados a la producción y evolución de la ciudad latinoamericana. En ese sentido, los distintos artículos plantean perspectivas desde lo geográfico, lo político, lo económico, lo histórico, lo social y lo cultural.

Referências

ALTAMIRANO, Carlos. Para un programa de historia intelectual y otros ensayos. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.

CARDOSO, Fernando; FALETTO, Enzo. Desarrollo y dependencia en América Latina. México: Siglo XXI, 1969.

CASTELLS, Manuel. La cuestión urbana. México: Siglo XXI, 1972.

GERMANI, Gino. El Concepto de Marginalidad: Significado, raíces históricas y cuestiones teóricas, con particular referencia a la marginalidad urbana. Buenos Aires: Nueva Visión, 1973.

GORELIK, Adrian. 2005. A produção da ´cidade latinoamericana´. Tempo Social, vol. 17, n. 1, 2005, p. 111-133.

KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

MEJÍA, Germán. La aventura urbana de América Latina. Madrid: Fundación Mapfre, Taurus, 2013.

MORSE, Richard. 1965. Recent Research on Latin American Urbanization: A Selective Survey with Commentary. Latin American Research Review, vol. 1, n. 1, 1965, p. 35-74.

PREBISCH, Raúl. The economic development of Latin America and its principal problems. New York: United Nations, 1950.

QUIJANO, Anibal. Dependencia, Cambio Social y Urbanización en Latinoamérica. Santiago: División de Asuntos Sociales CEPAL, 1967.

RIOS, José, ed. Aspectos Humanos da Favela Carioca – estudo sócioeconômico elaborado por SAGMACS. Sao Paulo: O Estado de Sao Paulo, 1960.

ROSENBLÜTH, Guillermo. Problemas Socio-Económicos de la Marginalidad y la Integración Urbana. Revista Paraguaya de Sociología, vol. 5, n.11, 1968, p. 11–74.

VEKEMANS, Roger; SILVA, Ismael. El Concepto de Marginalidad. En: DESAL (ed.) Marginalidad en América Latina: un ensayo de diagnóstico. Santiago de Chile: Herder, 1969, p. 15-63.

Guillermo Jajamovich – Instituto de Estudios de América Latina y El Caribe. E-mail: guillermopazjajamovich@gmail.com

Alexis Cortés – Universidad Alberto Hurtado. E-mail: cortes.alexis@gmail.com

Diego Arango López – École des Hautes Études en Sciences Sociales. E-mail: diegoarangolopez@gmail.com


JAJAMOVICH, Guillermo; CORTÉS, Alexis; LÓPEZ, Diego Arango. Editorial. Urbana. Campinas, v.8, n.3, set / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História pública no Brasil: Sentidos e itinerários – MAUAD et al (RTA)

MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (orgs.). História pública no Brasil: Sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, 348p. Resenha de: FRAZÃO, Samira Moratti. História pública no Brasil: espaço de apropriações e disputas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.8, n.19, p.374-379. set./dez., 2016.

Na contemporaneidade, momento em que a história é vista midiaticamente como uma bússola para questões políticas, sociais, religiosas e culturais que emergem no presente, como refletir a necessidade de revisitar o passado com abordagens que fogem às práticas históricas institucionalizadas? Como pode ser traduzida fora do ambiente acadêmico essa produção ou intenção de propor um conhecimento histórico que se encontra em circulação em diversos suportes e tecnologias? A história pública pode ser uma das respostas a essas e outras questões abordadas no livro “História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários”, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz.

Para além de novas reflexões, a obra é uma continuidade ao trabalho empreendido em 2011, ano em que foi lançado o livro “Introdução à História Pública”, organizado por Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai. Posteriormente os pesquisadores, entre historiadores, comunicólogos e especialistas de diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, formaram a Rede Brasileira de História Pública (RBHP), cujos membros – dos quais se destacam Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida e Ricardo Santhiago, organizadores deste livro – propõem com “História pública no Brasil” conectar percepções atualizadas sobre a prática, considerada uma produção histórica “feita para, com e pelo público” (MAUAD, ALMEIDA & SANTHIAGO, 2016, p. 12, grifo dos autores). Leia Mais

História Pública: escritas contemporâneas de História / Revista Transversos / 2016

Com muito prazer, entregamos aos nossos leitores mais uma edição da revista de história TransVersos. Desta feita, além dos costumeiros artigos livres, apresentando um variado escopo de trabalhos pertinentes às linhas de pesquisa do LEDDES, propusemos um dossiê que repercutisse a prática e o valor social do ofício d@ historiad@r a partir do debate da complexa noção de história pública, cada vez mais presente entre historiadores e diferenciados movimentos e setores sociais no Brasil.

Nada mais atual, e ao mesmo tempo tradicional, do que a reflexão acerca do significado social da história. Por isso mesmo, as atuais discussões sobre a concepção de história pública no país têm necessariamente soprado ventos revigorantes mesmo entre aqueles que discordam da aplicação da expressão ao campo da história. Desde o evento precursor “Curso de Introdução à História Pública”, desenvolvido em 2011, na Universidade de São Paulo, o conceito e suas diversas aplicações reverberam pelo país, tanto no cenário acadêmico, convocando profissionais da área ao debate, quanto em outros campos e práticas que têm entre seus fazeres a produção de significado para o passado entre audiências não acadêmicas. Leia Mais

Contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares: caminhos teórico-metodológicos para a investigação sobre os manuais escolares na perspectiva da cultura escolar / Revista História da Educação / 2016

Durante as últimas três décadas disseminou-se, entre os historiadores da educação, um forte interesse pelo funcionamento interno da escola e pela história cotidiana das práticas escolares, a qual se convencionou chamar de cultura escolar. Das fontes históricas disponíveis para adentrarmos no universo das práticas e fazeres escolares, uma das mais profícuas tem sido o conjunto dos livros utilizados nas escolas. Desde a origem dos sistemas nacionais de educação, no começo do século 19, os manuais escolares têm ocupado um lugar privilegiado nas salas de aula de todos os países. Daí resulta a sua indiscutível relevância para a História da Educação.

Todavia, apesar de serem uma fonte valiosa, a pesquisa histórica sobre os manuais escolares tem estado reduzida ao campo dos emissores das mensagens, sobretudo no que se refere ao currículo prescrito pelas políticas e pela legislação escolar. Convictas da importância de tais análises para o campo da manualística e da história do currículo escolar acredita-se, todavia, que elas pouco têm contribuído para o avanço das investigações no campo da história da cultura escolar, haja vista que os manuais escolares, por si sós, dificilmente poderão proporcionar informações acerca da complexa história da prática nas salas de aula, das mediações e transformações realizadas pelos professores do conteúdo dos manuais escolares e de como as mensagens veiculadas nas salas de aula foram recebidas e decodificadas pelos estudantes.

Nessa perspectiva, nos últimos anos, alguns centros de investigação na área da manualística, em diferentes países, trilham novos caminhos teóricos e metodológicos em busca de vestígios ou evidências de como os receptores das mensagens, professores ou alunos, recebem, trabalham e decodificam as mensagens dos textos escolares. Dentre estes se destaca o Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes – em Madrid, na Espanha, que por meio de incursões pela história cultural, história do currículo, etnohistória, etnografia, cultura escolar, história de vida e das instituições escolares tem buscado acercar-se não apenas dos contextos de produção e de incorporação, mas dos contextos de recepção e de interpretação de sentido dos manuais escolares, ou seja, dos seus usos.

Nessa sua busca tem sido bastante profícuo o entrecruzamento do manual com fontes primárias complementares, provenientes dos contextos de recepção, tais como os diferentes tipos de cadernos escolares, exames, folhas de exercícios, diários de mestres e de alunos, informes de inspeção, atas de reuniões pedagógicas etc., as quais podem auxiliar o pesquisador a compreender como os professores e a escola em geral reagem diante do currículo a eles apresentado, permitindo uma maior aproximação do uso e do consumo que deles se fizeram e, consequentemente, da cultura escolar.

Neste sentido, busca-se apresentar investigações realizadas recentemente pelas pesquisadoras do Manes, da Espanha, e por pesquisadores brasileiros ligados a este Centro, os quais têm experimentado, de uma forma ou de outra, estes novos caminhos teórico-metodológicos no sentido de aproximar-se dos contextos de recepção e interpretação dos manuais escolares.

Abrindo o dossiê, Kira Mahamud e Ana Maria Badanelli, em Los contextos de transmisión y recepción de los manuales escolares: una vía de perfeccionamiento metodológico en manualística, apresentam os novos caminhos metodológicos ensaiados pelo Manes no que se refere ao que as autoras chamam de segunda fase de vida do manual escolar: os contextos de transmissão e de recepção. Nesse sentido, destacam a existência multicontextualizada do manual e os diferentes contextos de transmissão e de recepção: de um lado, professores e alunos e as fontes envolvidas em ambos: programas, diários, memórias, autobiografias e biografias de professores, e, de outro lado, cadernos e exames, para cuja análise mobilizam conceitos como os de inferência textual e contextual, intertextualidade e interdisciplinaridade.

Gladys Mary Ghizoni Teive, em Recepção de manuais escolares: um estudo a partir dos comunicados e das atas das reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard (1946-1952), privilegia duas fontes complementares ao estudo dos manuais escolares: os comunicados apresentados pelas professoras nas reuniões pedagógicas do Grupo Escolar Gustavo Richard entre 1946 e 1952 e as atas das mesmas. Estas três fontes entrelaçadas possibilitaram à autora perceber quais problemas eram enfrentados pelas mestras no seu dia a dia nas salas de aula, quais – dentre os manuais prescritos pelo Departamento de Educação de Santa Catarina – foram selecionados para ajudá-las a solucioná-los, como as mestras os utilizaram: se os textos foram extraídos literalmente ou se sofreram alterações por parte das professoras e, neste último caso, que tipo de mescla e ou fusão se operou entre a chamada cultura empírica das professoras e a cultura expressa nos manuais escolares lidos e, ainda, quais as suas representações a respeito das leituras realizadas.

O artigo assinado por Nicolas Martínez Valcárcel aborda o uso do livro didático pelos alunos, tanto nas aulas, quanto em casa, um âmbito raramente investigado na área dos manuais. As marcas presentes em cada manual, tal como os sublinhados, diagramas, símbolos, sínteses, permitiram ao pesquisador identificar as tarefas executadas pelos seus utilizadores, iniciadas em sala de aula e continuadas em casa. Por outro lado, o estudo simultâneo do livro com as anotações dos professores possibilitou compreender qual é o papel dos livros de texto na escola. Ademais, a avaliação das características positivas e negativas dos manuais e das anotações, associadas às preferências dos alunos por um ou outro, ofereceram, segundo as conclusões do autor, informações relevantes acerca do presente e do futuro de ambos os recursos a partir do conhecimento de um dos agentes: o alunado.

Em Manuais escolares para um ensino prático, Heloisa Helena Pimenta Rocha indaga sobre o lugar dos manuais escolares no ensino das noções de higiene nas escolas primárias paulistas, um ensino que, segundo as orientações e os programas aprovados nas primeiras décadas do século 20, deveria ser alicerçado na dimensão prática, no intueri, intuitus. Entrecruzando os manuais escolares voltados para o ensino de higiene e saúde com os programas de ensino e com fotografias que documentam aspectos das aulas de puericultura nos grupos escolares, Heloisa objetiva capturar, para além dos enunciados presentes nas obras, indícios das práticas escolares engendradas com o intuito de conformar os gestos de cuidado com o corpo e a saúde dos estudantes.

Finalmente, em Livro didático como indício da cultura escolar, Kazumi Munakata se debruça sobre as possibilidades de utilizar o livro didático como fonte para pesquisas sobre a cultura escolar. Para tal, discute as noções de livro didático, cultura escolar e cultura material e examina livros didáticos franceses, espanhóis, argentinos e brasileiros, destacando os elementos constitutivos da cultura escolar, como os conteúdos das disciplinas escolares, exercícios e atividades, avaliações, ideologias, valores morais e de civilidade, cotidiano escolar, sensibilidades estéticas, materiais escolares e organização das práticas de ensino.

Cabe destacar que este dossiê apresenta apenas uma pequena parcela do potencial de investigações em torno da segunda fase da vida dos manuais escolares: a da recepção e da interpretação de seus conteúdos por professores e alunos. Nosso intento é que esta coletânea de textos possa inspirar ao deciframento da caixa-preta da história da educação: a cultura escolar, a qual, supomos, guarda os padrões – patterns – essenciais que regulam a vida das instituições escolares.

Gladys Mary Ghizoni Teive – Professora na Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisadora associada do Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná com estágio sandwich e pós-doutorado no Centro de Investigación en Manuales Escolares – Manes / Uned. E-mail: gladysteive@gmail.com

Gabriela Ossenbach-Sauter – Doutora em Ciencias de la Educación e licenciada em História da América. Catedrática de Historia de la Educación e diretora do Centro de Investigación sobre Manuales Escolares – Manes – de la Universidad Nacional de Educación a Distancia, Madrid. Actualmente é presidente da Sociedad Española de Historia de la Educación. E-mail: gossenbach@edu.uned.es

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni; OSSENBACH-SAUTER, Gabriela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 20, n. 50, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial – CABRAL (VH)

CABRAL, Diogo de Carvalho. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2014. 536 p. VITAL, André Vasques. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 60, Set./ Dez. 2016.

A História é a ciência dos homens no tempo. Essa noção se inspira nas ideias de Marc Bloch e das primeiras gerações da Escola dos Annales. Trata-se de um lugar-comum que é onipresente na formação dos experientes e dos jovens historiadores. O leitor, após viajar pelos múltiplos fluxos materiais emaranhados, minuciosamente mapeados em Na Presença da Floresta, corre o sério risco de se questionar sobre a atual pertinência de considerar o humano como o único sujeito da História. O livro de Diogo de Carvalho Cabral apresenta uma nova abordagem que rejeita a centralidade do humano na História. Esse trabalho repensa a noção de agência e propõe uma metodologia mais relacional, incluindo os não-humanos como agentes ativos na História por meio de sua presença e materialidade na conformação de processos políticos, sociais, econômicos e culturais. Em meio às dramáticas transformações sociais promovidas por furacões, microorganismos, vetores de doenças e outras entidades direta e indiretamente fortalecidas pelas atuais mudanças climáticas, a obra de Diogo Cabral é um chamado aos historiadores e, principalmente, aos historiadores ambientais, a repensar o papel dos não-humanos na História.

Diogo Cabral, geógrafo e pesquisador do Departamento de Recursos Naturais e Meio Ambiente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, confeccionou sua obra a partir de um amplo diálogo transdisciplinar. História, Geografia, Ecologia e Filosofia, são as principais áreas que se encontram emaranhadas na obra, cuja metodologia tem forte inspiração marxista e latouriana, privilegiando interações, conexões, híbridos e processos de metabolismo social. Cabral mantém, principalmente, um diálogo forte com a História Ambiental, campo ao qual busca contribuir ao aprofundar suas perspectivas teórico-metodológicas. Embora o autor considere Na Presença da Floresta uma obra de síntese, ela contém também uma robusta e diversificada quantidade de fontes primárias que são interpretadas ou reinterpretadas a luz de uma abordagem completamente inovadora.

Em quatro partes divididas em dezessete capítulos, Diogo Cabral analisa o papel da Mata Atlântica na conformação social, cultural e, sobretudo, política e econômica do Brasil colonial. A primeira parte é destinada a análise das técnicas que emergiram das relações, ora tensas, ora colaborativas, ou mesmo conflituosas, entre os neobrasileiros e os múltiplos agentes dentro e fora da Mata Atlântica. Aborda especialmente o papel da floresta, das madeiras, dos animais, dos insetos, do fogo, da cana-de-açucar, das embarcações, do oceano Atlântico, da escravidão indígena e africana, da mandioca e das cidades na formação da colônia. A segunda parte analisa os conflitos políticos advindos da tentativa da Coroa Portuguesa em assegurar o monopólio da exploração e a conservação de espécies arbóreas da Mata Atlântica que eram fundamentais para a construção naval. O autor ressalta que esses conflitos envolveram não só as populações da colônia marginalizadas pelas políticas de conservação florestal e pelo combate ao contrabando, mas também várias espécies florestais e animais que em muitos momentos representaram um entrave a política metropolitana. Na terceira parte, é analisado o sistema econômico colonial, especialmente a exploração madeireira, em comparação com o caso das treze colônias da América do Norte. Para o autor, uma série de fatores biogeográficos dificultou a formação de uma economia de exportação de madeira consistente no Brasil até o século XVIII. No último capítulo, Cabral retoma as conclusões dos capítulos anteriores para analisar as implicações historiográficas e políticas de analisar a Mata Atlântica em um quadro social alargado, ou seja, rejeitando a floresta como palco/cenário, encarando-a como um conjunto de agentes históricos.

O autor está a todo o momento atento às diferentes espacialidades e temporalidades em conexão. A própria Mata Atlântica é composta por múltiplas temporalidades e espacialidades anteriores à chegada dos europeus, condição que ganha maior complexidade na obra com a análise de sua presença na política e economia colonial. A busca por dar conta de quatro séculos de inúmeros processos com uma abordagem horizontal é bastante ousada e reforça a densidade da análise. Contudo, a leitura da obra torna-se mais desafiadora e cansativa: o leitor vai se deparar com uma narrativa muito mais fractal do que linear. Longe de ser um problema, esse tipo de narrativa é um caminho lógico dentro da abordagem escolhida pelo autor.

Cabe ressaltar ainda que Na Presença da Floresta está na contramão de obras que analisam a Mata Atlântica exclusivamente sob o ponto de vista da destruição ambiental, como é o caso do estudo clássico A Ferro e Fogo de Warren Dean. É aqui que o estudo de Diogo Cabral se diferencia das perspectivas, ainda majoritárias dentro do campo da História Ambiental, nas quais a natureza é recurso ou receptáculo/palco das representações e ações humanas. A obra deixa enxadas, navios, fogo, espécies arbóreas, saúvas e etc., “falarem” a partir das fontes, identificando o seu protagonismo na formação social, cultural e também nas tramas políticas e na economia. É uma abordagem relacional, pós-humanista, que desafia o tradicional antropocentrismo arraigado na escrita da história.

Na Presença da Floresta é um livro sobre o passado, mas com vistas no futuro. É uma obra de descolonização do pensamento rumo a uma nova ética relacional. É indicado para historiadores e pessoas, acadêmicas ou não, que entendem que o momento atual exige diferentes proposições e mudanças drásticas: novas formas de pensar, novas formas de ação e novas formas de relação com o radicalmente outro.

André Vasques Vital – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil, 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, vasques_hist@yahoo.com.br.

Regards sur la démocratie athénienne – MOSSÉ (Tempo)

MOSSÉ, Claude. Regards sur la démocratie athénienne. Paris: Perrin, 2013. 234p. Resenha de: TRABULSI, Dabdab José Antônio. História e historiografia da democracia ateniense. Tempo v.22 no.41 Niterói set./dez. 2016.

Claude Mossé sempre demonstrou grande interesse pela política ateniense na Antiguidade, desde sua famosa tese de 1962 (La fin de la démocratie athénienne. Paris: PUF) até o livro aqui em questão, passando pelo que talvez seja seu livro mais lido, Histoire d’une démocratie: Athènes (Paris: Seuil, 1971) e por Politique et société en Grèce ancienne: le modèle athénien (Paris: Aubier, 1995), entre muitos outros que tratam do tema de forma mais ou menos direta. Temos então aqui toda uma vida de meditação sobre a democracia ateniense.

Desde a introdução (“Démocratie d’hier et démocratie d’aujoud’hui”, p. 7-11), a motivação contemporânea se exprime com vigor:

A democracia está na ordem do dia. Políticos, professores universitários, jornalistas fazem dela um dos temas privilegiados de suas reflexões, interrogando-se sobre seu funcionamento onde ela existe, sobre suas possibilidades de instauração onde ela ainda não foi experimentada. Foi para instalá-la no Oriente Médio que foram feitas as expedições militares no Afeganistão e no Iraque. Foi para fazê-la triunfar que as multidões saíram às ruas para se manifestar em Kiev e em Minsk. É por ela que se enfrentam, na África, grupos cujos objetivos temos por vezes dificuldades de compreender, onde subsistem antagonismos provenientes de um longo passado. Isso tudo mostra que se trata de uma das questões dominantes deste início de século XXI, na medida em que dela também depende a solução de outros problemas que se apresentam ao mundo de hoje, sejam eles econômicos, ecológicos ou demográficos. (p. 7)

Mas o que ocorre é que essa ideia de estudar a democracia antiga no interesse da democracia contemporânea não é simples de articular em termos de pertinência da análise. É por isso que fico feliz em constatar que o ponto de vista de Mossé é o mesmo que defendi em meu livro de 2006 sobre a questão (Participation directe et démocratie grecque: une histoire exemplaire?. Besançon: PUFC. p. 9-19). Mossé, com efeito, apresenta a questão da seguinte maneira:

Validade do princípio majoritário e formas que pode tomar a participação na tomada de decisão são os problemas que se colocam a todos os que se preocupam com o declínio das democracias no mundo atual. Isso significa dizer que a democracia grega pode fornecer um modelo aos homens de hoje? A essa questão não há resposta evidente, pois seria fazer abstração dos 25 séculos que nos separam da Atenas de Péricles. Por outro lado, pode ser interessante tentar compreender o funcionamento desse sistema político e da ideologia que o justificava, mas também lembrar o olhar lançado sobre ele ao longo dos séculos. Pois, das questões que a democracia ateniense levantou ao longo da história, podem ser tiradas lições suscetíveis de ajudar em um renascimento da democracia, hoje mais necessário do que nunca. (p. 9)

A autora começa muito naturalmente pela história da democracia ateniense (Capítulo 1: “L’invention de la démocratie”, p. 13-45). Procede a uma apresentação clara das principais etapas da formação da democracia ateniense, de Sólon a Péricles, passando por Clístenes e Efialtes. Em seguida (p. 27-34), explica os conceitos-chave do regime, liberdade e igualdade, e lança algumas das bases da estrutura social da cidade. Explica também (p. 34-45) o funcionamento da democracia, suas instituições, suas práticas, suas principais figuras, terminando o capítulo com uma questão: “E isso nos traz de volta à questão essencial relacionada com o funcionamento da democracia ateniense, a da realidade do poder do démos. Questão difícil, pois para responder a ela precisaríamos dispor de elementos que nos faltam” (p. 43). Nesse ponto da análise, podemos considerar que ela se inclina por uma hipótese “intermediária” nesse debate espinhoso; mas voltará mais adiante no livro, de forma um pouco menos neutra, sobre esse ponto.

No Capítulo 2 (“Le rejet de la démocratie”, p. 47-65), a autora trata desse fenômeno em dois tempos: inicialmente, uma explicação política das duas revoluções oligárquicas do final do século V (p. 48-54) e, depois, uma análise do questionamento acerca da democracia entre os teóricos antigos, sejam eles oradores, políticos, historiadores ou filósofos. Mais para o final da seção, dá uma atenção especial à questão das relações entre a democracia e a lei. Esse capítulo tem por mérito e por resultado mostrar claramente que a democracia nunca foi coisa consensual em Atenas, e isso apesar de seu sucesso e de sua grande estabilidade no tempo. Ela também não deixa de tomar partido no debate acerca do fim do regime: “A derrota, diante de Felipe inicialmente, de Antípatros depois, levou, senão ao desaparecimento total, pelo menos ao declínio da democracia” (p. 65).

Chegamos ao terceiro tempo “antigo” da questão: “L’oubli de la démocratie” (Capítulo 3, p. 67-87). Sob esse título, a autora apresenta a história política de Atenas nas épocas helenística e romana, nas quais a democracia foi várias vezes derrubada, restabelecida, mas, sobretudo, modificada e, no fim, desnaturada. Apresentando Atenas tal como ela aparece em autores importantes (Políbio, Cícero, Plutarco, entre outros), Mossé começa nesse capítulo uma mudança de abordagem, passando da forma suave da história da democracia em Atenas para o papel da lembrança deixada pela democracia ateniense na história, e, para começar, na cultura antiga “pós-clássica”:

Como vemos, a imagem da democracia ateniense permanece majoritariamente negativa no conjunto do mundo romano. Quando se evoca a grandeza de Atenas, ela não é relacionada com o regime democrático, e sim com alguns homens que ocuparam a liderança da cidade e que, de Sólon a Fócion, souberam garantir a liberdade e criar as condições de sua autoridade no seio do mundo egeu. E com frequência é lembrada a ingratidão dos atenienses em relação a esses homens, enquanto a decadência de Atenas é ligada a um gosto desmedido pelo luxo e pelos espetáculos, o que já era denunciado por Platão em sua época. (p. 87)

A parte sobre a “posteridade da democracia ateniense” começa no Capítulo 4 (“De la Renaissance aux Lumières”, p. 89-116). No que se refere ao Renascimento, a autora examina o movimento comunal na Itália, quando os gregos e os romanos se tornaram de novo “pertinentes”, mas quase sempre com uma imagem negativa da democracia. Mas a atenção atribuída a Tucídides e a Plutarco tornava outra vez possível discutir a questão. Na França do Renascimento e na Inglaterra elisabetana, países que viviam então o reforço do poder real, a questão se desloca para aspectos morais, acerca do heroísmo, e sobre certos temas políticos, mais do que sobre os regimes. Ela faz em seguida uma análise das “Luzes”, na qual retoma alguns de seus trabalhos mais antigos (entre os quais seu livro L’Antiquité dans la Révolution française. Paris: Albin Michel, 1989), assim como trabalhos de N. Loraux, P. Vidal-Naquet e F. Hartog. A questão da política antiga é estudada em Montesquieu, na Enciclopédia, e, sobretudo, em duas obras fundamentais, Le voyage du jeune Anacharsis en Grèce, do abade Barthélemy, e Les recherches philosophiques sur les Grecs, de Cornélius de Pauw. Este último é especialmente importante para a questão da democracia, por ser talvez a primeira obra moderna a exprimir uma opinião global mais positiva sobre o regime ateniense, ao ponto de seu autor receber, em 1792, juntamente com Thomas Payne e George Washington, a cidadania francesa por ter “servido à causa da liberdade e preparado a libertação dos povos” (p. 115).

Depois das Luzes, as revoluções (Capítulo 5, “Les temps des révolutions”, p. 117-140). Esse capítulo é dedicado às duas Revoluções, Americana e Francesa. O horizonte republicano desses dois processos históricos colocou a Antiguidade romana, espartana e ateniense na ordem do dia. Apesar de uma cultura “antiga”, “pagã”, bem menos intensa na América do que na Europa, os Pais Fundadores dos Estados Unidos examinaram e discutiram os Antigos, John Adams em especial. Mas, de forma geral, foi a desconfiança de um Hamilton em relação ao poder popular que prevaleceu. Em relação à Revolução Francesa, a questão será mais complexa e vai variar fortemente de acordo com as etapas da Revolução. Mossé, retomando seu livro sobre a questão, segue as mudanças na imagem de Atenas da Constituinte ao Terror, até a reação termidoriana. Grande atenção é dedicada a dois autores, Desmoulins e seu elogio da liberdade de palavra dos atenienses, e Chateaubriand e seu desencanto com a república. Mossé nos mostra abundantemente de que forma a Antiguidade, a política, a democracia, o povo foram uma espécie de “linguagem” durante o processo revolucionário.

No capítulo seguinte (Capítulo 6, “L’avènement de l’Athènes ‘bourgeoise’, de Benjamin Constant à Fustel de Coulanges et Max Weber”, p. 141-164), Mossé apresenta a formação da visão “burguesa” sobre a Atenas antiga e sua democracia, desde o texto fundador de Benjamin Constant sobre as diferenças entre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos até o verdadeiro “império” exercido durante meio século pelo trabalho de Gustave Glotz sobre a Cidade grega (a partir de sua publicação em 1928). As etapas dessa construção são muito bem apresentadas: Fustel e sua obsessão em “libertar” os Modernos da influência dos Antigos, J. Burckhardt e o tema das relações entre igualdade política e desigualdade social, M. Weber e sua denúncia da tirania da maioria (ainda que ele identificasse uma “racionalidade” no regime ateniense). De uma reflexão mais filosófica passamos ao nascimento de uma história grega “profissional”, com G. Grote e G. Droysen. Foi Grote quem instalou a democracia no centro da história ateniense e grega. Em Droysen, o que interessa é a decadência do regime, a fim de “explicar” Felipe e Alexandre. Da mesma forma, Mossé explica o nascimento de uma verdadeira “Atenas francesa”, em Victor Duruy e Gustave Glotz. Em Duruy, o segundo império, mistura de poder pessoal e sufrágio universal, encontra seu eco na Atenas democrática dominada por Péricles. Em Glotz, é o tema da “cidade”, tomado de empréstimo a Fustel (mas de certa forma contra ele, pelo abandono do tema do génos como fonte das instituições e da cidade), que vai ser o fio condutor, mas uma cidade “democrática” (dois terços do livro são dedicados ao período da democracia), e um século V que será escolhido como acmè da história ateniense, grega e quiçá humana. É a França democrática, elitista e liberal que se lê no espelho da Atenas clássica. E eu só posso subscrever as palavras de Mossé, quando ela diz:

Lendo a Cidade grega de Glotz, não podemos deixar de pensar na França desses anos que antecedem a crise de 1929. E medimos até que ponto o historiador, mesmo o mais apegado a uma “verdade” fundada em um conhecimento aprofundado dos “fatos”, não deixa de ser muito marcado por sua época. (p. 164)

Ao longo do século XIX, e até Glotz, a Europa liberal encontrou um novo equilíbrio e uma nova utilidade à Grécia clássica, a Atenas e à sua democracia. Uma imagem bastante idealizada, na qual o imperialismo ateniense se encontrava justificado por seus efeitos “civilizadores” e onde a escravidão se encontrava desculpada por sua “doçura” em Atenas. Na segunda metade do século XX, essa imagem será destruída pelo trabalho inovador de Moses Finley; e Mossé, que o conheceu bem, vai retraçar a vida, a obra e a contribuição historiográfica do grande historiador com grande fineza naquele que é, em minha opinião, o melhor capítulo do livro (Capítulo 7, “Le ‘moment’ Finley: une mise en question de la vulgate”, p. 165-188). E isso em vários domínios: sua posição de certa forma intermediária no debate sem fim sobre o “modernismo” ou o “primitivismo” da economia antiga; seu reconhecimento do fato imperialista ateniense em uma relação orgânica com a democracia; sua afirmação do fato de que a civilização grega foi construída (was based on) sobre a escravidão; as relações de novo orgânicas entre escravidão e democracia em Atenas. E, apesar disso tudo, uma defesa clara do “modelo” ateniense em termos de participação política efetiva, em termos do papel desempenhado pelo povo miúdo nos assuntos coletivos, no controle dos dirigentes da cidade por parte dos cidadãos, e pela amplitude da liberdade de palavra. Ela recoloca todas as análises de Finley nos quadros de sua vida pessoal (“caça às bruxas” nos Estados Unidos dos anos 1950; insuficiências da democracia representativa). Vale realmente a pena citar Mossé de forma um pouco mais longa quanto a isso:

A obra de Finley teve impacto considerável na Europa, tanto na Europa Oriental quanto na Europa Ocidental, e nos Estados Unidos, onde ele foi convidado a dar conferências desde 1964 em muitas universidades, inclusive naquela da qual havia sido afastado, Rutgers. A partir de uma pesquisa sobre os marcos hipotecários na Atenas do final da época clássica, ele logo alargou seus centros de interesse, tanto cronológicos quanto espaciais. Mas, no que se refere ao objeto deste trabalho, ninguém contribuiu mais que ele para a elaboração de uma imagem positiva da democracia ateniense, essa democracia escravista que atribui aos membros da comunidade dos cidadãos um poder de participação nas tomadas de decisão único na história da humanidade. Finley foi o que poderíamos chamar um historiador “engajado”. Ele o foi politicamente, e seu percurso é comparável ao de certo número de pesquisadores de sua geração que, seduzidos pela análise marxista, dela se afastaram quando ela foi confiscada por uma ortodoxia estreita, mas conservando certos métodos de questionamento do marxismo. Por isso mesmo, ele deveria sofrer as críticas tanto dos “tradicionalistas”, fechados em uma ideologia que se queria “humanista”, quanto pelos defensores de um marxismo puro e duro. (p. 187-188)

Chegamos ao Capítulo 8 (“La démocratie athénienne aujourd’hui”, p. 189-214), no qual Mossé retorna à justificação de sua análise neste livro: “A crise que conhece a democracia contemporânea suscita um renovado interesse pela experiência ateniense. Enquanto o estudo das línguas antigas recua no conjunto do mundo ocidental, paradoxalmente nunca o ‘modelo’ ateniense conheceu tal florescimento de análises, feitas não apenas pelos especialistas da Antiguidade, como também por filósofos e politólogos” (p. 189). Nesse último capítulo, Mossé examina a recepção do modelo finleyano, sua influência na França (Centro Louis Gernet), na Itália (onde o marxismo mais aberto era receptivo a seu trabalho) e, mais recentemente, nos Estados Unidos, onde ele foi especialmente retomado, transformado, discutido, contestado. É a ocasião, para Mossé, de passar em revista a historiografia recente (em um registro secular, ou seja, a dos últimos 30 anos), a fim de medir as contribuições de O. Murrey, S. Price, M. Hansen, M. Ostwald, R. Sealey e, sobretudo, J. Ober, ao qual ela dedica não menos do que 12 páginas. Partilho inteiramente sua análise e a importância que ela atribui a esse último autor, assim como sua conclusão:

Assim, ao termo de uma pesquisa que se desenvolveu por uns 20 anos, J. Ober chegou a uma conclusão que já era a de Finley. A democracia “elitista” que muitos politólogos justificavam pela capacidade reservada a uma minoria de fazer as escolhas e pela lei de ferro da oligarquia é desmentida pela própria experiência da democracia ateniense. E, mesmo levando em conta o que distingue uma pequena cidade grega de 2.500 anos atrás dos Estados contemporâneos, seu modelo de democracia “participativa” deve ser meditado pelos homens do século XXI, preocupados em dar de novo à democracia seu sentido verdadeiro. (p. 206)

Ela explica também que, ainda mais do que em política, foi em matéria de economia que a herança de Finley foi mais contestada, na França por R. Descat e por A. Bresson, alhures por J.-G. Manning e por I. Morris, entre outros.

Em uma curta conclusão (p. 215-217), explica por que é preciso medir a “distância” entre os atenienses e nós, mas afirma também a necessidade de sempre voltar ao exame da democracia ateniense com esta bela formulação tomada de empréstimo a W. Nippel: “Enquanto a democracia e as insuficiências de sua aplicação permanecerem sendo um tema de debate em um Estado que não é formado por deuses (Rousseau), Atenas não desaparecerá verdadeiramente da reflexão” (p. 217).

Para os que leem Claude Mossé há 40 ou 50 anos, esse livro não traz tantas novidades, salvo nos últimos capítulos. Mas esses velhos leitores são e serão cada vez mais raros. Para as novas gerações de estudantes e pesquisadores, esse último (até agora) livro de Claude Mossé pode ser uma excelente introdução ao conjunto de sua obra e de sua reflexão sobre a Grécia antiga e seu sentido para nós. E, no prosseguimento, quem sabe, a motivação para ler seus outros inúmeros trabalhos. O trabalho incansável de Mossé, e sua preocupação em sempre falar aos leitores de hoje em dia, sem jargão, em uma língua precisa, mas acessível a todos, tanto aos profissionais da história antiga quanto aos leitores comuns, me faz pensar em outra grande figura da história antiga, a belga Marie Delcourt, que, na geração anterior, sempre adotou a mesma atitude. São historiadoras a serviço de seu tempo.

José Antonio Dabdab Trabulsi Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.

Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds – De La CADENA (A-RAA)

De La CADENA Marisol Ecologias of Practice
Marisol de la Cadena. www.rigabiennial.com.

De La CADENA M Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds Ecologias of PracticeDe La CADENA, Marisol. Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds. Durham: Duke University Press, 2015. Resenha de: MORENO, Javiera Araya. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.26, set./dez., 2016.

A veces la lectura de un trabajo etnográfico da la impresión de que este se refiere a diversas y múltiples tradiciones teóricas, al asociarlas de manera más o menos deliberada con partes específicas del trabajo de campo. El relato etnográfico parece entonces responder a la literatura de las ciencias sociales, sin que la reflexión pueda en efecto ilustrar, desafiar, refutar o sustentar algunas de las corrientes teóricas a las que apela de forma fragmentada. Pareciera que el autor no compromete por entero su investigación con determinadas corrientes teóricas e impide así que la dimensión empírica del terreno pueda cuestionar o tensionar plenamente los supuestos teóricos que de manera parcial lo estructuran.

El trabajo de Marisol de la Cadena sobre el que trata esta reseña es un ejemplo de todo lo contrario. A través de su lectura no solo aprendemos sobre las constantes luchas de una comunidad indígena en Perú -contra la hacienda como institución productiva que esclavizaba a sus miembros, contra las corporaciones y sus planes de extracción mineral en sus territorios, contra la policía peruana y su arbitraria aplicación de la ley y, en resumen, contra la pobreza en la que se encuentran- sino que también vemos cómo la autora moviliza su trabajo de campo para interpelar dos grandes corrientes teóricas que marcan la antropología contemporánea. Por un lado, aquélla que denuncia la especificidad colonial de la producción de conocimiento sobre un “otro” y, por otro lado, aquélla que postula la existencia de una diferencia ontológica -y no solo epistemológica- con el “otro” que se quiere conocer.

Respecto a la primera discusión teórica, la autora nos invita a comprender la lucha de la comunidad en su irreductibilidad a las claves de lectura occidentales y eurocéntricas. Respecto a la segunda, De la Cadena constata que ahí donde algunos ven una disputa legal por derechos respecto a la propiedad de un terreno o una movilización campesina por una distribución más justa de las riquezas generadas por la explotación agrícola, otros -precisamente sus protagonistas en la comunidad- ven algo distinto, o más bien algo más. Habitan un territorio que no es solo tierra, sino también un conjunto de relaciones entre seres cuya condición de “humanos” solo puede ser atribuida a una parte de ellos. Efectivamente, en la comunidad indígena de Pacchanta, y retomando los términos en quechua, runakuna (humanos) y tirakuna (no humanos o seres de la tierra) establecen relaciones entre sí y entre ambos. Para los miembros de esta comunidad, lo que pasa allí necesariamente incluye a estos seres no humanos. El lugar emerge necesariamente de estos vínculos que exceden la manera en la que usualmente se piensa en una montaña (por ejemplo) como cosa, sea esta como tierra que puede ser explotada o como espacio natural que debe ser conservado.

¿Cómo producir conocimiento sobre un otro que es tan “otro” que no adhirió a la distinción ontológica -y moderna (Latour 1993)- entre sociedad y naturaleza? ¿Cómo hacerlo de tal manera que este conocimiento producido sea susceptible de reconocer historicidad, es decir trascendencia, relevancia y sentido, a experiencias que parecen solo adquirir pertinencia cuando se insertan en modelos de interpretación que son familiares para el observador occidental, como el de la liberación campesina, del chamanismo andino o del multiculturalismo? ¿Cómo integrar los seres no-humanos, sus intereses y capacidad de acción en conflictos medioambientales y en general en la toma de decisiones políticas que afectan a la comunidad a la que pertenecen? Marisol de la Cadena reflexiona respecto a estas preguntas y ofrece una escritura precisa, honesta y que refleja un esfuerzo logrado por explicar cuestiones complejas con palabras simples. Las descripciones son a la vez suficientes y densas y las repeticiones, que a veces llaman la atención por su abundancia, contribuyen a la comprensión del texto.

El libro está compuesto, además de un prefacio y de un epílogo, por siete narraciones (stories) y dos interludios que presentan las vidas de Mariano Turpo y de Nazario Turpo respectivamente, amigos e informantes de De la Cadena. En la primera narración la autora despliega el arsenal teórico con que escribirá su etnografía y un concepto predominante en todo el libro será el de “conexiones parciales” (Strathern 2004 [1991]), según el cual el mundo no está dividido en “partes” agrupadas a su vez en el “todo”, sino que -como en un caleidoscopio- el “todo” incluye a las “partes”, las que a su vez incluyen el “todo”. Esta imagen permitirá a la autora justificar la idea de que similitud y diferencia pueden existir simultáneamente -en Pacchanta, en Cusco y también en Washington D.C., donde uno de los informantes participa en una exposición-, de que los mundos no tienen que excluirse para poder existir de manera diferenciada.

Por ejemplo, el primer interludio nos cuenta cómo Mariano Turpo, en virtud de sus capacidades para negociar tanto con el hacendado como con los seres de la tierra, fue elegido para encabezar la lucha de la comunidad por liberarse de la hacienda Lauramarca1. Se trataba más bien de “caminar la queja” o “hacer que la queja funcione” (queja purichiy), lo que incluía una serie de interacciones con la burocracia urbana peruana -en Cusco y en Lima- para que esta reconociera de forma legal los abusos del hacendado y eventualmente los derechos de la comunidad sobre la tierra. En uno de sus viajes a Cusco, Mariano Turpo pasa a la catedral a explicar a Jesucristo cómo llevará a cabo su misión, encomendada por su comunidad y que incluye entonces la voluntad de Ausangate, la gran montaña a cuyas faldas se encuentra Pacchanta. Esa mezcla, que en realidad no es mezcla ni sincretismo puesto que no anula cada una de las partes, entre elementos de la religión Católica y el rol de la voluntad de un ser de la tierra -atribuido por la comunidad indígena-, daría cuenta de una de las muchas “conexiones parciales” que identifica Marisol de la Cadena.

Con esta conceptualización presente a lo largo de todo el libro, la autora continúa su análisis describiendo en detalle, en la segunda y la tercera narración, cómo los runakuna “caminaron su queja” y llegaron en la década de los ochentas a distribuir las tierras entre ellos y a ejercer plena propiedad sobre ellas. Basada en autores como Trouillot (1995), Guha (2002) y Chakrabarty (2000), De la Cadena construye un marco de análisis que da pie para pensar un “líder indígena” que, al mismo tiempo que efectivamente lidera la movilización, no es tal. De hecho, para los runakuna Mariano Turpo no era un representante de la comunidad, sino que hablaba desde ella y no solo con humanos. El conjunto de documentos que Mariano Turpo había reunido respecto a la queja y que al momento de ser contactado por De la Cadena le sirve para hacer fuego, adquiere el estatus de archivo o más bien de “objeto límite” -una especie de materialización de una conexión parcial- entre el mundo de la burocracia estatal centrada en lo escrito y el mundo indígena principalmente unilingue quechua, en el cual pocas personas saben leer y escribir a pesar de los esfuerzos de la comunidad por tener escuelas frente a la oposición de la hacienda. ¿Cómo conferir evenemencialidad, algo así como capacidad para ser algo más que parte del paisaje y alterar el desarrollo de los hechos en la lucha por el territorio, tanto a los runakuna como a seres de la tierra? De la Cadena responde a esta pregunta en la cuarta narración.

El segundo interludio avanza según la cronología de la situación en Pacchanta en las últimas décadas. Nazario Turpo, hijo de Mariano Turpo y también capaz de comunicar con seres no-humanos, es el protagonista principal de la segunda parte del libro. En ella, aprendemos que la situación de abandono en que se encuentra la comunidad de los Turpo no ha cambiado a pesar del relativo éxito de la lucha por la tierra, de la reforma agraria o del multiculturalismo promulgado por el presidente Toledo (2001-2006). Y cuando De la Cadena habla de abandono lo hace citando a Povinelli (2011), es decir apuntando a un proyecto sistemático por parte del Estado peruano según el cual la vida de los runakuna se conjuga siempre en pasado o en futuro anterior, pero nunca en presente, de tal manera que sus muertes no gozan de evenemencialidad. La muerte de Nazario Turpo en un accidente de carretera en el bus que lo transportaba a Cusco, donde ejercía como chamán para una agencia turística, es quizás -insinúa la autora- el resultado de las malas condiciones de las carreteras de la zona, las que no se limitan solo a los caminos, sino que también se extienden a escuelas y hospitales y contribuyen a la situación de pobreza y de carencias en un altiplano afectado por sequías e inviernos helados.

La quinta narración nos explica cómo Nazario Turpo llegó a obtener el trabajo de chamán en una agencia turística y cómo este puesto es el resultado de la mercantilización de las prácticas indígenas en el Perú; mercantilización más bien de las prácticas y sus significados que se imputan a los runakuna y que no necesariamente tienen. De hecho, De la Cadena comenta que el rol de “chamán” no existe para los runakuna -quienes identifican en cambio a un paqu, algo parecido, pero diferente- y para quienes prácticas como los despachos ofrecidos a seres de la tierra, traducidos por lo general como “ofrendas”, no hacen ni pueden hacer referencia a una espiritualidad por cuanto los seres de la tierra no tienen ni son espíritus, solo son.

La venta del “chamanismo andino” como producto turístico benefició a nivel económico a Nazario Turpo y a su familia y le valió una invitación a Washington D.C. para participar en una exposición organizada por el National Museum of the American Indian, en tanto parte del equipo de curadores de la exhibición y en tanto él mismo como indígena parte de la muestra. La sexta narración se centra en esta colaboración entre Nazario Turpo y el museo y describe múltiples “equivocaciones” en el sentido desarrollado por Viveiros de Castro (2004), es decir como intentos aceptadamente errados de traducción de la realidad de otro, ontológicamente diferente de la propia. Una de estas refiere, por ejemplo, a la imposibilidad por parte de los organizadores de la exposición de comprender el rol que juegan los seres de la tierra en Pacchanta.

En esta sexta y última narración, De la Cadena discute cómo se distribuye algo así como el “poder” en la comunidad y en sus relaciones con el Estado peruano, aunque ni la autora ni sus informantes utilizan esa palabra. Descubrimos que una misma palabra en quechua –munayniyuq, traducida por la antropóloga como “dueño de la voluntad”- aplica tanto para la hacienda, el Estado peruano y Ausangate, la montaña. Así, el capítulo final del libro incluye descripciones de las rondas campesinas organizadas por la comunidad y de la manera en que algunos de sus miembros obtuvieron cargos políticos representativos en el gobierno local, además nos introduce en la propuesta con que Marisol de la Cadena cerrará el libro en su epílogo: la “cosmopolítica” como una manera de enfrentarse epistemológicamente a otro, sobre todo como un enfoque normativo que permitiría concebir políticamente las diferencias entre mundos ontológicamente distintos.

Al basarse en autores como Blaser (2009) y Haraway (2008) y constatando que las movilizaciones por la protección del medio ambiente frente a la explotación corporativa de recursos naturales reivindican la distinción entre naturaleza y sociedad, invisibilizando así a los seres no-humanos como ríos, montañas y lagos en su capacidad de acción y relaciones que establecen con la comunidad, De la Cadena -leyendo a Stengers (2005)- afirma que Mariano y Nazario Turpo, así como su comunidad en Pacchanta, pusieron en práctica una manera de relacionarse con otros en la cual la igualdad ontológica no era un requisito y en que la “parcialidad de las conexiones” era posible. En palabras de la autora (mi traducción): “sostengo que, al discrepar ontológicamente con la partición establecida de lo sensible, los runakuna proponen una cosmopolítica: las relaciones entre mundos divergentes como una práctica política decolonial que no tiene otra garantía que la ausencia de igualdad (sameness) ontológica” (p. 281). Que la cosmopolítica practicada por los runakuna sea tal es brillantemente demostrado por De la Cadena a lo largo de su obra, sin embargo aquí se introduce una crítica a su trabajo y es que el carácter decolonial en él no se revela tan nítidamente.

Una de las principales fortalezas de esta etnografía es precisamente su capacidad para convertirse en un estudio empírico que a la vez moviliza y desafía las literaturas ligadas tanto al ámbito de la ontología política como a los estudios postcoloniales. Sin embargo, mientras que De la Cadena nos presenta una respuesta completa, teórica y aplicada a la pregunta por cómo aprehender las diferencias ontológicas, la noción de “poder” -en sus versiones más o menos elaboradas, siempre inherente a cualquier reflexión desde la decolonialidad- no alcanza a constituir una respuesta satisfactoria a la pregunta por cómo estudiar a quienes están “en la sala de espera de la historia” (Chakrabarty 2000). Al fin y al cabo, y según los relatos reportados por De la Cadena, esta “sala de espera” no es solo un lugar donde lo que los runakuna hacen y creen no es conocido ni re-conocido, sino que también es un lugar donde la comunidad se está muriendo de hambre y de frío, donde no tiene acceso adecuado a escuelas o a hospitales y donde es continuamente abusada por otros.

La “cosmopolítica” que puedan poner en práctica tanto los runakuna como la antropóloga no es suficiente -aunque quizás en ningún caso prescindible- para otorgar dignidad epistemológica e histórica a la comunidad de Mariano y Nazario Turpo. ¿Cómo dar cuenta de la discrepancia ontológica con el proyecto moderno que encarnan los seres de la tierra en Pacchanta y, al mismo tiempo, de la igualdad política a la que sin embargo los mismos runakuna parecen aspirar? ¿Cómo dar cuenta, simultáneamente, de la diferencia ontológica entre mundos y de la participación en un mismo mundo desigual? El libro de Marisol de la Cadena ofrece ciertamente un trabajo de terreno fascinante, una escritura impecable y una reflexión rigurosa para pensar estas preguntas que inquietan a la antropología contemporánea.

Comentario

1 La situación en Pacchanta, cuyos orígenes se remontan a la colonización española, es el resultado de la tensión entre la entrega de títulos hacendales sobre territorios indígenas a colonos, lo que obligaba a las comunidades que vivían y trabajaban las tierras de la hacienda a pagar tributos a sus dueños, y las sometía a múltiples abusos. La hacienda Lauramarca, que controlaba la zona y que ha tenido distintos dueños a lo largo del siglo pasado, estuvo vigente hasta 1970, cuando luego de muchos conflictos que incluyeron diferentes matanzas de indígenas, ésta se convirtió en una cooperativa agraria. En los años 1980, la comunidad indígena expulsa a los administradores estatales de la cooperativa, deshaciéndola y redistribuyendo la tierra entre las familias indígenas.

Referencias

Blaser, Mario. 2009. “Political Ontology.” Cultural Studies23 (5): 873-896.         [ Links]

Chakrabarty, Dipesh. 2000. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference.Princeton: Princeton University Press.         [ Links]

Guha, Ranajit. 2002. History at the Limit of World History. Nueva York: Columbia University Press.         [ Links]

Haraway, Donna. 2008. When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press.         [ Links]

Latour, Bruno. 1993. We Have Never Been Modern. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links]

Povinelli, Elizabeth. 2011. Economies of Abandonment. Social Belonging and Endurance in Late Liberalism. Durham: Duke University Press.         [ Links]

Stengers, Isabelle. 2005. “A Cosmopolitical Proposal.” En Making Things Public: Atmospheres of Democracy, editado por Bruno Latour y Peter Weibel, 994-1003. Cambridge: MIT Press.         [ Links]

Strathern, Marilyn. 2004 [1991]. Partial Connections. Nueva York: Altamira.         [ Links]

Trouillot, Michel-Rolph. 1995. Silencing the Past: Power and the Production of History.Boston: Beacon.         [ Links]

Viveiros de Castro, Eduardo. 2004. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation.” Tipití2 (1): 3-22.         [ Links]

Javiera Araya Moreno – Magister y estudiante de doctorado en Sociología, Universidad de Montreal. Entre sus últimas publicaciones están: coautora en “Pluralism and Radicalization: Mind the Gap!”. En Religious Radicalization and Securitization in Canada and Beyond, editado por Paul Bramadat y Lorne Dawson, 92-120, 2014. Toronto: University of Toronto Press. Coautora en “Desigualdad y Educación: la pertinencia de políticas educacionales que promuevan un sistema público”. Docencia. Revista del Colegio de Profesores de Chile 44 (XVI): 24-33, 2011. E-mail: javieraarayamoreno@gmail.comMarisol de la Cadena. 2015. Earth Beings. Ecologies of Practice Across Andean Worlds. Durham: Duke University Press

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Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru – LI (A-RAA)

LI, Fabiana. Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru. Durham y Londres: Duke University Press, 2015. Resenha de: CARMONA, Susana. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.26, set./dez., 2016.

En Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism and Expertise in Peru (Desenterrando el conflicto: minería corporativa, activismo y experticia en Perú1), Fabiana Li explora la proliferación de conflictos en torno a la minería en el Perú desde una perspectiva que pone énfasis en la agencia de elementos no humanos en las controversias. El texto parte de una contextualización histórica para desarrollarse a través de una rica etnografía de agradable lectura, en la cual se analizan con detalle los conflictos mineros en los cuales los más diversos actores entran en escena.

Al igual que otros países en América Latina, las reformas neoliberales de los noventas en el Perú significaron un énfasis en las actividades extractivas y su vinculación con la idea de “desarrollo” y “progreso”. Al mismo tiempo, la oposición social a la minería se incrementó a pesar de los esfuerzos de gobiernos y corporaciones por manejar los conflictos con planes de manejo, estudios técnicos y un despliegue de conocimiento experto que se analiza en el texto. El libro está escrito a partir de dos casos específicos: primero, el de la ciudad de La Oroya en donde se encuentra desde hace más de noventa años un complejo metalúrgico, caso que se desarrolla en el primer capítulo; segundo, la minera Yanacocha en la región de Cajamarca, caso que ocupa el resto del libro.

Unearthing conflict es el resultado de dos años de trabajo etnográfico de la autora en Perú, principalmente en la ciudad de Cajamarca. Como es usual con este tipo de estudios etnográficos, los lugares de observación son muy variados e incluyen no solo la tradicional permanencia con las comunidades, sino también la asistencia a reuniones entre comunidades, empresas y Estado, la visita de inspección a un canal de riego, los espacios de revisión y difusión de un Estudio de Impacto Ambiental (EIA), entre otros. La autora habla de un vínculo especial con la organización social Grufides, que tuvo un papel importante en los conflictos con la minera Yanacocha. El seguimiento a esta organización le permite a la autora dar cuenta de la criminalización de la protesta por parte del Estado, de la separación entre lo “técnico” y lo “político” y, finalmente, de las críticas -externas, pero también desde adentro- a la transformación de una organización social en un partido político.

El objetivo del libro es analizar los elementos que las tecnologías de minería “moderna” (representadas en la minera Yanacocha) han traído al escenario político peruano y que se diferencian de la “vieja” minería (representada en el libro con el caso de La Oroya). La autora se pregunta por la forma en que elementos no-humanos, como la contaminación (pollution) y el agua, se han convertido en los principales puntos contenciosos en los conflictos entre comunidades locales y corporaciones mineras.

Li retoma el concepto de controversias de Latour (2004), que se define como el momento en que las cosas dejan de ser “hechos” (matters of fact) para convertirse en “asuntos de preocupación” (matters of concern). Esto ocurre con la contaminación, con el agua y con otra serie de entidades que son desenterradas por la minería. Según la autora, estos elementos no-humanos se entienden mejor como elementos que no se agotan en un único punto de vista, sino que son construidos desde múltiples perspectivas. Esta construcción es el efecto de relaciones entre actores y su existencia se debe a prácticas específicas que los producen, como por ejemplo estudios técnicos, foros de debate, alianzas y mesas de concertación, movilizaciones sociales, entre otros.

La autora devela en su etnografía lo ambiguas y contradictorias que resultan ser las relaciones entre las empresas y las comunidades, llenas de alianzas, colaboraciones inesperadas y rupturas. Esto la lleva a ampliar la noción de conflicto y a reformularla como relaciones cambiantes entre lugares, personas y cosas, así busca trascender la noción que los conflictos en torno a la minería son un resultado de la falla del Estado o de la actuación corporativa. En palabras de la autora: “no trato a las redes de activistas y a las redes corporativas como antagonistas ideológicas, sino que enfatizo en las alianzas cambiantes entre varios actores y las maneras en que trabajan al mismo tiempo con y en contra de intereses corporativos” (2015, 6). Para su análisis la autora retoma los Estudios de Ciencia y Tecnología (ECT), la ecología política y los estudios críticos del paisaje; de este último, se incluye una perspectiva del paisaje no solo en sus cualidades materiales sino también como agente. Retoma igualmente la idea de los conflictos por extracción de recursos naturales como conflictos ontológicos sobre la producción de mundos y, de esta forma, logra “examinar el cómo cosas como la polución toman forma y se vuelven tangibles, cuándo estas importan y para quién son políticamente significativas” (Li 2015, 21).

El libro es un interesante ejercicio etnográfico en que se contemplan elementos poco comunes a la hora de pensar conflictos mineros en América Latina. Lo más interesante es la atención que pone la autora a las prácticas corporativas que se enmarcan dentro de la “Responsabilidad Social Corporativa” y que incluyen la participación comunitaria, los estudios de impacto ambiental, la rendición de cuentas, la adhesión a estándares internacionales, entre otras. Estas prácticas surgen como respuesta a los movimientos de oposición a la minería y a un interés global en asuntos ambientales y de derechos humanos, sobre los cuáles la antropología apenas recientemente ha posado su interés. Li describe estas prácticas como parte de una “lógica de equivalencia” que busca, mediante procesos de conmensuración y con un despliegue de conocimiento experto técnico-científico, saldar deudas sociales y ambientales. Las equivalencias tienen el efecto de desparecer el aspecto político de los conflictos y poner en términos técnicos las soluciones. Sin embargo, se trata de acuerdos temporales y negociaciones constantes en que las comunidades no se sienten compensadas, pues son intentos de conmensurar lo inconmensurable. Las prácticas corporativas, el activismo y la lógica de equivalencia son rastreados etnográficamente a lo largo de cinco capítulos y un apartado final de conclusión.

La primera sección del libro se titula “Minería, pasado y presente” y en su primer capítulo “Legados tóxicos, activismo naciente” se concentra en el caso de la ciudad de La Oroya, que le permite a la autora presentar la historia minera del país y la agencia de elementos no-humanos, en este caso “los humos”, en el surgimiento de conflictos. Cuando en 2006 una organización norteamericana nombró a La Oroya como uno de los diez lugares más contaminados del mundo, la contaminación en esta ciudad se convirtió en un “asunto de preocupación” global. Para este momento la compañía incrementó sus programas con el fin de contrarrestar las emisiones toxicas, se llevaron a cabo estudios por parte de ONG activistas y de la misma compañía, se implementaron mesas de concertación y se involucró a la comunidad en el manejo de los problemas ambientales.

Muy interesante en este capítulo es la descripción de la forma en que la compañía transforma su obligación de rendir cuentas por sus acciones (corporate accountability) en “responsabilidades compartidas”. Esto último se logra al concentrar esfuerzos en el monitoreo de la salud de los habitantes, el control del riesgo en los puestos de trabajo, el monitoreo comunitario y la promoción de “hábitos saludables”. Estas acciones hacen parte de nueva dinámica en la cual las empresas buscan posicionarse como representantes de la minería moderna y sostenible. La trasformación de elementos no-humanos en asuntos de preocupación y por lo tanto en objetos de conocimientos, se repite a lo largo de los distintos conflictos analizados en el texto: una montaña, canales de irrigación o lagunas. La diversidad de visiones frente a estos elementos es lo que analiza la autora en el resto del libro, al poner énfasis en las prácticas corporativas de generación de equivalencia y en las prácticas de activistas que apelan a argumentos no técnicos.

En este punto la autora pasa al caso de la minera de oro Yanacocha, en cuyo contexto se enfoca en el resto del libro. El capítulo dos “mega-minería y conflictos emergente” narra la historia de la minería en el Perú y su giro hacia la mega-minería. A pesar de las promesas de progreso y de pertenecer al nuevo paradigma de “Responsabilidad Social Corporativa” que generaron enormes expectativas en las comunidades, los efectos de Yanacocha sobre el agua han disparado una enorme oposición a la empresa y a la minería.

A través del análisis de un estudio de la calidad del agua elaborado por una mesa de concertación entre la industria minera, el Estado y las comunidades la autora muestra cómo se producen colaboraciones entre actores y cómo los resultados son usados e interpretados de formas diversas. En este contexto se comienza a hacer evidente que la “percepción” de las personas no se considera un argumento legítimo y que solamente en el marco de un discurso técnico, desde el Estado y la empresa, se habla de compensación y de las preocupaciones sociales, políticas y éticas por el agua.

Tras haber introducido el agua como elemento central de la disputa, la autora pasa en la segunda parte del libro “Agua y Vida” a analizar la forma en que el agua se convierte en un elemento central de la política, generando protestas y movilización internacional en contra de la minería. En el capítulo tres, “La hidrología de una montaña sagrada”, la autora muestra la controversia por el proyecto de explotación a cielo abierto en el Cerro Quilish. Tras mostrar que el cerro es un objeto múltiple que carga al mismo tiempo identidades como depósito de oro, acuífero y montaña sagrada, la autora concluye que en este tipo de conflictos la multiplicidad con que se miran elementos de la naturaleza permiten dar al cerro relevancia política de forma que se “excede la política tal como la conocemos” (De la Cadena 2010). Sin embargo, los argumentos técnicos relacionados con la importancia del cerro como depósito de agua predominaron en la disputa. Esto lleva a la autora a profundizar, en el siguiente capítulo, sobre la lógica con que opera la compañía minera.

En el capítulo cuatro, “Irrigación y equivalencias impugnadas”, la autora analiza de forma detallada la “lógica de equivalencia”. A partir de la historia de unos canales de irrigación afectados por la minería de oro, se narra cómo la empresa llegó a acuerdos de compensación con los campesinos que consistían en dinero en efectivo, contratos de trabajo y asistencia para el desarrollo. La autora muestra el choque de formas de conocimiento y la imposición de los criterios técnico-científicos en las negociaciones. Expone también cómo la equivalencia discrepa con los arreglos políticos preexistentes y por tanto genera conflictos internos a las comunidades. Además, presenta cómo aparecen nuevas dinámicas que hacen proliferar los conflictos, por ejemplo el incremento inusitado del número de usuarios del canal que buscan compensaciones.

No obstante, hace falta un mayor énfasis etnográfico en el cara a cara de la negociación entre los campesinos y los funcionarios de la empresa, así como incorporar el análisis de uno de los elementos más intrigantes de los modelos de desarrollo que llegan con la Responsabilidad Social Corporativa y que la autora no menciona en el texto: el deseo de las personas de hacer parte de sus proyectos. Sin desconocer que efectivamente la lógica de equivalencia opera en la negociación y que los criterios técnicos predominan frente a otras formas de conocimiento, no se explicita el por qué y el cómo los campesinos llegan a este tipo de acuerdos, los aceptan y desean su continuidad.

La forma en que está escrito el texto y los elementos sobre los que se hace énfasis, dejan la sensación de que se trata de una imposición de la corporación malévola y desestiman la agencia de los campesinos en esta negociación. Sin embargo, la etnografía es rica en mostrar el cambio de las relaciones de la gente con el canal de riego y las desigualdades que genera la presencia de la mina en la comunidad.

Finalmente, en la última parte del libro “activismo y experticia”, la autora se concentra en el análisis de un dispositivo corporativo que ha entrado a dominar la escena política en torno a la minería: el EIA. Según Li, los EIA forman parte de una estructura regulatoria que facilita la extracción de recursos y son una de las banderas de la rendición de cuentas corporativas. La autora se concentra en los efectos del EIA y concluye que los impactos identificados son solo aquellos que pueden ser manejados técnicamente, que los procesos de participación y divulgación circunscriben los espacios de oposición al documento y que los procedimientos y formatos asociados al documento son más importantes que su mismo contenido. Esto último lleva a las personas a buscar nuevas estrategias políticas como “salirse del documento”, mediante la no-participación en las instancias oficiales. Una versión preliminar de dicho capítulo de encuentra publicada en Li (2009).

En la conclusión del libro se retoma otro conflicto en torno a la minera Yanacocha. Se trata del proyecto “Minas Conga”, el cual afectaría cuatro lagunas que emergen como los focos de la disputa. Según la autora, el conflicto por Minas Conga encapsula la política de la extracción que se ha mostrado a lo largo del libro, situación que es aprovechada para resumir las conclusiones principales de cada capítulo. Las reflexiones finales se refieren a la hegemonía del conocimiento experto, en este punto la autora deja entrever cierto desconcierto y en un tono de resignación afirma que no se puede negar la fuerza del Estado y el rol de la violencia corporativa y estatal para suprimir la oposición y limitar las posibilidades de acción política; sin embargo, el libro concluye con una reflexión sobre las posibilidades del activismo. Para Li los actores no humanos que se desentierran con la minería moderna, han permitido a los opositores hacer oír sus demandas y desestabilizar visiones dominantes en que la naturaleza es vista como un conjunto de “recursos” que deben ser administrados. Estos objetos, en casos como los que se presentan en el libro y se observan cotidianamente en muchos contextos mineros de América latina, abren nuevos espacios de resistencia.

El libro es una interesante reconstrucción de las dinámicas en torno a la minería desde una perspectiva que permite ver más allá de una tradicional lucha entre actores hegemónicos y no hegemónicos. La atención a las relaciones entre personas y cosas evidencia cómo elementos no humanos llevan a los actores -tanto comunitarios como corporativos- a movilizarse, ya sea para defender un modo de vida tradicional que se ve amenazado o para hacer viable por medio de lógicas de equivalencia una actividad económica extractiva.

Comentario

1 Traducción propia.

Referencias:

De la Cadena, Marisol. 2010. “Indigenous Cosmopolitics in the Andes: Conceptual Reflections beyond ‘politics.’” Cultural Anthropology25 (2): 334–370.         [ Links]

Latour, Bruno. 2004. Politics of Nature: How to Bring the Sciences into Democracy. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links]

Li, Fabiana. 2009. “Documenting Accountability: Environmental Impact Assessment in a Peruvian Mining Project.” PoLAR: Political and Legal Anthropology Review32 (2): 218–236.         [ Links]

Li, Fabiana. 2015. Unearthing Conflict: Corporate Mining, Activism, and Expertise in Peru. Durham y Londres: Duke University Press.         [ Links]

Susana Carmona – Antropóloga, magíster en Estudios Socioespaciales de la Universidad de Antioquia, magíster en Antropología y estudiante del doctorado en Antropología en la Universidad de los Andes. Entre sus últimas publicaciones están: coautora en “Números, Conmensuración y Gobernanza en los Estudios de Impacto Ambiental”. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Sociedad 10 (30), 2015. “La Percepción de los Impactos Sociales de la Producción de Petróleo: el Caso de Casanare, Colombia”. Southern Papers Series/Working Papers Sur-Sur 21, 2015. E-mail: s.carmona10@uniandes.edu.co

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A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought 1748-1830 | Aurelian Craitu

Em A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought, 1748-1830, lançado em capa dura em 2012 e impresso em brochura três anos depois, o cientista político e historiador Aurelian Craiutu, professor da Universidade de Indiana, Estados Unidos, oferece aos leitores um livro desafiador e paradoxal.

Autor de vários textos sobre o liberalismo europeu dos séculos XVIII e XIX, dentre os quais se destaca seu livro de 2003 sobre os doutrinários franceses (Liberalism under Siege: The Political Thought of the French Doctrinaires ), Craiutu é tradutor e organizador de outros trabalhos sobre importantes pensadores liberais, tendo apresentado e traduzido para o inglês duas obras fundamentais para a doutrina liberal do século XIX, Considérations sur les principaux événements de la Révolution française , de Mme. De Stäel, e Histoire des origines du gouvernement représentatif, de François Guizot, além de ter ajudado a organizar dois livros sobre Tocqueville. O estudioso reuniu o vasto arsenal adquirido em mais de uma década e meia de estudos sobre a doutrina liberal para avançar a seguinte tese: a moderação é a quintessência da virtude política, um “arquipélago perdido” que historiadores e cientistas políticos ainda estão por descobrir (p. 1).

Dividido em duas partes – cada qual contendo três capítulos -, o livro oferece um estudo aprofundado de certos autores liberais francófonos que, exceção feita ao clássico e bastante conhecido Montesquieu, se destacaram no cenário público francês entre os momentos de crise do Antigo Regime e a Revolução de 1789, muito embora não tenham recebido a devida atenção da academia e do público em geral no passado como no presente. São eles, na ordem, os líderes monarchiens (monarquianos), designação pejorativa que os jacobinos atribuíram a um grupo heterogêneo de deputados da Assembleia Constituinte formado por Mounier, Malouet, Lally-Tollendal e Clermont-Tonnerre entre outros, e os quais se destacaram por defender o bicameralismo e o veto absoluto do monarca (capítulo 3); o banqueiro suíço Jacques Necker, o célebre ministro das Finanças de Luís XVI, cujas reflexões sobre a Revolução Francesa e a relação entre o Poder Executivo e os demais Poderes continuam largamente ignoradas até hoje (capítulo 4); Germaine Necker ou Mme. de Stäel, a filha de Necker e prolífica autora de artigos, panfletos e livros, além de importante ativista política nos quadros do Diretório e da Restauração (capítulo 5); o suíço Benjamin Constant (capítulo 6), parceiro afetivo, intelectual e político de Mme. de Stäel sobretudo nos períodos do Diretório e do Consulado e, como ela, autor igualmente prolífico – depois de Montesquieu, certamente o mais conhecido e estudado entre os elencados.

Além do prólogo, no qual expõe as justificativas e a metodologia da pesquisa, e do epílogo, no qual conclui com uma espécie de “decálogo” explicativo da moderação, o livro apresenta um esboço sobre o lugar ocupado pelo conceito de moderação no pensamento político ocidental, da antiguidade clássica e pensadores cristãos aos humanistas da época Moderna e filósofos franceses da Ilustração (capítulo 1), bem como um longo capítulo dedicado ao autor de O Espírito das Leis (1748), o barão de Montesquieu (segundo 2) – a meu ver o melhor do livro e, não por acaso, a pedra-angular da obra.

A escolha de Montesquieu como marco epistemológico inicial do estudo e da Revolução Francesa como tela de fundo do trabalho se justificam. O primeiro, pelo fato de haver delegado papel central à moderação política em sua grande obra, a qual teve o mérito de destacar os traços constitucionais, institucionais e legais da moderação para além das considerações de ordem ética sobre o caráter dos governantes ou dos legisladores. Ademais, as reflexões políticas de O Espírito das Leis e das produções dos demais autores ilustram os dois principais temas do livro de Craiutu: a moderação como conteúdo de uma agenda crítica e reformista do Antigo Regime; e as diversas tentativas de institucionalização da moderação política durante e após a Revolução de 1789, o eixo ou pano de fundo do livro. Inspirado no conceito de Sattelzeit (“tempo-sela”, tempo de aceleração histórica), cunhado por Reinhart Koselleck, e ecoando reflexões de François Furet acerca dos impactos da Revolução Francesa sobre a cultura política contemporânea, Craiutu justifica a centralidade daquele evento pelo fato de que “continuamos a viver num mundo democrático moldado e construído pelos ideais e princípios da Revolução Francesa” (p. 2).

É tendo por base as reflexões políticas de Montesquieu e de seus intérpretes envoltos no fenômeno revolucionário francês que Craiutu desdobra o que ele próprio designou como as quatro meta-narrativas do livro: I. a moderação abordada pelo aspecto político e institucional (e não como uma virtude pessoal ou individual), cujo propósito é salvaguardar não apenas a ordem, mas também a liberdade individual; II. a afinidade existente entre a moderação política e a complexidade institucional ou constitucional, conforme ilustraram Montesquieu por meio de seu conceito de “governo moderado”, os monarquianos com a defesa do bicameralismo e do veto absoluto, Necker mediante sua teoria da “soberania complexa” ou do “entrelaçamento dos poderes”, Mme. de Stäel com a sua busca de um “centro complexo” para consolidar a república termidoriana e Benjamin Constant em sua teoria do poder neutro; III. a moderação como a defesa sensata da liberdade, o que não se confunde com o conceito filosófico do juste milieu, pois a moderação pode se traduzir em atitudes tanto equilibradas como radicais de acordo com o contexto político; IV. por isso, a ação moderadora não pode ser analisada por meio do vocabulário político usual (direita ou esquerda), uma vez que possui conotações radicais ou conservadoras conforme o tempo e o espaço. Como bem destacou o autor no prólogo, há momentos em que as intenções moderadoras deixam de ser virtude e passam a significar fraqueza ou traição de princípios – poderíamos exemplificá-lo com o infame Pacto de Munique celebrado entre as potências europeias e a Alemanha nazista, que suscitou um célebre discurso de Churchill.

Na esteira do caráter elástico de seu tema, Craiutu optou por uma abordagem eclética na qual o contextualismo linguístico da Escola de Cambridge e a tradição historiográfica revisionista de Furet e seus discípulos (especialmente Lucien Jaume, destacado estudioso do liberalismo francês do século XIX) se articulam para dotar o livro de um caráter duplo. A Virtue for Courageous Mind pode ser lido ora como obra de filosofia política, ora como trabalho de história das ideias, dado o constante diálogo entre a análise textual e interpretação contextual.

Além das referências citadas acima, é possível identificar outras figuras importantes para o desenvolvimento da hipótese do autor, tais como Jonathan Israel, Judith Shklar, Norberto Bobbio e Isaiah Berlin. De acordo com Craiutu, cientistas sociais ignoram o conceito político da moderação por vários fatores, dentre os quais se destacam a persistência de uma tradição filosófica radical que associa a agenda moderada à defesa conservadora do status quo (de Marx a Israel); a tendência a enxergar na moderação um programa minimalista pautado pelo medo ou pela oposição aos extremos (provável alusão a Shklar e seu artigo ”Liberalism of fear”, de 1989); por fim, indo ao encontro de Bobbio e de Berlin, a visão dominante, não restrita à academia, que vincula a moderação à sagacidade de um determinado agente político, o qual, para conquistar seus objetivos, recorre a quaisquer tipos de compromissos ou manobras (o político encarado como um leão ou uma raposa).

Na contramão do insistente e vigoroso senso comum acerca do tema, Craiutu sustenta – inspirado numa citação do liberal-conservador Edmund Burke, de quem toma de empréstimo nada menos que o título do livro – que a moderação é “uma arrojada virtude para mentes corajosas” (p. 9). Ela não deve ser reduzida a mero meio-termo entre extremos nem tampouco representa sinônimo de pusilanimidade, hesitação ou cálculo cínico de realismo político. Com implicações institucionais e, segundo o autor, desempenhando um papel crucial na aquisição ou fortalecimento dos valores democráticos e liberais, a agenda moderada dos autores selecionados possui em comum pluralismo (de ideias, interesses e forças sociais), reformismo (reformas graduais em vez de rupturas revolucionárias) e tolerância (postura cética que reconhece limites humanos, especialmente para a ação política).

Antes de comentar o que, a meu ver, constitui o problema central do livro, a saber, a identidade das reflexões moderadas desses autores para a aquisição, manutenção e fortalecimento da democracia liberal (p. 9), gostaria de destacar alguns méritos da obra.

O primeiro ponto que saliento é, se não a originalidade, ao menos a correção no tratamento de um autor clássico como Montesquieu. Craiutu sugere que, mais do que propor um governo moderado fundado na separação dos poderes, equívoco reproduzido por incontáveis intérpretes, o que Montesquieu efetivamente sustentou foi uma teoria sobre a divisão dos poderes na qual o Executivo e o Legislativo exerciam controles recíprocos e moderavam as iniciativas de cada um – sua visão, no espírito da doutrina do equilíbrio de poder vigente na época e inspirada na constituição inglesa, pode ser traduzida na fórmula de que só um poder é capaz de controlar e regular outro poder, de modo que a estrita separação entre ambos daria margem a usurpações ou levaria à paralisia institucional. Nos quadros da Revolução Francesa, esse tópico da complexidade constitucional/institucional como condição sine qua non para a obtenção de um governo livre (moderado) se desenvolve nas obras dos monarquianos (bicameralismo e veto absoluto), de Necker (teoria do entrelaçamento dos poderes) e, sobretudo, de Benjamin Constant (teoria do poder neutro). Para demonstrá-lo, Craiutu procedeu a uma criteriosa pesquisa de fontes primárias (obras e discursos dos autores e de seus interlocutores, além de textos legais ou constitucionais) e secundárias (nas mais diversas línguas, do francês e inglês ao alemão), bem como a um erudito exercício de interpretação e reconstrução contextual. Do ponto de vista formal, os únicos senões correm por conta da omissão de um importante intérprete atual da obra de Benjamin Constant (Tzvetan Todorov), bem como da inusitada ausência de uma bibliografia no final do livro, o que dificulta a leitura de suas inúmeras e ilustrativas notas.

Craiutu foi feliz na escolha e no tratamento dos autores, na medida em que eles possuem um núcleo conceitual comum, a moderação vista sob o prisma da complexidade institucional, e defendem princípios filosóficos semelhantes: de Montesquieu a Constant, a mesma preocupação com a moderação das penas e com a absoluta liberdade de expressão; os benefícios do comércio; as garantias para a propriedade privada; o entendimento das desigualdades sociais como resultantes da fortuna ou do intelecto, numa visão otimista da meritocracia; o estabelecimento de pesos, contrapesos e divisões entre os poderes, o que é diferente da separação entre eles; a necessidade de um Judiciário independente do Legislativo e do Executivo; e a crítica às visões monistas ou absolutistas do poder que, da vontade geral de Rousseau às críticas de Paine ao governo misto da Inglaterra, redundaram na mera transferência do poder absoluto do monarca para o poder absoluto do Legislativo (como sabemos, trata-se de uma das principais teses de Furet sobre a Revolução Francesa).

Segundo Craiutu, o pensamento liberal, devido em grande medida à experiência da Revolução Francesa e do traumático período do Terror, teria passado por uma nítida evolução. Aos poucos seus autores teriam se preocupado menos com quem exerce a soberania (o monarca, uma maioria popular ou uma minoria abastada e ilustrada) e mais com a maneira em que a soberania é exercida, até concluírem que o que realmente importa é o estabelecimento de limites ao poder a fim de proteger os indivíduos da autoridade política – ainda que exercida em nome do povo, da nação, da vontade geral, ou sob a bandeira de ideais generosos e humanitários como a igualdade.

Exceção feita a Montesquieu, que não viveu a tempo de testemunhar a Revolução Francesa, os demais autores apresentaram diagnósticos lúcidos sobre as causas que conduziram à “derrapagem” daquele grande evento. Para além das já conhecidas interpretações liberais de Mme. de Stäel e Benjamin Constant para o período de 1789-1794 – as quais são de conhecimento dos iniciados na historiografia da Revolução Francesa -, Craiutu resgata as valiosas contribuições teóricas e balanços históricos dos monarquianos, especialmente Mounier (Recherches sur les causes qui ont empêché les Français de devenir libres, 1792), e de Necker, cujo panfleto De La Révolution Française, de 1796, não recebeu uma única edição sequer ao longo de mais de 200 anos!

A despeito de uma visão consolidada pelos próprios revolucionários franceses, dos jacobinos aos girondinos, que viam na retórica dos deputados monarquianos intenções aristocráticas ou conspiratórias a serviço da Corte, Craiutu reabilita esse grupo, sustentando, à guisa de Tocqueville, que os monarquianos eram dotados de um verdadeiro espírito revolucionário. Embora lutassem pelo estabelecimento de um governo moderado balizado por garantias constitucionais, eles seriam unânimes na oposição aos privilégios da nobreza. Craiutu sugere, após reconstruir as causas que levaram à derrota política dos monarquianos, que o Terror poderia ter sido evitado se as propostas de Mounier, Malouet, Clermont-Tonnerre, Lally-Tollendal & Cia. tivessem sido adotadas, observando que o projeto constitucional triunfante em 1814 e consolidado durante a Monarquia de Julho guardava estreitas afinidades com os diagnósticos políticos do grupo (p. 106).

Outro ponto alto do livro é o tratamento nada condescendente dispensado a figuras tão complexas quanto Mme. de Stäel e Benjamin Constant, as quais, sobretudo no período em que apoiaram o governo republicano do Diretório, sustentaram posições dificilmente classificáveis como moderadas ou liberais. Embora Craiutu tenha examinado bem os panfletos termidorianos da dupla e o crítico contexto de sua elaboração, ele poderia ter devotado um pouco mais de atenção à questão religiosa – como fez, por exemplo, Helena Rosenblatt em seu estudo sobre Constant, autora com a qual Craiutu dialoga frequentemente e concorda sobre a importância da religião para o pensamento político da dupla (p. 200).

Por fim, o autor conclui que as modernas democracias devem ser encaradas como formas mistas de governo representativo, não como simples expressões do “governo do povo”, e que a moderação política “pode promover ideais democráticos” (p. 248). Esta última afirmação nos coloca diante de um problema e de um paradoxo. Problema, porque apesar de os autores em destaque apoiarem a igualdade civil, todos defendiam uma ou mais cláusulas de exclusão (nível de renda, posses ou conhecimento formal) quando o assunto era a participação ativa dos cidadãos na política – o que, ademais, constituía a regra para os liberais da época, sendo Thomas Paine, referência bastante citada no livro, rara exceção no campo liberal do período. Diante dessa constatação, e levando-se em conta o meticuloso trabalho de reconstrução histórica de Craiutu, é uma pena que este importante detalhe tenha sido inexplorado. Por outro lado, e aqui adentramos o paradoxo, o autor acerta em cheio ao apontar a relevância dessa agenda moderada para os estudiosos dos regimes democráticos do presente, na medida em que estes, para além do sufrágio universal como fundamentação e método de funcionamento do sistema, baseiam-se no pluralismo, nos direitos individuais e nos direitos das minorias (vide Lucien Jaume, Le discours jacobin et la démocratie).

Antes de encerrar, caberia levantar uma questão: afinal de contas, o autor logra ou não convencer o leitor de que a moderação é a quintessência da virtude política? Com base no problema relatado acima, arrisco dizer que não. Por outro lado, concordo com Craiutu (e Burke) quando ele (s) afirma (m) que a moderação deve ser encarada como virtude para mentes corajosas. Ao contrário do que afirmou Nietzsche, e com base nas trágicas experiências do século XX, podemos concluir que coube justamente aos estadistas moderados reconstruir o mundo após o apocalipse de guerras e regimes tirânicos engendrados a partir da “mentalidade de rebanho”.

José Miguel Nanni Soares – Universidade de São Paulo, São Paulo SP, Brasil. E-mail: miguelnanni@uol.com.br


CRAIUTU, Aurelian. A Virtue for Courageous Minds: Moderation in French Political Thought 1748-1830. Princeton: Princeton University Press, 2015. Resenha de: SOARES, José Miguel Nanni. Revisitando um arquipélago quase esquecido. Almanack, Guarulhos, n.14, p. 314-320, set./dez., 2016.

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Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890) – FARIAS (RBH)

FARIAS, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro/Arquivo Geral da Cidade, 2015. 295p. Resenha de: CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

Antes de defender sua tese em 2012, Juliana Barreto Farias já era uma pesquisadora reconhecida, autora de trabalhos sólidos, tanto individualmente como em coautoria com historiadores renomados. A tese então defendida era fruto de uma pesquisa densa e bem sedimentada. Agora, expurgados os ranços que caracterizam as teses – aqueles que tornam a leitura pesada, difícil – e com alguns acréscimos bem situados, foi finalmente publicado esse importante estudo, que promete influenciar a literatura sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, particularmente sobre a presença de africanas minas no comércio a retalho.

A inspiração confessada da autora é uma fotografia de uma africana vendendo frutas e verduras numa bancada de mercado. É uma daquelas fotos de Marc Ferrez diante das quais os especialistas às vezes se lembram de que, talvez, já as tenham visto em algum lugar. Mas Juliana não se contentou com essa curiosidade, a estética vigorosa da “dama mercadora”, talvez Emília Soares do Patrocínio, a principal personagem do livro, uma africana liberta que deixou 30 contos de patrimônio inventariado e que alforriou outros 11 cativos. Dali em diante, fazendo uma ligação nominativa de fontes, percorrendo um rol considerável de documentos sobre o mercado, inventários, jornais, processos de divórcio e fontes paroquiais, a autora foi descobrindo outras pessoas, processos, histórias de vida, lendas urbanas, rumores e espaços, até que, finalmente, pôde apresentar aos leitores outro retrato, mais amplo, com mais profundidade e contextualização: o retrato do próprio mercado da Candelária, o “mercado do peixe”, na atual Praça XV de Novembro. Por intermédio desse trabalho denso e arguto entramos no cenário de muitas tramas que haviam caído em certo esquecimento da história urbana do Rio de Janeiro escravista. A foto daquela negra mina com uma urupema no colo inspirou a pesquisa, mas ela não é a única protagonista neste livro. O próprio mercado, que ganha vida, é o personagem principal deste importante estudo.

Inspirado no Les Halles de Paris, o mercado tinha absolutamente tudo de brasileiro, expressando os detalhes multiétnicos e as tensões que caracterizavam a vida social no Rio de Janeiro oitocentista. Nele percebe-se a dinâmica própria da escravidão na capital imperial, pois, a rigor, não se podia alugar banca de peixe a cativo, mas eles estavam lá o tempo todo, se não como vendedores independentes, com certeza, como prepostos. Em 1836, houve de fato uma queixa de que a posse de bancas havia sido concedida a escravos. Entre atritos, reclamações – até mesmo contra “pretos cativos atravessadores” – e rearranjos espaciais, a partir de 1844 só gente livre poderia ser locatária, embora seus cativos pudessem pernoitar no ambiente de trabalho. A autora crê, todavia, que os requerimentos iludiam à condição forra de muita gente, afinal de contas, salvo os “africanos livres”, não havia como essas pessoas com marcas de nação serem livres. Os minas eram os mais bem representados no mercado e, entre eles, havia uma distribuição entre os sexos bastante equitativa. As áreas internas, todavia, eram majoritariamente ocupadas por homens.

Apesar de muita confusão, greve até, em longo prazo houve uma razoável estabilidade entre os que se estabeleciam no mercado, pois a média de ocupação no mesmo local era de 15 a 20 anos. Era comum transferir a banca para gente da mesma família ou da mesma procedência, e, embora fosse possível ceder a posse e o uso do espaço, não se podia repassá-lo a terceiros por conta própria, sem interferência das autoridades competentes. Havia locatários ocupando mais de uma banca. José da Costa e Souza, ou José da Lenha, era tão onipresente nos negócios que, segundo um relatório de 1865, ficou também conhecido como “dono do mercado”. A trajetória de vida de alguns personagens, como Domingos José Sayão, um calabar forro, ilustra o tráfico de influência para se conseguir bancas. O fato de já estar lá trabalhando era importante para renovação, mas havia um jogo na Câmara Municipal envolvendo complexas relações patronais. E, nesse jogo burocrático e legal, as minas também eram protagonistas. Casavam-se, divorciavam-se, participavam de irmandades, querelavam e demandavam direitos nos termos da “lei do branco”.

Uma das partes mais ricas do livro é o estudo das posições relativas dos trabalhadores do mercado, desde os donos de banca até os cativos. À parte a condição servil, livre ou liberta de cada um, havia a cor da pele matizando as relações sociais. Entre os negros, os que não eram africanos aparentemente procuravam ressaltar esse dado nas petições. E eram muitos os africanos. A autora cita Holanda Cavalcanti, para quem bastava ir lá para vê-los ostentando suas marcas de nação. Os requerimentos, todavia, disfarçavam a condição dos requerentes forros, que não deviam ser poucos. Havia, entretanto, certa especialização naquela multidão. Os brasileiros dominavam a venda de pescados, os africanos concentravam-se na venda de legumes, verduras, aves e ovos. Os portugueses estavam em tudo, mas dominavam a venda de secos. Embora tenha encontrado até uma briga entre dezenas de ganhadores e 11 trabalhadores brancos do mercado, a autora não encontrou uma rivalidade permanente, inevitável entre portugueses e africanos, o que contraria o senso comum historiográfico. Os atritos eram muitos, mas cruzavam barreiras simplistas. A condição servil, livre ou liberta, a nacionalidade, a procedência e as relações patronais entrecruzavam-se marcando o cotidiano das relações de trabalho e convivência no mercado do peixe.

Empoderada pela riqueza que o comércio lhe proporcionou, Emília fez tudo o que poderia caber a uma africana liberta na capital imperial. Afirmou-se diante de outras mulheres e dos homens que cruzaram seu caminho. No comércio, liderava. Os homens que passaram por sua vida foram apenas coadjuvantes. Submersa numa sociedade que tentava conquistar, previsivelmente tornou-se senhora de escravos, e Juliana Barreto não encontrou evidências de que fosse melhor, mais generosa nas alforrias, do que as outras sinhás do seu tempo. Questões desse tipo – Como era ser escrava de uma africana liberta? Qual o significado do casamento cristão para as africanas cativas ou libertas? E o que significava ser uma “mina”, afinal de contas? – integram um rol de perguntas clássicas da historiografia brasileira para as quais este livro acrescenta novos elementos de discussão.

Embora com objeto bem delimitado, circunscrito no tempo e no espaço, este livro é também oportuno no momento presente, quando precisamos ampliar nossos horizontes de estudo, reabrir perspectivas comparadas. Nestes tempos de tantas e tantas teses a serem lidas, talvez já seja possível reavaliar tendências bem assentadas na historiografia. A escravidão no Rio de Janeiro das africanas retratadas neste importante livro precisa ser cotejada com aquela das africanas das Minas setecentistas, sobre as quais já existe sólida literatura, ou mesmo da Bahia e Pernambuco, revisitadas por estudos recentes. Aos poucos, os detalhes desse universo mais amplo da escravidão no Brasil oitocentista vão sendo desvelados por estudos densos, como este, que irão compor as futuras sínteses da vasta e rica historiografia brasileira sobre a escravidão.

Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Ph.D. em História, University of Illinois System (UILLINOIS). Professor Titular de História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, PE, Brasil. E-mail: marcus.carvalho.ufpe@hotmail.com

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Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881) – MATA (RBH)

MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864-1881). Campinas: Ed. Unicamp, 2015. 303p. Resenha de: CHIRA, Adriana. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

O complicado relacionamento entre as pessoas de cor e os movimentos nacionalistas latino-americanos esteve no centro de um vasto conjunto de pesquisas historiográficas. Algumas das questões que os estudiosos enfrentaram foram estas: o que levou as pessoas de cor a participar nesses movimentos? Como os modelaram? E por que endossaram ideologias nacionalistas que celebravam a harmonia racial e que as elites brancas viriam a usar como meio para silenciar as reivindicações baseadas na raça? As pessoas de cor foram sendo cooptadas pelas elites brancas, ou conseguiram dar forma ao teor geral dos movimentos e das ideologias nacionalistas? Historiadores cubanos envolveram-se nessas discussões, muito embora Cuba tenha discrepado cronologicamente em comparação com outras colônias espanholas nas Américas, alcançando sua independência apenas em 1898. O paradoxo que faz de Cuba um tema particularmente interessante de pesquisa é por que o maior produtor de açúcar para o mercado global poderia abrigar um ideal nacionalista de fraternidade racial, no momento em que o racismo científico tornava-se o lastro ideológico para os segundos impérios europeus na Ásia e na África, e para as chamadas leis Jim Crow no sul dos Estados Unidos. Realizando rica pesquisa em arquivos cubanos e espanhóis e tecendo uma bela narrativa que coloca na frente e no centro as vozes e as ações das próprias pessoas de cor, Iacy Maia Mata oferece, em sua monografia, novas abordagens sobre essas questões.

Estudos anteriores sobre fraternidade racial em Cuba centraram o foco sobretudo na experiência militar durante a prolongada Guerra de Independência contra a Espanha (1868-1898). Estudiosos e intelectuais já desde José Martí argumentaram que o esprit de corps militar que se desenvolveu entre os rebeldes pró-independência através das linhas de segregação oficiais serviu como catalisador de ideologias radicais de inclusão nacional e racial. Mata, porém, sustenta que há indícios nos arquivos de uma cultura política popular em Santiago que parece ter preexistido à campanha militar de 1868. Introduzindo um novo recorte cronológico para a emergência de ideologias de igualdade racial em Cuba, Iacy Mata não está apenas oferecendo o relato mais completo. Ela também está sugerindo que a população de cor de Santiago havia considerado a igualdade antes mesmo de as elites liberais de pequenos proprietários na província vizinha de Puerto Príncipe terem iniciado a guerra de independência.

O objetivo de Iacy Mata é traçar as origens da cultura política popular de Santiago e explicar como, entre meados dos anos 1860 e o início da década de 1880, a população de cor local superou as divisões de status e criou laços e solidariedades que alcançaram sua expressão completa na ideia de uma raza de color unificada. A autora argumenta que essa visão particular de uma comunidade política centrada na raça estava alinhada com a causa nacionalista de uma Cuba livre. Como ela coloca adequada e incisivamente, as pessoas de cor de Santiago passaram, no começo da década de 1860, da condição de la clase de color, um rótulo oficial nelas fixado pelas autoridades coloniais espanholas, para a de la raza de color, termo que intelectuais e líderes políticos e militares de cor começaram a usar para se autoidentificar no início da década de 1880.

Ao longo da maior parte de sua existência colonial, Santiago de Cuba, província situada na extremidade leste da ilha, foi uma zona de fronteira colonial, ator marginal na política imperial e local de pouco investimento da agricultura de plantation em larga escala. Os refugiados da Revolução Haitiana que migraram para essa região por volta de 1803 ali introduziram plantações de café, muitas das quais faliram no começo da década de 1840. Até o final dos anos 1850, as principais fontes de renda locais eram a criação de gado, a plantação de café e tabaco e a mineração de cobre (que as autoridades concederam a uma companhia inglesa). Como resultado da localização de Santiago nas margens do domínio açucareiro, a pequena propriedade permaneceu ali muito mais comum do que na parte centro-oeste de Cuba. Além do mais, Santiago também se destacou entre as demais províncias cubanas pelo peso demográfico relativamente maior da população de cor. No começo dos anos 1860, muitos deles eram pequenos proprietários e alguns possuíam um pequeno número de escravos. Era essa população que começou a se mobilizar politicamente no início daquela década, argumenta a autora, em resposta aos acontecimentos econômicos locais e aos movimentos internacionais antiescravagistas.

Nos primeiros anos da década de 1860, o açúcar começou a deitar raízes mais profundas em Santiago e a produção de café voltou a se expandir ali. Como consequência, as plantações começaram a invadir áreas onde os pequenos proprietários ou arrendatários cultivavam tabaco, deixando a população de cor insatisfeita. Ademais, em meados da década, teriam chegado a Santiago notícias e rumores sobre a emancipação dos escravos no sul dos Estados Unidos. A população local também teria consciência, havia bastante tempo, dos protestos britânicos contra a escravidão e o comércio de escravos para o Império Espanhol (em razão da proximidade da Jamaica), bem como da reputação do Haiti como república construída a partir de uma bem-sucedida revolução de escravos. Fazendo uma leitura cuidadosa de registros criminais e judiciais, Iacy Mata recupera como essas notícias impactaram a vida cotidiana entre os escravos e a população de cor livre e o que fizeram com elas. Quer fosse a exibição sutil e irônica de uma bandeira haitiana, trazendo inscrita a palavra Esperança, quer fosse o uso de um vocabulário pró-republicano, antiescravidão e antidiscriminação, sustenta a autora, as conversas de natureza política se espalharam pela cidade e pelas áreas rurais antes de 1868.

As conversas políticas locais culminaram em uma série de conspirações que transpirou entre 1864 e 1868 na província de Santiago e em áreas adjacentes. Iacy Mata interpreta a evidência dessas conspirações cuidadosamente, identificando os objetivos e as alianças dos participantes que emergiam entre escravos, população de cor livre e brancos. Os desiderata incluíam uma república independente, o fim da escravidão e a igualdade de direitos no que diz respeito ao status de raça. Nos dois capítulos finais, a autora coloca em discussão que essas metas políticas receberiam maior articulação durante a Guerra de Independência, quando as pessoas de cor tentariam radicalizar a agenda principal da liderança branca liberal para incluir a igualdade política e a abolição imediata.

A monografia baseia-se em extensa pesquisa nos arquivos imperiais espanhóis (Arquivo Histórico Nacional, Arquivo Geral das Índias), bem como em fontes dos Arquivos Nacionais Cubanos e do Arquivo Histórico Provincial de Santiago de Cuba. Esses diferentes repositórios forneceram a Iacy Mata fontes que lhe permitiram deslocar-se entre diferentes percepções dos mesmos eventos ou processos: elite/subalterno, centro imperial (Madri)/elite política centrada no açúcar (Havana)/zona de fronteira cubana (Santiago). Adicionalmente, o trabalho de Iacy Mata mostra como o estudo de uma área de fronteira do Caribe pode ser importante para se entender o radicalismo político na região. Por muito tempo, os historiadores permaneceram focando as áreas produtoras de açúcar como os principais espaços onde a mudança social se deu. Embora seu trabalho tenha nos munido de ferramentas e abordagens analíticas indispensáveis, Iacy Mata sugere que é importante olhar para além dessas áreas se quisermos compreender a cultura política local.

A monografia também abre importantes caminhos para novas pesquisas. A unidade discursiva do termo raza de color esconde as complexas políticas e as fraturas existentes entre as pessoas de cor em Santiago que sobreviveram nos anos 1880 e moldariam a política clientelista nos primórdios da Cuba republicana. Seria fundamental considerar que as origens e os desdobramentos posteriores dessas fraturas estariam em Santiago. Em segundo lugar, o estudo de Iacy Mata alude à presença de aliados brancos liberais em Santiago, que, ocasionalmente, ajudaram os combatentes pela liberdade ou participaram de conspirações antiescravidão. A historiadora cubana Olga Portuondo Zúñiga explorou a história do liberalismo na parte ocidental da ilha, revelando um vibrante campo de ideias liberais que se mostravam, às vezes, contraditórias ou contraditórias em si mesmas. Puerto Príncipe e Bayamo foram terrenos particularmente férteis para o pensamento liberal, mas Santiago não esteve alheia a ele antes da Guerra de Independência (ver, por exemplo, o governo de Manuel Lorenzo nos anos 1830). Algumas dessas ideologias liberais podem também ter escoado através de redes que alcançaram ex-colônias latino-americanas depois da década de 1820 e a República Dominicana durante a Guerra da Restauração nos anos 1860. Estudar os ideais políticos da população de cor de Santiago em relação a essas outras correntes políticas, tanto internas quanto externas à ilha, parece ser um terreno especialmente importante para futuras pesquisas.

O trabalho de Iacy Mata é uma bela ilustração de como as ferramentas da história social e política podem capturar a dinâmica dos movimentos políticos populares. Assim sendo, eu o recomendo vivamente para os estudiosos interessados em sociedades escravistas e pós-escravistas e nos papéis que as pessoas de cor desempenharam no interior delas.

Adriana Chira – Ph.D., University of Michigan. Assistant Professor of Atlantic World History, Emory College of Arts and Sciences (USA). Emory College of Arts and Sciences. Atlanta, GA, USA. E-mail: adriana.chira@emory.edu.

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A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas – TRINDADE (RBH)

TRINDADE, Hélgio. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2016. 837p. Resenha de: GONÇALVES, Leandro Pereira. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

São 17 horas em Brasília. Com os olhos inchados, o rosto deformado pelos anos e após acordar de uma longa sesta, o antigo (e eterno, para os militantes) chefe dos integralistas concedeu uma entrevista ao então doutorando em Ciência Política da Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) Hélgio Trindade, que teve um segundo encontro com o líder dos camisas-verdes em São Paulo. Na ocasião das pesquisas, foram realizadas entrevistas com Miguel Reale, Dario Bittencourt e Rui Arruda, dentre outros integralistas ou simpatizantes, como Alceu Amoroso Lima e Menotti Del Picchia.

O momento não era nada propício para o desenvolvimento de uma pesquisa dessa estirpe, pois estávamos vivendo os duros tempos da ditadura civil-militar e muitos dos integralistas dos anos 1930 eram figuras ativas no contexto do regime autoritário, como o general Olympio Mourão Filho, que recebeu de pijama e chinelos o então doutorando em seu apartamento, em Copacabana. Detalhes pitorescos e impensáveis que serão descobertos nas 837 páginas do livro A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas.

Não há estudioso que não tenha esbarrado com o nome de Hélgio Trindade. A tese de doutorado denominada L’Action intégraliste brésilienne: um mouvement de type fasciste au Brésil, traduzida e publicada no Brasil, em 1974, sob o título Integralismoo fascismo brasileiro na década de 30 (Trindade, 1974), é cada vez mais viva na Ciência Política e nos trabalhos historiográficos. Esse estudo promoveu a entrada da temática no meio acadêmico, sendo também responsável por tornar conhecido o movimento e tê-lo interpretado. O pesquisador gaúcho foi o precursor dos estudos e é referência cada vez mais atuante para os que buscam compreender esse fenômeno político do século XX que arrastou multidões e mobilizou milhares de pessoas em torno de um grande nome: Plínio Salgado.

A nova produção de Hélgio Trindade é lançada em contexto acadêmico extremamente oposto ao do momento de divulgação da tese, em 1974, quando não havia amplos diálogos. A tentação fascista no Brasil: imaginário de dirigentes e militantes integralistas é uma espécie de “promessa” do professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1979, o ex-reitor da UFRGS e da Unila anunciou, na 2ª edição da tese, publicada pela Difel, que um volume seguinte teria como objeto de análise um conjunto de depoimentos gravados, inéditos, colhidos com dirigentes e militantes integralistas, mas, por implicações éticas, faria a divulgação após a morte de todos.

Há muitos anos os pesquisadores comentavam sobre as entrevistas, e muitos se questionavam onde elas estavam e se realmente existiam, visto que o material sempre foi objeto de desejo de todos os estudiosos do tema. Agora, finalmente, há a possibilidade de termos em mãos uma parte significativa dos depoimentos que foram concedidos a Hélgio Trindade. Vejo como um feito da publicação o trabalho que o autor teve em organizar as entrevistas de maneira temática, pois o livro não é apenas uma simples transcrição, há um árduo trabalho metodológico acompanhado por referências e contextualizações amplas sobre o período e o Movimento.

Em “Nota prévia” o autor defende o uso fascista para a caracterização do integralismo frente ao debate da década de 1970 e suas repercussões no contexto acadêmico contemporâneo, polêmica existente desde a defesa da tese. O prefácio da segunda edição (Trindade, 1979), reproduzido no novo livro e escrito pelo cientista político da Universidade de Yale, Juan J. Linz, falecido em 2013, destaca a importância da investigação no cenário acadêmico, principalmente por identificar um tipo fascista fora do contexto europeu, temática que segue a introdução escrita pelo autor, demonstrando em uma visão continental a particularidade do movimento integralista – “O fascismo na América Latina em debate”. Antes de nos brindar com as entrevistas, faz uma síntese da tese, expondo o universo ideológico do integralismo para que o leitor possa identificar elementos da estrutura da Ação Integralista Brasileira.

Plínio Salgado, o líder do movimento, mereceu um capítulo exclusivo: “Entrevistas com dirigentes e militantes da AIB”. Nele, o chefe supremo dos camisas-verdes aponta questões sobre o passado e sobre um presente utópico. São palavras que permitem ao historiador identificar elementos até então conhecidos no campo das hipóteses, nos aspectos político, cultural, internacional, religioso ou mesmo pessoal. Com as entrevistas, é possível contribuir com diversas investigações, como a força exercida pela intelectualidade portuguesa em Plínio Salgado, tanto na juventude, pela leitura de obras ligadas aos católicos lusitanos, como no contexto do pós-guerra, quando António de Oliveira Salazar estabeleceu papel preponderante na composição de um novo Plínio Salgado após o exílio (cf. Gonçalves, 2012).

Em “Imaginário da elite dirigente e Dirigentes e Militantes Locais” Trindade oferece entrevistas realizadas entre maio de 1969 e setembro de 1970 com representantes do movimento e líderes de destaque no cenário político: Frederico Carlos Allendi, Rui Arruda, Dario Bittencourt, Margarida Corbisier, Roland Corbisier, José Ferreira da Silva, Arnoldo Hasselmann Fairbanks, Antonio Guedes Hollanda, Américo Lacombe, José Ferreira Landin, Edgar Lisboa, José Loureiro Júnior, Jeovah Mota, Olympio Mourão Filho, Erico Muller, Zeferino Petrucci, Miguel Reale, João Resende Alves, Goffredo da Silva Telles, Ângelo Simões Arruda, Ponciano Stenzel, Antonio de Toledo Pizza e Aurora Wagner. Como as entrevistas estão no anonimato, uma relação foi inserida no fim do livro, mas no início de cada entrevista há uma pequena biografia do depoente que permite ao estudioso a identificação, mas isso não é tão simples para os demais leitores.

Em sequência, Trindade traz em “Olhares externos de intelectuais independentes” entrevistas de personalidades que viveram o período e que conviveram em algum momento com Plínio Salgado e outros membros do movimento: Alceu Amoroso Lima, Cruz Costa, Candido Morra Filho, Menotti Del Picchia e Antonio Candido, sendo este último o único depoente ainda vivo. Como não há relações políticas e comprometimentos em algumas passagens, os nomes desses são identificados nas entrevistas.

A obra, que marca o retorno do autor ao debate (apesar de nunca ter deixado de fazer parte da discussão),2 tem dois aspectos principais e de grande relevância: 1º) permite identificarmos o olhar do ator no contexto histórico; nas entrevistas é possível verificar passagens e trechos inimagináveis, pérolas recolhidas por Trindade; 2º) com tal produção, tem-se a possibilidade de revolucionar a historiografia, pois são documentos até então desconhecidos que, graças aos depoimentos, podem confirmar questões que se encontram no campo da hipótese ou verificar possibilidades investigativas. Além disso, o autor faz parte de um seleto rol de pesquisadores, pois, seja na história ou na ciência política, Hélgio Trindade é responsável pela construção de uma interpretação, um pensamento único e, portanto, estabelece uma composição central na esfera acadêmica.

Esta obra busca, além de identificar o imaginário dos militantes integralistas, contribuir para o entendimento de questões acaloradas da sociedade contemporânea, em que as forças políticas conservadoras estão cada vez mais atuantes e com tentações antidemocráticas, reflexões que são realizadas no epílogo: “Ainda a tentação fascista no Brasil?”.

O livro de Hélgio Trindade vem em momento oportuno, pois não pensemos que o pesadelo acabou, uma vez que a intolerância e o autoritarismo estão longe de ser página virada na história da humanidade, principalmente com a complexa crise política que culminou com as ações do dia 31 de agosto de 2016. O livro não poderia ter desfecho mais atual, pois ao citar Karl Marx, conclui: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.

Referências

GERTZ, René E.; GONÇALVES, Leandro P.; LIEBEL, Vinícius. Camisas Verdes, 45 anos depois – uma entrevista com Hélgio Trindade. Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v.42, n.1, p.189-208, abr. 2016. [ Links ]

GONÇALVES, Leandro P. Entre Brasil e Portugal: trajetória e pensamento de Plínio Salgado e a influência do conservadorismo português. 2012. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, 2012. [ Links ]

TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. São Paulo: Difel, 1974. [ Links ]

_______. Integralismo: o fascismo brasileiro da década de 30. 2.ed. São Paulo: Difel; Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1979. [ Links ]

Nota

2 Em recente entrevista para a revista Estudos Ibero-Americanos, Hélgio Trindade aponta questões sobre sua trajetória e, principalmente, sobre o impacto da tese na academia brasileira (GERTZ; GONÇALVES; LIEBEL, 2016). Repercussões foram publicadas na edição seguinte e podem ser consultadas em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/iberoamericana/issue/view/1032/showToc.

Leandro Pereira Gonçalves –  Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisador e autor de diversos estudos sobre o integralismo, notadamente, a trajetória de Plínio Salgado, é doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com estágio no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e com pós-doutoramento pela Universidad Nacional de Córdoba (Centro de Estudios Avanzados), Argentina. Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: leandro.goncalves@pucrs.br.

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O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano – MAGRI (RBH)

MAGRI, Lucio. O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano. Boitempo, São Paulo: 2014. 415p. Resenha de: POMAR, Valter. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

O alfaiate de Ulm é a última obra de Lucio Magri (1932-2011), intelectual comunista italiano e um dos responsáveis pela criação de Il Manifesto, periódico lançado em 1969 e que segue sendo publicado (http://ilmanifesto.info/).

O alfaiate de Ulm pode ser lido em várias claves: relato autobiográfico e testamento político, panorama do século XX, ensaio sobre a história e as perspectivas do movimento comunista italiano (especialmente o apêndice, um documento de 1987 intitulado “Uma nova identidade comunista”).

O movimento comunista da Itália tem gênese histórica distinta, onde confluem as características próprias daquele país, o impacto da revolução russa de 1917, a luta contra o fascismo e as batalhas da Guerra Fria.

Nesse contexto, o Partido Comunista não foi apenas uma organização política: foi também uma instituição cultural com imenso enraizamento na classe trabalhadora, na juventude e na intelectualidade, que teve na obra de Antonio Gramsci sua feição teórica mais conhecida e reconhecida.

Apesar disso tudo – ou por causa disso tudo, como fica claro da leitura de O alfaite de Ulm – o Partido Comunista Italiano cometeu suicídio em 1989.

Diferente das pequenas seitas militantes, que conseguem sobreviver em condições variadas e inóspitas, os partidos de massa parecem sobreviver apenas em determinadas condições. E como demonstra Lucio Magri, várias das condições que tornaram possível a existência de um forte comunismo reformista italiano e europeu desapareceram com a União Soviética e com a reestruturação capitalista simultânea à ofensiva neoliberal.

Dito de outra forma, a força das duas grandes famílias da esquerda europeia (o reformismo social-democrata e o reformismo comunista), assim como o brilho dos grupos de ultraesquerda que viviam à sombra daquele duplo reformismo, dependiam das condições “político-ecológicas” existentes na Europa enquanto durou a chamada bipolaridade entre União Soviética e Estados Unidos.

Quando esse conflito cessou, com a vitória dos Estados Unidos, a social-democracia experimentou uma deriva neoliberal, e o reformismo comunista, uma deriva social-democratizante.

Claro que esse não foi um processo uniforme. Uma das qualidades de O alfaiate de Ulm é apresentar uma interpretação do que teria ocorrido no caso italiano. Vale destacar esta palavra: interpretação. Há muitas outras interpretações, e sempre haverá o que estudar acerca das desventuras em série que atingiram o movimento comunista, o conjunto da esquerda e da classe trabalhadora, especialmente na Europa dos anos 1980 e 1990. A Itália constitui caso destacado, em boa medida pelo fato de lá estar baseado o tantas vezes denominado de maior partido comunista do Ocidente.

O alfaiate de Ulm pode ser lido com muito proveito por quem tem interesse em compreender os dilemas da classe trabalhadora, da esquerda brasileira e especialmente do Partido dos Trabalhadores.

Época e circunstâncias muito diferentes, obviamente. A começar pelo fato de que as variáveis internacionais que fortaleciam o reformismo social-democrata e comunista na Europa produziam efeitos muito distintos na América Latina e no Caribe, inclusive no Brasil.

Isso ajuda a entender por que, na mesma época em que o PCI cometia suicídio, abandonando suas tradições e até mesmo seu nome, o Partido dos Trabalhadores estava convertendo-se em força hegemônica na esquerda brasileira.

Guardadas essas diferenças, é impossível não enxergar certas semelhanças entre os dilemas vividos pelo Partido Comunista Italiano nos anos 1970 e 1980 e os impasses vividos mais de 20 anos depois pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro.

Os dilemas do PCI são descritos detalhadamente em O alfaiate de Ulm. Segundo Lucio Magri, a “peculiaridade do PCI … era a de ser um ‘partido de massas’ que ‘fazia política’ e agia no país, mas também se instalava nas instituições e as usava para conseguir resultados e construir alianças” (p.333).

Magri demonstra que a atuação na institucionalidade não foi apenas uma estratégia. Mais do que isso, converteu o PCI em parte estrutural do Estado italiano, naquilo que Magri chama de um “elemento constitutivo de uma via democrática. Uma medalha que, no entanto, tinha um reverso” (p.333).

Esse “reverso”, que soa tão familiar aos que acompanham as vicissitudes atuais da esquerda brasileira, é assim apresentado por Lucio Magri:

Não me refiro apenas ou sobretudo às tentações do parlamentarismo, à obsessão de chegar a todo custo ao governo, mas a um processo mais lento. No decorrer das décadas, e em particular em uma fase de grande transformação social e cultural, um partido de massas é mais do que necessário, assim como sua capacidade de se colocar problemas de governo. Mas, por essa mesma transformação, ele é molecularmente modificado em sua própria composição material. (p.333)

Talvez esteja nisto a maior contribuição de O alfaiate de Ulm: essa abordagem profundamente histórica da vida de um partido político, ou seja, a compreensão de que a história de um partido só pode ser adequadamente compreendida como parte da história de uma sociedade, enquanto processo integrado entre as opções estritamente políticas, as tradições culturais e as relações sociais mais profundas, num ambiente nacional e internacional determinado.

A descrição que Lucio Magri faz do processo de seleção e promoção dos dirigentes partidários fala por si:

a formação de novas gerações, mesmo entre as classes subalternas, ocorria sobretudo na escola de massas e mais ainda por intermédio da indústria cultural; os estilos de vida e os consumos envolviam toda a sociedade, inclusive os que não tinham acesso a eles, mas alimentam a esperança de tê-lo; as “casamatas” do poder político cresciam em importância, mas descentralizavam-se e favoreciam aqueles que ocupavam as sedes; a classe política, mesmo quando permanecia na oposição e incorrupta, à medida que a histeria anticomunista diminuía, criava relações cotidianas de amizade, amálgama, hábitos e linguagem com a classe dirigente. (p.333)

Essa “mescla de costumes” da “classe política” com a “classe dirigente”, como sabemos, não é uma peculiaridade italiana. Tampouco seus efeitos organizativos, assim descritos por Magri:

as seções não estavam mais acostumadas a funcionar como sede de trabalho das massas, de formação cotidiana de quadros; eram extraordinariamente ativas apenas na organização das festas do Unità, e mais ainda nos períodos de eleição nacional e local; as células nos locais de trabalho eram poucas e delegavam quase tudo ao sindicato. Nos grupos dirigentes, a distribuição dos papéis havia mudado muito: o maior peso e a seleção dos melhores haviam se transferido das funções políticas para as funções administrativas (municípios, regiões e organizações paralelas, como as cooperativas). Portanto, mais competência e menos paixão política, mais pragmatismo e horizonte político mais limitado. Os intelectuais sentiam-se estimulados para o debate, mas sua participação na organização política havia declinado e o próprio debate entre eles era frequentemente eclético. A exceção era o setor feminino, em que um vínculo direto entre cúpula e base criava uma agitação fecunda. (p.334)

Noutras palavras, Lucio Magri descreve como as transformações “moleculares” causaram uma metamorfose no Partido Comunista: pouco a pouco foi deixando de ser um fator de subversão, transformando-se em peça importante na engrenagem do Estado e da política italiana. Uma peça diferente das outras, como demonstraria a Operação Mãos Limpas, a qual confirmaria que o PCI soubera resistir à corrupção sistêmica. Mas uma peça da engrenagem, como demonstra o fato de o PCI não ter sobrevivido ao colapso da estrutura política italiana.

Nesse sentido, a interpretação feita por Lucio Magri parece demonstrar que o Partido Comunista Italiano não foi vítima do fracasso, mas sim do sucesso da “estratégia” que alguns denominaram, na Itália e aqui no Brasil, de “melhorista”.

Essa estratégia não apenas melhorou a vida da classe trabalhadora italiana, como converteu o comunismo numa força influente e vista como ameaçadora pela classe dominante e pelos Estados Unidos, que atuaram tanto aberta quanto secretamente para evitar o êxito da aliança entre o PCI e a Democracia Cristã. Lucio Magri trata dessas operações, especialmente visíveis no caso Aldo Moro.

Bloqueado pela direita, o PCI tentou – sob a direção de Berlinguer – uma saída pela esquerda. Os capítulos que tratam dessa fase são talvez os mais interessantes de O alfaiate de Ulm, em parte por discutirem se a história poderia ter seguido um caminho diferente.

Como sabemos, entretanto, não foi isso o que ocorreu. Ao longo dos anos 1970 e 1980, alteraram-se profundamente os parâmetros dentro dos quais se movera a política no pós-Segunda Guerra Mundial, tanto na Itália quanto no mundo. O PCI não conseguiria chegar ao poder nos marcos daqueles parâmetros em vias de desaparecimento. Não conseguiria tampouco defendê-los frente à ofensiva neoliberal e à crise do socialismo. Nem conseguiria sobreviver para atuar nas novas condições.

Lucio Magri descreve, num tom profundamente autocrítico e em certo momento impiedoso consigo mesmo, as opções feitas pela maioria dirigente do PCI, que levaram à mudança do nome e das tradições políticas e culturais do Partido. Mostra como havia energias vivas na base militante do comunismo italiano, energias que não foram suficientes para dar vida ao projeto da Refundação Comunista.

Enfim, pelo que descreve, pelas conclusões a que chega e pelas perguntas que deixa, O alfaiate de Ulm de Lucio Magri é leitura mais do que relevante para os que têm interesse em compreender os dilemas atuais do Partido dos Trabalhadores e do conjunto da esquerda e os rumos da política brasileira neste terceiro milênio.

Valter Pomar – Doutor em História Econômica, Universidade de São Paulo (USP). Professor de economia política internacional no Bacharelado de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC. Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campo, SP, Brasil. E-mail: pomar.valter@gmail.com.

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Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 17, n.3, 2016.

Artigos

Publicado: 2016-08-31

EaD em Foco. Rio de Janeiro, v.6, n.2, 2016.

Editorial

Artigos Originais

Estudos de Caso

Revisões

Publicado: 2016-08-26

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.1, n.1, 2016 / v.3, n.9, 2018.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.3, n.9, 2018.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê

Pesquisa (auto)biográfica em educação na Europa e América

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v3.n9

PUBLICADO: 2018-12-20

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.3, n.8, 2018.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê

Pesquisa biográfica e (auto)biográfica em educação na América Latina

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v3.n8

PUBLICADO: 2018-09-14

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.3, n.7, 2018.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê

Migrações, pesquisa biográfica e (auto)biográfica

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v3.n7

PUBLICADO: 2018-04-26

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.2, n.6, 2017.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê Imagnes, narrativas e currículo

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v2.n6

PUBLICADO: 2017-12-15

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.2, n.5, 2017.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê Viagens e narrativas (auto)biográficas

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v2.n5

PUBLICADO: 2017-08-31

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.2, n.4, 2017.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

Dossiê Narrativas, arte e contemporaneidade

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v2.n4

PUBLICADO: 2017-04-29

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.1, n.3, 2016.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v1.n3

PUBLICADO: 2016-12-13

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.1, n.2, 2016.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v1.n2

PUBLICADO: 2016-08-26

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica. Salvador, v.1, n.1, 2016.

Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica

DOI: https://doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.v1.n1

PUBLICADO: 2016-08-26

Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.5, n.15, jan./jul, 2016.

Dossiê: História da Educação na América Latina: práticas e culturas escolares

Expediente

Editorial/Apresentação

Dossiê

Artigos

Resenhas Críticas

Publicado: 2016-08-24

Revista Paraibana de História. João Pessoa, v.1, jan./jun. 2016.

EXPEDIENTE

ARTIGOS

PUBLICADO: 2016-08-16

A memória coletiva | Maurice Halbwachs

Maurice Halbwachs nasceu na França em 1877 e foi morto em 1945 em um campo de concentração nazista na Alemanha. Consagrou-se como um importante sociólogo da escola durkheimiana. Antes de se interessar pela sociologia, estudou filosofia na École Normale Supérieure em Paris com Henry Bergson tendo sido influenciado por ele. Halbwachs é também responsável pela inauguração do campo de estudos sobre a memória na área das ciências sociais, pois até então, as áreas que se ocupavam dos estudos da memória, eram a psicologia e a filosofia.

Halbwachs criou a categoria de “memória coletiva”, por intermédio da qual postula que o fenômeno de recordação e localização das lembranças não pode ser efetivamente analisado se não for levado em consideração os contextos sociais que atuam como base para o trabalho de reconstrução da memória. É, portanto, mediante a categoria de “memória coletiva” de Halbwachs que a memória deixa de ter apenas a dimensão individual, tendo em vista que as memórias de um sujeito nunca são apenas suas ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir isolada de um grupo social.

Essa categoria de análise trouxe contribuições valiosas para os trabalhos na área da sociologia, psicologia, história, entre outras, influenciando a produção de importantes trabalhos. Aqui no Brasil, por exemplo, podemos citar Memória e sociedade: lembranças de Velhos de Ecléa Bosi, cuja primeira publicação data de 1979 e que constitui uma referência para estudos da memória.

A obra aqui analisada A memória coletiva, é composta por quatro capítulos e foi publicada pela primeira vez em 1950, cinco anos após a morte do autor, em Buchenwald no campo de concentração nazista na Alemanha. Para tanto, a memória na concepção de Halbwachs é um processo de reconstrução, devendo ser analisada levando-se em consideração dois aspectos: o primeiro refere-se ao fato de que não se trata de uma repetição linear dos acontecimentos e vivências no contexto de interesses atuais; por outro lado, se diferencia dos acontecimentos e vivências que podem ser evocados e localizados em um determinado tempo e espaço envoltos num conjunto de relações sociais.

Para este, a lembrança necessita de uma comunidade afetiva, cuja construção se dá mediante o convívio social que os indivíduos estabelecem com outras pessoas ou grupos sociais, a lembrança individual é então baseada nas lembranças dos grupos nos quais esses indivíduos estiveram inseridos. Desse modo, a constituição da memória de um indivíduo resulta da combinação das memórias dos diferentes grupos dos quais está inserido e consequentemente é influenciado por eles, como por exemplo, a família, a escola, igreja, grupo de amigos ou no ambiente de trabalho. Nessa ótica, o indivíduo participa de dois tipos de memória, a individual e a coletiva.

Segundo Halbwachs o indivíduo que lembra está inserido na sociedade na qual sempre possui um ou mais grupo de referência, a memória é então sempre construída em grupo, sendo que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva”, como se pode ver, o trabalho do sujeito no processo de rememoração não é descartado, visto que as “lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2013, p.30). Dessa maneira, a lembrança é resultado de um processo coletivo, estando inserida em um contexto social específico. As lembranças permanecem coletivas e são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente o sujeito se encontre envolvido. Isso acontece na medida em que o indivíduo está sempre inserido em um grupo social.

Ainda que apenas um indivíduo tenha a percepção de ter vivenciado certos eventos e contemplado objetos, acontecimentos e etc., nos quais apenas ele viu/presenciou, mesmo assim as lembranças acerca desses continuam sendo coletivas, podendo ainda ser evocadas por outros que não necessariamente vivenciaram e/ou presenciaram tais acontecimentos, visto que para “confirmar ou recordar uma lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível” (HALBWACHS, 2013, p.31). Em outra passagem o sociólogo assinala a contribuição da memória coletiva no processo de rememoração:

Uma ou mais pessoas juntando suas lembranças conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos ao mesmo tempo em que elas, e conseguem até reconstituir toda a sequência de nossos atos e nossas palavras em circunstâncias definidas, sem que nos lembremos de nada de tudo isso (HALBWACHS, 2013, p.31).

No entanto, é preciso assinalar que para recordar um evento passado, não é necessário apenas que ele seja evocado por outros para que o sujeito lembre-se dele. É preciso que o indivíduo traga consigo algum “resquício” da rememoração para que os conjuntos de testemunhos exteriores se constituam em lembranças. No processo de rememoração, é importante que a memória individual esteja em consonância com a memória de outros membros do grupo social. Para o autor, somente se pode falar em memória coletiva se evocarmos um evento que também fez parte da vida do grupo no qual fazemos parte. No processo de rememoração é necessário que os dados sejam comuns entre os membros do grupo.

Segundo Halbwachs para se recordar, é necessário que o nosso pensamento não deixe de concordar, em certo ponto, com os pensamentos dos outros membros do grupo. Desse modo, esquecer determinado período/fato/evento de nossa vida é perder também o contato com aqueles que compunham nosso grupo social. Para Maurice:

Não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstituição funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p.39).

O autor assinala que é necessário que as lembranças sejam reconstruídas e reconhecidas pelos membros do grupo. A partir do momento que deixa de existir esse compartilhamento, os membros desse grupo social podem-se fazer os seguintes questionamentos:

Que importa que os outros estejam ainda dominados por um sentimento que outrora experimentei com eles e que já não tenho? Não posso mais despertá-lo em mim porque há muito tempo não há mais nada em comum entre mim e meus antigos companheiros. Não é culpa da minha memória nem da memória deles. Desapareceu uma memória coletiva mais ampla, que ao mesmo tempo compreendia a minha e a deles (HALBWACHS, 2013, p.39 – 40).

Halbwachs identifica que ao lado da memória coletiva, há também a chamada memória individual. Esta por sua vez, pode ser entendida como um ponto de vista sobre a memória coletiva, ponto de vista este, que pode sofrer alterações de acordo com o lugar que ocupamos em determinado grupo, assim como também está condicionado às relações que mantemos com outros ambientes. A assimilação das lembranças pode variar de membro para membro, visto que a quantidade de lembranças que são transportadas pela memória coletiva com maior ou menor intensidade, é realizada a partir do ponto de vista de cada sujeito.

A memória individual não está de todo isolada, ao passo que toma como referência sinais externos ao sujeito, isto é, a memória coletiva. Para o sociólogo, o funcionamento da memória individual não é “possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente” (HALBWACHS, 2013, p.72). Para tanto, é importante assinalar que as lembranças que se destacam em primeiro plano da memória de um grupo social, são aquelas que foram vivenciadas por uma maior quantidade de integrantes desse grupo. Existe então, uma estreita relação entre memória coletiva e memória individual. Para Halbwachs:

para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2013, p.39)

Os suportes em que a memória individual está assentada, dizem respeito as percepções produzidas pela memória do grupo, assim como pela memória histórica. A convivência em um grupo atua como base para formação de uma memória individual e que, portanto, carregará “marcas” da memória coletiva do grupo social no qual está inserido. O sociólogo apresenta a distinção de duas categorias de memórias, uma que denomina interna (autobiográfica) e outra social (histórica), sendo que a primeira recebe reflexos da segunda, visto que a memória individual faz parte da história geral, uma vez que a segunda é bem mais extensa que a primeira. Todavia, ela só representa para nós o passado de uma maneira um tanto resumida, por outro lado a memória de nossa vida nos apresenta um panorama mais longo e contínuo.

Outro ponto importante na obra de Maurice Halbwachs, é que segundo o mesmo, nossa memória se apega mais ao fato vivido do que aquele que entramos em contato através dos livros, por exemplo. Nesse sentido, a história não é tida como um elemento importante para o processo de preservação da memória. É lícito afirmar que por história, Halbwachs entende não uma sucessão cronológica de acontecimentos, “mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto” (HALBWACHS, 2013, p.79). No entanto, é mediante a memória histórica que um fato exterior à nossa vida deixa sua impressão em determinado momento e a partir dessa impressão é que é possível recordar esse momento.

O indivíduo isolado de um grupo social não seria capaz de construir qualquer tipo de experiência, assim como também não é possível que mantenha qualquer tipo de registro sobre o passado. Todo o contexto no qual o sujeito está envolto, contribui de alguma maneira para reconstruir os vestígios e impressões de um determinado momento. Nessa perspectiva, a lembrança é pensada como “uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores”, da qual “a imagem de outrora já saiu bastante alterada” (HALBWACHS, 2013, p.91).

As lembranças, sobretudo, são representações que se baseiam mesmo que em partes, em testemunhos e deduções, reconstrução, especialmente nos seguintes aspectos: de um lado porque não é mera repetição dos fatos/eventos/vivências que se estabeleceram no passado, mas acima de tudo, por ser responsável pelo resgaste desses acontecimentos, que se dão a partir de interesses e preocupações atuais, por outro lado, se diferencia da série de acontecimentos que podem ser facilmente localizados em um determinado tempo, definidos mediante um conjunto de relações sociais. Nesse processo, os grupos sociais, possuem um papel essencial para atualização e complementação das lembranças individuais mediante o confronto de testemunhos entre seus membros.

Halbwachs diverge de Bergson ao postular que a memória não permanece intacta em uma “galeria subterrânea”, mas sim na sociedade, desta sai todas as indicações necessárias para reconstruir partes do passado que, por sua vez se apresenta de maneira incompleta e que o indivíduo acredita que tenha saído inteiramente de sua memória.

A memória coletiva atrela as imagens de fatos passados a crenças e necessidades do presente. Nesta, o passado passa permanentemente por um processo de reconstrução, vivificação e consequentemente também de ressignificação. Possui como “característica” transformar fatos do passado em imagens e narrativas sem rupturas, isto é, tende sempre para uma relação de continuidade entre o passado e o presente, busca reestabelecer a unidade de todos os aspectos, que com o passar dos tempos representou dentro do grupo, a ruptura. Se caracteriza também pela corrente contínua de pensamento, uma continuidade que não se atém no campo da artificialidade, pois não guarda nada do passado, senão o que está vivo, ou que se encontra na memória do grupo que a contém.

Diante disso, Maurice lança então duas categorias, a memória coletiva e a histórica, cujas definições são divergentes. Ao passo que memória histórica na concepção do sociólogo, se constitui em uma categoria infundada, visto que associa termos que se apresentam significados opostos. Para ele, a história é a reunião dos fatos que ocupam “maior” lugar na memória da sociedade. Entretanto, os acontecimentos/eventos narrados passam por um processo de seleção, são “selecionados, classificados segundo necessidades ou regras que não se impunham aos círculos dos homens que por muito tempo foram repositório vivo” (HALBWACHS, 2013, p.100). A história nesse sentido inicia no instante em que termina a tradição, isto é, no momento em que ocorre o apagamento da memória social.

A memória histórica visa produzir imagens unitárias do processo histórico, diferentemente da memória coletiva, a memória histórica busca “respostas” para o presente, no passado. Uma das marcas da história é a descontinuidade, pois cada fato encontra-se “separado do que o precede ou o segue por um intervalo, em que se pode até acreditar que nada aconteceu” (HALBWACHS, 2013, p.109), este, segundo o sociólogo é um dos principais fatores que diferencia a memória coletiva da memória histórica.

Para tanto, a memória coletiva se distingue da história em pelo menos dois aspectos. O primeiro leva em consideração o fato de que a memória se constitui em uma corrente de pensamento contínuo, não ultrapassando os limites do grupo, ao passo que na história se tem a impressão de que tudo passa por um processo de renovação. O segundo ponto de diferenciação para Halbwachs é que existem muitas memórias coletivas, ao ponto que se “pode dizer que só existe uma história” (HALBWACHS, 2013, p.105).

Outra questão que Halbwachs levanta em sua obra, diz respeito a relação entre memória e espaço. Para ele, a partir do momento em que um grupo social se encontra inserido em um espaço, passa então a moldá-lo a sua imagem, isto é, a suas concepções, valores, ao passo que também se adapta a materialidade do lugar que resiste a sua “influência”. Para o autor “cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível para os membros do grupo, por que todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida em sua sociedade” (HALBWACHS, 2013, p.160).

A memória coletiva é compreendida/defendida por Halbwachs como processo de reconstrução do passado vivido e experimentado por um determinado grupo social. Desse modo, a obra deste sociólogo, oferece contribuições pertinentes para o trabalho com a memória, visto que sua categoria de memória coletiva permite compreender que o processo de rememoração não depende apenas do que o indivíduo lembra, mas que suas memórias são de certo modo, partes da memória do grupo a qual pertence. No entanto, o sociólogo não descarta a memória individual, que pode ser pensada como “memória ressignificada”, ou seja, a interferência da subjetividade do indivíduo no processo de rememoração. Não desconsiderando, então a atuação do sujeito.

Giuslane Francisca da Silva – Mestranda em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: giuslanesilva@hotmail.com


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2013. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Aedos. Porto Alegre, v.8, n.18, p.247-253, ago., 2016.Acessar publicação original [DR]

El Canon del Holocausto | Frederico Finchelstein

Um cânone corresponderia a uma verdade inabalável, uma regra que seria imposta, de forma que nenhuma outra interpretação sobre determinado assunto fosse possível.2 Por vezes, nos deparamos com este tipo de “verdade” no tempo presente, vindo a ser consolidada ao longo do tempo pela Historiografia, constituindo-se como uma palavra de respeito acerca do assunto. Durante anos, autores como Raul Hilberg, Saul Friedländer, Martin Broszat, ou Hannah Arendt, se dedicaram ao estudo do Shoah – nome dado pela Historiografia israelense, e seus adeptos, ao extermínio dos judeus europeus pelos nazistas – constituíram-se como verdadeiros cânones sobre o tema, opiniões que não poderiam ser contrariadas e formavam uma regra geral no que diz respeito à temática. Os estudos acerca do extermínio dos judeus europeus durante os anos da Segunda Guerra Mundial, principalmente nos anos que correspondem à Solução Final – 1942-1945 – durante muito tempo, ficaram adormecidos, ao passo que estudar o Shoah, um trauma ainda recente no passado europeu, era demasiado incômodo devido à carga de sensibilidade gerada ao se discutir o tema.

Durante anos, uma das principais fontes para o estudo sobre o massacre permaneceu adormecida, não encontrando quem fosse capaz de revelá-la. Essa fonte se chama testemunho. Grande parte da historiografia do holocausto se debruçou diante do testemunho como sua principal fonte para compreender o que ocorreu no Lager durante os anos do extermínio. É através dos retratos de sobreviventes dos campos de concentração, que podemos chegar mais próximos de compreender o mal colocado em prática pelo aparelho genocida nazista contra os judeus. O testemunho de sobreviventes do Lager é, sem dúvida, a fonte que nos permite compreender, de forma mais efetiva, o que os carrascos foram capazes de fazer contra indivíduos semelhantes a si, dentro dos campos de concentração. Ou utilizando uma expressão própria da psicanálise, mais propriamente da psicanalista Elizabeth Roudinesco, a parte obscura de nós mesmos (ROUDINESCO, 2008).

O testemunho como fonte para os estudos do Shoah, no entanto, não estiveram sempre disponíveis para o público em geral, nem sequer para os historiadores dedicados ao tema. Os primeiros anos do pós-guerra presenciaram um vácuo no testemunho dos sobreviventes do extermínio. De fato, o trauma ainda estava demasiado recente na vivência de cada um dos sobreviventes, e naqueles anos que sucederam 1945 e a libertação dos prisioneiros dos campos de concentração e extermínio pelo Exército Vermelho, o que restou de Auschwitz – parafraseando Giorgio Agamben – foi o silêncio. O primeiro grande nome que veio a quebrar tal silêncio, sem dúvida, foi Primo Levi, quando escreveu É isto um homem?, livro que foi publicado pela primeira vez, numa pequena edição que não foi tão difundida, no ano de 1947. Talvez somente após a publicação de uma edição do livro ampliada e revisada, em 1958, é que um número maior de pessoas veio a conhecer essa nova forma de se narrar o Shoah, que foi o testemunho.

A dificuldade em entender as causas, o modo como decorreu, e as consequências de um evento de tamanha magnitude na história humana, é evidente. O que a historiografia e os teóricos alemães do século XIX e XX chamam por Erklärung und Verständins, explicação e compreensão, respectivamente, são palavras de demasiada utilização para quem trata de trabalhar com a História do Shoah. Para a teoria da História, no que se refere à Shoah, a Verständins está bem mais além da Erklärung (BAUER, 2013, p.30-31), o que enfatiza a dificuldade por parte dos estudiosos acerca do tema, de compreender um evento singular e sem precedentes. Um elemento fundamental para compreendermos melhor como ocorreu e o que, com mais precisão, ocorreu neste massacre é sem dúvida o testemunho. Giorgio Agamben, em seu livro intitulado “O Que Resta de Auschwitz”, diz que quando a última vítima da Shoah der seu último suspiro de vida, a memória se perderá e a dificuldade para a compreensão deste processo aumentará consideravelmente. Não há a possibilidade de aprofundar-se nos estudos e nos conhecimentos acerca da Shoah sem estudar o testemunho da vítima sobrevivente ao processo. Nesse sentido, o testemunho dos sobreviventes dos campos de concentração e extermínio, é uma peça chave no que foi citado anteriormente como Erklärung, como fator fundamental para o esclarecimento, parar trazer à luz este acontecimento.

Frederico Finchelstein, em seu livro El Canon del Holocausto, vem a citar algumas obras, autores e perspectivas historiográficas que se constituíram como cânones sobre o assunto durante certo tempo. Raul Hilberg, o autor que teve a primeira obra de grande repercussão referente ao Shoah, é apontado por Finchelstein como o primeiro “cânone” do holocausto, e abre as discussões presentes no livro. O autor de The Destruction of the European Jews foi responsável por inaugurar os grandes debates acerca da historiografia do Shoah com sua publicação no ano de 1961. O testemunho, em toda sua importância como fonte para o estudo do genocídio como foi explicado anteriormente, nesta obra se encontra ausente, ainda devido à grande proximidade temporal que os sobreviventes possuíam com a permanência no Lager, consequentemente, o trauma gerado pelo universo concentracionário ainda era muito forte para permitir que o testemunho fosse expresso. Também para Hilberg, o testemunho se constitui como um material secundário no estudo sobre o genocídio, apenas para efeito de verificação, não sendo assim, um provedor de sentido para a argumentação FINCHELSTEIN, 2010, p.69). Nesse sentido, o livro de Raul Hilberg se constitui como “um livro sobre as pessoas que exterminaram os judeus” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Hilberg se encontra dentro da escola funcionalista de historiadores do Shoah, que vem a defender a ideia de que o extermínio não estaria ligado somente ao Führer, sendo obra de todo um aparelho de Estado correspondente às diversas esferas sociais e burocráticas. É através da burocracia que Hilberg procura explicar o processo genocida, dando demasiada ênfase a esta, que é mostrada como tendo um papel mais importante que Hitler, Himmler, Goebbels, ou qualquer outro criador individual das políticas nazistas. Um enfoque weberiano, que no que concerne à burocracia, é dado a Raul Hilberg por outro importante intelectual encarregado dos estudos do Shoah, Saul Friedländer, devido à demasiada importância atribuída à organização burocrática, apontada mesmo como “mortal” (FINCHELSTEIN, 2010, p.28).

Finchelstein nos mostra que, na visão de Hilberg, o alto comando militar nazista se sentia gratificado mais devido ao grande aparelho burocrático, bem como com a sua poderosa máquina genocida, do que pelas atrocidades cometidas contra os judeus europeus. “Os perpetradores sentem fascinação pelos atos maquinais e não pela combinação desses atos com mitos ideológicos, estéticos e certos pressupostos éticos mundanos” (FINCHELSTEIN, 2010, p.29). Essa tese certamente veio a dar suporte para a construção da Banalidade do Mal de Hannah Arendt, após a sua observação do julgamento de Eichmann em Jerusalém no ano de 1961 (ARENT, 1999), cinco anos após a mesma fazer uma crítica negativa ao livro de Hilberg, chegando a apontar o livro de Hilberg como um “simples informe” (FINCHELSTEIN, 2010, p.42). Entretanto, as divergências entre Arendt e Hilberg eram muitas, o que gerou várias discussões entre ambos ao longo dos anos, com este último afirmando que “Hannah Arendt não foi capaz de compreender o seu livro” e que “a noção de banalidade dissolve a complexidade da interpretação do evento” (FINCHELSTEIN, 2010, p.44).

Como citado anteriormente, The destruction of the European Jews não é uma obra relativa aos judeus, senão um livro referente aos perpetradores. Em decorrência disso, para Hilberg não houve resistência da parte dos judeus durante o extermínio; o levante do gueto de Varsóvia, a fuga de Sobibór, ou a rebelião do Sonderkommando de Treblinka, constituem casos pontuais de resistência, e se faz adepto da ideia de historiadores sionistas de que os judeus morreram como ovelhas indo para o matadouro. Hilberg vem a compreender a resistência em termos de ação, e não como, por exemplo, Israel Gutman ou Martin Gilbert compreende, afirmando que mesmo a passividade e a dignidade na hora da morte eram formas de resistência. Para Raul Hilberg, esse tipo de interpretação vem a diminuir moralmente os verdadeiros atos de resistência, aqueles e que houve confronto entre vítimas e perpetradores.

O processo do extermínio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente durante o espaço de tempo que vai de 1942 a 1945, período em que foi colocada em prática a Endlösung, a Solução Final para o problema judaico no velho continente, se constitui como um fenômeno sem precedentes na História. Observamos o que Enzo Traverso vem a chamar de radicalização progressiva, no seu livro “La Historia como campo de Batalla”(TRAVERSO, 2012). A violência exercida contra os judeus durante o Terceiro Reich, foi sendo elevada ao longo do tempo, começando por boicotes aos estabelecimentos pertencentes aos judeus na Alemanha, em abril de 1933, até culminar no extermínio físico, colocado em prática de forma sistemática após a Conferência de Wannsee em janeiro de 1942, onde ficaram definidos os termos da Solução Final para o povo judeu.

O fenômeno da radicalização progressiva presente no indivíduo durante o nazismo, pode ser bem observado no estudo de caso realizado por Christopher Browning no livro Ordinary Men: Police reserve battallion 101 and the Final Solution. Browning realiza o estudo de apenas um batalhão de policiais de reserva para traçar o perfil dos homens comuns, que durante o Terceiro Reich, estiveram empregados no processo de extermínio. No livro, podemos acompanhar a trajetória de alguns comandantes do batalhão, que chegam até mesmo a se acostumarem com o assassinato em massa, tornando aquilo parte da sua rotina, ou como os alemães Sönke Neitzel e Harald Welzer chamam, o assassinato se tornou parte do marco referencial do nazismo. Estes últimos dois autores descrevem no livro “Soldados: Sobre lutar, matar e morrer”, a trajetória de soldados da Wehrmacht – as forças armadas da Alemanha nazista – que estiveram envolvidos no extermínio dos judeus. No livro, também podemos observar como soldados fizeram do assassinato em massa contra judeus parte de sua rotina, transformando tal prática num ato corriqueiro. Soldados esses, que em certos casos nunca mataram um inimigo, ou nem sequer ainda tinham ido para o campo de batalha

Tal brutalização dos indivíduos, que poderia ser impensada para algumas pessoas, ganha um suporte por historiadores que criaram uma linha de pensamento bastante polêmica e controversa nos anos 1980, o Sonderweg alemão, ou o caminho especial que a nação alemã trilhou de alguns séculos atrás e que culminou com o Shoah. A teoria do Sonderweg baseia-se numa inversão de valores democráticos que foi vivenciada na Alemanha, desde os séculos XVIII e XIX, numa experiência que consistia em minar os valores da democracia liberal vivenciada em países como os Estados Unidos, França ou Inglaterra. O Sonderweg, nesse sentido, é uma teoria comparativa, que sempre está a comparar a Alemanha com outras nações do ocidente, que tinham como modelo de governo a democracia liberal. Tal teoria, tem como principal nome o historiador representante da nova história social da Universidade de Bielefeld, Jürgen Kocka (SILVA, 2015).

O debate sobre o Sonderweg ganha um tom de absurdo com a publicação do livro Os Carrascos Voluntários de Hitler, de Daniel Goldhagen, no ano de 1996. Goldhagen é alvo de inúmeras críticas no que se refere à historiografia do Shoah, e também é incluído nas discussões realizadas por Frederico Finchelstein. Aqui, nos é mostrado como Goldhagen enxerga o antissemitismo alemão como sendo originário da Idade Média, e, indo além de teóricos do Sonderweg que apontam a origem deste caminho especial alemão na Reforma Protestante, Goldhagen afirma que a perseguição dos judeus durante o medievo já era uma característica desse caminho que conduziria ao extermínio pelos nazistas.

Além de descartar a famosa Historikerstreit, o debate entre os historiadores funcionalistas e intencionalistas, Goldhagen aponta o Shoah como sendo o fim predeterminado de séculos em que o antissemitismo estava presente na sociedade alemã. A construção desse caminho único para Auschwitz, partindo do medievo, faz com que o extermínio dos judeus europeus se constitua como um “super pogrom” (TRAVERSO, 2012, p.105). Nesse sentido, a solução final já estaria predestinada desde, pelo menos, 100 anos, e se aceitarmos tal afirmação, também estaríamos afirmando que o povo judeu foi demasiado inocente para não perceber o seu destino. É claro que não podemos aceitar tal tese, e que Goldhagen encontra-se, neste ponto, equivocado. Está também equivocado quando afirma que todos os alemães concordavam com o extermínio físico dos judeus, e quando trata de forma restrita o conceito de homens comuns de Christopher Browning, aplicando-o somente para o povo alemão, sendo assim alemães comuns.

Mas, afinal, poderemos compreender o Shoah? Essa é uma das perguntas que encerram o livro, quando são colocadas em pauta algumas ideias de Jorge Luis Borges. Essa é uma problemática que talvez nunca saibamos resolver. Alguns filósofos, dentre eles Giorgio Agamben, afirmam que nunca poderemos compreender o universo concentracionário por que não estivermos no interior deste, e que o indivíduo que realmente conheceu todo este universo, já não está mais presente: ele morreu na câmara de gás. Em contrapartida, não podemos deixar de buscar compreender este processo. Os testemunhos e diários que estão disponíveis hoje, mesmo que, muitas vezes tenha sido escrito por um indivíduo que não morreu na câmara de gás, nos permite compreender – Verstehen – a parte obscura de nós mesmos.

Notas

1 Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: borbademiranda@gmail.com.

2 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=c%E2non.  Acesso em: 29/09/15.

Referências

ROUDINESCO, Elizabeth. A Parte obscura de nós mesmos: Uma História dos perversos. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2008.

BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el Holocausto. Nativ Ediciones; Jerusalém, 2013. P. 30 – 31.

FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. P. 69.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do Mal. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.

TRAVERSO, Enzo. La Historia como Campo de Batalla. Ciudad de Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2012.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; et al. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: volume II 1919-1945. Rio de Janeiro: Ed. Campus Elsevier, 2015.

Lucas Borba – Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE. Pesquisador do GEHSCAL – Grupo de Estudos Histórico Socioculturais da América Latina, pela linha de pesquisa História do Tempo Presente – HTP/UPE. Foi bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco, com o projeto de pesquisa Grécia no Tempo Presente: Crise financeira e ascensão da extrema direita, orientado pelo Prof. Dr. Karl Schurster (Universidade de Pernambuco). Contato: borbademiranda@gmail.com


FINCHELSTEIN, Frederico. El Canon del Holocausto. Buenos Aires: Prometeo, 2010. Resenha de: BORBA, Lucas. Verstehen und Erklärung: Como explicar e compreender o Holocausto. Aedos. Porto Alegre, v.8, n.18, p.254-259, ago., 2016.Acessar publicação original [DR]

Estratos do tempo: estudos sobre história – KOSELLECK (HP)

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Tradução de Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2014. 352 p. Resenha de: HRUBY, Hugo. A complexidade do tempo histórico. História & Perspectivas, Uberlândia, v. 29, n. 54, 2 ago. 2016.

Acesso apenas pelo link original

Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT; HÉBRARD (RETHH)

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014. Resenha de: GESSER, Ana Carolina. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, n. 2 – AGOSTO-DEZEMBRO de 2016.

A obra Provas de Liberdade: uma odisséia atlântica na era da emancipação, publicado em 2014 pela editora Unicamp, é o livro mais recente de Rebecca J. Scott, na qual divide a coautoria com Jean M. Hébrard. Através de 295 páginas, este livro compõe-se de um mapa de rotas atlânticas, uma genealogia esquemática da família Vincent/Tinchant, prólogo, nove capítulos, epílogo e um caderno de imagens.

Rebecca Scott é professora de História de Direito na Universidade de Michigan, na qual leciona o curso de direitos civis e fronteiras da cidadania sob uma perspectiva histórica. Suas discussões pautam-se em discutir a legislação diante da escravidão e da liberdade. Jean M. Hébrard é professor visitante na Universidade de Michigan, cujas aulas e seminários estão relacionadas a história social e cultural das sociedades escravistas e pós escravistas do mundo atlântico.

Os autores iniciam o prólogo de Provas de Liberdade, citando uma carta enviada por Edouard Tinchant, um comerciante de charutos de Antuérpia, no ano de 1899, ao general Gómez.

No conteúdo da carta, Edouard pedia ao general que o autorizasse a utilizar o nome de Gomez para a marca de seus artigos. A citação da carta foi proposital, pois esta fonte permitiu que os autores pudessem chamar a atenção para aspectos reveladores da política e da identidade de Tinchant: a alusão das origens haitianas de Edouard para convencer o general, ao estabelecimento de seus pais na Louisiana e a justificativa dos motivos pelos quais seus pais decidiram se mudar para a França, e a insinuação acerca de “leis abomináveis” e “preconceito ignorante” como motivadores dessa migração.

É inegável o especial interesse dos pesquisadores por esta carta, pois, ela retratava um mundo atlântico em que várias lutas sobre raça e direitos estavam entrelaçadas, e no quais idéias e conceitos eram intercambiados (SCOTT, HÉBRARD, 2014). Tantas ligações os levaram a questionar sobre a própria abrangência dela. O que poderia este documento apresentar em termos de uma coesão, como a personificação de uma conexão entre as três maiores lutas antirracistas do século XIX: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil, a Reconstrução dos Estados Unidos e a Guerra Cubana pela independência? Para responder essa questão ambiciosa, os autores seguiram os rastros do itinerário da família de Edouard Tinchant, através de registros mantidos por padres tabeliães, oficiais e recenseadores oficiais de diversos lugares. A prática investigativa levou então, os pesquisadores a todos os lugares pela qual essa família passou: começou na Senegâmbia (Senegal), foi para Saint Domingue (Haiti) no final do século XVIII, continuou até Santiago de Cuba (Cuba), Nova Orleans (Estados Unidos), Porto Príncipe (Haiti), Pau (França), Paris (França), Antuérpia (Bélgica), Veracruz (México) e Mobile (Alabama, Estados Unidos).

A odisséia dessa família despertou um interesse especial nos autores. No cerne de sua pesquisa esteve a preocupação em perceber como a exigência por dignidade e respeito esteve atrelada a importância da produção de documentos e dos movimentos políticos gerados tanto pelas grandes revoluções da época quanto por embates locais de reivindicação de direitos. Ao optar pelo encalce da trajetória dos membros dessa família, Scott e Hébrard especificam sua orientação metodológica, caracterizando seu estudo como o de micro-história posta em movimento. Esse tipo de estudo, segundo os mesmos, se apoia na convicção de que os estudos de um local ou evento cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmicas não visíveis através das lentes mais familiares de região e nação.

O essencial de suas análises é, portanto, a percepção de como as experiências pessoais nos diversos espaços do chamado mundo Atlântico do século XIX, esses movimentos contínuos de pessoas e de papéis através do Caribe e da travessia do oceano permitem interconectar eventos que desvelam problemas como o da liberdade, dos fenômenos de raça e antirracismo com movimentos políticos e revolucionários.

A busca pela trajetória de homens livres de cor revela o lugar social da qual provém esses historiadores quando se observa como se apropriam de grandes elementos basilares da historiografia a partir da segunda metade do século XX: a História Cultural e a Nova Esquerda Inglesa, a micro-história e a História Atlântica. Embora hoje a ênfase na história de homens livres de cor não constitua nenhuma novidade, movimentos historiográficos como a Nova Esquerda Inglesa foram essenciais para a emergência estudos que explorassem as experiências históricas de homens e mulheres que até então tiveram a existência ignorada ou abordada de forma passiva, e ao trazer novos sujeitos para a história – a chamada história vista de baixo -, trouxe também o problema das fontes (BURKE, 1992, p. 40).

O acesso à documentação de pessoas “comuns”, portanto, também trouxe consigo problemas de método, uma vez que o acesso ao testemunho direto a essas pessoas era muito escasso. Entretanto, a vasta documentação, dentre registros de batismo, carta de alforria, correspondências, certidões, de que se munem Scott e Hérbrard, permitem – através da metodologia da micro-história – que a prática de redução de escala de observação, análise microscópica e um estudo intensivo do material documental revele indícios de sujeitos até então marginalizados.

Por meio do prólogo, também podemos observar que o lugar social de qual falam Scott e Hérbrard está profundamente ligado a um movimento de historiadores que vem desde pelo menos a segunda metade do século XX, colocando uma perspectiva atlântica em suas análises. Não por acaso, o contexto da Guerra Fria, a emergência do terceiro Mundo e a procura por um legado cultural na América do Norte levou este grupo de pesquisadores da história colonial, imperial e da escravidão, a questionarem e romperem com as fronteiras regionais, nacionais e imperiais, uma vez que estas, ao delimitarem os horizontes de pesquisa e abordarem uma perspectiva eurocêntrica, colocavam a histórias como da África e da América Latina à margem. Dessa forma, a pretensão por uma história que estabeleça conexões, comparações, observando recorrências coerências em marcos globais e interimperiais estruturados tem ganhado atenção dos historiadores, que ao focar em questões de gênero, sexualidade, raça e etnicidade têm encontrado no Atlântico um terreno fértil. O reconhecimento da História Atlântica enquanto disciplina iniciou-se com o movimento de historiadores norte-americanos dispostos a abraçar os projetos Atlânticos, e a Universidade de Michigan, onde Scott leciona, é uma das instituições onde os estudantes podem especializar-se nesse tipo de História145.

No primeiro capítulo, Rosalie, mulher negra de nação Poulard, a carta remetida por Edouard ao capitão Máximo Gómez ganha atenção para análise dos autores. Ao reportar sua própria ascendência aos haitianos, intitulando a si mesmo como um “filho da África”, Eduard conectou sua história com a dos seus pais, que tinham sofrido com embate da Revolução Americana, Francesa e Haitiana, carregando consigo o estatuto de escravos. A partir disso, chegou-se à documentação de batismo e de cartas da mãe de Edouard, e também à origem de Rosalie, sua avó, identificada como de nação Poulard.

Neste capítulo, são abordados vários aspectos da provável vida de Rosalie: o significado político de pertencer à nação Poulard, seus costumes e políticas peculiares, as condições das viagens e dos navios em que eram trazidos os cativos da costa do Senegal para Saint-Domingue (Haiti).

Embora os autores não tenham informações precisas sobre a viagem de Rosalie, o resgate de peculiaridades do seu provável itinerário atlântico forneceu-os certos elementos característicos acerca dos conhecimentos que pessoas de nação Poulard trouxeram consigo e foram difundidos durante o tempo em que permaneceram sob o cativeiro no Caribe. Uma destas características era a familiaridade com a importância da escrita: sabendo ou não ler, pessoas como Rosalie tinham a consciência que o papel poderia mudar sua condição.

O segundo capítulo, Rosalie…minha escrava, relata o processo de escravização de Rosalie em Saint-Domingue (Haiti) e os fatores – como as revoltas, repressões e a Revolução Haitiana – que levaram-na a deixar a ilha e se mudar para Jérémie (Haiti). Ao situar a paulatina importância econômica que assumiu Jérémie (Haiti) depois que Rosalie se mudou, os autores reconstituem a história de pessoas de sua rede de relações. Dentre elas, Marthe Guillaume, a negra livre que constituiu fortuna com o comércio de compra e venda de escravos. Mostram como prosperou Marthe, a importância da sua rede de conexões e apadrinhamento e de onde provinha sua renda: do trabalho de escravos, na qual Rosalie era uma. Também expõem fatores que levaram a região a atrair outras pessoas, como Michel Vincent, cujas aventuras anteriores de colono não deram certo.

O capitulo continua tecendo relações entre o contexto em que vivia Rosalie com as condições da Revolução Francesa, conectando as pressões que homens livres de cor da colônia exerciam para tentar fazer cumprir as garantias de direitos iguais e a extensão da cidadania às pessoas deste estatuto. Dessa forma, observa como discussões mais amplas, como a questão da cidadania aos homens de cor, concedia no ano de 1792 pela Assembléia Legislativa Francesa, influenciou nos interesses locais, onde os homens brancos conservadores, ao verem seu poder ameaçado, entraram em confronto com poderes coloniais acabando por induzir Guillaume, a senhora de Rosalie, a vender esta última a um vizinho, um açougueiro que era livre e mulato.

Partindo novamente para um contexto macro, os autores abordam as tensões que envolviam homens livres de cor e brancos, as repressões sofridas pelos primeiros e as implicações negativas para os escravos com as alianças estabelecidas entre os brancos do poder local com a Grã- Bretanha. Da mesma forma, salientam as alianças estabelecidas entre homens livres e escravos, e as expectativas destes em face da possibilidade de alforria. Neste meio tempo, Rosalie havia voltado ao poder de sua antiga senhora. Com este acontecimento, os pesquisadores postulam sobre a relação entre Rosalie e Michel Vincent, que em 1795 tinham dois filhos registrados, embora não possuíssem um registro de união. Marthe Guillaume, nesse mesmo ano, expressou o desejo de conceder liberdade a Rosalie, mas as circunstâncias políticas estavam dificultando a concessão de qualquer alforria. Nesse tempo, sugerem os autores, é possível que Rosalie vivesse como uma pessoa livre, e com relativa comodidade com Michel Vincent, considerando que Guillaume não se propôs a fazer qualquer reivindicação legal sobre ela.

A questão que se coloca é que, embora Rosalie provavelmente vivesse como uma mulher livre, o seu estatuto era de uma pessoa “sem documentos”, pois não possuía qualquer titulo que estabelecesse a legitimidade de seu estatuto civil. O capítulo passa a versar então sobre como o status de Rosalie, agora grávida do terceiro filho, dificultaria a situação do casal que, diante da invasão das tropas de Napoleão e a possibilidade de reescravização em Jérémie (Haiti), viu na viagem para a França uma alternativa. O capítulo termina abordando as estratégias utilizadas por aqueles que estavam na mesma situação de Rosalie e sobre como os conhecimentos de tabelionato de Michel Vincent levaram-no a forjar uma carta de alforria aos moldes do Antigo Regime, uma forma mais segura que poderia definir o destino da agora, “liberta”.

O terceiro capítulo, intitulado A cidadã Rosalie inicia caracterizando as diferenças político-jurídicas entre Haiti e Cuba, um baluarte da escravidão e de colonização espanhola. Versa sobre quais estratégias as pessoas livres de cor refugiadas do Haiti utilizaram para não voltarem a serem reescravizadas em Cuba e sobre como, a partir da morte de Michel Vincent, Rosalie, que já havia homologado o testamento deste, tornou-se sua herdeira e conseguiu com que as autoridades de Santiago assinassem o documento de alforria forjado ainda em Jérémie. Porém, novamente os planos de Rosalie são mudados pela conjuntura política das relações conturbadas entre a França napoleônica e Espanha, e diante dessas circunstâncias, os autores expõem as peculiaridades que faziam da Lousiana o território vizinho mais atraente em uma época difícil para a população francesa que vivia em território espanhol. Por fim, o capitulo termina discorrendo sobre as possibilidades e aprendizados de Rosalie, como a importância dos documentos dentro de uma sociedade escravista, as implicações da sujeição à mudança de jurisdição e a relevância do estabelecimento de uma boa rede de conexões, pois, ao enviar sua terceira filha, Élisabeth com sua madrinha para New Orleans, viu a indispensabilidade de estar integrada a uma família diante das condições adversas em que se encontrava.

A travessia no Golfo é o título do quarto capítulo, que desloca o foco narrativo para as experiências de Élisabeth, filha de Rosalie, em Nova Orleans (Estados Unidos). Os autores atentam para os percalços pelos quais passaram os refugiados, como Élisabeth, ao entrar no território da Louisina (Estados Unidos), e sobre como o rótulo de homem livre de cor a eles atribuído gerou problemáticas mais amplas acerca da questão do estatuto, pois, definia direitos, posição social e sobrevivência.

Passando de considerações mais gerais sobre a condição dos refugiados nas novas terras, este capítulo passa a abordar as boas condições nas quais Élisabeth estabeleceu com seus padrinhos, e sua relação com Jacques Tinchant, com quem se casou em 1822. Observa-se então o que os autores chamaram de uma união emblemática de novas famílias americanas, pois Jacques e Élisabeth haviam crescido em casas atravessadas por uma linha de cor: seus pais não puderam contrair união civil por serem casais “inter-raciais”. A mudança do sobrenome de Elisabeth, que agregou o sobrenome do seu pai, Vincent, na certidão de batismo dos seus filhos, foi ressaltada como um fator que a distanciava de sua ascendência escrava, além de suas boas relações com o tabelião facilitarem essa mudança.

A despeito das boas condições materiais que pessoas livres de cor como a família de Jacques Tinchant gozava, eram as restrições impostas pelas leis que geravam um descontentamento na população de cor livre. Dessa forma, a principal questão deste capítulo é a de que a prosperidade econômica, a estabilidade material de pessoas de cor e suas boas relações sociais não eram suficientes para mitigar as limitações impostas a elas, pois não podiam contar com direitos pra si e nem para a educação de seus filhos. Os autores terminam então, discorrendo sobre como Jacques deixou seus negócios aos cuidados de seu meio-irmão e os motivos prováveis da decisão de viajar com sua família para a França, onde sua mãe adoecida o aguardava.

O quinto capítulo, com um título bastante sugestivo, A terra dos direitos dos homens mostra como as motivações pessoais de migração de Jacques estavam atreladas à promulgação do Código Civil Francês e a Carta Constitucional de 1814. Ao estabelecerem a igualdade legal a todos os cidadãos, estendendo a todos o gozo de direitos civis e políticos por homens de cor livres, essa mudança na legislação atraiu a família de Jacques e Elisabeth pela perspectiva de educação e respeito para os meninos e de direitos para eles próprios, assim como a possibilidade de se tornarem proprietários de terras.

O acesso a um bom acesso educacional permitidos pela França, na qual os filhos de Jacques foram inclusos, juntamente com a boa fase dos negócios do mesmo, ocupam as páginas deste capítulo, que relaciona a prosperidade política desta nação com o gozo dos direitos civis experimentados no liceu pelos filhos de Jacques e Élisabeth. O filho mais velho do casal, Joseph, ganha a atenção no final deste capitulo, pois seus interesses particulares pelas aulas sobre direito e filosofia desvelam, além das idéias e conteúdos que faziam parte da educação formal de alunos como ele, o que o legado da Revolução Francesa deixou para a formação das concepções que professores das universidades tinham acerca de raça, cor, direitos civis e políticos e os militantes das causas abolicionistas. Porém, este capítulo também termina mostrando como a volta da situação política conturbada na França, juntamente com as adversidades econômicas enfrentadas por seu pai levaram Joseph a manter a tradição familiar dos Vincent-Tinchant em considerar atravessar o atlântico para, ao lado de seu irmão mais velho Louis, que havia ficado em New Orleans (Estados Unidos) quando seus pais resolveram viajar para a França, trilhar novos rumos.

Diante da viagem de Joseph para New Orleans (Estados Unidos), o capítulo seis, Joseph e seus irmãos, inicia expondo as possibilidades e limitações que ali encontravam homens livres de cor, chamando novamente a atenção para a fronteira entre escravidão e liberdade. Joseph e Louis, diferentemente de seu pai, não possuíam o mesmo conhecimento de produção rural, mas encontraram na produção e comércio de charutos – uma prática comum entre homens livres de cor – uma saída para obter lucros. A herança deixada pela madrinha de Élisabeth, composta em parte pela propriedade de escravos, permitiu a investida neste novo negócio.

Recursos financeiros de Jacques advindos da venda de parte das terras que possuía na Lousiana (Estados Unidos) forneceram o capital para a expansão dos negócios e, depois de Scott e Hébrard ocuparem as páginas deste capítulo para contextualizar o comércio de tabaco entre os vários pontos do Atlântico, concluíram que a Bélgica pareceu ser a melhor opção para as investidas além-mar de Joseph, que passou a morar em Antuérpia (Bélgica) com o resto da família, enquanto Louis cuidava da parte de produção na Louisiana (Estados Unidos).

Porém, novamente mudam-se os planos dos Tinchant, e agora era o contexto propiciado pela guerra da Secessão – culminando com a separação da Lousiana da União em 1861 – que levou os irmãos Tinchant a migrarem novamente para os Estados Unidos diante da má situação dos negócios. Além dos problemas que Joseph teria que lidar nos negócios, seus pais resolveram enviar Édouard, seu irmão mais novo, para New Orleans, após este manchar a reputação da família em Antuérpia (Bélgica).

A narrativa dos autores chega, assim, a Édouard. Buscar entender como a vida anterior em Antuérpia (Bélgica), que permitira que tivesse acesso a níveis educacionais, acabou influenciando as opções políticas abolicionistas de Édouard foi o objetivo deste capítulo. Além da militância pela causa na imprensa, ele acabou envolvendo-se na luta com as tropas da União, mas sua posição em não lutar novamente e a decisão em permanecer na Louisiana (Estados Unidos) quando seus irmãos estavam migrando para o México foi a chave para entender os intempéries daqueles que como Édouard, lutavam pela igualdade de direitos e pelo fim da escravidão: o alto comando da União era cúmplice dos preconceitos de uma sociedade escravista.

O sétimo capítulo, que tem como título É preciso fazer com que o termo direitos públicos signifique alguma coisa, descola o foco de análise para a atuação política de Édouard na Louisiana (Estados Unidos). Para compreender o entendimento do que Édouard tinha acerca do conceito de cidadania, os autores retomam a bagagem intelectual trazida da França, que explica a definição do que ele entendia por direitos públicos, ao mesmo tempo em que observam a cautela que teve ao utilizar o termo igualdade de direitos nos Estados Unidos, dadas as particularidades segregacionistas deste país.

A posição ideológica de Édouard, atrelada ao seu apoio político à União é destrinchada ao longo do capítulo, que mostra principalmente como Édouard ganhou suporte político e participou ativamente da promulgação da Constituição da Louisiana. O reconhecimento à cidadania, independente de cor, foi uma conquista prevista nesta Constituição, que juntamente com outros debates visando direitos à população de cor levaram os pesquisadores a conjecturarem em que medida as limitações sociais impostas aos antepassados destes sujeitos podem ter colaborado para a intenção de debater esses ideais.

Embora nem todas as idéias de Édouard fossem acatadas no texto final, os autores versam sobre os direitos públicos que essa Carta permitiu as pessoas de cor, e sobre seus reflexos na arena legal, como a permissão para que pessoas provenientes de famílias humildes pudessem, por exemplo, entrar na justiça caso fossem barradas em lugares de comércio.

A despeito dessas conquistas, este capítulo mostra como os direitos às pessoas de cor previstos nessa Constituição, ao conflitar com os interesses da Suprema Corte, fizeram com que os artigos referentes a direitos públicos fossem removidos e com que Édouard e seus companheiros perdessem poder e consequentemente, o emprego com o aumento do segregacionismo, principalmente nas escolas. Edouard lecionava, e essa situação forçou-o, juntamente com a família que formou, a migrar. Por fim, o capítulo termina discutindo os motivos para Édouard escolher Mobile (Estados Unidos) como o lugar que teria que reconstruir sua vida.

Horizontes de comércio, o oitavo capítulo, desloca o foco para a história dos outros filhos de Jacques Tinchant e Elisabeth Vincent: Jules, Pierre e Joseph, para mostrar o que teria acontecido com eles após a abertura do comércio de charutos, quando cada um cuidou de uma parte do comércio. Resgatam as intempéries que Jules e Pierre passaram quando trabalham com o comércio no México sob a influência e ocupação francesa para mostrar como as guerras atrapalharam seus negócios e dos motivos da migração de Joseph para o México.

A forma como os quatro irmãos mais velhos da família Tinchant se estabeleceram com a produção e comércio de charutos é mostrada através dos vários percalços e intrigas que os acompanhavam. O grande acúmulo de dívidas foi apontando como a principal causa da migração de Joseph, que em busca de novos mercados, mudou com a família para Havana, onde fez boas relações e novamente a viagem para a Antuérpia (Bélgica), finalmente obtendo sucesso com a criação de uma companhia de charutos com o nome de Tinchant y Gonzales. Os autores observam então, como a conexão entre este nome com a América Latina, juntamente com a cidadania mexicana conseguida anteriormente por Joseph, reforçaram aos seus charutos um ar de qualidade, distanciando-o da identidade da ascendência de escravos que foram trazidos para a América. A invenção desta “tradição”, portanto, criou um status que permitiu o sucesso na produção e venda de charutos.

Passa-se então à analise da sina de Édouard. Estabelecendo a sua companhia de charutos em Mobile (Estados Unidos), dedicou-se aos afazeres de um homem de negócios e as responsabilidades de pai de família, principalmente porque era um mau momento para se envolver com política em Mobile, visto que o Alabama era um estado extremamente racista. Quando estava começando a se estabelecer, ele e sua família desaparecem de Mobile e se mudam repentinamente para Antuérpia (Bélgica). Os autores atribuem essa mudança a motivações por política, negócios e família, uma vez que Édouard fora trabalhar com Louis e chamou a nova política republicana na presidência de “leis abomináveis” e “preconceitos ignorantes”.

Enquanto Édouard nunca fez questão de relacionar seus charutos à Havana ou a Europa, e sempre relacionando o nascimento de seus pais as lugares que lembravam deles, Joseph e seus descendentes faziam referências a origens aristocratas espanholas e francesas que achavam estarem entre seus antepassados e, nessas atitudes, residem as diferenças entre os irmãos: a exclusão da menção de exílio, a luta pelo republicanismo e por igualdade de direitos foram excluídas dessa narrativa sobre a ascendência familiar por parte daqueles que obtiveram sucesso comercial cosmopolita, que não queriam ser associados a preconceitos de cor.

Após o capítulo anterior focar no sucesso econômico dos irmãos Tinchant, o nono e último capítulo, intitulado Cidadãos para o bem da nação, mostra como a questão da cidadania alcançada a nível nacional devido às múltiplas viagens atlânticas de Joseph e seus irmãos interferiram por um lado, na tentativa dos irmãos Joseph e Ernest, no ano de 1892, em buscar a grande naturalisation, que conferia direitos políticos e civis a um cidadão belga e por outro de Édouard de buscar a nacionalidade francesa.

Chama-se atenção aqui para as restrições da lei e o preconceito racial, embates que Rosalie e seus descendentes tiveram que lidar, desenvolvendo táticas engenhosas: ora fugiam de guerras, ora participavam, ora expressavam-se politicamente, ora calavam-se. A reivindicação da cidadania e de nacionalidade nos diversos lugares que estiveram, juntamente com todas as ações mobilizadas ao longo desta narrativa, permitiram perceber a magnitude de forças que foram necessárias para o alcance de seus direitos.

“Por um motivo racial” foi o título escolhido pelos autores para narrar a odisséia de Marie-José Tinchant. O relato da ousadia da neta de Joseph Tinchant na imprensa, nos tribunais e sua participação política na guerra como militante presa permitiram aos autores perceber como as questões raciais interferiram na construção de uma memória política sobre a mesma, pois, quando os descendentes de Marie-José entraram na justiça, alegando serem beneficiários de uma prisioneira política, a justiça belga atribuiu à razão de sua prisão pelos nazistas como sendo um motivo racial.

Quando a filha de Marie-José, em 2010 finalmente conseguiu, por parte das autoridades de Bruxelas, o reconhecimento da prisão de sua mãe como prisioneira política, já havia migrado para o México em busca de suas raízes familiares naquele país.

A partir da observação da escrita dos capítulos, percebemos como os autores de Provas de Liberdade evocam a trajetória de alguns indivíduos do passado através da sequência dos acontecimentos e das interações conscientes destes com um contexto maior, trabalhando sempre com um “jogo de escalas” para explicar como uma conjuntura de guerra, ou de luta política, por exemplo, influiu em suas atitudes. Assim, Scott e Hérbrard, ao tentar compreender as ações destes indivíduos, reproduzem no interior deste discurso desdobrado, a relação entre um lugar do saber e sua exterioridade. É essa distorção que nos permite então, perceber ocultos no texto, sobre o lugar de onde falam seus autores.

Concomitantemente, ao colocar em cena a trajetória destes sujeitos, a construção narrativa dos autores permite que a sociedade se situe em relação a um passado e abre espaço para o presente. Como observou Certeau, a escrita “faz mortos para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos, feitos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por este passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que surge com o que desaparece.” (CERTEAU, 1982, p. 107). A família Tinchant e os indivíduos estão mortos e os percalços, intempéries, forças que eles tiveram que lidar morreram com eles, naquela sociedade que é diferente da nossa, como o livro de Scott permite observar. Ao mesmo tempo em os descendentes dos Tinchant se afastavam dos estigmas e estereótipos atribuídos à ascendência africana, não tendo que lidar com as mesmas situações que seus antepassados, constituíam uma memória familiar, e é essa memória que revela permanências e conecta o mundo dos vivos àquele “enterrado” pela escrita da história.

Referências

BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1982.

GAMES, Alison. Atlantic history: definitions, challenges, and opportunities. In: The American Historical Review, vol. 111, nº 3, 2006.

SCOTT, Rebecca J. & HÉBRARD, Jean M. Provas de Liberdade: uma odisséia na era da emancipação. Tradução: Vera Joscelyne. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

Ana Carolina Gesser – Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bosista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. E-mail: anacarolinagesser@gmail.com.

Aculturaciones. El vacío de la cultura o el delirio de la identidad | Miguel Alvarado Borgoño

Según plantea Miguel Alvarado en Aculturaciones. El vacío de la cultura o el delirio de la identidad, el concepto de cultura esconde una indeterminación que lejos de ser una invitación a la multiplicación de los significantes, resulta en un espacio vacío y, por lo tanto, estéril.

Según esta premisa, Alvarado desarrolla una serie de ensayos que recapitula en Aculturaciones, un texto que se presenta en el prólogo como otra pieza de un libro interminable. Son los temas de la cultura, la memoria, los discursos de la identidad chilena y latinoamericana, las ciencias humanas y sus mutaciones discursivas, y ante todo, la antropología literaria, los que se manifiestan en este texto que, junto a los que le anteceden, como Antropología Literaria. Aportes para la generación de un lenguaje intercultural (Santiago, Chile: Cuarto Propio, 2011) y El espejo rápido. Interculturalidad y prevariaciones discursivas (Valparaíso, Chile: Editorial Puntángeles, Universidad de Playa Ancha, 2006), forman parte del “libro interminable” que constituye el discurso intelectual de Alvarado. Un discurso que se ha construido a partir de su carácter cuestionados rupturista, un tanto solitario (como él mismo manifiesta) y ante todo innovador en su afán de comprender la cultura y su proyección en los discursos interdisciplinarios que se han desarrollado en Chile y Latinoamérica entre las ciencias sociales, antropología principalmente, y la literatura. Leia Mais

Cidades globais para a formação de um império: comerciantes e urbanismo / História Revista / 2016

O presente dossiê se propõe refletir sobre o papel desenvolvido pelos entornos urbanos e portos comerciais nas diferentes estruturas imperiais durante a Idade Moderna. De um ponto de vista transnacional e interdisciplinar se levam em consideração quatro casos de estudos através dos quais, e a partir de diferentes perspectivas, se aborda a interação estabelecida por estas cidades com os sistemas imperiais nos quais se integravam. Cidades entendidas como lugares físicos, mas também como cenários onde os indivíduos atuam.

Os quatros estudos, situados cronológicamente entre os séculos XVI e XVIII, cobrem um amplo raio espacial incluindo as áreas do Mediterrâneo, Atlântico e Pacífico. Ademais, se considera a interconexão e interação destes espaços comerciais integrados graças a um primeiro processo de globalização de natureza mercantil iniciado, em grande medida, pelas expansões ultramarinas dos impérios ibéricos. Embora não podemos afirmar que a chamada era dos descubrimentos fosse a primeira a interrelacionar territórios e culturas distantes, a partir deste momento se incorporaria América à economia mundial e os intercâmbios de pessoas, objetos e ideias entre os quatro continentes sofreriam um aumento quantitativo sem precedentes.

Se trata, portanto, de analisar vários espaços específicos como laboratórios a partir dos quais observar dinâmicas de ação imperiais que estiveram orientadas, sobretudo, à prática do comércio e à busca de oportunidades de negócio. Além disso, se tomam em consideração outros aspectos entrelaçados com o econômico, como os intercâmbios culturais, evidentes no caso do urbanismo, e migratórios, exemplificados aqui pelo deslocamento de comerciantes bascos e portugueses em busca de novas oportunidades, ou pelo aumento demográfico do porto de Livorno.

Nesta linha, se consideram os seguintes espaços de ação. Em primero lugar, se analisam os territórios insulares atlânticos dos Açores e as Canárias e seu protagonismo na articulação das estruturas imperiais ibéricas. Por outro lado, se faz uma incursão no porto italiano de Livorno que, situado no Mediterrâneo ocidental, se converteu em epicentro de intercâmbios comerciais e articulação de lucrativas estratégias econômicas. Finalmente, se analisa o porto de Lima, situado na América Hispânica continental, orientado para o Pacífico, e sede de importantes intercâmbios tanto com o resto do continente como com o espaço Atlântico.

A natureza variada dos espaços econômico‐comerciais considerados, assim como a amplitude cronológica, nos permitem ter uma visão de conjunto e longue durée de núcleos fundamentais no funcionamento das estruturas imperiais, tão dinâmicas e permeáveis na prática como pretenciosas e regulamentadas na teoria. Desta forma, o diálogo entre impérios, cidades, comerciantes e urbanismo pode ser um interessante ponto de partida para calibrar os efeitos e consequências de uma primeira globalização durante a Idade Moderna. Caminhando do concreto para o geral, se recuperam aqueles fios que formaram a rede de relações e as trocas de todo tipo.

A primeira das pesquisas aborda o papel do porto de Angra, situado na ilha de Terceira (arquipélago dos Açores), no processo de urbanização utilizado pelo império português. A ilha, enclave comercial atlântico desde o século XVI, toma relevância como modelo urbanístico imitado posteriormente no resto dos territórios ultramarinos portugueses. Com a ajuda de uma perspectiva multidisciplinar, Antonieta Reis Leite, estabelece um novo redimensionamento de Angra como porto luso sobre a base de documentos históricos e não sobre a narrativa existente sobre o enclave.

A partir de uma perspectiva também urbanistíca se analisa o porto de Livorno, situado no Mediterrâneo ocidental. O crescimento populacional do porto sob o amparo de um marco legal de promoção comercial e de proteção dos intercâmbios, provocou um processo de crescimento urbanístico. Em grande medida, o desenvolvimento se iniciou para dar resposta à demanda populacional que, em sua maior parte, era de origem estrangeira. Neste sentido, Livorno se converteu em um espaço privilegiado para o investimento imobiliário e posterior aluguel destes bens. Este proceso atraiu a atenção de muitos comerciantes e, obviamente, significou um canal de ingressos para a dinastia dos Medici, que se beneficiaram dele através da imposição de diversos impostos. Neste âmbito, Zamora Rodríguez analisa as estratégias dos Silva e Silva Henriques ao serviço da Monarquica Hispânica e de Portugal respectivamente, entrelaçados por vínculos familiares mais além de 1640. Apesar de sua localização, Livorno se considera como porto “imperial” devido ao protagonismo que manteve na articulação dos entramados imperiais ibéricos e a presença de intermediários como canalizadores das relação político‐comerciais. O porto é tratado, portanto, como mercado e ponto geoestratégico mediterrânico integrado nos impérios ibéricos de um ponto de vista prático, ainda que excluído do ponto de vista jurisdiccional.

Nesta linha de tratamento transnacional das relações imperiais, o artigo de Álvarez Santos parte dos pressupostos da nesologia e dos debates historiográficos mais recentes a respeito, para integrar o arquipélago das Canárias como parte fundamental no funcionamento das relações com os portugueses. As Canárias se converteram, durante todo o período da União Ibérica, em território estratégico e com muitas oportunidades de negócio para comerciantes portugueses que se estabeleceram ali. A partir destes enclaves atlânticos se teceram relacções fundamentais que involucraram e integraram mercados como Portugal e portos americanos e africanos por sua proximidade com a costa deste continente. A utilização de uma rica documentação notarial oferece dados inéditos sobre a presença e atividades econômicas de estes portugueses nas ilhas.

Finalmente, continuando com as estratégias seguidas pelas redes de comerciantes, o estudo de Lamikiz salienta a importância de Lima borbônica no contexto geral do vice‐ reinado do Peru. Efetivamente, o texto se articula em torno da experiência de seis comerciantes vasconavarros tomados como estudos de caso já que, na medida em que pertenenceram a duas gerações distintas, podem oferecer una análise diacrônica de suas atividades. Os três primeiros conheceram o declínio do sistema de Galeones a Tierra Firme enquanto que os três restantes foram testemunhos do renascer do comércio colonial pelo Cabo de Hornos. Desta forma, Lamikiz oferece um panorama das transformações que sofreu o comércio colonial hispânico durante o século XVIII até seu progressivo colapso durante o primeiro quarto do XIX. Este interessante e duradouro processo é observado a partir da experiência vital e desafios afrontados por comerciantes concretos que, por fim, contribuíram com seus interesses particulares para dinamizar o comércio transoceânico e não sempre consoantes com os objetivos governamentais.

Em resumo, este dossiê examina eixos comerciais que contribuíram com a  engrenagem dos entramados imperiais ibéricos, ainda que não se ocupe dos portos tradicionalmente considerados como fundamentais. Com o objetivo de aportar mais dados aos debates historiográficos em torno da dialéctica centro‐periferia, os assuntos tratados colocam em evidência que o funcionamento destes sistemas, de clara natureza polinuclear, dependeu de centros considerados tradicionalmente de menor importância, ainda que básicos para a dinamização de todo o conjunto. Efetivamente, o estudo dos arquipélagos Açores e Canárias, de portos “fora” do sistema imperial (como Livorno), ou a reformulação do rol de Lima no seio das políticas imperiais, confirmam a importância destes contextos menos estudados pela historiografía mais recente. Finalmente, se recupera o papel ativo de alguns dos protagonistas de “histórias conectadas” que se deram através de cidades e portos.

Francisco Zamora Rodríguez (CHAM)

Alberto Baena Zapatero (UFG)

Organizadores


RODRÍGUEZ, Francisco Zamora; ZAPATERO, Alberto Baena. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969-1991 | Mohamed Ingiriis

A obra apresentada por Mohamed Ingiriis, pesquisador somali que atualmente está finalizando seu doutorado em Estudos Africanos pela Universidade de Oxford, é resultado de uma minuciosa pesquisa sobre o governo de Siad Barre. O trabalho reflete muito da trajetória acadêmica do autor, que tem seu campo de pesquisa concentrado nos estudos políticos sobre a Somália, apresentando uma abordagem focada na história da formação do Estado somali, perpassando a sociedade e cultura local. Sua pesquisa está ligada ao Centro de Liderança Africana (CLA) da Universidade de Oxford. O historiador somali é chefe de um projeto de pesquisa de construção da paz, dirigido pelo CLA, além ser também um especialista em Somália/Somalilândia nos temas relacionados à democracia, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo, Suécia. Ademais, Ingiriis tem uma série de trabalhos publicados que versam os temas já abordados e que questionam a sociedade patriarcal na Somália, a relevância da mulher nesta sociedade, seu papel e a relação com os clãs.

Para expor sua proposta de análise do sistema político da Somália, no período em que Siad Barre governou (1969-1991), Ingiriis aponta que a base de sua pesquisa foram documentos do Estado, notícias de jornais, sobretudo, africanos, mas também telefonemas para indivíduos que estiveram ligados ao governo de Barre. As fontes que compõe a obra são vastas e retratam uma minuciosa pesquisa, que traz muitos elementos ainda pouco abordados sobre este período no país africano. Neste sentido, o autor afirma que seu objetivo neste trabalho é mapear e discutir como Siad Barre chegou ao poder, como ele construiu seu regime, apontando quem foram os agentes envolvidos nesta escalada ao poder e, essencialmente, qual o tamanho do legado do ex-líder somali e sua contribuição para as guerras clânicas que a Somália enfrenta ainda nos dias atuais. A obra esta dividida em cinco partes com onze capítulos, em uma narrativa que constrói uma sequência histórica dos eventos que permearam o país durante o regime militar e se encerra com uma conclusão que sumariza os argumentos e observações da obra. Ao longo dos capítulos o autor procura associar a narrativa histórica à série de fontes presentes no livro, buscando assim lançar as bases para a compreensão deste período aliando uma perspectiva crítica a historiografia sobre o tema.

A época observada compõe vinte e dois anos da história do país do chifre da África, e para Ingiriis modelou os conflitos que a Somália enfrenta ainda hoje. Valendo-se de modelos heurísticos de análise dos pesquisadores africanos Achille Mbembe [2] e Mahamood Mamdani [3] , o autor constrói uma narrativa histórica linear, que percorre a queda do governo civil em 1969, com um golpe de Estado dado pelo General Siad Barre, chegando até a fuga do líder em janeiro de 1991 da capital Mogadíscio. Focando, sobretudo, nos aspectos políticos da história da Somália, o pesquisador somali discute como este governo ditatorial configurou uma política baseada no clânismo e nas negociações com a URSS e com os Estados Unidos. Segundo o historiador somali, a União Soviética tem protagonismo na formação da Somália como uma República Democrática que se declarava socialista e era governada por um partido comunista liderado por Barre. No entanto, ao longo da obra ficam claras as contradições deste novo sistema político – tendo em vista que a Somália até 1969 adotava um sistema de eleições diretas para o parlamento e para os cargos de Primeiro Ministro e Presidente – ele assume, como frisa Ingiriis, uma posição comunista, baseada nos textos de Marx, mas também leva os escritos do Corão em consideração, respeitando uma série de costumes islâmicos que entram em contradição com o marxismo. Neste ponto, se expõem as problemáticas entorno da adesão dos pressupostos do comunismo soviético, em oposição aos costumes e práticas ligadas às tradições somalis (a forma de organização clânica [4]), sobretudo, a religião islâmica, que é maioria no país e rege muitas práticas sociais e até políticas na Somália.

Problematizar os desenhos do regime de Siad Barre é o ponto central do texto que apresenta uma quebra com uma série de trabalhos elaborados por historiadores sobre a Somália, particularmente, o período do regime do General Barre. Há muitas dissonâncias entre as pesquisas produzidas, alguns trabalhos como de Alice Hashim (HASHIM, 1997) exprimem a ideia de que o governo iniciado com o golpe de 1969 se tornou, gradualmente, fascista, pelas medidas que implementou e com o progresso do sufocamento da liberdade. Ahmed Samatar (SAMATAR, 1995), notório pesquisador do tema, declarou, em seus trabalhos, que o regime tinha poucas ideias socialistas e uma fraca ideologia. Conclusão que não foge à argumentação do historiador somali, que apresenta incongruências do regime quanto a sua posição ideológica. Entretanto, Ioan Lewis (LEWIS, 2008) reconhecido por suas pesquisas no chifre da África, especialmente, na Somália, argumenta em suas obras que o governo do ex-líder somali foi um período conturbado, porém que não é a raiz dos conflitos clãnicos enfrentados na região desde 1991. Desta forma, o antropólogo inglês vai à contramão da tese que Ingiriis apresenta, considerando que para ele é no governo de Barre que se perpetuam os privilégios que os grupos clânicos ligados ao governo vão desfrutar. Esta prática, de permitir que os clãs ligados à família do General Barre obtivessem uma série de regalias econômicas e políticas e ainda, desfrutassem de uma certa imunidade política, é a chave para, o historiador somali, de como compreender de que maneira, após a queda do regime, o país fragmentou-se em regiões lideradas pelos chefes de clãs.

Com efeito, Ingiriis traz à tona uma discussão ainda pouco elaborada no meio acadêmico, sobre as causas do “colapso” do Estado da Somália em 1991. Tendo em vista, que poucos trabalhos foram publicados após o fim do regime, muitas pesquisas foram elaboradas ainda na época que Barre governava o país, fato que tem relevância na análise, pois muitas fontes sobre o período só se tornaram acessíveis recentemente. É neste ponto, que o livro The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime afirma sua relevância, pois aponta muitos elementos significativos e desconhecidos, porque expõe como membros do governo viram ou, ao menos, afirmaram ver as medidas impostas e as consequências que determinadas atitudes do ex-líder somali teve para o país.

O autor evoca ainda, algumas discussões e comparações com outros líderes africanos, como: Mobuto Sese Seko ex-ditador do antigo Zaire e Idi Amin ex-ditador de Uganda, apontando a similaridade de determinados comportamentos e alianças, destes dirigentes com Siad Barre, que inclusive teve relações próximas com ambos. De forma relevante, Ingiriis tenta demonstrar como o comportamento destes líderes militares configura um núcleo de estudos importantes para compreender as ditaduras na África e os legados que estas deixaram. Como já afirmado, o historiador somali vai destacar a relevância que as relações com Estados Unidos e URSS, tiveram tanto na Somália como nos países dos líderes citados, apresentando uma análise comparativa do comportamento das duas potências mundiais e como elas, se valendo de novas alianças modificaram o cenário de algumas regiões da África, principalmente, na década de 70 e 80.

O trabalho permeia toda a vida política da Somália nos vinte e dois anos de administração do General Siad Barre, não obstante, o autor constrói a história da Somália tendo como pilar central a história do Estado. É nesse sentido, que questionamos a centralidade deste Estado como formador de um determinado tipo de história. Esta discussão, em torno de uma história centrada no Estado tem sua relevância, sobretudo, na escrita da história do continente africano, porque carrega consigo uma série de “valores” da escrita da história ocidental e na forma de organização política predominante no ocidente. Sendo assim, quando questionamos a posição do autor em escrever um texto focado na história política do país, estamos questionando a validade da formação de um Estado na Somália. Pensando no ponto levantado por Jean François Bayart (BAYART, 2009), de que os processos políticos africanos não necessariamente, independente das influências externas, deveriam terminar na conformação do Estado, argumentamos que focar a pesquisa apenas nas estruturas políticas do regime pode possibilitar que questões culturais e sociais estejam à margem das análises sobre a história da Somália. Relegando, desta forma, um papel primordial ao Estado e justificando a necessidade de uma organização política nos moldes de Estado europeu, herdado do período de colonização.

Revelando uma observação acurada dos eventos políticos que permeiam a Somália de Siad Barre The suicidal state in Somalia: The rise and fall of the Siad Barre Regime, compõe o panorama de trabalhos que problematizam a instituição e a permanência de uma determinada elite política, especialmente, no que tange a inserção dos militares na liderança de governos africanos. Focando na figura de um líder que se constrói enquanto protetor, carismático e onipresente, Ingiriiis levanta questões de grande pertinência, já que ainda hoje a Somália sofre as consequências de um governo que primou pela permanência através de privilégios e violências institucionais.

Notas

2. A análise oferecida por Achille Mbmebe na obra On the postcolony, é largamente utilizada por Mohamed Ingiriis no sentindo de apontar que um poder de inspiração colonial estava presente em muitos ambientes da África póscolonial. O filósofo camaronês assinala o conceito de commandent utilizado pelo autor somali para abordar a ideia de que Siad Barre havia sido um militar treinado pelo colonialismo que após assumir o governo continuou a perpetuar práticas colonialistas. Cf. MBEMBE, Achille. On the postcolony. California: University of California Press, 2001.

3. Mahmood Mamdani oferece uma modelo de análise que foca no Estado na África, o autor ugandense aponta para a ideia de que os Estados pós-coloniais africanos não são nada mais que uma extensão do controle colonial. É neste sentido que Ingiriis se vale do seu modelo heurístico para problematizar a conformação e consolidação do Estado na Somália independente. Cf. MAMDANI, Mahamood. Darle sentido histórico a la violencia política en el África poscolonial. In: ISTOR, Año IV, Nº 14, 2003, pp. 48-68.

4. A designação de grupo clânico, esta ligada a tradicional divisão somali, na qual indivíduos com ancestrais em comum ligam-se uns aos outros pelos laços familiares. A Somália atualmente possui seis grandes famílias clânicas, estas tem subdivisões internas, que dão origem a sub-clãs. LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

Referências

BAYART, Jean-François. The State in Africa: the politics of the Belly. Cambridge Press, 2009, pp. 1-40.

HASHIM, Alice Bettis. The fallen state: Dissonance, dictatorship and death in Somalia. London: University Press of America, 1997. 168 p.

LEWIS, Ioan. Understanding Somalia and Somaliland: Culture. History, Society. New York: Columbia University Press, 2008. 275p.

SAMATAR, Ahmed; LYONS, Terrence. Somalia: State Collapse, Multilateral Intervention, and Strategies for Political Reconstruction. New York: Brookings Institution Press, 1995. 112p.

Mariana Rupprecht Zablonsky – Graduanda do 8º período de História – Licenciatura e Bacharelado na UFPR. Bolsista PIBID e orientanda do Prof. Dr. Hector Hernandez Guerra. Link do Lattes http://lattes.cnpq.br/5021751592431335 .


INGIRIIS, Mohamed. Haji. The suicidal State in Somalia: the rise and fall of the Siad Barre Regime, 1969- 1991. London: University Press of America, 2016. Resenha de: ZABLONSKY, Mariana Rupprecht. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.129-136, 2016. Acessar publicação original [DR]

Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica | Maria F. C. Maranhão

A presente resenha é referente ao livro Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: Um estudo sobre restaurantes, rituais e (re)construção de identidade étnica, da autora Maria Fernanda Campelo Maranhão. A obra é uma dissertação de Antropologia social defendida na UFPR no ano de 1996 e publicada como livro em 2014, integrando a Coleção de Teses do Museu Paranaense. A autora possui graduação em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá (1986), no Rio de Janeiro e mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Paraná (1996). É funcionária pública do Estado do Paraná desde novembro de 1987, estando locada no Museu Paranaense, e atualmente é responsável pelo Setor de Antropologia da instituição, onde atua na gestão, pesquisa, catalogação, e cadastramento de acervos Etnográficos e Imagéticos em banco de dados digital. Possui experiência em Etnologia Indígena, Acervos Etnográficos e História da Antropologia.

A obra é estruturada em cinco capítulos. Eles tratam, respectivamente, de descrever brevemente a imigração italiana no Paraná no âmbito do projeto nacional de formação de um campesinato; explorar a identidade italiana e realizar uma etnografia do bairro; apresentar o bairro como centro gastronômico; discutir sobre o estudo da comida na antropologia, evidenciando o caráter simbólico e de construção de identidade; e apresentar de que forma as políticas públicas interferiram na formação de identidade no bairro italiano.

Em sua introdução, Maranhão afirma que pretende se utilizar da comida típica e dos restaurantes de Santa Felicidade como recorte para discutir questões de etnicidade, relações interétnicas e transnacionalidade, sendo o foco principal de sua análise a comida italiana e seus restaurantes enquanto símbolos de etnicidade. Desta maneira, ela aborda também a influência das políticas públicas locais e transnacionais na (re)construção da identidade italiana no bairro, no âmbito das comemorações do aniversário de 300 anos de Curitiba, quando houve uma valorização das etnias europeias. Ainda na introdução, a autora explica sua metodologia, na qual trabalhou com entrevistas tanto com moradores quanto com turistas, além de fazer uso de matérias documentais de pesquisa histórica, como jornais e revistas.

No primeiro capítulo, Do Vêneto a Colônia de Santa Felicidade, a autora trata da formação histórica do bairro. Assim, ela aborda a questão do incentivo à imigração para o Brasil no século XIX, responsável por um grande fluxo imigratório. A partir da década de 1850, com a imigração a cargo das províncias que agiam por intermédio das companhias de imigração, ela comenta que, no caso do Sul do Brasil, se pretendia estabelecer um campesinato, baseado na pequena propriedade e no trabalho familiar. No Paraná, núcleos coloniais foram instalados próximos aos centros urbanos, para abastecer um mercado que não era autossuficiente.

Os imigrantes que se dirigiram para Santa Felicidade eram, no entanto, originalmente da região italiana do Vêneto, e haviam sido instalados na colônia Nova Itália, no litoral do estado, mas esse assentamento não progrediu, pois os colonos não conseguiram se adaptar, devido à falta de mercado consumidor para seus produtos, e também pela ausência de orientação sobre as doenças tropicais, assim como sobre o cultivo apropriado e sobre as pragas da lavoura. Dessa forma, as famílias decidiram se mudar para o planalto, seguindo as informações recebidas pelos tropeiros que passavam pela região. Quinze dessas famílias que deixaram a colônia Nova Itália adquiriram, no planalto, terras da portuguesa Felicidade Borges, e estabeleceram sua colônia, que passou a se chamar Santa Felicidade e a atrair mais colonos italianos. Estabelecidos, passaram a vender seus produtos no centro de Curitiba.

No capítulo Identidade italiana e etnografia do bairro, Maranhão fornece algumas informações acerca da transformação da colônia em bairro de Curitiba, fruto do crescimento da cidade. Também devido à legislação, a autora afirma que não é permitida a construção de edifícios com mais de dois andares no local, o que fez com que o bairro mantivesse algumas características da arquitetura inspirada no Vêneto. Ela comenta também a diferença entre o centro – próximo à Avenida Manoel Ribas – e a periferia do bairro – mais distante, e aborda o comércio, destacando o artesanato, o vime, o vinho, e dá ênfase para os restaurantes, que são um cartão postal da cidade.

Neste capítulo, Maranhão procura fazer uma diferenciação entre o que chama de italianos de Santa Felicidade, colocando-os em oposição aos outros italianos e aos curitibanos. Ela embasa essa ideia no conceito de grupo étnico de Barth, onde mais do que uma cultura comum, é necessária a autoatribuição e a atribuição pelos outros para que se reconheça esse grupo, baseando-se também no conceito de identidade contrastiva, no qual o indivíduo constrói a sua identidade afirmando-se como diferente diante de outros grupos, ou seja, identidade que surge por uma oposição. Neste tópico, a autora considera uma identidade de italianos de Santa Felicidade que se constrói em oposição tanto aos não italianos quanto aos italianos de imigração mais recente, que não passaram pela experiência do campo. Ela ressalta que nos dois casos a Igreja Católica teria apresentado um papel fundamental nessa construção de identidade. Para a autora, a configuração atual do bairro segue os moldes dos primeiros imigrantes, visto que muitas das famílias ainda vivem em lotes originais, só que agora divididos entre os membros herdeiros, configurando o que Maranhão chama de contradas. E a rede de parentesco, que é em maneira recorrente definida como endogâmica, faz com que muitos italianos de Santa Felicidade ainda se vejam como parentes. Ela também comenta sobre a chegada, em anos mais recentes, de outras famílias italianas ou de descendentes, que acabaram por se tornar donos de restaurantes de sucesso, mas que não fizeram parte da construção inicial do bairro. Maranhão diferencia ainda o bairro dos turistas daquele dos italianos, onde convivem os descendentes das famílias.

Um Bairro Gastronômico é como se intitula o terceiro capítulo da obra, no qual a autora discute a origem dos restaurantes. O primeiro deles teria sido o restaurante Iguaçu, estabelecido com o intuito de vender um prato feito para os caminhoneiros que por ali passavam, nos anos 1940. Constituíram-se outros estabelecimentos na sequência, e o bairro foi se tornando famoso pela gastronomia. Esses restaurantes são considerados empreendimentos familiares. Outra característica comentada pela autora é a de que além de servir refeições, estes lugares são palcos para eventos. Os restaurantes típicos são diferenciados dos demais estabelecimentos de Curitiba por serem informais, ambientes familiares, destaca Maranhão.

Tratando a maneira pela qual as famílias típicas se relacionam com os restaurantes, a autora comenta que são poucas as que os frequentam, pois muitas mantém a tradição culinária em casa. Porém, desde o sucesso dos anos 1970, recorrem a eles em ocasiões festivas. Como afirma Maranhão, o bairro é relacionado com o lazer dominical dos curitibanos, e a cidade é identificada e se identifica com o bairro turístico e gastronômico.

No quarto capítulo, A boa comida de Santa Felicidade, ela comenta que o interesse dos antropólogos no estudo da alimentação existe desde o surgimento dessa ciência, mas que o alimento analisado em relações simbólicas é algo feito por pesquisadores contemporâneos. A autora cita os estudos de Roberto Da Matta, pioneiro destas discussões no Brasil, fazendo uma distinção clara entre alimento – aquilo de que o corpo precisa para sobreviver – e comida – o que se consome com prazer. Outra questão apontada é de que se deve contextualizar a refeição, identificando o que se come em dias de semana ou finais de semana, no cotidiano ou em celebrações, além de se fazer a distinção entre comida de casa e da rua. Quanto à comida nos restaurantes, Maranhão afirma que ela é composta pelo frango a passarinho, polenta frita e risoto de miúdos. Esses pratos, ainda que alterados para o consumo local, legitimam uma culinária tradicional do Vêneto, que contribui para a reinvenção da identidade italiana e do bairro de Santa Felicidade enquanto reduto gastronômico. Essa reinvenção de tradição estabelece uma continuidade com o passado histórico da colônia. Esses restaurantes levaram a comida local ao gosto dos curitibanos, que até então, tinham reservas em relação a alguns deles, como a polenta.

A comida aparece também nas festas do bairro, sendo elas 4 Giorni in Italia, e as festas da Uva e do Vinho – a primeira, realizada em outubro, para dar visibilidade aos restaurantes, a segunda em fevereiro, em comemoração da colheita da uva, e a terceira em julho para celebrar a safra anual do vinho. Nelas, os italianos de Santa Felicidade reafirmam sua identidade, em detrimento dos outros italianos e dos curitibanos. Maranhão detém sua análise nas duas últimas. A organização dessas festas é de responsabilidade quase total dos descendentes de italianos, onde eles reforçam a sua identidade étnica, baseada nos valores de família, trabalho e religião. A abertura da festa é o momento onde se dá o encontro cultural entre os donos do evento – os italianos de Santa Felicidade – e os curitibanos – para quem ele é destinado. O consumo da polenta na festa é o que a autora chama de agregação, momento no qual todos comem juntos, italianos e visitantes. Ainda é relevante comentarmos que, de acordo com Maranhão, uma vez que a Festa da Uva teve início em moldes diferentes do que se estabeleceu depois, e que somente à medida que crescia e recebia mais pessoas ela se italianizou, não há continuidade histórica dela com práticas trazidas da Itália, mas se configura numa tradição inventada.

O quinto capítulo é Um bairro “italiano” na Curitiba dos 300 anos, onde a autora explora a relação entre Santa Felicidade e Curitiba, e o papel das políticas públicas na (re)construção da etinicidade do bairro. Para ela, a relação entre Santa Felicidade e Curitiba foi bastante clara em dois momentos distintos: o centenário de fundação da colônia, em 1978, e os trezentos anos da Capital, entre 1990 e 1993. Essa (re)construção de identidade intensificada desde os anos 1970 deve ser pensada em um contexto mais amplo, o de desaparecimento da identidade italiana, como no exemplo da repressão contra italianos, alemães e japoneses realizada pela política de nacionalização do Estado Novo, de Getúlio Vargas, nos anos 1930. Com essa repressão, grande parte das atividades culturais existentes em Santa Felicidade antes da guerra desapareceu. O renascimento cultural do bairro viria apenas no final dos anos 1970. Essa divulgação de imagem italiana se deu, para a autora, em dois momentos: em 1978, no ano do centenário, o bairro já era um atrativo turístico e gastronômico, quando recebeu investimento na divulgação de sua imagem italiana pela Prefeitura de Curitiba, além do investimento em transformações que pretendiam deixar o bairro com cara de cidade italiana. Outro momento de investimento deste tipo foi nos anos 1990, com o aniversário dos 300 anos de Curitiba. Desta data, dentre outas construções, se destaca o portal italiano. Ela ressalta que estes últimos investimentos estavam de acordo com um plano de estabelecer Curitiba como cidade de primeiro mundo, cosmopolita e multiétnica.

Em sua Conclusão, ela comenta que o bairro de Santa Felicidade constrói sua imagem de duas maneiras: na perspectiva externa, olhando as pessoas de fora do bairro como os outros, curitibanos e turistas, e a perspectiva interna, se reconhecendo como italianos, sendo a imagem externa unificadora, conferindo à Santa Felicidade o status de bairro italiano de Curitiba, com destaque para o apelo gastronômico. Já para os moradores italianos, o bairro ainda é uma colônia vêneta, e eles formam, segundo Maranhão, um grupo étnico em torno de um território comum, de fronteiras simbólicas, “de temporalidade e especificidades culturais singulares: ancestralidade comum, intensa sociabilidade, laços de vizinhança, uma complexa rede de parentesco e uma ativa participação nos rituais realizados no interior do grupo” (MARANHÃO, 2014, p. 212). Por fim, a autora reafirma o fato de como a comida italiana e a politização do grupo étnico nas celebrações dos 300 anos de Curitiba têm um papel fundamental na (re)construção dessa imagem italiana, da cidade que se quer afirmar como cosmopolita.

Há alguns pontos que podemos destacar acerca da obra de Maranhão. O fato de a autora lançar um olhar antropológico sobre os moradores nos parece bastante relevante, pois, ela traz novas ferramentas para a pesquisa, como as entrevistas com moradores e turistas que, embora já tenham sido incorporadas pela historiografia como história oral, são consideradas características também da Antropologia. Ainda na questão das fontes, é interessante percebermos que a utilização da arquitetura e da geografia do bairro enriquece o seu trabalho.

Outro ponto relevante para analisarmos é a estruturação da obra. Maranhão explica desde o princípio o propósito de sua pesquisa, e constrói uma base sólida para essa análise ao longo do texto, tratando de como o bairro se constitui antes de fazer a sua análise crítica. Desta forma, o livro se torna uma leitura bastante clara e objetiva, que pode ser considerada como uma boa referência para quem pretende estudar o contexto da imigração italiana no Brasil.

Podemos comentar, por fim, a importância dos conceitos nos quais Maranhão se embasa para sua pesquisa. Citando Barth e Hobsbawm, ela deixa claro que sua análise se pauta em conceitos já bastante estabelecidos na Antropologia e na Historiografia. Trabalhando com as duas áreas de conhecimento, ela faz uma análise antropológica que acaba bastante enriquecida pela utilização conjunta de outras ciências, como a História.

Bruno Ercole –  Graduando em História Licenciatura e Bacharelado pela UFPR.


MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo. Santa Felicidade, o bairro italiano de Curitiba: um estudo sobre restaurantes, rituais, e (re)construção da identidade étnica. Curitiba: SAMP, 2014. Resenha de: ERCOLE, Bruno. Cadernos de Clio. Curitiba, v.7, n.2, p.145-153, 2016. Acessar publicação original [DR]

Revista de Economia Política e História Econômica. São Paulo, n.36, ago. 2016.

REPHE 36 – agosto de 2016

  • A Questão dos Antecedentes: por que não uma “pré-história” do pensamento econômico
  • Luiz Eduardo Simões de Souza
  • SMEs Role and Contribution towards Trade and FDI Flows in Latin America
  • Badar Alam Iqbal
  • Nayyar Rahman
  • Repartição da renda, inflação e conflito distributivo: uma abordagem kaleckiana
  • Glaudionor Gomes Barbosa
  • Ciclos Econômicos e Conflitos Sociais
  • Lincoln Secco
  • Fernando Sarti Ferreira
  • Etapas da Regulação Petrolífera no Brasil – nacionalismo, cosmopolitismo e a utopia do desenvolvimento
  • Arthur Aquino
  • A referência internacional da moeda como instrumento de poder na economia política internacional
  • Gustavo Granado
  • O Nordeste, o Desenvolvimento e os Polos de Crescimento
  • Ramá Lucas Andrade
  • O Sistema Previdenciário sob a perspectiva Ortodoxa: uma crítica
  • Jessé Sales Rêgo
  • Ricardo Zimbrão Affonso de Paula
  • Alexandro Sousa Brito
  • Do Imperativo do Avanço Tecnológico à Capacidade Criativa na Civilização Industrial: dois momentos da ideia de inovação no pensamento de Celso Furtado
  • Paulo Leurquim
  • Para além do Peronismo: notas sobre o desenvolvimentismo na Argentina
  • Rossana Moreira Prux
  • Ivan Colangelo Salomão

RESENHA: MAZZEO, Antônio Carlos. Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. São Paulo: Boitempo, 3a. edição, 2015.

Modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura (A-EN)

Modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura. Resenha de: FANJUL, Adrián Pablo. Malha fina cartonera: novidade e projeto formador. Alea, Rio de Janeiro, v.18, n.2, p.369-374, ago. 2016.

Em agosto de 2015, em São Paulo, começou suas atividades uma nova editora independente: a Malha Fina Cartonera. Como seu nome já antecipa, trata-se de um empreendimento “cartonero”, que vem somar-se às centenas de selos editoriais desse tipo que surgiram no mundo, e muito especialmente na América Latina, desde o início deste século. No caso, Malha Fina Cartonera é iniciativa de professores e estudantes do curso de Letras de Universidade de São Paulo, sendo a professora Idalia Morejón Arnaiz e a pós-graduanda Tatiana Lima Faria suas inspiradoras iniciais e quem têm garantido um vínculo acadêmico para as atividades da nova editora. Encontramos Malha Fina Cartonera na web no seguinte endereço: <https://malhafinacartonera.wordpress.com/>.

Entrando ao blog da editora, podemos apreciar imediatamente o logotipo, criado com base na forma de uma folha de barbear. O desenho é do artista cubano Enrique Hernández. No blog lemos, a respeito, que

Tal como, de modo geral, as lâminas revelam as faces por detrás das barbas, inclusive às vezes revelam novas faces para rostos já conhecidos, a Malha Fina Cartonera pretende revelar para o seu público tanto escritores da FFLCH que permanecem inéditos quanto obras latino-americanas pouco conhecidas do público brasileiro.

Nosso principal objetivo aqui é resenhar o trabalho editorial de Malha Fina Cartonera, sua inserção na tradição das editoras denominadas “cartoneras” da América Latina, distinguindo de maneira especial seu projeto cultural focado na interseção dos universos linguístico-culturais hispânicos e brasileiros e destacando também o importante papel que esta iniciativa pode ganhar na formação de diversos profissionais, inclusive de educadores, no campo da linguagem.

Em 2002, em Buenos Aires, dá seus primeiros passos o que logo seria a editora Eloísa Cartonera. O poeta Washington Cucurto e o artista visual Javier Barilaro vinham trabalhando em um projeto de edição que já tinha o nome “Eloísa”. Para viabilizar economicamente as edições, começam a comprar o papelão (em espanhol, “cartón”) vendido por catadores que, na Argentina, são conhecidos como “cartoneros” porque recolhem e vendem papel e papelão. Cucurto, Barilaro, e os que participavam do projeto, compravam o papelão a um preço maior que o que pagavam as empresas que exploravam o trabalho dos catadores. A relação com os “cartoneros” e a participação deles no processo de produção dos livros foi crescendo, já que os editores montaram uma oficina onde os livros se armavam, encadernavam e pintavam artesanalmente. Assim surgiu “Eloisa Cartonera”, primeira editora com essas características, que começou a funcionar no início de 2003, em um local onde também se vendiam verduras e legumes. No início, se acrescentou a curadora de arte Fernanda Laguna.

Vemos, então, que o modo “cartonero” de reprodução e circulação para a literatura surge das condições do atual capitalismo nos espaços urbanos, porém, mais especificamente, dos processos de resistência (nas mais diversas acepções do termo) contra o neoliberalismo. Com efeito, “Eloisa Cartonera” não é imaginável fora do contexto de empreendimentos autogestivos que percorreram todas as áreas de economia na crise que levou à insurreição argentina de 2001 e cujas penúrias econômicas se prolongaram por alguns anos mais. Não apenas a rebeldia, mas sobretudo a criação de fortes redes solidárias caracterizaram esse histórico processo mediante o qual os argentinos deixaram atrás a desintegração provocada pelo neoliberalismo e recuperaram o crescimento econômico. Em relação à produção industrial de bens surgiram as empresas comunitárias geridas pelos próprios trabalhadores (PETRAS & VELTMEYER, 2002). Mas, como explica Palomino, os próprios movimentos massivos de assembleias de bairros e de desempregados que povoaram o espaço público desenvolveram, além do protesto, “huertas comunitarias, venta directa de la producción a través de redes de comercialización alternativas, elaboración y manufactura artesanal e industrial de productos frutihortícolas, panaderías, tejidos y confecciones artesanales e industriales, etc” (PALOMINO, 2003: 119). Sem dúvida, esse entorno de sociabilidade contribuiu para que se pudesse visualizar o possível ganho mútuo nessa iniciativa solidária específica que foi a edição “cartonera”.

Não casualmente, o manifesto de Eloisa Cartonera − que aqui citamos de sua reprodução em Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers (2009) − começa localizando seu nascimento nesse contexto e determinado por ele:

Nació en el 2003, por aquellos días furiosos en que el pueblo copaba las calles, protestando, luchando, armando asambleas barriales, asambleas populares, el club del trueque, ¿se acuerdan del club del trueque?, ¡Cómo pasa el tiempo de este lado de la tierra! Por aquellos días, hombres y mujeres perdieron sus trabajos, y se volcaron masivamente a las calles en busca del pan para parar la olla, como se dice, y conocimos a los cartoneros. (BILBIJA & CELIS CARABAJAL, 2009: 57)

A editora, como fariam de modo geral as muitas cartoneras que depois surgiram, combinava alguns autores novos com textos inéditos de autores consagrados, alguns dos quais, como Ricardo Piglia, César Aira, Rodolfo Fogwill e Tomás Eloy Martínez doaram obras breves.

Nos doze anos que se passaram, as editoras cartoneras se multiplicaram rapidamente. Segundo dados no blog de Malha Fina, elas já existem em 21 países e há mais de 300 editoras do tipo reconhecidas na América Latina. No Brasil, a primeira cartonera foi Dulcinéia Catadora, fundada em 2007, em São Paulo, por Lucia Rosa e Peterson Emboava. De modo geral, a elaboração dos livros pelas cartoneras é artesanal e cada exemplar é pintado individualmente com tinta guache. Muitas cartoneras e os coletivos que as sustentam oferecem oficinas de edição, como é o caso também desta nova Malha Fina, que, como veremos, já organizou atividades desse tipo.

Quando foi criada a primeira editora cartonera do Brasil, “Dulcineia Catadora”, o nome “Dulcinéia” era o de uma catadora próxima dos fundadores. Porém, como eles não deixaram de perceber, é também remissão a uma figura memorável das literaturas hispânicas. É que a edição cartonera no Brasil mostra uma particular vinculação com os espaços de língua espanhola e uma indagação em determinadas relações possíveis entre os universos linguístico-culturais brasileiros e hispânicos. Concordamos a respeito com Flávia Krauss (2015), quem encontra na prática editorial cartonera um lugar propício para o “entremeio”, termo que adota de María Teresa Celada (2010) para significar as relações de proximidade e diferenciação incompleta entre ambas as línguas, e a vivência de instabilidade semântica de circular entre elas.

Não casualmente, um dos primeiros livros publicados por Dulcinéia Catadora no seu primeiro ano de funcionamento foi Uma flor na solapa da miséria, de Douglas Diegues, escritor que produz na forma interlingual que ele denomina “portunhol selvagem” (com instabilidade na grafia da própria denominação). Essa obra já tinha sido publicada em 2005 pela Eloisa Cartonera. Diegues, em 2007, deu início também a uma editora cartonera, Yiyi Jambo, que funciona na cidade de Ponta Porã, fronteira entre o Brasil e o Paraguai. E são numerosos, dentre os títulos publicados pelas cartoneras de países do Cone Sul, os que correspondem a traduções do espanhol para o português e vice-versa.

Nesse contexto, a aparição de Malha Fina Cartonera, por envolver em ampla proporção professores, pesquisadores e alunos da área de Espanhol da USP, promete ser um espaço que reflita e amplie esse lugar da edição como cenário privilegiado para diversas formas de relação, no discurso literário, entre os dizeres e as identidades linguísticas brasileiras e hispano-americanas.

Não é raro, para quem observa listas e coleções de editoras cartoneras, encontrar que algumas delas se desenvolvem no âmbito universitário ou em colaboração com grupos dessa extração. Embora não tenha sido essa sua origem, é compreensível que tenha acontecido esse direcionamento, já que a crítica acadêmica, marcada por uma relação com as práticas de pesquisa, tende a cumprir, em relação ao campo literário, um papel simultaneamente consagrador e desestabilizador, atento às novas formas de produção.

Malha Fina surge como uma das editoras cartoneras que começam no âmbito universitário. No caso, do curso de Letras da Universidade de São Paulo, e com uma forte interação inicial com um selo editorial (La Sofía Cartonera) vinculado à Universidad Nacional de Córdoba, Argentina, com a qual a área de Espanhol da USP mantém diversos intercâmbios desde tempo atrás.

Já na seção “Quem somos?” do seu blog, Malha Fina Cartonera sinaliza essa relação com a universidade, vínculo que, mais que como institucional, se apresenta como o de um espaço de práticas letradas:

A Malha Fina Cartonera é um selo editorial que resulta de um desejo incessante pelo novo. Busca estimular a produção e vida literárias no âmbito universitário de modo não convencional e autônomo, proporcionando um espaço de atuação e mobilização dos estudantes de Letras. Nesse primeiro ano serão publicados autores latino americanos em traduções inéditas e também outros livros de autores vinculados à Universidade de São Paulo. Nossa equipe é composta por professores, alunos e colaboradores. Está sempre de capas abertas à espera de interesse e entusiasmo.

Malha Fina, nos seus cinco meses de existência, tem promovido oficinas sobre design editorial e sobre como editar livros cartoneros. Esse tipo de atividades, junto com as que necessariamente fazem parte de um projeto editorial, tais como a investigação literária, a tradução e a arte de desenho, têm, no âmbito universitário e sob a proposta de um modo de produção autônomo, uma grande potencialidade formadora sobre profissionais das letras e da linguística. Não apenas no campo da edição, também nos da tradução e do ensino das literaturas e mesmo das línguas, se levarmos em conta o modo como a diversidade linguística do espanhol e os sentidos que resultam de sua enunciação no espaço do português brasileiro podem fazer parte da materialidade dessa realização. Do lugar que nos cabe nas ciências da linguagem e na formação de professores de espanhol no Brasil, cremos que uma impronta “cartonera” pode contribuir grandemente para desestabilizar estereótipos sobre as línguas e culturas com que trabalhamos.

Não faremos aqui uma leitura crítica dos quatro livros já publicados por Malha Fina, dos quais há uma boa resenha no próprio blog da editora (SOUSA, 2015), mas os descreveremos brevemente.

O livro 22 poemas, de Fabiano Calixto, foi publicado em parceria com a já mencionada Yiyi Jambo, de Ponta Porã. É, como o próprio título indica, uma seleção de poemas desse autor de origem pernambucana, radicado em São Paulo, que já conta com vasta obra publicada, inclusive um livro pela editora Cosac Naify, e traduções do poeta dominicano León Félix Batista.

Também poesia, Pretexto para todos os meus vícios, de Heitor Ferraz Melo, autor de São Paulo embora nascido na França, apresenta textos inéditos. Ferraz Melo tem ao menos cinco livros de poesia publicados previamente, além de muitas colaborações com a revista CULT como crítico literário.

Outro dos livros, Os olhos dos pobres, de Julián Fuks, narrador conhecido por títulos como Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007) ou o recente romance A resistência (Companhia das Letras, 2015), reúne dois contos: o homônimo e “O jantar”, que já foram publicados em espanhol em 2014 pela editora La Sofía Cartonera.

Diálogos e incorporações, de Juliano Garcia Pessanha, circula entre modulações literárias e ensaísticas no tipo de vozes que cria e põe em cena. Dividida em quatro partes, cada uma delas tem como centro de referência um escritor ou um filósofo. O autor tem sua obra anterior recentemente recopilada em uma edição de Cosac Naify, Testemunho transiente.

Para concretizar outra das suas ambições, que é divulgar produção literária de estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo, Malha Fina Cartonera realizou uma convocatória pública que está em andamento. Um comitê formado por reconhecidos críticos e editores selecionará duas propostas dentro das modalidades de poesia e/ou narrativa. As obras selecionadas serão publicadas em formato cartonero, inicialmente em cem exemplares.

Finalizando, embora Malha Fina Cartonera não seja a primeira editora desse tipo no país, é sim, a primeira que surge no âmbito dos estudos hispânicos no Brasil, e isso não é pouco. Sua potencialidade como espaço para mostrar relações pouco visíveis entre as línguas, literaturas e culturas da América Latina encontrará, sem dúvida, terreno fértil em uma Faculdade como a de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em especial na sua área de Espanhol, onde a experimentação, a reflexão e a pesquisa sobre esses “entremeios” já tiveram expressões pioneiras.

Por isso, cremos também que pode atingir uma boa projeção sobre o conjunto do hispanismo brasileiro e de modo geral sobre aqueles que, na universidade, tentam pensar a América Latina a partir das suas práticas literárias e culturais. Para sua abordagem no século XXI, é cada vez mais evidente que a modalidade cartonera deve integrar o repertório de estudos.

Referências

BILBIJA, Ksenija & CELIS CARABAJAL, Paloma (Ed.). Akademia Cartonera: A Primer of Latin American Cartonera Publishers. Winconsin: Paralell Press, 2009. [ Links ]

CELADA, María Teresa. “Entremeio español / portugués – errar, deseo, devenir”, Caracol, n. 1, 2010: 110-150. [ Links ]

KRAUSS, Flávia. “Sobre o entremeio: a escritura dos manifestos presentes em Akademia Cartonera”, Malha Fina Cartonera (blog), 2015. Disponível em <https://goo.gl/v8I03g>. Acesso em: 20 nov. 2015. [ Links ]

PALOMINO, Héctor; “Las experiencias actuales de autogestión en Argentina. Entre la informalidad y la economía social.” Nueva Sociedad, n. 184, 2003: 115-128. [ Links ]

PETRAS, James & VELTMEYER, Henry. Argentina: entre la desintegración y la revolución. Buenos Aires: La Maza, 2002. [ Links ]

SOUSA, Pacelli Alves de. “Coedições e outras considerações: Fuks, Pessanha, Calixto e Ferraz na Malha Fina”, Malha Fina Cartonera (blog), 2015. Disponível em: <https://goo.gl/E4Su7d>. Acesso em: 20 nov. 2015. [ Links ]

Adrián Pablo Fanjul é professor no Departamento de Letras Modernas da USP e doutor em Linguística pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. É bolsista de produtividade nível 2 do CNPq. Publicou os livros Espanhol e português brasileiro: estudos comparados (Parábola, 2014), em coautoria com Neide González, e Português e Espanhol: línguas próximas sob o olhar discursivo (Claraluz, 2002), e, nos últimos anos, artigos nas revistas Bahtiniana, Cadernos de Letras da UFF, Lingua(gem) em Discurso e Letras de Hoje.

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O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro. Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860) | Renilson Rocha Ribeiro

Lo storico Renilson Rosa Ribeiro è attualmente professore dell’Universidade Federal do Mato Grosso, dove svolge i suoi incarichi accademici di docenza e ricerca nel campo della didattica della storia e della storia del Brasile ottocentesco. Anche se radicato con anima e cuore a Cuiabá, la formazione di Renilson R. Ribeiro è avvenuta a São Paulo, stato di nascita dell’autore, presso l’Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). L’opera intitolata O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro, pubblicata nel 2015, è il risultato della sua tesi di dottorato in storia culturale.

Il libro rappresenta prima di tutto un’opportunità di prendere contatto con il lavoro di questo promettente ricercatore, ma si tratta di una pietra miliare nella storiografia brasiliana sul periodo ottocentesco, soprattutto per ciò che riguarda gli studi sulla costruzione di una storia nazionale del XIX secolo coerente, in grado di conferire un significato storico leggittimatore a quello che era il neonato Stato nazionale monarchico brasiliano. L’opera tratta delle tappe fondanti della storiografia nazionale – fissate intorno alla figura di Francisco Adolfo de Varnhagen (São João de Ipanema 1816 – Viena 1878) e della sua opera História Geral do Brasil1–, del ruolo esercitato in questo processo dall’IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e del ruolo centrale che lo sviluppo di una narrazione storica del Brasile coloniale esercitò nella creazione del Brasile monarchico del Secondo Impero.

Il libro è diviso in tre capitoli, ciascuno contenente una propria tesi, che concorrono nella parte conclusiva ad un solo esito: l’invenzione storica del Brasile Colonia è parte di un progetto politico di costruzione dello Stato nazionale improntata sul modello del Secondo Regno. Il sottotitolo del libro Francisco Adolfo Varnhagen, o IHGB e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860) anticipa la struttura del testo proposta dall’autore.

Il primo capitolo, Invenções dos outros: as biografias de Varnhagen e a escrita da história do Brasil (1878-1978) presenta il processo di invenzione biografica di Varnhagen quale patrono della storia del Brasile e storico simbolo del progetto storiografico dell’IHGB, elaborato a partire dagli scritti biobibliografici realizzati tra il 1878, anno della morte di Varnhagen, e il 1978. Attira l’attenzione la strategia teorica e metodologica scelta dall’autore per affrontare la questione della biografia di Varnhagen: coerentemente con i suoi convincimenti teorici, Renilson R. Ribeiro non si propone di realizzare una nuova biografia di Varnhagen o di ricostruire il percorso storico del visconte di Porto Seguro, ma si lancia in qualcosa di più audace. Ispirato da Dominick LaCapra e dalla sua Nuova storia intellettuale2, l’autore analizza Varnhagen come un testo, ossia, mettendo in evidenza il modo in cui le biografie hanno costruito un Varnhagen-IHGB, al servizio di un progetto istituzionale volto a trasformare l’IHGB nella “Casa della Memoria Nazionale”.

In questa modo l’autore fugge dalla tentazione biografica di dare un’unica e coerente interpretazione della vita di colui di cui viene scritta la biografia; rifugge anche da una prospettiva storicistica che condurrebbe a un’esternalità al testo. La sua concezione del contesto si rifà in misura maggiore ad un’intertestualità articolata piuttosto che all’intento oggettivista di tracciare un panorama dei fatti al di fuori del testo, caratteristica che lo metterebbe in rotta di collisione con i suoi convincimenti teorici.

I documenti analizzati in questa prima sezione sono le biografie, i necrologi, gli encomi, le memorie e le prefazioni che miravano a esaltare Varnhagen e che fiorirono dopo la sua morte, nel 1878, all’interno della stessa rivista dell’IHGB. Renilson R. Ribeiro analizza come l’IHGB si appropriò della figura di Varnhagen per costruire una tradizione storiografica brasiliana. Realizzando reiteratamente biografie su Varnhagem e concedendogli il titolo di patrono della storia del Brasile, l’IHGB si poneva come istituzione autorevole e significativa nel processo di produzione della storia del Brasile. Fare di Varnhagen un eroe del pantheon degli artefici della storia del Brasile significava glorificare anche l’IHGB.

Nel primo capitolo, Varnhagen assurge al ruolo di oggetto costruito dai discorsi prodotti dall’IHGB e dagli intellettuali vicini a questa istituzione. Nel secondo capitolo, Varnhagen abbandona la condizione di oggetto delle rappresentazioni discorsive e diviene soggetto della sua storicità.

In Invenções de si: as cartas de Varnhagen e a escrita da história do Brasil, l’autore analizza le rappresentazioni che Varnhagen diede di sé, dell’IHGB, del ruolo dello storico, delle tensioni e delle dispute interne all’IHGB e dei testi storici. Renilson R. Ribeiro mostra un Varnhagen che rappresenta se stesso come un intellettuale di Stato e che vede nel processo di scrittura e pubblicazione della História geral do Brasil un incarico politico in favore dello Stato brasiliano e della monarchia.

L’autore mostra i retroscena delle scelte documentali, tematiche e cronologiche dell’opera di Varnhagen, così come la sua frustrazione di fronte alla ricezione silenziosa dell’opera da parte dei colleghi dell’IHGB. La strategia del testo permane evidenziando, per mezzo delle lettere, un Varnhagen in cerca di un riconoscimento che non ottenne in vita, ma solamente dopo la sua morte.

Qui sarebbe interessante rilevare che, mentre Varnhagen cercava di acquisire un controllo sulla costruzione di sé – o meglio, sulla base di come desiderava essere rappresentato – la sua memoria cominciò a essere utile all’IHGB per i propri interessi solamente nel momento in cui lui non ebbe più modo di controllare e influire su questo processo. A prescindere dal risentimento in vita per l’assenza di riconoscimento da parte dei suoi colleghi, l’eredità di Varnhagen si rafforzò in tal misura da rendere l’IHGB dipendente dalla sua memoria per legittimarsi come istituzione-autorità nell’edificazione della storia del Brasile. Per via del suo costante dialogo con la storiografia tradizionale sempre in cerca di tematiche, Varnahgen non è visto solo come un compilatore di documenti, ma come un intellettuale protagonista nel processo di scrittura della storia del Brasile. Per Renilson R. Ribeiro, il processo di ricerca e organizzazione dei documenti, di cui Varnhagen fu un uomo chiave, era zeppo di questioni storiografiche molto sentite nel Brasile del XIX secolo: «la scelta di cosa raccogliere, sistematizzare, archiviare e pubblicare ha dischiuso i sentieri che la narrazione storica desiderava tracciare»3.

Nel terzo capitolo del libro, Renilson R. Ribeiro analizza il processo di costruzione dell’intreccio cronologico e tematico dell’opera di Varnhagen alla luce del progetto di sapere-potere che l’opera si propone, cioè di costruire una narrazione in grado di stabilire un’identità essenzializzata e coerente della nazione con l’intento di delimitarla come un’entità univoca, omogenea e imprescindibile. In Inventando a Colônia “Coroada”: os enredos cronológicos e temáticos da Historia geral do Brazil (1854/1857) e o tempo Saquarema (1839-1860) Renilson R. Ribeiro, a partire dall’analisi dettagliata della prima edizione dell’opera História geral do Brasil, porta il lettore a stravolgere il passato coloniale brasiliano per accogliere la costruzione discorsiva elaborata da Varnhagen in funzione del progetto di fabbricazione della nazione come verità storiografica.

È tutto qui: un manuale su come inventare la nazione, fissare la sua identità, a partire dalla costruzione di una narrazione storica. Si tratta delle origini della nazione, dei suoi miti fondativi, della formazione del popolo, degli episodi simbolici, della scelta degli eroi rappresentativi – tra tanti altri elementi costituenti di questa narrazione – che fissano l’idea fondante del Brasile coloniale: una specie di infanzia della nazione, la cui inesorabile maturità, nella prospettiva varnhageniana, sarebbe stata lo Stato monarchico del Secondo Impero.

Renilson R. Ribeiro si propone di «fare la storia dell’emergere di un oggetto, di un sapere, di un tempo e di uno spazio di potere: il passato coloniale brasiliano»4. In questa triade, il passato stabilisce il campo d’azione del sapere in questione, la storia; il termine coloniale marca il periodo definito e, infine, l’aggettivo brasiliano punta alla progettazione di un territorio. All’interno di questa triade, il popolo è il soggetto e le sue azioni rappresentano gli episodi attraverso cui costruire una storia marcata dalla linearità e dalla continuità fino al processo di consolidamento come Stato indipendente.

L’origine della nazione fu così fissata nell’episodio della scoperta del Brasile, la formazione del popolo nel processo di descrizione delle tre razze (indios, neri e portoghesi), nel mito fondatore (l’invasione olandese) e, successivamente, nelle relazioni mai interrotte fino al conseguimento della maturità della nazione (indipendenza del Brasile).

La definizione della storia coloniale brasiliana a partire da questa trama narrativa fissata da Varnhagen si impose come modello e finì per essere riprodotta. Secondo Renilson R. Ribeiro, nei manuali scolastici e nei libri didattici di storia del Brasile elaborati fin dal secolo XIX e nel corso del XX secolo – nonostante presentino differenze teoriche, metodologiche e ideologiche – è possibile identificare la griglia cronologica e tematica stabilita da Varnhagen, a partire dalla narrazione della scoperta del Brasile da parte dei portoghesi, passando per il tema della formazione etnico-razziale del popolo brasiliano, il processo di conquista e il dominio coloniale, le invasioni olandesi e il processo che culmina con l’indipendenza del Brasile: «in larga misura digerirono l’idea della Colonia come culla del Brasile indipendente, o meglio, della storia come “biografia della nazione”»5.

Dunque, O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro è un libro che pone nuovamente una questione importante per coloro che lavorano per la produzione della conoscenza: da chi o da cosa è prodotta la conoscenza? A chi serve il mestiere di storico? Che tipo di relazioni gerarchiche di autorità legittima? A che tipo di relazioni di potere è indissolubilmente legato?  Tra le diverse questioni affrontate da Renilson R. Ribeiro questa sembra essere fondamentale. Varnhagen era cosciente che il suo progetto di scrivere una storia del Brasile serviva una causa politica, ossia, aveva una chiara finalità: aiutare a impilare i mattoni dello Stato monarchico brasiliano fornendogli una storia dotata di costumi e di un’identità coerente. Il progetto di Varnhagen chiarisce le relazioni di sapere e potere che attraversano la produzione storiografica e getta luce anche sulla ricerca storica odierna e le sue conseguenze politiche per il tempo presente.

La varietà attuale dei temi di ricerca e degli approcci teorici che sono presenti nei corsi di laurea e negli istituti di ricerca, non fa della produzione storica e storiografica qualcosa di neutro rispetto ai progetti politici, siano essi istituzionali, partitici, associativi o personali. Urge più che mai una necessaria presa di posizione, una chiarezza intellettuale riguardo alle conseguenze della scrittura della storia.

Parafrasando una categoria gramsciana, ogni intellettuale è organicamente legato a un progetto di potere, ogni storia è compromessa nel servire come fonte di legittimità e autorità alle gerarchie che costituiscono relazioni di potere. Renilson R. Ribeiro ci mostra che Varnhagen scrisse la sua storia consapevole del progetto di potere che difendeva; questo ci porta a domandarci: i nostri attuali ricercatori, dottorandi e storici sanno quali cause stanno servendo le loro storie?

Notas

1 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de, História geral do Brasil. Antes da sua separacao e independencia de Portugal, 3 voll., Belo Horizonte-São Paulo, Itiatia – Editora de Universidade, 1981.

2 Cfr. LACAPRA, Dominick, Rethinking intellectual history. Texts, contexts, language, Ithaca- London, Cornell University Press, 1983.

3 RIBEIRO, Renilson Rosa, O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro: Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860), Cuiabá, Entrelinhas, 2015, p. 231.

4 Ibidem, p. 46.   5 Ibidem, p. 416.

Mairon Escorsi Valério si è addottorato in Storia culturale presso l’UNICAMP ed è professore associato dell’Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim/RS. I suoi studi vertono sulla storia contemporanea dell’America Latina e sulla didattica della storia. È autore del libro Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação religiosa do Araguaia (Jundiaí, Paco Editorial, 2012).


RIBEIRO, Renilson Rosa. O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro. Francisco Adolfo de Varnhagen, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da ideia de Brasil-Colônia no Brasil-Império (1838-1860). [?]:Entrelinhas, 2015, 448 pp. Resenha de: VALÉRIO, Escorsi.  Diacronie – Studi di Storia Contemporanea, n. 27, v. 3 2016.

Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada | Jacques Le Goff

O livro A la recherche du temps sacré ou, na edição brasileira, Em busca do tempo sagrado: Tiago de Varazze e a Lenda dourada foi uma das últimas obras produzidas pelo historiador Jacques Le Goff a ser traduzida para o português. Lançada originalmente em francês no ano de 2011, a produção foi mais uma contribuição do autor para os estudos medievais. O texto foi traduzido e publicado no Brasil apenas em 2014, pela editora Civilização Brasileira.

Jacques Le Goff é considerado pela comunidade acadêmica como um dos principais historiadores do século XX. Foi diretor da École des Hautes Études en Sciences Sociales – sucedendo Fernand Braudel – e, ao lado de nomes como Georges Duby, Pierre Chaunu, Le Roy Ladurie, entre outros, esteve à frente da chamada terceira geração da Escola dos Annales. No campo bibliográfico, Le Goff desenvolveu uma vasta produção – entre artigos, capítulos, livros, etc. – dentre a qual podemos mencionar, apenas para citar alguns títulos já traduzidos para o português: Os Intelectuais na Idade Média; O nascimento do purgatório; São Francisco de Assis; Homens e mulheres na Idade Média; A Civilização do Ocidente Medieval. Como reconhecimento de sua atuação, recebeu, em 2004, o prêmio Dr. A. H. Heineken de História, atribuído pela Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Leia Mais

Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente | Jacques Le Goff

Jacques Le Goff, um dos historiadores mais influentes do século XX, trouxe com seus mais de 40 livros, novos olhares sobre a Idade Média, não só no meio acadêmico mas entre aqueles interessados em outras perspectivas sobre o Medievo, além de tratar da religiosidade e das tendências econômicas, usou a Antropologia Histórica no Ocidente Medieval, além da Sociologia e Psicanálise, buscou a cultura e a mentalidade do homem do Medievo, visitando o imaginário não somente das grandes personalidades, mas também daqueles que faziam parte do cotidiano desse período.

Vemos, em sua trajetória nessa seara de possibilidades, a análise do Medievo em várias frentes, desde a econômica em sua primeira obra de 1956, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, e A Bolsa e a Vida, de 1997, à religiosidade em O Nascimento do Purgatório, de 1981 e São Francisco de Assis, de 2001, passando pelo imaginário na obra O Imaginário Medieval, de 1985, chegando a aspectos como trabalho, cultura e o tempo. Leia Mais

A História deve ser dividida em pedaços? | Jacques Le Goff

Em um dos seus últimos trabalhos, Jacques Le Goff discute a propriedade ou não de se dividir a História em períodos ou, como consta do título, em pedaços. O livro encontrase distribuído em doze itens: Preâmbulo (pp.7-9); Prelúdio (pp.11-14); Antigas Periodizações (pp.15-23); Aparecimento Tardio da Idade Média (pp.25-32); História, ensino, períodos (pp.33-43); Nascimento do Renascimento (pp.45-58); O Renascimento atualmente (pp.59-73); A Idade Média se torna “os tempos obscuros” (pp.75-95); Uma Longa Idade Média (pp.97-129); Periodização e Mundialização (pp.131-134); Agradecimentos (pp.135-136) e Referências Bibliográficas (pp.137-149).

Nesse trabalho, Le Goff postula claramente a favor da ideia de uma Longa Idade Média e/ou, se desejarmos, uma Idade Média Tardia, que seria encerrada com as chamadas “revoluções” Industrial e Francesa no século XVIII. Em contrapartida, contesta a ideia de um Renascimento que teria rompido com o período medieval nos séculos XV e XVI. Leia Mais

Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII | Ronald Raminelli

Em Nobrezas do Novo Mundo, Ronald Raminelli apresenta os resultados de relevante pesquisa sobre as formas e critérios de nobilitação nas Américas portuguesa e espanhola no decorrer dos séculos XVII e XVIII, e de como estas práticas faziam parte das estratégias de ascensão social dos vassalos de além-mar. O autor aborda a temática demonstrando um extenso conhecimento da produção historiográfica recente e da documentação coeva, sobretudo a que se relaciona aos súditos do reino português radicados na América.

Neste sentido, destaca-se que a obra possui seis capítulos, divididos em duas partes. Os três primeiros capítulos, “Nobreza sem linhagem”, “Nobreza e governo local” e “Riqueza e mérito” compõem a primeira parte, denominada “Variações da nobreza”, na qual o autor estudou as formas de ingresso na nobreza ou de manutenção de privilégios de diversos agentes históricos na Península Ibérica e na Ibero-América. Já os três últimos capítulos, “Malogros da nobreza indígena”, “Militares pretos na Inquisição” e “Cores, raças e qualidades”, estão inseridos na última parte do livro, “Índios, negros e mulatos em ascensão”, em que Raminelli foca sua análise nos atores sociais da América Portuguesa que fracassaram nas suas tentativas nobilitação. Leia Mais

Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa | Eva Eisenstaedt

Nos primeiros anos que sucederam os períodos ditatoriais em diferentes países da América Latina, foi possível observar uma ampla produção acadêmica direcionada às questões macroestruturais destes regimes. Nas mais diversas áreas das ciências humanas, buscava-se compreender as estruturas políticas, econômicas, repressivas e ideológicas que permeavam estes modelos autoritários e seus funcionamentos. Embora tenham sido extremamente relevantes e importantes para entender melhor o contexto em questão, com o passar dos anos foi notória a necessidade de se ampliar a pesquisa histórica, seus objetos de estudo e análise. Diante desta perspectiva, produções centradas em assuntos que até então não haviam sido problematizados começaram a surgir e enriquecer o entendimento acerca do tema, evidenciando os indivíduos desta história. Neste contexto, está situado o livro “Padres de Plaza de Mayo: Memorias de una lucha silenciosa” (2014) da autora Eva Eisenstaedt.

Eva Eisenstaedt natural de Buenos Aires é formada em Ciencias de La Educación pela Universidade de Buenos Aires – UBA, e na “Primera Escuela de Psicología Social” de Buenos Aires. A autora ficou conhecida com o livro “Sobrevivir dos veces. De Auschwitz a Madre de Plaza de Mayo” (2007) no qual conta a história de Sara Rus.[1] Leia Mais

Rumos da História. Vitória, v.2, n.3, ago./dez., 2016.

Epediente

Artigos

 

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.14, 2016.

Artigos

Resenhas

Publicado: 2016-07-26

Revista de Ensino de Geografia. v. 7, n. 13, jul./dez. 2016.

APRESENTAÇÃO

Editoria

ARTIGOS

RELATOS DE EXPERIÊNCIA E PRÁTICA

História e Educação / Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s) / 2016

Em muito nos honra o convite feito pelos editores da Revista Bilros para que pudéssemos contribuir com a organização de um dossiê que traz a temática História e Educação, na 7ª edição de tão importante periódico para a divulgação de produções de discentes e professores de História. Digno de menção é a grata surpresa de constatar que a Revista conta, hoje, com o reconhecimento que extrapola os limites dos torrões cearenses, haja vista a constatação de várias submissões de pesquisadores de outros estados do Brasil.

O Dossiê ora apresentado traz a lume temáticas que nos são caras como historiadores da Educação e do Ensino. As discussões sobre o ensino de História, as teorias e métodos que embasam suas práticas educativas tem sido objeto de estudos e pesquisas dos profissionais não só da História, mas também do campo da Pedagogia. A tradição do ensino de História na perspectiva dos aportes teóricos do positivismo, que por muito tempo influenciaram as práticas pedagógicas de nossas escolas, os currículos, os livros didáticos e outros materiais de ensino / aprendizagem de História, legou influencia decisiva e incisiva no perfil da história ensina no Brasil desde a sua constituição enquanto disciplina do currículo das escolas brasileiras, a partir do século XIX. Leia Mais

La nueva educación: Los retos y desafíos de un maestro de hoy – BONA (I-DCSGH)

BONA, C. La nueva educación: Los retos y desafíos de un maestro de hoy. Barcelona: Plaza & Janés, 2015. Resenha de: GARCÍA ANDRÉS, Joaquín. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.84, p.83-84, jul., 2016.

Esta estimulante autobiografía profesional del maestro aragonés César Bona (Ainzón, 1971) resume sus últimos seis años como docente en la escuela pública que, recogidos inicialmente en un vídeo, le permitieron optar al premio Global Teacher Prize, lo que le supuso ser seleccionado entre los cincuenta mejores docentes del mundo el pasado año.

Como desde un primer momento el autor explica con un lenguaje claro, fl uido, directo y ameno, en estas páginas sólo encontraremos «ideas sencillas y básicas que a veces se nos olvidan» y que, en consecuencia, no necesariamente han de resultar novedosas pero sí renovadoras. Por eso mismo gozan de un valor muy singular, en la medida en que devuelven al primer plano de las necesidades educativas ideas «viejas» para esa escuela «nueva» a la que se aspira. De hecho las páginas están salpicadas de aforismos y extractos del propio texto que resumen en pocas palabras su forma de entender la enseñanza, al tiempo que facilitan una rápida lectura. Ya sólo los títulos de cada uno de sus breves capítulos delatan de un modo didáctico sus ideas esenciales respecto a la educación, como por ejemplo: «Salir de uno mismo y hacerse preguntas», «De los libros a la acción», «Deberes y a dormir» o «Somos emociones». Puede decirse que el elenco de frases memorables es ciertamente amplio, tanto como orientador.

Partiendo de una concepción funcional de la escuela, orientada a facilitar la vida y no la mera consecución de unos objetivos de evaluación, su premisa esencial radica en confi ar en el poder de los alumnos, en su imaginación, creatividad y curiosidad. Unas características que, a su vez, Bona asume como condiciones básicas que deberían compartir los docentes, a quienes exhorta a transformarse en personas curiosas, con deseos de aprender de todo lo que nos rodea. De ahí que una de las motivaciones que, aprovechando su proyección mediática, le han llevado a desvelar públicamente sus pensamientos, concepciones y convicciones sea, precisamente, la de invitar al lector a redescubrir que la esencia de la profesión docente no radica tanto en tener vocación y conocimientos como en saberlos compartir. Ideas sobre el sentido de las tareas, el fomento de la lectura, el trabajo en escuelas unitarias, el papel de las familias, la formación docente o la educación emocional, son algunos ejemplos de sus inquietudes y preocupaciones.

Pero también las hay sobre la organización y la gestión del aula, la convivencia, la disciplina o la participación activa. A lo largo de este personal periplo y a través de algunas de sus experiencias más singulares y llamativas, podremos conocer de primera mano –y aprender con ello– proyectos y actividades innovadoras, algunas ciertamente evocadoras, como sus llamadas «historias surrealistas», desde la considerable valoración que el propio Bona otorga a esta dimensión de la imaginación humana. Pese a la singularidad de cada una de ellas, en todas es posible advertir el fermento común que las alimenta: la actitud, muy particularmente la del respeto, pero también la de la autoexigencia y la autocrítica, tanto de los estudiantes como, sobre todo, de sus profesores.

Sin lugar a dudas la palabra actitud es una de las que más se repite, siempre en clave positiva y en torno al esfuerzo, la tolerancia y la pasión por lo que se hace, a ser posible de una forma contagiosa.

Porque, según sus propias palabras, «nuestra actitud, la forma de ver las cosas y cómo las conduzcamos a la hora de sentir y vivir toda experiencia en nuestra compañía les marcará para siempre» (p. 65).

No en vano, de nuestra profesión salen todas las demás y, en tal sentido, considera que los docentes somos unos privilegiados que tenemos al alcance la posibilidad de convivir con la imaginación, la ilusión y la inspiración, la que nos proporciona nuestro alumnado, y de las que podemos obtener nuevas e inspiradoras ideas. Un privilegio del que nace una responsabilidad recíproca: la de estimular la creatividad y la curiosidad.

En connivencia con la actitud, otros dos pilares esenciales en torno a los cuales este maestro hace pivotar su práctica escolar son la sensibilidad y la empatía, invitando al lector a meterse en la piel de los aprendices y hacer que se sientan importantes; porque lo son. Así lo evidencian experiencias como la realización de un cortometraje mudo que logró reconciliar a dos familias enfrentadas del pueblo en el que ejercía, o la creación de una sociedad protectora de animales para evitar la actuación de animales vivos en el circo, que ha sido amadrinada por la primatóloga Jane Goodall, entre muchas otras.

Siguiendo su consejo, «cualquier cosa puede inspirarte, una canción, una línea mal dibujada, una frase, un dibujo: en eso radica la maravilla, en mirar todo a nuestro alrededor como una oportunidad para crear» (p. 163). Espero que estas últimas palabras sirvan de aliento para provocar el interés por este libro, cuya lectura es tan fácil, tan provechosa e inspiradora como recomendable. En definitiva, un libro como su autor: sobresaliente.

Joaquín García Andrés – E-mail: jgandres@ubu.es

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Crímenes ejemplares – Max Aub

AUB M mubi.com pt cast max aub Ecologias of Practice
Max Aub. https://mubi.com/pt/cast/max-aub.

AUB M Crimenes ejemplares Ecologias of PracticeAUB, Max. Crímenes ejemplares. Ilustrado por Liniers. [Sn.]: Libros del zorro rojo, 2015. 96p. Resenha de: CARRERAS, Jesica; MURAT, Facundo Petid. La Zaranda de Ideas – Revista de Jóvenes Investigadores en Arqueología, Buenos Aires, v.14, n.1, jul., 2016.

Solamente cuando uno encara una relación profesional íntima con otros antropólogos y arqueólogos se percata de que no se está aislado en ese impulso irrefrenable de, en momentos de trances y danzas mentales, filosofar acerca de si existe algún hecho universal que atraviese a todas las sociedades humanas de todos los tiempos. Entonces comienzan esos momentos en los que la autopercepción nos halla en carreras sinceras de búsqueda de generalidades y excepciones, a sabiendas de que eso de “la excepción confirma la regla” no es más que un aliciente contra la frustración. En esas horas en las que se puede aprender a chiflar o resolver un trabalenguas que olvidaremos con los años, las conclusiones suelen derivar en que lo único universal son las funciones que nos atan a lo más mundano de la naturaleza, siendo la aplicación empírica en cada microrregión aquello que resulta variable.

Cruzarse con un compendio de las características de Crímenes Ejemplares puede devolvernos sin aviso a estas andanzas intelectuales. Sin pretenderlo, Max Aub encuentra el vínculo entre la antropología y la muerte sufrida por el accionar criminal de un otro que nos aborrece por circunstancias vinculadas a lo social y ancladas en individuos letales. En relatos sin consecución que van del renglón hasta la media carilla como máximo, el autor, utilizando la imaginación poética, se posiciona en primera persona del criminal y brinda explicaciones.

Razones. Se defiende pero nunca niega su accionar. Cuenta los por qué y los cómo.

A pesar de no ser un libro de antropología ni de arqueología, genera la potencialidad de pensar los fundamentos universales a través de los cuales un ser mataría a un semejante. Lleva a la acción muchas de aquellas motivaciones que se desarrollan en el plano de la fantasía cuando algún ser humano se demora de más ante nuestras impaciencias en el cajero automático, da muestras insobornables de su pedantería, o simplemente estaba muy sobre la línea amarilla en el subte.

Recogidos en diferentes instancias de sus exilios, Max Aub logra recabar historias de Francia, España y México. De allí su sesgo occidentalista de brindarle el status de crimen a quien se implosiona en nombre de su Dios, teniendo toda una sección dedicada también a suicidios. No obstante, invita a pensar, al igual que Malinowski (1985) en Crimen y costumbre en la sociedad primitiva, cuánto nos habla de los órdenes sociales de una cultura la mayor privacidad o publicidad de la muerte autoinfringida.

Sin embargo, habiendo sido publicado en 1957 y republicado en 1968, sus relatos gozan de una atemporalidad observable en los crímenes motivados por el amor, tanto como en el momento donde una mujer reivindica a todo su género tras ser acosada en el colectivo. Criminales que aniquilan al otro porque asumen una identidad estacionaria incompatible con la rivalidad de su desconocido y criminales que atestiguan no soportar más los vicios insoportables y constantes de sus parejas. Crímenes ideológicos contra crímenes banales. El autor logra abarcar muchas, si no todas, de las vicisitudes que pueden llevar a amplificar el egocentrismo a un punto tal en que se encuentra justificado el exterminio. Se mata por respeto a la tradición personal.

58 años después de su primera publicación, la editorial “Libros del Zorro Rojo” compromete a Liniers a caracterizar visualmente muchos de estos relatos, brindando cualidades específicas a relatos globales. De allí que esta edición específica proponga al ilustrador en calidad de co-autor, visible en la inclusión de su nombre en la tapa, lomo y solapas. A partir de una selección de crímenes (en general uno por página), logra interpretar la violencia y disponerla desde diversos ángulos, los cuales exceden el relato en sí. Todas las ilustraciones aportan las imágenes de las víctimas, seres que el propio Aub sólo menciona desde la voz de los asesinos, en un racconto posterior al suceso criminal. Así, esa tranquilidad que se percibe en la lectura de personas que cuentan su visión de los hechos, cómodamente asentadas en banquillos de acusados o quién sabe dónde, Liniers la trastoca volviendo palpable a la mente la imagen del crimen ejemplar. Y hay algo más. Mirados con detenimiento, se puede llegar a ver los dibujos como si el propio asesino viera la escena desde una posición externa, como observador de su propia práctica, generalmente deformado o transformado en una sombra de sí mismo que excede a su control humano. Frente a las víctimas, cuyas expresiones transmiten desconcierto e incluso desconocimiento ante lo que sobrevendrá, los asesinos de Liniers transmiten y producen violencia.

Para ello, el dibujante unifica los colores rojo, blanco y negro, colores con connotaciones simbólicas ambiguas y extendidas, como bien explica Victor Turner (1980). Así, lleva al alcance de la imaginación la violencia que implica la muerte sin premeditaciones, cuando las fibras más nerviosas de nuestras extremidades se desligan de la conciencia para hacer aquello que la culpa motorizada por la hegemonía religiosa y estatal nos inhibe.

Referências

1. Malinowski, B. 1985. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje.Planeta Agostini, Barcelona.         [ Links]

2. Turner, V. 1980. La selva de los símbolos: aspectos del ritual ndembu.Siglo XXI, Madrid.         [ Links]

Jesica Carreras – Es egresada de la carrera de Ciencias Antropológicas (orientación arqueológica) de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Actualmente desarrolla análisis arqueofaunísticos en la Puna de Jujuy. Dirección de contacto: jesicacarreras@gmail.com

Facundo Petit de Murat – Es egresado de la carrera de Ciencias Antropológicas (orientación sociocultural) de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires. Actualmente es becario doctoral de CONICET, analizando el paisaje sonoro de la Ciudad de Buenos Aires. Dirección de contacto: facundo_petit@ hotmail.com

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De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau

Registros concretos da interseção dos homens no mundo, a cultura material reivindica para além da sua aparência física um sem fim de conexões com os tempos, os espaços e os grupos nos quais se insere. Matéria híbrida e maleável, é passível de ser deslocada redefinindo nesta própria transição novos significados. Atenta às qualidades históricas da cultura material, Mariana de Campos Françozo faz dela sua base para explorar o capital simbólico dos objetos em seu livro De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau.

Fruto da sua tese de doutorado, as reflexões pontuadas neste livro dão sequência às pesquisas realizadas por Françozo em sua dissertação de mestrado na qual já pontua o papel dos objetos no êxito das relações entre os indígenas e os colonizadores europeus no contexto do Brasil colonial. Destacando o processo e as mudanças decorrentes deste convívio ao longo da dissertação que tem como mote a influência da literatura etnológica alemã na obra de Sérgio Buarque, Françozo balanceia o tema da mobilidade a partir dos contatos, mas também das distâncias imanentes a ele. Assim, aponta em dado momento uma fala do autor sobre sua ida à Berlim onde afirma que afastar-se de seu país era a medida da lente para enxergá-lo por completo. Aproximando a assertiva da fórmula antropológica, infere a autora que a chave estava em “tornar estranho o que é familiar, e familiar o que é estranho.”2. Leia Mais

Áfricas / Cantareira / 2016

A fase de escolha para a temática que irá compor um dossiê perpassa uma série de questões que visam dialogar com as constantes demandas sociais, acadêmicas e de ensino que circundam o nosso meio. Nesse sentido, ganhar mais esse espaço para o debate acerca dos estudos africanos, principalmente ao considerarmos que esse espaço é produzido por estudantes que transitam entre a graduação, pós-graduação e magistério de ensino básico, vem comprovar o quanto os estudos sobre a África cresceram e vêm se consolidando no Brasil. Embora muito tenhamos para percorrer, aos poucos a África mitificada e ocidentalizada vai ficando para trás. Em diálogo com os novos debates historiográficos, o estudo das tradições e a valorização da oralidade permitem novas significações para a história do continente.

No Brasil, essa temática vem sendo fortalecida desde a obrigatoriedade do ensino de África nos bancos escolares com a lei 10.639 / 2003. De lá pra cá, muito se avançou. A História da África vem sendo pensada, sobretudo, a partir de uma perspectiva do africano como sujeito de sua história, o que abriu novas possibilidades para construirmos a historicidade das sociedades africanas. À medida que o objetivo passa a ser romper com os esteriótipos que marcaram a visão sobre o continente desde a Antiguidade, passamos a enxergar no “lugar das essências, os processos históricos, dinâmicas sociais e culturas em movimentos”, em que as identidades passam a ser vistas a partir da sua pluralidade.

Dessa forma, é interessante notarmos que os artigos que integram o presente dossiê buscam repensar a história do continente a partir da perspectiva do africano como sujeito, ampliando a imensa diversidade cultural desse povos. A multiplicidade dos significados que se abrem com a generalização do termo africano vai, aos poucos, dando lugar às especificidades dos grupos locais que compõem o continente.

Ao iniciarmos o dossiê nos voltamos para os artigos de Fabiane Miriam Furquim, “A Permanência do Lobolo e a Organização Social no Sul de Moçambique”, e de Fernanda Bianca Gonçalves Gallo: “Para Poderes Viver Como Gente: Reflexões Sobre o Persistente Combate ao Modo de Vida Disperso de Moçambique”. Os debates acerca das tradições africanas aparecem sobre uma nova perspectiva, que traz como proposta se afastar das simplificações existentes e problematizar as relações de poder locais, as formas de organização e legitimação que envolvem essas populações. Dessa forma, ampliamos o nosso olhar para as dinâmicas e conflitos particulares que fazem parte do dia a dia dos diferentes povos existentes e buscamos conhecer, a partir das questões internas, os processos históricos que nos conduzem a uma África sem essencialismos. A prática do Lobolo no artigo de Furquim nos conduzem a novas conceituações de tradição e modernidade, em que um não exclui o outro mas se modificam constantemente, trazendo à baila a complexidade existente. Da mesma maneira, Fernanda Gallo aponta para as resistências locais às imposições de uma política de Estado que via suas práticas como um atraso à modernidade.

Em seguida, o artigo de Rodrigo Hotta “Juízo de Inconfidência em Angola: A Conspiração dos Degredados em Luanda, 1763” traz como proposta repensarmos as trocas culturais existentes entre os africanos e portugueses a partir de uma prática política comum à época: os degredados. Ainda pouco estudado, o cumprimento do degredo em Luanda é problematizado a partir de uma conjuração que busca aterrorizar a administração local. Um importante trabalho para nos atentarmos para as fissuras coloniais existentes no período e as trocas existentes entre o colono e o colonizador, que estão muito além dos binarismos impostos. Essas tensões coloniais também estão presentes no artigo de Jéssica Evelyn Pereira dos Santos, “Guerra e Sangue Para uma Colônia Pacificada: A Revolta do Bailundo e o Projeto Imperial Português para o Planalto Central do Ndongo (1902-1904)”, em que a ocupação dos portugueses sobre o território angolano se coloca como complexa à medida que também se propõe mostrar a participação dos povos locais nessa empreitada, marcada pelas disputas de memória sobre o evento.

Ainda dentro do diálogo colonial entre angolanos e portugueses, Marilda dos Santos Monteiro das Flores em “Angola: Rememorando as Idas e Vindas de um Lugar Desconhecido” traz como proposta, a partir dos debates teóricos que cercam a memória, refletirmos sobre a saída de portugueses para a Angola no contexto da guerra colonial na década de 1970. Ressaltando um novo contexto das migrações portuguesas para Angola, a chegada em terras angolanas representa um novo começo, cercado de disputas.

Já no texto de Patrício Batsîkama “A Mulher na Luta de Libertação e na Construção de Estado-Nação em Angola”, as lutas pela independência de Angola são repensadas a partir de uma perspectiva interna, que parte dos atores sociais angolanos para problematizar os meios de resistência à política colonial no território. A participação das mulheres é colocada em evidência a partir de um estudo de caso: Luzia Inglês, o que ressalta uma abordagem que aos poucos vem se fazendo presente nas pesquisas acadêmicas.

O crescimento dos estudos culturais na historiografia também vem contribuindo para novas problematizações sobre a história do continente africano. Com o artigo intitulado “Safi Faye: Cinema e Autorepresentação”, Evelyn dos Santos Sacramento traz uma abordagem da cineasta senegalesa que envolve uma reflexão sobre intelectualidade e diáspora a partir da produção cinematográfica abordada. Ainda dentro de um debate diaspórico, Paola Vargas em “Aka de Camarões, Cazumbá do Maranhão e Marimonda de Barranquilla: Diálogos Entre História e Culturas Sul-Atlânticas” nos brinda com um trabalho comparativo sobre as expressões culturais de grupos que se constituíram no processo da diáspora atlântica.

Para finalizarmos o dossiê, três trabalhos trazem como proposta refletir sobre os debates e desafios teóricos e metodológicos que cercam a pesquisa e o ensino de África. Álvaro Ribeiro Regiani e Kênia Érica Gusmão Medeiros refletem sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura afro-brasileira em “A Negação da Filosofia Africana no Currículo Escolar: Origens e Desafios”. O diálogo interdisciplinar aí presente tem como objetivo abordar como o ensino de África está sendo aplicado nos livros didáticos de História e Filosofia, contribuindo para os debates contemporâneos. Dentro de um mesmo diálogo, Lucival Fraga dos Santos em “Que África se Inscreve e se Ensina no Brasil?”, contempla os impactos do ensino de África na cultura brasileira, principalmente a partir da obrigatoriedade do seu ensino com a lei 10.639 / 2003, ressaltando de que modo ela vem contribuir com a quebra de esteriótipos. Por último, o artigo de Fabrício Cardoso de Mello “Reflexões Críticas sobre o Debate em torno dos Movimentos Sociais na África”, traz uma discussão de âmbito acadêmico acerca dos processos de mobilização social no continente africano. Para isso, o autor dialoga com diferentes vertentes teóricas a fim de colocar os movimentos sociais da África dentro dos debates conceituais presentes sobre o tema.

Compõe ainda o dossiê a seção artigos livres, composto pelas pesquisas de Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa, Tomás de Almeida Pessoa, Marcus Castro Nunes Maia, Cláudia de Andrade Rezende e José Ernesto Moura Knust. A partir de diferentes temáticas, suas pesquisas contribuem para enriquecer nossas análises historiográficas. Da mesma forma, recebemos a contribuição de Michel Ehrlich com a resenha do livro do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho (UFF) “Ditadura e Democracia”, dialogando com o cenário político atual.

Por fim, é com grande prazer que agradecemos a participação da professora Flávia Maria de Carvalho da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). A jovem pesquisadora e professora universitária traz um pouco da sua história na entrevista que nos concedeu, ressaltando os caminhos que lhe levaram à História da África e como os seus anos de estudante na Universidade Federal Fluminense (UFF), contribuíram para o seu amadurecimento na pesquisa do tema.

Espero que a publicação do dossiê venha colaborar para a abertura de novos caminhos para os estudos africanos. Foi um prazer poder dialogar com os autores e pareceristas que participaram dessa produção. Agradeço à equipe da Revista Cantareira todo o carinho e dedicação para colocarmos mais um número no ar.

Boa leitura a todos.

Carolina Bezerra Machado – Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes e pesquisadora do grupo Interinstitucional Áfricas. E-mail: lowbezerra@gmail.com


MACHADO, Carolina Bezerra. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.25, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v. 6, n. 1, jan./ jun. 2016.

5 – Sumário e Editorial

RELATOS

PESQUISA

ENTREVISTA

FALE PARA O PROFESSOR

RESENHAS

Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, jul./dez. 2016.

4 – Apresentação

  • Alexandre Cadilhe

Artigos

Relatos

Raça, Gênero e Violência na História / História.com / 2016

É com satisfação que o Conselho Editorial da Revista Eletrônica Discente História.com apresenta seu novo número com o dossiê temático Raça, Gênero e Violência na História. Esta escolha foi decidida a partir da pertinência dessas temáticas no presente, característica que vem se tornando chave na escolha dos dossiês do nosso periódico.

A evocação que o presente realiza em relação às relações raciais e gênero e aquelas mediadas pela violência – o mais bárbaro dos conflitos – tem respaldo nos episódios que vêm se tornando fatos corriqueiros no cotidiano do Brasil e de vários países do mundo.

Recentemente, no último dia de natal, um caso chocou e comoveu o nosso país, que foi o homicídio de um vendedor ambulante numa estação de metrô, em São Paulo, ao defender dois travestis de agressões causadas por dois homens. Estes espancaram o autônomo até a morte, sendo que o mesmo era negro e os agressores eram brancos.

Este episódio sintetiza o horror que a intolerância tem proporcionado ao círculo civilizado que anseia por uma sociedade em que as diferenças e as desigualdades tenham, no mínimo, um tratamento mais humano e igualitário, onde as violências não sejam justificadas por preconceitos e demais visões mesquinhas em relação ao outro.

O papel das Universidades diante do fenômeno da intolerância é proporcionar debates que procurem estabelecer diretrizes que possibilitem os movimentos sociais terem embasamentos para proporem políticas públicas, sejam elas com o aval do Estado ou por iniciativa comunitária. Sendo assim, a universidade jamais deve se furtar ao seu papel de definidora de conceitos para ações de promoção das igualdades e reparações.

E foi com muito brilhantismo que os autores que colaboraram com suas produções acadêmicas contribuíram para o dossiê supracitado. Textos que podem fomentar debates enriquecedores.

O artigo “Mulheres comunistas na Bahia: contribuições para a fundação da federação de mulheres do Brasil e para o movimento pela paz” de Iracélli da Cruz Alves é uma instigante contribuição ao estudo da História das mulheres nos movimentos comunistas, oferecendo às nossas leituras uma visibilidade até então não destacada do lado feminino dessa história.

Encontra-se também o texto “Ofícios estatais e a heterovitimização das mulheres” de Michelle Silva Borges que aborda de forma original a mulher enquanto sujeito dentro das hierarquias e violações às quais são submetidas na relação com a polícia.

No texto “Representações sociais e mulher trabalhadora: implicações do imaginário social na (re)produção de desigualdades de gênero no mercado de trabalho” de Pablo Luiz Teixeira Gomes de Moraes e Flávio Badaró Cotrim, encontramos um balanço bibliográfico que analisa as representações a qual são sujeitas às mulheres no mercado de trabalho.

O estudo presente em “Discursos repressores recifenses: a questão de gênero e da raça através dos discursos sobre o suicídio durante a década de 1920, na cidade do recife” de Pedro Frederico Falk nos traz o retrato da violência no Recife da década de 1920, destacando as diferenças raciais e de gênero nos discursos médico, religioso, jornalístico e jurista, em especial, quando tratavam da questão do suicídio.

E, por fim, “A participação de mulheres na faculdade livre de direito da Bahia no período 1911-1920” de Vitor Luis Marques dos Santos é uma interessante análise que busca descortinar as condições históricas em que as mulheres que ingressaram nessa instituição de ensino superior conseguiram agir.

Desde já, a equipe editorial também convida a você leitor para apreciar os textos das outras sessões: Artigo Livre e História na Sala de Aula. São textos que abordam outras discussões não contempladas no dossiê temático e que também contribuem para temas historiográficos e de diálogos com as disciplinas afins para que possamos melhor entender o presente e o passado e termos condições de lutar por um futuro.

Boa leitura!

Antônio Cleber da Conceição Lemos – Conselho Editorial. Graduado em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e mestrando em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Correio eletrônico: cleberhist@hotmail.com


LEMOS, Antônio Cleber da Conceição. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.3, n.6, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Argentina, 40 anos (1976-2016) / História – Questões & Debates / 2016

Os saberes historiográficos produzidos sobre as ditaduras latino-americanas, e, especialmente, sobre a ditadura civil-militar argentina (1976-1983), revelam continuamente a vitalidade desse objeto de estudo para a compreensão mais abrangente do recente contexto social, político e intelectual de nossas culturas. Nas últimas duas décadas, com a gradativa abertura dos “arquivos da repressão” em alguns países, associada à mobilização de organizações da sociedade civil no marco de uma política ostensiva de direitos humanos pautada pela consigna “justiça e reparação”, foi propiciada, relativamente, a (re)descoberta de registros e evidências mais nítidos da dimensão alcançada e dos métodos empregados por sistemas repressivos historicamente constituídos e com alto grau de capilaridade e permanência no imaginário social.

Os dispositivos de controle, censura, e repressão generalizada levados a cabo pelos sistemas autoritários regionais, mas, igualmente, o papel ambíguo dos movimentos e partidos de esquerda, a pauperização de vastos segmentos das sociedades, as atitudes sociais de repulsa, resistência, consenso / consentimento, ou indiferença a esses regimes foram inscritos como temáticas centrais na agenda dos historiadores identificados com o problema. Dentro desse horizonte, o Dossiê “Argentina: 40 anos (1976-2016)” publicado pela Revista História: Questões & Debates volume 64, n. 2 (2016),[1] almeja explorar o potencial analítico da história política do cone sul de nosso continente, ao sugerir como especificidade reflexões que envolvem uma série de enfoques sobre a natureza da ditatura civil-militar argentina.

Mais que destacar uma efeméride, o Dossiê busca contribuir para o debate ético acerca de um período da história argentina possível de ser cotejado a outras situações autoritárias no tocante a parentescos fenomenológicos, distanciamentos práticos e quanto à orientação de sentidos que tal processo intercambiou com experiências contemporâneas a ele.

Embora tenha na violência política e no terrorismo de Estado seus elementos constitutivos, a ditadura imposta à margem da lei em 1976 não é um excepcionalismo na vida do país no que se refere ao desenvolvimento de formas autoritárias de organização social. Ainda na década de 1980, o sociólogo Alain Rouquié falava em “tutela militar” e “golpe de Estado permanente” como as práticas políticas assumidas pelos militares desde 1930 na construção de um projeto de poder altamente profissional, e que não alienava as elites civis do processo de governabilidade. Com mais ênfase na ditadura de Juan Carlos Onganía (1966-1970), os militares passaram a ser vistos como “parceiros legítimos” dessas elites, e a angariar um papel político central, porque sua crescente autonomia em relação aos poderes civis associava-se à relevância que atribuíam às intervenções depuradoras e realizadas em série. Assim, imaginaram-se os gendarmes da nação, os guardiães de uma determinada ordem social ao mesmo tempo excludente e seletiva, mas também alicerçada no expressivo apoio de parcelas da opinião pública.

Por sua vez, a configuração de memórias no período que marca o eclipse das ditaduras do cone sul é extremamente díspar. No caso argentino, observou-se na aurora democrática a adoção de medidas que visaram o esclarecimento dos crimes de Estado e a punição dos líderes das juntas militares. Além do papel desempenhado pelo sistema judiciário, pela CONADEP (Comisión Nacional para Desaparición de Personas), e pelos diversos organismos de direitos humanos; nesse movimento pelo cumprimento da justiça esteve presente um ator de primeira ordem: o conjunto de vítimas sobreviventes dos centros clandestinos de detenção que assentiu em participar como testemunha nos ajuizamentos aos chefes militares. Tais medidas, entretanto, não prescindiram de acirradas disputas políticas e de recuos, como bem comprovam os episódios de anistias e indultos proferidos desde os governos civis de Raúl Alfonsín e Carlos Menem, somente revistos e declarados inconstitucionais pela Suprema Corte da Nação em junho de 2005.

Ao mesmo tempo, um dos imperativos programáticos da era Kirchner ancorou-se na elaboração de uma “política de memória”, apropriando-se claramente das experiências e demandas de parte da sociedade civil argentina que, desde meados da década de 1990 sinalizava para o não apagamento do passado e por uma rediscussão sobre as responsabilidades pelos crimes. A despeito de suas limitações e interesses, mas também de sabotagens originadas em setores sociais refratários ou nostálgicos do autoritarismo, essas políticas foram concebidas como políticas de Estado, com notórios deslizamentos em forma de projetos para os campos da pedagogia, da museologia, da estética, da arquivística, e, claro está, da história. Assim, não há como dissociar a historiografia mais recente sobre a ditadura argentina, de uma “batalha pela memória histórica” que encampa vários níveis de intervenção, assim como não há dúvidas que esses embates passaram a repercutir nos modos de os historiadores refletirem e escreverem sobre a época, e ensejaram uma renovação nas indagações e nos problemas de pesquisa.

Em um inspirado ensaio crítico publicado no ano de 2015, a historiadora Marina Franco [2] havia destacado que a pesquisa profissional na Argentina não se encontrou diante da tarefa de romper um silêncio social e político pós-ditatorial. Ao contrário, ela situou-se diante de um terreno próprio para se pensar e se pesquisar sobre o tema da ditadura, tendo em vista que o processo de transição para a democracia não se apoiou em uma política de ocultamento sobre os crimes do passado, tampouco em um olhar complacente sobre o ocorrido; ou, ainda, diríamos nós, em conciliações cínicas operadas desde o vértice da sociedade política.

Foi precoce, na Argentina, a iniciativa das Ciências Sociais – impulsionadas pela profusão de testemunhos públicos e políticas oficiais – em atribuir visibilidade às facetas fundamentais do terrorismo de Estado. No entanto, a mesma autora recorda que esse aspecto não representou, necessariamente, em consolidação de linhas de pesquisa, ou em sistematização de estudos sobre as características, conteúdos e alcances da ação repressiva nos seus distintos âmbitos. Nesse sentido, o que é efetivamente pleiteado em termos de investigação histórica sobre a ditadura argentina vincula-se a perspectivas que possam circunscrever agendas empíricas e teóricas em que sejam considerados: novos atores vítimas da violência, novos atores executores da violência, ampliação dos espaços (como a ênfase nas práticas regionalizadas da repressão), novos objetos e processos, e novas periodizações.

Assim, queremos acreditar que os artigos publicados neste Dossiê tendam a subscrever algumas das exigências elencadas acima, e permitam ao leitor a ampla reflexão e um conhecimento mais acurado sobre o período, mormente agora, quando nos deparamos com a ressignificação de fantasmagorias autoritárias e com a valorização de mitos políticos do passado.

Abrimos o Dossiê com um artigo que não trata explicitamente da ditadura argentina, mas desenvolve uma instigante discussão sobre os múltiplos efeitos e sentidos das políticas de esquecimento em sociedades que vivenciaram traumas políticos. “Políticas del olvido”, texto de autoria de Daniel Lvovich, da Universidad Nacional de General Sarmiento, é uma proposta adensada de conferência do historiador pronunciada no encerramento do Fórum “Violência de Estado, Justiça e Reparação: Relatos da Comissão Estadual da Verdade”, realizado em Curitiba no mês de junho de 2015, e organizado pela Linha de Pesquisa Intersubjetividade e Pluralidade do PPGHIS (Programa de Pós-Graduação em História da UFPR). Lvovich reflete sobre a tensão entre lembrar e esquecer como modelos indeterminados de pensar a relação passado / presente, porque memória e esquecimento não resultam em elementos opostos, mas em produtos simultâneos dos mesmos processos de seleção, hierarquização e transmissão de aspectos, valores, imagens, mitos localizados no passado. Enquanto o esquecimento coletivo aparece quando um grupo humano não consegue, voluntária ou passivamente, por rechaço, indiferença ou em razão de uma catástrofe, transmitir à posteridade o que aprendeu do passado, o dever de memória é, com efeito, a obrigação de o sobrevivente dar testemunho de uma experiência traumática, de falar por aqueles que desapareceram, e de os grupos relegados fazerem presente sua voz e suas demandas na esfera pública.

Em seguida, Emilio Crenzel, professor e pesquisador da Universidad de Buenos Aires, no artigo “Entre la historia y la memoria. A 40 años del golpe de Estado en la Argentina” nos proporciona uma auspiciosa aula de história das memórias construídas sobre os quarenta anos do golpe de Estado na Argentina. Primeiro, sem descuidar da dimensão processual, enfoca alguns dos conflitos chaves que desencadearam o golpe e suas consequências mais imediatas para a sociedade, destacando-se aí, o terrorismo de Estado e os embates iniciais da sociedade civil quanto aos posicionamentos adotados sobre as graves violações aos direitos humanos como a tortura e os desaparecimentos. Num segundo momento, Crenzel sugere uma criativa tipologia de batalhas pela memória desde a década de 1990 até 2012: o “eclipse da memória” (1990-1994) tem como marcas o impacto moral e político ocasionado entre os organismos de direitos humanos em razão dos indultos de Carlos Menem, o que aprofunda a sensação de frustração e a certeza de uma era de impunidades; e uma relativa desmobilização da sociedade tendo em conta que esse presente é lido, na perspectiva de Crenzel, como a imagem espectral de um passado sem direitos. A “explosão da memória” (1995-2003) é o contexto no qual uma situação bem específica narrada pelo autor revitaliza a memória do passado de violência e a faz adquirir um estatus independente do discurso punitivo ou da busca pela verdade. As inciativas em constituir pontes para a transmissão intergeracional assumem diversas formas, mas o fundamental é que um cenário pleno de significados de rememoração é preparado e gestionado pela sociedade à parte de qualquer ação efetiva de um Estado que se fragmentava diante de crises sociais insolúveis. Por fim, Crenzel designa como “estatalização da memória” (2003-2012), o período em que o Estado argentino toma para si a responsabilidade em produzir conteúdos sobre o passado. A derrogação das leis de impunidade permite reabrir os processos, e um novo Prólogo do emblemático Informe Nunca Más transforma em discurso estatal um sentido do passado forjado desde o vigésimo aniversário do golpe, quando os organismos de direitos humanos associaram os crimes da ditadura com a imposição do modelo econômico neoliberal.

Em “Represión clandestina y discursos públicos: los informes oficiales sobre la ‘lucha antisubversiva’ en los años iniciales de la dictadura argentina”, a pesquisadora e professora Gabriela Águila, da Universidad Nacional de Rosário, analisa detidamente um discurso público da Junta Militar de 1977 e constrói uma teia de significados em torno à estrutura repressiva da ditadura: o informe “La subversión en Argentina” foi uma narrativa que procurou sistematizar definições e conceitos sobre a alegada luta ou guerra antisubversiva. Gabriela, atenta estudiosa e com vasta pesquisa sobre as formas de atuação do sistema repressivo em suas modalidades regionalizadas e autônomas, investiga os modos de reconhecimento elaborados pela hierarquia militar a respeito do exercício da repressão nos seus anos iniciais. Um dos principais argumentos da autora, é que tais manifestações não devem ser vistas como “contradiscursos” ou meras reações às denúncias e pressões internacionais, mas estão inscritas em um contexto amplo, que combinou respostas políticas do governo aos “ataques” provenientes do exterior, estratégias especificamente militares e mecanismos de legitimação social e política. Um deles, foi plasmar no vocabulário político a terminologia “luta contra a subversão”, por onde os militares tanto definiam o perfil do inimigo, quanto procuravam mobilizar a sociedade na direção de atitudes de denúncia e apoio contra a “subversão”. Uma das chaves para entender a extensão do exercício repressivo esteve caracterizada desde o início pela descentralização operativa e pela organização de tal processo mediante escalas territoriais com perfis e notas distintas, segundo as áreas de risco e com graus de autonomia das forças de segurança bastante amplos.

O próximo artigo traz a contribuição de uma das pesquisadoras que pode ser considerada pioneira na sistematização de estudos sobre o exílio argentino no marco da última ditadura. Silvina Jensen, professora e pesquisadora na Universidad Nacional del Sur, em Bahía Blanca, além de autora de dezenas de livros e artigos sobre o tema exilar, organizou diversas coletâneas nas quais reuniu investigadores especialistas na massiva diáspora política latinoamericana da década de 1970. Silvina apresenta em “Exilio y legalidad. Agenda para una Historia de las luchas jurídico-normativas de los exiliados argentinos durante la última dictadura militar” uma reflexão sobre um lugar pouco explorado acerca do exílio: os modos em que a ação coletiva dos desterrados argentinos questionou as dimensões jurídico-normativas do terrorismo de Estado. Sua proposta consistiu em revisitar os inúmeros arquivos onde se depositam as denúncias exilares para compreender como é representada a política repressiva do Estado não em suas modalidades mais abjetas como o desaparecimento de pessoas e o funcionamento dos centros clandestinos de detenção, mas sua indagação é como reconhecer a forma de os desterrados lidarem com as paradoxais relações entre terrorismo de Estado e legalidade. Nessa perspectiva, a discussão é desenvolvida a partir de três eixos: 1) por quais racionalidades a luta empreendida pelos exilados respondeu às facetas repressivo-legais da ditadura; 2) na denúncia da legalidade autoritária, qual o território ocupado pelas diferentes formas institucionalizadas de exílio; 3) os modos adotados pelos exilados na sua apelação ao direito (nacional e internacional), para obtenção da verdade sobre o destino dos desaparecidos, conseguir a liberdade dos detidos sem causa nem processo, e para responsabilizar penalmente os responsáveis pelas violações aos direitos humanos.

O último artigo do Dossiê é de autoria de Marcos Gonçalves (UFPR), no qual o autor dialoga com um ex-militante da Organização Política Montoneros que, depois de breve refúgio no Brasil e do exílio na Suécia entre meados das décadas de 1970 e 1980, rememora algumas experiências políticas e pessoais de sua trajetória. O texto procura referências na tensão da passagem do tempo e como ela repercute na diversidade de transmissão das informações memorizadas.

Este volume da Revista História: Questões & Debates conta ainda com três artigos de temáticas diversificadas: “Considerações Histórico-Arqueológicas como Elementos para uma Reavaliação de Max Weber”, de Andréa Bernardes de Tassis Ribeiro, onde a autora, apoiada em recentes pesquisas dialoga com a sociologia weberiana que trata dos costumes tradicionais relacionados aos rituais de segregação. Na sequência, Máira de Souza Nunes, em “As demolições de Paris: a modernidade em ‘Rocambole’ (1857-1870)”, parte da leitura do romance de folhetim Rocambole, e analisa as transformações da cidade de Paris durante o II Império de Napoleão III, investigando as representações do processo civilizador oitocentista, da experiência burguesa, e as relações entre a cidade e o enredo da obra. Por fim, no artigo “O alimento como categoria histórica: saberes e práticas alimentares na região do Vale do Rio Pardo (RS / Brasil)”, Everton Luiz Simon e Éder da Silva Silveira, desenvolvem um exercício de caracterização de alguns costumes alimentares da Região do Vale do Rio do Pardo, Rio Grande do Sul. Os autores buscam perceber a influência ou a presença de características dos modelos alimentares “romano” e “bárbaro” em hábitos de descendentes de alemães e italianos nessa região.

Desejamos uma boa leitura!

Notas

1. A Revista está realizando um ajuste necessário em seus volume e número adequando-se às normatizações vigentes. Assim, a referência ao volume 64 e ao n. 2 correspondem respectivamente à informação do ano da Revista, e à quantidade de fascículos publicados no mesmo período.

2. FRANCO, Marina. Do terrorismo de Estado à violência estatal: Problemas históricos e historiográficos no caso argentino. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (Org.). Ditaduras Militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 61-81

Marcos Gonçalves – Organizador.


GONÇALVES, Marcos. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.64, n.2, jul./dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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A cidade e a arquitetura sacra / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2016

A Revista Eletrônica “Cordis” do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pública este mês seu número 17. Esta é uma “Edição Especial” da revista Cordis por ser tratar de uma temática debatida no “I SIMPÓSIO NEHSC – Cidade e Arquitetura em Diálogo: A Arquitetura Sacra”, por docentes-pesquisadores atuantes em Instituições de Ensino Superior e Núcleos de Pesquisa do país, com experiência em pesquisa e participação em eventos no Brasil e no Exterior.

Nossos autores são formados em diferentes cursos de graduação e pós-graduação, no país e no exterior, especialistas nas áreas de Ciências Humanas e / ou Sociais, atuantes em suas áreas de especialidade: Arquitetura, Artes, História, Instituição, Política e Teologia, irão colaborar bastante para o debate / conhecimento sobre a temática desta edição que é “A Cidade e a Arquitetura Sacra” em suas múltiplas faces, percorrendo caminhos que passam pela religiosidade popular, pela arte, pela política e pelas teorias e metodologias da arquitetura.

As abordagens teóricas, os métodos e as fontes são bastante amplas e colaboram para problematizar nossa proposta temática, e que são também pertinentes aos objetos de estudos dos pesquisadores aqui reunidos com suas reflexões consistentes e instigantes. Este número especial da Revista Eletrônica Cordis possui 8 (oito) artigos temáticos abordando “A Cidade e a Arquitetura Sacra”.

Aproveito a oportunidade para agradecer a participação de nossos colegas autores e autoras que se empenharam para que tivéssemos um evento digno do NEHSC da PUC-SP, núcleo de pesquisa que completará em 2017 longevos 25 (vinte e cinco) anos de atuação nas áreas de pesquisa e formação, produzindo novos pesquisadores para a área de História Social, com destaque para o estudo das Cidades, e por terem escrito seus textos para esta publicação que dedicarei a nossa querida amiga e mestra incansável, idealizadora e uma das fundadoras do NEHSC da PUC-SP, a Profa. Dra. Yvone Dias Avelino.

São Paulo, Dezembro de 2016.

Edgar da Silva Gomes – Professor Doutor. Membro do NEHSC PUC-SP

Organizador deste número da Revista Cordis


GOMES, Edgar da Silva. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, n. 17, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História das Ciências e Tecnologias / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2016

A ampla área conhecida como História das Ciências nasceu no período entre as duas grandes guerras mundiais. Enquanto as noções de 1civilização, progresso e a ciência enfrentavam um turbilhão de questionamentos na Europa, os Estados Unidos observavam que os fundamentos da modernidade poderiam ainda ser úteis frente aos desafios da sociedade industrial. Naquela época, em Harvard, o cientista belga Georges Sarton fundou um dos pilares que estruturaram o ensino e a pesquisa ao estabelecer um curso de História das Ciências. De influência comtiana, Sarton considerava, nas palavras de Antônio Augusto Passos Videira, “a ideia de progresso linear, cumulativo e direcionado para um determinado ponto de fuga; a saber: a verdade.” Na perspectiva de Sarton, “a ciência conheceria antecipadamente o seu ponto de chegada. O progresso, no domínio da ciência, seria principalmente teórico, de natureza cognitiva e dependente da genialidade de grandes homens, considerados como gênios da ciência [1] ”.

Tal projeto intelectual, no entanto, não resistiu à Segunda Guerra Mundial e a renovação da historiografia das ciências, pautadas principalmente pela influência de Thomas Kuhn, em 1962 – com a publicação de “As estruturas das revoluções científicas”. Mesmo com os questionamentos às noções de paradigma propostas por Kuhn, já a partir da década de 1970, é importante mencionar que cada vez mais o projeto intelectual reunido sob o campo amplamente vasto que é a História das Ciências, afastou-se da construção de uma ideia de reconhecimento dos chamados “gênios da ciência” e de seus “feitos revolucionários”. Como pontua Stephen Shapin, a ciência ao longo do século XX tornou-se parte da indústria, e cada vez mais as inovações científicas aconteceram dentro deste processo e foram realizadas por equipes de “anônimos”, aos quais o grande público desconhece. [2]

Em outro ponto, mesmo em suas primeiras formulações à moda comtiana, a História das Ciências tornou-se um campo interdisciplinar por excelência. Se aos Annales coube propor, após 1929, um diálogo com outras ciências, a História das Ciências já nascia dentro de uma perspectiva interdisciplinar, como também incluindo pesquisadores de diversas áreas. Em resumo, a História das Ciências, durante longo período, não foi um projeto intelectual restrito aos historiadores. Físicos, químicos, matemáticos, entre outros, e à sua maneira, estabeleceram uma produção voltada a demonstrar como chegou-se a determinado conhecimento, a determinada “descoberta” científica. Aos poucos, historiadores e sociólogos, principalmente, construíram uma agenda de pesquisa e exerceram uma considerável influência acerca do tema, acompanhando as renovações propostas pela historiografia e pela teoria social, e sem excluir os historiadores não profissionais. Desta forma, se por um lado a ideia de renovação de métodos, experimentação, formulação de novas teorias ou revisionismo das “descobertas”- que influenciaram a sociedade moderna, iniciaram o debate, por outro, os historiadores e sociólogos da ciência trouxeram conceitos que renovaram em muito as pesquisas na área.[3] Surgiram novos temas e novas abordagens: gênero, poder, impactos sociais, questões ambientais, sem contar os inúmeros questionamentos sobre determinadas noções de método e verdade.

Também, os estudos em História das Ciências popularizaram-se desde a Inglaterra, o berço da Revolução Industrial, Itália, França e Estados Unidos, para os países que até recentemente eram considerados enquanto periferia – outro conceito muito questionado pela historiografia recente. No Brasil, existem cursos de Pós-Graduação, como a Casa de Oswaldo Cruz (COC / Fiocruz), a Universidade Federal de Minas Gerais e outras universidades e instituições voltadas à formação de mestres e doutores na área, assim como uma associação – a Sociedade Brasileira de História das Ciências (SBHC). Em outras palavras, a pesquisa em História das Ciências no Brasil está consolidada, integrada internacionalmente e pronta para novos desafios.

Buscando contribuir para este debate, este número da Revista Fronteiras apresenta o dossiê “História das Ciências”, reunindo trabalhos de diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros.

Stuart McCook que trabalha desde 2003 na University of Guelph, Ontário, Canadá foi o entrevistado desta edição, professor e pesquisador canadense falou sobre sua trajetória e as perspectivas de pesquisa que relacionam ciência e ambiente. O historiador norte-americano Paul Josephson também contribui com um artigo original para este volume de Fronteiras. Josephson é professor de História no Colby College, no estado do Maine, Estados Unidos e da Universidade Estatal de Tomsk, na Rússia. Tem mestrado pela Harvard University e doutorado pelo Massachusets Institute of Technology (MIT). Autor do clássico Industrialized Nature: Brute Force Technology and the Transformation of the Natural World. No artigo “Big Science e tecnologia no século XX” propõe pensar histórias da ciência e da tecnologia no século XX como constructos humanos de larga escala; nunca como objetos em si, mas sim grandes sistemas de instituições políticas, econômicas, sociais e de engenharia. Com isto, abre-se um importante campo conceitual para a renovação de pesquisa em temas já abordados pela historiografia brasileira, como as usinas hidrelétricas, e outras formas de big science, presentes no Brasil.

O número conta com trabalhos de pesquisadores brasileiros que exploraram uma grande quantidade de temas e abordagens, demonstrando os impactos sociais e ambientais de saberes científicos e trazendo novas questões. Jó Klanovicz contribuiu com o artigo “Tecnologia de Força Bruta e história da tecnologia: uma leitura historiográfica”, onde aborda a historiografia de um conceito pouco difundido no Brasil, mas importante para o debate entre ciência e tecnologia, já exposto acima: Brute Force Technology ou a “tecnologia de força bruta”. Entendida por Paul Josephson como “os modos pelos quais a ciência, a engenharia, a política, as finanças agem de maneira conjunta para dar ímpeto a sistemas tecnológicos de larga escala que usamos para manejar recursos naturais”. Na esteira deste debate, o artigo “a difusão dos agrotóxicos como tecnologia benéfica ao agricultor: o papel das cooperativas agropecuárias”, de Elisandra Forneck e João Klug, demonstra como uma determinada ideia de que a “boa utilização” de agrotóxicos poderia beneficiar o agricultor catarinense. Por outro lado, o artigo demonstra as relações propostas por Josephson em seu conceito de “tecnologia de força bruta”, quando as cooperativas receberam apoio do Estado para difundir a modernização agrícola e constituíram-se enquanto importantes parceiras comerciais de multinacionais, que distribuem os agrotóxicos no Brasil.

O artigo de Vanessa Pereira da Silva e Mello e Dominichi Miranda de Sá, “O ‘agricultor progressista’: ciência e proteção à natureza em A Lavoura (1909-1930)” observa a divulgação científica em um período anterior à Revolução Verde, objetivando a promoção da aplicação de conhecimentos científicos no campo e da conservação da natureza brasileira pelo Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) entre 1909 e 1930. A pasta visava expandir a consciência da importância da modernização da agricultura e da diversificação da produção. Se a produção agrícola e a relação com o ambiente foram a tônica dos artigos mencionados até o momento, o texto do professor João Klug, “Entre ciência e aventura: considerações em torno da Expedição RooseveltRondon” nos traz outra perspectiva sobre a ciência: o avanço aos sertões e a possibilidade de transferir espécies. Plantas e animais oriundos do pantanal de Mato Grosso e da Amazônia, foram aclimatados nos Estados Unidos, visando a posterior utilização econômica. Também, o texto “O ato de coletar espécimes silvestres e a legislação brasileira”, de Aline Maisa Lubenow e Magali Romero Sá, explora parte da vida e obra do coletor e colecionador alemão Fritz Plaumann. Radicado no Brasil, mais especificamente em Nova Teutônia, Santa Catarina, desde 1924, Plaumann tornou-se conhecido nacional e internacionalmente pelas suas coleções construídas, em sua maioria, com espécimes oriundas da região Oeste de Santa Catarina e de seus sertões. O artigo aborda o impacto causado ao trabalho de Plaumann a partir das modificações na legislação ambiental brasileira na década de 1960, e como essa nova lei afetou o ato de coletar e comercializar espécimes silvestres.

“Uma geometria de linhas claras: técnica e ciência como ideologia no pensamento político de Colombo Salles (1971-1975)”, de Ricardo Duwe, traz à tona a questão da ciência e técnica como projeto de governo. De acordo com o autor, o pensamento político de Colombo Machado Salles durante a sua gestão enquanto governador do Estado de Santa Catarina esteve ligada a uma ideia de defesa e propagação da técnica e da ciência enquanto uma ideologia. E neste sentido, o artigo demonstra como tais ideais foram bem recepcionados por parte da elite política catarinense.

O presente número é composto ainda, por dois artigos e duas resenhas. Abordando a relação entre História e Memória: em “As outras margens do Rio”, de Maria de Fátima Oliveira e Ademir Luiz da Silva, os autores debatem aspectos da cultura e cotidiano da vida ribeirinha nas longas viagens fluviais das cidades localizadas no Alto Tocantins até o porto de Belém. E em “A república que não nos pariu”, José Bento Rosa da Silva observa, através da leitura de processos crimes, a trajetória de dois ex-escravizados africanos nos primeiros anos do regime republicano, na então província de Santa Catarina. O autor aponta as dificuldades destes ex-escravizados no período, mas adverte que esta narrativa não é de submissão: “eles criaram suas estratégias de sobrevivências em meio às mudanças em curso. ” Isadora Muniz Vieira resenhou a obra de Jean-François Sirinelli, “Abrir a História: novos olhares sobre o século XX francês” e Jaine Menoncin o livro “Vastos Sertões: História e Natureza na Ciência e na Literatura”, as autoras elucidam as temáticas apontadas em cada obra e despertam a curiosidade do leitor aos livro resenhados.

Por fim, os organizadores agradecem a todos que colaboraram neste número de Fronteiras com a certeza de que a edição abordou questões das mais relevantes para os estudos de História da Ciência, quais sejam: as relações entre local e global (Stuart McCook) na América Latina, a “Tecnologia de Força Bruta” (Paul Josephson e Jó Klanovicz) e os agrotóxicos (Elisandra Forneck e João Klug), produção agrícola e divulgação científica (Vanessa Pereira da Silva e Mello e Dominichi Miranda de Sá), transferência de plantas e animais, expedições científicas (João Klug), coleções e legislação ambiental (Aline Maysa Lubenow e Magali Romero Sá), assim como a ciência e a técnica enquanto projeto de governo. Oferecendo temas e abordagens variadas, esperamos que todos façam uma boa leitura.

Chapecó, julho de 2016.

Notas

1. VIDEIRA, Antônio Augusto Passos. História e historiografia da ciência. In: Escritos, ano 1, n.1, 2007. p. 132.

2. SHAPIN, Stephen. Nunca pura. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. Ver especialmente a parte I, intitulada “Métodos e Máximas”.

3. Idem. Ibidem.

Claiton Marcio da Silva

Samira Peruchi Moretto

Organizadores


SILVA, Claiton Marcio da; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.27, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Modelos autoritários e totalitários do século XX / Historiae / 2016

No segundo número de 2016 Historiæ apresenta o dossiê “Modelos Autoritários e Totalitários do século XX” tentando compreender a Era dos Extremos sob o prisma de movimentos, partidos e grupos políticos de vieses autoritários e totalitários.

O século XX foi marcado pela expansão de modelos autoritários e totalitários que se universalizaram em praticamente todas as partes do globo. Conflitos internos em países e entre nações auxiliaram para que tais ideologias ganhassem força. Na primeira metade do século XX percebemos a expansão de modelos totalitários, principalmente no período posterior à Primeira Guerra Mundial sob a sombra da pacificação e da remodelação do mapa europeu imposta pelas potências vencedoras. Nesse terreno fértil para o surgimento de nacionalismos exacerbados, a Crise de 1929 colocou os regimes totalitários como alternativas reais aos governos democráticos burgueses no Ocidente.

O impacto deste processo foi a Segunda Guerra Mundial e o alto custo em vidas. Na segunda metade do século XX, observamos o acirramento ideológico da Guerra Fria entre dois blocos opostos – Estados Unidos e União Soviética. Desse conflito, na América Latina – zona de influência dos EUA – surgiu uma série de regimes autoritários dentro do princípio da Doutrina de Segurança Nacional que perpetraram uma série de crimes contra a humanidade dentro da lógica do terrorismo de estado. Além disso, o processo de descolonização levou a uma violenta repressão política na África e Ásia, regiões que sofreram e ainda hoje sofrem com o imperialismo.

No presente dossiê a revista Historiæ, mantendo seu espírito de universalização do conhecimento científico, reúne artigos de especialistas sobre os modelos autoritários e totalitários no século XX. O presente dossiê, por sua vez, surge em um contexto conturbado, onde a sombra do autoritarismo apresenta-se novamente no horizonte do mundo ocidental. Por essa, a difusão desse saber acadêmico torna-se ainda mais importante para que nossa sociedade possa compreender os riscos políticos, econômicos, sociais e culturais que se colocam diante de si e que a democracia possa prevalecer.

A organização do presente dossiê foi realizada pelos Professores Doutores Rodrigo Santos de Oliveira e Juarez José Rodrigues Fuão, ambos da Universidade Federal do Rio Grande.

Rodrigo Santos de Oliveira – Professor Doutor. Editor


OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 7, n. 2, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Atas da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição da Praia (1869 a 1879) e da Irmandade Nossa Senhora do Rosario, São Benedicto e Sant’Anna (1933) | Alícia Duhá Lose e Vanilda Salignac Mazzoni || Manuscritos do antigo Recolhimento dos Humildes: documentos de uma história |Alícia Duhá Lose e Vanilda Salignac Mazzoni

O escritor malês Amadou Hampâté Bâ enfatiza, em uma frase já conhecida, o aspecto efêmero da cultura oral e a importância de sua conservação: “cada vez que um ancião morre na África, uma biblioteca é incendiada”. Entretanto, também o registro escrito possui suas dificuldades. Crer que ele, por si só, pode perpetuar conhecimentos e informações é uma falácia; quando registrado em texto escrito, o conhecimento existe em estado latente. Na era da informação, em que o acesso e o armazenamento digital se tornaram lugar comum, talvez não se calcule a importância do exercício da Filologia para o resgate da história social brasileira. Tal lacuna é preenchida por trabalhos como os dois volumes aqui apresentados, pertencentes à série Uma história escrita à mão.

A própria relevância dos documentos fornecidos, cujos pormenores serão abordados nas páginas seguintes, e as pesquisas realizadas sobre o contexto no qual se inserem justificam a leitura, pois são registros de valor inestimável que retratam a história social da Bahia e que podem servir a pesquisadores de áreas tão variadas como a Teologia, a História e a Sociologia. Contudo, as autoras não se limitam a fornecer as edições, pois os volumes possuem capítulos introdutórios que narram os percalços de um amplo e meticuloso trabalho filológico, mostrando as diversas áreas que tiveram de ser desbravadas para disponibilizar os documentos ao grande público. Consequentemente, a publicação realça a importância e a urgência do trabalho filológico para a preservação e disseminação de documentos, bem como sua vocação multidisciplinar. Leia Mais

O Setecentos luso e hispânico nas Américas: perspectivas e aproximações / Revista Maracanan / 2016

Não seria fácil reunir em um dossiê uma amostra ainda que limitada da copiosa produção historiográfica atual sobre as Américas lusa e hispânica no período colonial. A diversidade temática ou mesmo a maior concentração de trabalhos em determinada temporalidade poderiam causar certo desequilíbrio na distribuição das contribuições. Daí a opção dos organizadores por privilegiar um século XVIII alargado esperando que disso resultasse uma seleção de textos mais condizente com a atualidade dos estudos sobre a colonização ibérica na Época Moderna, no que diz respeito à América portuguesa ou à busca de aproximações com experiências relativas à América espanhola, ainda menos frequente na historiografia brasileira.

O artigo de Francisco Carlos Cosentino abre o Dossiê e investe nesta perspectiva ao abordar comparativamente os ritos de transmissão e de exercício do poder régio aos governadores-gerais do Estado do Brasil e aos vice-reis da Nova Espanha. Apoiado em parâmetros teórico-metodológicos de uma história política renovada, o trabalho de Cosentino traz uma discussão aprofundada sobre o governo nos domínios ultramarinos ibéricos, amparada em consistente debate historiográfico e análise documental, em que se destaca a abordagem do pensamento político e do discurso de juristas castelhanos sobre a natureza do poder régio.

Seguindo a linha dos estudos recentes sobre a história da administração colonial, Antonio Filipe Pereira Caetano apresenta resultados de suas investigações sobre a Justiça e seus agentes nas comarcas de Pernambuco e capitanias anexas, na virada do século XVIII para o XIX. O foco na ação de ouvidores e nas intrincadas demandas judiciais naquelas partes da América lusa ilustra uma tendência da historiografia de privilegiar as dinâmicas administrativas, a definição dos espaços de exercício do poder e as jurisdições delegadas pelo rei, questões que também se fazem presentes no artigo de Cosentino.

Na conjuntura de transformações que perpassa o Setecentos, no que se refere à realidade portuguesa, o início do reinado de d. José I, em 1750, pode ser visto como um marco fundamental. Ainda que as mudanças ocorridas após essa data devam ser compreendidas dentro de uma chave argumentativa que ressalte algumas continuidades, não podemos nos esquecer da importância da atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, como precursor de um conjunto de ações que levariam a alterações estruturais, com repercussões nas diferentes regiões do Império. O texto de Mônica da Silva Ribeiro abre uma parte do Dossiê cuja tônica é o exame de questões essencialmente ligadas à ação governativa de Carvalho e Melo. Nesse aspecto, seu artigo realiza uma discussão sobre o “Pombalismo”, trazendo ao leitor uma análise historiográfica e da prática administrativa do secretário de Estado, sobretudo no que concerne à América portuguesa.

Uma das preocupações de Pombal para essa parcela fundamental do Império ultramarino no século XVIII foi a defesa e a militarização das fronteiras, tema do artigo de Christiane Figueiredo Pagano de Mello. A autora investiga questões relativas ao projeto defensivo pombalino para o Estado do Grão-Pará e para o centro-sul. Tendo como foco uma análise comparativa, tenciona observar a situação militar na área fronteiriça com as colônias espanholas e francesas.

A temática das fronteiras no Setecentos tem sido fonte de preocupação historiográfica nos últimos anos. A ampliação da produção de pesquisas sobre a Amazônia e o Grão-Pará está, de certo modo, associada ao aumento de cursos de pós-graduação nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Vale destacar, entretanto, que essas abordagens trazem como características não apenas uma preocupação com questões políticas. Cada vez mais os enfoques tendem a dialogar com o conceito de espaço: formas de ocupação, atores sociais, exploração dos recursos naturais, momentos de expansão e de imposição de limites pelas autoridades metropolitanas são assuntos que percorrem os estudos sobre essa região.

No rescaldo da saída do marquês de Pombal do centro do poder político em Portugal, novos arranjos territoriais acordados no plano teórico das negociações diplomáticas começaram a se materializar no cotidiano colonial. O Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1º de outubro de 1777, colocou nas fronteiras que ligavam as Américas portuguesa e espanhola, cartógrafos, engenheiros, geógrafos, entre outros especialistas, irmanados na produção do conhecimento sobre o território americano. Mas, se por um lado, as demarcações aproximavam homens e suas práticas, por outro, estavam longe de ser experiências pacíficas. As abstrações presentes no conteúdo dos acordos diplomáticos davam ampla margem a interpretações subjetivas, provocando confusões por vezes convenientes a ambas as partes.

Assunto dos mais delicados da pauta geopolítica das monarquias europeias, o estabelecimento de fronteiras passava por três etapas: definição, delimitação e demarcação. Em sua contribuição ao Dossiê, Simei Maria de Souza Torres analisa a fase da demarcação do Tratado Preliminar de Limites de Santo Ildefonso (1777). Com o objetivo de interpretar e colocar em prática as diretrizes expressas no acordo, os demarcadores defrontaram-se com o cotidiano colonial. Como afirma a autora, a fronteira deixava de lado a esfera das abstrações políticas, confrontando o que foi concebido e o que era possível de ser executado.

A troca de informações de cunho político nas fronteiras conviveu com outras formas de circulação de saberes e de mercadorias pelas vastas possessões dos impérios ibéricos. Em outra chave interpretativa, Marcia Amantino e Eliane Cristina Deckmann Fleck analisam, em perspectiva comparada, as redes de comércio e de saberes desenvolvidas pela Companhia de Jesus no Rio de Janeiro e em Córdoba. Dedicando atenção aos inventários dos colégios produzidos após a expulsão dos inacianos, as autoras discutem não só a participação dos religiosos nas disputas pelos poderes locais, mas também a atuação dos missionários como agentes de trocas comerciais e culturais na América e no Oriente.

A produção do conhecimento científico sob as Luzes setecentistas foi intensa. Para governar áreas tão vastas e tão distantes, os reis europeus compreenderam a importância de enviar funcionários especializados na observação da natureza, da geografia, das potencialidades agrárias e mineralógicas de seus territórios. Estabeleceu-se, assim, uma burocracia treinada nas principais universidades europeias e orientada a elaborar inventários minuciosos, descrições etnográficas, planos militares, mapas cartográficos e de população, documentos fundamentais à elaboração de políticas coloniais, mas que também contribuíram para a formulação de conceitos (e preconceitos!) sobre os habitantes das Américas.

Márcia Eliane Alves de Souza e Mello e Daniel Barroso revelam como os mapas populacionais desenvolvidos no último quartel do século XVIII foram fundamentais à elaboração de uma nova arte de governar. Demanda recorrente na correspondência entre o poder central e as autoridades coloniais, tais registros caracterizam as práticas governativas de caráter reformista-ilustrado. Atentos ao contexto de produção dessas estatísticas no Estado do Grão-Pará e Rio Negro, os autores analisam alguns casos específicos, com o intuito de compreender a dinâmica demográfica da região, particularmente o uso da mão de obra de indígenas e de africanos.

Os relatos de viagens sobre o mundo ultramarino produzidos no Setecentos são objetos da análise de Bruno Silva. As descrições etnográficas sobre os habitantes do Novo Mundo inspiraram reflexões na Europa acerca da construção da imagem do homem americano. Lidas à luz das teorias desenvolvidas pelos filósofos europeus, os escritos sobre a América no século das Luzes contribuíram para a formulação do conceito de raça baseada nos aspectos físicos, antecipando o debate sobre o tema no século XIX.

O estudo de Juliana Gesuelli Meirelles analisa o papel da Real Academia Militar do Rio de Janeiro, criada em 1810, no contexto da implantação da nova sede da monarquia portuguesa na América. A despeito de sua atuação principal (a reestruturação militar e defesa do novo império em tempos de graves disputas diplomáticas), a Real Academia se apresentou como um locus de produção científica e divulgação cultural, abrigando os letrados que absorveram as Luzes em Portugal, tanto na Universidade de Coimbra como em outras instituições de saber criadas durante o reinado Mariano. Herdeira dos estudos científicos desenvolvidos ao longo do Setecentos, a Real Academia Militar do Rio de Janeiro atuou vinculada aos interesses do Estado, uma vez que diplomou importantes figuras que comporiam o quadro político-administrativo do Brasil na primeira metade do século XIX.

A convite dos editores, os historiadores Ronald Raminelli e Rafael Chambouleyron contribuíram para a seção Depoimentos, compartilhando experiências de pesquisa e apresentando seus pontos de vista sobre o tema do Dossiê. Raminelli revisita os estudos clássicos de Sérgio Buarque de Holanda e Richard Morse, lembrando certa tradição em se pensar sobre as Américas em perspectiva comparada. Reconhecendo os aspectos superados de tais teses, aponta o caráter inovador de uma metodologia preocupada em pensar contrastes e similitudes, uma fonte inesgotável de inspiração para estudos acerca da administração, da cultura e da economia nas Américas.

Seguindo os passos de Holanda, mas também os ensinamentos de Marc Bloch, Raminelli nos conta aspectos de sua carreira, particularmente a forma inovadora com a qual escolheu seus temas de pesquisa e o uso da perspectiva comparada. O estudo sobre as cidades coloniais, o uso das gravuras europeias como fonte documental, do qual resultou a obra Imagens da colonização, cuja originalidade metodológica no entrecruzamento de fontes iconográficas, relatos de viagens e documentos de caráter administrativo permitiram o desvendamento do lugar ocupado pelos tupis no imaginário cristão quinhentista e seiscentista. Nos últimos anos, em suas investigações acerca das nobrezas no Novo Mundo – Brasil, Peru e Nova Espanha – percebe-se a síntese e o aprofundamento dos estudos realizados ao longo de sua carreira.

Já Chambouleyron nos revela sua leitura acerca do adensamento dos estudos sobre a região amazônica nas últimas décadas. Esse interesse, tanto no Brasil quanto no exterior, resulta da expansão dos cursos de pós-graduação em História do Brasil e da descentralização, ainda lenta, da produção acadêmica de História no país. Olhando criticamente para essa nova historiografia, identifica a concentração dos trabalhos em torno de dois momentos principais: na presença do padre Antônio Vieira no Maranhão e Grão-Pará (1653-1661) e no período pombalino (1750-1777).

Frente a essa percepção, Chambouleyron apresenta alguns percursos historiográficos que, nos últimos anos, têm despertado a atenção dos pesquisadores, particularmente, a conjuntura da chamada “Amazônia joanina” (1707-1750), quando tem início a expansão dessa região. O autor elege em sua análise dois temas candentes: a concessão de terras e o avanço em direção às fronteiras. Outros, permanecem pouco explorados, como o tema da pecuária e sua relação tanto com a guerra contra os índios quanto com a doação de terras pelos governadores; ou ainda, o da existência de uma “ruralidade invisível” composta de roças de índios, mestiços, desertores, sem que houvesse necessariamente doação de terras. O depoimento aponta para muitos aspectos que podem ser pensados em perspectiva comparada, como as missões jesuíticas castelhanas, a exploração de drogas e o trabalho indígena. Temas caros à historiografia sobre a formação territorial do Brasil, como o da oposição entre o litoral e o sertão, já podem ser relativizados.

O Dossiê se encerra com a resenha de Francisca Nogueira de Azevedo do livro Mestiço: Entre o mito a utopia e a História – Reflexões sobre a mestiçagem, de Eliane Garcindo de Sá. Polêmico e atual, o tema da mestiçagem, especialmente dos deslocamentos, encontros e confrontos culturais, acompanha os estudos de Eliane Garcindo, como lembra Francisca de Azevedo. Bem escrita e fartamente amparada por pesquisa documental e bibliográfica, a obra é, sem dúvida, uma contribuição essencial às análises sobre mestiçagem na América Ibérica. De igual maneira, o livro relembra a tradição do pensamento social latino-americano, ao abordar as relações da cultura mestiça com a construção da nacionalidade.

Nesta edição, a seção Artigos é aberta pela contribuição de Rodrigo Ceballos. Seu estudo trata das redes mercantis e sociais entre a Bahia e a cidade de Trinidad y Puerto de Buenos Aires na primeira metade do século XVII, durante a União Ibérica. Apesar das restrições régias, as duas regiões praticaram um lucrativo comércio de contrabando, que incluía escravos africanos e metais preciosos. O autor persegue os rastros e as estratégias utilizadas pelos negociantes portugueses para atuar em Buenos Aires e revela uma rede de privilégios que envolvia oficiais camarários, funcionários régios e governadores.

A “retórica da imagem”, conforme a entendeu Roland Barthes, no ensaio escrito em 1964, e os estudos contemporâneos em torno da argumentação fornecem o eixo da reflexão proposta por Fernando Aparecido Ferreira e Fabíola Gonçalves Giraldi no artigo “O objeto artístico e o contexto histórico: a retórica de Inserções em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles”. Destacando, na obra, as estratégias retóricas de ressignificação de um objeto cotidiano, o artigo explora a voltagem crítica de Inserções no contexto da ditadura brasileira nos anos 70. O questionamento da dominação cultural e política norte-americana através de um de seus maiores símbolos – a garrafa de Coca-Cola – e a aproximação irônica entre circuito da arte e circuito de objetos de consumo sobressaem nesse exame da inscrição política da obra de Cildo sob a chave da argumentação.

Joana de Moraes Monteleone analisa o papel da moda na movimentação da economia do Rio de Janeiro no século XIX. Novos hábitos de sociabilidade e padrões de consumo alimentavam um mercado de importação de tecidos de luxo, que eram transformados em roupas em ateliês chiques da rua do Ouvidor. No artigo, se entrelaçam a análise sobre o estabelecimento da moda e do consumo na Corte com a leitura explicativa das estatísticas de importação de tecidos que entravam pelo porto do Rio de Janeiro.

Duas notas de pesquisa fecham esta edição. Na primeira, André Rocha Carneiro revisita um tema clássico da historiografia, a Revolta Liberal de 1842, e analisa seus impactos na província do Rio de Janeiro, particularmente no município de Barra Mansa, no Vale do Paraíba Fluminense. Marissa Gorberg, por sua vez, investiga as mudanças nas formas de abordar o feminino nas caricaturas de Belmonte e a contribuição dos seus traços para a compreensão de práticas ligadas tanto ao alargamento de fronteiras morais quanto à modernidade da segunda década do século XX.

Fabiano Vilaça dos Santos – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, é professor adjunto de História Moderna e Contemporânea da UERJ. É pesquisador do Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais e dos Grupos de Pesquisa: História da Amazônia Colonial (UFPA), História Colonial da Amazônia (UFAM) e Impérios ibéricos no Antigo Regime: política, sociedade e cultura (UFV).

Marieta Pinheiro de Carvalho – Doutora em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é professora do Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de Oliveira, vinculada à linha de pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho.

Nívia Pombo – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, é professora adjunta de História Moderna e Contemporânea da UERJ.


SANTOS, Fabiano Vilaça dos; CARVALHO, Marieta Pinheiro de; POMBO, Nívia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.15, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Estado, nação e cidadania no oitocentos (1850-1889) -parte 2 / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2016

A Revista Clio abre este volume com a segunda parte do dossiê Estado, nação e cidadania no oitocentos (1850-1889), que versa sobre instituições, atores e processos políticos no Brasil império, no período de 1850 a 1889. Sua abordagem procura compreender o campo da política, ultrapassando as fronteiras restritas do Estado, em suas dimensões e articulações com a sociedade e a cultura. Também privilegia a atuação, individual e coletiva, de pessoas anônimas, para além da figura dos “grandes” lideres. Seu corte cronológico se estende da consolidação ao fim do estado imperial. Um período de afirmação do poder central sobre os locais, rearticulações políticas nas províncias, de férteis debates em torno da construção do estado. É o tempo compreendido entre o fim do tráfico e o da escravidão, assinalado ainda por movimentos sociais e políticos, como o abolicionista e o republicano. Cidadania, Estado, elites políticas, eleições, movimentos sociais são os principais temas que este dossiê se propõe a discutir.

Os dois primeiros artigos tratam do recrutamento e da Guarda Nacional no Ceará. O trabalho de Maria Regina Santos de Souza, A implacável surdez das autoridades do império: as súplicas dos veteranos da Guerra do Paraguai (1870-1889)analisa, no período posterior a Guerra do Paraguai, a (des)atenção do governo brasileiro com os direitos concedidos aos excombatentes, tais como pensões, empregos públicos, terras e compensação financeira. Souza mostra os problemas gerados para os veteranos. Parte significativa deles enfrentou a desorganização e a falta de conhecimento jurídico da burocracia do Estado. Este artigo aborda a luta dos veteranos do Ceará pelos direitos de guerra.

O artigo de Ana Sara Cortez Irffi, “O cidadão não encontra garantia senão na própria força” – Recrutamento, milícias privadas, quadrilhas de „cabras‟ e a propriedade privada (Cariri Cearense, século XIX), analisa o processo de construção do Estado brasileiro em meados do Oitocentos, o recrutamento para a Guarda Nacional e a formação de milícias privadas no sertão das chamadas províncias do Norte. A análise se volta às milícias surgidas a partir das relações estabelecidas dos senhores com agregados e moradores, mas também, no bojo desse processo, à formação de grupos alheios aos senhores que ficaram conhecidos como „quadrilhas de cabras‟.

Rafael Sancho Carvalho da Silva analisa os aspectos políticos do banditismo no sertão baiano em seu artigo Antonio José Guimarães: banditismo e disputas políticas no sertão baiano Oitocentista. Rafael discute a relação do banditismo com as disputas políticas no sertão baiano, usando o caso de Antonio José Guimarães que atuou entre 1849 e 1854 pelos sertões da Bahia e de Goiás. Mostra também que podemos analisar o banditismo como um fenômeno da história política.

Em seguida temos o artigo Práticas docentes no Recife e Olinda na segunda metade do século XIX de Dayana Raquel Pereira de Lima e Yan Soares Santos. Partindo da metodologia da microanálise, analisam as trajetórias e demandas dos membros da Sociedade Propagadora da Instrução Pública de 1872, e as petições feitas pelos professores aos poderes públicos dos principais expedientes práticos do trabalho docente. Mostram que a docência foi marcada por práticas individuais de cidadania, quando os professores desenvolviam estratégias pessoais, de acordo com privilégios conquistados ao longo da carreira, os quais, na prática, afastavam a possibilidade de constituírem uma identidade docente.

Os próximos três artigos se dedicam a história agrária do Brasil oitocentista. O artigo A política de acesso à terra no Brasil Imperial e a compra de terras devolutas no planalto da Província de Santa Catarina, de Paulo Pinheiro Machado e Flávia Paula Darossi, analisa a aplicação da Lei de Terras na Província de Santa Catarina, com ênfase no município de Lages. O estudo foi realizado com base em requerimentos de compra de terras devolutas, lavrados entre 1850 e 1889, previstos na legislação como a única forma legal de acesso à terra. Machado e Darossi mostram que, por tratar-se de uma fronteira agrícola e de povoamento em expansão, o planalto catarinense foi ocupado de diferentes maneiras – que ultrapassavam as disposições da própria Lei -, o que repercutiu em complexas estratégias de regulamentação da propriedade.

Em seguida Francivaldo Alves Nunes contribui ao Dossiê com o estudo da questão agrária na Amazônia em seu artigo Entre outras estratégias de controle e dominação: Estado, agricultura e colonização na Amazônia Oitocentista. Nunes analisa a relação entre os discursos construídos em torno da agricultura e colonização, caracterizados pela moralização da sociedade e a atuação do Estado imperial. Baseado em relatórios governamentais, mostra como esses valores, associados à atividade agrícola, exigiram do Estado um desempenho não apenas de manutenção da ordem, mas como instituição promotora de políticas que elevassem os hábitos das populações na Amazônia. A afirmação do Estado também se deu, no interior das províncias do Pará e Amazonas, através de ações revestidas de um discurso de promoção da ordem, da modernidade e da civilização.

O artigo Formação do ambiente rural sul-mato-grossense (1829-1892), de Maria do Carmo Brazil e Elaine Cancian, discute a organização da sociedade agropastoril nos campos sulinos de Mato Grosso. Partindo principalmente de relatos memorialísticos e inventários post-mortem, as autoras analisam o peso da pecuária nos municípios de Santana de Paranaíba, Rio Brilhante, Coxim, Corumbá, Campo Grande e Miranda,entre os anos de 1829 e 1892, na expansão da fronteira fundiária do centro-oeste brasileiro. Brazil e Cancian mostram a concentração fundiária, e a exclusão social nela inscrita e dela decorrente, e a montagem de um aparato político repressivo e autoritárioinscritos no processo de ocupação das terras sulmato-grossenses.

O Dossiê é encerrado com o artigo Índios / as, negros / as, mestiços / as, para além da paisagem amazônica: a construção de experiências locais em notas etnográficas da obra de Alfred Russel Wallace (1850-1852) de Victor R. L. Silva e José O. Aguiar. O artigo tece considerações sobre as viagens científicas no Brasil Imperial, com destaque para a trajetória de Alfred Russel Wallace pelos rios e matas equatoriais da Amazônia e para os mais variados encontros culturais que tiveram espaço nessa jornada coletora. Ganha relevo o destaque à descrição de índios / as, negro / as e mestiços / as na ótica do naturalista-viajante e a análise das características e recorrências de seu olhar tanto em sentido de continuidade quanto à base do pensamento oitocentista, quanto em sentido de ruptura, dissensão e criatividade.

A parte dedicada aos artigos livres conta, neste volume, com sete textos referentes à abordagens diversas no tempo e no espaço. O primeiro deles é de autoria de Grasiela Florêncio de Morais e enfoca as relações de subordinação e controle entre as autoridades do Recife e a população pobre da cidade no período 1830-1850. A autora aponta como os projetos de melhoramentos materiais redundavam na vigilância cotidiana das camadas despossuídas da capital pernambucana. Martha Victor Vieira discute em seu texto como a circulação de ideias liberais na imprensa da província de Goiás se insere no processo de consolidação da consciência nacional brasileira no período regencial. Gustavo Magno Barbosa Alencar também trabalha a década de 1830, mas sua abordagem se dirige para a província do Ceará. Utilizando os periódicos e manuscritos de época, o autor procura analisar as concepções do pensamento liberal com atenção para a compreensão dos usos do vocabulário político da época.

Continuando nos estudos sobre o século XIX, Thiago Broni de Mesquita e João Victor da Silva Furtado nos apresentam o processo de estabelecimento de prisões na província do Grão-Pará nos tempos da Cabanagem. Os autores discutem a criação das cadeias no contexto das medidas de coerção postas em prática pelas autoridades daquela província. De volta ao Ceará, nos deparamos no texto de Antônio José de Oliveira com a análise sobre o processo de invisibilização dos índios Kariri na historiografia que se dedicou ao estudo da segunda metade do século XIX naquela província.

Passando para o século XX, encontramos aqui dois textos relativos à história cultural de Pernambuco e Ceará. Lucas Victor Silva nos traz sua abordagem da atuação da Federação Carnavalesca Pernambucana durante os anos 1930. O autor aponta como essa instituição procurou controlar as manifestações carnavalescas no estado como forma de manifestar a coesão nacional em consonância com as aspirações políticas do regime pós-1930. Fechando o volume, contamos com o texto de Anderson de Sousa Silva sobre as políticas de cultura e artes nos anos 1960 no Ceará. O pesquisador reflete sobre as relações entre Estado e cultura e também dedica atenção ao processo de inserção do Ceará no panorama artístico brasileiro.

Os organizadores deste número da Revista Clio desejam que os estudos aqui publicados possam estimular debates e novas contribuições à historiografia brasileira.

Boa leitura!

Suzana Cavani Rosas e Cristiano Luís Christillino

Organizadores do Dossiê

George F. Cabral de Souza

Editor

Suzana Cavani Rosas – Organizadora do Dossiê. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. E-mail: suzanacavani@uol.com.b

Cristiano Luís Christillino – Organizador do Dossiê. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. E-mail: christillino@hotmail.com

George Felix Cabral – Editor da Revista. Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em História. Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: georgecabral@yahoo.com


ROSAS, Suzana Cavani; CHRISTILLINO, Cristiano Luís; CABRAL, George Felix. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.34, n.2, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003 – TORRES (RL)

TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003”. In: MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Muad/Faperj, 2014. Resenha de: ROSA, Tatiane Mendes. Revista do LHISTE, Porto Alegre, v.3, n.5, p.99-104, jul./dez, 2016.

O propósito aqui é fazer uma resenha reflexiva a partir do texto: “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” (MAUD x FAPERJ, 2014) das Professoras Marcele Xavier Torres e Márcia Serra Ferreira, a obra traz uma análise sobre a obrigatoriedade de inserção da História da África e dos africanos no ensino de História no Brasil a partir da Lei 10.639/2003.

A inovação da introdução curricular em relação à História da África nos estudos da História do Brasil a partir da lei 10.639/03 é um tema que gradativamente vem sendo debatido e levado a publicações de pesquisas, artigos, ensaios, etc. A publicação da pesquisa organizada por Marcele X. Torres e Márcia S. Ferreira, reforça a importância desta lei no desenvolvimento histórico educacional em nosso país.

As autoras atuam com pesquisas nas áreas de História e Educação, contribuindo no aprimoramento da formação de professores, educadores e pesquisadores. Um dos resultados destas pesquisas pode ser verificado no livro “Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas (2014)” caracterizada por uma coletânea de textos acadêmicos elaborados por pesquisadores que atuam no campo educacional. O texto escolhido traz a reflexão da pesquisa dividida em duas partes, distribuída em 12 páginas, proporcionando ao leitor uma compreensão do tema, possibilitando uma busca maior de detalhes e informações na bibliografia e livros indicados. A obra também proporciona uma análise sobre o que vem sendo desenvolvido nos centros acadêmicos sobre a lei 10.693/03 e aplicado nos currículos escolares.

A apresentação das ideias das autoras se faz presente no desenvolver da pesquisa apresentada onde fica nítida ao leitor a compreensão do conteúdo pesquisado, visto que, na elaboração do texto publicado se faz uma trajetória de conceitos permitindo a objetividade da proposta. Elas trabalham com a compreensão de que o homem é o protagonista de sua própria história e agente formador de suas mudanças em um futuro desconhecido. É possível identificar a transformação do novo e/ou novidade no trecho que nos fala: “[…] o ‘novo’ não é apenas o que resulta de uma mudança estrutural, tampouco esta em transformação radi cal promovida por uma instituição. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84), o novo para acontecer necessita de um lugar (ambiente) e condições de equilíbrio para se constituir. Para o escritor Ferretti (1995), segundo as autoras:

[…] a mudança como resultado das iniciativas de alterações que são incorporadas a diferentes objetos, com vistas a atender a determinados objetivos que se configuram tomando como ponto de partida os problemas identificados na realidade que se pretende mudar. (TORRES; FERREIRA, 2014: p. 84).

Os conceitos desenvolvidos servem de base para chegarmos ao ponto de estudo do Currículo Escolar onde há a necessidade de mudança e inovação para atender a inserção de novos conteúdos que tratem de temas não abordados antigamente com tamanha eficiência, mas que na atualidade esses temas devem ser mais trabalhados para atender a realidade e compreensão dos alunos.

As professoras Marcele e Márcia utilizam outras referências teóricas para debater a mudança curricular, para isso consideram o autor Popkewitz que contribui com seus escritos na questão da transição da mudança onde se faz necessário ter um paralelo entre o que se foi praticado no tempo transcorrido em associação a atualidade, gerando assim um deslocamento que estabelece rompimentos e seguimentos, como fica evidenciado em: “[…] pensar a partir da relação entre o passado e o presente significa ‘identificar interrupções, descontinuidades e rupturas da vida institucional’ (Popkewitz, 1997, p. 22).” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.86). Este autor também considera importante o estudo regional na pluralidade da sociedade abrangendo fatos locais mais peculiares dentro das relações de poder existente e acredita que as alterações podem ser feitas através de uma reforma educacional a partir do uso de termos pertencentes ao aprendizado escolar. Em relação a esta alteração de significados as autoras nos trazem o escritor Silva que em seus escritos nos mostra que “no contexto da história do Currículo é preciso desconfiar particularmente da tentação de atribuir significado e conteúdo fixos a disciplinas escolares que podem ter em comum apenas o nome.” (SILVA, 1995: p. 8 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87). Seguindo nesta linha de mudança curricular o temos o comentário das autoras sobre Goodson onde:

“[…] as mudanças devem ser compreendidas como o resultado de um conflito entre assuntos internos e relações externas, pois ‘quando o interno e o externo estão em conflito (ou dessincronizados) a mudança tende a ser gradual ou efêmera” (GOODSON, 1997: p. 56 apud TORRES; FERREIRA, 2014: p.87).

Nesta primeira parte do texto as autoras fazem a reflexão que o Currículo atua como formador de entendimento da consciência social, local competitivo rodeado de ambição e de relações desiguais de empoderamento. Ambas as autoras deste artigo reafirmam que a mudança curricular seja na universidade, seja na escola “[…] não é um processo fácil tratando-se de um movimento no qual se ‘inventam tradições’[…]” (TORRES; FERREIRA: 2014 p.88)”. O estudo da História da África e da cultura afro-brasileira e africana no ensino de História se encaixa no contexto acima abordado por se tratar de uma nova interpretação no contexto tradicional curricular.

A segunda parte do texto nos trás a mudança no ensino de História a partir da Lei 10.639/2003 que refere à obrigatoriedade de revisão curricular na Educação Fundamental do ensino de História da África e da cultura afro-brasileira e africana no Brasil. O teor desse tema é justificado pelas autoras por conter fundamentos de alterações importantes no ensino da disciplina de História, por que é uma ciência que possui a pratica curricular de mostrar a soberania do homem branco em relação ao homem não branco, especificamente o africano, nas relações de convivência em nossa sociedade, ou seja, as autoras não buscam uma nova disciplina escolar com essa temática e sim, procuram aflorar as inquietudes da História Nacional oficial ensinada para outro viés histórico não relacionado com a conjuntura social presente.

A História como disciplina escolar, assim como o a educação no Brasil é baseada no sistema educacional europeu (séc.XX), sendo contada a partir do olhar do estrangeiro. Nestas circunstâncias a História sempre foi vista pelo heroísmo e bravura do seu ator principal o homem branco, onde é representado por figuras ilustres, um ser humano independente e com capacidade de “civilizar” o mundo. Com o passar do tempo e dos acontecimentos a disciplina de História teve mudanças baseada nas produções acadêmicas européias e pelos diferentes cenários políticos sociais surgidos no passar dos anos, mas sem perder o eurocentrismo. Com a extensão do sistema educacional brasileiro no final do século XX foi possível que outros grupos não elitizados freqüentassem as escolas, esse fato ocasionou uma alteração na homogeneização do perfil social dos alunos que freqüentavam o educandário, destinado antes aos filhos da elite política brasileira. Sendo assim, “[…] seja pela transformação do perfil do alunado, seja pelo crescimento dos movimentos sociais voltados para a inclusão de grupos historicamente marginalizados, os currículos foram sendo crescentemente contestados.” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). Ao longo do tempo os conteúdos desenvolvidos em História sofreram indagações por não retratar a História da África e dos afro-brasileiros no Brasil gerando uma revisão disciplinar. O final do século XX em nosso país é caracterizado por uma História marxista que retrata a disputa de classes sociais e as relações de produções. Com base nisso, tivemos algumas alterações nos currículos escolares, onde ficou evidenciado “hegemonicamente pela inclusão da luta dos africanos, tanto na África quanto no Brasil, em uma perspectiva estrutural mais ampla, envolvendo dominantes e dominados. […]” (TORRES; FERREIRA, 2014: p.90). As autoras nos remetem a contextualização que a partir do final do processo da Ditadura Militar no Brasil as discussões sobre igualdade e democracia conquistaram maior visibilidade na luta pela inclusão das minorias e dos grupos marginalizados pela História Oficial. Coube ao ensino de História motivar o aluno a indagar seu eixo histórico e analisar seu papel de ator social.

No ensino de História do Brasil a contar do inicio do século XXI tivemos o estabelecimento da Lei 10.639/2003 que consiste no ensino de História da África e cultura afro-brasileira como já citado anteriormente. Esta lei busca readquirir as ações afirmativas dos negros na formação da sociedade brasileira impulsionando a população negra ao seu reconhecimento social. A lei foi decretada em 2003, mas a luta por esse reconhecimento legitimado vem de muito tempo que pode ser verificado, por exemplo, no Movimento Negro que sempre lutou pela integração da História e cultura afro-brasileira nos currículos escolares. Mesmo sendo uma lei, a mesma não garantiu até o momento que essa mudança nos currículos escolares seja eficaz em relação aos contextos anteriormente desenvolvidos nas escolas através da visão do outro, no caso do olhar eurocêntrico. Após 13 anos de implantação a lei 10.639/03 ainda não rompeu com o “costume” de se retratar o negro africano e o afro-brasileiro somente como escravizado e submisso ao opressor europeu. A alteração é gradual e necessita de orientação de como deve ser aplicada, pois toda mudança curricular envolve fatores externos que vão além do ambiente escolar, envolvidos em uma cultura intrínseca. A modificação do currículo escolar faz parte do processo de transição do conteúdo histórico a ser desenvolvido com o alunado, mas para que essa transformação ocorra é preciso também que se faça um preparatório do corpo docente para trabalhar essa temática em aula, pois a lei é de 2003, mas há professores que começaram a atuar antes deste período e para os que atuam após esta data também se faz necessária uma formação para que haja preparo e referencial teórico que embase as aulas ministradas sobre a cultura africana no Brasil e a formação da nossa identidade no elo Brasil Africano e África Brasileira. A responsabilidade dessa alteração de paradigmas históricos se faz presente no embate político social onde uma nova retratação entraria em conflito com uma “tradição” secular no contexto social brasileiro.

Após a leitura do texto referido para este trabalho fico com algumas indagações: quais os motivos para a lei 10.639/03 não ser aplicada? Há interesse da parte governamental para que não haja uma nova historiografia em relação aos negros africanos e aos afro-brasileiros? Os professores recebem orientações didáticas em suas formações para desenvolverem em aula o referido tema? Os currículos escolares no âmbito nacional já estão atuando na proposta da lei? Atualmente, há algum tipo de verificação nos diários escolares para averiguar o que esta sendo desenvolvido? As ações afirmativas e a valorização do povo negro onde estão? Os professores estão recebendo ou receberam material didático para embasarem as aulas? Há formações de professores que abordam essa questão? Cabe somente aos professores de História trabalhar com a proposta da lei 10.639/03? Existe racismo nas escolas do Brasil? Alguma pesquisa já foi feita com os alunos de matriz africana para verificar se os mesmos já se sentiram descriminados, injustiçados ou envergonhados nas aulas que tratam sobre a formação do nosso país? As perguntas são inúmeras e não pararam por aqui. Será preciso fazer mais pesquisas sobre o tema abordado para elucidar essas questões. Com base no texto resenhado e nas perguntas acima, trago questões pertinente quando se trata da negritude brasileira e da formação afro descendente do Brasil, o racismo, o preconceito e a discriminação na escola. Para esta analise utilizei o livro “Superando o Racismo na Escola”, organizado por Krabengele Munanga, Brasil, 2005. Em minha carreira como Professora de História já sofri perguntas dos alunos tais como “bah, mas a senhora não tem cara de Professora!”, “Sora, a senhora fala de religião de matriz africana só porque a senhora é preta?”, “Sora, porque a senhora usa esse “troço” (turbante) na cabeça, tá com piolho?’’, “a senhora acredita em saravá?” foram perguntas que fizeram refletir sobre o convívio escolar de uma pessoa afro-brasileira. Como nos diz Sant’ana (2005): “[…] não dá para fugir da curiosidade dos alunos e nem é aconselhável camuflar as respostas. O jeito é enfrentar a questão de frente. […]” (SANT’ANA, 2005: p.40). E para enfrentarmos essas questões é necessário contextualizar a história do negro no Brasil e a nossa relação de identidade com o continente africano. Acredito que a maioria dos alunos ainda tenha a visão estigmatizada do negro escravizado, sofredor, pacífico e submisso ao branco europeu, como também percebo que as informações referentes à cultura africana merecem maior elucidação, pois ainda é vista como algo pejorativo onde usar turbante, usar elementos da religião de matriz africana ou falar sobre a Mama África no ambiente escolar assim como em toda nossa sociedade parece algo que causa estranheza ou afronta a cultura nacional. A figura do Professor é primordial para elucidar essas questões de racismo, preconceito e discriminação, pois o aluno inicia na escola em idade de formação da sua personalidade e é na escola que temos o nosso maior convívio social com as diferenças.

Referências

SANT’ANA, Antônio Olimpio. “História e Conceitos básicos sobre o Racismo e seus derivados” IN MUNANGA, Kabengele (organizador). Superando o Racismo na Escola. 2ª Ed. Revisada. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

TORRES, Marcele Xavier. Márcia Serra Ferreira. “Currículo de História: Reflexões Sobre a Problemática da Mudança a partir da Lei 10.639/2003” IN MONTEIRO, Ana Maria (et al.). Pesquisa em ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Muad x Faperj, 2014.

Tatiane Mendes Rosa – 1 Professora de História Rede Pública. E-mail: prof.tatianehistoria@yahoo.com.br

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Un pago rural de la jurisdicción de Montevideo: Sauce 1740-1810 | Isabel BArreto, Adrian Dávila, Marisol López, Alejandro Poloni e Rodrigo Rampoldi

La presente obra colectiva es el resultado de una investigación realizada por el grupo de becarios del Centro Cultural y Museo Casa de Artigas, localizado en la ciudad de Sauce, Departamento de Canelones. Como señala la coordinadora del proyecto, la antropóloga Isabel Barreto, la intención fue dar cuenta de su proceso poblamiento sin caer en la centralidad del prócer nacional José Artigas (vinculado a la población por razones familiares). El libro se divide en cinco capítulos que están atravesados por el marco cronológico 1740-1810, o sea,el inicio de dicho proceso. Asimismo, es importante el esfuerzo de hacer visible al lector el modo de trabajo, describiendo las fuentes utilizadas, señalando sus límites y los recaudos necesarios para su abordaje.

En el primer capítulo, llamado “El partido o pago de Sauce en el período colonial”, Adriana Dávila Cuevas intenta rastrear las diferentes referencias al arroyo de Sauce y su área vecina, a través de una variada gama de fuentes que incluyen padrones, cartografía, planos de mensura, entre otras. En su contraste la autora da cuenta de las diferencias entre los límites señalados en los Isabel Barreto (coord.): Un pago rural en testimonios y en el ejercicio real de la autoridad en dicho espacio. Dávila contextualiza el proceso teniendo en cuenta que la zona integraba la jurisdicción de la ciudad de Montevideo, la cual a su vez se situaba en territorio fronterizo,disputado entre las coronas española y portuguesa y con presencia de diversos grupos de amerindios, lo cual incidió en la forma en que se pobló la región. Leia Mais

Embarcados. Los trabajadores marítimos y la vida a bordo: sindicato, empresas y Estado en el puerto de Buenos Aires, 1889-1921 | Laura Caruso

El libro de Laura Caruso, Embarcados. Los trabajadores marítimos y la vida a bordo: sindicato, empresas y Estado en el puerto de Buenos Aires, 1889- 1921, viene a llenar un vacío importante en la historia obrera argentina. Resultado de la tesis doctoral de la autora, el texto recoge la historia de los trabajadores marítimos, uno de los sectores más importantes del mundo del trabajo a comienzos del siglo XX.

La historia que presenta es la de “los trabajadores embarcados del puerto porteño, la de su labor cotidiana, sus organizaciones, luchas e itinerarios políticos”. No es un estudio solo de sus organizaciones gremiales y luchas sindicales sino que busca recoger varios aspectos de su experiencia histórica: su mundo laboral, sus vivencias cotidianas, sus posturas políticas, las maneras en que se vincularon entre ellos, con otros trabajadores, con las empresas y con el Estado argentino. Leia Mais

El sistema federal argentino. Debates y coyunturas (1860-1910) | Paula Alonso e Beatriz Bragoni

Paula Alonso y Beatriz Bragoni editan este libro dedicado a revisitar la temática del federalismo argentino entre la caída del régimen rosista y el centenario de la revolución de mayo. Para ello, nos proponen una revisión sensible del relato historiográfico prevaleciente en el país hasta hace unos pocos años, caracterizado en general por otorgar a la construcción del Estado nacional la capacidad de erosionar las autonomías provinciales y los arreglos federales de mediados del siglo XIX. De ese modo, los trabajos reunidos en El sistema federal argentino ofrecen una mirada atenta a la heterogeneidad de los contextos simbólicos, materiales y temporales en que se desenvolvieron los actores políticos y restituyen protagonismo a los espacios provinciales en los años formativos del Estado argentino.

La obra está compuesta por una introducción a cargo de las editoras, nueve capítulos, un epílogo elaborado por Natalio Botana y un apéndice documental. Es necesario señalar que tanto la apertura como el epílogo resultan extremadamente valiosos, estableciendo claves analíticas desde las cuales abordar los trabajos compilados y reconocer la manera en que dialogan con los conocimientos previos sobre el tema. Leia Mais

La revolución del orden. Discursos y prácticas política, 1897- 1929 | Laura Herrera Reali

El libro de Laura Reali, traducción al español de parte de la tesis doctoral que defendió diez años atrás en París, constituye una obra muy esperada en la historiografía uruguaya. La espera valió la pena porque se trata del enorme y minucioso trabajo de investigación que la autora realizó sobre la figura de Luis Alberto de Herrera. El análisis de Reali se sirve de herramientas provenientes de la historia intelectual, de historia de los intelectuales y de la historia política. Con ello consigue reconstruir a la vez el pensamiento político de Herrera y su producción historiográfica, pero también los complejos vínculos entre ambos. Gracias a esta investigación podemos percibir de cerca las prácticas y procesos intelectuales en los que se vio involucrado Herrera (traducción, y edición de libros, recepción de ideas, bibliotecas mentales, uso de citas, envío de cartas. etc.), pero a la vez también se puede saber algo más sobre las prácticas políticas del líder blanco en el primer tercio del siglo XX, en particular la construcción de vínculos político-electorales en ámbitos rurales y urbanos. Leia Mais

Uruguay. Historia Contemporánea | Gerardo Caetano

En el marco de un proyecto editorial de dimensión internacional sobre América Latina en la Historia Contemporánea, la Fundación MAPFRE publicó una serie de tres tomos dedicados al Uruguay bajo la dirección de Gerardo Caetano. Una obra de largo alcance temporal y amplia gama de representaciones que transita desde 1808 hasta 2010 por los senderos paralelos y complementarios de la política, la economía, las relaciones del Uruguay con el mundo, las cuestiones socio-demográficas y la producción artístico-cultural.

La propuesta global divide la obra en tres volúmenes/períodos coordinados por diferentes investigadores. Cada uno de estos libros ofrece cinco capítulos de autorías también distintas centrándose en las siguientes dimensiones: la vida política; el Uruguay y el mundo; la realidad económica; población y sociedad; la cultura y sus tendencias. Un total de quince textos que promedian las sesenta páginas cada uno, acompañados de una cronología final en cada volumen. Configurando un conjunto sistemático y para nada monótono en cuanto al nivel organizativo de los temas, que da por resultado una presentación actualizada de la historia uruguaya en diferentes campos complementarios de las narrativas históricas. Leia Mais

História e Narrativas | Outras Fronteiras | 2016

Neste dossiê, nossa proposta foi estabelecer uma ampla reflexão acerca do diálogo da História com a narrativa, buscando evidenciar esta discussão que se fez tão recorrente, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, por meio das proposições proferidas por Lawrence Stone em seu celebre artigo “The revival of narrative” que estabeleceu as bases iniciais para este debate. Segundo Antônio Paulo Benatte este “repensar da narrativa”1 veio acompanhado da crescente influência da antropologia e da psicologia, em detrimento da economia e da sociologia na pesquisa histórica, isso atrelado ao que classificou como falência dos grandes modelos explicativos que eram caracterizados por suas narrativas totalizantes.

O debate em questão está em concomitância ao avanço das teorias pósestruturalistas, principalmente por intermédio de teóricos como Jacques Derrida e Michel Foucault, que suscitaram uma discussão sobre a inexistência de um sentido estático no próprio texto, sendo que o sentido só seria atribuído a partir das bases ontológicas de cada leitor. Leia Mais

História da mídia e consumo / Revista Brasileira de História da Mídia / 2016

Os processos comunicacionais relacionados ao consumo têm despertado o interesse dos pesquisadores da área – o tema é cada vez mais estudado por grupos de pesquisa, abordado em livros, artigos, congressos e eventos diversos, além de ter motivado a criação de cursos específicos em diferentes níveis. Nesta edição da RBHM, o dossiê História da Mídia e Consumo, editado por Sandra Rúbia da Silva, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e João Anzanello Carrascoza, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), lança o olhar sobre esses processos, através de uma perspectiva histórica. Ao todo, recebemos mais de 20 artigos, dentre os quais foram selecionados oito pelos editores convidados.

Ao longo das duas últimas décadas, o estudo do consumo tem conquistado crescente espaço na academia brasileira. Se, por muito tempo, a produção foi considerada eixo analítico fundamental para o entendimento da sociedade, na contemporaneidade o consumo tem sido reconhecido em sua centralidade para a compreensão das dinâmicas sociais e culturais. Os artigos constantes neste dossiê, dessa forma, revelam como o consumo, antes considerado objeto de estudo pouco produtivo, pode ser investigado em profundidade através de uma ampla gama de representações, discursos, narrativas e práticas sociais, nas quais a influência da mídia não pode ser ignorada. Leia Mais

The European Union in Africa: Incoherent policies/ asymmetrical partnership/declining relevance? | Murizio Carbone

African and European affairs are intimately and historically entwined. The twentieth first century, however, has been characterized by the ascension of a relatively new player: the European Union (EU). It was not until the 1990s, with the advent of a Common Foreign and Security Policy (CFSP) and the Common Security and Defence Policy (CSDP), which were added together with more traditional external policies, such as trade and development, that the EU acquired a “proper” foreign policy dimension.

With these characteristics in mind, “The European Union in Africa”, originally released in 2013 and re-released in paperback in 2016, is a collection of papers written by different experts on the field of European studies. It is edited by Maurizio Carbone1 and endeavours to evaluate the EU’s foreign policy in Africa in the twenty-first century. The volume aims to challenge traditional views enclosed in the subtitle: “incoherent policies, asymmetrical partnership, declining relevance?”. Leia Mais

Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985) – CHOTIL (HO)

CHOTIL, Mazé Torquato. Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985). Curitiba: Prismas, 2016. 346 p. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. A história dos/as trabalhadores/as exilados/as durante a ditadura. História Oral, v. 19, n. 2, p. 207-211, jul./dez. 2016.

Muito já foi falado a respeito do exílio de brasileiros durante a ditadura (1964-1979), como se pode ver nas pesquisas realizadas por Denise Rollemberg publicadas no livro Exílio: entre raízes e radares, em que a autora busca contar o exílio a partir dos ângulos político, histórico, pessoal e emocional percorrendo os mais variados temas, como as vivências, as lutas, os conflitos, o trabalho, os estudos etc. (Rollemberg, 1999). Do mesmo modo, o livro Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX, organizado por Samantha V. Quadrat, apresenta discussões importantes a respeito das categorias e aspectos gerais dos/as exilados/as das ditaduras latino-americanas (Quadrat, 2011). Há também as pesquisas que se preocuparam em explicitar o contato das mulheres exiladas com o feminismo, os ambientes de debates feministas (círculos) que emergiram no exterior e a reformulação da esquerda (Abreu, 2010; Back; 2013; Pedro; Wolff, 2007).

Mas uma questão que merecia uma adequada atenção e ainda se encontrava um tanto escondida era a partida, a inserção e o retorno de exilados/as das camadas populares. Como pode ser visto nas obras supracitadas, a grande maioria dos/as exilados/as políticos/as da ditadura eram provenientes das camadas médias que viviam em grandes centros urbanos do país como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte. No entanto, ao se concentrar somente nos sujeitos das camadas médias, a escrita da história exilar sempre negligenciou as experiências daqueles que não tinham tais condições.

Mazé Torquato Chotil, ao realizar a sua pesquisa de pós-doutorado e publicar a sua produção, com o título Trabalhadores exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), tirou da invisibilidade as situações dos sujeitos trabalhadores provenientes das camadas populares que deixaram o Brasil durante o período, muitas vezes em condições muito mais precárias do que os sujeitos estudados até o momento dessa publicação. A autora esclarece que, entre os/as exilados/as, os/as trabalhadores/as estavam em muito menor número que intelectuais e estudantes de classe média; no entanto, mesmo se tratando de uma pequena parte, a análise das trajetórias e o levantamento das vivências dos/as exilados/as trabalhadores/as são de suma importância para uma escrita da história dos sujeitos com esse perfil e dos movimentos sindicais aos quais estavam vinculados.

Ao longo dos três capítulos, Trabalhadores exilados apresenta as várias facetas (com seus aspectos negativos e positivos) vivenciadas por aqueles sujeitos que não possuíam certo capital cultural e econômico. Para a análise, a autora utilizou-se de um vasto levantamento de fontes; entre as principais, entrevistas, livros de memórias (como aqueles do projeto Memórias do exílio1) e listas de banidos. Com esse inventário, foi possível verificar o perfil desses indivíduos, os tipos de exílio que tiveram e as principais características de suas experiências.

Juntamente com a obra resenhada aqui, as pesquisas citadas no início deste texto são devedoras de uma explosão de memórias, escritas no período de exílio ou ao longo dos anos 1980 e 1990. Autobiografias, livros de memórias e entrevistas construídas com base nas teorias e metodologias da história oral se tornaram as principais fontes para as pesquisas acerca do exílio, sobretudo porque possibilitaram perceber como as pessoas que o viveram registraram seu cotidiano, exteriorizaram suas experiências sobre o período e inventaram/construíram a si mesmas.

A partir dessas fontes, Mazé T. Chotil leva em consideração, para a estrutura de sua análise, o antes, o durante e o depois do exílio. Assim, ela pensou de maneira completa o fenômeno social do exílio e as trajetórias dos sujeitos. Dessa forma, no primeiro capítulo a autora caracteriza o perfil dos grupos de exilados/as antes da partida. No segundo capítulo, apresenta o exílio, com os lugares de destino, as inserções, as militâncias, as formações (linguísticas e universitárias), as experiências afetivas etc. O último capítulo se dedica ao retorno e à reintegração desses sujeitos no Brasil, bem como às suas contribuições aos movimentos sindicais.

Ao realizar a sua pesquisa, Mazé T. Chotil produziu um quadro comparativo entre a condição socioeconômica que cada exilado/a tinha ao deixar o Brasil e a que alcançou ao se estabelecer no país de acolhida. Essa dimensão, muito bem levantada pela autora, foi relacionada às dificuldades da viagem, aos lugares de destino, ao trabalho (antes, durante e depois do exílio), à militância política no exterior, ao aprendizado e à formação acadêmica, entre outras questões. Além disso, com o livro é possível visualizar a importância do capital cultural, principalmente no que diz respeito ao conhecimento de uma língua estrangeira, de que os setores médios dispunham e as camadas populares não. Esse último aspecto foi muito relevante para a inserção inicial desses sujeitos nos lugares de destino.

No entanto, o grande mérito do livro encontra-se na análise da articulação e da influência que os exilados tiveram no convívio com organizações sindicais no exterior. Ao levantar essa questão, a autora apresenta o importante papel que teve, para a história do sindicalismo brasileiro, a circulação de ideias e o contato com organizações sindicais de outros países. Ela também aborda a militância que vários desses sujeitos exerceram e suas articulações com as organizações brasileiras desempenhadas durante no exílio. Por isso, além de tirar da invisibilidade os trabalhadores exilados, a autora amplia as discussões sobre o exílio, dando uma nova (e importante) dimensão às experiências vividas no período.

O único demérito que pode ser encontrado nessa pesquisa está ligado a algumas ausências: a primeira delas é a de uma lista completa – como anexo, talvez – dos nomes dos sujeitos que pertenciam ao grupo dos/as exilados/as.

A segunda está relacionada a informações mais detalhadas acerca das fontes das quais foram retiradas certas informações. Muitas vezes, a autora acaba não citando suas fontes, o que deixa lacunas ao/à leitor/a especializado/a que busque extrair de sua pesquisa as informações necessárias para uma investigação futura. Uma dessas situações se dá já no início da obra, quando deixa de explicitar as fontes relacionadas ao projeto Memórias do exílio às quais teve acesso.

Uma ausência pertinente também diz respeito às análises ligadas ao gênero. No segundo capítulo, ao desenhar o perfil dos/as exilados/as, Mazé T. Chotil apresenta uma importante referência: 23% dos “seus” analisados eram mulheres. No entanto, nos capítulos restantes, nos quais analisa principalmente as inserções e as militâncias, a autora esquece-se de relacionar de maneira interseccional o gênero, as camadas populares e as distintas inserções.

Certamente, ser mulher, militante de esquerda e banida era muito diferente de ser homem, militante de esquerda e banido, o que resultou, obviamente, em processos de inserção diferentes. Um exemplo se encontra na omissão de análise sobre a ausência de mulheres narrando suas experiências ligadas ao movimento sindical.

Embora tenham sido sentidas algumas ausências, de um modo geral Mazé T. Chotil realizou um excelente trabalho, abrindo caminho para inúmeras outras pesquisas e questões que ainda precisam ser respondidas a respeito do exílio de trabalhadores/as durante a ditadura brasileira (1964-1985).

Nesse sentido, além de dar visibilidade aos/às trabalhadores/as e de narrar as experiências desses sujeitos, a autora deixa um amplo corpo bibliográfico e documental para os futuros questionamentos que ainda devem emergir sobre a temática.

Referências

ABREU, Maira L. G. de. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. 2010. 245 p. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Unicamp, Campinas, SP, 2010.

BACK, Lilian. A Seção Feminina do PCB no exílio: debates entre o comunismo e o feminismo (1974-1979). 214 p. Dissertação (Mestrado em História) – UFSC, Florianópolis, SC, 2013.

PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe. Nosotras e o Círculo de Mulheres Brasileiras: feminismo tropical em Paris. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, p. 55-69, jun. 2007.

QUADRAT, Samantha V. (Org.). Caminhos cruzados: história e memória dos exílios latino- -americanos no século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Niterói: Record, 1999.

ROSALEN, Eloisa. Das muitas memórias dos exílios: uma leitura analítica dos livros Memórias do Exílio e Memórias das Mulheres do Exílio. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 28, 2015, Florianópolis. Anais eletrônicos… p. 1-15. Disponível em: <http:// www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1438608862_ARQUIVO_AnpuhNacional EloisaRosalen.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2016.

1 O projeto Memórias do exílio resultou nos livros Memórias do exílio e Memórias das mulheres do exílio, que buscavam publicar memórias de sujeitos exilados durante a ditadura brasileira. Trata-se de uma das primeiras coletâneas a trazer memórias dos/as exilados/as. Na primeira obra, de 1978, muitas memórias de homens foram publicadas, o que criou uma insatisfação entre as mulheres exiladas. Nesse sentido, no ano de 1980 (com memórias recolhidas ainda antes da Anistia, em 1979), foi lançado um segundo volume, dedicado somente às mulheres (para dar visibilidade às experiências exilares delas). Além da característica geral de divulgar memórias do exílio, a segunda obra foi organizada pelo Grupo de Mulheres Brasileiras de Lisboa, que tinha conotações feministas (Rosalen, 2015).

Eloisa Rosalen – Mestra em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: eloisa rosalen@hotmail.com.

História oral e arte – SANTHIAGO (HO)

SANTHIAGO, Ricardo (Org.). História oral e arte: narração e criatividade. São Paulo: Letra e Voz, 2016. 186 p. Resenha de: LIMA, Gabriel Amato Bruno de. Por uma história da arte e dos artistas com a história oral. História Oral, v. 19, n. 2, p. 213-216, jul./dez. 2016.

Certa vez, ao debater num curso de história oral a questão do retorno aos entrevistados, a colega com quem eu dividia a regência das aulas admitiu um impasse. Por entrevistar artistas, em especial “homens de teatro”, ela disse ter dificuldades em pensar formas de retornar aos entrevistados os resultados de suas pesquisas. Os textos acadêmicos, com suas exigências de linguagem e formato, pareciam a ela insuficientes, pois dramaturgos ou atrizes estão habituados a se relacionar com o mundo de forma inventiva. Restava a dúvida: como dizer aos entrevistados sobre a importância de suas contribuições? Pesquisando mais sobre as investigações que elegem a arte como tema e as entrevistas como método, descobri que há ao menos mais um pormenor no campo – desta vez, teórico. Ao resenhar livros sobre o tema, Elisabeth Stevens identificou um paradoxo das “entrevistas com e sobre artistas”.

Segundo a autora, elas “requerem que pessoas que escolheram meios não verbais para se expressar ainda assim expliquem a si mesmas, ou sejam explicadas, com palavras” (Stevens, 1990, p. 111, tradução livre). A própria decisão de entrevistar artistas já traria questões de fundo para o pesquisador: como não se limitar à busca por traduzir arte em narrativas de história oral? Como evitar o discurso pronto daqueles que criam narrativas públicas sobre si? Essas breves considerações sugerem a importância da coletânea História oral e arte: narração e criatividade, editada em 2016 pela Letra e Voz.

Pelo título, o leitor familiarizado com os debates da metodologia poderia intuir se tratar de novo capítulo da discussão acerca do estatuto epistemológico da história oral – se técnica, metodologia, disciplina ou arte. Mas não é nem à reivindicação da história oral como “arte multivocal” (Portelli, 2010), nem ao tratamento literário das entrevistas – a “transcriação” (Meihy, 2005, p. 195-203) – que o livro dedica sua atenção. Os textos de História oral e arte direcionam seus esforços para a afirmação de uma agenda de pesquisas em torno da produção, circulação e recepção dos trabalhos de músicos, artistas cênicos, pintores, escultores, arquitetos, literatos e cineastas (isso para nos limitarmos à enumeração das sete artes).

Organizado por Ricardo Santhiago, o livro é parte da coleção História Oral e Dimensões do Público, dirigida por Juniele Rabêlo de Almeida. Sua proposta editorial é uma relativização do diagnóstico elaborado pelo organizador três anos antes, segundo o qual “se não faltam profissionais que empregam o método da entrevista […] na abordagem das artes, poucos são os que engatam nesses estudos todo o lastro teórico e conceitual” da história oral (Santhiago, 2013, p. 166). Como indicam os oito artigos do livro, “só faltava abrir o jarro, parece, para que perspectivas instigantes sobre a relação entre história oral e as artes tivessem sua dimensão evidenciada” (p. 8). E, de fato, a leitura de História oral e arte ajuda a compor uma problematização dos usos possíveis dessa metodologia em pesquisas sobre o mundo artístico.

Um primeiro conjunto de estudos do livro se dedica à reflexão sobre o sujeito. Em Inovação e criatividade: a história de Dona Isabel Mendes, das panelas de barro às bonecas de cerâmica, Karen Worcman analisa a narrativa de uma ceramista cujo ofício foi reconhecido como arte pelo mercado. Segundo Worcman, a entrevista com Isabel evidencia como “um indivíduo alia seus desejos pessoais à tradição, destacando-se em sua criatividade e empreendedorismo ao ser estimulado por seu próprio contexto” (p. 22). Seu argumento indica um movimento de deslocamento de análise em história oral: das memórias coletivas às formas como sujeitos elaboram processos de recordação.

Em sentido análogo, está Tudo que o tempo deixou: as continuidades e rupturas da história bossanovista através da memória de Alaíde Costa, de Daniel Lopes Saraiva. O autor argumenta que a história oficial da bossa nova silencia os conflitos (inclusive de memória) entre os bossanovistas. Ela também invisibiliza a atuação de Alaíde Costa, uma “cantora negra, vinda do subúrbio carioca, que já era profissional à época quando a bossa nova surgiu” (p. 58). Sua memória, portanto, adiciona importantes nuances às narrativas sobre o movimento.

O enfoque nos sujeitos-artistas está presente também em O menino João das Neves: reminiscências de um amante da arte, de Miriam Hermeto e Natália Batista. Explorando a articulação entre experiência e expectativa na entrevista com o dramaturgo, as autoras identificam na memória de João das Neves os “múltiplos meninos-João, que se configuram temporalmente e constituem uma personalidade singular do velho-João” (p. 134). Outra característica instigante do trabalho são as considerações sobre a relação que se estabeleceu com João ao longo das entrevistas, que nos ajudam a localizar as subjetividades em jogo na produção de uma “história de vida”.

Um segundo grupo de textos questiona as coletividades e a construção de identidades. Em Circuitos operacionais das artes: memórias em torno da profissionalização dos artistas plásticos em Pernambuco nos anos 1960, José Bezerra de Brito Neto trata de uma entidade de artistas, concatenando memórias que formam um quadro de lembranças sobre identidades profissionais. O objetivo do autor é “analisar as fábricas políticas e culturais do status profissional no campo das artes plásticas de Pernambuco, na década de 1960” (p. 37), ainda que a especificidade da política cultural sob um Estado autoritário seja apenas apontada no trabalho. Também Haroldo Rezende, em Kukukaya: um grito de amor, um grito de dor, lida com questões identitárias ao analisar o circuito de apropriações de uma canção de Cátia de França. O autor observa que uma geração de músicos nordestinos dos anos 1970 criou uma rede de significados da memória, que é “refundada a cada execução, a cada gravação, a cada interpretação” da canção (p. 98).

Dayse Perelmutter, em A história oral como laboratório de sensibilização estética: memórias e marcas de artistas brasileiros de ascendência judaica, também se questiona sobre a identidade de artistas. A autora analisa “a maneira como o legado judaico foi transmitido e inscrito e a intensidade de sua reverberação na sensibilidade contemporânea de cada um” dos seus entrevistados (p. 107). Apesar do predomínio de debates teóricos, o texto é concluído com uma análise de depoimentos de artistas que articulam o par identidade/diferença em suas narrativas de história oral.

Por fim, dois textos trazem reflexões teóricas a partir da percepção da história oral como “prática reflexiva” (p. 9). Em História oral e história da arte: aproximações, Eduardo Veras analisa a produção de entrevistas com artistas e a fecundidade de questões próprias da história oral. Problematizar a “condição a posteriori das entrevistas” e “questionar a absolutização dos demais documentos de processo” criativo são, para o autor, contribuições da metodologia, em especial quando se considera “as entrevistas no contexto maior da longa tradição de convívio entre textos e obras de arte” (p. 146- 147). Ricardo Santhiago encerra a coletânea com A pergunta que não se faz: algumas ideias sobre história oral e canção. O ensaio levanta a possibilidade de se tratar canções como história oral, concluindo que “é o casamento entre ambas que pode promover uma compreensão mais profunda de determinado fenômeno, aliando a subjetividade narrativa e a subjetividade artística” (p. 168).

Em seu conjunto, os artigos de História oral e arte indicam possibilidades para pensarmos a história oral e o campo artístico a partir das ambiguidades dos sujeitos, das identidades profissionais e da análise dos produtos culturais e das narrativas sobre eles. Problemáticas peculiares costumam aparecer quando lidamos com grupos sociais diferentes em história oral – e não é diferente com os artistas. Evidenciá-las em pesquisas temáticas enriquece os debates, permitindo revisões de nossa prática e o alargamento de nosso repertório teórico – tarefa que o livro cumpre com êxito.

Referências

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral, v. 16, n. 1, p. 155-187, jan./jun. 2013. Disponível em: <http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=view&path%5B%5D=278&path%5B %5D=309>. Acesso em: 3 set. 2016.

STEVENS, Elisabeth. Art, artists, and oral history. Oral History Review, v. 18, n. 1, p. 111- 115, primavera 1990.

Gabriel Amato Bruno de Lima –Mestre em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Núcleo de História Oral da mesma universidade. E-mail: amatolgabriel@gmail.com.

 

 

 

 

O homem que amava os cachorros | Leonardo Padura

O livro de Leonardo Padura é uma daquelas obras de ficção que tem o poder de apequenar o historiador/leitor, pela sua narrativa de tirar o fôlego. Só mesmo uma obra despretensiosa quanto à História ciência poderia navegar tão livremente pelos personagens e contextos históricos. A narrativa, todavia, prende o leitor justamente pelo que traz de história e pelo respeito à história acontecimento, a história dos personagens entrelaçada no contexto em que se encontravam.

O respeito à história é garantido no que para o historiador é algo fundamental: no trato com as fontes bibliográficas e documentais, algo que consumiu do autor mais de cinco anos de trabalho, a colaboração de diversas pessoas em Cuba, no México, na Espanha, na Rússia, na França, na Dinamarca, no Canadá e na Inglaterra. Isso garantiu – conforme Padura em nota de agradecimento ao final do livro – a “fidelidade possível (…) aos episódios e à cronologia da vida de Leon Trotski” e uma “presença esmagadora da história em cada uma de suas páginas” (p.587), mesmo tratando-se de um romance. Leia Mais

Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII | Ronald RAminelli

A obra de Ronald Raminelli ajuda a entender um pouco mais o universo da América portuguesa e espanhola. Tecendo seu livro em duas partes, Raminellli apresenta discussões acerca da heterogeneidade das nobrezas do Antigo Regime, ou seja, o estamento nobre da sociedade em que, de acordo com o autor, exibe distinções e aproximações entre Metrópole e Colônia. Isto se dá, especialmente quando Raminelli analisa o envolvimento de chefes indígenas e negros frente às Ordenanças Militares, comparando, entre outros pontos, a percepção nobiliárquica de enobrecidos hispânicos coloniais e enobrecidos portugueses da Colônia.

Raminelli nessa obra apresenta um balanço historiográfico da pesquisa dos enobrecidos das possessões americanas, e em suas considerações reflete acerca de crioulos e mazombos, os quais almejam ingressar no estamento nobiliárquico da sociedade hispânica, em especial na hierarquia nobre do Vice-reino de Peru e Vice-reino da Nova Espanha. Quanto à América portuguesa, o autor intenta estudar os índios e mulatos e suas tentativas de obter, por meio de algumas guerras entre Portugal e Holanda no litoral colonial, algumas ascensões sociais e possíveis privilégios das ordenações. Leia Mais