A guerra não tem rosto de mulher | Svetlana Aleksiévitch

A primeira versão do livro da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch foi publicada em sua língua original na década de 1980 e, no Brasil, em 2016. A publicação brasileira foi, muito provavelmente, uma pronta resposta de nosso mercado editorial ao potencial de vendas atrelado a uma autora agraciada com o Prêmio Nobel, que Svetlana recebera em 2015: com o selo no Nobel estampado na capa, o livro percorreu, rapidamente, as livrarias do país e tornou-se um objeto de interesse para quem pouco (ou nada) sabia sobre a participação feminina na Segunda Guerra Mundial. “A Guerra não tem rosto de mulher” reúne, ao longo de seus dezessete capítulos, relatos de mulheres soviéticas que participaram dos teatros de operação contra a Alemanha Nazista. Trata-se de uma antologia polifônica, construída ao longo de um périplo no qual Svetlana percorreu mais de cem cidades da então União Soviética. Embora seja uma obra que atingiu o grande público, está longe de apresentar uma análise superficial sobre a Segunda Guerra. Pelo contrário, o livro de Aleksiévitch oferece interessantes perspectivas aos estudos das guerras, sobretudo na intersecção com os estudos de gênero. Leia Mais

História e Linguagens Artísticas / Fato & Versões / 2017

“Antes do desejo de conhecimento, o simples gosto; antes da obra de ciência, plenamente consciente de seus fins, o instinto que leva a ela […]”. (BLOCH, 2001, p. 43.) Quanto a isso, não há como discordar de Marc Bloch: nada melhor do que conciliar o trabalho intelectual ao prazer de executá-lo. Por isso, escolher como objeto de análise uma obra artística requer, sem dúvida, uma paixão; um deslumbramento acerca da capacidade dos homens de se reinventarem, de criar canais de comunicação, promovendo uma troca de sonhos, angústias, certezas e, porque não dizer, esperanças. Abre-se, portanto, diante dos pés do pesquisador, um longo caminho onde ora ele direciona, ora é direcionado pelas questões que seu objeto lhe impõe. Por isso, os artigos aqui apresentados são exemplos desse encontro entre o prazer e o trabalho acadêmico.

Sendo assim, este dossiê tem como eixo central uma proposta interdisciplinar entre História e Linguagens Artísticas, em todas as suas especificidades, levando-se em consideração a relação entre indivíduo e sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que o suporte teórico se pauta na vertente da História Cultural, a qual ampliou o campo de possibilidades de investigação, resgatando o papel dos sujeitos na construção dos processos históricos.

Partindo-se desses pressupostos, novas temáticas foram postas no seio das questões históricas. Teatro, cinema, mentalidades e literatura ganharam legitimidade, tornando-se objetos de estudo, uma vez que não há como desvincular as representações culturais das posições sociais de seus agentes. Assim, nesse campo de conhecimento mais amplo, os historiadores:

[…] desencantados com a rigidez e o economicismo de um marxismo ortodoxo, assim como rejeitando as velhas concepções positivistas de uma história factual, política e diplomática, a nova tendência passou afirmar a não existência de verdades absolutas, marcando o recuo de uma posição cientificista herdada do século passado [XIX]. Estimulando novos olhares e abordagens com a realidade, em uma e outra vertente, a história social dos anos 60 e 70 restabeleceu o ‘oficio do historiador’. Como um mestre da narrativa, este é alguém que, munido de um método, resgata da documentação empírica as ‘chaves’ para recompor o encadeamento das tramas sociais. No decorrer dos anos 80, a história social desembocou na chamada ‘nova história cultural’, que passou a lidar com novos objetos de estudo: mentalidades, valores, crenças, mitos, representações coletivas traduzidas na arte, literatura, formas institucionais. (PESAVENTO, 1995, p. 12.)

Sob esse aspecto, os objetos artísticos passam a serem vistos como representações culturais e, consequentemente, uma forma de manifestação das posições social-políticas dos grupos ligados a eles. Assim, parte-se do pressuposto de que as linguagens, tal como qualquer documento histórico, deve ser analisada como uma construção que carrega em si “[…] uma relação com os conceitos, as ideias, a visão que o artista tem do mundo, da realidade e das relações dos homens entre si e com a natureza”. (GARCIA, 1988, p. 13.)

Os estudos aqui apresentados estão circunstanciados por uma frutífera relação passado / presente, direcionada pelas inquietações do nosso tempo. Nesse processo, partese do pressuposto básico de que os objetos artísticos são pensados como documentos representativos de momentos históricos diversos, ou seja, carregam as marcas indeléveis do momento em que foram elaborados, afinal, “[…] o que entendemos efetivamente como documentos senão um ‘vestígio’, quer dizer, a marca, perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em sim mesmo impossível de captar?”. Sendo assim, como todo documento possui sua particularidade, cabe ao “historiador de ofício” respeitá-la e valorizá-la de acordo com modos específicos de leitura.

Da mesma forma, Adalberto Marson se mostra esclarecedor ao intuir que o documento:

Não é espelho da realidade, mas essencialmente representação do real, de momentos particulares da realidade; sua existência é dada no âmbito de uma prática determinada […], é um ato de poder […], um código de relação social; age no presente; e, em sendo representação, é a fala da prática e parte do real. (MARSON, 1984, p. 53.)

Por isso o documento, tal como o historiador, não é e nunca será neutro. Ele carrega todos os sentidos do passado como ele se apresenta ao sujeito histórico no momento em que ocorre, exatamente como a constituição de uma identidade que as pessoas de determinada época construíram em relação ao fato. Dessa maneira, a falta de neutralidade do documento permite, também ao pesquisador, obter a partir das suas estratégias a sua própria interpretação daquele, fazendo da História um campo repleto de possibilidades.[1]

Sob esse prisma, o encaminhamento geral, no nível teórico e temático deste dossiê, envolve preocupações com o impacto social da Arte, com o intuito de observar a intenção e a disponibilidade, por meio de quem cria, em estabelecer conexões. Dessa forma, quando remetemos ao diálogo “História e Linguagens Artísticas”, verifica-se que as opções dos diferentes artistas / obras abordados são direcionadas tanto por seus interesses estéticos, como também são permeados pelos debates que se estabeleceram na conjuntura da sua formação e / ou criação.

Acredita-se, portanto, que a Arte tem uma importante função social, possuindo a capacidade não de transformar a realidade de uma época a qual se apresenta, mas, de acordo com Fernando Peixoto, de agir “[…] diretamente sobre os homens, que são os verdadeiros agentes da vida social”. (PEIXOTO, 1981, p. 13.) Por isso, toda e qualquer linguagem artística pode ser considerada uma forma de expressão política de um determinado período.

Nesse sentido, o presente dossiê apresenta diferentes contribuições ligadas à área da História Cultural, buscando, a partir do diálogo com seus leitores, apresentar as inúmeras possibilidades de estudos possíveis, a partir do olhar especifico de cada pesquisador. Assim, parte-se do pressuposto de que a História é um campo múltiplo, que possibilita uma infinidade de abordagens e temas, bem como de perspectivas teóricometodológicas. E é justamente essa diversidade e interdisciplinaridade, bem como o rigor intelectual e interpretativo, as marcas que o leitor pode esperar dos textos que compõem o dossiê História e Linguagens Artísticas.

Abrindo os trabalhos, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito e Francimary Alzira Cavalcante analisam canções consideradas “bregas” ou “cafonas”, escritas por Amado Batista, Odair José, Reginaldo Rossi e Waldik Soriano ao longo dos anos 1970-80. Em “Eu vou tirar você desse lugar”: Amores dançantes na música “cafona” dos anos 1970 e 1980, o leitor terá a oportunidade de ser (re)apresentado, sob um novo olhar e perspectiva, à letras e melodias que fazem parte do imaginário musical brasileiro e, por vezes, consideradas por muitos como um gênero menor. A proposta dos autores é demonstrar a existência de aproximações e distanciamentos entre as composições denominadas “bregas” e as produções da chamada Música Popular Brasileira, a fim de evidenciar que ambas dialogam, cada qual à sua maneira, com determinadas temáticas que insurgem no cenário brasileiro das referidas décadas.

Posteriormente, o leitor poderá apreciar os diálogos estabelecidos entre História e Teatro através das reflexões de Leilane Aparecida Oliveira e Talitta Tatiane Martins Freitas, especialmente no aspecto que tange à recepção de textos teatrais e encenações produzidas na década de 1990 e no início dos anos 2000. Em Historicidade e análise temática – “O Devorador de Sonhos”:– ‘Oleanna’ (1992) e o mito da busca pela felicidade (o mito do capitalismo) Leilane Aparecida se propõe a analisar o dramaturgo norte-americano David Mamet, percebendo de que maneira a imagem de um “autor pessimista” é construída pelos seus críticos e biógrafos. Ao mesmo tempo, se propõe analisar algumas temáticas presentes em suas obras, especialmente em Oleanna, a fim de perceber de que maneira Mamet materializou nos palcos suas experiências, ideologias e visões acerca da sociedade estadunidense.

Já no cenário brasileiro, Talitta Freitas toma como objeto de análise a recepção teatral da peça Sete Minutos, escrita e protagonizada por Antonio Fagundes entre os anos de 2002 e 2004. No seu processo de reflexão, a autora se propõe a evidenciar os aspectos constitutivos dos textos jornalísticos publicados sobre a referida encenação, a partir de um profícuo diálogo entre os documentos elencados e a teoria da recepção. Sendo assim, em “Isso não é pra ler, não te ensinaram, não? É pra forrar gaiola de passarinho”: aspectos sobre a recepção crítica de ‘Sete Minutos’ (Antonio Fagundes, 2002-2004), o leitor não deve se prender apenas aos conteúdos da recepção, mas especialmente sobre as ferramentas analíticas utilizadas pela autora no campo da História Cultural, as quais podem servir de inspiração para outros estudos que se proponham a fazer o diálogo entre o palco e a crítica teatral.

A relação entre críticos e autor está presente também no trabalho de Thales Biguinatti Carias, todavia pelo viés da literatura. Em Como ler um cânone? ou de escritas sobre Alencar que apagam suas ambiguidades o autor faz um instigante exercício de análise do consagrado autor brasileiro José de Alencar a partir das leituras distintas de dois de seus críticos, a saber Antonio Dimas e João Roberto Faria. Ao longo do texto, são apresentadas ao leitor perspectivas e imagens concebidas a respeito do trabalho do romancista e dramaturgo oitocentista, com o objetivo de compreender de que maneira se construiu uma ideia de integridade do cânone.

Abrindo os trabalhos sobre cinema, Julierme Morais nos apresenta uma interessante discussão teórico-metodológica sobre como os filmes são elencados e pensados como objeto de estudo por diversos pesquisadores da História, bem como os desdobramentos desse diálogo no campo da Nova História Cultural. Em Os estudos históricos e os filmes: chaves teórico-metodológicas o leitor terá contato com as perspectivas de importantes pesquisadores que se propuseram refletir sobre o binômio Cinema / História, a partir de analises cinematográficas e de cunho teórico, especialmente à luz de conceitos como representação, recepção cinematográfica e memória.

Fechando os trabalhos, Grace Campos Costa nos apresenta uma reflexão sobre a relação existente entre a moda e o cinema, mostrando-nos a existência de um intrínseco diálogo entre essas diferentes áreas de atuação. Assim, em Discussões entre cinema e moda: da alta-costura ao prêt-à-porter, o leitor poderá acompanhar a análise de diversos filmes que incorporam a indumentária não apenas como figurino das personagens, mas como eixo norteador de suas narrativas. O leitor se surpreenderá com as possibilidades de diálogos possíveis entre as películas cinematográficas e as tendências de vestuário, percebendo como há um processo de retroalimentação entre essas distintas áreas ou, em outros termos, como a moda influência a construção dos filmes, bem como eles influenciam a sociedade na maneira de se vestir.

Sendo assim, convido a todos para desfrutar dessa proposta de enlace entre a História e o campo das Linguagens Artísticas, percebendo a riqueza de possibilidades que esse dialogo interdisciplinar pode propiciar. Tenham todos, uma boa leitura!

Nota

1. Sobre o assunto, conferir: VESENTINI, 1997; e CERTEAU, 2002.

Referências

BLOCH, M. A observação histórica. In: ______. Apologia da história ou o oficio do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.

CERTEAU, M. de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

GARCIA, S. Teorias e práticas do teatro. São Paulo: Hucitec, 1988.

MARSON, A. Reflexões Sobre o Procedimento Histórico. In: Repensando a História. São Paulo: Marco Zero, 1984.

PEIXOTO, F. O que é Teatro? In: ______. O que é Teatro. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra História: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 29, p. 9-27, 1995.

VESENTINI, C. A teia do fato. São Paulo: Hucitec, 1997

Leilane Aparecida Oliveira – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Integrante do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura.


OLIVEIRA, Leilane Aparecida. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Paidéi@. Santos, v.9, n.15, 2017.

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Paidéi@. Santos, v.9, n.16, 2017.

Editorial

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Como pode um povo vivo viver nesta carestia: o movimento do custo de vida em São Paulo (1973-1982) | Thiago Nunes Monteiro

A emergência dos movimentos sociais diversos e de grande vitalidade é uma das dimensões históricas centrais da conjuntura das lutas de resistência à ditadura civil-militar e de redemocratização do país. Em um ambiente de efervescência, o período registra uma grande diversidade de movimentos e práticas urbanas que se configuram como dimensão fundamental do tecido político e social daquele tempo. Leia Mais

A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo | Demian Bezerra de Melo

Publicado em 2014, o livro organizado pelo historiador Demian Melo tem um título bastante sugestivo que nos faz lembrar, pelo menos, de duas grandes obras inseridas dentro do pensamento crítico: A miséria da filosofia, de Karl Marx (MARX, 2009), publicada originalmente em 1847, contra as formulações do socialista utópico Pierre-Joseph Proudhon, que não se baseava na luta de classes enquanto uma forma de transformação social; e a Miséria da Teoria, de Edward P. Thompson (THOMPSON, 1981), publicada em 1978, contra o teoricismo mecânico e, até mesmo, abstrato do filósofo marxista Louis Althusser. Leia Mais

Tiempo Histórico. Santiago, n.14, 2017.

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Tiempo Histórico. Santiago, n.13, 2016.

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Tiempo Histórico. Santiago, n.15, 2017.

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História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários | Ana Maria Mauad, Juniele Rabêlo de Almeida, Ricardo Santhiago

A tentativa de compreensão e a elaboração da noção de “História Pública” são dois movimentos recentes dentro do campo historiográfico brasileiro, o que, no entanto, não significa que tal debate esteja ausente de outras iniciativas que tangenciam a construção do conhecimento histórico ao longo do tempo produzido no país – inclusive aquelas encabeçadas por sujeitos que não são institucionalmente reconhecidos como historiadores. O livro História Pública no Brasil: Sentidos e itinerários lançado recentemente, no ano de 2016, segue este percurso que busca trazer à cena a reflexão da história e seus inúmeros públicos – considerando também a multiplicidade de significados desse último termo. Já na apresentação da obra é evidente o desejo de fugir de uma simplificação do que seria a História Pública, buscando assim constituir um campo de estudos que permita desenvolver esta concepção, inclusive, assumindo a sua multi e interdisciplinaridade. Leia Mais

Embornal. Fortaleza, v.8, n.15, 2017.

QUESTÃO AGRÁRIA

ARTIGOS

Trabalhismo, populismo e democracia na América latina / Canoa do Tempo / 2017

Diante de um quadro político marcado pelo avanço de uma onda conservadora e por sucessivos ataques à democracia, não apenas no Brasil, mas também pelo mundo afora, propusemos um dossiê intitulado “Trabalhismo, Populismo e Democracia na América Latina”. O objetivo central foi buscar subsídios para compreender a conjuntura política atual e a crise radical das instituições democráticas brasileiras, fazendo uma reflexão sobre os fenômenos do Populismo e do Trabalhismo bem como sobre as experiências democráticas nesses países.

Para iniciar essa discussão, apresentamos o artigo A flexibilização da legislação trabalhista brasileira: a redução dos direitos garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho ao longo do tempo, de Alisson Droppa. Nesse trabalho, o autor busca fazer uma relação entre as modificações ocorridas na Consolidação das Leis do Trabalho a partir do golpe civil-militar de 1964, apresentadas como uma “primeira onda liberal” e a atual investida sobre a legislação trabalhista e a nova onda de ataques sobre os direitos sociais.

Em Da harmonia ao conflito: a Delegacia Regional do Trabalho em Alagoas (1956- 1959), Anderson Vieira Moura se propõe a analisar atuação de Edson Falcão na Delegacia Regional do Trabalho (DRT) em Alagoas, destacando os conflitos e disputas que acabaram acarretando um desgaste de sua figura junto com os O autor faz uso de vasta documentação, utilizando de atas sindicais, reportagens de jornais, processos trabalhistas e até uma entrevista feita com seu primogênito.

Amaury Oliveira Pio Jr busca discutir as relações políticas que se desenvolvem no estado do Amazonas a partir da implantação da Revolução de 30 e do novo modelo sindical proposto por Getúlio Vargas. Para isso, analisa o periódico Tribuna Popular, jornal inicialmente vinculado ao Partido Trabalhista Amazonense (PTA) e que representava um importante veículo de divulgação do projeto varguista no estado. No artigo Jornal Tribuna Popular e a construção de um ideário “proto-trabalhista” no Amazonas, o autor percebe o surgimento de uma proposta trabalhista em um estágio embrionário já na década de 30 no estado.

No artigo Conflitos, solidariedade e formação de classe – “nacionais” e estrangeiros nos primórdios da mineração de carvão do Brasil (1850-1950), Clarice Speranza analisa as relações entre trabalhadores brasileiros e imigrantes na construção nas minas de carvão do Sul do Brasil. Discutindo o processo de migração e sua importância para o o desenvolvimento das minas de carvão, destaca ainda a resistência desses trabalhadores, suas formas de organização e a tensão percebida entre uma identidade de ofício calcada na coesão e na solidariedade e a existência de espaços de segregação entre os trabalhadores.

Cremos que esse seja um momento extremamente apropriado para discutir temas como as investidas sobre a legislação trabalhista, os ataques sobre os direitos sociais e as estrategias de resistência e organização dos trabalhadores. Que a leitura dos artigos do dossiê possa contribuir para o debate e a reflexão sobre o tema. Agradecendo a excelente contribuição dos autores, desejamos uma boa leitura.

César Augusto Bubolz Queirós – Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: cesardequeiros@gmail.com

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Liberalismo: intelectuais e instituições no Brasil / Faces de Clio / 2017

A 5ª edição da revista Faces de Clio, publicação discente vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, possui como dossiê temático Liberalismo: intelectuais e instituições no Brasil. Congrega-se, nesta publicação, pesquisadores que trabalham o arcabouço político e ideológico liberal em diversas variantes e diferentes contextos históricos. A proposta é pensar formas de atuação de intelectuais que compartilharam desse aporte ideológico, bem como a aplicação dessas ideias em instituições brasileiras.

Contamos, nesta publicação, com a colaboração de doutores, doutorandos e mestres, formados em diferentes universidades do país nos cursos de História, Ciência Política e Artes Cênicas, o que demonstra a interação e divulgação do conhecimento que perpassa a revista. Formam o dossiê três artigos que se referem ao contexto do século XIX, e três que tratam do século XX. Há, também, quatro artigos livres.

Frederico Antônio Ferreira analisa a atuação do consulado brasileiro em Luanda entre as décadas de 1850 e 1860, no combate ao tráfico de pessoas escravizadas com vistas à construção de um Brasil “civilizado”. Outro estudo sobre escravidão no século XIX é o artigo de Wender Souza, que compreende a chamada “acomodação de ideias” no Brasil, pensando, dessa forma, as ideias econômicas liberais e a forma segundo a qual essas ideias refletiram nos assuntos políticos, especificamente no que se refere à instituição da escravidão.

Ainda sobre o oitocentos, contamos com o artigo de Estevão de Melo Marcondes Luz, que analisa o periódico O Homem Social, publicado na cidade de Mariana, entre os anos de 1832 e 1833. O livro é um material importante para a compreensão de diversas manifestações liberais no Brasil do século XIX, como a liberdade de imprensa e a construção de uma esfera pública.

Sobre o século XX, contamos com o artigo de Camila Oliveira do Valle. Ela aborda os “Três Poderes”, de acordo com autores como John Locke, Montesquieu, Hamilton, Madison e Jay, sob a ideia de que houve combinação de poderes – que interagem entre si – influenciando a concepção da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Juliana Martins Alves, por sua vez, trabalha o Manifesto Mineiro de 1943 como um documento representativo do fracionamento das elites no Brasil nesse contexto histórico, diante das discussões sobre o Estado autoritário-corporativo e sobre o projeto político do Estado Novo.

Ademais, há o trabalho de Lívia Freitas Pinto Silva Soares, no qual a autora analisa as propostas e os diagnósticos dos agentes que organizaram e geriram a assistência social na cidade do Rio de Janeiro, com o propósito de recuperar os modelos institucionais de amparo social e avaliar as práticas médico-assistenciais que se destacaram durante os primeiros anos do século XX no Brasil.

Esta edição também contempla trabalhos que não se referem à temática do dossiê, e que estão classificados como artigos livres. Nessa seção, a pesquisadora Camila Silva Gonçalves Figueiredo analisa, em seu artigo, o processo de monitoramento realizado pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), instituição de caráter estatal que controlava, entre outros elementos, os movimentos políticos de esquerda no país. Por meio dessa análise, a pesquisadora apresenta uma visão do Estado sobre esses investigados.

Emilla Grizende Garcia aborda, em seu trabalho, aspectos teórico-metodológicos presentes na telenovela O Bem Amado, veiculada pela Rede Globo de Televisão, considerando a potencialidade desse produto cultural como fonte histórica de destacada importância. Como exemplo, têm-se a possibilidade de conhecimento sobre contextos políticos e culturais brasileiros.

Gustavo Oliveira Fonseca busca compreender o desenvolvimento da malha urbana na vila de São Bento do Tamanduá (atualmente conhecida como Itapecerica, Minas Gerais) entre os séculos XVIII e XIX. Para isso, analisa registros administrativos produzidos pelas atividades da Igreja Católica, além de outras instituições, como as associações devocionais leigas. Thiago Herzog analisa a obra Panorama do Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi, para compreender relações de força e poder presentes nesse campo da dramaturgia, como estratégias, disputas, entre outros fatores.

Agradecemos imensamente pela equipe multidisciplinar, formada por colegas dedicados e competentes em suas atribuições, que contribuiu para que esta edição fosse publicada.

Agradecemos, também, aos pesquisadores que confiaram seus trabalhos à revista, promovendo a divulgação científica no meio acadêmico.

Ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora, nosso agradecimento pelo apoio e divulgação.

Boa leitura a todos!

Janeiro de 2017

Leonardo Bassoli

Angelo Flavia Salles Ferro


BASSOLI, Leonardo; FERRO, Angelo Flavia Salles. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.3, n.5, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX / História (Unesp) / 2017

O passado esquecido e o presente trágico

O presente número da revista História (São Paulo) está constituído por dois dossiês, vários artigos livres e resenhas de importância inequívoca para o enriquecimento da discussão historiográfica do Brasil e também no âmbito internacional.

O dossiê 1, foi organizado pelo professor Paulo Gonçalves da UNESP – Campus de Assis, sobre o título Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX. É evidente a atualidade do fenômeno migratório, cada vez mais desafiador, dos grandes deslocamentos populacionais, vítimas de graves crises econômicas, guerras ou genocídio étnico em seus países. Não é preciso retroceder aos horrores do genocídio étnico realizado pelo Império Turco Otomano aos armênios ocorrido durante a Primeira Grande Guerra e nem mesmo ao massacre de Ruanda ocorrido em 1994 (PRUNER, 1999) ou ao holocausto ocorrido na Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Basta atentarmos para o conflito interno da Síria iniciado em 2011 que tem gerado uma enorme onda migratória de sírios e árabes, sem paralelo na história do Continente, desde a Segunda Guerra Mundial. Ou para o genocídio étnico dos rohingya em Myanmar, país budista liderado pela Nobel da Paz Suu Kyi que se escancara aos olhos dos organismos internacionais sem que nada de significativo aconteça. O presente dossiê propõe uma volta ao passado, discutindo os movimentos migratórios dos séculos XIX e XX com vistas à compreensão das catástrofes que estamos vivendo no século XXI. O passado tem que ser sempre lembrado para que os dramas contemporâneos não se transformem em banalidades que não afetam a sensibilidade dos governos, dos organismos internacionais e de nós mesmos. É assim que entendemos Hobsbawm quando diz que o ofício dos historiadores é cada vez mais importante, pois cabe a ele lembrar o que os outros esquecem (HOBSBAWM, p. 13).

É sob esta perspectiva que foram reunidos aqui artigos que discutem diferentes aspectos de grupos e indivíduos e suas experiências no plano das migrações transoceânicas. Os artigos aqui elencados evocam temas bastante atuais de investigação através enfoques teóricos e metodológicos diversos. Aqui são tratados temas relativos às desesperanças e frustrações de imigrantes das mais diversas partes do mundo ao chegarem ao Brasil e em outros países, e constatarem que nada do que lhes foi prometido era realidade. Em suas sociedades de adoção tiveram que se submeter à condição de trabalhadores semelhantes aos escravos africanos, enfrentando preconceitos e imensas dificuldades de inserção social. O tráfico de mulheres brancas para fins de prostituição também compõe este quadro de degradação humana. Um dos artigos aqui apresentado discute tal fenômeno delimitando o espaço temporal de fins do século XIX a inícios do século XX, mas sua autora adverte que experiências dessa natureza não se encerram no passado, mas se fazem sempre presente nos deslocamentos de massa que caracterizam a época contemporânea.

O professor André Figueiredo Rodrigues, da UNESP – Campus de Assis e o professor Germán A. de la Reza, da Universidade Autônoma Metropolitana do México foram os organizadores do dossiê 2, que abrigou artigos abordando o tema Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX). A temática proposta pelo dossiê atraiu a atenção de estudiosos nacionais e internacionais que abordam o assunto sob os mais variados aspectos. Recebemos artigos sobre a história, a posse de livros e as práticas de leitura no mundo Ibero-Americano que circularam nos dois lados do Atlântico e mesmo dentro do continente americano entre os séculos XVI e XIX.

A materialidade e a discursividade de autores e suas obras, acervos bibliográficos e documentais, a historiografia do livro no universo colonial, hábitos de leitura e informações e discussões sobre as fontes disponíveis foram alguns dos temas explorados pelos artigos publicados no dossiê. Ressalte-se a discussão sobre a metodologia de análise e interpretação de fontes documentais sobre os participantes do Movimento da Inconfidência Mineira e da Insurreição Pernambucana de 1817, desenvolvidas em seus artigos pelos professores André Figueiredo e Luiz Carlos Villalta,respectivamente. Mas estes são apenas dois exemplos dos trabalhos que discutiram com densidade e profundidade a proposta do dossiê.

Enfim, nas leituras dos artigos do dossiê 2 podemos encontrar discussões instigantes a respeito das práticas de leituras em suas diversas modalidades, ou seja, podemos constatar uma coleção indefinida de experiências de leitura enquanto liberdade interpretativa e enquanto prática criativa autônoma dos indivíduos (CHARTIER, p. 121-139).

Por fim, os artigos livres publicados por esta revista neste número são variados em seus tratos teóricos, metodológicos e temáticos. Deixamos aos leitores fazer sua própria apreciação ao invés de falarmos sobre cada um deles.

Queremos tributar nossos sinceros agradecimentos aos professores que organizaram os dossiês, aos pareceristas que não hesitaram em dar suas contribuições para que a revista preserve a boa qualidade oferecida aos leitores e aos autores que deram preferência à revista História (São Paulo) para a divulgação de seus trabalhos.

Referências

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. [ Links ]

PRUNER, Gérard. The Rwanda Crisis History of a Genocide. 2. Ed. Kamplala Fountain Publishers Limited, 1999. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ]

José Carlos Barreiro 

Ricardo Alexandre Ferreira

Editores 


BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação [O passado esquecido e o presente trágico]. História (São Paulo), Franca, v.36, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX) / História (Unesp) / 2017

O passado esquecido e o presente trágico

O presente número da revista História (São Paulo) está constituído por dois dossiês, vários artigos livres e resenhas de importância inequívoca para o enriquecimento da discussão historiográfica do Brasil e também no âmbito internacional.

O dossiê 1, foi organizado pelo professor Paulo Gonçalves da UNESP – Campus de Assis, sobre o título Movimentos migratórios no mundo Atlântico, séculos XIX e XX. É evidente a atualidade do fenômeno migratório, cada vez mais desafiador, dos grandes deslocamentos populacionais, vítimas de graves crises econômicas, guerras ou genocídio étnico em seus países. Não é preciso retroceder aos horrores do genocídio étnico realizado pelo Império Turco Otomano aos armênios ocorrido durante a Primeira Grande Guerra e nem mesmo ao massacre de Ruanda ocorrido em 1994 (PRUNER, 1999) ou ao holocausto ocorrido na Alemanha Nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Basta atentarmos para o conflito interno da Síria iniciado em 2011 que tem gerado uma enorme onda migratória de sírios e árabes, sem paralelo na história do Continente, desde a Segunda Guerra Mundial. Ou para o genocídio étnico dos rohingya em Myanmar, país budista liderado pela Nobel da Paz Suu Kyi que se escancara aos olhos dos organismos internacionais sem que nada de significativo aconteça. O presente dossiê propõe uma volta ao passado, discutindo os movimentos migratórios dos séculos XIX e XX com vistas à compreensão das catástrofes que estamos vivendo no século XXI. O passado tem que ser sempre lembrado para que os dramas contemporâneos não se transformem em banalidades que não afetam a sensibilidade dos governos, dos organismos internacionais e de nós mesmos. É assim que entendemos Hobsbawm quando diz que o ofício dos historiadores é cada vez mais importante, pois cabe a ele lembrar o que os outros esquecem (HOBSBAWM, p. 13).

É sob esta perspectiva que foram reunidos aqui artigos que discutem diferentes aspectos de grupos e indivíduos e suas experiências no plano das migrações transoceânicas. Os artigos aqui elencados evocam temas bastante atuais de investigação através enfoques teóricos e metodológicos diversos. Aqui são tratados temas relativos às desesperanças e frustrações de imigrantes das mais diversas partes do mundo ao chegarem ao Brasil e em outros países, e constatarem que nada do que lhes foi prometido era realidade. Em suas sociedades de adoção tiveram que se submeter à condição de trabalhadores semelhantes aos escravos africanos, enfrentando preconceitos e imensas dificuldades de inserção social. O tráfico de mulheres brancas para fins de prostituição também compõe este quadro de degradação humana. Um dos artigos aqui apresentado discute tal fenômeno delimitando o espaço temporal de fins do século XIX a inícios do século XX, mas sua autora adverte que experiências dessa natureza não se encerram no passado, mas se fazem sempre presente nos deslocamentos de massa que caracterizam a época contemporânea.

O professor André Figueiredo Rodrigues, da UNESP – Campus de Assis e o professor Germán A. de la Reza, da Universidade Autônoma Metropolitana do México foram os organizadores do dossiê 2, que abrigou artigos abordando o tema Livros, bibliotecas e intelectuais no mundo ibero-americano (séculos XVI ao XX). A temática proposta pelo dossiê atraiu a atenção de estudiosos nacionais e internacionais que abordam o assunto sob os mais variados aspectos. Recebemos artigos sobre a história, a posse de livros e as práticas de leitura no mundo Ibero-Americano que circularam nos dois lados do Atlântico e mesmo dentro do continente americano entre os séculos XVI e XIX.

A materialidade e a discursividade de autores e suas obras, acervos bibliográficos e documentais, a historiografia do livro no universo colonial, hábitos de leitura e informações e discussões sobre as fontes disponíveis foram alguns dos temas explorados pelos artigos publicados no dossiê. Ressalte-se a discussão sobre a metodologia de análise e interpretação de fontes documentais sobre os participantes do Movimento da Inconfidência Mineira e da Insurreição Pernambucana de 1817, desenvolvidas em seus artigos pelos professores André Figueiredo e Luiz Carlos Villalta,respectivamente. Mas estes são apenas dois exemplos dos trabalhos que discutiram com densidade e profundidade a proposta do dossiê.

Enfim, nas leituras dos artigos do dossiê 2 podemos encontrar discussões instigantes a respeito das práticas de leituras em suas diversas modalidades, ou seja, podemos constatar uma coleção indefinida de experiências de leitura enquanto liberdade interpretativa e enquanto prática criativa autônoma dos indivíduos (CHARTIER, p. 121-139).

Por fim, os artigos livres publicados por esta revista neste número são variados em seus tratos teóricos, metodológicos e temáticos. Deixamos aos leitores fazer sua própria apreciação ao invés de falarmos sobre cada um deles.

Queremos tributar nossos sinceros agradecimentos aos professores que organizaram os dossiês, aos pareceristas que não hesitaram em dar suas contribuições para que a revista preserve a boa qualidade oferecida aos leitores e aos autores que deram preferência à revista História (São Paulo) para a divulgação de seus trabalhos.

Referências

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1990. [ Links ]

PRUNER, Gérard. The Rwanda Crisis History of a Genocide. 2. Ed. Kamplala Fountain Publishers Limited, 1999. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos. O breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. [ Links ]

José Carlos Barreiro 

Ricardo Alexandre Ferreira

Editores 


BARREIRO, José Carlos; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Apresentação [O passado esquecido e o presente trágico]. História (São Paulo), Franca, v.36, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e cinema: representações do feminino e o jogo das alteridades/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2017

As discussões em torno da questão de gênero e suas representações se tornam especialmente importantes quando confrontadas com os dados cada vez mais alarmantes em relação ao aumento dos chamados crimes de ódio em nossa sociedade, que incluem o feminicídio e toda sorte de violência contra aqueles(as) não inscritos(as) na heteronormatividade. Leia Mais

Imigrações / Almanack / 2017

Fenômeno de longa duração, as migrações destacam-se como marca da modernidade. Rearranjos dos grandes impérios, transformações do capital, conflitos civis e novas demandas da organização do trabalho no interior do sistema capitalista provocaram fome e miséria. Tal quadro justifica o vertiginoso deslocamento ocorrido entre 1815-1914, quando cerca de 50 milhões de mulheres e homens, na maior parte europeus, abandonaram suas terras de origem e dirigiram-se às Américas para iniciar uma nova vida.

Cerca de um século depois, a globalização da economia vem fomentando uma nova onda migratória. Vemos a formação de um extraordinário fenômeno de mobilidade de indivíduos pelo planeta, em uma proporção muito superior àquele período, anteriormente citado, conhecido como da Grande Imigração. De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas, em 2013, estimava-se em cerca de 232 milhões o número de imigrantes no mundo.

De um lado, a transnacionalização e a multinacionalização das empresas vem promovendo uma intensa circulação de trabalhadores nos mercados de produção, gerando novas formas de imigração, que devem ser consideradas como componentes da estruturação da sociedade na era da globalização.1 De outro, um número recorde de conflitos civis, étnicos e / ou religiosos, e os terríveis desastres ambientais que tem assolado diferentes regiões do planeta se somam à sociedade globalizada para explicar esse maciço deslocamento humano que caracteriza o tempo presente.

Trata-se de uma imigração diferenciada, porque volátil, uma vez que a nova ordem mundial facilita a continuidade desses deslocamentos, dificultando o enraizamento, adicionando-lhe novas e delicadas questões, como a receptividade da sociedade brasileira a esses novos grupos e o conflito gerado pela disputa no mercado de trabalho e por direitos políticos, civis e sociais. Além disso, antigas questões se reapresentam ante a opinião pública, como o debate sobre o imigrante desejável, produzindo uma incômoda sensação de retorno ao final do século XIX. Xenofobias reaparecem e nos fazem refletir se o Brasil é de fato um país cordial.

Assim, não seria errado afirmar que a e / imigração é um tema fundamental da história, e que talvez seja, na atualidade, um dos campos mais instigantes para os historiadores. Vale dizer que para o estudo desse fenômeno e dos seus desdobramentos convergem questões centrais do tempo presente como o debate sobre as identidades, os desejos e deveres de memória e as comunidades de sentido, problemas diretamente relacionados ao avanço da globalização sobre os estados e economias nacionais e locais.

É sob a luz das questões e inquietações do presente que o dossiê Imigrações, organizado pelas professoras Ismênia de Lima Martins, Gladys Sabina Ribeiro e Érica Sarmiento, aborda o “longo século XIX”- e os seus diferentes fluxos migratórios e grupos de imigrantes que encontraram nas Américas seu pouso e destino.

Na historiografia relacionada aos estudos migratórios, o Oitocentos estende-se até o ano de 1930, compreendendo, assim, também o denominado período da Grande Imigração (1880-1930) e todo o arcabouço deixado pelo numeroso contingente migratório que cruzou o atlântico. O dossiê reúne um conjunto de textos, escritos por especialistas de longa trajetória na temática, que analisam, desde diferentes perspectivas, as políticas migratórias, as experiências, a memória, a opinião pública e a integração nas sociedades de recepção dos diferentes grupos de imigrantes.

O continente americano constituiu-se em um grande receptor de imigração ao longo do século XIX. Muito dos jovens Estados, ainda em formação, fortaleceram e consolidaram as suas políticas em função da chegada de imigrantes, que foram entendidos como elementos de progresso e de civilização para as promissoras sociedades em desenvolvimento.

No caso do Cone Sul, em particular Brasil e Argentina, a imigração representou uma das molas propulsoras das políticas estatais, partícipes das políticas de povoamento, substituição de mão de obra escrava e de branqueamento da população. Já nos primórdios do século XIX, os intelectuais argentinos que fizeram parte da mítica Geração de 37, de Buenos Aires, deixaram em seus escritos a importância do elemento estrangeiro no desenvolvimento de sua sociedade, como foi o caso de Juan Bautista Alberdi, que imortalizou a frase “governar es poblar”. No artigo de Alejandro Férnandez, intitulado “La ley argentina de inmigración de 1876 y su contexto histórico”, o autor analisa a chamada Ley de Inmigración y Colonización, promulgada no ano de 1876, considerada como um dos pilares legislativos da modernização da Argentina. A lei atribui ao imigrante o seu papel modernizador, tanto no plano da economia como na sociedade como um todo.

Diferente das jovens repúblicas da antiga América espanhola e dos Estados Unidos, o Império brasileiro discutiu e estimulou a questão imigratória no âmbito de uma sociedade ainda escravista. Nesse sentido, o artigo de Paulo Gonçalves realiza uma importante análise sobre as tensões estabelecidas no âmbito do fornecimento e controle da mão de obra para a economia agroexportadora oitocentista. No contexto do período conhecido como de transição do trabalho escravo para o livre, em fins do XIX, a mão de obra assalariada imigrante viu-se refém da mentalidade escravista dos fazendeiros brasileiros, do mandonismo local, e de seus instrumentos de coerção econômica e do uso da força.

O texto de Ana Scott apresenta o estudo da experiência migratória ocorrida entre Portugal (Província da Beira / Concelho da Lousã) e a província de São Paulo (região de Espírito Santo do Pinhal). Nesse caso, a história demográfica forneceu informações importantes para a análise e cruzamento de fontes por meio da exploração de registros paroquiais de batismo e de casamento correspondentes às décadas de 1860 e 1880, da Vila da Lousã (próximo à cidade de Coimbra), e do Núcleo Nova Lousã, no interior da província de São Paulo. Vale ressaltar a relevância dos registros paroquiais como importantes fontes nominativas na construção de tipologias de grupos migratórios. Outrossim, o estudo das variações regionais ou provinciais demonstra um amadurecimento dos estudos migratórios, nas últimas décadas, com uma profunda compreensão e conhecimento da realidade de origem e recepção dos migrantes, bem como das relações que se estabelecem entre ambos os universos. A questão da variação da escala aos níveis locais – antes muito limitada- a recortes maiores sem dúvida representou um grande avanço para a análise de fatores microssociais dos processos migratórios.

O patrimônio e o legado cultural construídos por imigrantes na sociedade de acolhimento é uma das contribuições mais significativas relacionadas ao fenômeno migratório. Eloisa Capovilla Ramos, em seu artigo, analisa dois monumentos, um na cidade de Buenos Aires e outro em Caxias dos Sul, erigidos como símbolos da identidade da imigração italiana. Os monumentos, segundo a autora, representam espaços de memória e rememoração que pertencem ao patrimônio cultural de seus países. Na memória dos imigrantes, a história se inicia somente no ponto onde acaba a tradição, momento que, segundo Maurice Halbwachs, se apaga ou se decompõe a memoria social. Quando a memória se dispersa, então o único meio de salvar as lembranças é fixá-las por escrito em uma narrativa, em símbolos, uma vez que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem.2 A autora em questão dá uma original contribuição para estender tais pressupostos aos monumentos urbanos construídos para celebrar a imigração no quadro urbano.

O artigo de Martín Pérez Acevedo lança luz sobre a presença imigrante de irlandeses no México. Tal grupo não tinha merecido ainda um esforço de pesquisa sistematizada, talvez por ser quantitativamente inferior no quadro da grande imigração para aquele país. Assim, o autor demonstra, a partir de dados extraídos do Registro de estrangeiros no México do ano de 1925, como esta coletividade formou parte de projetos colonizadores de povoamento do norte do país, ao logo do século XIX, por meio da mineração e do comércio, sendo, muitos deles, agentes de empresas britânicas.

Outra temática que preenche lacunas na historiografia das migrações encontra-se no texto de Oscar Alvarez Gila. Trata-se da análise da opinião pública na imprensa sueca em relação aos primórdios da emigração para os Estados Unidos, um dos destinos preferenciais deste grupo no período da Guerra Civil. O autor realiza um importante levantamento da imprensa da época, ao elencar várias questões afins ao processo migratório publicado na imprensa, como as cartas, as agências de imigração e a posição dos periódicos quanto à emigração.

O conjunto de artigos apresentados nesse dossiê representa uma importante contribuição, do ponto de vista teórico e metodológico, para a nova historiografia das migrações. O leitor poderá acompanhar as discussões realizadas pelos autores e os seus percursos bibliográficos a partir dos quais estabeleceram suas conclusões.

Tais análises contribuem, também, como chaves de leitura para que os historiadores do tempo presente enfrentem os dilemas, as inquietações e as tensões das migrações contemporâneas.

Finalmente, cabe agradecer ao PPGH-UFF por ter custeado a diagramação e a marcação XML deste número. A Almanack é um revista interinstitucional que precisa contar com o apoio dos programas de pós-graduação partícipes da grande aventura que é a manutenção de uma publicação em tempos de escassos recursos.

Notas

1. Canales, Alejandro apud BAENINGER, Rosana. Desafios teórico-metodológicos para a interpretação da migração internacional na sociedade contemporânea. Rev. bras. estud. popul., São Paulo , v. 34, n. 1, p. 181-184, Apr. 2017 . Available from<http: / / www.scielo.br / scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982017000100181&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Sept. 2017. http: / / dx.doi.org / 10.20947 / s0102-3098a0015.

2. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro Editora, 2006.

Érica Sarmiento – Professora Adjunta na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Professora titular do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira. Coordenadora do Laboratório de Estudos de Imigração (Labimi / UERJ) e do Laboratório de Imigração e Estudos Ibéricos (UNIVERSO). É pesquisadora Jovem Cientista Nosso Estado da FAPERJ. E-mail: erisarmiento@gmail.com

Ismênia de Lima Martins – Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora de Editoração e Acervo da FAPERJ e Membro do CONARQ. Integra a Comissão de Altos Estudos do Programa Memórias Reveladas, da Casa Civil da Presidência da República. Coordena o projeto Portugueses no Brasil, em cooperação com o CEPESE, da Universidade do Porto; o GT Imigração, Identidade e Cidadania, da ANPUH, e o Projeto Entrada de Imigrantes no Brasil, Listagem de Vapores, Arquivo Nacional, BNDES. É presidente da Associação Cultural do Arquivo Nacional e Sócia Honorária do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB. E-mail: ismeniamartins@uol.com.br

Gladys Sabina Ribeiro – É professora titular do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense; bolsista de produtividade do CNPq e Cientista do Nosso Estado / FAPERJ. É coordenadora do NEMIC (Núcleo de Estudos de Migrações, Identidades e Cidadania), vice-coordenadora do CEO (Centro de Estudos do Oitocentos) e uma das fundadoras da SEO (Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos). E-mail: gladyssabina@gmail.com


SARMIENTO, Érica; MARTINS, Ismênia de Lima; RIBEIRO, Gladys Sabina. Apresentação. Almanack, Guarulhos, n.17, set / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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El sindicalismo revolucionario en Argentina | Archivos de Historia del Movimiento Obrero y la Izquierda | 2017

Existe en Argentina una fuerte tradición historiográfica en torno a los problemas e interrogantes del mundo obrero, sus organizaciones gremiales y las corrientes de izquierda. Tiempo atrás era posible afirmar que, dentro de este vasto campo, la historia del sindicalismo revolucionario no había alcanzado el estatus y centralidad acorde a su protagonismo histórico. Sin embargo, desde hace ya varios años, su trayectoria en el movimiento obrero y en el mundo del trabajo local se han transformado en una preocupación dentro del campo académico local, lo que permitió articular una interpretación global de esta cultura política que se desplegó en distintas partes del mundo.

La inicial dificultad de visibilizar e identificar una corriente que se originó y tuvo un gran desarrollo en ciertos países europeos (Francia e Italia, por ejemplo) y en pocos países latinoamericanos, sumado a las reiteradas confusiones con el anarcosindicalismo, entraban en tensión permanente con el peso específico de las ideas y militancia sindicalistas en la experiencia gremial y política de los trabajadores en la Argentina. Disueltos en la memoria histórica e historiográfica, tal vez por la ausencia de herederos políticos que la reivindicaran, la historia de la corriente sindicalista tuvo que esperar hasta los inicios de los años 60 para encontrar, de la mano de uno de sus protagonistas, Sebastián Marotta, una crónica extensa y reflexiva de la historia del movimiento obrero en clave sindicalista. Leia Mais

Mérito, venalidad y corrupción en España y América – PONCE-LEIVA; ANDUJAR CASTILLO (Tempo)

PONCE LEIVA, Pilar; ANDUJAR CASTILLO, Francisco. (Org.), Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII. Valência: Albatros, 2016. 362p. Resenha de: BICALHO, Maria Fernanda. Quanto vale um ofício no exercício do bom governo? Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.

Mérito, venalidade e corrupção não são temas distantes, no tempo e no espaço, de nossa experiência cotidiana no Brasil atual. Tampouco temas exclusivamente contemporâneos, embora tenhamos de ter cuidado para não incorrermos em anacronismo ao discutir essas três concepções e práticas em nosso passado colonial. Os anacronismos podem surgir ao tentarmos transferir noções próprias do Estado liberal – e democrático – para vivências em que, além da fluidez na distinção entre as esferas do público e do privado, a lógica da nomeação para cargos administrativos passava pela gramática social do prestígio, pelo caráter pessoal e estamental das relações sociais e políticas, por noções como amor e amizade (Cardim, 1999) e, sobretudo, pela obrigatoriedade de retribuição do rei aos serviços prestados por seus vassalos. Retribuição que pressupunha mercês em distinções, ofícios, contratos, monopólios e todo tipo de privilégios; lógica integrante não só do poder do rei de agraciar os súditos – de dispensar a graça -, mas da “justiça distributiva” que, segundo Fernanda Olival, era quase um modo de vida para diferentes setores do espaço social português e do mundo ibérico em geral, envolvendo não só membros da nobreza, mas também de grupos sociais mais baixos. (Olival, 2001, p. 21).

Essa especificidade do Antigo Regime levou a que muitos historiadores negassem a existência de uma percepção e clara distinção entre o que era lícito e ilícito na administração fazendária, no exercício do poder e da política e, sobretudo, nas relações sociais. A oposição weberiana entre Estado patrimonial e Estado burocrático e, consequentemente, entre as diferentes manifestações de uma dominação patrimonialista e outra de tipo racional-legal marcou consideravelmente nossa historiografia. O homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda (1983), e Os donos do poder, de Raymundo Faoro (1984), são dois exemplos marcantes dessa influência. No entanto, o próprio Faoro admite que, para os súditos americanos do rei de Portugal, havia um limite para aquilo que era considerado lícito ou ilícito. Atribui à situação colonial os “vícios” dos administradores portugueses e conclui com a verve afiada do padre Antônio Vieira: “Perde-se o Brasil, Senhor (digamo-lo em uma palavra), porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens…” (Faoro, 1984, p. 173).

O mesmo Vieira, no Sermão do bom ladrão, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa para uma plateia de ministros dos tribunais régios, admoestava que “nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis”. Denunciando a cumplicidade entre os reis e os ladrões, assim como o exercício do mau governo de funcionários régios que, sem mérito, eram nomeados por simples favores e espúrias negociações, e, ao não agirem em prol do bem comum da República, roubavam e vexavam os vassalos com o único intuito de enriquecimento próprio, Vieira insistia no imperativo cristão da restituição, uma vez que “sem restituição do alheio não pode haver salvação” (Vieira, 2000, p. 389-413).

Embora ainda pouco abordadas por historiadores portugueses e brasileiros, a ilicitude, a venalidade e a corrupção não estiveram totalmente ausentes de nossa produção acadêmica. Sobre a primeira há estudos acerca do contrabando, de Ernst Pijning e de Paulo Cavalcante, para o Rio de Janeiro, de Tiago Gil e de Fábio Kühn para as fronteiras sul da América portuguesa. Os primeiros tributários de uma genealogia historiográfica que tem nas teses dos anos de 1970-1980 sobre o Brasil sua matriz conceitual. Os segundos baseando-se na teoria das redes, quer mercantis, quer sociais. (Pijning, 2001Cavalcante, 2006Gil, 2007Kühn, 2012) A venalidade de ofícios – tão bem conhecida nos domínios espanhóis e ultramarinos de Castela – tem sido ultimamente objeto de investigação, para Portugal e seus territórios de além-mar, de Roberta Stumpf e Nandini Chaturvedula (Stumpf e Chaturvedula, 2012).

Por outro lado, a atualidade do tema da corrupção no cenário político brasileiro motivou a publicação do livroCorrupção: ensaios e críticas. Em um dos dois únicos capítulos sobre o Brasil colonial – o outro é de Evaldo Cabral de Mello -, Luciano Figueiredo, embora remeta-se à carência na historiografia brasileira “de investigações exaustivas dedicadas a estudos de casos”, chama a atenção para que há muito historiadores como Caio Prado Júnior e Charles R. Boxer afirmassem, o primeiro, em seu ceticismo, que a vida social e política da América portuguesa foi profundamente permeada pela dissolução nos costumes, inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos; o segundo que as queixas acerca da rapacidade e venalidade dos funcionários régios foram tema constante da correspondência particular e oficial entre Brasil e Portugal por mais de três séculos (Figueiredo, 2008, p. 209-218).

Nos últimos anos, Adriana Romeiro se debruçou sobre o conteúdo polissêmico do conceito de corrupção na época moderna, indagando-se sobre sua pertinência, constatando que a cultura política do Antigo Regime contava com um leque de formulações sobre as práticas ilícitas cometidas por governantes e funcionários régios. A partir da discussão de diferentes significados da palavra corrupção, em dicionários, tratados sobre a arte de bem governar, crônicas e outros escritos coevos dos séculos XVI ao XVIII, analisou as noções que estruturavam o imaginário do mau governo, levando à “corrupção do corpo místico”. Sendo considerada um vício – e muitas vezes um pecado -, a ambição desmedida dos governantes era objeto não apenas de condenação nas obras de moralistas e políticos, constava igualmente das queixas e representações dos vassalos ultramarinos ao rei (Romeiro, 2015, p. 6).

Porém, o que está aqui em causa não são as análises clássicas e recentes da historiografia brasileira sobre a corrupção nos tempos modernos, e sim o livro Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII, organizado por Pilar Ponce Leiva, professora da Universidad Complutense de Madrid, e Francisco Andújar Castilho, da Universidade de Almería. Publicado em 2016, fruto de um projeto de investigação coletivo, o livro reúne 17 capítulos escritos por diferentes historiadores de várias instituições na Europa e na América, voltados sobretudo para o mundo hispano-americano. No que diz respeito a Portugal e ao Brasil, conta com a contribuição de Roberta Stumpf. O “Prólogo” é de Nuno Gonçalo Monteiro.

Seus organizadores há muito vêm se dedicando a temas correlatos, tanto em projetos de pesquisa envolvendo redes internacionais de investigação quanto em publicações. Estiveram juntos no livro organizado por Francisco Andújar Castillo e María del Mar Felices de la Fuente, El poder del dinero: ventas de cargos y honores en el Antiguo Régimen, no qual Pilar Ponce Leiva tem um capítulo sobre as dinâmicas sociais e consequências políticas da venda de cargos municipais em Quito, no século XVII (Ponce Leiva, 2011, p. 145-165). Na introdução ao presente livro, admitem que mérito, venalidade e corrupção são questões há muito abordadas, quer para a monarquia hispânica, quer para seus domínios ultramarinos, embora estejam hoje sujeitas a uma profunda revisão historiográfica. Essa obra é produto e testemunho disso. Seus autores convergem na crítica a como tem sido tratado, até muito recentemente, o tema da venalidade e, sobretudo, da corrupção, por um lado por aqueles que negam sua existência baseando-se na indefinição, na Europa da época moderna, entre o público e o particular; e, por outro, por quem entende ser a corrupção, pelo mesmo motivo, condição “natural” e indissociável, eixo inquestionável e estruturante das sociedades de Antigo Regime. Segundo os organizadores:

Se ha cuestionado mucho que en la época existiese de forma expresa el concepto de “corrupción”, y más aún que tuviese las mismas connotaciones que en la actualidad. Los estudios disponibles demuestran, sin embargo, que tanto en la tratadística de la época como en los textos dicho concepto aparece con connotaciones similares a las actuales {…}. Esos mismos estudios corroboran que el término se refería de manera inequívoca a delitos punibles por la justicia, a los abusos de poder en beneficio de quien los cometía y en detrimento de los administrados. No obstante, el debate presenta muchas más aristas, pues va desde los autores que estiman que la corrupción era consustancial al ejercicio del poder en el Antiguo Régimen hasta quienes niegan su existencia “por no existir ni siquiera” el próprio término en la sociedad de la época. Pero más allá de essas consideraciones lo que parece incuestionable es que el proprio concepto de lo que entendemos por corrupción requiere un profundo debate, sobre todo para situar en contexto, y de acuerdo con las convenciones del sistema político, jurídico y social de Antiguo Régimen, lo que tratamos de estudiar. (Ponce Leiva e Andújar Castillo, 2016, p. 10)

A primeira parte do livro, Conceptos y valor de los méritos, inicia-se com o capítulo de María del Mar Felices de la Fuente sobre os méritos necessários para se ter o título de nobre em Castela, no qual a autora analisa uma das principais prerrogativas do rei: sua intervenção em assuntos de graça e mercês, assim como a importância dos méritos pecuniários na outorga de honras, títulos e dignidades. Domingo Marcos Giménez Carrillo debruça-se sobre as conferições e as distinções entre as “mercês dos hábitos” e de “títulos de cavaleiro” das ordens militares no reinado de Felipe V, demonstrando os pesos relativos entre o serviço pecuniário e o das armas. Amorina Villarreal Brasca, no capítulo sobre o provimento do VII conde de Lemos na presidência do Conselho de Índias (1603), revisita essa importante instituição voltada para os assuntos relativos aos domínios ultramarinos de Castela em um momento crucial para a monarquia hispânica. Guillermo Burgos Lejonagoitia analisa o funcionamento das designações para ofícios nas Índias de Castela entre 1701 e 1746, sem que o pagamento em dinheiro fosse o que mais importasse, e sim os demais méritos no serviço ao monarca. Já Antonio Jimenez Estrella indaga-se sobre o processo de estatização, profissionalização e burocratização do exército da monarquia dos Áustria durante o valimento do conde-duque de Olivares, momento em que a milícia se consolidou como uma das vias privilegiadas de ascensão social e de vinculação ao estatuto nobiliárquico por parte de homens sem méritos anteriores, ou cujo mérito consistiu em sua capacidade econômica de recrutar soldados. Encerra essa primeira parte o capítulo de Roberta Stumpf, no qual a autora, ao criticar os estudos que privilegiam a discussão da legislação e dão pouca importância às possibilidades reais de sua implementação, ou seja, às práticas dos governantes in loco, discute as ambiguidades da política pombalina, que se, por um lado, pretendeu “racionalizar” a provisão dos ofícios, dificultando sua patrimonialização, por outro, manteve a prática da venalidade em sua concessão, sobretudo em territórios ultramarinos.

A segunda parte do livro, El mercato de las ventas de ofícios, inicia-se com o estudo de Francisco Andújar Castillo, no qual o historiador discute a intensificação da venda de ofícios na segunda metade do século XVII como forma extra (ordinária) de financiamento da monarquia, e sua privatização na medida em que eram alienados perpetuamente, tornando-se “patrimônios móveis” de seus proprietários. Partindo dessa constatação, procura dar resposta à pergunta: como e quem vendiam os cargos; demonstrando o grande protagonismo das juntas e dos conselhos régios. O texto de Francisco Gil Martínez sobre ingressos venais e gastos cortesãos aborda o destino que se dava ao dinheiro decorrente da venda de ofícios durante o valimento do conde-duque de Olivares, período em que a venalidade, em termos quantitativos e qualitativos, conquistou sensível amplitude. Centra sua análise na construção do Palácio do Bom Retiro. Christoph Rosenmüller detém-se na formação de alianças políticas na Corte de Madri em fins do século XVII e começos do XVIII, que cercearam a prerrogativa dos vice-reis da Nova Espanha de prover em suas clientelas e criados os ofícios nas alcaidarias maiores, diminuindo, por meio da venda de ofícios, o poder das elites aristocráticas tradicionais em favor de uma maior influência da Coroa na seleção dos candidatos.

O terceiro bloco do livro, Debates sobre a ubicua corrupción: miradas y casos é dedicado à análise do próprio termo “corrupção” e de seus múltiplos significados – morais, políticos e sociais – na época moderna, assim como de uma miríade de práticas entendidas como abusivas pelos contemporâneos, expressões do “mau governo”. Os dois primeiros capítulos, “Percepciones sobre la corrupción en la monarquía hispânica, siglos XVI y XVII”, de Pilar Ponce Leiva, e “La moralidad de los mentirosos: por un estúdio comprensivo de la corrupción”, de Anne Dubet, têm um caráter teórico e conceitual. O primeiro, de acordo com sua autora, visa a

{…} ofrecer una primera aproximación a lo que en los siglos XVI e XVII y en el ámbito hispânico se percibía como “corrupción”, “corrupto” o “corrompido”. Más que reducir la corrupción a una categoría analítica precisa, parece útil reconocer que se trata de una categoría cultural – o socio-cultural -, asociada a un determinado conjunto de normas, a un sistema de valores y a una variada gama de prácticas sociales que pueden – o no – ir en consonancia entre si. (Ponce Leiva e Andújar Castillo, 2016, p. 193-194)

Anne Dubet, a partir do mote da fiscalidade e da fraude, volta-se para a compreensão dos sentidos da corrupção e de sua polissemia de acordo com a cultura política do Antigo Regime, testando discursos e práticas, as razões dos indivíduos e as estratégias de repressão. Os três capítulos seguintes dedicam-se a estudos de caso que trazem para o leitor um amplo leque de possibilidades no tratamento da corrupção tanto na Europa quanto na América. Inés Gómez González debruça-se sobre os percones, alegações jurídicas de defesa utilizadas para fazer frente às acusações a don Pedro Valle de la Cerda – que, segundo Elliott, era o homem mais poderoso da Espanha depois de Olivares – feitas em visita ao Conselho da Fazenda em 1643. Já Sébastien Malaprade demonstra como era possível enriquecer em tempos de crise ao analisar o caso de Rodrigo Jurado, fiscal da Comisión de Millones do Conselho da Fazenda, cuja fortuna e prosperidade deveram-se às relações que mantinha com os homens de negócio e ao controle que exercia sobre os arrendatários e tesoureiros dos millones. Pierre Ragon, em seu estudo sobre o conde de Baños, vice-rei da Nova España entre 1660 e 1664, aborda as inúmeras extorsões e malversações exercidas em seu governo, cuja denúncia por setores hierarquicamente inferiores poderia colocar em risco a arquitetura e a organicidade do corpo político da monarquia e de seu império.

Os três últimos estudos se deslocam do centro da monarquia e de suas instituições “palacianas” para suas diferentes “periferias”, focando personagens com grande trânsito entre culturas distintas, hierarquias conflitantes e interesses diversos. José Luis de Rojas debruça-se sobre os “senhores” do império asteca que, depois da conquista espanhola, conservaram suas posições destacadas, ocupando quer os cabildos de índios, quer postos de intermediação na cobrança de tributos, praticando todo tipo de atos abusivos. José Manuel Díaz Blanco deteve-se nas cartas inéditas de um mercador sevilhano que, enviado em 1664 pelo Consulado de Sevilha em missão à Corte de Madri, denunciou o poder do dinheiro como o único meio de aceder aos ministros e tribunais da monarquia no reinado de Felipe IV. Guilhermina del Valle Pavón nos remete às práticas e artimanhas dos mercadores que realizavam as principais transações dentro e fora da Nova Espanha pelo controle que exerciam sobre a prata, principal moeda no comércio internacional na época moderna.

Para terminar, reitero o que os organizadores já haviam advertido na introdução ao livro, e que Nuno Gonçalo Monteiro, em seu prólogo, destaca. Se, nas últimas décadas, houve uma revalorização da importância do tema da corrupção, da venalidade dos ofícios e das honras na monarquia hispânica, as reflexões aqui presentes propõem uma renovação desses estudos em diferentes escalas. Demonstram que a intensidade dos méritos, o exercício da venalidade, as concepções e as práticas de corrupção não eram perfeitamente similares na Europa e nos mundos americanos. Havia sensíveis diferenças entre as monarquias portuguesa e espanhola e singularidades irredutíveis entre as Américas lusa e hispânica. Se, para as últimas – a monarquia e a América hispânicas -, temos tantos e tão bons estudos e reflexões, cabe a nós, historiadores de língua portuguesa nos dois lados do Atlântico, enveredarmos pela investigação desses temas, quer em sua percepção político-administrativa, quer em sua configuração social. A leitura de Mérito, venalidad y corrupción en España y América: siglos XVII y XVIII torna-se, portanto, não apenas um convite sedutor nesse sentido, é sobretudo um desafio ao diálogo, uma vez que seus capítulos podem ser lidos, em toda sua riqueza e complexidade, como uma irrecusável fonte de inspiração para novas pesquisas e publicações.

Referências

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Maria Fernanda Bicalho – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: mfbicalho@uol.com.br.

A cien años de la Revolución Rusa | Archivos de Historia del Movimiento Obrero y la Izquierda | 2017

El centenario de la Revolución rusa ofrece una oportunidad para reflexionar sobre el proceso histórico que cambió la historia del mundo, impactando profundamente en el derrotero del socialismo y de la clase obrera. Como señaló el historiador británico Eric J. Hobsbawm “la historia del siglo XX no puede comprenderse sin la Revolución Rusa y sus repercusiones directas e indirectas”, a punto tal que su “siglo corto” coincidía con el nacimiento de la experiencia soviética y la Primera Guerra Mundial y se cerraba con el derrumbe del régimen de partido único en 1989. Para un análisis de la historia del movimiento obrero y de las izquierdas en todos los países, incluida la Argentina, evaluar y hacer un balance del efecto, los vínculos y las influencias que tuvo este extraordinario acontecimiento histórico se convierte en un desafío esencial.

Los eventos del Octubre ruso ocurrieron bajo la pretensión de la toma insurreccional del poder por el proletariado a través de los soviets, primer paso de una revolución diseñada en escala internacional, sobre los escombros y las penurias que la guerra imperialista dejaba en Europa. El resultado fue de inocultable importancia: el poder le había sido arrancado a las clases dominantes y había quedado en manos de los consejos obreros con hegemonía bolchevique, según el planteo de Vladimir I. Lenin. La mayor revolución social y política del siglo XX entró en una nueva fase, declarando su deseo consciente de ensayar la primera transición al socialismo. Leia Mais

Escravidão Moderna / Territórios & Fronteiras / 2017

A Afro-América – as zonas do Novo Mundo que mais contaram com o aporte demográfico de africanos escravizados – engloba uma diversidade enorme de países, com trajetórias históricas muito distintas. Desde a década de 1930, antropólogos e historiadores exploraram cuidadosamente, a partir de múltiplos referenciais teóricos e metodológicos, os fundamentos comuns e as divergências da herança africana para a formação de nações tão díspares como Brasil, Estados Unidos, Cuba, Haiti, Jamaica, Venezuela, Colômbia e Suriname, dentre outras. Ao mesmo tempo que se discutia o problema dos aportes e das recriações culturais, economistas, sociólogos e historiadores lançavam luz sobre o peso da escravidão africana nas Américas para o deslanche econômico do Velho Mundo, chamando atenção para a importância crucial do colonialismo e da economia escravista de plantation na formação da modernidade capitalista.

Os especialistas jamais chegaram a um consenso a respeito desses problemas. De todo modo, os avanços dos estudos sobre a escravidão na África e sobre o tráfico transatlântico de escravos rapidamente indicaram que, de todas as regiões do Novo Mundo, o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados. Conforme os dados disponíveis no sitio www.slavevoyages.org, fruto de um notável esforço coletivo de historiadores de diversos países, cerca de 10 milhões e 700 mil escravos foram desembarcados nos portos americanos entre 1500 e 1866, dos quais cerca de 4 milhões e 864 mil chegaram ao Brasil. Portanto, o país importou, sozinho, 45% de todos os africanos forçados a migrar como escravos para as Américas. As colônias da América portuguesa estiveram entre as primeiras a receber escravos africanos, e o Império do Brasil foi o penúltimo país a abolir o infame comércio.

Até fins do século XVII, a colonização portuguesa de suas possessões na América, fundada de início na escravidão indígena e, em sequência, na escravidão africana, limitara-se ao litoral, com a exploração de zonas açucareiras dispersas entre si – Pernambuco e Bahia, e, em escala muito menor, Rio de Janeiro e São Vicente. Dado o custo do frete para uma mercadoria de volume considerável e relativamente perecível, os engenhos de açúcar não tinham como se afastar dos portos atlânticos. As únicas exceções de interiorização econômica (a pecuária no Vale do Rio São Francisco e os raids de escravização indígena) eram atividades complementares à economia açucareira, sendo ambas fundadas em uma mobilidade intrínseca.

No açúcar, na pecuária e no infame “bandeirantismo” paulista, a escravidão constituía a relação básica de trabalho. As descobertas de ouro no interior da América portuguesa a partir da década de 1690, muito além das fronteiras estabelecidas em Tordesilhas, seguiram esse padrão estabelecido desde o século XVI, conferindo-lhe, no entanto, nova substância e caráter. Em primeiro lugar, por uma notável intensificação no tráfico transatlântico de escravos. Ao longo de todo o século XVII, haviam sido desembarcados cerca de 784.000 africanos escravizados para trabalhar no complexo econômico articulado em torno do açúcar. Somente na primeira metade do século XVIII, sob o impacto direto da nova economia aurífera, chegaram ao Brasil quase 900.000 africanos escravizados; somados aos desembarques da segunda metade do século, ao longo dos setecentos o Brasil importou cerca de 2 milhões de escravos africanos.

Em segundo lugar, pelo espraiamento espacial da escravidão negra. O ouro, como uma mercadoria com altíssimo valor agregado, justificava economicamente sua extração em lugares muito afastados do litoral e completamente despovoados. Mas, em pouco tempo, as demandas de consumo básico e de luxo provocadas pelo adensamento populacional nos centros urbanos dispersos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso ativaram a economia interna em lugares até então completamente apartados. Do Rio Grande do Sul ao Piauí, com mulas para o transporte interno e charque para o consumo humano, a pecuária articulou-se à extração de ouro. Rotas de escoamento atrelaram o Mato Grosso a Belém do Grão-Pará, cruzando os rios do Vale Amazônico. São Paulo e o sul de Minas Gerais tornaram-se os celeiros das cidades e vilas do ouro, e os portos do Rio de Janeiro e da Bahia converteram-se em portas de entrada atlântica de mercadorias importadas para o ouro – a principal das quais, evidentemente, eram os africanos escravizados.

Em terceiro lugar, esse espraiamento espacial da escravidão negra na América portuguesa significou, também, seu espraiamento pelo tecido social. Dados os custos relativamente baixos da “mercadoria” escrava, propiciada pelo fato de o tráfico transatlântico ser operado basicamente a partir dos portos brasileiros, todos os setores livres da América portuguesa – o que incluía o número crescente de afrodescendentes libertos ou nascidos livres – passaram a medir sua posição no espectro social pela propriedade de cativos. Noutros termos, a posse de escravos tornou-se a medida da pobreza e da riqueza no Brasil.

No momento da independência, essas práticas compartilhadas de escravização, criadas ao longo do século precedente e presentes de modo relativamente uniforme no Rio Grande do Sul, em São Paulo, em Minas Gerais, nas vilas auríferas de Goiás e Mato Grosso, no Vale do Rio São Francisco, no Vale Amazônico, no Maranhão, no litoral nordestino e nos grandes portos negreiros do Rio de Janeiro, Salvador e Recife serviram de solda para a construção da unidade nacional. Em um duplo sentido: por um lado, o fato de a posse de escravos ser disseminada pelos diversos estratos sociais levou a que os sujeitos sociais livres do Brasil, fossem brancos nascidos em Portugal ou no Brasil, fossem afrodescendentes negros ou mulatos, se vissem como partícipes de um conjunto de interesses unificados em torno da perpetuação da escravidão africana. Por outro lado, dada essa base escravista comum, as forças políticas regionais brasileiras tenderam muito mais para a convergência do que para a divergência, a despeito de todas as manifestações de contestação ao poder central, verificadas em especial no período de 1835 a 1845.

No período pós-independência, isto é, nos vinte e oito anos compreendidos entre 1822 e 1850, foram importados cerca de um quarto de todos os africanos que aqui chegaram durante três séculos e meio. Noutras palavras, no tempo em que o Brasil como nação soberana foi responsável direto pela gestão de seus negócios negreiros, importou-se proporcionalmente mais africanos escravizados do que em qualquer outra região do Novo Mundo, em qualquer outra época. Daí a validade da proposta analítica de uma “segunda escravidão” para descrever e analisar o novo conteúdo das relações escravistas brasileiras no século XIX. Como diversos historiadores têm demonstrado, três feixes de forças foram estruturantes para sua configuração: a novidade da forma institucional do Estado nacional, a geocultura do liberalismo centrista e os novos padrões econômicos surgidos com a integração de mercados da era do capitalismo industrial.

A diversidade espaço-temporal que marcou a trajetória histórica da escravidão brasileira colonial e nacional, bem como seus legados para o presente, constituem o objeto deste dossiê da Territórios e Fronteiras. Seus artigos apresentam uma pluralidade de linguagens teóricas para dar conta de objetos relativos à demografia histórica, à micro-história, à história regional, ao tráfico transatlântico de escravos, à degradação do trabalho nos séculos XX e XXI. De formas variadas, eles procuram enfrentar o desafio de articular eventos locais a processos globais, lançando luz sobre as forças mais amplas que permitiram a reprodução e a recriação da escravidão brasileira no tempo, no entanto com o emprego de lentes que não desconsideram as contingências de terreno enfrentadas pelos sujeitos históricos.

Dentre os temas aqui abordados, encontram-se as relações entre o tráfico transatlântico de escravos e as possibilidades de reprodução vegetativa da população escravizada; a reconfiguração das práticas do tráfico negreiro na África na passagem do século XVIII para o XIX; a disseminação social da propriedade escrava como condição de estabilidade do sistema escravista; a prática relativamente de escravos se apresentarem como proprietários escravistas; a conversão de colônias originalmente concebidas como zonas de trabalho livre em fronteiras mercantis da produção escravista de café; a precarização das relações de trabalho nas fronteiras agrícolas do século XX como parte das heranças da escravidão. Trata-se, em resumo, de um dossiê que oferece uma importante contribuição para a cada vez mais pujante historiografia sobre a escravidão no Brasil.

Rafael Marquese – Professor doutor do Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Doutor em História pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: marquese@usp.br

Dale Tomich – Professor de História e Sociologia da Universidade de Binghamton, Estados Unidos, além de diretor do Fernand Braudel Center na mesma instituição. Autor de, entre outros, Slavery in the Circuit Sugar: Martinique in the World Economy (Johns Hopkins University Press, 1990), e Pelo prisma da escravidão (EDUSP, 2011). E-mail: dtomich@binghamton.edu


MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.1, jan / jul, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Gênero, feminismos e relações de poder / Territórios & Fronteiras / 2017

Organizado a partir dos eixos temáticos gênero, feminismos e relações de poder, o presente dossiê tem como orientação aglutinar e divulgar estudos sobre as questões de gênero articuladas à crítica feminista e aos jogos e relações de poder que informam sua construção e naturalização no cotidiano social. O propósito é integrar e ampliar o contemporâneo – e até mesmo acirrado – debate acerca de nossa localização no mundo como pessoas produzidas no / pelo gênero e, ao mesmo tempo, produtoras dele.

A interseccionalidade do gênero com outras dimensões da vida social como raça, etnia, classe, religião, escolaridade, sexualidade, ocupação, região e geração, foram perspectivas e possibilidades abertas às abordagens dos temas. Além disso, definiu-se intencional abertura para sua inscrição em diferentes recortes espaciais e temporais, no que tange ao Brasil e à América Latina. Acrescente-se, nessa ampliação do espectro temático, a inclusão dos feminismos, suas ações e seu aporte teórico como possíveis lentes e chaves de leitura para se apreender a historicidade da dimensão do gênero nas relações sociais. Afinal, foi justamente a crítica feminista que mostrou que os papéis sociais são construídos, que o próprio discurso da “natureza” dos sexos é um artifício e um exercício de poder. E exatamente por isso nos textos do dossiê é possível envontrar não apenas a interseccionalidade operante, mas também uma diversidade de questões e reflexões em torno dos conceitos de poder, violência, gênero, igualdade / diferença e cidadania.

Nessa direção, abre o dossiê Pós-cidadania feminina, artigo em que Ana Maria Colling exercita a crítica feminista ao fazer uma abordagem histórica do conceito ‘cidadania’. Nele, ela se detém na acepção moderna do conceito, a fim de problematizar os dispositivos universais do liberalismo e da República e também as lutas históricas das mulheres pela conquista de direitos civis, políticos e sociais. Ao interrogar as matrizes discursivas – políticas, jurídicas, morais – que fundamentam aquelas representações sociais, inclusive as do feminino, a autora discute as práticas de silenciamento, violência e exclusão produzidas nas teias de construtos e sentidos articulados na sociedade moderna.

A Ditadura Civil-Militar brasileira é o cenário histórico onde circulam sujeitos-objetos do artigo seguinte, Mulheres que foram à luta: relações de gênero e violência na Ditadura Civil Militar brasileira (1964-1985). Nele, Clerismar Aparecido Longo e Eloísa Pereira Barroso discutem as experiências de mulheres militantes de esquerda que lutaram contra a ditadura civil-militar brasileira de 1964. Baseado em relatos colhidos pela Comissão Nacional da verdade, a partir de memórias subtraídas dos depoimentos, o texto assinala como determinadas relações vivenciadas por essas mulheres com os agentes repressivos nos órgãos do Estado ditatorial estão vincadas pelas demarcações e pela violência de gênero. Trata-se de uma interessante análise de representações do feminino que possibilita conhecer imagens, papéis, valores, normas específicas e parte significativa do imaginário androcêntrico em um passado recente de nossa experiência histórica.

O mesmo espaço e temporalidade, agora tomados através da sintaxe do cinema, como fonte da história, são alvos do artigo de Alcilene Cavalcante Oliveira, A violência de gênero durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) sob as lentes de Ozualdo Candeias. Inspirado na peça de teatro Milagre na Cela (1975), de Jorge Andrade, o longa-metragem de ficção, A Freira e a tortura (1983), mostra a prisão e a tortura de uma freira e a análise proposta no artigo dele se apropria para discutir um tema pouco trabalhado na historiografia brasileira: a violência política e de gênero contra religiosas durante o regime militar no Brasil.

Violência é também tema do artigo seguinte, de Vera Lúcia Puga e Michelle Silva Borges, Violência de Gênero, Justiça Criminal e ressignificações feministas. O ensaio fornece contribuições relevantes acerca dos avanços das práticas feministas, problematizando as incorporações mais ou menos críticas, as negociações e sobretudo as acomodações políticas evidenciadas nas leis, nos discursos da justiça criminal e nas práticas de punição. Em que pese a pressão constante dos movimentos feministas no enfrentamento da questão da violência social marcada pelo gênero, as autoras sugerem que muitas manobras na / da cultura androcêntrica, entre elas a institucionalização do patriarcado e das instâncias cotidianas de poder, exigem a renovação das lutas e a construção dialógica de novos processos de ação e subjetivação das mulheres.

Buscando uma alternativa ou estratégias para enfrentar e superar um cotidiano de violência e desigualdade social, para a autora, Cintia Lima Crescêncio, o humor e o riso produzido por cartunistas mulheres configuram uma maneira singular de ser e estar no mundo. Partindo desse debate, no artigo “Tá rindo de quê?” ou Os limites da teoria Humor Gráfico na Imprensa Feminista do Cone Sul, ela propõe uma reflexão sobre a importância dos discursos feministas e as dificuldades da teoria em explicar o humor gráfico contra-hegemônico produzido por mulheres e publicado em jornais feministas do Brasil, Argentina e Uruguai entre os anos 1970 e 1980.

No esforço de atravessar arenas históricas e historiográficas da violência, agora acerca do Brasil do século XIX, Fabiana Francisca Macena produz uma instigante reflexão a partir da análise de documentos sobre a escravidão no artigo Mulheres cativas nas Minas oitocentistas: experiências de liberdade. Ali, ela destaca crimes perpetrados por cativas da província de Minas Gerais, na segunda metade daquele século, bem como suas articulações e demandas junto à justiça na tentativa de alcançar a liberdade. As fontes, sob essa análise, revelam experiências que sublinham como aquelas cativas, mulheres pobres, negras e pardas, subverteram as imagens da passividade, de simples coadjuvantes ante a violência do cativeiro, e produziram, a partir de suas práticas políticas, efeitos abolicionistas, enfraquecendo a instituição da escravidão.

A questão da violência, da resistência e da exclusão, com base na interseccionalidade de categorias da identidade, reaparece em Bernardina Rich (1872- 1942): uma mulher negra no enfrentamento do racismo em Mato Grosso. O artigo de Ana Maria Marques e Nailza da Costa Barbosa Gomes, construído sobre fontes históricas pouco exploradas, ilumina e redescreve a trajetória de uma mulher negra, cuiabana, para problematizar os marcadores racistas, classistas, sexistas da sociedade mato-grossense do pós-abolição. Através de pesquisa criteriosa, as autoras refletem sobre a experiência da professora em meio às lutas pela emancipação feminina, pelo voto e escolarização das mulheres e às evidências do crescimento quantitativo das mulheres no mercado de trabalho remunerado. Assim, ao retomar criticamente aspectos dessa experiência significativa em relação àquele momento da educação brasileira, repleto de tensões, negociações e conflitos, o artigo desvela o processo da divisão sexual do trabalho docente e das lutas históricas de mulheres, negras e / ou brancas em busca de autonomia, reconhecimento e respeito na / da sociedade brasileira.

O artigo seguinte é um exemplar da crítica feminista sobre a literatura negrobrasileira. Gênero, Feminismo, Poder e Resistência na Contística, artigo de Rubenil da Silva Oliveira, Benedito Ubiratan de Sousa Pinheiro Júnior e Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões, examina a apropriação das categorias conceituais – gênero, feminismo, poder e resistência na contística de autoria negra feminina. Nessa aventura, eles se apropriam dos contos – O tapete voador e Nkala: um relato de bravura, da escritora Cristiane Sobral, que fazem parte do livro O tapete voador (2016), para analisá-los à luz de abordagens teóricas que discutem aquelas categorias, e refletem como tais textos literários abarcam o empoderamento feminino, já que as protagonistas resistem e não se deixam dominar, mesmo que isso lhes custe o emprego ou a vida.

O último artigo do dossiê é Os homens também choram: leituras de masculinidade na arte funerária a partir do caso do pranteador, de Maristela Carneiro. Nele, a autora explora o ato de prantear do homem por meio da abordagem de um exemplar escultórico proveniente da arte funerária paulistana: a obra Lenda Grega, parte do complexo tumular da Família Trevisioli, concebido em 1920 pelo escultor Nicola Rollo (1889-1970) e instalado no Cemitério da Consolação, em São Paulo. Segundo Carneiro, o sentido da morte é tão inescrutável para aqueles que ficam que a dor e o lamento, muitas vezes, são as únicas manifestações possíveis: o pranteador é escolhido como manifestação destes sentimentos. Também chamados pleurants, colocam-se em um lócus particular e transitório, entre a vida e morte. Diante dos túmulos, debruçados em pranteio, estas figuras sinalizam a morte, e tal sensibilidade modelada na arte embaralha e tensiona as representações de masculinidade habituais.

Reunidos no dossiê, embora em pequena amostragem, os artigos são reveladores do amplo espectro de objetos, problemas e abordagens possíveis, que se fazem necessárias, até mesmo urgentes em nossos dias, e exprimem o vigor e a fertilidade analítica da caixa de ferramentas das teorias feministas. Uma característica que deve ser destacada no dossiê é que vários textos aqui apresentados transitam nos caminhos da análise da cultura e da arte, isto é, no campo das representações modeladas na literatura, no cinema e na escultura.

Com efeito, o conjunto apresenta artigos elaborados sob diferentes perspectivas e enfoques, que exibem documentações e estratégias metodológicas próprias, contemplando diferentes temáticas, espacialidades e temporalidades, com um denominador comum: todos têm o gênero, os feminismos e o poder como parâmetros que articulam a narrativa e a (des)construção analítica. Nesta edição, portanto, será possível encontrar histórias de mulheres e de homens figuradas em diferentes escritas, mulheres que lutam, que escrevem, que vivenciam violências, e homens que choram. Também, encontrar questionamentos e críticas aos conceitos, os quais nos permitirão pensar na contribuição destes textos aos estudos de gênero, dos feminismos e das relações de poder.

Esperamos que as / os leitoras / es do dossiê possam desfrutar de tais contribuições e, sobretudo, a partir dessas elaborações, possam discutir, adensar e fomentar o debate que ainda se apresenta relevante e (cada dia mais evidentemente) incontornável para construir uma cultura de igualdade entre os sexos e de respeito às diferenças.

Boa leitura!

Blanca Susana Vega Martínez – Doutora em Humanidades pela Universidad Autónoma de Zacatecas. Professora e pesquisadora na Faculdade de Psicologia e no Instituto de Ciências Educativas da Universidad Autonóma de San Luís Potosí. E-mail: susanavega8@hotmail.com

Diva do Couto Gontijo Muniz – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília. E-mail: diva.gontijomuniz@gmail.com

Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro – Doutora em História pela Universidade de Brasília. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: mariaercarneiro@gmail.com


MARTÍNEZ, Blanca Susana Vega; MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Apresentação. Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v.10, n.2, dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina – MARTÍNEZ-PINZÓN; URIARTE (A-RAA)

MARTÍNEZ-PINZÓN, Felipe; URIARTE, Javier (Editores). Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2016. Resenha de: JARAMILLO, Camilo. Antípoda – Revista de Antropolgía y Arqueología, Bogotá, n.27, jan./abr. 2017.

“En el principio fue la guerra y todo en América Latina tiene la marca de esa experiencia bélica fundacional, el big-bang que habría hecho posible la independencia, naciones, realidades políticas, [y] soberanías” (p. 88). Esta certera oración, escrita por Álvaro Kaempfer en la colección de ensayos que este texto reseña, es la idea estructural del reciente libro editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Aunque informado por discusiones políticas e históricas, Entre el humo y la niebla busca reflexionar, sobre todo, y como su título lo dice, acerca del campo de las representaciones culturales y las maneras en las que estas han pensado y teorizado la guerra y, de paso, reforzado o desestabilizado lo que se entiende por ella. Al enfocarse en la literatura, la fotografía u otras formas de prácticas culturales, el libro llena un vacío en la producción académica latinoamericana, a la vez que extiende el diálogo con otras publicaciones de algunos de los autores también incluidos en la colección de ensayos, como los de Julieta Vitullo, Martín Kohan y Sebastián Díaz-Duhalde1. Uno de los hallazgos fundamentales del libro está en trascender la idea de la guerra como acto político e histórico y preguntar, como lo hacen los editores, “de qué hablamos cuando hablamos de guerra” (p. 24). Así, pensada a partir de sus representaciones culturales, la guerra se revela como una maquinaria cultural que moviliza las maneras en las que se entienden y construyen los espacios: la guerra, nos convence este libro, es un acto de espacialización. Estas representaciones permiten entender la guerra como una maquinaria y “epistemología estatal” (p. 11), y pensar las continuidades y similitudes entre los actos de hacer la guerra y constituir el Estado. Pero, sobre todo, y este es uno de los puntos neurálgicos del libro, se revela la guerra como laboratorio de representación y de ficción que lleva a los límites al lenguaje, a la forma y a sus significados: nos presenta la guerra como una “tecnología discursiva” (p. 5). Al hacer todo esto, Entre el humo y la niebla señala un corpus de representaciones culturales sobre la guerra y consolida un inicio para pensar el tema como eje de la cultura del continente.

El punto de partida es, más que la definición, la discusión de la indefinición del concepto de guerra y la delimitación de lo que se entiende por ella. Los editores parten de la idea de esta como “práctica militar y discursiva que da forma a la existencia/inexistencia del Estado-Nación moderno” (p. 12) y proponen “pensar la guerra como manera de entender las dinámicas de poder que constituyen el Estado, y que espacializan la geografía imaginada de las naciones y las regiones que componen América Latina” (p. 26). Este posicionamiento sobre lo que se entiende por guerra se amplía y complica a lo largo de los catorce ensayos mediante una reflexión sobre la cercanía de la guerra con la idea de la revolución (ver, por ejemplo, los ensayos de Juan Pablo Dabove y Wladimir Márquez-Jiménez incluidos en el libro), y se problematiza con reflexiones sobre esa nueva forma de hacer guerra como “condición permanente” (p. 10) entre Estados y sujetos en conflicto continuo, como es el ejemplo que expone el ensayo de João Camillo Penna sobre las favelas de Río de Janeiro. A través del recorrido de los ensayos presentes en la edición queda en evidencia la variedad de formas en las que la guerra se ha manifestado en Latinoamérica y, de ahí, su dificultad para teorizarla. A propósito de esto, Entre el humo y la niebla, aunque no la contesta, prepara el terreno para una pregunta por la transformación radical de la idea de guerra en los Estados neoliberales contemporáneos (y la transformación de la idea de Estado como tal) atravesados, en el caso particular de Colombia y México, por la guerra contra el narcotráfico.

Frente a la relación entre la guerra y el Estado, los editores se preguntan “si hacer estado es hacer la guerra” (p. 23) y señalan el acto bélico como una de las maneras más emblemáticas de visibilidad y praxis de este. Pensando en las maneras en las que se visibiliza y teoriza la guerra, cabe resaltar el ensayo de Álvaro Kaempfer, “El crimen de la guerra, de J. B. Alberdi: ‘Sólo en defensa de la vida se puede quitar la vida'”, que ofrece un análisis de cómo esta, constituida como excepción, termina, sin embargo, volviéndose la “matriz política, económica, social y cultural” del continente (p. 86). El ensayo, a través de un análisis del discurso político de Alberdi, identifica uno de los posibles precedentes para pensar la guerra desde y para Latinoamérica. Extendiendo la reflexión sobre el estado de excepción como categoría constitutiva del poder del Estado, aparece y reaparece a lo largo de los ensayos la teorización de la guerra alrededor de las teorías de biopolítica y excepcionalidad de Giorgio Agamben, resaltadas a partir de estudios sobre la animalidad y sobre criaturas umbrales que señalan los límites entre el ser social y el ser animal (ver, por ejemplo, los ensayos de Gabriel Giorgi y Fermín A. Rodríguez). Las reflexiones de Entre el humo y la niebla invitan a pensar la guerra como mecanismo para constituir, garantizar, manipular y abusar el pacto social entre el Estado y el ciudadano, y revelar así su contradictoria operación desde la normatividad y la prevalencia de sus, sólo en apariencia, momentos de excepción. La literatura se presenta entonces, ante esto, como índice de denuncia y reflexión sobre esta contradicción.

La guerra es también una cuestión de espacio: “Guerrear es […] reconocer, mirar, distinguir, ubicarse en el espacio, en ocasiones para apropiarlo, en otras para destruirlo, a veces para ‘liberarlo’, o para volverlo mapeable, legible” (p. 14). No en vano, la geografía es un conocimiento que resulta del ejercicio de “guerrear”, verbo que “crea el mismo espacio que quiere conquistar” (p. 15). En relación con esto, Martín Kohan analiza en su ensayo que la guerra -el texto sobre la guerra- se convierte, sobre todo, en una experiencia en y sobre el espacio; la guerra se transforma en un asunto inaudito de percepción, distancia, movilidad, visibilidad e invisibilidad, en donde la expresión de pronto encima articula la acción como experiencia y entendimiento del espacio y la (im)posibilidad de ver o no en él. En la lectura que hace Kohan de La guerra al malón (1907) y de Conquista a la Pampa (1935, póstumo) del comandante Manuel Prado, la guerra no es una experiencia bélica sino un factor que determina la representación de la Pampa y la negociación con esta. Por otra parte, en “La potencia bélica del clima: representaciones de la Amazonía en la Guerra con Perú (1932-1934)”, Felipe Martínez-Pinzón piensa la guerra como una práctica que se ejerce contra el espacio mismo. Así, la guerra aparece como mecanismo de integración de la selva al imaginario y a la economía de la nación, y como recuperación de un espacio-tiempo que amenaza con corroerlo todo. Guerrear es así, también, ordenar y rescatar. Del ensayo de Martínez-Pinzón hay que resaltar la inclusión y el análisis de una mirada poco frecuente en la literatura, aquella que se da desde el avión. También como maquinaria de guerra, el avión posibilita otra manera de relacionarse y dominar el espacio. Contrario al de pronto encima que analiza Kohen, el avión es una manera de hacer, de ver y de espaciar la guerra desde la distancia, una distancia que ayuda a obnubilar y desaparecer la ética que se pone en juego en la guerra. (Para más sobre la relación entre guerra y espacio, ver el ensayo de Kari Soriano Salkjelsvik incluido en el libro).

La guerra es también maquinaria de tiempo: aparece, por ejemplo, en la emergencia de las ruinas tras la guerra de Canudos, que analiza Javier Uriarte; en las fotografías que son índice de muerte, en el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, o en el tiempo corroedor de la selva que se contrasta con el tiempo productivo de la nación, y hasta en el de pronto encima que trabaja Kohen. Pero si bien Entre el humo y la niebla deja claro que la guerra es cuestión de espacio, deja abiertas preguntas sobre la guerra como un mecanismo que impone, produce u oculta ciertas temporalidades. Cabría preguntarse, entonces, por cuál es la temporalidad de la guerra y por el tipo de temporalidades que impone. En el discurso de la nación, la guerra hace parte de la puntuación de la Historia, y, junto con sus formas de ejercitar poder y de crear espacios y geografías, impone una narrativa de tiempo en aquello que Benjamin llama “a homogeneous, empty time” (2014, 261). Visto así, la guerra produce y participa de una cierta idea (hegeliana) del tiempo como Historia, de la cual habría que generar una distancia crítica. Por otra parte, el trauma de la guerra se recuerda, no sólo en la conmemoración del museo, como lo analiza M. Consuelo Figueroa G. en su ensayo sobre la celebración de guerras en Chile, sino como memoria traumática que se personaliza, se revive, se recuenta, se negocia, y en su proceso se fragmenta en la temporalidad del yo.

Pero más allá de la reflexión sobre el Estado, el espacio o el tiempo, el epicentro del libro está en lo que, imitando las palabras de los editores, la guerra le hace al lenguaje. Uno de los más sólidos aportes del libro radica en la propuesta de la guerra como mecanismo de reflexión sobre la representación y como laboratorio de producción literaria. Como explican los editores, la guerra, “a la vez que produce lenguaje y es producida por el lenguaje, lo trastoca, lo cambia, transformando a quienes nombra o deja de nombrar” (p. 25). En otras palabras, la guerra nos acerca al límite del lenguaje y de la representación, a “su indecibilidad e inestabilidad” (p. 25). Es por eso que la guerra, como tal, casi no está. Está su antes, su después, su espera o su mientras tanto, pero no la guerra en su bulla y su acción. De ahí, entonces, que la guerra sea aquello que está entre el humo y la niebla, en esas zonas difusas que la guerra quiere aclarar, y entre esos humos que deja la batalla: “el Estado concibe la guerra como una disipación de zonas de niebla que distorsionan su mirada al permanecer impenetradas por ella” (p. 8). Pero a su vez, “el humo […] es también la huella, el trauma, el conjunto de los discursos que acompañan y suceden al conflicto” (p. 9).

A los límites del lenguaje y de lo indecible nos lleva el ensayo de Javier Uriarte sobre Os sertões (1902) de Euclides da Cunha, incluido en Entre el humo y la niebla. En su lectura sobre los acontecimientos de Canudos, en Brasil (1897), la guerra emerge como una lucha con el lenguaje y la imposibilidad de este de decir, de dar cuenta de. Dice el autor:

Creo que el logro más importante de Os sertões no radica en las férreas certezas del narrador, sino en el derrumbe de las mismas. Se trata de la textualización de una incomprensión: es el dejar de reconocerse o el reconocerse como otro, como incapaz de entender del todo, el desnudar la guerra como imposibilidad de la mirada. Al mismo tiempo que hace presente este límite y reconoce la insuficiencia de la mirada del narrador, Os sertões presenta la lucha de este último con su propia capacidad de decir. Es en gran medida un libro sobre el propio lenguaje llevado a sus límites máximos, en lucha consigo mismo. (p. 139)

En la narrativa cultural de Brasil, la guerra de Canudos marca un antes y un después. El texto de da Cunha desestabiliza y redefine la manera en la que la nación se piensa en el siglo XX. Es, se puede decir, el temprano antecedente sine qua non del modernismo brasilero y la redefinición de su identidad poscolonial moderna. Al identificar la guerra como un momento en el que el lenguaje entra en crisis, Uriarte apunta, aunque no lo diga, a la guerra como el momento en el que se forja la reinvención del lenguaje del Brasil moderno. Esto, más que organizar la historiografía literaria de Brasil, alerta sobre el poder de la guerra de desmantelar y reinventar un lenguaje para el Estado, la nación y su identidad. En otras palabras, la guerra es laboratorio de la nación y de su lenguaje. Esto también lo extiende el ensayo de Roberto Vechi incluido en el libro.

A los límites del lenguaje y de la voz también nos lleva el ensayo de Gabriel Giorgi, “La rebelión de los animales: cultura y biopolítica”. En su lectura de la voz animal -la voz y su sentido distinguen y conceden el reconocimiento político del cuerpo-, Giorgi nos lleva a un análisis del lenguaje en la guerra por partida doble. Por un lado, su enfoque vuelve al animal y a su voz para complicar las fronteras de la inscripción política y de la soberanía, y por otro, reflexiona sobre la cualidad del lenguaje en la guerra y los límites de su decibilidad. En otras palabras, nos lleva a pensar en el aullido de guerra y su in/constancia como lenguaje de la batalla y en la batalla. Dice Giorgi que:

[…] en los textos de las rebeliones animales, ese espacio de incertidumbre en torno a lo oral es una zona poblada de ruidos, aullidos, gruñidos, que marca el límite no ya entre el lenguaje y no lenguaje, sino el umbral de la virtualidad del sentido; del sentido como inmanencia, como pura potencialidad. La pregunta ahí no es ¿quién habla? o ¿quién tiene derecho a hablar? sino, más bien, ¿qué es hablar? o ¿qué constituye un enunciado? (p. 210)

La guerra, pues, se presenta como momento de rearticulación de la voz, el lenguaje, y rearticulación de las políticas que determinan su legibilidad y sentido.

Me interesa resaltar el ensayo de Sebastián J. Díaz-Duhalde, “‘Cámara bélica’: escritura e imágenes fotográficas en las crónicas del Coronel Palleja sobre el Paraguay”. Este ensayo introduce la cultura visual como parte fundamental del corpus de representaciones culturales sobre la guerra. Como rastro de la muerte, la fotografía visibiliza la guerra sólo cuando esta ya no está; aparece, como dice el autor del ensayo, “como un resto” (p. 64). Es decir, aunque la hace visible, al registrar eso que ya no está presente, la ubica de nuevo en el humo y en una ambigua categoría temporal. Por otra parte, el ensayo de Díaz-Duhalde extiende la reflexión sobre los límites de la representación al proponer que en los escritos del coronel Pallejas, la fotografía entra a renovar y transformar el discurso narrativo, generando un “nuevo sistema representacional” (p. 74) en el que el lenguaje “echa mano de procedimientos fotográficos para ‘hacer visible’ la guerra” (p. 69); de nuevo, la guerra como laboratorio de una literatura que busca salirse de sus convenciones. En relación con la cultura visual y el campo de los estudios interdisciplinares, habría que notar la ausencia en el libro de estudios sobre la guerra en el cine. Películas como La hamaca paraguaya de Paz Encina (2008), sobre la guerra del Chaco; La sirga de William Vega (2013), sobre el conflicto armado colombiano, o incluso Tropa de élite de José Padilha (2007), sobre las favelas de Río de Janeiro, son algunos ejemplos de producciones fílmicas que en los últimos diez años han pensado la guerra, la violencia y la nación en formas similares a las que los ensayos de Entre el humo y la niebla elaboran críticas del tema. Queda la pregunta abierta: ¿cómo ha aparecido la guerra en el cine latinoamericano?

Los aciertos de Entre el humo y la niebla son muchos. El libro está informado por, y a la vez extiende, debates contemporáneos relacionados con la soberanía del Estado y sus límites, la biopolítica, los estudios animales y, en general, sus reflexiones sobre el rol de la literatura y los estudios literarios para darles continuación o interrupción a los aconteceres políticos del continente. La capacidad de la literatura como herramienta que obliga a generar una distancia crítica frente a la guerra, y de paso, también, frente a los discursos nacionalistas se ve con claridad en el ensayo de Julieta Vitullo sobre la guerra de las Malvinas (de 1982) incluido en Entre el humo y la niebla: “La guerra contenida: Malvinas en la literatura argentina más reciente”. Vitullo afirma, por ejemplo, que “la ficción se impuso como interrupción de los discursos sociales y mediáticos sobre la guerra, constituyéndose como saber específico, con estatuto y reglas propias” (p. 272). El libro, editado por Felipe Martínez-Pinzón y Javier Uriarte, identifica un corpus de producciones corporales y consolida un campo de estudio amplio, sólido y relevante. El libro expone y desarrolla aquello que indica Vitullo: las representaciones culturales se constituyen como un saber específico que nos obliga a generar una distancia crítica respecto al fenómeno de la guerra y sus consecuencias. El libro es, pues, un punto de partida clave para el campo de estudios que inaugura.

Notas

1Me refiero a los libros Islas imaginadas: la guerra de las Malvinas en la literatura y el cine argentinos (2012) de Julieta Vitullo, El país de la guerra (2015) de Martín Kohan y La última guerra: cultura visual de la guerra contra el Paraguay (2015) de Sebastián Díaz-Duhalde

Referencias

Benjamin, Walter. 2014. “Theses on the Philosophy of History”. En Illuminations: Essays and Reflections, 253-267. Nueva York: Schocken Books. [ Links ]

Díaz Duhalde-Sebastián. 2015. La Última Guerra. Cultura Visual de la Guerra contra Paraguay. Buenos Aires y Barcelona: Sans Soleil Ediciones. [ Links ]

Kohan,-Martín. 2014. El país de la guerra. Buenos Aires: Eterna Cadencia. [ Links ]

Martínez Pinzón -Felipe y Javier Uriarte, eds. 2016. Entre el humo y la niebla: guerra y cultura en América Latina. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. [ Links ]

Vitullo-Julieta. 2012. Islas imaginadasLa Guerra de Malvinas en la literatura y el cine argentinos. Buenos Aires: Corregidor [ Links ]

Camilo Jaramillo – Profesor de Spanish and Latin American Literature, Universidad de Wyoming. Entre sus últimas publicaciones están: “Green Hells: Monstrous Vegetations in 20th-Century Representations of Amazonia”. En Plant Horror: Approaches to the Monstrous Vegetal in Fiction and Film, editado por Angela Tenga y Dawn Keetley, 91-109. Palgrave Macmillan, 2017. camilojaramilloc@gmail.com

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História indígena, agência e diálogos interdisciplinares

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História da arquivologia no Brasil: instituições, atores e dinâmica social

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Diálogos desviantes no arquivo: das experimentações artísticas à educação das sensibilidades

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Moda e indumentária: entre imagens e artefatos

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Estado Novo, 80 anos – arquivos e histórias

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Modos | Unicamp | 2017

Modos

Criada pelo Grupo de Pesquisa MODOS – História da Arte: modos de ver, exibir e compreender, a revista MODOS (Campinas, 2017-) objetiva publicar textos que visam discutir a produção artística, crítica e [produção] historiográfica dedicada às artes visuais em suas várias dimensões, dando ênfase aos lugares de exibição, à circulação, às coleções e às narrativas que instituem como percebemos, interpretamos e divulgamos a produção artística e o objeto de arte. MODOS está vinculada a seis Programas de pós-graduação em Artes/Artes Visuais (UnB, UNICAMP, UFRJ, UFRGS, UFBA e UERJ).

A revista aceita artigos (em português, espanhol e inglês), traduções, entrevistas e resenhas de livre tema, bem como textos para dossiês temáticos, organizados por pesquisadores convidados pela Comissão Editorial ou pelos Editores.

Periodicidade trimestral.

Acesso livre.

ISSN 2526-2963

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Public History. A Practical Guide – SAYER (IJHLTR)

Faye Sayer /

SAYER F Public History A Practical GuideSAYER, Faye. Public History. A Practical Guide. London, Bloomsbury, 2015. Resenha de: HARNETT, Penelope. International Journal of Historical Learning Teaching and Research, London, v.14, n.2, p.150, 2017.

What’s the point of history? In a time when the value of studying the humanities is often questioned this book provides a genuine attempt to analyse how history impacts on people’s lives. The book explains how the past connects with its public, discussing the role which interpretations play in contributing to social and cultural traditions alongside developing personal understanding. Public History is described as a dynamic undertaking involving dialogue between historians, the past and different audiences and Sayer provides detailed examples of how this occurs in different spheres.

Chapters focus on a different aspects of public history (e.g. museums, archives and heritage centres, teaching history, media history etc.) offering readers a comprehensive guide to a range of issues. The context of each chapter is explained in helpful introductions which are then followed by discussion, illustrated by specific case studies. Leia Mais

História e Historiografia da Educação. Curitiba, v.1, n.3, 2017.

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História e Historiografia da Educação. Curitiba, v.1, n. especial 2017.

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História e Historiografia da Educação. Curitiba, v.1, n.1, 2017.

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Desafios e Caminhos do Ensino, Pesquisa e Extensão em Relações Internacionais no Brasil | Meridiano 47 | 2017

A ampliação dos cursos de graduação e de pós-graduação, a diversidade das atividades com interface internacional, assim como os avanços teóricos e empíricos da disciplina nos últimos anos evidenciam a consolidação do campo de Relações Internacionais no Brasil. Ao mesmo tempo, as mudanças nas tecnologias da informação, as novas possibilidades de atuação profissional e os desdobramentos interdisciplinares estimulam a discussão sobre o perfil dos egressos, bem como sobre as expectativas do mercado de trabalho e do Estado em relação ao campo.

Questões sobre ensino, aprendizado e concepções pedagógicas são discutidas e rediscutidas em todas as áreas, assim como a questão das competências e habilidades profissionais. Há um esforço constante em diminuir lacunas entre o que os cursos oferecem, a expectativa dos estudantes e as oportunidades profissionais. O dinamismo do mundo real, do mercado de trabalho e das agendas de pesquisa acadêmicas constantemente estimulam balanços e avaliações sobre o processo de aprender a aprender, de ensinar a aprender e de aprender a ensinar. Para a área de Relações Internacionais essa discussão tem uma relevância adicional, pois, trata-se de uma área estratégica para o desenvolvimento nacional com enorme responsabilidade em formar quadros a serem absorvidos pelo setor privado, órgãos governamentais, não governamentais, academia, entre outros. Leia Mais

Rural e Urbano. Recife, v.2, n.2, 2017.

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  • Mariana Zerbone Alves de Albuquerque, Maria Rita Ivo de Melo Machado, Edvânia Torres Aguiar Gomes
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Artigos

Enapinos. Los campamentos petroleros del fin del mundo. Un patrimonio industrial por armar. Etapa Fundacional (1945-1962) | Pía Acevedo e Carlos Rojas

La gran minería industrial ha sido retratada en la historiografía chilena, donde las extracciones de cobre y salitre han sido ampliamente abordadas y trabajadas desde distintas áreas de estudio. El caso del petróleo en Chile es incipiente y en primera instancia fue desarrollada por historiadores locales como Mateo Martinic (1983) y Silvestre Fugellie (1995) quienes se refirieron a las implicancias que la actividad petrolera generó en la región de Magallanes, desde los primeros vestigios de hidrocarburo en el sector, hasta las etapas de exploración, extracción y comercialización del llamado “oro negro” a comienzos del siglo XX.

Posterior a estas primeras investigaciones, surgen otras que desde diferentes disciplinas, buscan responder a las interrogantes respecto del auge petrolero en el fin del mundo. Es así como Romy Hecht (2002), arquitecta de profesión, realiza un estudio sobre las características arquitectónicas de Cerro Sombrero, poniendo especial atención en los atributos únicos de diseño del campamento y su entorno urbano. Tiempo después, la arquitecta local Pamela Domínguez (2011) retoma Cerro Sombrero y nos invita a mirar al, actualmente ex campamento enapino, desde los cimientos de la arquitectura moderna que lo posicionó como Zona típica y Monumento histórico el año 2014. Leia Mais

Volverse Palestina | Lina Meruane

Lina Meruane es escritora, periodista y docente, y se ha hecho conocida tanto por sus libros de cuentos y novelas Las Infantas (1998), Póstuma (2000), Cercada (2000), Fruta podrida (2007) y Sangre en el ojo (2012), como por sus trabajos ensayísticos y crónicas Viajes virales (2012), Contra los hijos (2014) y Volverse Palestina (2013/2014).

Sus textos narrativos tienden a centrarse en el cuerpo, los cuerpos, todos femeninos: cuerpos adolescentes en Las Infantas; cuerpos sufrientes, incluso en estado de putrefacción, en Fruta podrida y Sangre en el ojo; cuerpos en lucha por dominar a otro cuerpo y cuerpos que carecen de todo abrigo y enfrentan así al mundo porque no les queda otra. Meruane escribe en un contexto literario de post-dictadura. Allí el sufrimiento y la lucha de las figuras se convierten en señales liberadoras, a la vez que potencialmente fatales. Sus textos se valen de un lenguaje velado y corporal pasible, llegado el momento, de expresar lo inexpresable, de acusar recibo del daño y del deterioro que desean comunicar, incluso si se trata de expresarse en voz alta antes de sucumbir. Leia Mais

A cartografia no ensino de geografia: a aprendizagem mediada | Mafalda Francischett

1 INTRODUÇÃO

Este texto apresenta a síntese da obra intitulada “A cartografia no ensino de Geografia”, resultado da tese de doutoramento da Professora Mafalda Nesi Francischett. A tese foi defendida em 2004, no Programa de Doutorado em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente. A temática pesquisada foi o ensino de Cartografia por meio de maquetes no curso de Geografia. Desenvolveu a pesquisa por meio da pesquisa-ação, que permitiu à pesquisadora envolver-se com o trabalho, analisar, avaliar e refletir enquanto os caminhos da pesquisa se delineavam. O é de obra grande importância pelo método de pesquisa – pesquisa-ação – que evidencia o comprometimento da autora com o processo formativo de professores para a educação básica e também porque aborda a importância da Cartografia como ciência que, aliada à Geografia, tem grande potencial para o ensino da espacialidade.

O objetivo central da pesquisa foi evidenciar como, por meio da maquete, se pode ensinar os conceitos fundamentais da Cartografia, de tal modo que o processo de aprendizagem se torne significativo e se reverta em apropriações conceituais para os estudantes. Leia Mais

Mitos Papais: política e imaginação na história – RUST (RBH)

RUST, Leandro Duarte. Mitos Papais: política e imaginação na história. Petrópolis: Vozes, 2015. 248p. Resenha de: BOVO, Claudia Regina. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017. 

Eis uma obra provocativa. Essa é a primeira constatação sobre Mitos Papais, trabalho que articula a análise histórico-historiográfica do poder pontifício com suas interpretações “mitológicas”, intepretações estas que ainda sustentam calorosos debates sobre qual deve ser o papel político do papado. Ah, a política! Sim, mais uma vez a política. Essa arte da negociação, área tão negativamente avaliada nos nossos dias, é o campo sobre o qual Leandro Duarte Rust se debruça para trazer a um público não acadêmico a construção histórica dos mitos em torno da atuação papal. A abertura do texto já marca o tom desafiador da proposta: “Mito ou realidade?”. Ao superar a dicotomia rasa que definiu vulgarmente o mito e as mitologias como a falsificação do real, Rust marca a abertura do seu texto reconhecendo outro modo de defini-los. Inspirado por Joseph Campbell, para quem a mitologia soava como poesia, Rust define os mitos como meio de se conhecer as relações políticas, forma de interpretar a política e também como maneira de expressá-la.

Essas experiências de significado são, nada mais nada menos, do que pistas para descortinar as potencialidades humanas, rastros da experiência humana no tempo, algo que se aplica ao que somos e explica como somos. Não há lugar para invenção, não há lugar para a desrazão, os mitos nos envolvem porque são um mecanismo de interpretação da experiência humana. Portanto, a ideia do livro não é simplesmente desconstruí-los, mas aprender com eles. Tirar deles o conhecimento que nos qualifica enquanto seres políticos. É importante reiterar que o objeto de análise aqui não está restrito ao papado, mas é extensivo à política e às suas diversas formas de negociação, conflito e acordo. Os Mitos Papais não poderiam ser melhor substância para exemplificar o exercício de análise proposto.

Com narrativa envolvente e cadenciada, o livro apresenta cinco mitos que ajudaram a estabelecer e a manter o papado romano no centro dos debates políticos da Contemporaneidade. Chamamos de contemporânea a leitura sobre a experiência política pontifícia do final do século XIX até os dias atuais. Desde a busca pela ossada de seu fundador – Pedro – ao silêncio pontifical durante o genocídio judaico promovido pelos nazistas, os mitos escolhidos por Leandro Rust aguçam a curiosidade de qualquer leitor ávido por história e, principalmente, ensinam como a historização das narrativas pode ajudar a instrumentalizar as consciências históricas contemporâneas. Um caminho investigativo que ajuda a nos aventurarmos pela complexidade das experiências históricas papais.

Interessado em aprender com os mitos, com a leitura histórica que eles fomentam, Leandro Rust trata no primeiro capítulo da empresa incentivada pelo papa Pio XII para encontrar, sob o solo da basílica de São João de Latrão, os restos mortais do apóstolo Pedro. Rust se pergunta “por que, a certa altura da vida contemporânea, a tradição religiosa deixou de saciar a certeza a respeito da realidade histórica do fundador da Igreja Romana?” (p.67). Em outras palavras, por que justamente durante os conturbados anos da década de 1940 houve o impulso a essa saga arqueológica para provar a existência das relíquias e da tumba de Pedro? A resposta segue esta lógica: só o discurso de fé não era mais suficiente. Era preciso uma prova material, com atestado científico, para legitimar a saga fundadora de Pedro. A narrativa do autor nos leva a atestar o papel dos mitos na política e a condição indelével do apelo à renovação cristã – Renovatio Christiana.

A saga lançada por Pio XII em busca da tumba de Pedro atuou como remédio para as políticas de secularização que havia algumas décadas esvaziavam as fileiras dos bancos católicos, resultando na atualização do discurso católico às demandas racionais da modernidade. Por meio da verificação científica de sua materialidade santa – o encontro com a tumba de Pedro – o catolicismo demonstrava sua base inequívoca. Conforme apresenta o autor, “o reencontro com o primeiro papa seria a prova de que o Vaticano tinha saída para superar os abismos que os homens cavam entre si e uni-los em uma harmonia palpável. Poucas instituições poderiam oferecer uma resposta tão contundente para populações mergulhadas em traumas e incertezas” (p.72).

Não é por acaso que o mesmo Pio XII que abre com destaque os Mitos Papais seja o mesmo personagem discutido no último capítulo do livro. Visto por alguns como o estandarte da modernização da Igreja Apostólica Romana e por outros como o “papa de Hitler”, a disputa pela memória coletiva de sua atuação pontifícia ainda está aberta. Santo dos católicos e algoz dos semitas, essa emblemática dicotomia sobrevive como mitos políticos de uma mesma experiência humana. Herói e vilão são interpretações conflitantes que figuram lado a lado quando se fala sobre a atuação política do papa Pio XII. Daí nossa insistência em definir a proposta deste livro como provocativa e desafiadora. Como demostra Rust, a luta pela memória a ser preservada sobre Pio XII tem início logo depois de sua morte. De peça de teatro que o ridicularizava ao boom literário dos anos 1990 que ora o criticou ora o valorizou, Pio XII representa o fardo dos Mitos Políticos. Ao mesmo tempo que se opõem, ambas versões se complementam. Dito de outra forma, ambas versões são expressões do modo de se pensar e se fazer política contemporaneamente, elas estão embasadas na premissa da divisão dicotômica das disputas políticas, da divisão partidária da vida social. Aventurar-se por esses mitos que envolvem a figura de Pio XII é ter a mais clara exposição das nossas relações políticas e de como não estamos alheios a elas.

Em tempos de impeachment, de estandartes e histerias coletivas que atribuem à política as mazelas do mundo, o mito aparece como meio de descortinar nossas práticas políticas, de compreendê-las. Enquanto meio de interpretação legítimo para conhecer as relações políticas o mito tira do senso comum, ou melhor, devolve a ele a necessidade de avaliação constante das expressões narrativas com as quais compactuamos, dessas razões práticas às quais, enquanto grupos sociais, recorremos “para justificar e legitimar nossos interesses”. Sim, nós fazemos isso; conscientemente ou não, fazemos.

Portanto, como bem advoga Rust, o mito político não é uma inverdade, mas uma narrativa que idealiza o passado para legitimar ou desacreditar um regime de poder. Uma chave de leitura do mundo que nos orienta a tomar posicionamentos – políticos, por sinal – nas disputas pelo poder. Cientes do que a leitura deste livro pode provocar, é preciso reconhecer: não há melhor maneira de escancarar a utilidade do conhecimento histórico e político. Ainda mais em tempos nos quais se dão amplas discussões da política pública educacional, cujo cerne é a ideia já batida de renovação: a Base Nacional Curricular Comum, a Base Comum para Formação Docente, a PEC da Escola sem Partido, a Medida Provisória do Ensino Médio. Nesse sentido, o livro de Leandro Duarte Rust nos desafia a olhar para dentro de nós mesmos, para aquilo que usamos como definição das coisas, e nos força a reavaliar, a reconhecer a historicidade de nossas razões práticas. A História, a Política, o Papado e a Idade Média não soam como perfumaria curricular. Pelo contrário, desses imaginários diversos, dessas mitologias pseudodespretensiosas, retiramos muitas interpretações que ainda respondem aos nossos interesses mais vorazes. Contextualizá-las ainda se faz necessário. Falar sobre elas é mais urgente do que nunca!

Claudia Regina Bovo – Departamento de História, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Uberaba, MG, Brasil. E-mail: claudia@historia.uftm.edu.br.

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Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento / História & Perspectivas / 2015

Com o n. 52, História & Perspectivas mais uma vez traz a público um conjunto de contribuições à compreensão do processo histórico, nacional e internacional. As interpretações aqui presentes representam uma rica mostra do que se debate e se produz na historiografia atual.

O tema central deste número é “Ética e pesquisa no campo da História”, questão atemporal e que envolve todos os campos investigativos e não apenas a História ou o macro campo das Ciências Humanas e Sociais. E isso remete à necessidade de reflexão, tanto sobre a implementação propriamente dita da pesquisa como sobre a responsabilidade sócio-acadêmica dos que a praticam e dos usos que são feitos dos resultados que, desde muito, fazem parte do cotidiano de todos nós.

É nesse horizonte que o binômio ética e pesquisa tem sido um tema recorrente nos debates da área de Ciências Humanas e Sociais, especialmente se considerarmos o contexto das mudanças significativas que resultaram na sociedade do século XXI, decorrentes da intensificação dos processos de globalização das relações econômicas, culturais e científicas.

Ao longo do tempo, os humanos foram passando da condição de coletores para a de produtores de seus alimentos, de nômades para sedentários, de grupos dispersos para sociedades organizada. Aprenderam a curar suas feridas e a se utilizar da riqueza natural que os cercava, enveredando pelos mares, subindo as montanhas, dominando as florestas e as regiões áridas; enfim, passaram a ter domínio sobre suas condições de sobrevivência, num mundo a princípio inóspito, mas que gradativamente foi sendo submetido. Ao mesmo tempo, geraram regulamentos que garantiam condições variadas de sociabilidade, permitindo o planejamento de sua hegemonia e a das gerações futuras neste mundo, além de registrar e dar sentido à sua trajetória por meio da construção da História.

Esse é um processo longo e doloroso, só possível pela habilidade do homem de observar, registrar, lembrar, fazer relações e tirar conclusões sobre o que acontece à sua volta. Característica que, respeitadas as diferenças, o acompanha desde priscas eras e que passamos a chamar em certo momento de investigação científica ou simplesmente de ciência. Nos moldes em que a conhecemos hoje, passou a tomar forma nos tempos modernos, marcados pelo uso metodizado e contínuo da razão, do experimento na busca de melhorias que garantissem cada vez mais condições de conforto ao homem ou, até, a busca da felicidade.

Muitos percalços foram enfrentados – o confronto com a religião, a luta pela garantia das liberdades –, usos condenáveis do conhecimento foram disseminados – tecnologias de guerra, de tortura, de manipulação das vontades –, mas, ao mesmo tempo, descortinaram-se benefícios infindos por intermédio da prática científica. E, com a dependência cada vez maior do homem em relação à ciência e à técnica, a reflexão sobre os usos, os procedimentos, as consequências das transformações geradas fora do circuito “natural”, gerando impactos e consequências para o meio ambiente para os quais nem o próprio homem estava preparado, geraram uma necessidade de se pensar não apenas os horizontes, mas também os riscos que se abriam e se abrem por conta da preeminência científica que a cada dia se avoluma. E essa reflexão se dá no âmbito da razão, em sociedades que respeitam regras comuns, que aceitam os direitos como patrimônio coletivo e que necessitam de assegurar tanto a convivência como a sobrevivência de todos, vislumbrando na ciência tanto a edificação de um futuro radioso como de uma catástrofe iminente.

Como superar esse impasse? Como conciliar os avanços da ciência com a preservação de valores, com o respeito ao ambiente que nos hospeda e à dignidade humana que construiu esse mundo que nos abriga? Em suma, ainda que seja unânime o reconhecimento do valor e da necessidade da ciência, também se consolidou uma visão comum da importância de se refletir sobre a prática investigativa e sobre a necessidade de se estabelecer parâmetros para sua implementação. É nesse espaço que a ética se apresenta, contribuindo para a reflexão sobre a relação do homem com o conhecimento científico. E é aí também que a História entra, ao inserir a perspectiva histórica nessa reflexão, a relação do homem com a produção e o usufruto do conhecimento ao longo do tempo.

Os textos deste dossiê não pretendem oferecer respostas ou soluções para esses e outros dilemas que assolam o ambiente acadêmico-científico brasileiro. De resto, todos nós sabemos que soluções desse tipo não existem. No entanto, contribuem significativamente para a ampliação da reflexão e para o embasamento teórico-metodológico dos pesquisadores e estudiosos sobre o debate recente em torno das resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Saúde regulamentando os procedimentos de avaliação e controle da prática da pesquisa no Brasil, sobre a formação do pesquisador nas universidades e nos institutos de pesquisa, sobre a pertinência da elaboração de códigos de ética para diferentes áreas, sobre a prevalência atual da bioética sobre as atividades investigativas, etc. O simples enunciado desses temas já permite ao leitor avaliar a dimensão da riqueza e do alcance dos argumentos esgrimidos pelos autores aqui reunidos, especialistas experientes tanto no tema como na prática da pesquisa, bem como na análise do processo histórico.

O presente dossiê, além disso, tem o mérito de oferecer estudos que desvelam os limites e as possibilidades da discussão em torno da regulamentação do agir investigativo, ao sinalizar para outros vetores da ética e da pesquisa, mas tendo em vista uma profícua reflexão sobre critérios centrados nas especificidades das Ciências Humanas e Sociais, em especial no campo da História, principalmente quando a relação pesquisador / objeto é matizada pela atuação intencional e planejada do cientista social. Assim, os textos do dossiê oferecem um fecundo panorama das condições de formação do pesquisador, da produção e divulgação dos conhecimentos científicos, colocando em relevo a forma pela qual a sociedade pode usufruir dos resultados da ciência sem que “prejuízos éticos” se manifestem ou reduzindo os riscos de sua ocorrência.

Repassamos agora ao público não só importantes resultados de pesquisa, mas também a responsabilidade pela leitura, pela avaliação e pela crítica, assim como pela continuidade do debate e da reflexão sobre as relações do homem com a natureza e com seus pares, mediados pela ciência.

Conselho Editorial


Ética, Pesquisa, História: desafios na produção do conhecimento. História & Perspectivas, Uberlândia, n.52, 2015. Acessar publicação original [DR].

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Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (RBH)

SOUZA, Robério S. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Ed. Unicamp, 2016. 272p. Resenha de: VITO, Christian G. de. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.  

Há muito tempo a história do trabalho é escrita exclusivamente sob as perspectivas do trabalho assalariado, da “proletarização” (ou mudança para o trabalho assalariado) e das organizações de trabalhadores assalariados. Enquanto esses aspectos têm sido confundidos com “modernidade” e com o surgimento e expansão do capitalismo, a escravidão e outras relações de trabalho forçado têm sido marginalizadas como “atrasadas” e não-capitalistas. Neste livro convincente e bem escrito, Robério S. Souza subverte essas abordagens tradicionais e mostra uma história do trabalho mais inclusiva, baseada em novas conceituações. O autor aborda a construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway no período de 1858 a 1863, mas em vez de vê-la como um símbolo da modernidade tecnológica, de investimentos estrangeiros “progressistas” e do trabalho livre, ele aponta para a compatibilidade do capitalismo com o trabalho forçado, indica múltiplas imbricações entre o capital britânico e os universos da escravidão, e destaca a presença de escravos na força de trabalho, contrariando os regulamentos da legislação imperial de 1852. Da mesma forma, o autor aborda os trabalhadores migrantes europeus – especialmente os “italianos” -, mas, em vez de corroborar a narrativa padrão de que eles seriam vetores de mão de obra livre qualificada, traz à baila a precariedade de sua liberdade e a compara com a dos “nacionais livres” e com as condições dos escravizados. Em termos mais gerais, Souza insiste na complexidade da composição da força de trabalho, em vez de buscar os trabalhadores assalaria­dos ideais típicos dentro dela: dessa perspectiva, ele consegue abordar as rela­ções concretas entre os trabalhadores permeando as condições legais e as relações de trabalho e apontando para as suas experiências e momentos de solidariedade compartilhados, bem como os conflitos que surgiram entre eles.

Esses argumentos fundamentais são brilhantemente apresentados na introdução, a estrutura do livro é bem projetada e o estilo mescla bem panoramas quantitativos precisos, momentos de reflexão e descrições detalhadas de eventos e biografias individuais. Os três primeiros capítulos informam o leitor sobre o mundo dos “senhores dos trilhos” e sua conexão com a economia escravista da província da Bahia (cap. 1), esboçam a “demografia social” da força de trabalho da ferrovia (cap. 2) e, em seguida, abordam a reconstrução da materialidade das tarefas, incluindo detalhes das obras em cada uma das cinco seções diferentes em que o canteiro de obras foi dividido (cap. 3). Os dois últimos capítulos focalizam, em detalhe, a agência e as experiências dos trabalhadores. O Capítulo 4 centra-se naqueles que migraram para o Brasil provenientes do Reino da Sardenha, descreve a greve que organizaram em 1859 e discute suas conexões mais amplas com as mobilizações de outros trabalhadores (incluindo os escravos) e as práticas de repressão e controle social implementadas pelas autoridades. O capítulo 5 examina de perto a multidão aparentemente desconexa e desordenada que compunha a força de trabalho e aborda as “lógicas internas que forjaram ou dificultaram a experiência e o processo de conformação de identidades” (p.34-35). Acompanhando o texto, um mapa histórico permite visualizar os territórios atravessados pela ferrovia (p.116), e 19 belas fotografias históricas – a maioria delas da Coleção Vignoles do Instituto de Engenheiros Civis de Londres – fazem que os trabalhadores, as localidades e as obras adquiram concretude para os leitores. De fato, em vez de serem apenas um suporte visual passivo, especialmente no capítulo 3, as fotografias são diretamente integradas e discutidas no texto. A maior parte das fontes primárias é extraída de várias seções do Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) e inclui a correspondência entre várias autoridades, listas de passageiros que entraram no porto da Bahia e documentos produzidos pela polícia e pelas autoridades portuárias que se revelaram fundamentais para a compreensão tanto da dinâmica do controle social quanto da vida dos trabalhadores como indivíduos.

Como seu livro anterior sobre os emaranhados das relações de trabalho na Bahia no período imediatamente seguinte à abolição da escravidão, este trabalho mais recente de Souza está profundamente inserido na nova e revolucionária historiografia brasileira sobre o trabalho.1 O autor reconhece especialmente a sua dívida intelectual às obras de Sidney Chalhoub e Henrique Espada Lima (p.30). Ainda assim, precisamente por causa da qualidade deste livro, poder-se-ia esperar também um diálogo mais amplo do autor com as obras internacionais que abordam contextos comparáveis e questões relacionadas. Esse diálogo poderia ter fortalecido a sua interpretação em vários pontos e, simultaneamente, realçado o impacto deste volume para uma comunidade acadêmica maior. Por exemplo, os estudos sobre a força de trabalho igualmente complexa, mas montada de forma diferente, empregada na construção das ferrovias cubanas antes da abolição da escravidão na ilha caribenha (1880) poderiam ter fornecido referências comparativas úteis sobre a questão-chave da conexão entre liberdade e não-liberdade.2 Ao mesmo tempo, o livro de Souza é um complemento significativo às investigações recentes na História do Trabalho nos transportes, com as quais ele compartilha a crítica aos “binários padronizados entre coerção e liberdade” e para as quais contribui indiretamente expandindo o foco do “trabalho no transporte” para o trabalho que construiu as infraestruturas do transporte.3 A obra é também uma contribuição preciosa para a renovação da história da migração italiana do século XIX e início do século XX, para além das limitações dos estudos tradicionais que tendem a ver os trabalhadores italianos isolados do resto da força de trabalho e, particularmente, fora do trabalho forçado. Por sua vez, a nova abordagem acadêmica sobre a diáspora italiana, com a consciência da importância das conexões translocais e da pesquisa arquivística em múltiplos locais, poderia ter respaldado a sugestão de Souza sobre a relação entre as demandas dos trabalhadores sardos no Brasil e a turbulência política na Itália às vésperas da unificação nacional (p.188-190).4

Em um nível diferente, o argumento central do autor sobre a compatibilidade entre o capitalismo e o trabalho não-livre ecoa, entre outras, as descobertas do estudo pioneiro de Alex Lichtenstein sobre a economia política do trabalho de prisioneiros no período pós-emancipação do Sul dos Estados Unidos e as de um recente volume sobre trabalho forçado após a escravidão, organizado por Marcel van der Linden e Magaly Rodríguez García.5 De maneira mais geral, o argumento de Souza sobre as fronteiras fluidas entre liberdade e não-liberdade coincide com a questão-chave do longo debate sobre o trabalho livre e não-livre e também está alinhado com a reconceituação da classe operária proposta pelos estudiosos da História Global do trabalho, apontando para a necessidade de ir além do foco padrão sobre o trabalho assalariado, passando a estudar todos os tipos de relações trabalhistas que foram imbricadas no processo de mercantilização do trabalho.6 Finalmente, e de forma semelhante a outras obras brasileiras sobre a história do trabalho, os capítulos 4 e 5, em especial, mostram a importância do estudo simultâneo das relações de trabalho e da agência e organização dos trabalhadores – uma combinação que tem sido particularmente rara na História Global do trabalho até agora. De fato, a adoção do conceito de “experiência” – explicitamente tomado de empréstimo a E. P. Thompson – fornece a Souza uma ferramenta para adentrar a questão da formação contraditória da identidade de classe entre os trabalhadores que estavam “juntos, mas não misturados” (p.237) e, assim, frequentemente presos entre a unidade e a divisão em fronteiras nacionais, étnicas e legais.

Essas imbricações entre o trabalho de Souza e a historiografia do trabalho mais ampla ressaltam seu potencial para intervir em debates ainda maiores, beneficiando-se dela, ao mesmo tempo, em alguns pontos interpretativos. De modo algum essas observações críticas ofuscam os méritos deste livro. Na realidade, este volume é um daqueles preciosos estudos empíricos que podem inspirar e moldar pesquisas em outros locais e épocas, para além do seu tópico específico e do seu escopo cronológico. Por essa razão, traduções múltiplas deste livro são altamente desejáveis.

Referências

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Notas

1 SOUZA, 2011. Ver esp.: CHALHOUB, 1990LIMA, 2005CHALHOUB, 2012FORTES et al., 2013.

2Por exemplo: OOSTINDIE, 1984FADRAGAS, 1998.

3 BELLUCCI et al., 2014. Citação da Introdução dos editores, p.5.

4 GABACCIA; OTTANELLI, 2001.

5 LICHTENSTEIN, 1996LINDEN; RODRÍGUEZ GARCÍA, 2016.

6 BRASS; LINDEN, 1997LINDEN, 2010.

Christian G. de. Vito – Research Associate, University of Leicester; Lecturer, Utrecht University. Utrecht University, Department of History and Art History. Utrecht, The Netherlands. E-mail: c.g.devito@uu.nl.

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Terra Negra: o Holocausto como história e advertência – SNYDER (RBH)

SNYDER, Timothy. Terra Negra: o Holocausto como história e advertência. Garschagen, Donaldson M.; Guerra, Renata. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 488p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.

O livro de Snyder (Black Earth no original) é mais um representante da vertente historiográfica que procura compreender o genocídio dos judeus por parte da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial por meio de uma visão cultural e de história das ideias, no limite de uma abordagem antropológica. A proposta é a de compreender o acontecido com base no mundo das ideias e mitologias dos próprios nazistas, daquilo que eles imaginavam estar fazendo, suas motivações e preconceitos.

Na sua avaliação, o mundo mental nazista estava intimamente ligado à ecologia e a uma visão radical do darwinismo social. As raças humanas estavam numa guerra total pela sobrevivência num mundo em que os recursos – especialmente, a terra, fonte dos alimentos – eram escassos. Quaisquer sentimentos ou solidariedade deviam ser esquecidos, pois a competição sem limites era uma lei da natureza e só os mais fortes e impiedosos sobreviveriam. Hitler, nesse sentido, teria rompido radicalmente com a tradição humanista que afirmava que os homens são diferentes dos animais e da natureza por serem capazes de imaginar e criar novas formas de associação além da concorrência e da disputa.

O darwinismo social, em suas várias formas, foi uma constante no pensamento político e social do século XIX, atingindo, por exemplo, os liberais e até mesmo alguns socialistas. O nazismo, contudo, o levou ao limite, pois a luta implacável contra os inimigos passou a ser vista como um fim em si mesmo, aquilo que dava sentido à vida. Sobreviver num mundo ecologicamente limitado seria para os fortes e apenas para eles.

Essa era a realidade histórica e natural, a qual teria sido escondida pelos judeus. Esses eram uma não-raça, incapaz de competir honesta e violentamente pela sobrevivência. Dessa forma, eles teriam trabalhado nas sombras para criar conceitos e perspectivas (o cristianismo, o humanismo, o socialismo etc.) que escondiam a realidade e enganavam os homens com a ilusão de que podiam se separar das duras leis naturais. Todos os princípios morais e éticos existentes serviriam apenas para impedir que os superiores dominassem os inferiores, como era devido. Eliminar os judeus significaria recolocar a humanidade dentro da ordem natural, o que seria o desígnio de Deus.

No contexto pós-1918, os fatos pareciam indicar a realidade da mitologia. Os alemães, a raça superior, só haviam sido derrotados por causa da força dos ideais humanistas e universalistas judeus. Num novo conflito, no qual os alemães novamente exerceriam seu direito de conquista dos outros, os judeus também deveriam ser exterminados, para garantir que a Alemanha vencesse e que as leis naturais voltassem a dominar a Terra. Sem os ideais do judaísmo, as Nações estariam livres para a guerra total de todos contra todos e, nessa luta, a vitória germânica seria inevitável.

A hipótese de Snyder é, com certeza, muito interessante, pois só entendendo o mundo mental nazista, seus preconceitos e imagens, é que podemos compreender o massacre sistemático de milhões de pessoas sem razões militares, econômicas ou de segurança que as explicassem.

O foco do autor no mundo mental e mitológico, contudo, o faz superestimar esses aspectos e congelá-los no tempo. A proposta de eliminar todos os judeus da face da Terra por motivos ecológicos ou metafísicos pode ter se consolidado e ter força explicativa, por exemplo, após 1939, quando a guerra e a conquista da Polônia e de parte da União Soviética amplificaram o “problema judeu” nas mentes nazistas. Para o período anterior, apesar do antissemitismo evidente, a perspectiva era de forçar a emigração dos judeus ou de excluí-los da vida alemã, e não de eliminá-los até o último homem.

Do mesmo modo, seu foco na mitologia e no discurso faz Snyder esquecer o mundo real por trás dele. O autor menciona, por exemplo, que o pensamento nazista era circular e tão fechado que não aceitava a hipótese de que a ciência poderia mudar o meio ambiente e fornecer alimentos a todos. Para ele, aceitar essa hipótese significaria admitir que haveria alternativas para a luta sem tréguas por terras aráveis e, portanto, ela seria descartada de imediato.

Isso não é automaticamente incorreto em linhas gerais. No entanto, não apenas o regime não era tão avesso aos avanços da ciência agronômica como Snyder sugere, como ele esquece que a questão ia muito além do abastecimento alimentar. O imperialismo alemão, desde o fim do século XIX, procurava não apenas fontes de alimentos, mas também as matérias-primas necessárias para manter seu capitalismo industrial. Uma revolução no campo poderia fornecer os alimentos para sustentar os alemães, mas não o ferro, o petróleo e outros produtos necessários para esse capitalismo. A Alemanha ocidental pós-1945 resolveu isso se incorporando ao sistema global montado pelos Estados Unidos.

Já no mundo de Hitler, apenas a invasão da União Soviética daria conta do problema, e a bandeira da sobrevivência alimentar (apesar da sua importância crucial, especialmente depois da trágica experiência do bloqueio naval britânico na Primeira Guerra Mundial) também foi, em boa medida, apenas isso, um discurso para sustentar interesses muito maiores. O mesmo se poderia dizer do mito bolchevique-judaico, que era visto como real, determinou políticas e engendrou massacres, mas que também era uma cobertura para os interesses imperialistas alemães no Leste europeu, os quais já existiam no século XIX e mesmo antes, quando o comunismo ainda não era uma questão. O foco no discursivo, no mental, nos impede de ter essa consciência de que o material e o ideológico se associam e se articulam.

Um ponto interessante no livro é o estudo da política de vários Estados do Leste europeu – como a Polônia – no período entre as duas guerras mundiais, o que é pouco conhecido no Brasil. Sua hipótese de que a Polônia poderia ter sido uma aliada de Hitler em nome do anticomunismo e do antissemitismo é pouco crível, dado que os poloneses eram alvo privilegiado do racismo nazista. Mesmo assim, sua exposição das facetas e dos meandros do relacionamento entre Varsóvia e Berlim é de muita utilidade para o leitor.

Outro aspecto relevante na obra é o destaque que dá à ausência do Estado como algo fundamental para sustentar ações genocidas ou de extrema violência por parte dos nazistas. Na Alemanha já haviam sido criados, na sua percepção, áreas sem Estado, onde o partido e as SS (Schutzstaffel) tinham carta branca para agir, como os campos de concentração. Do mesmo modo, privar os judeus alemães da sua cidadania, ou seja, da proteção do Estado, tinha sido um pré-requisito para acelerar a perseguição a eles.

No Leste europeu, isso teria ido além, com a destruição total de Estados e a criação de áreas onde as SS e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) podiam agir sem freios. Para tanto, teria sido fundamental a atuação prévia da União Soviética. Ao ocupar a Polônia e os países bálticos e destruir os seus Estados, isso teria facilitado a tarefa de Hitler e o próprio genocídio dos judeus.

A proposta – que o autor defende à exaustão, até cansar o leitor – de que a destruição de um Estado e a privação dos direitos de cidadania a seus habitantes facilitavam a adoção de políticas radicais é bastante lógica. Do mesmo modo, pode-se aceitar a ideia de que o terror estalinista facilitou a conquista e a submissão de boa parte do Leste europeu pela Alemanha. O que incomoda é a facilidade com que Snyder acaba vendo intenções explícitas onde, provavelmente, houve apenas contingências. Chega a afirmar (p.141) que, quando Hitler assinou o Pacto Germano-soviético, já tinha consciência plena de que os comunistas eram especialistas na destruição de Estados e que, anos depois, ele se aproveitaria daquele trabalho. De forma implícita ou explícita, Snyder acaba por atribuir à União Soviética um papel ativo e direto na formatação do Holocausto, o que é, no mínimo, questionável. Stalin cometeu inúmeros crimes e, de forma indireta, pode ter colaborado para o horror nazista, mas não da forma direta (e anacrônica) apresentada pelo autor.

Uma das novidades do presente livro frente a outros que seguem uma abordagem teórica semelhante é seu esforço em retirar, da experiência histórica, elementos que nos permitam refletir sobre o nosso momento. A visão de mundo de Hitler e do nazismo se tornou realidade num contexto específico, que não se repetirá, mas algo semelhante pode ocorrer e o livro é, em boa medida, uma advertência nesse sentido.

Para o autor, o mundo atual, globalizado, coloca a maioria das pessoas frente a contingências planetárias que elas não têm condições de compreender. Isso oferece o risco de elas aceitarem um diagnóstico simplista que explica o mundo com base em uma chave conspiratória, de desastre ecológico ou de outro tipo iminente. Num momento em que o populismo de direita está a se fortalecer com essas bandeiras, sua advertência se torna bastante atual.

Também muito relevante a sua advertência – dirigida essencialmente ao público norte-americano, mas que pode servir a todos – de que há uma falta de entendimento sobre a relação entre a autoridade do Estado e o assassinato em massa. Ao contrário da crença liberal, Snyder propõe – em sintonia com a proposta do livro – que é a ausência ou enfraquecimento do Estado que abre as portas para os massacres e a perda da liberdade, não o contrário. Um Estado sem freios é uma ditadura que tolhe liberdades, mas a ausência total do Estado é simplesmente barbárie.

Snyder indica, aliás, como a competição desenfreada do neoliberalismo se aproximaria do nazismo, sendo impressionantes as similaridades entre Hitler a Ayn Rand, uma das teóricas neoliberais: só a competição importa, e tudo o que a cerceia deve ser eliminado. Na minha visão, isso apenas indica a conexão entre nazismo e neoliberalismo dentro do campo da direita e sua valorização da competição e da hierarquia.

É possível pensar que esse caráter militante, de advertência moral, diminuiu o valor historiográfico do trabalho. Não é o caso, especialmente no mundo atual, no qual advertências como essas são mais do que bem-vindas. O livro tem problemas metodológicos e é tão focado nos aspectos mentais e mitológicos do nazismo que acaba por perder de vista o mundo material onde esses aspectos existiam. Mesmo assim, sua contribuição para a historiografia e a advertência moral que carrega fazem dele um livro que vale a pena ser lido.

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá, PR, Brasil. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com.

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[IF]

 

Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.16, n. 3, 2016.

Revista EDaPECI – Interdisciplinaridade e Educação

Expediente Revista EDaPECI

Interdisciplinaridade e Educação

Artigos Gerais

Bibliografia Comentada

Publicado: 2016-12-31

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.17, 2016.

Artigos

Publicado: 2016-12-30

Transversal: International Journal for the Historiography of Science. Belo Horizonte, n.1, 2016.

Dossier Ludwik Fleck: Theory of Thought Styles and Thought Collectives – Translations and Receptions

From the Editors

Dossiers (Issue-specific topics)

Interviews

Book Reviews

Published: 2016-12-29

Outros Tempos. São Luís, v.13 n. 22, 2016.

Dossiê: Imagem e Imaginário Colonial

Apresentação

Artigos

Dossiê

Entrevista

Resenhas

Publicado: 2016-12-28

EaD em Foco. Rio de Janeiro, v.6, n.3, 2016.

Editorial

Artigos Originais

Estudos de Caso

Revisões

Publicado: 2016-12-27

Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.5, n.16, ago./dez. 2016.

Expediente

Editorial/Apresentação

  • Editorial
  • Alba Cristina Santos Salatino, Gabriele Rodrigues de Moura | PDF

Artigos

Resenhas Críticas

Publicado: 2016-12-27

Revista de Fontes. São Paulo, v.3, n.5, 2016 / v.1, n.1, 2014.

Revista de Fontes. São Paulo, v.3, n.5, 2016.

Fontes materiais e a pesquisa histórica | Publicado: 2016-12-23

Artigos


Revista de Fontes. São Paulo, v.3, n.4, 2016.

Documentos e instrumentos de pesquisa

Publicado: 2016-02-23

Documentos

Instrumentos de Pesquisa


Revista de Fontes. São Paulo, v.2, n.3, 2015.

Os arquivos das casas editorais (documentos e livros) como fontes para a História

Publicado: 2015-04-05

Artigos


Revista de Fontes. São Paulo, v.2, n.2, 2015.

Documentos e instrumentos de pesquisa | Publicado: 2015-01-23

Documentos

Revista de Fontes. São Paulo, v.1, n.1, 2014.

Processos judiciais como fonte para o historiador | Publicado: 2014-11-23

Artigos

História da Educação. São Leopoldo, v. 21, n. 51, jan./abr., 2017.

Apresentação – Introduction

Sessão especial – Special issue

Dossiê “Da Itália ao Brasil: processos educativos e formativos – Dossier From Italy to Brazil: educational and formative

Artigo / Article / Artículo

Resenha / Digest / Reseña

Publicado: 2016-12-13

Ciencia Nueva – Revista en historia y política. Pereira, v.1, n.1, 2017.

Enero – Junio

Presentación

Editorial

Ciencias Políticas

Reseñas

Anales y Memorias

Publicado: 2016-12-05

Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho – LINDEN (TES)

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora da Unicamp, 2013, 520 p. Resenha de: TERRA, Paulo Cruz. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.14 n.3, Set./dez. 2016.

Como pensar/escrever uma História Global do trabalho? Essa é a questão que permeia o livro Trabalhadores do mundo: Ensaios para uma história global do trabalho, de Marcel van der Linden, publicado em 2013, pela Editora da Unicamp. Trata-se de uma tradução para o português de uma obra publicada originalmente em inglês, em 2008. O autor foi diretor de pesquisa do Instituto Internacional de História Social, situado em Amsterdã, e, assim como a instituição, se tornou uma referência em termos da história global do trabalho, cujas linhas gerais nos são apresentadas nesse volume.

A História Global do Trabalho consiste mais, segundo o autor, em uma “área de interesse” do que um bem-definido paradigma teórico. Linden propõe o estudo transcontinental, mais do que transnacional, dos movimentos sociais trabalhistas e das relações de trabalho. Por transcontinental entende-se colocar “todos os processos históricos num contexto mais amplo, por ‘menores’, em termos geográficos, que sejam esses processos” (Linden, 2008, p. 14), tecendo comparações entre diferentes países e/ou, principalmente, analisando as interações internacionais.

Ao enfocar as conexões globais, segundo Linden, a História Global do Trabalho se contrapõe ao nacionalismo metodológico e ao eurocentrismo presentes na história do trabalho produzida na Europa e na América do Norte. O eurocentrismo define-se como “o ordenamento mental do mundo a partir da perspectiva da região do Atlântico Norte”. Nesse sentido, a história da classe trabalhadora e dos movimentos trabalhistas dessa região foram vistas como acontecimentos separados, e quando era dada atenção a outros locais, “estes eram interpretados de acordo com os esquemas do ‘Atlântico Norte’” (Linden, 2008, p. 11). O nacionalismo metodológico, por sua vez, “funde sociedade e Estado”, naturalizando o Estado-nação.

A proposta de Linden para uma História Global do Trabalho aponta também para um conceito mais amplo de trabalhador. O autor dialoga diretamente com Marx, para quem o trabalho livre assalariado – no qual o trabalhador, enquanto indivíduo livre, dispõe de sua força de trabalho como uma mercadoria – era a forma de mercantilização do trabalho verdadeiramente capitalista. Contudo, os assalariados constituíam apenas uma entre as cinco classes ou semiclasses subalternas no capitalismo, que incluiria ainda os trabalhadores autônomos, “que são proprietários de sua força de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou serviços resultantes de seu trabalho”; a pequena burguesia, “formada por pequenos produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de trabalhadores”; os escravos, “que não possuem nem sua força de trabalho nem suas ferramentas e são vendidas”; e o lumpemproletariado, “que é totalmente excluído do mercado de trabalho legalizado” (Linden, 2008, p. 30). Com exceção dos trabalhadores assalariados, os outros grupos foram considerados como historicamente menos significativos para Marx.

Linden ressalta que pesquisas empíricas em diversas partes do mundo apontaram, entretanto, que as proposições de Marx sobre a classe trabalhadora e a mercantilização do trabalho eram muito restritas. O autor argumentou que no capitalismo há “uma variedade quase infinita de tipos de produtores, e as formas intermediárias entre as diferentes categorias são definidas de formas mais fluidas do que nítidas” (Linden, 2008, p. 30). Ele indica, por exemplo, que os trabalhadores assalariados eram bem menos livres do que sugeria a visão clássica, e que existiam diversas maneiras de prender um empregado a seu emprego.

Considero a visão mais abrangente de classe trabalhadora como uma das principais contribuições do livro. Contudo, é preciso afirmar que outros historiadores, inclusive brasileiros, já chamavam a atenção para a ampliação do conceito de trabalhador, mesmo não estando ligados à História Global do Trabalho. Se, em 1998, Silvia Hunold Lara denunciava a exclusão dos escravos nas análises da história social do trabalho no Brasil (Lara, 1998, p. 26), o quadro tem sido alterado mais recentemente. Marcelo Badaró Mattos, por exemplo, afirmou que a experiência de convivência entre escravizados e livres foi fundamental no processo de formação da classe trabalhadora do Rio de Janeiro. Essa convivência teria ocorrido em diversos aspectos, como no mercado de trabalho, nas organizações criadas, além das ações coletivas. Segundo Mattos, os trabalhadores escravizados e livres conviviam tanto nas fábricas quanto na rua, além de partilharem outros espaços, como moradia, lazer, alimentação e transporte (Mattos, 2004, p. 62).

O Brasil, aliás, está presente em diversas partes do livro. O Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (Anpuh) “Mundos do Trabalho” é citado como exemplo de organizações surgidas no âmbito internacional, no período recente, que têm ampliado o estudo da história do trabalho. Além disso, o caso dos escravos ao ganho do Brasil é exposto como um tipo específico dentro da escravidão. Só que nesse caso há uma confusão causada pela tradução. Linden utiliza como referência um artigo de Maria Cecília Velasco e Cruz, que escolheu a expressão slaves-for-hire como tradução de “escravos ao ganho”. A versão brasileira do livro, por sua vez, traduziu a expressão em inglês como “escravos de aluguel”. Contudo, as expressões representam relações distintas: enquanto em uma os escravos são alugados pelos senhores, que recebem diretamente os proventos desse aluguel; na escravidão ao ganho, por sua vez, são os escravos que cobram pela execução de serviços e/ou venda de produtos e repassam os ganhos aos seus senhores, sendo permitido ao trabalhador cativo reter o que excedesse a quantia combinada previamente.

Além da discussão sobre o conceito de classe trabalhadora, presente na primeira parte do livro, a obra se debruça sobre a ação coletiva dos trabalhadores, entendida como “uma ação mais ou menos coordenada por parte de um grupo de trabalhadores (e, talvez, seus aliados), visando a atingir um objetivo específico, que eles seriam incapazes de alcançar individualmente, dentro do mesmo período de tempo e pelos meios a eles disponíveis” (Linden, 2008, p. 19). Assim, Linden aborda as variações do mutualismo, na segunda parte, e as formas de resistência, na terceira, que incluem as greves, os protestos de consumidores, os sindicatos e o internacionalismo operário. A quarta, e última parte, trata das contribuições das disciplinas adjacentes, como a teoria do sistema-mundo, de Wallerstein, ou o diálogo com estudos etnológicos, ao analisar especificamente os iatmul, um povo da Papua Nova-Guiné.

Ao longo do livro, somos apresentados a muitos exemplos de diferentes partes do mundo sobre os variados assuntos tratados. Aliás, chama a atenção a erudição de Linden, que domina uma vasta bibliografia, arrolada em impressionantes 81 páginas ao final da obra. A utilização dos exemplos mundiais é possível, segundo o autor, pois, apesar da diversidade e especificidades das experiências, “as formas de ação coletiva inventadas pelos trabalhadores subalternos de todo o mundo refletem uma lógica própria e bem definida, que é possível identificar e verificar” (p. 406). O autor apresenta justamente uma preocupação em buscar as frequências e tendências que podem ser agrupadas em alguns tipos básicos comuns.

Se os muitos exemplos das várias partes do mundo podem ser vistos como um dos pontos positivos do livro, eles também apresentam problemas. Para Leon Fink, as categorias altamente articuladas estabelecidas por Linden “tendem a ignorar grandes distinções entre Estado-nações e as suas políticas culturais”, bem como podem levar à perda do senso de “cronologia, periodização e turning points históricos” (Fink, 2010). Crítica semelhante foi feita por Fernando Teixeira da Silva, que indicou que a “justaposição de exemplos sacados de diferentes tempos e espaços tende a sacrificar a própria historicidade dos fenômenos analisados e a percepção da mudança histórica” (Teixeira, 2014, p. 360).

O livro de Linden é uma leitura instigante e propõe importantes reflexões para os interessados na história do trabalho. A História Global do Trabalho proposta por ele, por sinal, já tem dado importantes frutos pelo mundo. No Brasil, no entanto, ainda está engatinhando. De certo, um grande empecilho para o seu desenvolvimento é a falta de financiamento em nosso país para pesquisas que, nessa perspectiva, geralmente demandam amplos recursos para um trabalho em equipe. Infelizmente, tudo tende a piorar, já que o apoio ao desenvolvimento da ciência tem minguado cada vez mais.

Referências

FINK, Leon. Review of vand der Linden, Marcel. Workers of the World: Essays toward a Global Labor History. H-Net Reviews, julho 2010. Disponível em: <www.h-net.org/reviews/showrev.php?id=30764>. Acesso em: 15 de jul. 2016. [ Links ]

LARA, Silvia H. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, São Paulo, n. 16, 1998. [ Links ]

LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas: Editora Unicamp, 2013. [ Links ]

MATTOS, Marcelo B. Experiências comuns. Escravizados e livres na formação da classe trabalhadora carioca. Tese (apresentada ao Concurso para Professor Titular de História do Brasil) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. [ Links ]

SILVA, Fernando T. van der Linden, Marcel – Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 67, p. 357-363, 2014. [ Links ]

Paulo Cruz Terra – Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: p003256@yahoo.com.br

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(P)

História Social das Religiões / Crítica Histórica / 2016

A pesquisa histórica sobre as diferentes religiões mundiais tem se expandindo consideravelmente no Brasil nas últimas décadas. Muitas vezes dentro de uma perspectiva multidisciplinar, em contato direto com as áreas da sociologia, antropologia, ciências da religião, filosofia, psicologia e teologia. Tais aproximações estimularam, em especial, os debates e a busca por refinamento das análises e explicações históricas, compreendendo que o objeto “religião(ões)” é um dos mais complexos no campo de pesquisa.

Uma das características dos estudos das ciências sociais são os esforços teórico-metodológicos empreendidos no sentido de responder às problemáticas que possam superar os interesses confessionais, privilegiando a busca pelo diálogo interreligioso, com fins à construção de uma sociedade plural, democrática e de respeito.

Nesse sentido, a História Social contribui, especialmente, ao aproximar a temática religiosa dos contextos socioculturais, políticos e econômicos. Ao destacar conflitos, continuidades e mudanças internas e externas às religiões, põe em evidência processos históricos nos quais as instituições religiosas, religiosidades, ideologias religiosas e seus sujeitos (coletivos e individuais) participaram ativamente nos seus locais de origem e atuação, servindo, por vezes, aos interesses de “legitimação” e / ou “subversão” das estruturas de poder.

Neste sentido, o Dossiê História Social das Religiões aqui apresentado pela Revista Crítica Histórica, no seu número 14 de dezembro de 2016, é uma contribuição a esta área de pesquisa. Com temáticas clássicas e novas, temporalidades e abordagens diferenciadas compõe um quadro de referência que abre possibilidades de pesquisa para novos e experimentados pesquisadores. Destaca-se, em especial, a análise de documentações históricas variadas, como também as conexões entre os textos, que expressam as experiências históricas de contato / confluência / conflitos entre as classes populares, as elites e as instituições, na vivência da sua religiosidade afro-brasileira, católica, espírita etc.

O texto que abre o dossiê intitulado “Inquisição e status social: processos de habilitação de Familiares do Santo Ofício que não se enquadravam às normas (Rio de Janeiro, segunda metade do século XVIII)” de Roberta Cristina da Silva Cruz, tem como objetivo examinar a obtenção da carta de Familiar do Santo Ofício por indivíduos que não se enquadravam às normas, dando enfoque a casos em que os habilitandos já tinham laços de parentesco com outros Familiares e conseguiram a patente apesar de apresentarem impedimentos.

Em seguida, o artigo “Rever o passado para estigmatizar um presente incômodo: Montano e outros “heresiarcas” do século II no olhar de Euclides da Cunha sobre Antonio Conselheiro” de Pedro Lima Vasconcellos, trata de como Euclides da Cunha, em Os sertões, aborda líderes cristãos do século II, tomados como heréticos, em vistas a estigmatizar a figura de Antonio Conselheiro. O interessante debate trazido por Vasconcellos, contribui exemplarmente para uma leitura mais atenta e problematizadora da experiência histórica de Belo Monte (Canudos).

O artigo “Centro Espírita Deus, Amor e Caridade: mediunidade e legitimação do espiritismo no Pernambuco do início do século XX” de Rosilene Gomes Farias, por sua vez, estuda os conflitos em torno do espiritismo kardecista, no município de Marial, objeto de investigação policial, em função da suspeita de abrigar sessões de catimbó. A pertinente análise da autora “discute as tensões que permeavam as discussões contemporâneas sobre as religiões mediúnicas e a tentativa de criminalização das suas práticas, ancorada nas interpretações da psiquiatria sobre o fenômeno e na suspeita de que se tratava de curandeirismo”.

Já em “Santos e orixás: sincretismo, estética e arte afro-brasileira na estatuária da Coleção Perseverança” de Anderson Diego da S. Almeida, Maria de Lourdes Lima e Rossana Viana Gaia tem-se uma abordagem nova para o estudo das religiões afro-brasileiras em Alagoas. Ao tratar do “sincretismo cultural presente na Coleção Perseverança” procura demonstrar um “complexo processo de ressignificação de distintas perspectivas de religiosidade se reflete na produção dos artefatos da referida coleção”. Tal texto contribui muito para a valorização da referida Coleção, como também para o entendimento da elaboração cultural e religiosa negra no estado.

Por fim, o artigo A Igreja Popular na cidade de Conceição do Coité (1989-1996) de Cristian Barreto de Miranda, apresenta aspectos da ação pastoral do padre Luiz Rodrigues de Oliveira no semiárido baiano, sob o impacto das inovações do Concílio Vaticano II e das ações da chamada “Igreja Popular” e os conflitos com as oligarquias políticas locais.

Compõem ainda o nosso Dossiê a Resenha deste número, O santo que vive no sol: Padre Cícero, análise muito instigante do professor Ênio José da Costa Brito sobre a tese de doutorado, defendida na PUC-SP em 2015 por Carlos Alberto Tolovi, “Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso”. O debate em cima do texto de Tolovi proporciona reflexões importantes sobre a relação entre mito, política e religião em tema tão conhecido como é o caso do Padre Cícero, no Ceará.

Encerra-se com uma Entrevista / Documentação por Alex Benedito da Silva, a partir da experiência do militante Carlos Lima, da Comissão Pastoral da Terra de Alagoas. Com o título “Um Histórico de Luta: A Juventude Popular Católica e a Comissão Pastoral da Terra em Alagoas na trajetória de Carlos Lima” esta entrevista constitui material de referência para os estudos da relação entre a militância política, a luta pela terra e a fé católica durante os anos 1990.

Na Sessão Fluxo Contínuo o leitor ainda encontra três artigos. “Liberdade e república na retórica do “pré-humanismo” italiano: um estudo sobre as obras do notário Albertano de Brescia (1195-1251) e do dominicano Remígio dei Girolami (1247-1319)” de Felipe Augusto Ribeiro, estuda os conteúdos da retórica praticada pelos italianos entre os séculos XIII e XIV problematizando a maneira como trataram, através dessa arte, as ideias de liberdade e de república. Adalmir Leonidio em “Tendências criminais e punitivas no Estado de São Paulo na segunda metade do século XIX”, busca mostrar que nas condições atrasadas do capitalismo brasileiro da segunda metade do século XIX, o sistema penal cumpria um duplo propósito: disciplinar o trabalho e reduzir os desvios. Em “Nas Trilhas do Saber e Fazer: Intelectualidade e Política Institucional no Piauí”, Pedro Pio Fontineles Filho e Cláudia Cristina da Silva Fontineles discutem a atuação político-institucional de intelectuais, apontando para os aspectos das relações de poder no que se refere às políticas educacionais nacionais e suas ressonâncias na esfera local do estado do Piauí, sobretudo os aspectos ligados ao ensino da chamada “Literatura Piauiense”.

Vale lembrar que a Revista Crítica Histórica se esforça em divulgar uma produção historiográfica atual, democratizando o acesso às pesquisas e informações que possam, assim espera-se, contribuir para o avanço de reflexões críticas sobre a experiência humana e sua concretização histórica em sociedade. Atualmente, sofremos através de um golpe político parlamentar graves atentados aos nossos (poucos) direitos individuais e coletivos, duramente conquistados e / ou em busca ainda de conquista. As resistências existem, mas por vezes nos vemos desarticulados no processo. É preciso, pois, juntar forças, avaliar com vigor a conjuntura, mas não deixar de valorizar as nossas utopias. Nossa esperança, posta hoje nos jovens do movimento secundarista e universitário, não pode ser passiva. Os professores-pesquisadores devem somar às lutas dos estudantes e trabalhadores e agir nos seus espaços. Aos estudantes das ocupações de Alagoas, em especial, dedicamos este dossiê e número. Vamos à luta!

Irinéia Maria Franco dos Santos – Professora da Universidade Federal de Alagoas e organizadora do dossiê nº 14

Maceió, Dezembro de 2016.


SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 7, n. 14, dezembro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Hinduism & Its Sense of History – SCHARMA (RMA)

SHARMA, Arvind. Hinduism & Its Sense of History. New Delhi: Oxford University Press, 2003. 134p. Resenha de: CARVALHO, Matheus Landau de. Teoria e metodologia do tempo na Índia: o pensamento hindu sobre a História. Revista Mundo Antigo, v.5, n.11, dez., 2016.

Publicado pela Oxford University Press em 2003, Hinduism & Its Sense of History é uma obra do historiador indiano Arvind Sharma dividida em quatro partes dedicadas à teoria e metodologia da história da Índia. Calcado em uma ampla gama de fontes primárias e secundárias de caráter historiográfico, religioso, linguístico e filosófico, Sharma avalia a afirmação recorrente há séculos de que os hindus como um povo e o Hinduísmo como uma tradição religiosa plural não possuem um senso de história suficiente. Leia Mais

História e movimentos sociais / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2016

A expressão “movimento social”, como afirma Peter Burke, passou a ser empregada a partir da década de 1950 por sociólogos americanos e entrou para o campo da História com Eric Hobsbawm na obra Rebeldes e Primitivos, de 1959. Desencadeou, a partir daí, uma série de estudos envolvendo antropólogos, sociólogos e historiadores. [1]

O XVI Encontro Estadual de História promovido pela ANPUH-SC ocorreu no mês de junho de 2016, na cidade de Chapecó, no Campus da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS. A universidade foi criada em 2010 após uma grande mobilização dos movimentos sociais da região. A ANPUH-SC, para homenagear esses movimentos, decidiu como tema para o XVI Encontro: “História e Movimentos Sociais”. A temática acabou atraindo vários pesquisadores que estão dedicando seus estudos sobre o assunto, muitos militantes dos movimentos sociais, principalmente ligados ao campo, que também participaram efetivamente do evento. Destaca-se a participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com apresentação musical fruto de um projeto de extensão desenvolvido pela UFFS junto ao movimento.

O Encontro de História ocorreu em meio a uma grande efervescência política e social no país, como a luta contra o golpe jurídico parlamentar, a luta contra a perda de direitos, desenvolvida pela a mais vasta gama de movimentos sociais. Desta forma, a temática “História e Movimentos Sociais” acabou ganhando ainda mais relevância. Nesse sentido, optamos em desenvolver esse número da revista Fronteiras com o Dossiê História e Movimentos Sociais, aproveitando assim a emergência do tema para a atualidade em que nos encontramos.

O presente número inicia com o artigo de Paulo Pinheiro Machado “História e movimentos sociais: a vida, a História e a Democracia” – que foi a conferência de abertura do evento – e destaca os movimentos camponeses no sul do Brasil, relacionando com os aspectos da democracia brasileira e como esses temas são tratados no campo da História. Alexandre Assis Tomporoski contextualiza o movimento do Contestado com a concentração fundiária na região. Esta tem sua origem no século XIX e permanece até os dias atuais. A expansão colonizadora na região oeste de Santa Catarina e a relação com os povos indígenas é analisada por Wilmar R. D’Angelis. A atuação de Vitorino Condá, o Indio Condá, (hoje na memória da cidade de Chapecó, com nome de rua, rádio e estádio de futebol), demonstra como elementos indígenas se envolveram no processo.

A guerra civil ocorrida entre 1835 e 1845 no Sul do Brasil, que ganhou o nome de Revolução Farroupilha, é tratada no artigo de Anderson Marcelo Schmitt. O autor analisa, a partir de uma exaustiva pesquisa documental, as relações cotidianas no período pensando a maneira especial de comportamento das pessoas comuns em meio ao conflito.

Mateus Gamba Torres, no artigo “Movimento estudantil e resistência: Recurso ordinário criminal, AI-5 e a luta dos estudantes da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu-SP”, analisa como os julgados da época, 1970, pretendiam um discurso de neutralidade jurídica sob o regime de exceção da ditadura militar após a implementação do Ato Institucional número 5.

“O preto feiticeiro Sete Cabeças: a circularidade de crenças e religiosidades na sociedade escravista do século XIX” é o artigo de Paulo Roberto Ataudt Moreira. Estuda o cotidiano da sociedade portoalegrense do século XIX utilizando os processos criminais como fonte. Para o autor, “os autos de corpo de delito podem fornecer-nos aspectos da cultura religiosa em sua materialidade”.

Este número ainda conta com uma entrevista com o historiador José Augusto Pádua, nome de referência nos estudos de História Ambiental, dentro e fora do país. Na entrevista, Pádua conta sua trajetória acadêmica, sua atuação junto ao Greenpeace, assim como aponta questões latentes sobre a importância dos estudos sobre o meio natural.

Por fim, este número da revista é encerrado com a resenha “Uma Martinha vale uma Lucrécia?”, onde Fernando Vorjniak aponta como Raquel Campos traz uma abordagem inovadora, acerca de Machado de Assis, das interpretações sociais dos historiadores e críticos literários que subordinaram a especificidade da literatura machadiana a um princípio de identidade nacional.

Desejamos aos todos uma excelente e produtiva leitura.

Nota

1 BURKE, Peter. História e Teoria Social, 2ªed. São Paulo, UNESP, 2012. Pag. 142.

Antônio Luiz Miranda

Samira Peruchi Moretto


MIRANDA, Antônio Luiz; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.28, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História Política: problemas e estudos / Anos 90 / 2016

A história política, vinculada às relações de poder político-institucionais que permeiam as sociedades e o Estado em suas múltiplas dimensões, renovou-se muito nas últimas décadas, ganhando cada vez mais impulso e importância. Neste dossiê, a revista Anos 90 abriu-se para contribuições concernentes a recortes temáticos que pudessem se enquadrar nesta área de estudos históricos, tanto para os problemas teóricos e metodológicos enfrentados pelos pesquisadores quanto para os estudos de objetos característicos desse campo de análise. Recebemos diversas contribuições de várias partes do país e do exterior, pelas quais agradecemos aos pesquisadores que se dispuseram a apresentar seus originais a este dossiê. Depois das avaliações realizadas, restaram os nove artigos que se seguem.

Os artigos estão apresentados em uma ordem lógica e cronológica ao mesmo tempo. Assim, o dossiê inicia com a contribuição de Maria Helena Capelato. Em História do Brasil e revisões historiográficas, a autora busca refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito da escrita da história de modo geral e, em particular, sobre os seus usos políticos. Desse modo, o trabalho toma uma dimensão ético-política que traz importantes contribuições para o debate tão atual acerca dos lugares de produção de história, seus usos sociopolíticos e o papel dos profissionais e não profissionais nestas tarefas científicas e / ou culturais.

O segundo texto, das professoras portuguesas Isabel Maria Freitas Valente e Maria João Guia, trata da premente e espinhosa questão das políticas de imigração na União Europeia, centrado no exame da legislação respectiva. Ao mesmo tempo em que procura historiar as contribuições legislativas mais gerais a respeito do tema, ao final, as historiadoras concentram-se na temática propriamente portuguesa.

Luiz Alberto Grijó, por sua vez, aborda as empresas de meios de comunicação brasileiras, traçando um panorama amplo, desde o período pré-64 até os dias atuais. O artigo explora a transformação paulatina dos meios. Desde a situação anterior, na qual eram espécies de apêndices da luta política mais ampla, até o momento atual, em qum sequestraram a democracia em nome de seus próprios valores apresentando-se como protagonistas centrais no jogo político-partidário, inclusive agindo para a deposição da presidenta eleita em 2014.

Esteban Javier Campos, em seu artigo, propõe uma história comparada sobre as práticas e concepções políticas da Ação Popular e dos Montoneros tomando suas semelhanças e suas diferenças. O autor parte da análise desses movimentos a partir de suas origens católicas, suas aproximações com o socialismo e seus redirecionamentos entre linhas maoísta e peronista, em meio a reflexões sobre processos políticos em escala nacional.

Por sua vez, Larissa Rosa Correa e Paulo Roberto Ribeiro Fontes dedicam-se, através da análise da produção historiográfica mais recente sobre os trabalhadores e os movimentos sindicais brasileiros na época da Ditadura Militar (1964-1985), a observar “um certo apagamento” da história e da presença desses extratos sociais e suas organizações de classe na referida literatura. Visam, com isso, a lançar luzes em aspectos e lacunas ainda existentes a propósito do regime instaurado em 1964.

Adriane Vidal Costa procura na “prática epistolar de Júlio Cortazár”, em seu período mais frutífero, os anos de 1960 e 1970, instrumentos de compreensão para a formação de redes de sociabilidades intelectuais; de suas ideias políticas como um escritor engajado, ao mesmo tempo em que visa a recuperar o ambiente cultural de discussão literária e as funções sociais do intelectual em meio à defesa que Cortazár promovia do socialismo e sua condenação das ditaduras militares latino-americanas do momento.

O partido do Rio Grande: redes de relações, mediação e revolução de 1930, de Cássia Daiane Macedo da Silveira, discute o papel e a participação dos chamados intelectuais nos acontecimentos que envolveram a Revolução de 1930, especialmente nas articulações que acabaram levando a ela. Cássia centra-se na questão fundamental destes homens de letras como mediadores culturais e sociais e nos efeitos políticos que isso possibilitava, abordando os casos de dois deles: o carioca Rodrigo Otávio Filho e o gaúcho Felipe d’Oliveira.

Carla Brandalise, em seu artigo, remete-se às políticas internacionais da Itália sob o fascismo voltadas para a América Latina na década de 1920. Com efeito, assiste-se nesses anos a um recrudescimento dos interesses italianos sobre essa região, a partir do que se estabelece estratégias, pacíficas, de maior inserção econômicas e político-culturais. Para tanto, joga-se com a questão da latinidade intrínseca ao continente e com a perspectiva de que a Itália constitui a verdadeira líder dos povos latinos, dado que se outorga como lócus original e atemporal da romanidade. Suas ambições, portanto, vão para além da maior interação com sua comunidade emigrada.

Rodrigo da Rosa Bordignon, que encerra o dossiê por ser o que aborda o momento cronologicamente mais recuado, analisa as narrativas dos homens de letras, de comentadores, políticos e pensadores do Brasil na virada do século XIX para o XX. Enfoca especificamente a clivagem entre as posições “monarquistas” e “republicanas” a partir da perspectiva não de reificá-las, mas de desvendar os mecanismos que levaram a estas tomadas de posição, os quais ajudam a revelar qual ou quais concepções de política estavam em jogo e sua relação com os critérios de classificação e ordenação sociais e ideológicos e seus modos de legitimação.

Carla Brandalise.

Luiz Alberto Grijó.


BRANDALISE, Carla; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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Autoritarismo e conservadorismos políticos / História e Cultura / 2016

Tomando o Iluminismo enquanto momento inaugural da segunda modernidade, como ponto de inflexão para uma autorreflexão e para a busca pela racionalidade (Kant, 1968) e por uma autonomia política individual rumo ao cosmopolitismo (Kant, 1984 e 2004), percebe-se, em sua herança intelectual, dualidades básicas no centro das ações e das ideias políticas contemporâneas.

Essas dualidades referem-se, em essência, ao conflito fundamental pela inclusão ou exclusão de elementos ou grupos políticos de uma dada sociedade. Entre a evolução e o enraizamento, a tradição e a modernidade, observamos uma intensa contraposição, especialmente nos últimos dois “breves” séculos, de ideias e conceitos que fundamentam parte considerável das ideologias e a própria política moderna, como Nacionalismo e Cosmopolitismo, Conservadorismo e Liberalismo, Autoritarismo e Democracia, etc. (Funke et. al., 2011. p. 8). Essas contraposições dicotômicas se tornam ainda mais contrastantes em momentos de crises, quando ganham força posicionamentos e ideias conservadoras, assim como ações e políticas autoritárias.

Já no século XX, o avanço tecnológico e a composição da sociedade de massas trouxeram um novo momento, no qual os discursos e os meios de repressão se tornam ainda mais violentos, assim como crescem as possibilidades de interações e circularidade de ideias. Assim, as diversas formas do Conservadorismo e do Autoritarismo encontram nesse ambiente condições propícias para se desenvolverem e se relacionarem, ainda que tenham passado por modificações marcantes.

A partir dessas questões, que voltam à tona com intensidade em tempos recentes, surgiu o intuito do dossiê temático “Autoritarismo e Conservadorismos Políticos”, que os organizadores têm o prazer de apresentar. Os quatorze manuscritos selecionados demonstram a pertinência dos estudos sobre o tema e do próprio campo de estudos, suas vicissitudes, interações ou mesmo idiossincrasias, assim como diversas abordagens historiográficas possíveis.

Abrindo o volume, o texto de Thiago Possiede da Silva aborda a gestação de ideias e práticas autoritárias no Chile e suas implicações nas relações entre elites dirigentes e classes trabalhadoras durante a primeira década do século XX. Em recorte temporal semelhante, embora analisando a perseguição aos anarquistas no Brasil, o artigo de Bruno Corrêa Benevides auxilia a esclarecer a relação entre a negação de alteridade e repressão política que daria o tom às décadas seguintes.

Em relação ao papel desempenhado pelos intelectuais, dois artigos trazem novas análises sobre a construção de modelos autoritários baseados, de modo não mimético, em experiências externas. O texto de Felipe Xavier trata especificamente dos escritos de Delio Cantimori sobre a Alemanha nazista, enquanto a contribuição de Fábio Gentile analisa a questão do “autoritarismo instrumental” em Oliveira Vianna, assim como suas relações com o fascismo italiano.

Tratando especificamente de organizações fascistas (ou do fascismo enquanto movimento), Gabriela Grecco analisa a interação das porções “culturais” da Falange Española, suas relações e disputas face ao poder institucionalizado do Estado. Em relação às experiências e atividades da Ação Integralista Brasileira, Rodrigo Santos de Oliveira e Michelle Vasconcelos abordam o papel dos três principais intelectuais camisas-verdes na construção de um modelo totalitário à nação brasileira, enquanto Rafael Athaídes analisa as mensagens comoventes na imprensa integralista como estratégia política destinada às porções militantes, mas também ao projeto de nação.

Ainda sobre o integralismo brasileiro, todavia no período do “pós-guerra”, Leandro Pereira Gonçalves e Alexandre de Oliveira tratam da questão da problemática contingente militante na passagem da Ação Integralista Brasileira ao Partido de Representação Popular, que sem dúvida trazem implicações historiográficas.

Para além das formações e consequências de modelos autoritários que protagonizaram em especial o período do entreguerras, as contribuições ao dossiê também abrangem a segunda grande “onda” autoritária do século XX, cujo ápice decorre entre os anos 1960 e 1970. Da mesma forma que o primeiro bloco de artigos, neste os fenômenos também são analisados por várias autoras e autores a partir de abordagens diversificadas. É o caso, por exemplo, de Mila Burns, que trata sobre o papel da Diplomacia Brasileira na deposição de Salvador Allende em torno das interações entre atores e instituições internacionais. Já Juan Besoky aborda as disputas entre as porções da direita peronista que compõem o nacionalismo argentino durante a década de 1970.

A construção do regime de exceção brasileiro é analisada em duas contribuições. Thiago Nogueira de Souza analisa a movimentação anticomunista de parlamentares brasileiros da Ação Democrática Parlamentar, enquanto David Castro Netto trata sobre a relação entre propaganda, os manuais da Escola Superior de Guerra e o regime militar brasileiro. Já Gustavo Bianch, empreende uma leitura crítica sobre a tese do “oposicionismo nato” dos estudantes durante a ditadura, a partir da análise sobre organizações estudantis de direita.

Por fim, mas não menos importante, Bruno Biazetto, a partir da análise de percepções de intelectuais norte-americanos sobre o fenômeno conservador local, fornece uma ampla visão sobre o estado da arte, que se inicia na Era Reagan e se estende a expressões políticas como o Tea Party e a candidatura (e agora eleição) de Donald Trump.

Evidentemente, grande parte dos textos atentam para dinâmicas relacionadas a regimes de exceção – ou às tentativas de construção de ordens autoritárias. No entanto, conforme aventado, a hodiernidade da questão desconhece barreiras temporais ou mesmo divisões de mundo, inclusive entre “Ocidente” e “Oriente”. Assim, a entrevista realizada com o professor Dr. Andreas Umland, um dos expoentes nos estudos do autoritarismo pós-soviético, nos oferece uma visão acerca de um quadro complexo e por vezes pouco analisado do lado de cá, coroando a edição do presente volume. Como organizadores, esperamos que este dossiê auxilie a suscitar novas compreensões, discussões, possibilidades de pesquisas e, sobretudo, o diálogo entre as diferentes formas de vivenciar o mundo.

A todos (as), uma boa leitura!

Odilon Caldeira Neto – Professor substituto do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio doutoral junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Investigador-coordenador da “Rede Direitas, História e Memória” (http: / / direitashistoria.net). E-mail: odiloncaldeiraneto@gmail.com

Vinícius Liebel – Historiador, doutor em Ciência Política pela Freie Universität Berlin (FU-Berlin). Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Professor colaborador do PPG-História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista Capes-PNPD na mesma instituição. E-mail: v.liebel@uol.com.br


CALDEIRA NETO, Odilon; LIEBEL, Vinícius. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 5, n. 3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) | Jerzy Mazurek

Dos milhões de imigrantes poloneses que se espalharam ao redor do planeta, mais de cem mil chegaram ao Brasil entre 1869 e 1939, ocupando majoritariamente colônias rurais nos estados do sul do país. Esse grupo, apesar de menor em comparação com as imigrações italiana, portuguesa, alemã ou espanhola, faz parte do processo mais amplo da imigração europeia massiva para a América Latina entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Um fenômeno de grandes proporções, como afirma Devoto, “la migración de masas fue uno de lós fenómenos más característicos del mundo euroatlántico entre los siglos XIX y XX” (2007, p.531), e que moldou a configuração dos países latino-americanos em diferentes aspectos, incluindo o Brasil, no qual esteve presente em diversas regiões, sendo de maneira mais forte em termos populacionais nas regiões sul e sudeste brasileira.

Como parte deste processo mais amplo, a e/imigração polonesa para a América Latina, de modo geral e para o Brasil, de maneira específica, tem sido um tema com múltiplas possibilidades de análise, mas que dentro dos estudos migratórios ainda demanda pesquisas empíricas rigorosas que apontem novos dados sobre a presença deste grupo étnico em terras americanas. Vários fatores explicam o fato de as produções acadêmicas sobre este grupo migrante ainda serem restritas (WEBER, WENCZENOVICZ, 2012) e estarem em um estágio inicial, especialmente no caso da literatura em português no Brasil. Por várias décadas, cientistas sociais poloneses em seu país vêm se debruçando sobre a temática da emigração polonesa, mas muitas vezes, em razão da escrita em polonês, seus trabalhos ficavam circunscritos à realidade local. Um exemplo de novos trabalhos que trazem avanços e contribuições para esta temática, e que permitem o acesso ao leitor brasileiro, é o livro A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939) de Jerzy Mazurek.

Mazurek é nascido na Polônia e estudou história e biblioteconomia na Universidade de Varsóvia, onde completou seus estudos com uma pós-graduação em museografia, história da arte e em administração. Atualmente é Vice-Diretor do Muzeum Historii Polskiego Ruchu Ludowego (Museu Histórico do Movimento do Povo Polonês), em Varsóvia (desde 1998), e também professor na área de História do Brasil no Instytut Studiów Iberyjskich i Iberoamerykańskich Uniwersytetu Warszawskiego (Instituto de Estudos Ibéricos e Iberoamericanos, da Universidade de Varsóvia).

O professor é autor de vasta bibliografia sobre os poloneses no Brasil e América Latina como Kraj a emigracja: ruch ludowy wobec wychodźstwa chłopskiego do krajów Ameryki Łacińskiej (do 1939 roku) (O país e a emigração: o movimento popular contra a emigração dos camponeses para os países da América Latina (até 1939)) de 2006; Piórem i czynem Kazimierz Warchałowski (1872-1943) – pionier osadnictwa polskiego w Brazylii i Peru (Penas e ação Kazimierz Warchałowski (1872-1943) – um pioneiro da colonização polonesa no Brasil e no Peru) de 2013; e a participação no livro bilíngue Polacy pod Krzyżem Południa (Os Poloneses sob o Cruzeiro Do Sul) de 2009. Além de ser redator de outras obras com temas semelhantes através da edição da Biblioteka Iberyjska (Biblioteca Ibérica), vinculada ao supramencionado instituto do qual o professor Mazurek faz parte.

O volumoso livro (458 páginas) traduzido por Mariano Kawka e publicado pela editora Espaço Acadêmico (Goiás), é uma versão modificada e ampliada do mencionado livro “O país e a emigração: o movimento popular contra a emigração dos camponeses para os países da América Latina (até 1939)”, sendo o modelo daquelas obras que se tornam referência obrigatória para os pesquisadores que querem iniciar estudos sobre um tema específico como a presença dos imigrantes poloneses na América Latina. O texto é escrito com base numa ampla fonte documental que varia de documentos oficiais do Brasil, Argentina e Polônia; impressos de ficção, relatos de viagem, memórias, romances, produção científica; documentos pessoais; pesquisa em fontes paroquiais; análise de periódicos de diferentes países, artigos científicos e de divulgação, além de ampla bibliografia contemplando a produção da Polônia, Brasil e Argentina. Estes aspectos fazem com que a obra de Mazurek seja também um inventário para novas fontes sobre a história dos poloneses na América Latina e permite o cruzamento de dados e informações sobre personagens, opiniões, ações, entre outros assuntos relacionados com a imigração polonesa.

Voltado para um público mais amplo, o texto tem fluidez na leitura, acompanhado de muitas informações, com detalhamento e exploração das fontes a fim de descrever com minúcias aquilo que se propõe. O livro todo é marcado por uma exposição detalhada, a partir das fontes, da relação dos intelectuais e Estado poloneses e o processo emigratório.

O autor analisa uma diversidade de documentos (oficiais, da imprensa, romances, relatórios, crônicas, realtos de viagens, etc.) contextualizando sua postura a partir de seus produtores, seu posicionamento político e diante do fenômeno imigratório. Configurando os escritos a partir de diferentes ideologias sobre a questão nacional polonesa, a economia e as relações com os países vizinhos, minorias e países ocupantes. Além disso, leva em conta as visões sobre o Brasil e a América Latina em geral, ponderando estereótipos e análises feitas por intelectuais que estiveram nas áreas de colonização.

O foco principal é analisar como os partidos e movimentos populares, maneira pela qual Mazurek chama às agremiações partidárias ligadas aos camponeses e ao âmbito rural na Polônia durante e depois da ocupação estrangeira2, se posicionaram em relação à emigração polonesa para a América Latina. Segundo o autor, “no presente trabalho, propusemo-nos apresentar a posição do movimento popular organizado, isto é, dos partidos, facções e organizações, diante da ação colonizadora camponesa na América Latina” (2016, p.13), pensando também como os líderes populares atuaram com relação a essa coletividade emigrada, dando importância à voz dos indivíduos, suas opiniões e ações num contexto de relevância da mobilidade do campo europeu para o ultramar. Mazurek escreve a partir do país de saída dos indivíduos, considerando a emigração e a trajetória dos emigrados em outros continentes como parte fundamental da história da própria Polônia.

Uma das novidades da obra é pensar nas categorias de emigração colonizadora e emigração econômica para o caso polonês. A primeira, centrada na criação de colônias (rurais), onde o camponês recebia terras para o cultivo próprio, era o motor da emigração polonesa para a América Latina. Torna-se uma política de Estado, principalmente após a recuperação da independência e o início da utilização da emigração com fins coloniais. A segunda caracteriza o movimento para a América do Norte, podendo ser muitas vezes uma emigração individual e sazonal, focada em trabalhos urbanos ou então para períodos de colheitas no interior da Alemanha ou na produção de café em São Paulo.

Assim sendo, o livro apesar do foco centrado na relação dos partidos populares e a emigração, em virtude da multiplicidade de fontes, extensa bibliografia e temas abarcados, contribui para outros aspectos associados com a presença polonesa na América Latina. Abrange novos dados estatísticos relacionados com a saída dos emigrantes; lideranças importantes que participaram de forma ativa na promoção ou refração da emigração de camponeses; a atuação dos estados ocupantes atinentes às tentativas autonomistas polonesas no século XIX e o próprio processo emigratório; analisa também a ação da II República Polonesa frente ao problema emigratório após a independência do país, durante o período entre guerras, um tema ainda muito pouco estudado na historiografia.

O trabalho se permite ampliar o recorte temporal desde finais do século XIX até meados do XX, perpassando diferentes realidades e contextos, os quais moldaram o mapa e as mentalidades europeias. Ademais, a periodicidade pretende dar conta não apenas do processo de emigração, mas também do estabelecimento da comunidade polonesa na diáspora: seu trabalho, instituições, religiosidade, entre outros aspectos.

É importante notar que todo o livro é dividido no período anterior e posterior à Independência Polonesa em 1918, marco importante por trazer mudanças significativas na atuação de intelectuais e políticos em terras polonesas, bem como em razão das mudanças econômicas durante e após a dominação estrangeira. Leva, portanto, em consideração a pressão exercida pelas nações ocupantes (Império Russo, Alemão e Áustro-Húngaro) desde 1795-1918 sobre o campesinato polonês nas diferentes regiões, cada qual tratada com singularidade em virtude das diferentes políticas agrárias, étnicas e sociais perpetradas por aquelas nações. O segundo período, o entre guerras (1918-1939) ou da II República Polonesa, é notadamente importante, uma vez que, do ponto de vista da emigração, é o menos estudado e sobre o qual o autor aponta novos dados emigratórios: com a presença das chamadas “minorias étnicas” (ucranianos, lituanos e judeus) da Polônia Renascida entre os imigrantes (sendo inclusive o maior grupo emigrante no período), bem como a diminuição do número total daqueles que deixavam o país, seja em virtude de uma melhoria das condições na nação de partida e políticas de impedimento de saída de emigrantes, seja em função da restrição nos países de imigração (como as políticas varguistas no Brasil a partir de 1930) em função da crise mundial.

Com base nestes pressupostos, passamos propriamente a análise das diferentes partes da obra composta de quatro capítulos. O autor no primeiro capítulo discorre sobra a colonização polonesa entre 1869-1939. O objetivo geral é explicar as causas da emigração, os caminhos percorridos, os espaços de estabelecimentos e a história da colonização camponesa dos emigrantes poloneses na América Latina. Evidencia o papel das organizações sociais, educativas, culturais, religiosas, bem como a questão rural; tendo como países de destino principais o Brasil e Argentina, sobre os quais recolheu a maioria dos dados e análises. Nessa parte, o autor contempla as diferentes ondas imigratórias, isto é, as chamadas febres, sobre as quais aponta variados números estatísticos dando um panorama da quantidade do afluxo deste grupo emigratório para o Brasil.

Mazurek recorre à importância do aspecto econômico como causa propulsora da emigração dos camponeses. A tese da passagem de sistemas semi-feudais para o capitalismo e consequentemente do superpovoamento dos campos, da minifundização agrária e, assim, da disputa pela terra na Polônia, a qual relegava miséria e problemas sociais para o camponês polonês, são razões pelas quais o autor sugere o desenvolvimento do fenômeno massivo emigratório.

Após esse exame contextual, Mazurek no segundo capítulo ocupa-se mais centradamente das opiniões dos intelectuais poloneses durante o período de domínio estrangeiro e as políticas emigratórias polonesas no entre guerras. Demonstra as mudanças de concepção referentes a emigração, flutuando de movimentos restritivos por parte de periódicos de Varsóvia (então sob ocupação russa), até grupos preocupados com a organização e o apoio aos emigrantes, como a Sociedade Comercial e Geográfica de Lwów (na Galícia austríaca). Consultando fontes escritas em livros, romances e jornais, permite identificar grupos pró e contra as saídas dos camponeses, com argumentos que variavam desde a necessidade de despressurização do campo, os problemas dos países de imigração e a penúria pela qual passavam os emigrantes, até a eminente perda de elementos que contribuiriam com a nação polonesa, seja econômico seja cultural e socialmente. Portanto, demonstra como havia momentos de inflexão no raciocínio dos intelectuais poloneses, ora preocupados com a situação econômica do país, ora com a situação política e a luta pela independência ou a manutenção dela.

No terceiro capítulo, analisando o período anterior a independência, Mazurek descreve as diferenças entre a Galícia (região ocupada pela Áustria-Hungria), o Reino (região ocupada pela Rússia) e a zona de ocupação prussiana. A primeira com uma garantia de maior liberdade para os poloneses permitia uma atuação ampla de movimentos camponeses e partidos, através de um autogoverno3 e de intelectuais, os quais participavam de eleições, das decisões e emitiam opiniões sobre a saída camponesa em direção a América (tanto do Norte como a Latina). Assim, era destacada no âmbito rural da Galícia a emergência de uma legislação polonesa própria, que problematizava o fenômeno emigratório. Além da ação direta de grupos com objetivos de guiar ou impedir os camponeses de emigrarem como a mencionada Sociedade Comercial e Geográfica. Apesar dessa liberdade de ação, a região era a mais pobre das três partilhas polonesas, onde os processos de desagregação no campo estavam mais avançados e relegavam piores condições de vida aos camponeses, o que em geral conduzia à mobilidade rumo ao Novo Mundo.

No Reino a emigração era ilegal e havia um controle por parte do Império Russo para impedir a evasão dos camponeses poloneses. Através da imprensa, fruto dos movimentos populares poloneses da região, eram emitidas a maior parte das opiniões acerca do movimento emigratório, que apesar da proibição, acontecia em larga escala, especialmente no final do século XIX. A questão da luta pela independência era contribuinte para a repressão estatal russa, uma vez que ao longo do século XIX emergiram movimentos independentistas na região e conflagraram-se conflitos com as autoridades russas.

As organizações populares polonesas, ainda que com menor espaço para ação, existiam e propagavam suas ideias pelos periódicos. Nesse contexto, a emergência de um sentimento de desnacionalização, percebia os emigrantes como uma “perda” para a “nação” e uma característica de esvaziamento da luta pela recuperação da condição independente. Apesar da identificação dos problemas rurais por parte da intelectualidade, em geral, havia uma intenção de impedir a saída dos camponeses poloneses ou então a perspectiva de “mal necessário”, um escape em função da pobreza no campo e da repressão russa.

Na Prússia (depois Alemanha) a questão era diferente das duas anteriores. Existia um projeto estatal de germanização e de enfrentamento da “questão polonesa” como um “perigo” para o Estado, de modo que a repressão e o controle eram muito maiores. Nesse ínterim, a limitação de publicações e do uso da língua polonesa eram mais evidentes e existia o impedimento da conformação de organizações especificamente polonesas, mesmo no campo. Também, a emigração ultramarina era minorada em função de uma migração interna dentro dos diferentes estados alemães para trabalhos sazonais. Ainda assim, o tema da emigração importava mais ainda para a intelectualidade polonesa local, uma vez que como existia uma política alemã da desnacionalização, havia um estímulo por parte do estado germânico para a saída de camponeses poloneses que vendiam suas terras a alemães, garantindo a ocupação do território. Este fato era visto como uma forma de acelerar o processo de germanização da região, e portanto, as produções sobre o fenômeno por parte da intelectualidade polonesa são de movimentos contrários a emigração de camponeses poloneses a fim de evitar o aceleramento da germanização e impedir uma possível retomada do Estado Nacional.

Ao verificar as múltiplas opiniões e discussões promovidas nas regiões partilhadas polonesas, Mazurek explora o fato de a emigração para a América Latina, devido aos números que atingia, ser vista como um “problema” a ser resolvido, devendo ser impedida ou organizada. O fato é que se torna uma questão a ser pensada, refletida, teorizada e resolvida pela intelectualidade polonesa nas regiões ocupadas, buscando-se avaliações e proposições para lidar com o fenômeno existente, que se tornava cada vez mais massivo e vai ser interrompido apenas com a Primeira Guerra Mundial em 1914.

Por último, no capítulo quatro, o autor se concentra no período da Polônia renascida, após o fim da Primeira Guerra e no momento de uma retomada – ainda que numericamente inferior que as décadas anteriores – no fenômeno emigratório até 1939, quando outra guerra termina novamente com a independência polonesa. Com o retorno da existência da nação no mapa europeu, o autor passa a concentrar-se no jogo político-partidário polonês, nas questões legislativas e executivas, os debates levados a cabo pela intelectualidade na Polônia, bem como continua analisando os periódicos pertencentes especificamente aos partidos populares.

Mazurek também destaca a presença de políticas de colonização com ideias imperialistas coordenadas por sociedades particulares com apoio estatal, as quais visavam também a colonização de outras regiões, para além do Brasil e Argentina, como Peru e Bolívia. Um exemplo eram as atividades da Liga Morska i Kolonialna4.

Entre 1918 e 1939, a tensão no campo e os motivos emigratórios continuavam basicamente os mesmos, desenvolvidos por diversas crises econômicas. Neste momento, a questão da reforma agrária passa a ser central para a maioria dos partidos populares e camponeses, sendo a emigração vista como uma consequência da não consecução da remetida reforma. Múltiplos debates legislativos são levados em consideração, ademais da análise dos programas dos diferentes partidos, suas ideologias e o modo como a emigração era descrita por seus membros a partir de temáticas centrais (impedimento, organização, reforma agrária, colonização), que circulavam nos jornais partidários.

O fato é que, com as restrições impostas pelos países de imigração e consequentemente a diminuição do fluxo de poloneses para a América Latina, o assunto também ganha menos destaque na imprensa partidária. A aproximação da guerra e múltiplos conflitos entre diferentes etnias dentro do território polonês, conduzem ao pensamento de utilização do fenômeno emigratório para a “expulsão” das minorias étnicas do território polonês e a criação de colônias ultramarinas ligadas ao estado, com ideias imperialistas afirmados e, dessa forma, a constituição de instituições com o fito de estabelecer colônias polonesas para o florescimento do país, usando, quiçá, às já existentes comunidades do Brasil e Argentina fruto da diáspora das décadas anteriores.

Em suma, para Mazurek,

o capitalismo era o catalisador de lentas transformações sociais, a mais importante das quais era a libertação da mão de obra agrícola do sistema da servidão. Isso, no entanto, provocou o surgimento de uma enorme população sem terra. Essa massa não podia ser absorvida pelo vagaroso desenvolvimento das cidades e da indústria. A fome de terra dos camponeses e a pouca capacidade do mercado para absorver a mão de obra em excesso tornaram-se as causas da emigração da população rural em busca de melhores condições de vida. A inicialmente lenta emigração aos países da Europa Ocidental e à América do Norte transformou-se num movimento colonizador maciço especialmente no Brasil […] muitas vezes definidos como “febre brasileira” (MAZUREK, 2016, p.405).

O livro traz uma boa descrição dos aspectos concernentes a imigração polonesa e sua vinculação com os movimentos populares ligados ao campo. Em virtude da sua apropriação mais ampla, apresenta um trabalho empírico notável usando fontes de múltiplos países e diferentes idiomas. Um esforço de problematização e análise de diferentes realidades num espectro temporal e espacial ampliado, os quais permitem a constituição de uma obra de referência importante para qualquer estudioso do tema, sendo um significativo elemento para a configuração da historiografia sobre os poloneses no Brasil, escrita em português para leitores nativos neste idioma.

Apesar dos números menores que outros grupos migrantes, os poloneses no Brasil se adaptaram ao país de acolhida e participaram da sua vida social, constituindo um grupo étnico, que longe de ser homogêneo, em muitos aspectos preservou suas especificidades ao mesmo tempo em que se assimilou. Pesquisar a história da imigração polonesa é pesquisar a História do Brasil, em que o fenômeno imigratório massivo trouxe alterações à sociedade brasileira e ajudou na sua conformação.

A historiografia sobre os poloneses na América Latina e destacadamente no Brasil vem aos poucos se desenvolvendo. Um maior relacionamento entre pesquisadores dos dois lados do Atlântico e produções que permitam o acesso linguístico aos estudiosos são meios de avançar na construção do conhecimento sobre as migrações, a fim de renovar estes estudos e propor novos problemas e temas de pesquisa a este assunto que apesar de ser muito trabalhado, como objeto gerador de pesquisas, está longe de esgotar-se.

Notas

1 Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná. Contato: rhuan.trindade@hotmail.com. Resenha recebida em 10 de novembro de 2016.

2 A Polônia sofreu três partilhas no século XVIII entre Áustria (depois Áutro-Hungria), Rússia e Prússia (depois Alemanha): a primeira em 1772, depois 1793 e finalmente 1795 que acaba definitivamente com a independência daquela nação, a qual retornaria apenas após a Primeira Guerra Mundial.

3 Na Galícia, aos poloneses era permitido escolher dirigentes igualmente poloneses em diversos níveis de atuação política, incluindo representantes para o Parlamento em Viena.

4 A Liga Marítima e Colonial era uma das mais importantes organizações que procurava áreas de colonização para os emigrantes poloneses. A Liga almejava através da colonização dominar territórios na América do Sul e África. Os planos de colonização não ultrapassaram o estágio de planos e desmoronaram-se nos fins dos anos trinta.

Referências

DEVOTO, Fernando J. La inmigración de ultramar. In: TORRADO, Susana (comp). Población y bienestar en la Argentina del primero al segundo Centenario. Buenos Aires: Edhasa, 2007.

MAZUREK, Jerzy. A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939). Goiânia: Espaço Acadêmico, 2016.

WEBER, Regina. & WENCZENOVICZ, Thaís J. Historiografia da imigração polonesa: avaliação em perspectiva dos estudos sobre o Rio Grande do Sul. História UNISINOS, vol. 16, p.159-170, 2012.

Rhuan Targino Zaleski Trindade1 –  Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná. E-mail: rhuan.trindade@hotmail.com


MAZUREK, Jerzy. A Polônia e seus emigrados na América Latina (até 1939). Goiânia: Espaço Acadêmico, 2016. Resenha de: TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski. Polska emigracja: revisitando e ampliando o tema da presença polonesa na América Latina. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.18, p.297-305, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

Homoerotismo na Antiguidade / Hélade / 2016

O Grupo Gay da Bahia3 é uma conhecida entidade que, dentre outras coisas, elabora estatísticas acerca da violência motivada por homofobia e violações dos direitos humanos dos LGBTs no Brasil. Os números que divulgam são alarmantes. Em 2015, 318 homossexuais foram assassinados no país, taxa que indica uma queda desprezível quando comparada ao ano anterior, posto que em 2014 foram anotadas 326 mortes. Imagina-se, com algum grau de certeza, que esses números são tímidos diante da realidade. Em primeiro lugar, porque os cálculos dependem das notícias vinculadas pela imprensa, que não torna notícia a totalidade dos homicídios; em segundo lugar, pela dificuldade de reconhecer com precisão a influência da homofobia na irrupção de determinado assassinato. Ao fim e ao cabo, se os dados são alarmantes, temos razões para crer que a situação é bem mais hostil.

Avanços graduais foram conquistados nas últimas décadas. Há quase 27 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU) retirava a homossexualidade do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). A resolução nº 001 / 99 de 22 de março de 1999, publicada pelo Conselho Federal de Psicologia4, seguindo as diretrizes que se consolidavam definitivamente no cenário internacional, considerou que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e determinou que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em linhas gerais, graças aos esforços de muitos agentes envolvidos no debate, a livre vivência da sexualidade se tornou um importante topos de luta política em torno das garantias fundamentais dos indivíduos e seu desrespeito passou a ser considerado uma afronta aos direitos humanos.

Obviamente, as camadas mais conservadoras persistem oferecendo resistência a esses avanços. A força impositiva de um discurso tradicional, a heteronormatividade compulsória que caracteriza a educação e a socialização dos sujeitos, a ignorância ou mesmo o caráter duvidoso fazem com que muitos indivíduos – alguns deles com ampla visibilidade nos círculos midiáticos – persistam disseminando discursos de ódio e relativizando tais formas de violência. Partindo da presunção apocalíptica de que o respeito às liberdades individuais pode caracterizar uma ameaça às relações heterossexuais, esses grupos naturalizam o conceito de família, lançam a suposição sem lastro científico de um estado de inalterabilidade das relações afetivas e buscam associar a um discurso naturalizante as relações entre homens e mulheres, ignorando todas as inúmeras possibilidades existentes e que, não raro, eles próprios procuram reprimir. Ainda que discorrendo sobre a divisão binária dos sexos, Pierre Bourdieu percebeu em La domination masculine (1998) um dispositivo que vemos ser utilizado com substrato para a defesa intransigente da heternormatividade e consequente regulação das liberdades individuais, qual seja, uma espécie de “naturalização de disposições” através de discursos que presumem um tipo de ordem do mundo como fundamento primeiro para sua ação reativa. De acordo com o sociólogo, “a divisão entre os sexos parece estar ‘na ordem das coisas’, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BOURDIEU, 2007, p. 17).

A natureza é levada, nesse ponto, ao encontro da conveniência. A constatação é tão óbvia quanto necessária, afinal, a mesma natureza que foi enfrentada quando se colocou diante de nossas necessidades ao longo de toda a história humana, é a mesma que é evocada como argumento para restringir as afetividades e desejos que contrariam as expectativas de quem julga que o “natural” é a medida primeira para todas as coisas.

Desnaturalizar as relações sociais é, talvez, uma das necessidades mais prementes das Ciências Humanas como um todo, e da historiografia em particular. Através de argumentos sólidos, de evidências bem coligidas, de análises metodologicamente rigorosas e com refinamento teórico, somos capazes de substituir a perspectiva de uma “ordem do mundo” pelas várias ordens que nossos vários mundos vivem e viveram. Isso não significa, obviamente, ignorar a longa duração, as permanências e recorrências que caracterizam diversos momentos e processos históricos, mas indicar com precisão que o “nem sempre foi assim” enseja sempre um horizonte de mudança que nos liberta do jugo do status quo. Se algo foi diferente, em algum tempo e / ou espaço, é possível recuperar a lógica de que nada é inalterável e permanente. Inclusive nossas consciências. Inclusive nossos preconceitos.

Essa é uma das questões que sobrepairam os três volumes do célebre Histoire de la Sexualité (1976; 1984), de Michel Foucault. É precisamente pela via histórica (criticada por muitos, mas reconhecida em seus méritos por outros tantos) que o filósofo francês irá se aventurar para sustentar a hipótese de que a sexualidade – essa palavra que surgirá apenas no novecentos, ainda que seu referente não seja exatamente novecentista – não é unívoca em suas práticas e representações, nos discursos sobre suas peculiaridades, nos esforços de silenciamento e ocultação e nas manifestações de poder de um pudor vitoriano que por séculos buscou seu controle e / ou repressão. Assim Foucault sintetizou o projeto que se tornou um dos principais marcos nos estudos acerca da temática:

“Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma ‘sexualidade’, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo” (FOUCAULT, 2010, p. 12)

Sua leitura acerca da Antiguidade é um convite para que revisitemos um período histórico em que as visões e formas de experimentar a sexualidade, em geral, e o homoerotismo, em particular, confrontam o imperativo da naturalização que os discursos conservadores buscam impor para cercear direitos. Escusado lembrar que esse retorno não pretende recuperar um passado livre de todas as formas de controle dos corpos e dos afetos, onde as experiências individuais estavam livres de opressões diversas que interditassem os sujeitos da rígida observância de seus costumes e usos dos prazeres. No entanto, é preciso reconhecer a existência de diferentes formas de expressão do homoerotismo para que sejamos capazes de perceber, entre outras coisas, os limites e paradigmas acerca do comportamento sexual nas sociedades antigas e a forma com que foram representados na documentação a que temos acesso, permitindo assim colocar as sociedades pregressas e atuais em perspectiva através de suas similitudes e, principalmente, através das diferenças.

Os autores que contribuíram com esse dossiê recuperam esse debate e vão além, oferecendo assim uma valiosa contribuição para os Estudos Clássicos no Brasil. Abordar o tema do homoerotismo na Antiguidade Clássica – uma temática cujas análises e investigações cresceram exponencialmente nas últimas décadas – representa um esforço de posicionamento político que reforça a necessidade de persistirmos na busca de ampliação de direitos, de recrudescermos o acesso à cidadania e de combatermos, de forma intransigente, toda e qualquer forma de preconceito. A Hélade reforça, assim, seu compromisso de convidar as sociedades antigas a dialogar com os dilemas e conflitos na vida em sociedade.

Notas

3. Diversas informações podem ser consultadas na página da entidade: http: / / www.ggb.org.br /

4. Disponível em: http: / / site.cfp.org.br / wp-content / uploads / 1999 / 03 / resolucao1999_1.pdf. Acesso em 16 / 01 / 2017.

Referências

BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2010.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representação e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ). E-mail: asmoraes@gmail.com

Anderson Martins Esteves – Doutor em Letras Clássicas, professor do Programa de Pós- -Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador do Espaço Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (ATRIVM-UFRJ). E-mail: andersonmartins@letras.ufrj.br


MORAES, Alexandre Santos de; ESTEVES, Anderson Martins. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.3, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Latin eugenics in comparative perspective – TURDA; GILLETTE (HCS-M)

TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin eugenics in comparative perspective. London: Bloomsburry, 2014. 320p. Resenha de: VIMIEIRO-GOMES, Ana Carolina. Uma agenda científica para a eugenia latina? História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23  supl.1 Dec. 2016.

A obra Latin eugenics in comparative perspective, publicada por Marius Turda e Aaron Gillette em 2014, é uma audaciosa contribuição para a história dos conceitos e práticas do movimento eugênico em perspectiva transnacional. Diante de um tema bastante explorado pela historiografia, o diferencial desse livro está justamente em tomar como objeto a “Eugenia Latina, reinterpretando essa categoria polêmica e ainda pouco explorada”. Para tal empreitada, os autores propõem uma abordagem comparativa envolvendo os sentidos e usos científicos, culturais e políticos da eugenia desenvolvidos em alguns contextos locais europeus e latino-americanos. Entretanto, o livro busca explorar as idiossincrasias da dimensão intraeuropeia da eugenia latina, mobilizando como ponto de diálogo a ideia de uma eugenia “latinizada” na América Latina – antes desenvolvida por Nancy Stepan (2005) em A hora da eugenia – mas propondo avançá-la.

Latin eugenics in comparative perspective é estruturado em sete capítulos, com a conclusão seguida de um epílogo. Essa estruturação segue organizada segundo duas dimensões: temporal, com capítulos que tratam da eugenia em fins do século XIX, no entreguerras e no pós-guerra; e temática, em que são debatidas as especificidades da eugenia latina no que diz respeito à esterilização, à religião, ao racismo científico e à sua comunidade de praticantes, com a criação de uma Federação de Sociedades da Eugenia Latina, nos anos 1930. Aliás, os autores dedicam capítulos separados para a eugenia latina intraeuropeia e a eugenia na América Latina, de forma a pôr em evidência as aproximações e as diferenciações dos movimentos eugênicos nessas duas regiões. Dentre esse conjunto narrativo, destaca-se a interpretação sobre a eugenia no período entreguerras, momento em que, para os autores, as especificidades da agenda científica da eugenia latina se afirmaram e consolidaram no cenário científico internacional. Salta aos olhos a tentativa de mobilizar uma variedade de fontes primárias e o esforço de síntese dos autores, buscando, por meio de revisão bibliográfica, percorrer o debate sobre a história da eugenia em diversos contextos nacionais.

Afinal, como Turda e Gillette caracterizam a eugenia latina? O que diferenciaria sua agenda científica da de outros movimentos eugênicos?

Os autores abrem o livro com a afirmação de que a eugenia latina seria um dos ramos da eugenia que acabou por conformar um conjunto de ideias e práticas adotadas por muitos eugenistas europeus, que consideravam seus países pertencentes a uma comunidade cultural latina, de abrangência internacional. Os países considerados latinos que são tratados no livro são: França, Itália, Espanha, Bélgica, Portugal e Romênia, na Europa; Argentina, México, Cuba, Brasil e Peru, na América Latina. Essa cultura latina seria baseada na concepção de panlatinismo: uma tradição inventada desde fins do século XIX e supostamente partilhada pelos países latinos – definida principalmente em termos histórico-genealógicos (herança romana), por aspectos culturais e linguísticos partilhados e por concepções religiosas comuns (catolicismo). A partir desse pano de fundo, tentam demonstrar que existiu dentro do movimento eugênico latino europeu certo compromisso com essa latinidade, embora os eugenistas de cada país tivessem buscado criar e desenvolver sua própria eugenia nacional, segundo valores culturais e científicos locais próprios. Para Turda e Gillette, o caráter distinto da eugenia latina estaria na crença no poder da ciência como meio de modernizar o Estado-nação, ao mesmo tempo preservando alguns dos valores dessa tradição cultural.

Desse modo, para os autores de Latin eugenics in comparative perspective, esses valores culturais orientaram as particularidades da agenda científica da eugenia latina e, assim, os fundamentos de oposição à eugenia nórdica e anglo-saxã. Nessa direção, um dos argumentos dos autores é o de que a eugenia latina, no entreguerras, mas principalmente nos anos 1930, desenvolveu-se em um conjunto coerente de ideias sociais, biológicas e culturais dirigidas mais às noções de indivíduo e de comunidade nacional, e menos à ideia de classe e de raça, enfatizada pela eugenia nórdica e anglo-saxã. Em jogo nessa perspectiva estavam tentativas de atingir os contornos sociais e [bio]políticos para o “Estado de bem-estar moderno”. Na agenda científica da latina, diferente da vertente anglo-saxã e nórdica, buscava-se a melhoria biológica do indivíduo e do coletivo por meio da medicina preventiva, da higiene social, dos estudos demográficos e da saúde pública, em vez da engenharia genética, da seleção racial e esterilização compulsória. A eugenia latina tinha, então, como principais fundamentos intelectuais o neolamarckismo, a puericultura, a biotipologia e a homicultura. A faceta política dessa eugenia expressou-se na sua mobilização pelos nacionalismos e pelo fascismo e até mesmo na aproximação com o catolicismo, como na Itália. Tais argumentações são demonstradas no livro por meio da revisão bibliográfica e pela empiria, a partir dos discursos e práticas dos cientistas e de instituições eugenistas tais como sociedades, revistas médico-científicas e organizações governamentais e políticas dos vários países privilegiados na análise. Indícios, conforme destacado pelos autores, de uma diacrônica e efetiva influência do pensamento da eugenia latina desde fins dos Oitocentos. Mesmo com risco de conduzir o leitor à simplificação e à superficialidade interpretativas comuns a esse tipo de recorte abrangente envolvendo vários cenários, o livro apresenta problematizações renovadas e várias evidências empíricas de conexões entre países, da circulação internacional e das apropriações locais desse modelo de eugenia latina, que foram pouco exploradas e merecem ser mais bem estudadas.

A obra termina com uma observação instigante sobre o pós-guerra. Os autores levam-nos a interpretar a eugenia latina como empreendimento bem-sucedido, ao afirmar que vários elementos da sua agenda científica acabaram por sobreviver aos ataques políticos e acadêmicos à eugenia depois dos anos 1950, deflagrados pelas trágicas consequências das políticas eugênicas da Segunda Guerra Mundial. Menos associados ao nazismo e às concepções racialistas e racistas radicais, argumentam os autores, os fundamentos intelectuais da eugenia latina necessitaram de poucas mudanças para se acomodar à nova cultura política do pós-guerra. A reformulação da eugenia nesse novo contexto inspira estudos críticos e aprofundados sobre o tema, o que torna Latin eugenics in comparative perspective leitura importante para os pesquisadores que se interessam pela história das variadas propostas de intervenção nas sociedades modernas a partir de teorias biológicas visando ao suposto progresso da humanidade.

Referências

STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005. [ Links ]

Ana Carolina Vimieiro-Gomes – Professora, Departamento de História/Universidade Federal de Minas Gerais. carolvimieiro@ufmg.br

Ludwik Fleck’s Theory of Thought Styles and Thought Collectives: Translations and Receptions | Transversal | 2016

Introduction1

Paweł Jarnicki2 Sandra Lang3 Ludwik Fleck (1896–1961) developed his theory of thought styles and thought collectives4 eighty years ago. It describes the origins and condensation of knowledge (including scientific knowledge) in a framework of thought collectives and the “circulation of thoughts” [Denkverkehr/krążenie myśli] within and among them. The combination of sociological, historical and psychological approaches to (scientific) knowledge was groundbreaking in those times and Fleck is often considered to be one of the first proto-constructivist thinkers.

By reconstructing the origins of a microbiological fact (the first reliable testing method for syphilis following the Wassermann reaction) at the beginning of the 20th century, Fleck showed that scientific knowledge does not simply derive from spontaneous discoveries or a single pure genius mind. According to Fleck, scientific facts emerge in a constant process of circulating and interchanging thoughts between various collectives. Collectives are carriers of thought styles, and one individual is always a member of several collectives; this makes the circulation of thoughts (i.e. a mutual interaction of different styles) possible even within one individual. Fleck’s sociological and historical perspective is closely linked to his experiences, practices and socialization as microbiologist (Sady, 2012). Leia Mais

12 hombres en pugna: Ni castigo/ ni perdón. El derecho a dudar | Eddy Chávez

Sin duda el mejor libro sobre cine y derecho hasta el momento. De hecho esa ha sido la misión del joven profesor Chávez, que ante cada nuevo proyecto piensa siempre en superar lo ya realizado con anterioridad, en orden de aparición: Eddy participó en “Cine, ética y argumentación judicial” (SCJN, México, 2013), después “Jóvenes abogados en el cine” (Grijley, Perú, 2014), y en el mismo año “Las elecciones en el Cine” (JNE, Perú) –en el que también estuvo involucrado Michell Samaniego Monzón- en 2015 sale el que ahora comentamos “12 hombres en pugna: Ni castigo, ni perdón. El derecho a dudar” (Grijley, Perú) el reto se ha cumplido, 12, es el segundo libro de la colección “Cine y Derecho” lo que refrenda el interés por el tema y la continuidad, de hecho, son ediciones que son esperadas con expectación por un público que se va consolidando, podemos hablar ya sin dudas, de un área temática con autonomía que se va profesionalizando, por ahora se trata de cursos periféricos o de profesores que utilizan el cine como recurso didáctico, pero estoy seguro que en muy poco tiempo veremos cursos lectivos dentro de la curricula regular sobre derecho y cine. Leia Mais

Angola: História/ Nação e Literatura (1975- 1985) | Silvio de Almeida Carvalho Filho

Não é de hoje que a História se aproxima da literatura. Há dez anos, Sandra Jatahy Pesavento, anunciava a (re)aproximação entre Clio e Calíope, musas da História e da poesia épica, respectivamente, que se associavam, mas não se confundiam. Segundo Pesavento, História e literatura correspondem a « narrativas explicativas do real », renovadas no tempo e no espaço e dotadas de uma permanente ancestralidade, na qual as linguagens escrita, oral, imagética, musical, aparecem como forma de expressar o mundo « do visto e do não visto » (2006, p.2). De fato, a escrita literária nos permite adentrar o universo do imaginário e a partir dele o campo das representações, todavia, logo de início, Silvio Carvalho nos avisa: « aquele que escreve é um ser histórico e, como tal, dever ser analisada a sua escritura » (2016, p. 26).

E Silvio Carvalho definitivamente é um ser histórico. Sua obra, fruto de uma vida dedicada à pesquisa, vem coroar a trajetória de um historiador experiente, que se lança em busca do imaginário social sobre a nação angolana, construído a partir de uma nascente literatura nativa, assentada sobretudo nas relações políticas constituídas durante e imediatamente após a guerra de libertação colonial. Também se insere em um momento de desabrochar dos Estudos Africanos no Brasil e de profunda intersecção entre as duas áreas, em que pese o fato de autores africanos serem ainda pouco publicados pelas editoras brasileiras. Os estudos comparados em literatura de língua portuguesa, tem travado um profícuo e intenso debate com as diversas áreas das Ciências Humanas, e, as chamadas literaturas africanas, ampliaram sobremaneira a sua inserção no campo da História da África, como fontes primárias. Leia Mais

Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir – GODINHO (AN)

GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014. Resenha de: KNACK, Eduardo Roberto João. Em diálogo com as Ciências Sociais. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 361-369, dez. 2016.

O livro organizado pela Professora Doutora em Antropologia Paula Godinho, da Universidade Nova de Lisboa/Instituto de História Contemporânea, Antropologia e Performance – Agir, Atuar, e Exibir, publicado pela Editora 100Luz em 2014, permite, além de conhecer pesquisas desenvolvidas e em desenvolvimento nas ciências sociais em Portugal (tendo como tema principal a performance), estabelecer um diálogo profícuo, teórico e prático, com a pesquisa em história. Inicialmente, é importante apresentar algumas considerações sobre o conceito performance e os temas desenvolvidos nos capítulos da obra.

Para Godinho, […] a relação entre a ação, a atuação e a encenação são o fulcro desse livro, que trata de performances, de ritos, de jogos e de quem os realiza e realizou, indagando passagens rápidas ou lentas, tempos e espaços de fronteira (GODINHO, 2014, p. 11).

Momentos que devem ser pensados com um rigor crítico que acabou se esvaindo dos estudos sobre esse tema. Eis uma primeira ponte erguida entre história e antropologia. A autora faz questão de contextualizar historicamente os sujeitos e grupos estudados, pois as práticas em foco ocorrem no presente, que “é histórico, resultado de um processo”, ou seja, não é possível estudar a performance, a ação e atuação de indivíduos e/ou grupos sem levar em consideração sua historicidade e como suas práticas vão se (re)significando ao longo do tempo.

As performances são encaradas como uma atuação que requer algum tipo de palco e uma audiência, apresentando uma dimensão espetacular, com “[…] atores e espectadores que se interlegitimam, tendendo a constituir uma forma de escrutinar o mundo quotidiano, visto como tragédia, comédia, melodrama, etc.” (GODINHO, 2014, p. 14). Essas performances estão presentes nos diferentes grupos sociais, entre “dominantes e dominados”. Ao introduzir a noção de “dialética do disfarce e da vigilância”, que permeia a relação de forças entre dois grupos, é utilizada a tipologia dos “discursos públicos”, que vão ao encontro das visões hegemônicas, que capitulam frente a seus interesses e valores, e a performance exerce papel chave na sua legitimação e dos “discursos escondidos” (SCOTT, 2013), que tem certa liberdade de ação, podendo contradizer e até ridicularizar os dominantes.

A partir dessas considerações iniciais, a obra está dividida em três partes. A primeira apresenta alguns textos que buscam delinear uma “antropologia da performance”, com o subtítulo: Antropologia e performance( s): atuar, encenar, exibir. O primeiro capítulo dessa primeira parte do livro, intitulado For years, I have dreamed of a liberated Anthropology, de Teresa Fradique, indaga sobre a definição do conceito de performance a partir de elementos que lhe seriam próprios, como a participação, a ação e o estranhamento, que estão presentes na própria prática, no comportamento do antropólogo. Assim, emerge a defesa de uma etnografia como experiência subjetiva sem que isso venha a solapar a antropologia enquanto área das ciências sociais e humanas. Embora essas considerações resultem de uma reflexão sobre a prática de uma área vizinha, a questão da subjetividade na pesquisa em história é importante, envolvendo o papel das instituições que legitimam a própria prática, o fazer da história e a dinâmica acadêmica, a partir do estímulo à apresentação dessas pesquisas aos pares, o que envolve performance (apresentação) e audiência.

O próximo capítulo da primeira parte é A dimensão reflexiva do corpo em ação: contributos da antropologia para o estudo da dança teatral, de Mario José Fazenda. Além de empreender uma revisão da literatura de autores que trabalharam com o seu objeto, busca observar a dança teatral em uma perspectiva histórica, entendida como uma ação social, simbólica enquanto sistema de significações dos seres humanos que não é mero reflexo da cultura, mas uma prática cultural construída pelos corpos em movimento. O capítulo A política do jogo dramático: marginalidade descentrada como resistência criativa (estudo de um grupo de teatro universitário), de Ricardo Seiça Salgado, se debruça sobre a história de um grupo teatral, o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), para pensar o conceito de “jogo dramático” como propulsor de mudanças na arte e na sociedade.

No capítulo Práticas artísticas contemporâneas: imaginação e exibição da nação, Sónia Vespeira de Almeida relaciona os conceitos de prática artística e performance, associados a maneiras de fazer e à criatividade cultural dos grupos sociais. Sua análise volta-se para uma exposição realizada em um museu e no trabalho de dois artistas de gerações diferentes, concluindo que as práticas de arte, enquanto modos de comunicação, articulam a capacidade de significar, construir e exibir a subjetividade dos sujeitos. No último texto da primeira parte, Metateatro da morte: as encomendadoras das almas numa aldeia da Beira Baixa, Pedro Antunes e João Edral centram sua análise em um ritual de culto dos mortos realizado durante a quaresma em aldeias de Portugal, onde segundo os autores, as práticas e discursos de uma religiosidade popular são indissociáveis de ações performativas e políticas.

A segunda parte do livro, O lugar do político: memória, ação e drama social, inicia com o capítulo Os ataques anticlericais na I República (1910-1917): historiografia, violência e performance, de Diogo Duarte, que estuda as ações que envolveram a danificação, destruição ou mesmo uso profano de objetos religiosos em um contexto de transformação nas relações entre Estado e Igreja em Portugal. Processo que tem início com o governo do Marquês de Pombal, mas atinge seu auge na implantação da República a 5 de outubro de 1910. Seu olhar recaí sobre a performance desses atos como reveladora de intenções políticas e/ou provocadoras, e não apenas servindo a interesses superiores, muitas vezes alheios aos sujeitos que os praticaram. Em A performance do viver clandestino, segundo texto dessa parte do livro, Cristina Nogueira observa, durante o fascismo português, uma cultura política da clandestinidade comunista, com diferentes regras a serem cumpridas que alteravam o comportamento dos sujeitos, obrigando-os a assumir uma nova forma de ser, através da criação de um papel a ser representado, o que envolve viver em uma permanente performance.

Paula Godinho escreve o capítulo A violência do olvido e os usos políticos do passado: lugares de memória, tempo liminar e drama social, no qual realiza um estudo sobre três momentos onde o passado é evocado a partir da construção de placas comemorativas, rompendo silêncios e omissões por parte de grupos dominantes, como aquele em que uma placa foi colocada, em 1996, em uma aldeia de Cambedo da Raia, zona fronteiriça que sofreu com a repressão por ter abrigado fugitivos do franquismo; em 2012 um monumento foi erguido em Ourense, para lembrar as vítimas portuguesas do franquismo na Galiza; e, ainda em 2012, o descerramento de uma placa de homenagem a trabalhadores portugueses que construíram a estrada de ferro Zamora e Ourense. Ao observar essas cerimônias, conclui a autora que existe a necessidade de rememorar, comemorar, para ultrapassar o trauma deixado pelas feridas da repressão de regimes autoritários nas localidades analisadas.

Elsa Peralta também se dedica à análise de monumentos com o capítulo O Monumento aos Combatentes: a Performance do Fim do Império no Espaço Sagrado da Nação. Partindo da ideia de que cemitérios e cultos dos mortos constituem representações simbólicas da ordem social dos grupos envolvidos, Peralta pesquisa o Monumento aos Combatentes do Ultramar nas guerras coloniais em que o regime português se envolveu entre 1961 e 1975. Tal monumento teria sido erguido em nome da normalização da ordem social partindo de uma associação própria dos combatentes e de seu ressentimento, ao observar a opinião pública oscilar entre posições contrárias e a favor das guerras e de suas ações nesse contexto. O último capítulo da segunda parte, Teatro de amadores em Almada: performance e espoir em tempo de Revolução, de Dulce Simões, observa um grupo de teatro amador, o TACA (Teatro de Animação Cultural de Almada), formado por estudantes das escolas técnicas de Almada entre 1974-1976. A autora conclui que as companhias teatrais, nesse momento, aparecem como uma força representativa de opções políticos-ideológicas diferentes que emergiram com uma descentralização do teatro promovido pelo processo revolucionário.

Fazer teatro era participar das transformações sociais e políticas significativas que estavam em curso em Portugal, e a performance desses sujeitos produziam significados que circulavam com força na sociedade.

A terceira e última parte do livro, Homo Performans: entre ação e atuação, começa com o texto de Sónia Ferreira, “Magazine Contacto”: Media e Performance na Construção da Identidade Nacional, onde a autora analisa um programa televisivo sobre comunidades portuguesas na diáspora enquanto prática performativa.

O capítulo de Nuno Domingos, Boxe e Performance: Lisboa, anos quarenta, busca interpretar o jogo, o boxe em particular, enquanto performance histórica, percebendo as atividades desportivas como espaços de intenção normativos, em constante disputa e negociação pela própria linguagem performativa que legitima modos de agir no cotidiano. Xerardo Pereiro e Cebaldo León escrevem o capítulo Turismo e performances culturais: uma visão antropológica do turismo indígena onde observam como o turismo indígena guna do Panamá recria espaços sociais e culturais através de práticas performativas, buscando analisar todos os envolvidos nesse turismo controlado, desde os gestores, até os serviços oferecidos aos sujeitos que desempenham, recriam performances ritualísticas para os turistas.

Maria Alice Samara, no capítulo Outras cidades: as cooperativas e a resistência cultura no final do Estado Novo, busca identificar modos de vida alternativos e sociabilidades comunitárias de grupos que lutavam contra o regime ditatorial, assim analisa algumas cooperativas culturais na grande Lisboa como a Pragma (Cooperativa de Difusão Cultural de Acção Comunitária) criada em 1964, a Devir Expansão do Livro, de 1969 e a Livrelco, do início de 1960.

O último capítulo, Vidas e performances no lúdico de Ana Piedade, apresenta suas considerações a partir de um trabalho realizado ao longo de vários anos na localidade de Lavradio, em Portugal. A autora reflete sobre o papel da memória na reprodução do gesto lúdico e como o lúdico (entendendo o jogo como prática ritual, como performance) se constitui como memória, “culturalizando” tempos e espaços vividos na infância.

A obra demonstra com clareza que as performances não são apenas simples reflexos ou mesmo expressões de uma cultura, mas são elas mesmas agentes ativos de mudanças (TURNER, 1988, p.

24). A referência a Turner não é mero acaso, pois se trata de um dos autores citados com recorrência nos diferentes capítulos descritos acima. Juntamente com Schechner (2003), baliza as fundamentações sobre o principal conceito/tema tratado – performance. Para Schechner: The phenomena called either/all ‘drama’, ‘theater’, ‘performance’ occur among all the world’s peoples and date back as far as historians, archeologists, and anthropologists can go (SCHECHNER, 2003, p. 66).

Em síntese, fazem parte da existência humana. Soma-se a esta contribuição de caráter geral e legitimador do estudo da performance as noções de “Drama”, “Script”, “Theater” e “Perfomance” (SCHECHNER, 2003, p. 71).

Drama pode ser entendido como o domínio dos autores de uma prática/produção, o srcipt como domínio daqueles que ensinam, theater aparece como a atuação daqueles que desempenham as performances, e a performance adentra no domínio da audiência. É claro que um indivíduo pode realizar mais de uma dessas funções, mas essas definições permitem, metodologicamente, observar todo o trabalho realizado em torno de uma performance em diferentes grupos e cenários culturais, como bem demonstram os temas abordados no decorrer do livro. As próprias danças e demais atividades teatrais, as práticas artísticas levadas a cabo por grupos que visam construir/legitimar identidades nacionais, rituais populares, as encenações que envolvem inaugurações de monumentos, a movimentação dos corpos, práticas esportivas, enfim, uma variedade de atividades desempenhadas em público podem ser pensadas, analisadas a partir das contribuições de Schechner.

Turner (1988, p. 25) contribui com a autonomização da noção de “liminality”, que caracteriza a fronteira de um ritual, de uma performance, “[…] entre um antes (de que nos desfazemos, purificando- nos) e um depois, em que nos reagregamos” (GODINHO, 2014, p. 12). A liminaridade constitui, portanto, uma espécie de ápice das práticas performativas, permitindo observar como elas mudam os sujeitos e/ou grupos que participam, seja como atores ou como audiência. Outro autor que está presente nas discussões no transcorrer da obra é James C. Scott (2013) e a formulação dos conceitos “discurso público” e “discurso oculto”. Os discursos públicos designam “[…] as relações explícitas entre os subordinados e os detentores do poder”, e o discurso oculto é aquele que ocorre nos bastidores, “[…] fora do campo de observação directa dos detentores do poder” (SCOTT, 2013, p. 28, p. 31).

Dentre os diálogos possíveis com a história que a obra Antropologia e Performance pode trazer, sua aproximação fundamental está na própria base da pesquisa. A crítica das fontes, dos documentos produzidos por sujeitos e grupos no passado, pode ser concebida, em muitos casos, como uma prática performativa, as próprias fontes, muitas vezes, são produzidas em virtude de práticas culturais, ritualísticas e performáticas. A sociedade política é permeada de ritualizações que envolvem produções documentais. A imprensa, seja escrita, falada ou televisionada, também é marcada por essa dimensão performativa. Assim, levar em consideração as diversas performances envolvidas na produção de documentos analisados pelos historiadores pode revelar traços importantes dos modos de ser, agir e pensar de determinados grupos. A própria performance é carregada de uma historicidade particular, o que abre outro diálogo possível com a antropologia.

Pesquisar a historicidade das práticas performativas pode revelar mudanças profundas não apenas nos rituais, festividades, jogos, etc., mas transformações importantes pelas quais as sociedades passaram, alterando, ou estruturando, o cotidiano vivido dos indivíduos. Também é importante pensar nas relações de poder que envolvem as performances, pois se há um “drama”, um “script”, agentes que organizam, desempenham e muitas vezes se apropriam dessas práticas, há uma audiência, que não permanece imobilizada, mas também se envolve, e em certas ocasiões passando à condição de organizadores, em um processo dinâmico de (re)construção das práticas performáticas. A noção de discurso público e discurso oculto também abre portas para os historiadores, que devem buscar mais do que a produção de uma massa documental e de um investimento material e simbólico em representações de grupos que figuram como elites em determinado contexto. Mas há, mesmo entre as elites, discursos ocultos que ocorrem fora do palco (o mesmo ocorre com os grupos subalternos) que podem ser percebidos ao se aproximar o olhar para as performances, especialmente em seus momentos liminares. Dessa forma, a leitura da obra proporciona um diálogo profícuo entre historiadores, antropólogos e demais pesquisadores das ciências sociais, abrindo horizontes e possibilidades de estudos interdisciplinares.

Referências

GODINHO, Paula (Coord.). Antropologia e Performance: Agir, Atuar, Exibir. Castro Verde: 100Luz, 2014.

SCHECHNER, Richard. Performance Theory. London: Routledge, 2003.

SCOTT, James C. A dominação e arte da resistência: Discursos Ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.

TURNER, Victor. The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications, 1988.

Eduardo Roberto Jordão Knack – Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Pós-Doutorando na Universidade Federal de Pelotas – UFPel.

Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória – HUYSSEN (AN)

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Trad. Vera Ribeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. Resenha de: MACHADO, Diego Finder. Imaginar o futuro em um mundo globalizante: paisagens transnacionais dos discursos do modernismo e das políticas da memória. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 371-379, dez. 2016.

Como imaginar futuros em um mundo cada vez menos confiante em relação às promessas de progresso de uma época anterior? As sociedades contemporâneas do Ocidente, em contraste com outras sociedades, têm manifestado um renovado interesse pelo passado e pelos seus vestígios. Frente ao que podemos considerar uma “crise de futuro”, o presente vem ocupando uma posição dominante em nossas experiências de tempo. Contudo, trata-se de um presente que procura, insistentemente, enraizar-se em um passado apropriado às suas ansiedades, em uma tentativa de barrar a efemeridade dos nossos dias. Neste contexto, ainda é possível imaginar futuros alternativos que não sejam apenas o futuro da memória?

O crítico literário alemão Andreas Huyssen, em seu último livro traduzido para o português, a coletânea de ensaios intitulada Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória, aproxima duas temáticas centrais em suas pesquisas: as consequências do modernismo na obra de alguns artistas contemporâneos e as políticas da memória, do esquecimento e dos direitos humanos. Estabelecendo trânsitos pelas fronteiras que demarcam essas temáticas, a afinidade entre os diferentes capítulos do livro é construída em torno da problematização da memória em contextos transnacionais. Para o autor: A afirmação mais geral deste livro é que tanto o discurso do modernismo quanto a política da memória se globalizaram, mas sem criar um modernismo global único ou uma cultura global da memória e dos direitos humanos (HUYSSEN, 2014, p. 12-13).

Para além das experiências históricas da Alemanha e dos Estados Unidos, que lhes são mais familiares, buscou interpretar conexões transnacionais que ultrapassam as geografias do Atlântico Norte, aproximando-se de geografias alternativas das paisagens de memórias traumáticas e de experimentações estéticas modernistas na América Latina, Ásia e África.

Diante da evidência contemporânea de um declínio do debate sobre o “pós-modernismo”, o autor chama atenção para o retorno dos discursos sobre a modernidade e o modernismo na arquitetura e nos estudos urbanos, assim como na literatura, nas artes plásticas, na música, nos estudos midiáticos, na antropologia e nos estudos pós-coloniais. Para ele, aquele debate foi “uma tentativa norte-americana de reivindicar a liderança cultural”, a partir dos anos de 1920, por isso marcado por um “provincianismo geográfico” (HUYSSEN, 2014, p. 11).

A primeira parte da obra é dedicada a interpretar geografias alternativas do modernismo em um mundo globalizante, colocando em discussão as maneiras como a cultura metropolitana de um modernismo clássico foi traduzida e apropriada criativamente em países colonizados e pós-coloniais na Ásia, África e América Latina, antes e após a Segunda Guerra Mundial. Um diálogo crítico com alguns artistas e seus experimentos estéticos é tramado: o argentino Guillermo Kuitca e seus experimentos cartográficos como um pintor do espaço; o sul-africano William Ketridge e a indiana Nalini Malani e os seus teatros de sombras como arte memorial; o vietnamita Pipo Nguyem-duy e sua série de fotografias de ruínas ecológicas da modernidade; e a colombiana Doris Salcedo com sua instalação artística que convida à reflexão sobre as continuidades entre colonialismo, racismo e imigração. Não deixa de lado outros artistas de diferentes nacionalidades, fazendo-nos compreender que a geografia do debate deve focar como o modernismo, nas artes visuais, é reiterado e reinterpretado.

Inspirado no antropólogo indiano Arjun Appadurai (2004), Huyssen procura analisar como a modernidade e o modernismo foram disseminados por fluxos culturais complexos que aproximaram as ideias de local e global em constante negociação. Para ele, é preciso escapar da crença inocente em uma cultura local autêntica que deveria ser preservada dos encantos homogeneizantes da globalização.

Como afirma, “[…] o binário global-local é tão homogeneizante quanto a suposta homogeneização cultural do global à qual se opõe” (HUYSSEN, 2014, p. 23). Esse olhar dualista, atado ao local, impede a compreensão transnacional das práticas culturais e o reconhecimento dos fluxos desiguais de traduções, transmissões e apropriações locais de um “modernismo sem entraves”.

Outra questão apontada é a necessidade de retomar, sob novos ângulos, o modelo superior e inferior pelo qual o espaço cultural do início do século XX foi hierarquicamente clivado entre cultura de elite e cultura de massa. Segundo o autor, este modelo, prematuramente descartado nos estudos norte-americanos sobre o pós- modernismo, ainda pode servir como paradigma para analisar modernismos alternativos e culturas globalizantes que assumiram formas distintas em diferentes momentos históricos. A reinscrição desta problemática nas discussões da modernidade cultural em contextos transnacionais pode estimular novos tipos de comparação que vão além das dicotomias clichês – tais como global versus local, colonial versus pós-colonial, moderno versus pós-moderno ou centro versus periferia –, recolocando em debate hierarquias e estratificações sociais que atravessam as culturas de acordo com as circunstâncias e as histórias locais. Além disto, repensar a relação superior-inferior hoje nos remete aos debates sobre os novos vínculos entre estética e política, bem como entre experiência e história.

A segunda parte do livro é dedicada à problematização das políticas de memória, de esquecimento e de direitos humanos na contemporaneidade, retomando, sob novos matizes, questões já apresentadas ao público brasileiro em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia (HUYSSEN, 2000). Antes, como um entremeio que estabelece conexões entre modernismos e culturas de memória, Huyssen lança um debate instigante que se desloca entre a nostalgia contemporâneas das ruínas e as memórias traumáticas dos escombros da modernidade. Esta diferenciação entre ruína e escombro, que faz eco aos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin (2012), nos convida a pensar sobre às diferentes maneiras como, em um presente globalizado, olhamos para a decadência dos vestígios do passado. Por um lado, há um olhar nostálgico que se aproxima do encantamento pitoresco dos românticos pelas ruínas, uma utopia às avessas que demonstra a saudade de um outro lugar localizado no passado. Segundo o autor, “[…] essa obsessão contemporânea pelas ruínas esconde a saudade de uma era anterior, que ainda não havia perdido o poder de imaginar outros futuros” (HUYSSEN, 2014, p. 91). Por outro, a nossa contemporaneidade se depara cotidianamente com os escombros de uma modernidade cruel, marcada por atrocidades que soterraram os futuros sonhados pelos vencidos da história. Como lembra, os bombardeios nunca pretenderam produzir ruínas, mas escombros. Porém, em uma época seduzida pelo passado, tais escombros, muitas vezes, acabam estetizados enquanto ruínas, alimentando um mercado da memória como entretenimento que banaliza e envolve em sentimentos nostálgicos as marcas presentes de um passado traumático. Este imaginário das ruínas é, como destaca o autor: Central para qualquer teoria da modernidade que queira ser mais que o triunfalismo do progresso e da democratização, ou a saudade de um poder passado de grandiosidade (HUYSSEN, 2014, p. 99).

Para além de um otimismo cego, podemos nos defrontar com o lado obscuro e destrutivo da modernidade visível nas ruínas, os desastres do passado que continuam a assombrar a nossa imaginação.

Estabelecendo um diálogo crítico com os estudos consagrados sobre a memória, especialmente com a obra dos franceses Maurice Halbwachs (2006) e Pierre Nora (1993), Huyssen destaca que tais estudos inseriram a memória primordialmente em contextos nacionais, bem como procuraram demarcar uma fronteira que colocava em lados opostos a história e a memória. Atualmente, o divisor história/ memória tem sido superado, reconhecendo a interdependência entre as maneiras de narrar o passado. Além do mais, tais estudos se mostram insuficientes em um momento no qual os discursos sobre a memória e a análise das histórias traumáticas tornaram-se transnacionais.

É preciso, segundo o autor, abandonar o conceito de memória coletiva, tal como uma memória mais ou menos estável de um grupo ou uma nação como ideal, em busca de memórias conflituosas. Para ele, “[…] a memória é sempre o passado presente, o passado comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e de evasão” (HUYSSEN, 2014, p. 181). A memória “nunca é neutra” e “[…] está sempre sujeita a interesses e usos funcionais específicos” (HUYSSEN, 2014, p. 181). Neste sentido, para além do conflito entre memórias coletivas e memórias individuais, ou entre memória e historiografia, seria importante analisar “[…] os conflitos entre campos de memórias rivais que tentam eliminar ou, pelo menos bloquear um ao outro” (HUYSSEN, 2014, p. 182).

Esta virada teórica e metodológica faria com que atentássemos às batalhas entre passados, travadas não apenas em contextos nacionais, como também em contextos transnacionais. Portanto, pensar em políticas da memória em um mundo globalizante está para além da circunscrição do que seria uma “memória cosmopolita”. É preciso compreender as assimetrias e competições travadas nas trajetórias transnacionais da memória.

Em um mundo obcecado pela memória, o esquecimento, o duplo inevitável da memória, é malvisto, considerado uma falha ou uma deficiência que deveríamos combater. Mesmo em excesso, a memória é positivada, visto ser considerada fundamental para a coesão social e como alicerce para identidades. Neste contexto, pouco se refletiu a respeito da importância de uma política do esquecimento que, para além do “dever da memória”, pusesse em pauta uma ética do esquecimento.

Em diálogo com o pensamento do filósofo francês Paul Ricoeur (2007), Huyssen busca interpretar situações em que uma política de esquecimento foi importante na construção de um discurso politicamente desejável e de uma esfera pública democrática: o esquecimento das mortes causadas pela guerrilha urbana na Argentina em prol de um consenso nacional em torno da figura vitimada do desaparecido e o esquecimento dos bombardeios de cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial para o pleno reconhecimento do horror do Holocausto. Em ambos os exemplos, uma forma de esquecimento foi necessária para atender reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas em consonância com as políticas nacionais de memória.

Ao propor a discussão sobre uma ética do esquecimento público, o autor se aventura em um tema difícil que, sem dúvida, consiste no ponto mais audacioso e inovador da obra. No entanto, apesar de insistir no caráter residual de como o tema aparece nos escritos de autores que, como Paul Ricoeur, privilegiaram o estudo da memória, não deixa muito clara uma proposta original para refletir sobre o que considera um “esquecimento voluntário”, um tipo de esquecimento que exigiria esforço e trabalho. Mesmo ao complexificar a questão, situando as estratégias de esquecimento num campo de termos e fenômenos tais como “[…] silêncio, desarticulação, evasão, apagamento, desgaste, repressão” (HUYSSEN, 2014, p. 158), acaba não esclarecendo as diferenças entre estas estratégias.

Afinal, é possível dizer que algo silenciado ou reprimido foi de fato esquecido? Talvez, uma atenção maior às sutilezas de cada um destes termos poderia nos mostrar níveis intermediários entre a memória e o esquecimento, tal como já há alguns anos propôs Michael Pollak (1989) ao problematizar o silêncio não como uma forma de esquecimento, mas como uma “memória subterrânea” que, em disputas de memórias, resiste aos excessos das memórias oficiais.

A emergência à esfera pública de memórias traumáticas em busca pela reparação de injustiças cometidas no passado, coloca em questão as aproximações entre as políticas de memória e as políticas de direitos humanos. Na contemporaneidade, há uma sobredeterminação entre estes discursos. Contudo, como destaca o autor, não é raro que os debates sobre os direitos humanos permaneçam separados dos debates sobre a memória, sendo o discurso da memória dominante nas humanidades e o discurso dos direitos humanos nas ciências sociais. Se faz necessária a ligação dos estudos da memória aos direitos e à justiça, não somente em termos teóricos e discursivos, mas também em termos práticos. Por um lado, as políticas de memória precisam de uma dimensão normativa jurídica, que lhe dê sustentação na reivindicação de direitos de indivíduos e grupos. Por outro, os discursos sobre os direitos humanos, alimentados pelas memórias de violações de direitos, deixariam de pautar-se apenas em princípios abstratos, levando em consideração os contextos históricos, políticos e culturais. Entretanto, como afirma o autor, tal aproximação não é isenta de riscos, pois “[…] tanto o discurso dos direitos quanto o da memória são alvos fáceis de abuso, como véu político para encobrir interesses particulares” (HUYSSEN, 2014, p. 201).

Um campo onde as aproximações entre direitos humanos e memórias têm emergido de maneira mais intensa é o campo das reivindicações pelos direitos culturais de populações indígenas ou descendentes de escravizados na América Latina, no Canadá e na Austrália, bem como os direitos civis e sociais nas novas formas de imigração e diáspora. Essa dimensão dos direitos humanos: Reivindica os direitos de grupos culturais dentro de nações soberanas, mas entra em conflito com a ideia tradicional dos direitos humanos como direitos dos indivíduos, e também com um entendimento homogêneo da nacionalidade (HUYSSEN, 2014, p. 206).

O movimento pelos direitos culturais, movimento que desestabiliza as ideias de identidade nacional, tem dado ênfase na diversidade cultural em um mundo cada vez mais interligado, aderindo, fundamentalmente, à política de identidade grupal. Neste debate, as ideias de global e local entram em conflito, em reações contra a globalização e a temível possibilidade de uma homogeneização cultural. Novamente o autor traz à tona uma crítica a concepções que imaginam uma suposta autenticidade intocada das culturas locais, o que gera conflitos quando grupos culturais diferentes entram em contato. Para além de uma compensação identitária, “[…] os direitos culturais devem preservar a prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixá-la e escolher outra” (HUYSSEN, 2014, p. 209).

Embora não circunscrita no interior dos limites do campo da História, a obra de Andreas Huyssen tem sido fundamental para pensar a prática historiadora, especialmente em relação à História do Tempo Presente. As análises elaboradas pelo autor nos convidam a pensar, a partir da problematização das políticas da memória e dos modernismos em um mundo globalizante, as imbricações entre temporalidades e espacialidades no presente vivido. Como um crítico da cultura, este autor propõe uma reflexão sobre as maneiras como no presente se articulam passado e futuro, global e local, alertando para a importância da imaginação de futuros alternativos. Não se trata da nostalgia de uma crença inocente nas promessas de progresso atualmente desacreditadas, mas uma incitação a pensarmos sobre as maneiras como futuros possíveis, desamarrados de um peso asfixiante do passado, foram e continuam sendo imaginados.

A experiência histórica brasileira, embora brevemente mencionada em alguns dos seus ensaios, praticamente está ausente da cartografia de geografias alternativas analisada e interpretada pelo autor. O Brasil, ao contrário da Argentina, não é, nesta obra, um território privilegiado na compreensão das políticas de memória e dos modernismos na América Latina. Apesar disso, a historiografia brasileira da última década tem se valido de conceitos e teorias mobilizadas pelo autor em seus trabalhos, especialmente a noção de “cultura da memória”. Em diálogo com autores do campo da História, como Reinhart Koselleck (2006) e François Hartog (2013), a obra de Andreas Huyssen tem sido apropriada pelos historiadores interessados em pensar o tempo não apenas como um instrumento taxionômico, pelo qual os acontecimentos de um passado são medidos e circunscritos, mas o tempo como algo vivido e experimentado em sociedade. Na atualidade de nosso país, experiências diversas de tempo são friccionadas, colocando lado a lado, por exemplo, os traumas do período da nossa ditatura civil-militar e as lutas pelo reconhecimento de direitos culturais negados a minorias.

Neste sentido, a leitura de Culturas do passado-presente pode ser um interessante convite a novos olhares para a nossa própria história, a um olhar crítico para um tempo presente demasiadamente encantado pelo passado e temeroso por um porvir que se mostra pouco promissor.

Referências

APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1).

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014. (Coleção ArteFíssil).

Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.

Diego Finder Machado – Doutorando em História na História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939) – PINTO (AN)

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. A Construção do “Outro”. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 355-360, dez. 2016

Nesta obra, que resulta de um trabalho complexo de investigação, Alberto Oliveira Pinto desenvolve um tema peculiar e sensível, expondo inúmeras referências e acontecimentos que reforçam toda a sua investigação. O autor dispõe-se a analisar as Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas, no período compreendido entre 1924 e 1939, recorrendo a um extenso e consistente trabalho de pesquisa em arquivos históricos (legislação, arquivo colonial), bem como à análise de obras literárias editadas no período em questão e que passaram pelo concurso de literatura colonial1.

O exame extremamente cuidadoso e bem fundamentado, não somente do período em análise (1924-1939) como também mais alargado – período de intensificação da política colonial portuguesa (criação do 3ª Império), o mapa cor-de-rosa, a Conferência de Berlim, a implantação da República Portuguesa em 1910 e a instabilidade política e económica que se viveu posteriormente, levando assim ao golpe de estado e à instalação da ditadura militar em 1926 e mais tarde, à instauração do Estado Novo – leva-nos a considerar como obra essencial e um útil instrumento não só para académicos, investigadores, professores, estudantes, como para o público em geral, quer em Angola e em Portugal, quer nos restantes países lusófonos, em particular aqueles que se localizam no continente africano.

A obra encontra-se dividida em quatro partes, cada uma delas dividida em 2 capítulos, perfazendo no total 8 capítulos. Na primeira parte – Representações do “Outro” – o autor disserta sobre os conceitos de cultura, identidade e memória, conceitos-chave para se perceber a “produção do outro” (PINTO, 2013, p. 69), ou seja, os pilares em que assentaram a política colonial portuguesa para os territórios africanos, no caso concreto, Angola. O autor estabelece assim a relação entre cultura e antropologia, cultura e nacionalismo e cultura e colonialismo, em torno do qual se desenrolará toda a sua investigação. Estes conceitos, utilizados para descrever e justificar a exploração do outro constituem a base em que assentou a política colonial portuguesa para os territórios africanos. A exploração do homem africano, o trabalho forçado (com destaque para o Código do Trabalho de 1928), as teorias do darwinismo social defendidas a partir da segunda metade do século XIX e que encontrou o seu expoente máximo em Oliveira Martins, a ascensão de António de Oliveira Salazar e a publicação do Ato Colonial em 1930, são apenas alguns exemplos.

A segunda parte – Angola na escrita e na memória colonial portuguesa: a emergência do território e dos homens angolanos – é dedicada à apresentação de Angola, ou seja, a “outra” parte da história. Para o efeito, e para melhor compreensão, o autor faz uma breve referência aos reinos aí existentes e que deram origem ao nome Angola, a definição das suas fronteiras bem como o percurso de passagem do “reino de Angola” a “Angola colonial” (p. 161) e posteriormente “província de Angola” (PINTO, 2013, p. 172). De seguida o autor disserta sobre as categorias socio-raciais em que assentou a política colonial e que levaram à criação do “outro”, nomeadamente indígenas (os africanos), assimilados, destribalizados, mestiços, cafrealizados, cafuzo, cabrito (PINTO, 2013, p. 193-241), conceitos imprescindíveis para compreensão da sociedade angolana atual.

Na parte III – A Literatura Colonial Portuguesa: Angola e os Angolanos na Década de 1920 e as Memórias Silenciadas – o autor estabelece a relação entre a história, sua área de especialidade, e a literatura, justificado a sua opção de trabalho e reforçando deste modo a importância da interdisciplinaridade quando se trata de produzir conhecimento, no caso presente, a “[…] literatura como modo de produção de história ou veículo de historiografia” (PINTO, 2013, p. 257). Ainda nesta terceira parte, o autor analisa duas dessas obras publicadas antes da aprovação do Ato Colonial (1930), instrumento legislativo que de certa forma serve como demarcação entre dois períodos distintos da política colonial portuguesa, nomeadamente, Ana a Kalunga. Os Filhos do Mar, de Hipólito Raposo (1926) e, A Velha Magra da Ilha de Luanda: Cenas da Vida Colonial, de Emílio de San Bruno (1929). Nestas obras, o território é descrito como se se tratasse de uma atração exótica, que é preciso desbravar, a colonização é romanceada como “missão civilizadora” que só a raça superior (branca) tem capacidade para empreender e o africano é descrito como negro, animal que deve ser domesticado. A literatura colonial funciona como mais um instrumento de propaganda colonial.

As Imagens Fabricadas dos Angolanos ou a Retórica da “Diferença Negativa” depois do Acto Colonial de 1930, constitui o ponto fulcral de análise da parte IV, onde o autor, como o próprio título indica, analisa obras publicadas depois da aprovação do Ato Colonial (1930). Alberto Oliveira Pinto inicia essa quarta parte com a apresentação de Henrique Galvão, eminente figura portuguesa da época, analisando, para o efeito, uma obra publicada antes de 1930, nomeadamente, Em Terras de Pretos. Crónicas de Angola, e duas obras publicadas depois dessa data: O Velo D’Oiro e O Sol dos Trópicos. De seguida, analisa outras duas obras literárias de dois autores distintos e pouco conhecidos pelo público em geral, nomeadamente, Conquista do Sertão, de Guilherme de Ayala Monteiro e Princesa Negra, de Luís Figueira. Em cada uma das obras analisadas, o autor procura essencialmente mostrar como “[…] são vistos os africanos, concretamente os angolanos, na literatura colonial portuguesa que se segue ao Ato Colonial” (PINTO, 2013, p. 447). Na análise de cada uma das obras subjaz essencialmente a “[…] pura linha darwinista, o branco (que) é uma raça que evolui e o negro (que) é uma raça estagnada” (PINTO, 2013, p. 431), daí ser caraterizado como selvagem, primitivo, polígamo, alcoólatra, animal, bicho, preguiçoso, tribalista, supersticioso, cupido, preto, entre outras.

As mais de 600 páginas que constituem a obra levam-nos assim a uma viagem pela história de dois países, um colonizador e outro colonizado, ultrapassando mesmo essa fronteira pois, apesar de abordar em particular a construção de uma cultura ou identidade angolana na sua relação com Portugal, ela pode ser ferramenta de trabalho para moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são- tomenses e mesmo brasileiros pois descortina uma época histórica para Portugal e que se liga às ex-colônias. Para o caso concreto do Brasil importa sobretudo compreender o período pós-independência daquele país e a sua relação com Angola e Portugal. A excelente descrição dos conceitos rácicos como mestiço (filho de mãe preta e pai branco), indígenas, assimilados, cafuzos, cabritos, entre outros, ajudam-nos a entender ainda no presente, a sociedade angolana uma vez que a sua base socioeconómica continua assente no legado português. A obra conta ainda com um anexo rico em documentação história, bem como uma extensa listagem bibliográfica organizada e que pode servir de ponto de partida para os novos “aventureiros”.

Não obstante, há dois aspetos que merecem um comentário adicional. Em primeiro lugar, esperar-se-ia que o autor desenvolvesse mais este período histórico, que debatesse mais esse conceito de “angolanos e suas culturas”, isto é, quem eram os angolanos na altura, de que cultura estamos a falar e de que forma isso influi na realidade atual do que é ser angolano e da cultura angolana, aspeto que sem dúvida justificaria uma discussão mais aprofundada porque a obra, pela temática analisada e sobretudo pela metodologia de análise, interessa, obviamente, a um público muito mais vasto do que a academia, sobretudo os luso-angolanos. Ao invés disso, disserta sobre conceitos embora importantes e apenas analisados de forma superficial, não são essenciais para compreensão do estudo, como por exemplo: o espaço greco-romano, o Islão, o etnocentrismo, as referências às Mil e Uma Noites e a Thomas More e a sua Utopia.

Concordamos que enriquece a obra e alarga o nosso campo de conhecimento, mas torna-a demasiado extensa e desvia a nossa atenção do objetivo principal.

Um segundo aspeto prende-se com a análise de trabalhos escritos por autores angolanos ou luso-descendentes, não só como comparação de duas perspetivas diferentes – colonizado versus colonizador – como poderia dar-nos uma ideia não do pensamento sobre os “outros”, mas do pensamento dos “outros”. Um paralelismo com autores angolanos certamente que enriqueceria a obra pois, apesar de parte da história angolana ter que ser encontrada na história portuguesa já que Angola era vista como um “prolongamento de Portugal” (PINTO, 2013, p. 535), teria sido muito interessante constatarmos a diferença de discurso entre portugueses, brancos naturais de Angola, mestiços e africanos. Dada a carência de investigação sobre a temática em particular e sobre o período histórico no geral, teria sido uma mais-valia se o autor tivesse aprofundado um pouco mais sobre esse assunto. Fica assim aqui uma pista para dar continuidade à investigação que permita sobretudo caraterizar a cultura angolana e os angolanos.

Certamente que se trata de uma obra de mestre que enriquece a história angolana e portuguesa, e de todas as ex-colônias portuguesas no geral, abrindo novos caminhos e demonstrando o quanto ainda pode ser feito, constituindo de igual forma um eficiente incentivo para um maior intercâmbio entre pesquisadores angolanos, portugueses e luso-descendentes interessados em saber mais sobre as suas origens, bem como pesquisadores interessados em alargar as suas análises sobre os estudos coloniais e o reflexo desse período na atual sociedade quer da ex-colônia, quer da ex-metrópole.

Notas

1 Criado em 1926 por Armando Cortesão e previsto nos artigos 50ª e 64ª do Ato colonial (1930), realizado anualmente pela Agência Geral das Colónias para “[…] propaganda do Império Português, progresso da cultura colonial e desenvolvimento do interesse pelos assuntos respeitantes às colónias” (PINTO, 2013, p. 396).

Referências

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. 689 p.

Ermelinda LiberatoDoutora em Estudos Africanos no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE- -IUL). Professora da Univeresidade Agostinho Neto – UAN – Angola. E-mail: ermelinda.liberato@gmail.com.

Historiadores e historiadoras, esses desconhecidos: Quem e como se escreve a História / História da Historiografia / 2016

Quem assistiu a Monty Python em busca do cálice sagrado (1975) talvez se lembre de que a certa altura do filme as hilárias desventuras do rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda são interrompidas por uma claquete e o anúncio de uma voz em off: “História para a escola, tomada oito. Ação!”. Um homem já idoso, de terno, lenço, gravata borboleta e cabelos desgrenhados, põe-se a falar de imediato. Trata-se, diz a legenda, de “um famoso historiador”. Em pé diante de árvores e ruínas e olhando para a câmera, ele começa a explicar de modo didático como, após fracassar na tomada de um castelo controlado por franceses, Arthur mudara de estratégia para encontrar o Graal; inesperadamente, então, um cavaleiro medieval surge num rompante e o decapita com sua espada.

Se o insólito da situação provoca o riso no espectador, em nós, historiadores e historiadoras, ela não deixa de gerar também certo desconforto. Afinal, a ácida ironia dessa sequência de pouco mais de trinta segundos remete às convenções que caracterizam a nossa profissão, às representações sobre nossa figura e às relações entre presente e passado – sempre tensas, ainda que, para a nossa sorte, dificilmente um vulto de outros tempos esteja à nossa espreita em um arquivo ou em uma biblioteca. Em outras palavras, nós nos reconhecemos naquele desafortunado colega fictício, nós nos vemos, sem dificuldade, fazendo o mesmo que ele, quem sabe até com linguajar e trejeitos semelhantes. É como, enfim, se estivéssemos diante de um reflexo: um reflexo distorcido, é verdade, mas que ainda assim não deixa de refletir a nossa imagem. Leia Mais

Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar – RIBEIRO (A-EN)

RIBEIRO, Margarida Calafate; ROSSA, Walter (Org). Patrimónios de influência portuguesa: modos de olhar. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Niteroi: Editora da UFF, 2015. Resenha de: PÉCORA, Alcir. Alea, Rio de Janeiro, v.18 n.3, dez., 2016.

I

Acaba de ser lançado em Portugal e no Brasil, em coedição da Imprensa da Universidade de Coimbra, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Universidade Federal Fluminense, o trabalho mais abrangente já produzido em português sobre a noção de Patrimônio – em suas várias dimensões éticas, estéticas, técnicas, culturais, sociais, históricas, políticas etc. –, no bojo dos estudos e contextos pós-coloniais, que tanto apõem desconfianças e dificuldades, como abrem veredas ainda pouco exploradas e, por vezes, sequer pensadas antes entre nós, digo, os que se podem identificar como sendo de culturas de influência portuguesa.

Pretendo comentar a grandeza desse trabalho, de um lado, fazendo sínteses rápidas, necessariamente esquemáticas (mas espero que não estúpidas), dos vários textos do livro, que cobrem questões muito novas em relação ao Patrimônio português nos vários países e regiões que os partilharam, modificaram, contaminaram etc.; de outro, propondo-lhes questões gerais que pensam o conjunto e apontam desafios a ser considerados na sua continuação.

Há um gesto de coragem no início desse projeto: sem esconder ou amenizar as assimetrias contundentes no âmbito do processo colonial, ele se propõe como gesto concreto de integração do patrimônio das diferentes culturas, países e territórios envolvidos. Como alertam os organizadores, não se trata de gesto de nostalgia romântica, mas de ação intelectual cujo propósito é subsidiar políticas de ação favoráveis à cidadania.

Em particular, o projeto pretende integrar a noção de Patrimônio à ideia de sustentabilidade cultural (não apenas social, econômica e ambiental), o que implica entendê-lo como plataforma para interação de áreas de preservação e de ação político-cultural em favor da construção da paz, da cooperação e do reconhecimento da cultura do outro.

Enquanto trabalho interdisciplinar análogo aos dos critical heritage studies, de inspiração anglo-saxônica, os estudos de Patrimônio aqui levados a cabo têm como pressuposto a crítica do eurocentrismo. Os seus dois desafios básicos são o reconhecimento das alteridades no interior de uma comunidade ampla e diversificada, e a imaginação de caminhos do desenvolvimento sustentável de cada uma delas.

Supor um Patrimônio plural significa admitir uma pluralidade de olhares e contatos, que, muita vez, obriga a questionar a ideia de “influência portuguesa”. Como dizem os organizadores do volume, a noção de influência, aqui, é basicamente entendida como um “operador histórico”, estruturado pela língua e ativado por Portugal, mas dinamizado por outras geografias e tempos diversos. O resultado pretende ser mais uma celebração de diferenças numa rede de territórios que a identificação de uma essência comum.

Também é obrigatório dizer que o livro não é uma coletânea de textos avulsos, mas uma coleção interdisciplinar cuidadosamente organizada, nascida dos debates empreendidos por duas reuniões gerais, em Bolonha e Coimbra. Está composto em duas partes separadas por uma entrevista dos organizadores com o conhecido crítico português Eduardo Lourenço, que já teve várias passagens pelo Brasil, incluindo uma bastante marcante para mim no Instituto de Estudos da Linguagem, da UNICAMP.

A primeira parte discute criticamente os conceitos tradicionalmente afeitos ao patrimônio como memória, herança, identidade, comunidade, colonialismo, origem, influência etc. e a segunda trata das disciplinas envolvidas e dos novos instrumentos de investigação propostos por elas. Passo, pois, a referir muito sinteticamente o escopo de cada um desses textos.

II

A abertura dos estudos coube a Helder Macedo, que discutiu as noções de língua, comunidade e conhecimento para indicar inicialmente que eles não compõem uma sequência lógica. Nem a língua é indispensável para definição de uma comunidade, nem esta precisa significar um conhecimento efetivamente partilhado, uma vez que, mesmo dentro de um país, as populações podem ter um persistente desconhecimento mútuo. No sentido contrário, diz o autor, escritores africanos que escrevem em línguas europeias podem eventualmente ter mais em comum com os pares europeus do que com as comunidades de origem.

O contato com a língua do poder pode efetivamente levar ao desaparecimento de línguas nativas, pois a central tende à manipulação das outras culturas e conhecimentos em favor próprio, reduzindo-as a um lugar periférico –, o que é reforçado pelo que o autor chama de “solipsismo de centro”, isto é, enxergando-se apenas a si próprio, não pensa a língua senão como instrumento de um imperialismo nacional.

Em oposição a essa política de distinção entre centro e periferia, o autor imagina a possibilidade de um centro sem lugar definido, revitalizado por alternativas não centralizadas e pela emergência de novas potências nacionais, antes periféricas, como, por exemplo, Índia, China e Brasil – países nos quais a língua portuguesa teve lugar histórico, conquanto diverso.

Tal redistribuição democrática de lugares não precisaria significar uma ameaça a nenhuma das línguas de origem, pois, para o autor, quanto mais integrada e segura da sua própria cultura, mais uma língua pode contribuir para a sobrevivência de outras, num mundo de diversidades coexistentes – pensamento que me trouxe à lembrança a afirmação pessoana de que quanto mais forte a identidade de um povo, maior a sua capacidade de importar ideias de outros.

A seguir, Renata Araújo, Professora do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, discute os conceitos de influência, origem e matriz. Na de influência, enxerga menor peso hierárquico e, portanto, maior possibilidade de incorporar noções de reciprocidade e de postular um futuro para o passado que dê menos margem a mistificações nacionalistas.

A autora também observa que a ideia de Patrimônio refere “o que fica do pai”, vale dizer, guarda certo caráter fúnebre: objetos de rememoração associados a restos mortais. Daí que a necrópole seja o monumento por antonomásia: o que lembra a morte do antepassado e, ao mesmo tempo, assegura a continuidade da comunidade.

Numa perspectiva cosmopolita e contemporânea, outros pontos de vista se abrem para o enfrentamento dos fantasmas do passado: culturas híbridas, traduzidas umas das outras, que produzem polissemia e maior consciência ética das diferenças entre elas. Daí também a ideia da “tradução” como metáfora do Patrimônio, segundo a qual culturas em contato podem se tornar mutuamente Inteligíveis, sem sacrifício da sua diferença.

Uma nova geografia de difusão influente teria de ser mais centrífuga que centrípeta; menos matricial e mais ambígua, cuja vantagem decisiva está em pensar trocas, resistências e hibridações imprevisíveis em contraste com os aspectos mais coercitivos da ideia de matriz. Nesse novo registro, espera-se tanto a superação do mito étnico, como a admissão de processos de contaminação recíprocos, nos quais os mortos de comunidades diversas se enterram como “parentes” e dão margem à partilha das heranças.

Roberto Vecchi, professor de Literatura Portuguesa e Brasileira da Universidade de Bolonha, trata dos conceitos de identidade, herança e pertença. Propõe uma virada na concepção de identidade, entendendo-a na relação com o Outro, de tal modo que, analogamente, o Patrimônio seja pensado não como igual, mas como “em-comum”, o que também implica redefinição da ideia de comunidade. De uma identidade integral usualmente nostálgica passa a referir uma comunidade incompleta, não homogênea, estruturada pela falta: em construção.

Patrimônio, aqui, teria de perder a essência identitária em favor de singularidades que pactuam novas comunidades. O laço da tradição perderia força para um traço transformador, no qual as culturas são entendidas como traduções sempre incompletas e os espaços da língua portuguesa não são homogêneos, nem têm centro, admitindo mesmo a dispersão como um ganho em relação à noção tradicional de lusofonia.

Assim, contra a ideia de um poder soberano, pleno, central, apresenta-se o que o autor chama de “força débil”, assentada em projetos compartilhados sobre bens culturais “em-comum”, que não admitem grandes narrativas, mas obrigam a repensar o campo inteiro do Patrimônio. Este abandonaria os seus aspectos de museificação e monumentalização de restos dos passados, cuja narração atual já não é capaz de obter identificação de nenhuma comunidade, para se reapresentar como Patrimônio de arte residuária, menos deslumbrante e eloquente: arte modesta feita de indícios, que deve repensar a monumentalidade fora da violência e de categorias plenas. Vale dizer, como contramemória: patrimônio do outro.

Antonio Sousa Ribeiro, professor do Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, trata da questão da memória, avançando na mesma direção de modos contra-hegemônicos, em que a memória representa tanto uma crítica do presente como uma estratégia de produção do contemporâneo.

Para ele, o campo de estudos da memória abriga uma visão transdisciplinar, favorável à evidência dos seus quadros sociais, não em termos de um sujeito coletivo romântico, mas antes como memória pública capaz de valorizar o reverso das histórias dominantes: um trabalho de memória consciente das histórias catastróficas do século XX. Ganham força aí os estudos da violência, do holocausto e os estudos pós-coloniais, nos quais se é obrigado, muitas vezes, a considerar patrimônios de silêncio, imateriais.

Não se imagina que essa memória seja consensual, mas sim recoberta por tensões e conflitos. Ter-se-ia de pensar numa transnacionalização da memória, o que inclui fenômenos de deslocalização e de lógicas interculturais ambivalentes.

Outro conceito relevante aqui seria o de “pós-memória pública”, que refere a relação da segunda geração de descendentes em relação a essas experiências conflitantes. A ideia a acentuar é a de que a memória tem uma dimensão multidirecional, nas quais as diferenças não se anulam, articulam-se.

Miguel Bandeira Jerónimo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, trata do colonialismo moderno e sua justificativa usual como “missão civilizadora”, vale dizer, como empresa de “elevação moral dos povos atrasados”. Talvez o mais duro dos textos do livro, mostra como as leis imperiais evidenciavam um “racismo institucionalizado” a operar como legalização do trabalho forçado. A finalidade última delas seria a autoperpetuação, a preservação do Império, ainda que as ideologias imperiais se recobrissem de certa plasticidade que lhe permite, por vezes, tomar a forma de uma ação benevolente, como a supressão da escravatura, do tráfico, e mesmo incorporar motivações religiosas e humanitárias. Tais ideologias também podem tomar a forma de inevitabilidade histórica ou de consequência natural da superioridade europeia ou ocidental, numa variante da seleção natural, e mesmo de uma tutela progressista, que avança até o momento descolonizador.

As múltiplas doutrinas de missão civilizadora promoveram o que autor chama de “racialização” do mundo imperial, com diferentes políticas de enquadramento das populações nativas, e com diferentes lógicas de assimilação seletiva e de discriminação racial.

Outro aspecto examinado é a propaganda da missão portuguesa nos manuais de administração colonial, nos quais a educação, muitas vezes tratada com o apanágio de ciência, constituía-se sempre como educação para o trabalho.

Ou seja, abuso do trabalho nativo, racialização social, política discriminatória, ausência de estruturas educativas, escassez da presença eclesiástica, insuficiência de desenvolvimento econômico são elementos de continuidade histórica do império colonial que obrigam a refletir judiciosamente sobre o que pode receber o estatuto de patrimônio linguístico e cultural numa situação de afirmação da independência e de tratamento igualitário das antigas colônias. Diante desse quadro duro, mas realista, composto pelo autor, o que se pede é um debate sobre Patrimônio que seja, como diz, “menos etéreo”.

Francisco Bethencourt, professor do Departamento de História no King’s College, investiga os sentidos de colonização e pós-colonização, destacando tanto o processo de coisificação do colonizado pelo colonizador, em que cada um deles habita mundos excludentes, como a interiorização da repressão pelo oprimido. Tais fatos acabam relativizados pela crítica pós-moderna que observa interstícios importantes de negociação e de resistência no colonizado, ou seja, formas de sobrevivência cultural e social mesmo em situação repressiva. Seriam trocas desiguais, mas capazes de produzir formas de articulação entre tradições locais e modos de domínio.

Já a crítica pós-colonial, que avança análises de teor marxista em sociedades não europeias, produz novas análises das consequências do domínio colonial, com destaque tanto para a ideias de emancipação dos povos colonizados da mentalidade de oprimido, como para as contradições no cerne das perspectivas anti-colonialistas, como a realidade desigual do exercício do poder nos países independentes, a apropriação do aparelho do estado por pequenos grupos, a irrupção de neopatrimonialismos e clientelismos etc.

Derivam daí questões cruciais para se pensar os patrimônios da presença portuguesa em outros continentes, a começar pelo emprego de uma terminologia geralmente tributária do passado colonial. O termo “influência”, por exemplo, no dicionário Morais, está associado ao sentido de domínio, de uma submissão pessoal a quem tem direito sobre nós – o que parece produzir uma espécie de retorno do recalcado já no título do volume. De fato, não é crível que, no atual estado dos debates, seja possível não incorrer nessas contradições que são exatamente o foco dos trabalhos aqui reunidos.

O autor examina os empregos históricos de termos como colono, colonização, colonialismo, e também anticolonial e anticolonialista; detém-se no sentido de “descolonização”, onde, paradoxalmente, o domínio do território pela potência em expansão ofusca o papel das lutas das populações submetidas. Em especial, a noção de “retirada” aí implícita perpetua uma visão histórica centrada nas potências colonizadoras. Ou seja, os povos coloniais, ainda depois da independência, são “desapossados” de seu orgulho de conquista da autonomia, como se esta existisse, no limite, por capricho do colonizador.

Nessas circunstâncias, mais uma vez, como pensar o patrimônio? Para o autor, qualquer resposta deve entender que, enquanto relativo à memória coletiva, o Patrimônio é resultado de uma luta pela memória no bojo de lutas sociais e de projetos políticos divergentes.

Em sua breve intervenção, Eduardo Lourenço observa que Camões não teria escrito Os Lusíadas que escreveu se não tivesse empreendido a viagem às Índias, e é este o primeiro poema europeu a ver ou interpelar a Europa de fora. E, em outra de suas brilhantes intuições, observa que, no caso do Brasil, o Império só existiu a título póstumo: reivindicado por D. Pedro I, quando da independência. Em termos portugueses, a centralidade imperial estaria na Índia.

Conquanto o empreendimento imperial português seja do Rei, e da Nação, diversamente da Espanha cuja expansão se deu pela iniciativa privada, de comerciantes, para ele, Portugal nunca chegou a ter uma ideologia imperial, mas apenas religiosa. Como missão religiosa justificaram-se as viagens portuguesas e, em particular, como missão jesuítica, que se institui como ordem cosmopolita destinada a salvar almas para Deus.

No caso do Império do XIX, que distingue essencialmente da primeira expansão fundacional, considera que ele se dá num período em que boa parte das nações europeias tornaram-se colonizadoras, sendo que boa parte delas colonizadoras mais eficazes que Portugal.

Ainda, a reflexão sobre as colônias, no conjunto da sua obra, surge como um esforço de imaginar que não está totalmente perdido o que se perdeu. No Brasil, mais facilmente, porque a ausência de insurreição permite uma ideia de continuidade e de passado português que o inclui. Já em relação à África, há uma tragédia, cuja marca inapagável é a promoção do reino pela escravidão dos povos em contato e o fato de que os agentes decisivos dela não têm qualquer cultura humanística ou fascínio estético que permita sublimar a brutalidade da conquista, a superficialidade das trocas, ou sequer reivindicar a grandeza de uma interpelação das próprias contradições imperiais, como é a de Camões.

A segunda parte dos estudos, denominada Discursos e Percursos, começa com o estudo de uma das organizadoras do volume, Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Para ela, uma vez que as literaturas de língua portuguesa foram impostas a todo o Império, trata-se de verificar como uma lei do poder colonial admite a inscrição de diferenças ou a sua reversão como instrumento de emancipação – onde o fluxo também dá lugar ao refluxo.

Nas primeiras narrativas do novo mundo, eurocêntricas e religiosamente motivadas, a autora observa que tanto procuram descrever o novo mundo, o que lhes dá a oportunidade de ver a Europa de fora, como o fazem por meio de uma retórica descritiva que tem a marca do olhar europeu, uma visão por analogia ou semelhança, construída pela fabulação. Tais equivalências assimétricas insinuam um confronto do olhar: dúvidas e questionamentos das realizações imperiais. Ou seja, no desejo de poder e expansão também se manifesta um valor dinâmico de descoberta de autoanálise e do Outro, como se dá em Fernão Mendes Pinto.

Para a autora, a condição moderna de Portugal provém justamente dessa condição de mediadora de mundos, num registro planetário, cujo gesto cosmopolita não apenas torna a Europa um agente de transformação, mas um resultado dela, pois o Atlântico sul não se torna apenas passagem, mas lugar de circulação.

Na carta de Caminha, a autora observa não interiorização do Outro, mas espanto e dificuldade diante da diferença: uma hesitação entre a visão idílica e o comprometimento religioso. A despeito de si mesmo, o poder vinculado à língua imperial é também testemunho de um encontro. Portanto, numa perspectiva crítica contemporânea, trata-se, para a autora, de resgatar discursos nas margens do discurso colonial. De gerar o resgate de identidades rasuradas e histórias silenciadas: levantar inscrições de diferenças na língua portuguesa que rompem o risco de uma história única.

Trata-se de tomar a língua como plataforma de uma conversa possível, pois a hegemonia do poder colonial nunca é completa e a língua do colonizador acaba construindo a base da promoção de um diálogo. No caso africano, a subalternização das línguas nacionais pelo português oficial não impede o que a autora chama de “reescrita da libertação”: a assunção da língua escrita que seleciona e rearranja as suas partes de modo a produzir novos olhares discursivos e interdiscursivos.

Em vez de recusar a herança e o patrimônio literário da língua portuguesa, a questão está em habilitar novos herdeiros. Discutir transferências culturais, num trabalho de tradução, isto é, sem rejeição, mas também sem aceitação passiva, pois os novos cânones ainda têm de ser construídos. Em termos portugueses, trata-se de admitir que a história das literaturas das colônias são também parte da história de Portugal, e que as imagens múltiplas de culturas singulares contribuem para um desenvolvimento mais harmônico do conjunto.

Francisco Noa, professor de Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo, vem a seguir. Tratando das narrativas em língua portuguesa, em particular no âmbito de Moçambique, o autor considera que a literatura colonial oficial tende a produzir igualmente um imaginário colonial, de rebaixamento dos povos dos territórios conquistados. Insurgir-se contra ela significou revelar pluralidades que, como tais, eram ameaças às formas de controle.

Desde o início, os autores africanos sabiam que o poder comunicacional e transformador das narrativas é exercício de gestação de poder, que toma por vezes a forma de denúncia e de confrontação, mas que tem também um projeto fundacional. Assumido pelos escritores, tal projeto estava associado à obrigação de não esquecer e de narrar uma catástrofe coletiva, culminada nas guerras de África.

Aqui, narrar a violência e a morte são aspectos necessariamente implicados na afirmação de um patrimônio moçambicano, que apenas desta forma conquista singularidade, o que implica em apropriações, rejeições, sínteses e, enfim, diálogos entre meios e tempos distintos.

Sílvio Renato Jorge, professor de Letras da UFF, retoma a piada do brasileiro Osvald de Andrade segundo a qual só a Antropofagia nos une, para dizer que da deglutição do estrangeiro depende a constituição do diferente. Retomando os concretistas junto a Derrida, afirma o princípio de tradução e de transcriação entre as culturas, quando traduzir significa reconhecer multiplicidades irredutíveis ou equivalências sem identidade.

Numa cena político-literária de traduções, a violência é inerente: o privilégio de um aspecto implica na redução de outro. O gesto interpretativo observa espaços de negociação e de fricção, entre-lugares nos quais se favorecem processos de cisão e de hibridização que forneceriam a base dos Patrimônios de influência portuguesa, a valorizar ambivalências.

No horizonte de uma poética de descontinuidades, também a citação ocupa lugar destacado, pois no deslocamento de sentido há descontextualização e recontextualização, procedimentos marcados por uma noção de sujeito, o percurso de uma existência, os pontos de passagem numa relação tensa entre passado e presente.

Se o ponto de partida incontornável dessa poética está na língua portuguesa imposta, o ponto de chegada é o resultado de conflitos de econômicos, políticos, culturais que podem ser pensados pela metáfora da antropofagia como estratégia singular de lidar com a cultura do colonizador, de reler tradições diversas e de situar uma dinâmica própria das diferenças.

Graça dos Santos, professora da Universidade Paris Ouest Nanterre, trata dos Patrimônios de emigração, tomando por base a situação dos portugueses que foram para a França nos anos 60 e que passaram a viver um duplo deslocamento: da origem para o novo destino, e também o inverso, isto é, do novo país em relação à identidade de origem.

Como atriz e encenadora bilíngue, a autora considera haver uma imaginação própria das línguas, explorada pelo grupo de teatro Cá e Lá, criado por imigrantes portugueses na França, no âmbito da Marcha pela Igualdade e contra o Racismo de 1985. Os temas da dupla cultura, dupla pertença, de comportamentos defasados face aos de modelo francês constituem o núcleo das representações do grupo, no qual o humor é estratégia para rir de si como para levar a sério a questão de uma “cultura bastarda”.

O propósito a mover o grupo não é o de desenraizar, mas o de conceber a raiz de modo menos sectário e mais inclusivo, o que só julga possível por meio da tomada de consciência de automatismos da cultura e de sua superação.

Maria Fernanda Bicalho, professora de História da UFF, trata de novos recortes do objeto historiográfico a partir das décadas de 80 e 90, sobretudo originados de estudos anglo-americanos que ofereceram novas perspectivas em relação à historiografia anterior cuja base era o Estado-nação. Ganharam relevo tanto a História Atlântica – o complexo banhado pelo Atlântico e seu sistema de trocas econômicas, sociais, culturais etc. –, como a História Global, que estuda relações internacionais e processos que transcendem regiões, Estados e nações.

Nessas obras, estudam-se conexões até então pouco visíveis entre Portugal e os territórios ultramarinos, e isto não apenas em relação aos sistemas econômicos, mas à apropriação de espaços, reorganização de territórios, disseminação de povos, dinâmicas sociais, configurações temporais do império e práticas de identidade. São estudos que demandam novos conceitos, como o de “rede”, isto é, instrumentos de comunicação entre vários espaços, com descontinuidade territorial, pluralismo institucional e jurídico, bem como coexistência de diferentes lógicas políticas.

A consequência desse novo olhar foi, por exemplo, a percepção de que rotas imperiais eram muitas vezes controladas a partir de áreas periféricas. A noção de Império é afetada pela sua vinculação a famílias empresariais até então insuspeitas ou improváveis. Surgem, enfim, novas histórias que rompem o modelo único da transferência da trajetória europeia para as análises de outras realidades. O comércio, por exemplo, passa a admitir uma versão não-unidirecional, no qual o comparatismo eurocêntrico sofre a concorrência de um novo modo de conectar histórias, de estabelecer negociações potenciais e imprevistas de autoridade, que valorizam relações locais e regionais.

Luís Filipe Oliveira, professor do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade do Algarve, recapitula a grande mudança sofrida pela Historiografia nos últimos anos decorrente da crítica do valor instrumental atribuído por ela aos documentos e ao monopólio da História como investigação científica do passado. Quando os documentos deixaram de ser vistos como naturais, que falavam por si mesmos, outros agentes interpretativos, até então considerados subalternos, ganharam estatuto investigativo, como a arquivística, a paleografia, a diplomática, a heráldica e a sigilografia.

A própria natureza dos arquivos entrou em causa com o debate em torno dos objetivos políticos de sua constituição, muitas vezes sob encomenda da Coroa. A partir daí, a história da nação passa a exigir a ampliação de sua investigação aos arquivos familiares e pessoais. Valorizaram-se inventários variados, textos literários, narrativas. Torna-se decisiva a questão da seleção e interpretação dos fatos pelo historiador, bem como as questões relativas a culturas, ideologias e mentalidades.

No período pós-moderno generaliza-se a desconfiança em relação aos grandes temas, que se pulverizam e passam a ser substituídos por estudos de caso, que demandam uma pluralidade de pontos de vista. Vem para o primeiro plano a consciência da metaposição do observador como alguém vinculado ao presente e, por isso mesmo, suscetível a teorias e modelos das ciências sociais.

Hoje, o caráter discursivo e construído das representações do passado estão no centro da investigação histórica, de tal modo que o historiador sofre a concorrência de críticos literários, arquivistas, antropólogos, sociólogos, jornalistas etc. As regras do ofício estão na berlinda, e nada diz mais a respeito disso do que a mudança do estatuto dos documentos. Longe de, isoladamente, entregar o mundo para o historiador, dão-lhe termos parciais, suspeitos, que precisam ser dispostos em séries, confrontados com outros indícios, informações, testemunhos, além de gestos, imagens e vestígios arqueológicos.

Há ainda o reconhecimento da dimensão monumental dos documentos, que expressa a determinação de criar leituras específicas do passado, de modo a impô-las aos pósteros. A percepção crítica dos arquivos documentais, que passam a ser entendidos como espaço de poder sobre o passado e a memória, obriga a uma maior atenção do investigador a suportes, escribas, cópias, ou seja, aos documentos percebidos como objetos sociais plenos e não apenas como fontes. O interesse pela materialidade dos documentos é uma evidência do conjunto desse processo crítico.

Se os arquivos são espaços de poder, lugar da construção de um discurso sobre o passado, outras dimensões deles passam a ser estudadas, como sua existência numa pragmática social, suas técnicas nunca neutras de organização, seus rearranjos segundo linhagens específicas. O arquivo já não é um depósito estático e alheio à vida. Revela-se em movimento e articulação permanente com a história, que tanto garante a memória, como se dispõe a ocultá-la, assegurando estatutos e privilégios, já que invariavelmente os territórios pior documentados são sempre os mais distantes dos centros de poder.

Em seguida, Sandra Xavier e Vera Marques Alves, antropólogas e professoras do Departamento de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, observam que, com o pós-modernismo, cresceram as críticas aos trabalhos antropológicos de campo, seja pela falta de polifonia dos dados, seja pelo questionamento de oposições como nativo e não nativo, seja ainda pelas relações de poder pouco discutidas em relação à própria investigação.

Admitindo a crítica, mas acentuando a importância de se manter a fronteira entre crítica textual e relações intersubjetivas em presença, as autoras traçam o surgimento de novas práticas etnográficas, com manutenção das exigências de pesquisa quotidiana, conhecimento informal e de envolvimento com as comunidades estudadas. No âmbito dessa etnografia reformada, entendem que a sua contribuição ao projeto “Patrimônios de Influência portuguesa” dá-se em termos da superação de oposições esquemáticas entre colonizador e colonizado, em favor de um olhar mais sutil para o complexo colonial, fazendo emergir vozes dissonantes, narrativas divergentes, conflitos de interesse, políticas incompletas de modo a entender o encontro colonial como efeito de processos dinâmicos.

Nesse novo ambiente, os estudos pós-coloniais, centrados na crítica textual, e as novas práticas antropológicas, de dimensão intersubjetiva, podem agir de modo articulado, com base numa “viragem material”, isto é, no estudo das formas materiais de diversos mundos sociais, cujos objetos não apenas significam ou simbolizam, mas influenciam o campo de ação social. A fotografia, por exemplo, passa a ser entendida como lugar de interações sociais e não apenas como consumo visual passivo.

Neste ponto, trata-se de descolonizar os patrimônios, antes dados como processos monolíticos ou homogêneos, dentro de uma etnografia descentrada, colaborativa, polifônica.

Mirian Tavares, professora de Cinema na Universidade do Algarve, considera, inicialmente, que os filmes de modelo hollywoodiano são uma representação simulada do real contra a qual se opõe uma cinematografia divergente, pensada tanto como lugar possível de poesia quanto como revelação de uma história periférica, mantida invisível. No entanto, constata que essa produção, no contexto do cinema africano, é usualmente tratada como world cinema, como se fosse etnografia e não propriamente cinematografia.

Mesmo visões simpáticas a ele tendem a reproduzir a visão da África como “paraíso da etnografia”, aprisionada à tradição. Ao fazê-lo, negam-lhe subjetividade real, pois ela se dissolve em traços comunitários a ser preservados como memória à beira da extinção. Ou seja, não veem o cinema ou a filosofia africana como lugar de pensamento de indivíduos independentes, com capacidade de abandonar o lugar de objeto para o de sujeitos íntegros de seu próprio presente. No fundo, trata-se sempre de uma ideia condescendente, que confirma o discurso hegemônico: defender uma cultura que não pode sobreviver sozinha.

Considerando que o cinema moçambicano, numa primeira fase pós-independência, estabeleceu-se como propaganda do novo regime, observa que, posteriormente, deu lugar a uma filmografia variada, com consequente diminuição do apoio estatal. É um cinema de resistência, uma “insanidade”, com desejo de criar alternativas, de apropriar-se da cidade fragmentada como espaço múltiplo. Cinema marginal, disruptivo, que não replica o cânone, que não se resolve na questão da memória, mas produz reflexão sobre o que vê de forma a promover ação transformadora no presente.

Ana Maria Mauad, professora do Departamento de História da UFF, observa que a ideia corrente da fotografia como realista obscurece as mediações e escolhas que se dão no ato fotográfico entre o sujeito que olha e a imagem elaborada. Uma análise fotográfica consequente também deve considerar o valor atribuído pela sociedade à imagem, bem como a grande capacidade que ela tem, como diz a autora, de potencializar a matéria e engendrar narrativas. Ademais, no caso de fotografias públicas, há que se considerar todo o processo de agenciamento, que diz respeito à sua publicação, arquivamento e guarda.

A fotografia pública, definida como registro de situações associadas ao Estado, à memória visual do poder público ou, enfim, à dimensão social dos fatos, interessa à autora como redefinição de formas de acesso aos acontecimentos históricos e de sua inscrição na memória por meio da produção de imagens com ressonância no campo social. Pode-se então falar propriamente de uma prática artística, de expressão autoral do fotógrafo (que não existe apenas como paciente de um registro realista) e também de uma prática documental, na qual se observam as condições de vida de determinados setores sociais. Tal prática, no âmbito do Patrimônio, pode recobrir informes sobre o passado, mas também a sua própria instauração como monumento, enquanto esforço deliberado de construção de símbolos a ser lançados para o futuro.

Ao analisar um álbum de fotografias realizado em 1938, em Luanda, depois publicado pela Agência Geral de Colônias, a autora observa que ele revela dois objetivos em disputa: a inauguração da exposição, que atendia aos interesses da elite local de Angola, e o registro da visita do presidente português, que atendia aos interesses do governo central de demonstrar a sua presença nas colônias. É um exemplo de como uma pluralidade de discursos pode comparecer nessas fotografias públicas, cuja função é a construção imaginária da nação. Como tais, são patrimônios visuais valiosos: não apenas registros factuais, mas lugar de manifestação de políticas de memória pública.

Luísa Trindade, professora de História da Arte na Universidade de Coimbra, trata da imagem desenhada como instrumento das áreas de Patrimônio, no tocante à arquitetura e ao urbanismo. Limitando o seu enfoque aos séculos XV-XVI e aos territórios de ação portuguesa, observa que o desenho era entendido como representação gráfica, geralmente feito na presença do objeto, com propriedade de verossimilhança. No caso das imagens de cidade, pode ser focado na urbs, vale dizer, a materialidade física dela, ou na civitas, sua comunidade humana ou genius loci.

Em qualquer dos casos, o resultado nunca é cópia fiel, mas nem por isso menos verdadeira. Há necessariamente artifício, quando o desenho tem de descrever detalhes e também propor uma inteligibilidade do todo. É sempre retórico, pois atende a uma encomenda e visa a um propósito. Pode ter a função de demonstração para a Corte de certas soluções propostas ou de ilustração de narrativas; pode ser útil na guerra, em suas formas de cartografia de defesa.

Há uma eloquência própria dos mapas, uma linguagem de poder ali articulada. A moldura técnica partilha da moldura político-social. Por exemplo, nota a autora que, no caso de representação da civitas, apenas Lisboa é desenhada, o que obviamente associa a ideia de cidade à de centro de poder.

Tais observações validam a necessidade de tratar o desenho num quadro interpretativo interdisciplinar, em que têm parte a Literatura, a Geografia, a História, a Arquitetura, a História da Arte etc. Ademais, o desenho pode ser tanto entendido como patrimônio em si mesmo, além de meio para outros fins.

José Pessôa, professor de Arquitetura na UFF, observa que é justamente do campo da arquitetura a prerrogativa de ter sido o objeto principal das construções do patrimônio histórico nacional, desde o século XIX – entendendo-se por monumento histórico sobretudo a arquitetura do passado, com suas igrejas, palácios, castelos etc. Em termos gerais, entende-se o monumento arquitetônico como o que fornece identidade às nações e também o que, enquanto documento histórico, é objeto de restauro e de ações de conservação. Nessa perspectiva tradicional, tem mais peso na ideia de patrimônio a qualidade plástica do edifício do que o valor histórico da arquitetura.

Na Carta de Veneza, de 1964, talvez o documento mais importante para o patrimônio arquitetônico, a ideia de monumento histórico é alargada até alcançar, além da arquitetura erudita, também a arquitetura vernacular, relativa a prédios mais modestos, urbanos e rurais.

No tocante à ideia de restauro é importante entender que ela se aproxima da de recriação: uma reinterpretação do passado pela consolidação de determinada imagem arquitetônica privilegiada em determinado momento histórico, segundo determinada concepção de Patrimônio. Como diz o autor, não é possível lembrar sem inventar.

No caso brasileiro, em que são raras as imagens de cidades anteriores ao século XIX, a recuperação da arquitetura colonial muitas vezes opera por meio de uma imagem idealizada que toma por analogia edifícios similares de outras regiões ou lugares. Dá o exemplo da Capela do Padre Faria, em Ouro Preto, refeita não pela descoberta de sua planta original, mas segundo o modelo da capela contemporânea de S. João Batista. Evidentemente, o procedimento é controverso: refaz-se o passado com base numa ideia de linguagem arquitetura comum, que não é rigorosamente demonstrável.

Nesse contexto, como falar de uma Patrimônio arquitetônico comum aos países de língua portuguesa? Para um arquiteto como Lúcio Costa, há uma mistura de influência e de autonomia nos edifícios coloniais de modo que, no final, os modos de ser portugueses ali encontrados, diz ele, “foram sempre brasileiros” – o que naturalmente (digo eu, não o autor) trai um princípio nacionalista bastante duvidoso para ser aplicado ao período colonial.

Ao autor do estudo, entretanto, interessa mais destacar a existência de uma dialética entre influência portuguesa e mútua influência, na qual aos modelos somam-se soluções autônomas (como a casa de taipa de pilão paulista) e adaptações locais de soluções trazidas de Portugal.

Fecha o volume o texto de Walter Rossa, um dos organizadores do volume e professor do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra. Após considerar que apenas culturas urbanas sobrevivem e que o mundo em 2008, pela primeira vez, tornou-se mais urbano que rural, o grande desafio é produzir uma alteração de paradigma que permita evoluir de um estado cada vez mais comum de aglomeração para uma nova conceptualização de cidade, capaz de a reinventar como ecossistema ideal.

Para isso, julga que será preciso observar a complexidade total do fenômeno da cidade, que hoje vai muito além do antigo limite muralhado ou da ordem disposta a partir do centro. Os processos de urbanização, que têm a ver com a construção física mas também com a vivência das gentes, admitem um estudo em tríade, composta de estrutura (parte mais perene), forma e imagem (a mais volátil), concentrando na primeira as ações mais comuns do Patrimônio.

Após considerar que a Unesco, em 1972, passou a incorporar uma vertente urbana associada à noção de paisagem (tanto natural como cultural), a área ganhou um alento interdisciplinar, consolidado em 1992, com a categoria de “paisagem cultural”, que ultrapassa a noção de centro histórico para representar sítios culturais articulados à vida presente e não apenas à ruína arquitetônica. No entanto, para o autor, os doutrinários da Unesco são apegados a clichês patrimoniais que impedem um salto epistemológico que descolaria a noção de Patrimônio das teorias de conservação e restauro de bens artísticos autônomos, sem nexo com o território e a cidade. O salto, até agora, tem-se dado em torno do conceito de paisagem urbana histórica, ou HUL (Historic Urban Landscape), aprovado apenas como “recomendação”.

Trata-se de uma evolução da ideia de Patrimônio urbanístico, pois possibilita uma abordagem integradora do patrimônio com a cultura e o dia a dia dos cidadãos. Um conceito desse tipo pode também ser aplicado a comunidades distintas, mas com afinidades culturais, como as de influência portuguesa. No entanto, diferentemente de entender essas comunidades como projeção colonial da cultura europeia, o HUL concebe formas de expressão comuns de um conjunto cultural com matizes diversas, valorizando as suas contaminações, e em franca oposição à exclusiva remissão delas às regras de um modelo fundador.

III

Isto dito, e tendo-me já desculpado de antemão pela inépcia de minhas traduções de tantos trabalhos, cuja intensidade não deveria senão aplaudir agradecido e depois calar-me, não me furto, porém, a deixar aqui três questões breves que, ademais, são uma forma de agradecer intelectualmente o grande trabalho testemunhado pelo livro ora lançado.

A questão da teoria

A primeira diz respeito ao fato de que, entendido como está sendo feito aqui, o Patrimônio tende, em certa medida, a desmaterializar-se e, por isso mesmo, passa a exigir uma teoria, ou a depender de uma teoria. Não se trata mais de conservar obras particulares, com qualidade estética ou histórica, mas de formular um campo teórico em que o patrimônio se reinventa, estendendo-se das obras aos conceitos, mais que dos conceitos às obras. Isso é perfeitamente lógico no contexto atual, mas é também ineludivelmente problemático, já que a própria interdisciplinaridade proposta aqui é, antes de mais nada, transferência das disciplinas para um espaço de modelagem teórica, em que a prática delas perde passo para a conceitualização metalinguística e metateórica.

Se essa operação de modelagem é produtiva e pode levar a dissolver vários enganos da política patrimonial do passado, é também um processo de abstratização do patrimônio, que, em determinados momentos, parece depender mais da imaginação do estudioso que da existência histórica das formas e estruturas. E o problema da imaginação do estudioso é que ele imagina por paradigmas redundantes, de tal forma que a teoria é ao mesmo tempo nova e repetida.

Não fiz um levantamento estatístico, mas é evidente que alguns autores comparecem sistematicamente no livro. E um bom autor pode ser bom, claro, mas muitas vezes um mesmo bom autor pode ser redundante ou dar a impressão de que é pouco o que se tem efetivamente à vista ou nas mãos. Acaba dando uma cara comum a uma invenção que, para ser real, precisa ser selvagem, em alguma medida, isto é, enfrentada no corpo a corpo, a cada vez, pelos diferentes pesquisadores, cujas armas interpretativas são mais fortes conforme se ajustam a sua própria experiência e estudo. Uma grande teoria brandida dezenas de vezes pelos pesquisadores mais diversos, em relação a objetos igualmente diversos, dá a impressão menos da força dessa teoria do que do exame exíguo da singularidade da obra.

A questão dos estudos culturais

Além da precedência teórica, os estudos deixam entrever uma perspectiva culturalista, usualmente edificante, isto é, que mostra boa vontade geral diante das relações assimétricas entre os povos recobertos pela ideia de influência portuguesa, e que favorece quase como parti pris as ideias de multiplicidade, pluralidade, diferença etc. Esse é um problema que diria que é inerente aos estudos culturais, e que comprometem as teses pós-colonialistas: nascem de perspectivas que têm um grande sentido de justiça e de ética do tratamento das diferenças e pluralidades das diversas comunidades, mas, no final das contas, além ou aquém dessa boa vontade, estão as obras, as cidades, as culturas, que em geral existem na contradição, na concorrência por vezes insolúvel entre as partes, e, mais ainda, no terreno minado da globalização.

Se é óbvio que todos esses trabalhos não querem bater bumbo para o passado nacionalista, também é importante que não incorram numa espiral de idealismo que se desprenda do solo duro em que todos vivemos e no qual invariavelmente predominam políticas muito parciais, senão muito toscas. Ou seja, se não queremos mais que a questão do Patrimônio seja uma epopeia do colonialismo, temos de estar muito atentos para não fazer dos estudos pós-coloniais uma épica da globalização, como suspeito que usualmente fazem os norte-americanos.

A questão estética

Por fim, um terceiro e talvez o ponto mais importante que deixaria aqui para ser pensado é que é evidente o recuo da estética nessa nova perspectiva integradora do Patrimônio. Se cresce a atenção aos direitos e diferenças, diminui na mesma intensidade a nossa capacidade crítica de avaliação do que se postula como diferente. Pois que categorias seriam adequadas para um juízo estético – e como sequer postular a noção de valor advinda de uma experiência estética — quando o patrimônio se associa sobretudo à criação de comunidades plurais com direito a partilhar um espaço até então ocupado exclusivamente pelas culturas de um centro hegemônico que nunca foi nem um pouco compreensivo?

Desse ponto de vista, fico pensando, incomodado, se o custo das teorias da partilha deve significar necessariamente o sacrifício do estético, do objeto, e, enfim, da forma (pois os conteúdos se dobram mais facilmente ao bom mocismo). Quando a forma – esta, que é o cerne de qualquer questão artística que não se esgote nas conciliações culturais edificantes – deixa de ser decisiva, pode-se ter comunidades de direito, sociedades justas e que convivem bem, mas desgraçadamente já não há Patrimônio artístico.

Nesse caso, para encerrar, gostaria de ecoar aqui a consideração da autora que reivindicou para o cinema moçambicano não uma etnografia, mas uma cinematografia: não a admissão do testemunho de uma memória coletiva em extinção, mas realmente a construção de um cinema contemporâneo, que, por isso mesmo, tenha direito a receber um juízo crítico como qualquer outro cinema. Nesse caso, se o julgarmos digno de ser proclamado mau não será um gesto de reconhecimento maior do que o julgarmos bom por condescendência ou por amor ao folclore?

São questões graves, que formulo não como crítica direta aos ensaios que tentei apresentar aqui, mas como desdobramento do momento tumultuado em que vivemos de que o Patrimônio, prova-o sobejamente o livro, revela justamente seus impasses, contradições e dilemas mais entranhados.

Recebido: 21 de Maio de 2016; Aceito: 14 de Junho de 2016

Alcir Pécora é Professor Titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1A. Tem Mestrado em Teoria Literária, pela UNICAMP (1980) e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP (1990). Livre-docente, pela UNICAMP, em 2000. Pós-doutorado no Dipartamento di Studi Romanzi della Università degli Studi di Roma “La Sapienza” (2004-5).

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Engineers and the Making of the Francoist Regime | Lino Cmprubí

Both as a (cutting edge) piece of scholarly work in the arena of the History of Technology and as a (very refreshing) contribution to the much debated History of Spain during the years of the Francoist regime, Lino Camprubi´s Engineers and the Making of the Francoist Regime makes a not so usual read within either academic milieu. Indeed: a relatively good wealth of research has been devoted lately to the development of science and technology within the context of the various undemocratic political regimes of the 20th century, thus challenging the over-simplistic idea that science (or even a well-orientated science as Philip Kitcher would have it) keeps a privileged relationship to democracy. That this needn’t always be the case is something that a good deal of research work has made evident over the last two decades. Ranging from the pioneering narrative by Mark Walker on nuclear energy research in national-socialist Germany during WWII to the many/multitude of contributions about the “fascistization of science and technology” put forth by Tiago Saraiva, an increasingly respectable amount of scholars have located the focus on the avenues through which real science (perhaps sadly: one no so well orientated as Kitcher would hope for) interacts with the social and political contexts in which real scientists do, in fact, operate. Leia Mais

Dialogismo: teoria e(m) prática – BRAIT; MAGALHÃES (A-RL)

BRAIT, B .; MAGALHÃES, A. S. (org.). Dialogismo: teoria e (m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. Série ADD, 322p. Resenha de: MARCHEZAN, Renata Coelho. Dialogismo em dezessete capítulos. Alfa – Revista de Linguística, São José Rio Preto, v.60 n.3, São Paulo set./ dez. 2016.

[…] De acordo com Bakhtin, […] o diálogo pode ser entendido como um modo que denota como a linguagem funciona, bem como um ponto de vista que estabelece um objeto de estudo. (BRAIT; MAGALHÃES, 2014).

Dialogismo: teoria e (in) prática, organizada por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães 1 , apresenta trabalhos de pesquisa sobre discurso, no marco bakhtiniano. Em seu prefácio, Carlos Alberto Faraco destaca sua importância e escreve sobre a contribuição de Beth Brait para a discussão das idéias do Círculo Bakhtin em vários momentos no Brasil. Além disso, ele aponta suas pesquisas mais recentes sobre o enunciado verbo-visual dentro de uma perspectiva dialógica 2 . Anderson Salvaterra Magalhães, orientado por Brait em seu doutorado, tem uma reputação reconhecida na mesma linha de pensamento.

Retiradas do texto introdutório de Brait e Magalhães, as palavras da epígrafe definem a teoria adotada e expõem a metodologia que norteia os capítulos. Ao reconhecer a natureza dialógica da linguagem, o pesquisador assume o papel de interlocutor em relação ao objeto de estudo. Assim, como os organizadores nos lembram, o objeto de estudo não é apenas caracterizado como cognoscível, mas também como cognoscitivo. Aí reside o desafio dos dezesseis capítulos que compõem o livro: a produção de conhecimento como resultado de uma interlocução teoricamente qualificada.

A coerência e a unidade do livro são reveladas nos títulos das partes em que estão organizados. Todos eles começam com a palavra “dialogismo” e são fundamentais para questionamentos específicos, centrais no Círculo de Bakhtin: dialogismo na produção do conhecimento, dialogismo na vida e dialogismo na arte. Seguindo essa organização, na primeira parte – Dialogismo: produção brasileira de conhecimento -, podemos encontrar três capítulos que tratam do gênero do discurso e outro que trata da tradução. No último, Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova América, que estudam os trabalhos do Círculo Bakhtin e que traduziram três deles 3diretamente do russo para o português, exponha a relação desse conhecimento ao examinar a experiência de traduzir dentro do conceito bakhtiniano de enunciado. No caso analisado, é transmitido e recebido na esfera científica. Segundo os autores, o enunciado traduzido pressupõe tensão conceitual e estilística entre ser fiel ao texto original em russo e sua recepção em português; a relação com outros textos, que não são traduzidos diretamente do russo e estão disponíveis em português; e, o papel do contexto sócio-histórico e intelectual em que o texto original em russo foi produzido. Assim, o capítulo permite compor uma abordagem dialógica da obra traduzida, além de aprofundar a reflexão teórica,

Em um dos três capítulos já mencionados, que considera o conceito de gênero discursivo, Adail Sobral retoma suas reflexões anteriores e reforça uma proposta ampla e detalhada que permite que o conceito seja examinado. Antes de dar esse resultado, ele se preocupa com a distinção entre gêneros discursivos e textuais e, nesse sentido, desenvolve os conceitos de discurso e texto. O discurso é caracterizado como a articulação entre a materialidade definidora de texto e a situação de enunciação, entendida como posições sócio-históricas. Sobral destaca a “ênfase excessiva” do aspecto formal do gênero, lembrando que a abordagem dialógica a esse conceito pressupõe uma visão ideológica do mundo.

Uma preocupação semelhante com os procedimentos teóricos e metodológicos ao examinar os gêneros discursivos pode ser encontrada no capítulo de Anselmo Pereira de Lima, que, tendo esse objetivo em mente, tenta examinar um corpus muito original ,que exigia registros audiovisuais: eventos educacionais realizados em um centro de educação profissional com um professor, vários alunos e um assistente. A dinâmica de sua interação, a repetição e a recreação das atividades são o núcleo da análise realizada. Na pesquisa teórica em que se baseia seu estudo, Lima, assim como Sobral, sente a necessidade de distinguir texto e discurso. Baseado em LS Vygotsky, Lima define discurso como “processo”, cujo “produto” é o texto. Segundo esse entendimento, analisar o discurso exige a observação dos “aspectos mais importantes que constituem a história de seu desenvolvimento”. É uma análise explicativa da gênese do fenômeno, e não uma descrição de sua manifestação.

O estudo de Rodolfo Vianna também elege, como foco principal, o conceito de gênero discursivo para analisar o gênero jornalístico informativo. Como ele está interessado nas macro-características que são relativamente estáveis ​​no gênero, e não em seus detalhes e elementos variáveis, Vianna organiza sua reflexão em torno da polarização entre o gênero jornalístico informativo e opinativo. Nesse percurso, e levando em consideração a história constitucional e as transformações da esfera jornalística, analisa como o gênero é composto, tendo como referência principal o Guia de Estilo 4 do jornal Folha de São Paulo . Através do corpu analisados, Vianna registra a importância do efeito da objetividade, o posicionamento ideológico do veículo de comunicação e o funcionamento da esfera de atividade na construção do gênero jornalístico informativo. Todos os itens acima configuram um critério de objetividade relativo.

A segunda parte do livro – Dialogismo na vida – compreende sete capítulos dedicados a vários objetos. A reflexão de Anderson Salvaterra Magalhães, cujos objetivos estão relacionados ao processo de objetivação no jornalismo e aos atuais desafios da imprensa, permite uma interlocução produtiva com o capítulo de Vianna. Em vez de polarizar, Magalhães prefere examinar a articulação dos processos de objetivação e subjetivação na atividade jornalística. O desenvolvimento das análises do corpus, artigos premiados do jornal O Dia do Rio de Janeiro e as conclusões são norteadas pela inclusão de um componente ético. Na linha de Bakhtinian, Magalhães vê a objetificação como um exercício intersubjetivo, regido pela responsabilidade ética.

O estudo de Beth Brait e Bruna Lopes-Dugnani examina a linguagem das ruas. Analisa as manifestações de junho de 2013 no Brasil – momento de interlocução especial, que não poderia ser deixada de fora da perspectiva bakhtiniana – com o objetivo de compreender os discursos que expressam reivindicações, bem como os sujeitos que os enunciam e suas formas de enunciação. Baseada principalmente no conceito de enunciado verbo-visual, desenvolvido anteriormente por Brait, a análise concentra-se principalmente em dois tipos de enunciado, o pôster e a máscara, arma e escudo, que compreendem o jogo de contar, ao mesmo tempo, seriedade e seriedade. brincalhão. A reflexão descreve a multidão, encontrando “versões do mesmo”, vozes coletivas e reiterações de discurso. Desse modo, ele descobre a “gênese do discurso”, incorporando discursos consolidados do local de trabalho, de violência e até de nacionalismo. O artigo também apresenta outra perspectiva e, olhando atentamente para os participantes, é capaz de identificar, entre os traços coletivos, individuais, principalmente na caligrafia e nos gestos.

Ainda focada em enunciados verbo-visuais, Miriam Bauab Puzzo seleciona três capas da Revista Veja que apresentam o ex-presidente Lula, em diferentes momentos históricos. Ela os analisa admiravelmente, caracterizando a interlocução jornalística e histórica sendo promovida; descrever sua forma arquitetônica, constituída na articulação da linguagem verbal e visual; e examinando seu tom avaliativo que muda de acordo com o momento histórico.

Baseado no pensamento bakhtiniano e colocado em um diálogo teórico com a retórica e a nova retórica, o capítulo de Maria Helena Cruz Pistori examina a repercussão de um crime ocorrido em 1997 e seu julgamento nas páginas dos jornais Folha de São Paulo e Correio Brasiliense . No estudo desse objeto, que visa captar a relação entre discursos jurídicos e jornalísticos, são revelados os valores, especificidades e coerções dessas esferas. As caracterizações não são atemporais; eles não representam a esfera jurídica e jornalística de nenhum período, pois lidam com a imprensa e o sistema jurídico contemporâneos. O corpus perspicaz A análise leva à seguinte conclusão: “[…] independência e autonomia do sistema jurídico, próximas à liberdade de expressão da imprensa […] não são valores contraditórios democráticos, mas estão mutuamente abertos à influência em diferentes níveis em nosso mercado liberal economia.”

Numa proposta original, Vinícius Nascimento recorre ao dialogismo para avaliar sua contribuição para a formação de tradutores / intérpretes de língua de sinais e português. Com esse objetivo, ele explora conceitos pertinentes do arcabouço bakhtiniano para estabelecer as bases para a interlocução entre tradutores / intérpretes e surdos, podendo extrair uma proposta para a formação desses profissionais.

Ainda na segunda parte do livro, dois capítulos examinam os livros didáticos. Cláudia Garcia Cavalcante e Regina Braz Rocha escrevem sobre a prática de texto para alunos 5 de CA Faraco e C. Tezza e aulas de redação 6por B. Brait, JLCA Negrini e NRP Lourenço, respectivamente. O primeiro artigo enfoca a interação entre autor e aluno / leitor promovida pelo livro didático e como ele orienta as atividades na sala de aula. As análises, principalmente na seção Prática do Texto, identificam os pontos de vista enunciativos do autor e os dados aos alunos / leitores, além de qualificar a relação estabelecida entre eles. O segundo artigo aborda a gramática e a alfabetização verbo-visual, e nos faz pensar: “Que contribuições o ensino de gramática oferece para desenvolver a alfabetização verbo-visual aos alunos do ensino médio?”. O artigo examina o livro selecionado e prova como ele responde concretamente a essa pergunta, examinando as atividades propostas que tratam de enunciados verbo-visuais.

Na terceira e última parte do livro – Dialogismo na arte -, a literatura não pode ser deixada de fora, mas há capítulos que exploram uma exposição de arte, Jorge Amado e Universal 7 ,e textos publicitários de uma peça de teatro. Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva apresenta uma análise sensível da exposição de arte, adequada ao objeto artístico, e é meritória ao mostrar como abordar um objeto múltiplo, fundamentada em uma teoria que foi originalmente concebida para analisar textos verbais. Familiarizada com a obra de Jorge Amado, a pesquisadora, sem perder seu rigor, parece percorrer a exposição, ouvindo e possibilitando ouvir a voz da autora, que às vezes é o narrador, e a das personagens, possibilitando ver o que ela vê. Ela também é conduzida pela voz do curador, suas enunciações que, segundo a análise, refletem e refratam a poética de Amado.

Jean Carlos Gonçalves leva o teatro à terceira parte do livro. Numa ampla reflexão sobre o teatro, que leva em conta não apenas o espetáculo, mas também as fases da peça escrita, construção e recepção cênica, ensaios, conversas com o público, críticas especializadas etc., Gonçalves examina dois enunciados verbo-visuais selecionados que anunciam o espetáculo Black Circus 8 . Ele analisa e contextualiza o espetáculo, a empresa e caracteriza seu estatuto de marketing de maneira dialógica, sua forma de convite , que ecoa Picasso, o universo circense e os símbolos teatrais.

Elaine Hernandez de Souza nos traz fábulas e faz uma análise cuidadosa, com uma metodologia explícita, das diferenças encontradas em The Ant e the Grasshopper por Aesop, La Fontaine e Lobato; levando em conta as ilustrações, ela também descreve a relação não convergente entre o texto verbal e os desenhos. Souza, portanto, considera as enunciações verbo-visuais das fábulas e caracteriza as relações dialógicas estabelecidas entre as fábulas, entre a materialidade linguística e imaginária, entre cada fábula e seu contexto sócio-histórico, bem como entre a vida cotidiana e a arte encontradas nos textos.

Os dois últimos capítulos analisam Barren Lives 9 e The Devil to Pay in the Backlands 10 . Maria Celina Novaes Marinho coloca Vidas estéreis em foco dialógico e caracteriza a articulação de vozes, que constrói a arquitetura do texto. Marinho reconhece os personagens como “seres que falam, não apenas sendo mencionados pelo autor”. Ela sinaliza grupos de identidade que são definidos em sua luta um contra o outro e examina a representação das diferentes vozes, formas de citação, tons agradecidos, a relação entre o mundo interno e o externo. Lá encontramos uma teoria precisa, análise fina e equilíbrio entre os dois.

No último capítulo, Sandra Mara Moraes Lima quer ouvir a voz materna, que ecoa em O diabo a pagar no sertão.Ela afirma que seu objetivo não é analisar todo o trabalho, mas pretende “promover uma reflexão sobre a linguagem e o homem, seu ser / fazer no mundo”. Primeiramente, procura o papel do discurso da mãe na aquisição e construção da linguagem infantil na teoria de Bakhtin; então, a autora se dedica ao reconhecimento, nas palavras de Riobaldo, da ressonância da voz da mãe, uma voz que ele tem sempre “reverenciado”. Seguindo esse caminho, e aceitando a proposição da analogia que considera o trabalho de Guimarães Rosa “um retrato do Brasil”, o capítulo examina como esse texto literário refrata o papel das mulheres na sociedade, bem como o papel das mestiças na construção da identidade do país .

Dialogismo: teoria e (in) prática é um estudo amplo e denso que permite a compreensão das idéias de Bakhtin, a promoção de seu debate e desenvolvimento. Como tentamos mostrar, o livro insiste principalmente em um ou outro conceito, sobre o qual mais é escrito, trazendo luz à sua atualidade e produtividade. Ao mostrar a contribuição das idéias de Bakhtin que operam nos domínios atuais dos estudos do discurso, o livro orienta o leitor a reconhecer a articulação de vozes que preside e esclarece os mais variados corpora analisados. Assim, são coletadas contribuições teóricas e resultados de análises, além de questionamentos metodológicos e aplicações educacionais.

Referências

BAKHTIN, MM Questões de estilística no ensino da língua . Tradução de posfácio e notas de Sheila Camargo Grillo; Ekaterina Vólkava Américo; apresentação de Beth Brait; organização e notas de edição russa Serguei Botcharov e Liudmila Gogotichvíli. São Paulo: 34, 2013. [  Links  ]

BRAIT, B. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana , São Paulo, v.8, n.2, p. 43-66, jul./dez. 2013. [  Links  ]

LIMA, AP de. Procedimentos teóricos-metodológicos de estudo de gêneros do discurso: atividade e oralidade em foco. In: BRAIT, B .; MAGALHÃES, AS (Org.). Dialogismo : teoria e (m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. p. 37-53. (Série ADD). [  Links  ]

MEDVIÉDEV, PN O método formal nos estudos literários : introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. [  Links  ]

VOLOCHÍNOV, VN Marxismo e filosofia da linguagem : problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Ekaterina Vólkava Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: 34, [20–]. No prelo. [  Links  ]

1 resenha de BRAIT, B .; MAGALHÃES, AS (Org.) Dialogismo : teoria e (in) prática. São Paulo: Terracota, 2014. (Série ADD). 322p.

Brait (2013) se destaca, cuja importância também pode ser vista no livro revisado aqui.

3 Especificamente: Medviédev (2012) , Bakhtin (2013) ; Volochínov ([20–]) .

4 Título original em português: Manual de redação.

5 Título original em português: Prática de texto para estudantes.

6 Título original em português: Aulas de redação.

7 Título original em português: Jorge Amado e Universal.

8 Título original em português: Circo Negro.

9 Título original em português: Vidas Secas.

10 Título original em português: Grande Sertão: Veredas.

Renata Coelho MARCHEZAN – UNESP – Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”. Faculdade de Ciências e Letras. Araraquara – SP – Brasil.14800-901 – renata_marchezan@uol.com.br

Padre Cícero do Juazeiro do Norte: a construção do mito e seu alcance social e religioso

A proposta da tese é ampla, desafiadora, trabalhosa e de perfil interdisciplinar e transdisciplinar. Diz seu autor:

Tomando a figura de Padre Cícero como referência é possível perceber um processo de santificação que coincide com a construção do mito. Porém este santo mitificado tem algo de específico: ele foi construído pela religiosidade popular e ainda hoje pertence a ela. Afinal, o patriarca do Juazeiro do Norte, carinhosamente chamado como “meu padim”, é um santo que “vive no sol” pelo fato de ter morrido afastado das Ordens sacerdotais (TOLOVI, 2015, p. 5). Leia Mais

Resistências: LEDDES 15 anos / Revista Transversos / 2016

LEDDES 15 anos. Atravessando Experiências: diversificando possibilidades [1]

Comemorar é resistir

Comemorar é combater e, nesse sentido,

comemorar é lutar.

Lutar é verbo que destaca ação

verbo que propõe flexão,

inflexão, reflexão…

Verbos que me lembram LEDDES.

Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais.

Espargindo…

Transversal,

Transcultural,

de saber / sabor de saber / fazer

de saber / poder.

Eu posso, tu podes, ele pode… nós LEDDES [2]

As resistências funcionam como pontos e nós irregulares que se distribuem com maior ou menor densidade no tempo e no espaço. Podemos falar numa cotidiana resistência ou como afirmava De Certeau (1994) na microfísica da resistência em resposta a provocação de outro Michel, desta feita Foucault (1979) para quem as táticas e suas clivagens são resistências fragmentadas que fazem emergir as relações de poder em suas múltiplas tramas. O trabalho intelectual como método de invenção, investigação e intervenção que resiste desde seu próprio procedimento ativa um saber que nasce resistindo, saber que informa a trajetória do nosso LEDDES como um dente de leão em sua reprodução rizomática.[3]

Propomos inquirir o pensamento como forma de resistência de análise das diferenças e, em especial, das matrizes que as inventam, justificam e transformam em desigualdades sociais. Desconfiar das evidências e universalidades que indicam as inércias e coações do presente, as brechas, as linhas de força da violência dos próprios regimes de verdade são questões problematizadas em nossas linhas de pesquisas. Afinal vivemos sob o signo das diferenças agudizadas e ao mesmo tempo saturadas, logo naturalizadas e invisibilizadas. O que confere cada vez mais relevância social ao LEDDES como locus provocador do debate.

O dossiê, portanto, não se restringe à produção de uma ilusão biográfica do nascimento e institucionalização de mais um laboratório no cenário acadêmico. O que se pretende é iluminar de forma biografemática, um heteretópico espaço de escrituras de vidas abertas às formas diferentes de criação de condição de possibilidades do dizer e, principalmente, da experimentação ética de uma amigável vida acadêmica. Uma jornada que se inicia em 2001 na cumplicidade intelectual e afetiva de Ana Moura, Marilene Rosa e Silvio Carvalho, colegas do Curso de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro nos tempos sombrios da ditadura. O reencontro como experientes profissionais de História que acontece na Universidade do Estado do Rio de Janeiro é enunciado a partir do inventor de neologismos, Roland Barthes no seu biografema (…)

Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagens (esse flumen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante …(BARTHES, 1971, p.14)

O método aponta o fazer de um laboratório onde se cria e se recria uma complexa gestão coletiva. Saber / sabor compartilhado nas permutas constantes entre orientadores / as e orientandos / as, professores / as e alunos / as, quer seja da graduação ou da pós, numa peculiar intertextualidade com diferentes construtores de discursividades. A materialidade do dossiê e os lugares sociais que marcam e demarcam a tessitura de cada narrativa contam um pouco dessa história. Num diálogo transdisciplinar que espelha a plataforma ética sobre a qual nossas pesquisas e intervenção social se assenta- a luta pelos direitos humanos, por uma educação inclusiva, logo, democrática.

Essa viagem começa com a provocação de Laura Nery em Grotesco, caricatural, pornográfico: notas sobre a insubmissão da forma. O ensaio, experiência modificadora de si e não um mero jogo simplificador da comunicação, exercício de pensamento que assume os riscos do engajamento pessoal ancora a reflexão. O texto estabelece algumas relações entre Grotesco, caricatural e pornográfico em seu sentido mais extremo, ou “satânico”, como definiu Charles Baudelaire ainda no século XIX, segundo a autora, destacando semelhanças de estratégias expressivas entre eles. No âmbito da linguagem, a presença desses modos permite entrever um jogo entre experimentação formal, liberdade e interdição.

Seguindo a insubmissão como tática de resistência A Dama e o Amor: Cortesia e heresia na poética medieval de Benjamin Rodrigues Ferreira Filho (UFMT); Shirlene Rohr de Souza (UNEMAT), propõe a leitura do poema “Aquele que não viu o Amor”, do poeta galego-português Nuno Fernandes Torneol. Escrito provavelmente no século XIII, o poema é tomado pelos autores como pulsão para identificar os indícios de subversão da linguagem, ou quem sabe da transvaloração de palavras que guardavam segredos perseguidos por uma igreja inquisidora que ao implantar um ideal dogmático de amor, perseguia “hereges” e condenava ao paganismo das comunidades cátaras e sua crença na “Igreja do Amor”. Através da leitura do poema de Torneol, e de alguns outros poetas, revelam-se os interesses e as disputas de poder travadas pela igreja de Roma.

Com Selma Pantoja o destaque à Historiografia Africana e os Ventos Sul: desenvolvimento e História uma escrita da história, no âmbito dos estudos pós-coloniais, da colonialidade e da experiência Sul. O que faz emergir as narrativas sobre o Estado-Nação africano e o Homem Novo tomando como mote a questão do desenvolvimento e os elementos simbólicos de recuperação. Instigante o relato de sua experiência como professora de história por três anos na cidade de Maputo e os impedimentos no acesso ao acervo da Biblioteca Colonial como representativo dos desafios na descolonização do saber. Ainda nesse viés, chama a atenção para a ressignificação de heróis e heroínas, de fundo nem colonial nem nacionalista ensejando outras perspectivas de produção de conhecimento histórico. Transversos: Revista de História Transversos: Revista de História.

No artigo Terra, Trabalho e Conflitos Escravos no Vale do paraíba Fluminense na Segunda Metade do Século XIX, Keith Barbosa analisa a partir de inventários, correspondência entre autoridades policiais e notícias da imprensa, o modo como os conflitos travados entre os herdeiros pela herança de família e prováveis novos proprietários das fazendas teriam motivado o aumento das tensões entre escravos destacando as estratégias múltiplas para se lidar com a exploração cada vez mais intensa nas plantations de café.

No ensaio A educação como condição e prática da democracia, Aimberê Guilherme Quintiliano da Universidade Federal de Juiz de Fora articula a efeméride de uma publicação- Democracy and Education, de John Dewey, em 1916 às questões contemporâneas da educação, em que o modelo empresarial estaria tomando lugar do modelo educacional nas instituições de ensino e formação profissional, principalmente nas redes públicas. O temas essenciais da filosofia da educação são retomados para traçar um retrato da relação entre o professor e o aluno, mostrando que para uma educação que faça progredir a sociedade e que permita uma melhora das relações entre os seres humanos exige a ampla liberdade de pensar.

Ainda sobre os desafíos de uma Educação de viés igualitário e transformador, Davi Avelino Leal e Juliana Ventura Brasil em A política de ação afirmativa e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas desenvolve breve, mas pertinente, reflexão sobre a compreensão dos alunos cotistas do Ensino Médio Técnico acerca das políticas de ação afirmativa implementadas no IFAM. Através de entrevistas semi-estruturadas e análise da legislação e atas dos conselhos de classe buscou identificar os efeitos da implementação da Lei de Cotas, em destaque o risco de estigmatizaçãos dos sujeitos por ela alcançados.

O dia que durou 21 anos: A simbiose entre passado e o presente pelas lentes do cinema Joana D Arc Ferraz problematiza o uso que fazemos da História a partir do filme documentário. Os efeitos de poder deste presente intolerável provocam a engajada cientista social, professora da Universidade Federal Fluminense e membro atuante do Grupo Tortura Nunca mais. Ancorada em Nietzsche e Foucault o texto procura identificar nas análises de autores que, ainda na ditadura, nas décadas de 1970 e de 1980 do século passado pensaram o golpe o contexto político e econômico de dependência ao capital internacional. Nesta démarche denunciaram algumas questões que, pelas mais variadas percepções, acabaram se empoeirando e se distanciando de nossos olhares.

Na trilha de texto denuncia Mujeres del Cauca: Colonialidade y patriarcado na guerrila de las FARC-EP, Amanda Ledezma Meneses (Universidade Surcolombiana) e Gerson Galo Ledezma Meneses (UNILA), apresentam o conflito armado e a violência vivida na Colômbia como herança colonial. O especismo, que segundo os autores, possibilitou a constituição do racismo e de um complexo sistema de inferiorização de homens e mulheres ressoa na atualidade legitimando o sistemático extermínio de camponeses, indígenas e comunidades afrocolombianas, pelas ações violentas do exército, da guerrilha e dos grupos paramilitares, que agem sob os auspícios do Estado-nação. Neste contexto, emerge o cotidiano de quatro mulheres do Departamento de Cauca na Colombia violentadas sexualmente por guerrilheiros. Seus testemunhos permitem a interrogação sobre o silêncio que cobre o flagelo a que estão submetidas e ainda a confirmação de que o “Estado colombiano mata mulheres, indígenas, pobres e negros, por meio de sus instituições e da mesma sociedade formada em suas filas.”

A seção Entrevista destaca a participação da professora Ana Maria da Silva Moura na idealização e construção do LEDDES. O comprometimento entre entrevistadores e entrevistado transforma o encontro numa saborosa conversa. A rememoração dos múltiplos e complexos tempos afetados pela experiência discursiva do fazer lembrar são iluminados pelas possibilidades do biografema. A seguir é possível acompanhar os efeitos das atividades do laboratório no ofício da História de dois jovens pesquisadores: Gustavo Pinto de Sousa, professor da Universidade Federal do Pará expõe as Experimentações históricas: da casa de correção ao direito das gentes e, na fala de Daniel Thomaz Mandur, hoje professor em OXFORD, a Trajetória de um pesquisador em seu espargir por outros espaços acadêmicos.

Nas Notas de Pesquisas o foco estaria na construção do trabalho acadêmico em seu movimento de elaboração marcado pelo provisório. Em vez do produto acabado, os caminhos e descaminhos complexos da busca de uma Clio negra para uma nação multicor: a escrita da história na imprensa negra-1926-1937 do doutorando João Paulo Lopes -PPGH / UERJ; da Descolonização e justiça: fundamentos para a educação e políticas da interculturalidade de Aline Cristina Oliveira do Carmo do Curso de Filosofia da UERJ; ou ainda dos Territórios dos afetos: O cuidado nas práticas femininas quilombolas contemporâneas do Rio de Janeiro de Mariléa de Almeida da UNICAMP; concluindo com a problematização dos “Grandiosos batuques”: notas de uma pesquisa em História sobre as experiências dos classificados como “indígenas” em Lourenço Marques(1890-1930) de Matheus Serva Pereira também da UNICAMP.

Em Experimentadores, diferentemente, das exigências de uma História profissional, o que se propõe é publicizar as narrativas produtoras de sentidos que auxiliem a reflexão de questões históricas do passado e contemporâneas. Deste modo se inscreve as reflexões sobre a Comunidade da Ilha do Bananal: auto organização da população em situação de Rua na cidade de Cuiabá-MT, de Eliete Borges Lopes (SEDUC / MT). A partir de um longo percurso pelas ruas desta quente capital do Centro-Oeste, fotografando moradores em situação de rua; criando táticas de aproximação e de estabelecimento de algum contato e conexão; tomando como tarefa a composição de um minucioso arquivo visual dos grafites que cobrem esta capital de arte, denúncias e vida; presenciando mortes, percebendo desaparecimentos e testemunhando ações violentas da polícia para com esta população, identifica comunidades de rua nascentes e em extinção e compõe uma cartografia dos arte-fatos e afetos que as constituem, entre elas a Ilha do Bananal. Em prédios antigos, tombados pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), debaixo da ponte que liga (ou separa), as duas maiores e mais violentas cidades de Mato Grosso, Cuiabá e Várzea Grande, nas proximidades do Morro da Luz, ou mesmo sob e atrás de out-doors as comunidades vão erguendo outros lugares. O modo como se movimentam pela cidade, a lentidão que caracteriza seu aprendizado sobre o território da rua, os espaços que ocupam, revelam a vida que toma posição e combate no front.

A seção Resenha, que encerra a edição, apresenta o diálogo entre autores / as, no exercício do habitar e comentar a textualidade de uma obra. Os trabalhos em questão identificam os dilemas do fazer História, suas fontes ou materialidades e, em especial, os diferentes lugares socio-institucionais da produção historiográfica. Assim, ser autor e objeto, ser afetado mas procurar controlar a subjetividade agarrando-se aos procedimentos teórico- metodológicos do ofício. O primeiro desafio foi aceito pelo experiente pesquisador do tempo presente Francisco Carlos Teixeira – No olho do furacão: 2016 historiadores pela democracia – expõe o impacto do acelerado processo de impedimento da presidente Dilma Rousset. A obra organizada por Beatriz Mamigoniam (UFCS), Hebe Mattos (UFF) e Tania Bessone (UERJ) reúne historiadores / as de diferentes gerações e textos, originalmente publicados, no calor do momento e nas mais diversas mídias, propondo-se a elaborar a cronologia do golpe.

Saímos da História em cena para a representação cinematográfica dos dilemas da democracia contemporânea, na resenha de José Ramon Narvaes Hernandes do livro 12 Hombres en pugna: Ni castigo, ni perdón. El derecho a dudar, do Director Eddy Chávez Huanca. Segundo livro da Coleção Cinema e Direito. Trata de uma experiência que vem se consolidando como área de pesquisa que é trabalhar questões relativas e bastantes caras ao Direito, a partir das provocações que o cinema nos convida. Porém, mais que isso, há histórias ocultas e periféricas, bem como as outras linguagens cinematográficas que orquestram a narrativa e revelam vozes e possibilidades de interpretação. A atualidade desta discussão está em exatamente avaliar o comportamento dos jurados na democracia.

Conclui a seção a tese transformada em livro do professor Silvio Carvalho nomeada Utopia de uma nação: construção do imaginário social angolano a partir da produção literária no pós-independência (1975-1985) por Fabia Barbosa Ribeiro. A professora e pesquisadora do Campo dos Malês na Bahia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) destaca como objetivo central do estudo a questão do imaginário social sobre a nação angolana, construído a partir de uma nascente literatura nativa, assentada sobretudo nas relações políticas constituídas durante e imediatamente após a guerra de libertação colonial. Enfatiza a importância de uma obra que se inscreve e contribui sobremaneira aos Estudos Africanos no Brasil.

Encerramos a apresentação propondo um convite ao bom debate instigado pelas reflexões dos diferentes articulistas. Enfim, a coragem de ser um eterno aprendiz que ecoa da Aula de Barthes.

Há uma idade em que se ensina o que se sabe: mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar de trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei tomar aqui sem complexo, na sua própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível (BARTHES: 1977. p47)

Por mais atenta que esteja no passado a História ainda se escreve no presente. Experimentar, diversificar e, é claro, saborear o pensamento como ação que emerge deste dossiê- convite à resistência em suas múltiplas condições de possibilidades que se afirmam no “eu posso, Tu podes, Ele pode…e Nós LEDDES”.

Notas

1 Título do Seminário que aconteceu na UERJ nos dias 6, 7 e 8 de dezembro de 2016. Para além da comemoração o evento permitiu um encontro de pesquisadores / as, estudantes, professores e demais interessados / as nas questões leddeanas, assim nas Margens da História: artes, corpos e invenções como táticas da cidade da linha -Vulnerabilidades e Controle Social; Ordem e progresso: como fazer História no Brasil pós-impeachment da Escritas da História e por fim Áfricas: trajetórias e pesquisas. Entre outras provocações destacamos a exibição e debate do filme Menino 23.

2 Pedro Henrique Torres, mestrando do PPGH / UERJ, pesquisador do LEDDES, bolsista da FAPERJ.

3 O rizoma para Deleuze e Guattari (1995) seria um modelo de resistência ético-estético-político, trata-se de linhas e não de formas. Pesadelo do pensamento linear, não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix Editora, 1998.

______. Sade, Fourier, Loiola. São Paulo: Brasiliense, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo: Editora 34, 1995.

Ana Lúcia Vieira de Carvalho – UFAM Marilene

Rosa Nogueira da Silva – UERJ

Priscila Xavier Scudder – UFMT

Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2016.


CARVALHO, Ana Lúcia Vieira de; SILVA, Rosa Nogueira da; SCUDDER, Priscila Xavier. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.8, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e Literatura: ficção e verdade (I) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2016

“O que me interessa não é tanto a relação do texto com a sociedade, é a transformação da sociedade em texto.” [1]

Faz décadas que críticos literários, historiadores, antropólogos, filósofos e sociólogos participam, juntos, do debate interdisciplinar sobre as relações entre história e ficção. Essa discussão assumiu diversas formas: sondou as aproximações da história com a(s) verdade(s); explorou as textualizações da vida social; refletiu sobre mecanismos de construção e invenção de contextos; reconheceu diferenças e semelhanças nos procedimentos narrativos; percebeu a contaminação que todo diálogo implica; reiterou a autonomia conceitual e estética das representações ficcionais e historiográficas.

Intelligere propõe-se a contribuir para esse debate: neste número e no próximo – dois dossiês – a revista apresenta textos que percorrem obras ficcionais e historiográficas, que partilham a inquietação, a angústia e o fascínio de contrastar perspectivas diferentes, perceber como elas se encontram e divergem, do mesmo modo que se constroem reciprocamente.

O primeiro dossiê é composto por sete textos e uma entrevista. Na entrevista (inédita), o escritor Milton Hatoum discute aspectos da construção literária, seus vínculos com a memória e a história e o lugar da ficção no mundo, seus esforços e compromissos. Júlio Pimentel Pinto reflete sobre os signos da arte e o trabalho da memória num romance de Milton Hatoum. Francine Iegelski interpreta as diversas faces do tempo, particularmente a trágica e a melancólica, a partir da literatura de Raduan Nassar e de Milton Hatoum. Stefania Chiarelli propõe uma visão da presença dos emigrantes em determinadas obras da literatura brasileira, percebendo como estas narrativas contribuem para promover um ponto de vista específico sobre o próprio conceito de nação. Ingrid Robyn analisa barroquismo e maravilha na obra do cubano Alejo Carpentier e do brasileiro Euclides da Cunha. Alberto Schneider apresenta um estudo sobre as polêmicas entre Silvio Romero e Machado de Assis, lançando luz sobre o ambiente intelectual brasileiro do fim do século XIX. Daniel Puglia e Débora Reis Tavares tratam de textos de George Orwell que estabelecem nexos entre história, socialismo e literatura no entre-guerras. Eduardo Ferraz Felippe explora as relações entre futuro, experiência e sentido na obra do argentino Ricardo Piglia.

No próximo número, a discussão continua. Inclusive porque Intelligere sabe que ela é longa, necessária e prazerosamente infinita.

Nota

1. Antonio Candido. Entrevista 30 / 09 / 1996. In: Luiz Carlos Jackson. A tradição esquecida: Os parceiros do rio Bonito e a Sociologia de Antonio Candido. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002. p. 170.

Julio Pimentel Pinto (USP)

Francine Iegelski (UFF)

Stefania Chiarelli (UFF)

Comitê organizador


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 2, n. 2, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais e questão nacional no mundo ibero-americano / Intellèctus / 2016

A participação de letrados e intelectuais na vida política da Ibero-América tem se intensificado desde o início da denominada “era moderna”. Na península ibérica os intelectuais precisaram se deparar com os contrastes provenientes de uma nova ordenação do mundo que a pouco e pouco substituía a ordem vigente por uma outra caracterizada pelo advento e fixação de valores como: individualismo, laicismo, mercado, parlamentarismo e economia industrial. A pouco e pouco o mundo existente foi sendo reordenado em direção ao que Weber denominou o progressivo desencanto do mundo. Na Ibero-América o processo de ruptura do estatuto colonial levou os letrados a se debruçarem sobre os formatos políticos e culturais dos novos países que se formavam, herdeiros da cultura barroca característica da Península Ibérica. Engenharia política, economia, atraso, decadência, progresso, identidade foram temas que se tornaram constante na reflexão dos intelectuais ibero-americanos ao longo dos séculos XIX e XX. Já na Península Ibérica temas como atraso, progresso, decadência, aliados a questões de natureza política, como forma de governo, fizeram com que intelectuais portugueses e espanhóis produzissem análises indicando caminhos para mudanças mais ou menos radicais. Leia Mais

Historiadores pela Democracia – O golpe de 2016: a força do passado | Tânia Bessone, Beatriz G. Mamigonian e Hebe Mattos

O ano de 2016 será para a historiografia brasileira um divisor de águas, profundas e turvas, inscrevendo-se numa dolorosa cronologia do Brasil contemporâneo: 1954, 1955, 1961, 1964, 1968-69 e, agora, 2016. São anos de crise, de tentativas – de sucesso e fracasso, como 1961 e 1964 – de excluir o povo brasileiro do protagonismo da ação política nacional. Se, em 1954, 1955 e 1961 foram tentativas de golpe de Estado fracassadas, 1964 foi, então, sua realização, aprofundada em 1969.

2016: toda a questão, e debate, se dará em torno da caracterização do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) – iniciado em dezembro de 2015, aprovado pela Câmara dos Deputados em 17 de abril e consumado, em julgamento no Senado Federal, em 13 de maio de 2016. O processo, conduzido no Senado Federal por um juiz-presidente do Supremo Tribunal Federal, acatou regras e dispositivos – maioria já praticados no caso do impedimento de Fernando Collor em 1992. No entanto, ao contrário do impedimento precedente, o caso de Dilma Rousseff foi marcado, ao longo de todo o seu desenrolar, por fortes acusações de “Golpe”, com os ritos jurídicos encobrindo uma vasta coalizão de interesses derrotados nas eleições de 2014. Desde o primeiro momento em que se declarou a reeleição da Presidenta – por uma diferença de três milhões e quinhentos mil votos. É interessante comparar a vitória de Mauricio Macri ou Donald Trump por ínfima, ou mesmo inferior, número de votos, sem o “clamor” que a posição brasileira fez desde a zero hora da vitória de Dilma. Leia Mais

Monumentalidade e sombra: o centro cívico de Brasília por Marcel Gautherot | Eloisa Espada

Como já registrei inúmeras outras vezes, a fotografia brasileira ainda se parece com um imenso iceberg, em permanente movimento, que vai emergindo aos poucos trazendo novos dados e novas conexões, geralmente surpreendentes para os pesquisadores. Nas últimas décadas tivemos acesso a inúmeras pesquisas advindas principalmente da academia que se tornaram relevantes informações para a construção de uma história da fotografia brasileira mais consistente.

De modo geral, o saber panorâmico sempre esteve registrado e propagado. O que vem crescendo agora são as pesquisas mais aprofundadas sobre determinados períodos e autores. Especificamente, vemos um crescente interesse pelo período circunscrito entre as décadas de 1940 e 1970, onde a nossa boa fotografia circulou tanto nos salões do movimento fotoclubista, quanto na imprensa, renovada que foi pelas iniciativas de algumas revistas segmentadas (revistas SenhorMódulo, entre outras) e de grupos editoriais – Diários Associados (revista O Cruzeiro) e editora Abril (revistas RealidadeVeja, entre outras). Leia Mais

O problema da crise capitalista em O Capital de Marx – BENOIT; ANTUNES (EL)

BENOIT, Hector; ANTUNES, Jadir. O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. Resenha de: PRADO, Carlos. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 88-90, dez. 2016/mai. 2017.

Em meados de 2008, as contradições da produção capitalista, muitas vezes escondidas e camufladas pela fumaça do crescimento econômico, vieram à tona com o pedido de concordata do Lehman Brothers. A notícia da quebra de um dos bancos mais importante do mundo abalou as estruturas do mercado. A crise que sempre parecia atingir apenas os países periféricos se instalou no centro do capitalismo mundial. A crise chegou em Wall Street. A quebra do Lehman Brothers foi apenas o estopim de uma crise que ainda se arrasta. Mais uma vez, as ilusões liberais que defendem o livre mercado e o Estado mínimo se desmanchavam no ar.

As esperanças liberais de que a economia se recuperaria rapidamente não se concretizaram. Pelo contrário, diante de medidas provisórias que não alteram a lógica produtiva capitalista, a crise persiste. A economia mundial segue apresentando baixos níveis de crescimento e a desaceleração da economia chinesa é um fator determinante nesse processo. O receituário burguês para a aceleração econômica continua sendo a implantação de políticas de austeridade, que culminam no aumento do desemprego, no arrocho salarial, no prolongamento da jornada de trabalho e no corte de programas sociais. Enfim, na busca de salvar a “economia”, os trabalhadores são os primeiros a sofrer com a ofensiva do capitalismo em crise.

É nesse cenário incerto e de questionamentos à lógica da produção capitalista que a obra de Marx mostra mais uma vez sua vitalidade e atualidade. A crítica à economia política realizada em O Capital é indispensável para se pensar a realidade capitalista, suas contradições e sua superação. E é justamente esse o objetivo do livro de Hector Benoit e Jadir Antunes: O problema da crise capitalista em O Capital de Marx. Em primeiro lugar, temos que dizer que o conceito de crise é um dos principais problemas tratado pelos marxistas ao longo do século XX. E mesmo diante de uma vastíssima produção acerca da questão, o texto de Benoit e Antunes consegue apresentar uma análise original, realmente inovadora e inspiradora, pois lança luz em uma problemática cada dia mais atual e urgente, principalmente para pensarmos a transformação da atual sociedade.

O livro que é o objeto dessa resenha foi lançado pela primeira vez em 2009, no rastro do surgimento da crise. O título era O movimento dialético do conceito de crise em O capital de Karl Marx. Mas não foi apenas o título que se alterou, segundo os autores, o texto passou por uma revisão e ampliação, tornando-se mais sintético e assumindo uma forma definitiva. Nessa nova edição, o livro também conta com um prefácio escrito por Benoit que apresenta o cenário no qual essa problemática foi pensada e também com uma apresentação assinada pelo professor Plínio de Arruda Sampaio Júnior, do Instituto de Economia da Unicamp. Esses dois textos contribuem para enriquecer ainda mais essa nova edição.

O problema em torno das crises já foi objeto de investigação de diversos estudiosos marxistas. Contudo, a questão permanece sem uma conceituação que seja amplamente aceita. Não se chegou a um veredicto sobre esse tema. Muitos autores investigam esse conceito buscando encontrar uma passagem na obra de Marx onde ele apresentasse a “causa” das crises. É por meio dessa noção de causalidade de base empirista que autores clássicos como Kaustky, Luxemburgo, Hilferding, Grossman, Sweezy, Mandel, entre outros, apresentam a questão. Assim, a chave para entender a crise seria identificar a sua causa primeira. Nesse debate, alguns defendem que a causa seria a desproporção entre o departamento produtor de meios de produção e o departamento de meios de subsistência, outros falam da lei da queda tendencial da taxa de lucro e outros ainda lançam a ideia de que a causa é a superprodução.

Mandel foi um dos autores que se dedicou a essa problemática e lançou uma nova luz à questão quando questionou essas teorias monocausais, apresentando uma concepção multicausal, ou seja, apresentando uma teoria que englobava as diversas causas em um único movimento, estabelecendo assim, um encadeamento multicausal. A contribuição de Mandel foi relevante, mas ele também permaneceu preso à noção empirista de “causa”. E é aqui que podemos destacar a produção de Benoit e Antunes, pois a teoria lançada por eles rompe com essa concepção empírico-factual da crise. A proposta de ambos busca expor o conceito de crise a partir da dialética expositiva de O Capital, a partir do seu modo de exposição (die Darstellungsweise).

Essa leitura também rompe com a tese defendida por Rosdolsky, de que Marx não deixou uma teoria sobre as crises, de que essa seria uma lacuna em sua obra. Para Benoit e Antunes, Marx deixou sim uma teoria sobre as crises. A questão é que ela não se desenvolve em um capítulo determinado ou passagem específica de O Capital, pois é desenvolvida ao longo de todos os três tomos desta obra, exposta juntamente com o conceito de capital. Os autores defendem que Marx não abandonou a ideia de elaborar o conceito de crise, ele o fez em todo o percurso dialético-expositivo de O Capital. Nessa concepção, tal conceito aparece enquanto possibilidade ainda no Livro Primeiro, desde o primeiro capítulo, quando se trata da mercadoria e da contradição entre valor de uso e valor. A crise já está ali enquanto pressuposto.

Os autores não estão buscando as manifestações empíricas da crise, mas o seu conceito. E tal desenvolvimento conceitual é encontrado a partir da dialética. Abandona-se a noção de causalidade e se apresenta a noção de modo de exposição.  Não se trata de uma visão fragmentada, mas de conjunto, pois o conceito de crise é apresentado ao lado do próprio conceito de capital, a partir da própria mercadoria.

O livro está dividido em três capítulos que representam os três tomos de O Capital e os três grandes momentos da exposição dialética. O primeiro capítulo apresenta uma análise das contradições potenciais e abstratas do capital na esfera da produção de mais-valia. No segundo capítulo se investiga essas contradições na esfera da circulação. Somente no terceiro capítulo, quando se avança para o livro terceiro, é que se realiza a conversão das possibilidades formais e abstratas de crise em realidade.

Vale destacar que a perspectiva apresentada por Benoit e Antunes não é apenas dialética, mas, também, revolucionária. Compreendem que junto com o desenvolvimento dos conceitos de capital e de crise também está o desenvolvimento das classes em luta. Os autores não se esquecem do permanente conflito irreconciliável entre capital e trabalho. Ele não está ausente, mas presente, desde o início. Assim, abre-se um caminho para o desenvolvimento de um projeto político de superação do capital, justamente a partir do conceito de crise. Afinal, a crise é o momento em que as contradições encobertas do capital se revelam e a luta de classes emerge na cena política de forma mais clara. A crise significa a abertura de um novo caminho para a construção de uma alternativa para além da sociedade produtora de mercadorias.

A partir dessa análise surge uma mudança substancial na interpretação do problema das crises em Marx. Ao deixar de lado a perspectiva empirista e causal e desenvolver o conceito de crise a partir do modo de exposição, a obra de Benoit e Antunes se mostra extremamente original e significa uma importante inovação na investigação dessa problemática. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição original e que merece ser discutida e analisada por todos os interessados no trabalho de superação do estado de coisas dado.

Carlos Prado – Universidade Federal Fluminense (UFF).

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[DR]

 

Agonística: Pensar el mundo politicamente – MOUFFE (EL)

MOUFFE, Chantal. Agonística: Pensar el mundo politicamente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014.  Resenha de: BONIN, Joel Cezar. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 83-87, dez. 2016/mai. 2017.

A obra em relevo é uma das últimas publicações em espanhol da pensadora política Chantal Mouffe, datada de 2014, com o título de Agonística, pensar el mundo políticamente. A versão utilizada para esta resenha foi traduzida por SoledadLaclau e publicada pelo “Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A”, sendo que a versão original em inglês, foi lançada em 2013 com o título de Agonistics, Thinkingthe World Politically pela editora “Verso”. A obra está dividida em sete capítulos fundamentais, a saber: I –O que é política agonista?; II – Que democracia para um mundo agonista multipolar?; III – Uma aproximação agonista para o futuro da Europa; IV – A política radical hoje; V Política agonista e práticas artísticas (incluindo introdução e conclusão) e mais uma entrevista com a autora. O trabalho aqui desenvolvido se propõe em abordar, em linhas gerais, a temática fundamental do texto, a saber, o agonismo político e assinalar os principais interlocutores de Mouffe em sua pesquisa política.

Diante disso, se faz assaz necessário destacar que a autora em tela é professora de Teoria Políticado “Centro para Estudos da Democracia” da Universidade de Westminster, Londres e autora de vários livros que abordam a temática política dentro do cenário contemporâneo. Sua linha de pensamento pode ser denominada de “agonística”, pois sua visão contempla a ideia de que, para além dos dilemas antagonistas inerradicáveis da política, devemos ponderar e considerar um cenário agonista, no qual não se vê o outro como um opositor/inimigo, mas como um adversário que luta agonisticamente por uma democracia radical e vibrante. Ela aponta para um viés que não é unânime e nem tampouco uníssono, contudo, em suas obras nota-se que o caráter dissensual das disputas políticas é visto como algo salutar para o desenvolvimento de um senso político crítico e sagaz, dissociado de vicissitudes dialéticas entre esquerda/direita ou entre burguesia/proletariado. Dessa maneira, a resenha desse livro visa, diante disso, mostrar as ideias fulcrais da autora e o modo como a mesma desenrola o novelo epistemológico e filosófico de seu pensamento agonista.

De início, no primeiro capítulo, Mouffe tenta demonstrar como já fizera em outras obras132, o que significa, de fato, uma política agonista. Por este prisma, sua abordagem revela o papel preponderante da ideia de hegemonia. Segundo ela, “denominamos ‘praticas hegemônicas’ aquelas práticas de articulação mediante as quais se cria uma determinada ordem e se fixa o significado das instituições sociais. Segundo este enfoque, toda ordem é a articulação temporária e precária de práticas contingentes. As coisas sempre poderiam ser diferentes e toda ordem se afirma sobre a exclusão de outras possibilidades. Qualquer ordem é sempre a expressão de uma determinada configuração de relações de poder. O que em um determinado momento se aceita como a ordem ‘natural’, junto com o sentido comum que a acompanha, é o resultado de práticas hegemônicas sedimentadas” (MOUFFE, 2014, p. 22).

Essa citação nos leva a reflexão de que o conceito de hegemonia é resultado de uma eleição de práticas, isto é, tal assertiva nos leva a ponderação de que aquilo que decidimos como político/antipolítico/apolítico é o resultado de uma criteriosa definição de prioridades que são “optadas” como as mais aceitáveis ou mais eloquentes para o convencimento de um modo de pensar e agirque é mais “forte diante dos outros”. Contudo, nos fica evidente que a configuração das práticas hegemônicas não é algo que ocorre de modo casuístico. O que definimos como hegemonia, segundo os moldes de Mouffe, é algo definido pela maioria ou pelo ato democrático de uma escolha. Porém, essa definição não é permanente e não é definitiva. Ela é volátil e contingente e, por sua vez, sempre suscetível a mudanças.

Diante disso, é essencial que entendamos que o pensamento de Mouffe nos orienta a uma prática de dissenso, pois diante de práticas hegemônicas podemos apresentar condutas contrahegemônicas justamente porque aquilo que consideramos como hegemônico está provisoriamente posto. Além disso, Mouffe compreende que as práticas que envolvem o universo político estão sempre em conflito e essa é a “natureza própria” desse universo, mesmo que cindido em dois: “‘O político’ se refere a essa dimensão de antagonismo que pode adotar diversas formas e que pode surgir em diversas relações sociais. É uma dimensão que nunca poderá ser erradicada. Por outro lado, ‘a política’ se refere a um conjunto de práticas, discursos e instituições que busca estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que sempre são potencialmente conflitivas, já que estão afetadas pela dimensão ‘do político'” (MOUFFE, 2014, p. 22).

Diante do exposto, nos faz necessária uma indagação: mas afinal o que Mouffe quer dizer com essa ideia de antagonismo e agonismo? Se lermos com atenção o parágrafo anterior, podemos compreender o seguinte: o olhar “político” é o olhar do dissenso, da diferença e da antagonia. Esse fato é impossível de ser dirimido ou subsumido no universo dos interesses pessoais, das contendas pelo poder. Contudo, o espaço da “política” é o espaço no qual essas ideias não suplantadas pelo exercício racional do discurso ou da “boa vizinhança”. Eles permanecem, porém, o modo como essas questões são encaradas se modifica. É aqui que o agonismo ganha importância e valor. Se no primeiro conceito, ve-se o outro como um inimigo a ser massacrado ou destruído, no segundo momento, verifica-se a noção da luta de interesses mediados por uma “cadeia de equivalências” nas quais todos possuem o direito à diversidade e à multipolaridade de intenções. Dito de outro modo, se trata de se pensar o mundo para além de uma visão cosmopolita que por inúmeras vezes, se reveste de uma perspectiva eurocêntrica. Parafraseando Mouffe, não se pode pensar o mundo apenas como um universo, como um pluriverso de interesses, todos eles legitimáveis e consideráveis. É nesse ponto que Mouffe critica veementemente a postura liberal de que o campo político é um campo neutro, onde os ditames da razão são os únicos esteios orientadores do debate. As paixões nunca foram e nunca serão eliminadas, pois no campo da disputa pelo poder sempre emergem vozes e atitudes que, supostamente teriam sido superadas pela evolução racionalizada do pensamento e do agir humano.

Segundo a pensadora belga, não vivemos mais os tempos de Maquiavel e Kant, contudo, isso não quer dizer que as vicissitudes de outrora não ecoam mais em nosso tempo. Por isso, ela afirma – com base em Carl Schmitt, uma ideia importante na relação entre amigos/inimigos ou entre nós/eles: “De fato, muitas relações nós/eles são meramente uma questão de reconhecer as diferenças. Porém significa que existe a possibilidade de que esta relação ‘nós/eles’ se converta em uma relação de amigo/inimigo. Isso ocorre quando os outros, que até o momento eram considerados simplesmente como diferentes, começam a ser percebidos como questionando nossa identidade e como uma ameaça a nossa existência. A partir desse momento, como assinalou Carl Schmitt, toda forma de relação nós/eles – seja religiosa, étnica ou econômica – se converte em um locusde antagonismo” (MOUFFE, 2014, p. 24-25).

No decorrer do texto, Mouffe faz vários “links” entre o seu pensamento e de outros pensadores políticos contemporâneos como Badiou, Connolly, Habermas, Virno,Hardt, Negri, etc. Contudo, gostaria de delinear uma visão um pouco mais aprofundada da relação do pensamento mouffeano com os de Virno e Hardt/Negri. No capítulo no qual ela trata da “política radical hoje”, ela aponta os pontos essenciais do trabalho de Antonio Negri e Michael Hardt (Império, Multidão e Commonwealth), que tentam demonstrar que o “império” como fonte de acumulação do capital não está mais territorializado, pois ele se manifesta em todos os cantos do mundo por meio de um modo de apreensão da vida na qual a disciplina se dá de modo biopolítico. É um controle muito mais profundo pois envolve toda a vida das pessoas, desde suas práticas mais comezinhas até o mundo do trabalho. Contudo, se trata de extrapolar esse modo de controle sobre a vida pois visto que não há mais territorialidade e sim conectividade ao redor do mundo que pode-se pensar em alternativas que rompam com esse modelo de controle, por meio de um contra-império, no qual a criatividade e a inventividade busquem formas concretas de viver o mundo político. As ONGs, as associações de grupos minoritários133 são modelos de como isso pode acontecer, pois ligados a ambientes virtuais de debate, nascem os modelos contrahegemônicos de inserção e discussão social. Isto posto, pode-se dizer que a interconexão virtual engendra mudanças reais na análise de “visão de mundo” de seus participantes. Se, contudo, tais possibilidades de ação prática não se fazem possíveis, a “saída pela tangente” deve ser o êxodo e a deserção, como meios de distanciamento da vida pública.

Por outro lado, o pensamento do filósofo italiano Paolo Virno opõe-se em alguns aspectos ao pensamento de Negri e Hardt, pois ele não consegue vislumbrar outra alternativa para a vida social que não seja a deserção. “[…] Se na era disciplinária, a sabotagem constituía a forma fundamental de resistência, […] na era do controle do império, esse papel é desempenhado pela deserção. De fato, considera que é por meio da deserção – mediante a evacuação dos espaços de poder – que se podem ganhar as batalhas contra o império. A deserção e o êxodo constituem […] uma forma poderosa de luta de classes contra a pósmodernidade imperial” (MOUFFE, 2014, p. 81).

Entretanto, a análise de Mouffe é bem diferente nesse quesito, pois o que ela considera como fundamental não é a deserção dos espaços de poder, mas a sua verdadeira e legítima posse por parte de todos os envolvidos como se vê na nota de rodapé da página anterior. Antes ainda, afirma Mouffe, faz-se necessário que uma visão renovada do papel e do valor dos espaços públicos de democracia. E aqui ela volta ao ponto inicial: é preciso que haja

dissenso, luta, desentendimento se preciso for, pois somente por meio desse movimento contínuo de retorno ao debate democrático, por vezes consensual, mas mais ainda dissensual que os conflitos podem encontrar um espaço adequado de desenvolvimento. Contudo, ela reitera: a extinção, deserção ou eliminação do Estado não é o caminho que levará as sociedades à plenitude de uma democracia vibrante e radical. Em verdade, a única radicalidade conclamada por Mouffe é a da participação dissensual agonista. Dito de outro modo, trata-se de repensar as possibilidades políticas de nosso tempo por um viés constantemente rechaçado por políticas liberais ou neoliberais, o de que só possível a vivência plena da política num ambiente que seja capaz de “incluir o outro na sua diversidade”: eis um caminho possível, segundo Mouffe, para uma vida política que aponta possibilidades, pois já compreende de antemão a impossibilidade de uma erradicação total do antagonismo, mas que nas brechas, nos interstícios do sistema político-econômico luta (agoniza134, no sentido grego do termo) por uma vida democrática onde todos são iguais e dignos dessa igualdade.

Notas

132 É fundamental lembrar também que a obra em relevo é uma “revisitação” e atualização de outras obras por ela publicadas, tais “En torno a loPolitico” e “El retorno delo Político”.

133 […] Não se pode definir o adversário em termos amplos e gerais como “império” ou “capitalismo”, senão em termos de pontos nodais de poder que devem ser atacados e transformados com o fim de criar as condições de uma nova hegemonia. Se trata de uma “guerra de posição” (Gramsci) que deve ser lançada em uma multiplicidade de lugares e isto exige uma sinergia entre uma pluralidade de atores: movimentos sociais, partidos e sindicatos. (MOUFFE, 2014, p. 85, grifo meu).

134 Nesse ponto, Mouffe aponta uma ideia fundamental de William Connolly e se apropria dela: “Connolly está influenciado por Nietzsche e tentou tornar compatível a concepção nietzscheana do ‘agón’ com a política democrática”. Reclama uma radicalização da democracia, que resultará do cultivo por parte dos cidadãos de um novo ethosdemocrático de compromisso, que os levará a entrar em uma disputa agonista a fim de impedir toda forma de fechamento. Para esta perspectiva resulta central a ideia do ‘respeito agonista’ que Connolly percebe surgindo da condição existencial compartilhada da luta pela identidade e moldada pelo reconhecimento de nossa finitude. O respeito agonista representa para ele a virtude cardeal do pluralismo profundo e é a virtude política mais importante em nosso mundo pluralista contemporâneo. (MOUFFE, 2014, p. 31, grifos no original)

Joel Cezar Bonin – Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).

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Platão e as temporalidades: a questão metodológica – BENOIT (EL)

BENOIT, Hector. Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: ANTUNES, Jadir. Eleuthería, Campo Grande, v. 1, n. 1, p. 91-97, dez. 2016/mai. 2017.

livro Platão e as temporalidades: a questão metodológica (São Paulo -SP: Annablume, 2015) de Hector Benoit é um livro extremamente claro e didático nos argumentos a favor de uma compreensão de Platão, e de todas as grandes filosofias, a partir de sua lexis imanente, i.é, a partir da narrativa dramática imanente ao texto, a partir do sentido temporal interno e arquitetônico do texto, desconsiderando todas as determinações externas e, por isso, superficiais, como a datação cronológica e a estilometria, na elaboração de determinada grande obra filosófica.

Hector Benoit é extremamente claro e preciso em mostrar os vários níveis e temporalidades do discurso filosófico de Platão, desde seus momentos mais simbólicos e alegóricos até seus níveis mais abstratos e propriamente conceituais, mostrando a ausência de sentido nas leituras dominantes e tradicionais que pretendem encontrar, e revelar, em Platão, a existência de uma teoria ou doutrina pronta, fechada, dogmática, e purificada de toda referência não propriamente conceitual contida no interior dos diálogos. O livro de Hector Benoit não ensina apenas a ler metodológica e corretamente Platão, mas a todos os grandes filósofos. Por isso, seu método parece ter uma aplicação universal –ao menos para as grandes filosofias.

O livro é uma crítica radical ao modo dominante de se fazer filosofia, ou, mais precisamente, ao modo dominante de se entender as grandes filosofias. O modo dominante de se fazer filosofia e se compreender os grandes filósofos tem sido o analítico, em seus vários matizes, tem sido o método de divisão de um texto em suas menores partes, de análise deste texto fatiado e  fragmentado em seus menores detalhes, sem, contudo, relacionar estes fragmentos com o conjunto e o sentido interno da obra, da história de vida do autor e dos grandes conflitos filosóficos e históricos enfrentados por ele.

Os métodos historiográficos, biográficos, estilométricos, e todos os demais métodos externos empregados no entendimento de uma grande filosofia, são a condenação ao esquecimento e à confusão de toda grande obra filosófica e o livro de Hector Benoit deixa isto muito bem claro em relação à grandiosa obra de Platão. Ainda que a prática de se estudar um texto possa querer levar em consideração todos os seus aspectos empíricos, é preciso encontrar nesta leitura a ordem imanente, dramática e conceitual, é preciso encontrar a ordem própria ao discurso filosófico do autor que considere esta obra como a obra de uma vida.

O livro de Hector Benoit nos ensina não apenas a estudar corretamente um texto filosófico, mas a entender corretamente o que seria a filosofia. Seria a filosofia, uma ciência, uma episteme, ou uma arte? Seria a filosofia, uma obra destituída de esforço, de paciência, de tempo, sem relação alguma com a experiência de vida, com a experiência política, com a experiência em geral de seu autor? Seria ela, uma obra produzida exclusivamente pelo intelecto do filósofo, pela genialidade e pureza de sua alma racional, seria a filosofia, por isso, uma obra sem qualquer relação com o universo simbólico das representações de uma época e de seus leitores, sem qualquer relação com a experiência e a vida prática destes mesmos leitores e autores?

O livro de Hector Benoit nos ensina que a filosofia estaria, por este aspecto, muito mais próxima da arte do que da episteme. Neste aspecto, Aristóteles não pareceria ter algo de platonista, porque para ele a filosofia não pareceria possuir qualquer relação com a arte e a experiência de vida de seu autor. A questão fundamental exposta por Hector Benoit parece ser exatamente a crítica ao modo aristotélico de se fazer filosofia, ao modo de se estudar um autor através de recortes despedaçados de sua obra convenientes à construção de sua própria obra.

O modo socrático de exposição, o dialógico poético, parece ser sempre mais complicado politicamente do que a prosa corrida de Aristóteles. Galileu Galilei que o diga. Dizem que a causa da desgraça de Galileu não teria sido tanto as suas concepções heliocêntricas sobre o universo, mas, sim, porque o Papa fora convencido por seus assessores de que o personagem Simplícius, personagem ridicularizado por Galileu como defensor do sistema ptolomaico, representaria no Diálogo sobre os dois mundos a posição do Papa e da Igreja. Por este motivo, Galileu teria sido condenado à prisão. Numa narrativa de tipo aristotélico não há, geralmente, personagens da vida real, não há condenação destes personagens, não há a vida atrapalhando o pensamento. Por isso, a narrativa lógica e linear aristotélica parece ser sempre menos perigosa e ofensiva politicamente que os diálogos vivos e dramáticos platônicos.

De acordo com o livro de Hector Benoit, a filosofia estaria mais próxima da arte do que da episteme, porque uma obra filosófica é construída da mesma maneira que se constrói uma obra de arte, como a obra de um artesão-operário. O importante na análise desta obra não consiste tanto em compreender cada uma de suas peças isoladamente, mas, sim, o conjunto e o sentido interno e vivo desta obra. Numa obra de arte, as diferentes peças do conjunto não precisam necessariamente ser fabricadas na ordem da montagem, do funcionamento e da importância desta peça para o conjunto. Cada peça pode ser fabricada, até certo ponto, de maneira totalmente independente das outras peças. A peça principal, por exemplo, pode ser fabricada por último em relação a todas as outras peças.

O importante no estudo de uma obra de arte, por isso, não é compreender a ordem de fabricação destas peças no tempo, a ordem cronológica desta obra, mas, sim, a posição e o papel de cada peça fabricada no conjunto da obra construída. Já imaginastes montarmos um carro na ordem da fabricação de suas peças no tempo, segundo a ordem do tempo em que cada peça individual foi fabricada? Evidentemente, não teríamos um carro ao final do processo, mas apenas um agregado linear de peças sem sentido algum.

A leitura e interpretação de Hector Benoit sobre os diálogos de Platão possuem como premissa fundamental as mesmas premissas e fundamentos da ordem encontrada nas obras feitas pela mão humana. Não há sentido algum, segundo sua interpretação, querer estudar os diversos diálogos de Platão segundo a ordem cronológica de sua feitura. Não há sentido racional algum querer dispor esta ordem segundo a ordem de sua produção temporal externa, segundo o momento em que esta obra foi redigida empiricamente. Uma disposição dos diálogos platônicos segundo esta ordem alógica corresponderia à disposição, e montagem, de nosso carro segundo a ordem do tempo de fabricação de suas peças.

O entendimento correto da obra platônica, segundo Hector Benoit, é o entendimento que compreende esta obra como uma obra dotada de beleza plástica e poética, como uma obra que só revela seu sentido e direção se seguirmos o sentido e a direção contidos e apontados pelo próprio Platão no interior dos próprios diálogos, no interior de sua sequencia dramática e poética.  O racional, o poético/poiético, consiste, por isso, em compreender estes diálogos segundo sua ordem dramática interna, segundo sua construção conceitual interna, segundo o desenrolar temporal interno à própria trama dramática dos diálogos, e não à suas tramas e tramoias cronológicas externas.

O livro de Hector Benoit, por isso, transmite esta importante lição metodológica: de compreendermos, até certo ponto, uma obra filosófica como a obra de arte de um artesão, de um artesão do pensamento. Digo até certo ponto porque o artesão comum realiza uma obra que desde o princípio já se encontra pronta e acabada no pensamento, somente mais tarde, com a prática, esta obra ganha realidade como coisa feita, enquanto que o filósofo, por sua vez, não possui, desde o começo de sua trajetória filosófica, uma ideia clara e pronta do que quer fazer, de onde quer chegar e quais caminhos irá percorrer. Esta ideia vai sendo iluminada e ganhando sentido na mesma medida em que a obra vai sendo realizada. Por isso, são normais as frequentes idas e vindas do filósofo, as frequentes revisões, correções, reedições e aperfeiçoamento de sua obra. Fato que também geralmente ocorre com os produtos da mão humana. O lançamento, a primeira edição da obra é, por isso, geralmente, inferior à obra lançada nos anos seguintes.

Neste sentido, argumenta Hector Benoit, o que seriam os personagens de Platão, senão diferentes operários-artesãos, diferentes artesãos do pensamento, diferentes artesãos que, em conjunto e de maneira mais ou menos combinada, trabalham em vista de uma obra comum, a obra de uma vida, da vida dos que começaram e morreram durante sua construção, e da vida das novas gerações que surgirão para continuá-la. Quem seria Platão nesta história senão um mero coordenador, um mero condutor e dirigente, um mero engenheiro do pensamento e, como tal, um artesão, um operário qualificado, o operário-chefe de uma obra coletiva.

Como na construção dos grandes templos anônimos da cidade, que não levam o nome do engenheiro chefe, de seu arquiteto, onde cada operário parcial trabalha em vista de uma obra coletiva que ultrapassa o tempo de suas próprias vidas, não seria a obra de Platão semelhante ao Parthenon e todas as obras coletivas da cidade? Não seria, assim, a obra de Platão equivalente à obra de Phidias, uma obra da cidade, de seus operários, de seus arquitetos, uma obra sem autoria definida, uma obra que conta com o esforço, o trabalho e a participação de todos os personagens da cidade, de todos os seus artesãos, cada um com sua ocupação específica, onde alguns participam como soldados, outros como sacerdotisas, adivinhos, jovens, anciãos, anfitriões, sofistas, políticos, filósofos de profissão, visitantes estrangeiros e assim por diante?

O livro metodológico de Hector Benoit é muito útil e instrutivo para todos os estudiosos da filosofia que desejam acordar da sonolência metafísica moderna. A metafísica e a analítica, a pretensão de encontrar a essência e a verdade em um pedaço estilhaçado da realidade, a metafísica em todos os seus múltiplos modos, como o racionalismo, o positivismo e o sociologismo, domina por inteiro nossa filosofia. As diversas “filosofias”, as filosofias da linguagem, do conhecimento, da ciência, da política, da arte, da ética e assim por diante, não passam de formas mascaradas de metafísica, de formas analíticas de se compreender a filosofia e a tarefa do filósofo. Estas diversas “filosofias” não são mais do que epistemes, não são mais do que formas aristotélicas modernizadas de se fazer e se compreender a filosofia.

O livro de Hector Benoit nos leva a pensar que todos estes métodos modernos de se fazer filosofia estariam inteiramente impregnados pelos princípios práticos da época moderna: a negação do trabalho como a forma própria e fundamental da vida humana coletiva, a visão meramente negativa do trabalho, do trabalho como roubo do tempo destinado ao prazer e ao ócio. O hedonismo que domina nossa prática filosófica moderna é inteiramente incompatível com o esforço que vem do trabalho e da arte, com o esforço da leitura lenta, sistemática e total de uma obra filosófica, com o esforço do labor exercido pelo pensamento, por isso, para este hedonismo, é necessário abreviar todo esforço em vista do prazer, é preciso construir atalhos que evitem o desperdício de tempo e esforço do leitor, é preciso construir filosofias fragmentadas, fáceis, superficiais, passageiras, ao gosto do mercado editorial e do senso comum burguês.

A crítica de Hector Benoit a Goldschmidt e ao método estruturalista de interpretação de um grande autor e de uma grande filosofia parece clara em associar este método ao método do estilhaçamento e da confusão, próprio das práticas filosóficas modernas.  Pelo caminho de Goldschmidt parece ter seguido toda a história da filosofia. Para o cristianismo era necessário batizar e cristianizar todos os grandes filósofos, especialmente Platão e Aristóteles, era necessário negar o paganismo filosófico antigo e construir uma filosofia que justificasse as crenças religiosas cristãs. Para o mundo moderno trata-se não mais de construir uma filosofia, não mais de criticar a filosofia, mas de destruir a filosofia, de transformá-la em coisa fácil de ser feita, em coisa feita pelas mãos e cérebro de um único gênio, de transformá-la num ramo da ciência e, como tal, num ramo da indústria do entretenimento, da fantasia e da ideologia.

Se para Hector Benoit, o modo filosófico de se fazer filosofia em Platão deve ser compreendido a partir da compreensão do modo de se fazer as grandes obras coletivas da mão humana, para o mundo moderno, pelo contrário, trata-se de radicalizar a visão aristotélica de filosofia, de separá-la do trabalho, da arte e da vida em geral. Para o mundo moderno, como para Aristóteles, o trabalho é uma coisa negativa, é desperdício de tempo e de vida, é roubo do tempo destinado ao ócio e ao prazer, por isso deve ser erradicado da vida humana e destinado apenas a escravos, a homens inferiores, sem logos e sem episteme.

Por essa visão poiética de Platão, de Platão como um operário do pensamento, operário do logos que é ação de pensar e ação de fazer, a interpretação de Hector Benoit é um alento e sopro de vida sobre nossas almas cansadas desta monotonia e lenga-lenga filosófica moderna, desta filosofia que padece lentamente a cada dia nas teias da lógica e da linguagem, desta filosofia que tem se tornado um agregado mecânico de peças mortas, de peças fatiadas e sem organicidade, de peças isoladas e sem conexão com a totalidade da vida, desta filosofia que já não possui qualquer negatividade e impulso vital criativo.

O livro de Hector Benoit é mais do que um livro de interpretação de Platão, o livro é uma crítica radical deste modo moderno de se fazer filosofia e uma luz para nossas almas românticas e poéticas, presas às cadeias da tradição positivista e da metafísica em todos os seus modos de existência. A filosofia, para ser filosofia, não pode permanecer presa às cadeias da lógica e dos métodos quantitativos e segmentados da ciência. Para ser filosofia, ela tem que ser poesia, tem que ser arte e existir como obra que existe na totalidade da vida e em vista desta mesma vida.

O livro de Hector Benoit é uma crítica destruidora a toda a tradição filosófica que acredita ser o logos uma coisa, uma propriedade, uma substância que pode ser tomada e revelada isoladamente ao gênio individual de cada autor. O logos, como nos diz Hector Benoit lembrando Heráclito, não é substância, não é coisa nem propriedade. O logos é koinonia, é o-que-é-em-comum, é o que se manifesta no ser-em-comum, como nas grandes obras coletivas feitas pelas mãos e cérebros humanos. Nada de grandioso pode ser feito isoladamente – é o que nos ensina o logos heraclitiano e o Platão revelado por Benoit: nem mesmo uma obra filosófica. Os filósofos não constroem nada sozinhos, os filósofos são somente aqueles que sabem que tudo-é-ser-em-comum e querem, com seu intelecto e esforço, juntar-se ao ser-em-comum de sua época.  O filósofo não trabalha nem constrói sua obra isolado em seu gabinete de estudos. Para ser filósofo e fazer filosofia é preciso sair para o mundo e misturar-se com ele: como Sócrates em seus diálogos mundanos e Platão em suas aventuras políticas pelo Mediterrâneo. Nesta construção coletiva são necessários não apenas cérebro e intelecto, são também, e fundamentalmente, necessários braços e energia física humana para fazer do Parthenon da Filosofia uma realidade tal qual foi no passado o Parthenon de Phidias.

O livro de Hector Benoit é uma obra revolucionária que merece, mais do que nunca, ser lido e discutido por todos os amantes das grandes filosofias, destas filosofias que têm como meta a reconstrução completa e impiedosa da realidade segundo o que-é-em-comum. O livro deve ser lido por todos aqueles que se compreendem como operários de uma obra e de um mundo em construção, que se compreendem como membros menores de uma grande obra coletiva que transcende a vida e a vaidade de toda existência idiotizada pela propriedade privada, pelo empilhamento de dinheiro, pela desmedida da ganância e pela metafísica. Nesta obra e projeto coletivo, cada personagem participa de acordo com suas próprias forças e capacidades, alguns com o cérebro, outros com os braços e outros com a poesia e o sonho romântico dos grandes filósofos do passado –como parece ser o caso de Hector Benoit.

Jadir Antunes – Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

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Revista História e Culturas. Fortaleza, v.4, n.8, 2016.

Les Cahiers de Muséologie. Liège, n.0, [2016].

  • Les Cahiers de Muséologie n° 0
  • Avant-propos 1
  • Articles
  • Le « Mouseion d’Epictéta ». Considérations sur la polysémie du mot musée 3-20
  • André Gob
  • Émile Guimet. Une entreprise muséale hors du commun 21-38
  • Aurore Francotte
  • Carnets de visite
  • « Work/Travail/Arbeid »: composition chorégraphique pour une exposition. Expérience de visite 40-45
  • Marjorie Léonard
  • Comme un cristal posé sur l’eau. Le Musée des arts asiatiques à Nice (France) 46-52
  • André Gob
  • Notes de lecture
  • « L’artiste commissaire » de Julie Bawin 54-57
  • Pierre-Jean Foulon
  • « Collecting the contemporary » de Owain Rhys et Zelda Baveystock 58-61
  • Laurence Provencher St-Pierre
  • Les aventures d’Émile Guimet (1836-1918), un industriel voyageur de Hervé Beaumont 62-65
  • Pierre-Jean Foulon
  • Dans la marge
  • Brèves remarques à propos d’une approche ethnologique du musée 67-73
  • Laurence Provencher St-Pierre
  • Rendre compte de la société aujourd’hui 74-88
  • Cécile Quoilin & Jean-Louis Postula

Ecología política en Chile: naturaliza, propriedade, conocimiento y poder – BUSTOS et al (EA)

BUSTOS, Beatriz; PRIETO, Manuel; BARTON, Jonathan (Compiladores). Ecología política en Chile: naturaliza, propriedade, conocimiento y poder. [Sn.]: Editorial Universitaria, 2015. Resenha de: GIMINIANI, Piergiorgio;  JACOB, Daniela. Estudios Atacameños, San Pedro de Atacama, n.53, nov., 2016.

El libro “Ecología política en Chile: naturaleza, propiedad, conocimiento y poder”, editado por Beatriz Bustos, Manuel Prieto y Jonathan Barton, reúne a doce investigadores afiliados a universidades nacionales e internacionales, que comparten un interés en el estudio de los procesos eco-políticos que están afectando Chile. Los nueve capítulos que componen este libro dan fe de una gran heterogeneidad de enfoques analíticos y de las localidades de investigación. A pesar de su diversidad, los capítulos de “Ecología Política en Chile” se encuentran organizados a partir de una reflexión conceptual sobre los elementos claves para establecer un análisis comparativo y un diálogo entre las distintas posibilidades de investigación abiertas por la ecología política. Los editores proponen pensar la ecología política a partir de cuatro dimensiones: naturaleza, propiedad, conocimiento y poder. Al problematizar estas cuatro dimensiones, el libro nos invita a preguntarnos sobre cuáles son las naturalezas que las prácticas de uso y conservación de recursos naturales producen desde el punto de vista tanto ontológico como epistemológico.

El enfoque hacia la producción ontológica y epistemológica de la naturaleza en cuanto proceso político es una de las principales novedades del volumen. Sin embargo, no es la única. En los debates analíticos y políticos existe una tendencia a reducir la ecología política a oposiciones dicotómicas, que obscurecen la fragmentación e hibridación de lo político en las relaciones de poder en juego en los conflictos ambientales. Los capítulos de este libro, en particular los capítulos de Palomino-Schalscha y de Román y Barton, nos invitan a considerar el conflicto socio-ecológico más allá de categorías binarias, demostrando el carácter inmanentemente político de estos procesos. Esto va acorde al planteamiento de los autores sobre la ecología política como una postura que “rompe con el mito de la naturaleza como fenómeno prepolítico” (50). La reflexión sobre lo político avanzada por los autores de este libro, nos ayuda a reconocer las especificidades de este fenómeno en la ideología y lógica neoliberal. Esta consideración es inevitable debido a que cualquier estudio de ecología política en Chile, un bastión del neo-liberalismo desde el comienzo de la dictadura militar en 1973, hace evidente los mecanismos particulares de esta ideología en los procesos extracción y, en menor medida, de conservación de recursos naturales en la esfera pública como privada. A diferencia de lo que pueda pensarse en un primer momento, el neoliberalismo no es simplemente la ausencia de Estado, sino que más bien se caracteriza por la reconfiguración de la gobernanza pública según modelos de lógica financiera, (y ya no la teoría política o filosofía moral) con el fin de sustentar la expansión del mercado, en este caso, de recursos y servicios naturales. A pesar del evidente énfasis de la gobernabilidad medio ambiental neoliberal en el extractivismo, el neoliberalismo en el campo ecológico (como en tantos otros) no es un fenómeno exento de contradicciones. El ejemplo más evidente es el así llamado “neoliberalismo verde”, que mediante la propiedad privada de territorios coarta el extractivismo de recursos, iniciativa que va acorde a las lógicas y expansión del mercado. Como bien señala Palomino-Schalscha en su capítulo sobre los senderos pewenche Trekaleyin en el Alto Bío-Bío, dentro de las mismas lógicas neoliberales, hay espacio para la reapropiación de estas por parte de la sociedad civil, dando espacio a la contestación con el efecto de producir espacios de “aguante”, como fue propuesto por la antropóloga Elizabeth Povinelli (2011).

Otro aspecto llamativo de este libro es la apertura de un espacio de diálogo teórico entre corrientes de pensamiento que no suelen entrar en relación. Los capítulos de este libro se inspiran tanto en los principios de la acumulación por desposesión desarrollado por David Harvey (2003) y en general por la geografía neo-marxista a las corrientes post-humanas, inspiradas en el trabajo de Donna Haraway (2008) y Bruno Latour (2008) en el estudio de la ciencia y tecnología. La relación entre estas dos corrientes permite ver cómo su conjunción es solo en apariencia contradictoria. Por un lado, un enfoque estructural nos permite ver quién produce e impone modelos epistémi-cos dominantes sobre la naturaleza; por otro lado, una perspectiva post-humanista nos invita a reconocer cómo el conocimiento en sí mismo, es un proceso de construcción ontológico donde resulta difícil plantear una clara distinción entre conocimientos científicos y sociales. Ambas posibilidades coexisten en conflictos medioambientales, como el desastre ambiental provocado por la celulosa Arauco que vio la pérdida de vida de cien Cisnes de Cuello Negro en Valdivia, presentado por Sepúlveda y Sundberg, y el desarrollo de enfermedades causada por la sobrepoblación de salmón comercial en todo el sur de Chile analizado por Bustos. El estudio de estos tipos de casos se vuelve necesario por una reflexión crítica constante sobre la cultura del experticia, como un campo de saber a -politicizado que caracteriza la producción de conocimiento y políticas públicas en Chile.

Otras dos novedades relevantes de este libro son la pro-blematización del concepto de propiedad en las disputas medioambientales y la relación entre colonialismo y ex-tractivismo en juego, en los procesos eco-políticos contemporáneos en Chile. Los capítulos de Manuel Prieto y David Tecklin, demuestran como la propiedad es una relación de poder práctica más allá de su carácter legal. De esta forma, la propiedad aparece tanto como una imposición gubernamental y como un campo político abierto a fracturas, contradicciones y resistencias. La relación entre extractivismo y colonialismo es evidente en consideración de una larga historia de expropiación de recursos naturales hacia los pueblos originarios en Chile, legitimizada, principalmente, por mecanismos legales de propiedad como el de la terra nullius. La faceta opuesta del racismo ambiental es la penetración de ideas y símbolos asociados a los pueblos indígenas en el movimiento ambientalista, un fenómeno ampliamente documentado a nivel global (Tsing 2005). A pesar del riesgo implícito de esencializar las sociedades indígenas, el conocimiento de sus nociones eco-cosmológicas pueden contribuir al problemático reconocimiento de la diversidad cultural en Chile (o más bien su falta) y al desarrollo de nuevos valores medioambientales universales, un punto planteado por Rozzi en su capítulo sobre ética biocultural.

A pesar de las contribuciones que se han hecho explícitas, hay una interrogante que inevitablemente aparece al leer el texto ¿Hasta qué punto este libro sólo aplica marcos teóricos globales, provenientes de centros de producción de conocimiento a Chile, que vendría a ser periférico a estos? De hecho, rellenar un vacío analítico en un lugar como Chile, puede parecer inicialmente como el trabajo típico de traducción de conceptos desarrollados en los centros de una particular disciplina, en este caso los departamentos de geografía en las universidades del “norte”, y la aplicación de esto a un contexto supuestamente periférico. La centralidad de la traducción entre centros y periferias del saber académico ha sido destacada en los estudios coloniales para recalcar cómo ciertos lugares son destinados a ser casos de estudio y otros centros de producción de teoría. Es innegable que en este libro hay un interés loable en presentar al lector chileno e hispano hablante, algunas de las discusiones globales contemporáneas en geografía desarrolladas principalmente en el mundo anglófono. Sin embargo, la comunicación generada entre los contribuidores de este libro, de distintos contextos académicos, demuestra implícitamente no solo lo que el estudio del caso chileno puede beneficiar en términos de comprenderse a sí mismo mediante marcos teóricos globales, sino también lo que la comunidad académica y política global puede aprender de Chile. De esta manera, algunos conceptos que han tenido su génesis en el norte vienen a desterritorializarse y a enriquecerse con otras experiencias, dialogando y modificando el modo en que aparecen en el lugar de su génesis estos mismos conceptos.

Más allá de las contribuciones y discusiones teóricas de este libro, que hemos listado anteriormente, vale volver también a lo planteado por Tom Perreault en el prefacio del libro “el conocimiento académico crítico sirve tanto para la crítica como para la acción” (9). Esta frase, estrechamente vinculada a los orígenes de la ecología política y a su relación a los movimientos sociales, deja desde un comienzo este libro como una promesa inacabada. La función crítica está cumplida con creces, ahora queda esperar a ver cómo estas ideas son capturadas y resignificadas en las luchas ambientales que se están dando en el Chile actual, para sólo de este modo pasar a la tan ansiada acción.

Referências

Latour, B. 2008. Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor-red. Buenos Aires: Manantial.         [ Links ]

Harvey, D. 2003. The new imperialism. Oxford University Press.         [ Links ]

Haraway, D. J. 2008. When species meet. Vol. 224. U of Minnesota Press.         [ Links ]

Povinelli, E. A. 2011. Economies of abandonment: Social belonging and endurance in late liberalism. Durham, NC: Duke University Press.         [ Links ]

Tsing, A. L. 2005. Friction: An ethnography of global connection. Princeton University Press.         [ Links ]

Piergiorgio Di Giminiani – Programa de Antropología y CIIR (CONICYT/FONDAP/15110006), Pontificia Universidad Católica de Chile. Avenida Vicuña Mackenna 4860, Macul, Santiago (pdigiminia@uc.cl).

Daniela Jacob – CIIR (CONICYT/FONDAP/15110006), Pontificia Universidad Católica de Chile. Avenida Vicuña Mackenna 4860, Macul, Santiago (dpjacob@uc.cl).

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[IF]

Blended: usando a inovação disruptiva para aprimorar a educação | Michael B. Horn e Heather Staker

 

Resenhista

Gislaine A. R. da Silva Rossetto

Adair Aparecida Sberga


Referências desta Resenha

HORN, Michel B.; STAKER, Heather. Blended: usando a inovação disruptiva para aprimorar a educação. Porto Alegre: Penso, 2015. Resenha de: ROSSETTO, Gislaine A. R. da Silva; SBERGA, Adair Aparecida. Revista Aprendizagem em EAD. Taguatinga, v.5, n.1, novembro, 2016.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Ensino híbrido: uma inovação disruptiva?: uma introdução à teoria dos híbridos | Clayton M. O. Christesen, Michael B. Horn e Heather Staker

 

Resenhista

Chris Alves da Silva


Referências desta Resenha

O CHRISTENSEN, Clayton M.; HORN, Michel B.; STAKER, Heather. Ensino híbrido: uma inovação disruptiva?: uma introdução à teoria dos híbridos. EUA: Clayton Christensen Intitute, 2013. Resenha de: SILVA, Chris Alves da. Revista Aprendizagem em EAD. Taguatinga, v.5, n.1, novembro, 2016. Acesso apenas pelo link original [DR]

Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto – CASSATA (HCS-M)

CASSATA, Francesco. Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto. Turim: Giulio Einaudi, 2015. 130p. Resenha de: PIETTA, Gerson. Eugenia: uma ciência estigmatizada. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23  supl.1 Rio de Janeiro Dec. 2016.

Foi lançado em 2015, pela editora Giulio Einaudi, o livro Eugenetica senza tabú: usi e abusi di un concetto, de Francesco Cassata, professor do Departamento de Filosofia, História e Geografia da Universidade de Gênova. Cassata tem trajetória significativa no que diz respeito a pesquisas e produções acerca de eugenia, raça e genética no contexto italiano. O livro é organizado em três capítulos: o primeiro discute o processo de nazificação da eugenia e de banalização do nazismo; o segundo propõe um modelo de descontinuidade no que se refere a um tabu negativo quanto aos usos da eugenia no pós-1945; o terceiro capítulo discute a inadequação heurística do conceito de “retorno à eugenia”.

Eugenetica senza tabú analisa como se produziu no debate público italiano um aparato discursivo hostil em relação à biomedicina e à genética contemporâneas, produzido, em tese, a partir do caráter negativo que o termo “eugenia” adquiriu após a experiência nazista. A eugenia passou a ser vista como sinônimo de pseudociência reacionária, sexista, racista e antissemita, além de fonte de violência e discriminação, interpretada em todas as especificidades históricas, entre elas a italiana (p.4). Tal interpretação deixa de lado definições conceituais como as de Daniel J. Kevles (1985), Mark Adams (1990) e Nancy Stepan (2005), pioneiros no estudo da história da eugenia, que distinguiram variantes da ciência eugênica a partir de ligações com diferentes contextos nacionais ou regionais. Essa historiografia, à qual a obra de Cassata se associa, reforça a essência não monolítica da eugenia e seu caráter multiforme, nas variantes políticas, sociais e culturais.

Para desconstruir a visão estigmatizada do termo “eugenia” no debate público, Cassata cita como exemplo seu uso pelo movimento sionista em prol do novo hebreu ou mesmo seu caráter modernizante e tecnocrático que atraiu o interesse de grupos distintos como os novos liberais, o fabianismo britânico, as sociais-democracias alemã e escandinava, o progressismo americano, o radicalismo e o comunismo francês. Além da eugenia bolchevista e reformista, chama atenção seu uso por grupos feministas, demonstrando as várias orientações ideológicas e políticas possíveis. Em contraposição aos usos anglo-saxões e nórdicos, como as esterilizações e os exames pré-nupciais, o autor enumera os usos do conceito no mundo latino: a assistência materna e infantil, a medicina social preventiva, o natalismo demográfico, o controle biotipológico e endocrinológico (p.7).

O interesse do autor não é produzir uma história sintética da eugenia, mas refletir sobre o “uso público do conceito, seus tropos, suas contradições e suas funções” (p.7). Segundo Cassata, no debate público italiano houve um movimento de nazificação do conceito de “eugenia” a partir do processo de Nuremberg, ocorrido entre 1946 e 1947, e da conclusiva relação entre genética médica e os crimes de Auschwitz. O autor propõe uma descontinuidade em relação ao tabu da eugenia, que, para ele, não ocorreu com o fim da Segunda Guerra Mundial, e sim no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Ou seja, até a segunda datação, na Itália, a eugenia possuía significado positivo, ligado aos aconselhamentos genéticos na esfera da saúde pública.

O autor faz crítica à forma como o reductio ad Hitlerum – expressão cunhada pelo filósofo alemão Leo Strauss – opera duplamente nos autores André Pichot e Rinhard Weikart, seja pela redução do termo “eugenia” ao contexto nazista e sua ligação ao racismo e ao antissemitismo, seja pela banalização e descontextualização do conceito, interpretado como pseudociência e privado de sua dimensão racional. Há também a reflexão em torno da representação construída no debate público, em que os eugenistas italianos são tidos como aceitáveis, e os eugenistas alemães como reprováveis. Ou seja, em contraposição à eugenia nórdica coercitiva, criou-se a ideia de uma eugenia latina mais branda: católica, sem excessos, moderada e humana, com práticas ligadas à hidroterapia, helioterapia, eletroterapia, aos banhos termais, à biotipologia ortogênica e à endocrinologia de Nicola Pende (p.26). O autor reforça que foi excluída do debate público a campanha racista e antissemita de Pende, que a defendeu em meados de 1930.

Cassata afirma que o uso obsessivo da analogia nazificante da eugenia produziu uma contra-argumentação falaciosa, apontando que o fim da Segunda Guerra Mundial, a descoberta de Auschwitz e o processo dos médicos de Nuremberg teriam inaugurado uma nova era dominada pela recusa de múltiplos preconceitos, seja de raça, de classe ou de gênero, e pela afirmação de um consentimento livre e esclarecido na esfera da reprodução. Utilizando-se de interrogações de Carlo Alberto Defanti, o autor reflete: seria correto falar em colapso do eugenismo? De um lado, menciona o autor, houve a emergência de uma genética, entre 1920 e 1930, que teve como modelo uma eugenia reformadora, solidamente estabelecida sobre a matemática mendeliana e politicamente hostil ao racismo e ao classicismo da eugenia ortodoxa. Por outro lado, a eugenia ortodoxa, coercitiva e violenta, prosseguiu até a década de 1960, como no caso da Carolina do Norte.1 Fica evidente, para Cassata, que, depois da Segunda Guerra Mundial, a eugenia recontextualizou-se em um processo histórico gradual e complexo, presa a ambiguidades e contradições.

No trabalho de Casssata, além da emergência do que é conhecido como “aconselhamento genético” (genetic counseling), o desenvolvimento de controle médico de duas patologias genéticas é considerado historicamente relevante para compreender a transformação do conceito de “eugenia”: a fenilcetonúria e a talassemia. Isso porque a forma de pensar maneiras de lidar com as patologias havia se alterado: de uma forma ortodoxa e coercitiva de eugenia – considerada insensata moral e cientificamente – para uma forma de eugenia mais sensível e humana.2 A partir da pesquisa de Lionel Penrose, aponta Cassata, foi possível uma mudança substancial da eugenia para a genética humana na abordagem da fenilcetonúria, também ocorrendo uma mudança semântica, posto que era sugerida uma solução preventiva para uma doença mental. Na esteira dessa interpretação, o autor investiga a talassemia.3 A pesquisa sobre a doença, realizada entre 1946 e 1961 na Universidade de Roma, foi financiada pela Fundação Rockefeller. Foram examinadas, em todo o território italiano, mais de trinta mil pessoas. A investigação concluiu que a doença era hereditária, e, assim sendo, com o emprego de testes de triagem, seria possível fazer uma campanha para prevenir a união matrimonial entre os portadores da doença, e mesmo alcançar a eliminação da enfermidade.4 A partir dessas mudanças no campo da genética humana, emerge a expressão genetic counseling, cunhada por Sheldon Reed em 1947. Com esse novo olhar, alterou-se o termo “paciente” para “cliente”, além de se praticar o ensino da autonomia e da não coerção. Esses casos são sinais e evidências de que Nuremberg não representou censura nas pesquisas eugênicas, conforme apontou Cassata.

Cassata trabalha com um terceiro uso público do conceito de “eugenia”, ao referir-se a uma categoria monolítica denominada “retorno à eugenia” (p.48), que desconsidera a complexa dinâmica de desenvolvimento da engenharia genética e da medicina individualizada do século XXI. O autor traz à tona e relaciona dois eventos: a sentença do caso Buck versus Bell, de 1927, no qual estava em julgamento a esterilização de uma família dita degenerada; e uma sentença de 2013, o caso Myriad, no qual a empresa Myriad Genetic pretendia patentear produtos da natureza – genes humanos isolados. A pretensão do autor ao relacionar os dois casos foi refletir sobre processos jurídicos envolvendo o público e o privado.

A perspectiva utilizada por Cassata para refletir sobre como ocorreram os debates em torno da eugenia, sobretudo a partir da opinião pública italiana e em três momentos diferentes, é relevante porque expõe os equívocos nas interpretações que são divulgadas popularmente e aceitas pelo público não acadêmico. Tal abordagem instiga também trabalhos para a compreensão da eugenia no contexto público, nacional e internacional, não só na Europa mas também na América Latina, possibilitando alargar a discussão sobre o conceito de “eugenia latina”, fortemente enfatizado na historiografia recente.

Referências

ADAMS, Mark B. Eugenics in the history of science. In: Adams, Mark B. (Org.). The Wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. New York: Oxford University Press. p.3-7. 1990. [ Links ]

KEVLES, Daniel. In the name of eugenics: genetics and the uses of human heredity. Berkeley: University of California Press. 1985. [ Links ]

STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2005. [ Links ]

Notas

1 O estado da Carolina do Norte, nos EUA, continuou a autorizar esterilizações eugênicas sem consenso legal até o fim dos anos 1960, sobretudo em mulheres afro-americanas em condição de extrema pobreza.

2 A fenilcetonúria, ou PKU, é uma grave anomalia do metabolismo, que se transmite como caractere autossômico recessivo, causando lesão cerebral irreversível.

3 Uma anomalia no sangue, de caráter hereditário, que era frequente em regiões da Itália mediterrânea e insular e nos anos 1920 estava ligada à etiologia de uma grave enfermidade conhecida como a doença de Cooley (na nomenclatura atual, denominada talassemia maior, ou anemia mediterrânea).

4 Caso interessante ocorreu em outubro de 1949, durante o 50º Congresso da Sociedade Italiana de Medicina Interna, no qual os pesquisadores apresentaram os resultados da pesquisa. Na ocasião, o hematólogo Giovani Di Guglielmo propôs a esterilização de todos os portadores da doença. Já o antropólogo Sergio Sergi invocava um exame de sangue obrigatório para todos nas áreas afetadas (p.39).

Gerson Pietta – Doutorando, Programa de Pós-graduação em História/Universidade Federal do Paraná. gersonpietta@gmail.com

EmRede – Revista de Educação a Distância. Porto Alegre, v. 3, n. 1, 2016.

Formação de Professores: tecnologias e educação a distância

Editorial

Artigos

Publicado: 2016-10-27

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.16, 2016.

Artigos

Resenhas

Publicado: 2016-10-08

Gestão documental. Sistemas de arquivos: os desafios da implementação / Revista do Arquivo / 2016

FAZER GESTÃO É PRESERVAR!

Gestão e Preservação. Nos vocabulários que permeiam textos, ambientes de debates e conversas que reúnem profissionais vinculados aos Arquivos, quase sempre essas duas palavras aparecem agarradinhas a circular como se fossem duas irmãs gêmeas que devem caminhar sempre de mãos dadas pelas praças para demonstrar a indissociabilidade da família arquivística. União, aliás, que aparece consagrada em conceitos e leis.

Mas, quem convive próximo a essa família, sabe muito bem que essa aparente união muitas vezes esconde conflitos que só quem os vivencia pode falar com propriedade sobre as chagas causadas por disputas renhidas entre esses pares.

Claro, preservação é a palavra-chave explicativa que brota quase que naturalmente de realidades em que os arquivos se assemelham aos museus que guardam todo o charme erudito de tudo aquilo que sobreviveu do passado, sabe-se lá como e por quê. E é essa, ainda, a realidade em grande parte das praças pelo Brasil a fora. Já a irmã gestão aparenta um enxerto relativamente recente que deu ares de novo e moderno a um instituto que oscila entre o charmoso e o démodé.

Entretanto, a forma como as duas palavras são associadas para definir essencialidades dos arquivos é tão artificial que chega a torná-las incongruentes. Senão, vejamos como o nosso Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística define o termo Gestão de Documentos:

Conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediária, visando a [sic] sua eliminação ou recolhimento. Também chamado administração de documentos.[1]

Ou seja, entende-se por gestão de documentos um conjunto de práticas que só valem para os arquivos corrente e intermediário. Supõe-se, portanto, que daí pra frente, se faz outra coisa! Essa abordagem é replicada em boa parte dos textos que definem a missão de instituições arquivísticas.

Porém, essa formulação com esse sentido dissociado dado ao par, como se um polo fosse continuidade do outro, aqui termina um e ali começa o outro, não resiste à mínima avaliação crítica. Então, o que explica essa renitência? Talvez, necessidade (injustificada) de se delimitar, com grossas marcas, territórios e afazeres.
No entanto, não obstante a inconsistência conceitual, a legislação e os organogramas político-administrativo dos arquivos (e até as pautas das nossas revistas) resistem de forma ainda quase absoluta, afinal, elas são artifícios funcionais que podem aplacar contendas políticas e várias de suas resultantes, entre elas até disputa de verbas.

Fazer gestão é preservar. Só se preserva se se fizer gestão. Gestão e preservação buscam o mesmo fim: proporcionar o acesso. Em arquivo, preservar é muito mais que higienizar e restaurar, é manter organização e contexto. O pensar filosófico nos fornece bons e eficientes raciocínios capazes de estabelecer relações entre pares. Nós dos arquivos não podemos nos eximir desse pensar.

Certo é que ainda estamos longe de raspar de vez esse verniz que a um concede ar de administração e a outro um suspiro de história. Nosso olhar está viciado. Não sem razões, pois essa esfera conceitual ainda possui base material. Porém, o nervo central do que se convenciona chamar de gestão documental, a avaliação, não é senão a mais eficiente e espetacular forma de preservação dos documentos.

De nossa parte, temos que fazer da comemoração de mais um ano do Sistema de Arquivos, neste outubro, uma motivação na luta pela manutenção de um arquivo uno e integrado, que atue sistemicamente, sem essa dissociação que o descaracteriza.

De fato, o arquivo possui uma dimensão que desperta fascínio erudito tão bem traduzido por Arlette Farge no seu Sabor do Arquivo.[2] Mas, convenhamos, o arquivo é muito mais! Confundi-lo com uma de suas dimensões (panteão de documentos “históricos”) pode ser charmoso, mas o apequena. O universo da gestão documental, hoje por sua íntima vinculação à administração, pode não possuir o charme destilado por autores como a própria Farge, mas é atividade complexa que requer grande esforço intelectual e que tem seus encantos.

Enquanto não tornamos essa falsa dicotomia em discussão estéril (porque desnecessária), é com muito prazer que apresentamos esta revista (ainda com vestígios do insuperado) com o tema Gestão Documental. Sistemas de Arquivo: os desafios da implementação.

BOA LEITURA (E NÃO ABRAM MÃO DA CRÍTICA)!

Notas

1. Acessível: http: / / www.arquivonacional.gov.br / images / pdf / Dicion_Term_Arquiv.pd

2. FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009. Para ler a resenha de José Maria Jardim, acessar Ponto de Acesso, Revista do Instituto de Ciência da Informação, da Universidade Federal da Bahia, volume 5, nº 1 (2011) http: / / www.portalseer.ufba.br / index.php / revistaici / issue / view / 554

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Apresentação. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano II, n.3, outubro, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Religiões no Mundo Antigo / Hélade / 2016

As grandes religiões atuais são fenômenos antigos. Isso é válido para o judaísmo, presente em várias cidades em torno do Mediterrâneo, e para o cristianismo em suas variedades. É também válido para o islamismo, uma religião oriunda do criticismo dos antigos politeísmos e de vertentes regionais judaicas e cristãs que, como o judaísmo e o cristianismo, também incorporou material clássico em sua cultura religiosa-intelectual. E além do enquadramento estrito do Mediterrâneo, as grandes tradições religiosas atuais são também “antigas” – o hinduísmo, o budismo, ou o confucionismo, e.g.

Estudar as religiões da antiguidade, contudo, é um desafio em vários sentidos e, talvez, um dos mais graves seja o fato de que, mesmo nas universidades, o estudo das sociedades antigas não é (ainda) uma prioridade no Brasil. Tal estudo nos leva a olhar para além das nossas fronteiras nacionais, culturais etc., ao passo que nos permite um acesso a um patrimônio cultural comum a vários povos atuais. É certo que esse patrimônio foi – e ainda é – objeto de disputas e conflitos identitários e, desde pelo menos o século XIX, o patrimônio histórico e as religiões foram vinculados à identidade dos Estados e das nações, que projetaram em seus mitos fundadores aquilo que definiram como sendo sua essência. Nessa busca de essências, monumentos e documentos foram investidos de funções muito importantes – às vezes, muito perigosas – para a vida em comum.

O estudo das sociedades da antiguidade nos fornece ferramentas e instrumentos cognitivos para compreender, dentre outras, afirmações concernentes a identidades – dos outros e de nós mesmos. E o estudo das religiões desempenha um papel destacado nessa compreensão. Ele nos permite opor aos discursos sectários as “armas” da história, da filologia, da arqueologia etc., desconstruindo os mitos modernos. Permite-nos abandonar os fantasmas das origens, dos passados imaginários, desmontando interpretações tendenciosas sobre o passado. Com ele, podemos contestar e superar equívocos modernos – intencionais ou não – sobre o “milagre grego”, o “gênio romano” e coisas do tipo, bem como superar a dialética hegeliana e seus herdeiros que viam as religiões na história tendendo ao monoteísmo de tipo cristão. Os antigos gregos, romanos, judeus, cristãos etc. são tão distantes de nós quanto os aborígenes australianos atuais, e conhecê-los nos ajuda a desmontar os panos de fundo ideológicos de sua absoluta proximidade.

É certo que cada geração escreve sua própria história, e a história antiga de hoje é diferente das várias histórias antigas do passado. Paul Veyne, há quarenta anos, em sua Aula Inaugural no Collège de France, disse que a história só existe em relação às questões que nós lhe colocamos, e se perguntava quais seriam as questões que convinha fazer ao passado.2 Sigamos Paul Veyne neste ponto, dada sua frequência em bibliografias de cursos de História no Brasil e, mais ainda, pela atualidade de suas declarações: para ele, o ofício do historiador comporta dois aspectos, a erudição e a conceptualização. A pesquisa em história antiga exige que lancemos mão de vários recursos da erudição antes que possa ser formulado um novo questionamento, uma nova problemática. A história tem em Jano bifronte seu patrono: de um lado, o trabalho metódico com a documentação; de outro, o questionamento desses documentos. De um lado, a lide com a documentação; de outro, a problemática. Manejar as técnicas de pesquisa e os conceitos, e então a antiguidade se torna cada vez menos familiar e mais estranha, fazendo-nos rever preconceitos arraigados sobre a universalidade das ideias e dos comportamentos que, lamentavelmente, ainda são frequentes, permanecendo em uso e ativos, sendo propalados nos mass media, nas redes sociais, em campanhas políticas, em escolas, em universidades, no momento em que assistimos a uma exacerbação da religiosidade e de conflitos de base religiosa, que ressurgem como a fênix, com um vigor renovado.

Estudos sobre os discursos e as práticas religiosas da antiguidade vêm revelando aspectos antes insuspeitados das sociedades, e as religiões demonstraram ser um objeto de pesquisa de fundamental importância para a compreensão da experiência humana no tempo e no espaço. A pesquisa antiquista já ultrapassou uma ideia de “religião” compreendida como uma “essência trans-histórica”, existindo como um fenômeno eterno e unitário. Ao contrário, as religiões mudam com o tempo e as circunstâncias, e também muda aquilo que as pessoas entendem como sendo “religião”. As religiões, portanto, não são fixas, nem unitárias, e nem mesmo coerentes, e estão invariavelmente mudando, adaptando-se, recriando-se em realidades intersubjetivas. São fenômenos inerentemente sociais, criando experiências e significados compartilhados, práticas e imagens que são comunicadas e ensinadas. As pesquisas sobre as religiões antigas vêm se sucedendo em um ritmo acelerado nas últimas décadas graças, principalmente, ao diálogo interdisciplinar, o que permitiu a ampliação dos corpora documentais e, sobretudo, a reavaliação de dados e conclusões baseadas em documentos da tradição manuscrita e outros a partir de novas premissas, renovando a compreensão de temas já explorados pela historiografia sobre a antiguidade. As religiões antigas surgem sob novas luzes como elementos centrais na pesquisa e na compreensão, por exemplo, dos sistemas culturais, políticos, intelectuais e institucionais das sociedades do passado.

Ainda assim, as religiões da antiguidade formam um tema de estudo complexo per se, pois, seguindo-se uma das religiões atuais ou não, todos nós fomos formados – ou deformados – por dezesseis séculos de monoteísmo, e não é possível abandonar nosso mundo de compreensão e saltar simplesmente para outro. Desse modo, os contrassensos são vários e persistentes. Mas, não apenas no que tange à religião, como também em relação a outras manifestações culturais da antiguidade, é preciso ultrapassar o enquadramento do pensamento judaico-cristão. É certo que muitos estudos nos habituaram, nos últimos anos, à observação da alteridade. Mas a reiteração da necessidade da observação das categorias discursivas, religiosas e ideológicas das sociedades antigas merece ser feita, posto que o próprio desenvolvimento dos estudos sobre as práticas e os discursos religiosos da antiguidade ainda se dá pleno de ideias fundadas em “premissas monoteístas” que agem como pano de fundo de boa parte da pesquisa sobre a religião, analisando-a a partir de categorias religiosas judaico-cristãs.

Este dossiê congrega artigos de estudiosos brasileiros e estrangeiros que lidam com práticas e crenças religiosas da antiguidade, observando aspectos religiosos cruciais para a compreensão das sociedades analisadas, bem como lidam com a transformação de práticas e crenças religiosas que levaram à formação de novas fronteiras e novos conhecimentos para os grupos humanos. As religiões antigas são aqui entendidas como um spectrum de ações, crenças, experiências, conhecimentos e comunicações com seres e agentes super-humanos, incluindo, mas não se limitando a “deuses”, “demônios”, “anjos”, “heróis” e outras personagens transcendentes. A ritualização e as elaboradas formas de representação e apresentação dessas ações e experiências e desses seres e agentes são um tema de pesquisa atual para diversos ramos especializados em regiões, épocas, tradições e corpora documentais particulares.

A institucionalização da religião, assim como os papéis religiosos; a construção da religião como conhecimento; os rituais como produtos de contextos históricos e sujeitos à mudança, como testemunhos de tensões sincrônicas e / ou diacrônicas; os espaços das experiências religiosas, compartilhados por indivíduos ou grupos em santuários públicos ou privados, ou o espaço móvel dos festivais e procissões; o espaço religioso virtual da comunicação literária e os discursos intelectuais sobre a religião; os diferentes modos de apropriação das religiões, de comunicação com o “outro” invisível, representado ou epifânico; rituais e performances e sua relação com o corpo, em que movimentos e gestos são elementos fundamentais na percepção e estruturação de mundos religiosos; as imagens de deuses e de rituais e a criação de sentimentos e conhecimentos compartilhados, criando regimes de visualidade, são temas caros aos estudos sobre as religiões antigas, permitindo a análise de culturas religiosas criadas pelas interações interpessoais e intergrupais, pela imitação, apropriação de gestos, imagens e conhecimentos que criam comunidades fundamentadas em memórias compartilhadas, sempre sujeitas a mudanças. A intenção de reunir “religiões” diversas, especialistas, disciplinas e enfoques variados visa ao cruzamento ou à redefinição de fronteiras disciplinares e convida ao engajamento com discussões contemporâneas nos campos da pesquisa e do ensino das religiões, da história antiga, e das ciências humanas e sociais em geral.

Claudia Beltrão da Rosa – Professora Associada de História Antiga da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.


ROSA, Claudia Beltrão da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,2, n.2, out., 2016. Acessar publicação original [DR]

 

Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX – FREDEL (RAP)

FREDEL, Karla Maria. Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX. Erechim, RS: Habilis Press, 2015, 214 p. Resenha de: SANCHIZ, Juan Manuel Cano. Revista Arqueologia Pública, Campinas, São Paulo, v. 10, n.3, out. 2016, p. 114-119.

Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX es la publicación de la Tesis Doctoral homónima de Karla Mª Fredel, defendida en el Instituto de Filosofia e Ciências Humanas de la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), en octubre de 2012. La tesis se desarrolló bajo la orientación del profesor Dr. Pedro Paulo A. Funari (Laboratório de Arqueologia Pública, NEPAM/UNICAMP) y la co-orientación de los profesores Dra. Lourdes Domínguez (Oficina del Historiador de La Habana; Academia de la Historia de Cuba) y Dr. Lúcio Menezes Ferreira (Laboratório Multidisciplinar de Pesquisa Arqueológica, UFPel). Todos ellos han contribuido a esta nueva obra con sendos prólogo (Domínguez), prefacio (Funari) y presentación (Ferreira).

Este libro contribuye al desarrollo de la incipiente Arqueología de Género a través de un análisis comparativo de dos muestras de estudio pertenecientes a contextos diferentes, aunque conectados por el consumo común de loza doméstica de tipo colonial: la residencia Francisco Antunes Maciel, en la ciudad de Pelotas (Río Grande del Sur, Brasil), y la denominada casa Prat Puig, en Habana Vieja (provincia de La Habana, Cuba). La autora se propone, además, reflexionar sobre dos aspectos diferentes de la sociedad decimonónica pelotense y habanera: el género y la clase, abordados desde los binomios femenino-masculino y señor-esclavo.

Desarrollar simultáneamente dos estudios de caso, en países con realidades emparentadas (sociedades aristócratas, patriarcales y esclavistas) pero diferentes (colonias portuguesa y española), y con un doble foco, implica una notable dificultad y la necesidad de redoblar esfuerzos, o de desdoblarse como investigador. Desde este punto de vista, el trabajo de Fredel, valiente y poco común, merece ser destacado. Sobre todo porque no se limita a interpretar los casos de estudio dentro de sus respectivos contextos nacionales, sino que los conecta con el exterior para reflexionar sobre la formación de las sociedades modernas en la órbita del mundo capitalista.

El marco de dichas reflexiones es la Arqueología de Género, que busca ofrecer narrativas diferentes sobre la historia de las mujeres y las mujeres en la Historia a partir, principalmente, de la cultura material asociada al mundo femenino. En palabras de Fredel, su trabajo persigue “o resgate da voz feminina, pouco presente das narrativas históricas” (FREDEL, 2015: 49) por diversos motivos (culturales, políticos, religiosos), incluso porque, según ideas de Michelle Perrot (2007), nuestro propio lenguaje contribuye, con sus plurales masculinos, a silenciar la voz de las mujeres en las fuentes escritas.

Por otro lado, Fredel halla sus bases teóricas en la Arqueología postprocesual; es decir, contextual. Ello implica atender a la importancia del contexto en un doble plano. De un lado, el contexto pasado en el que acontecieron los problemas estudiados. De otro, el contexto presente del investigador, que ciertamente condiciona la representación del pasado a partir de nuestras preguntas y de nuestra particular y subjetiva manera de percibir la realidad. En este libro encontramos a una mujer del presente (Karla Fredel) que  reflexiona sobre la vida de otras mujeres del pasado (anónimas). Según mi propia percepción, el contexto de Fredel (nuestro hoy en el estado de São Paulo) se caracteriza, en relación con el tema abordado, por una presencia creciente del feminismo activista en el ambiente universitario (mayor o menor en función de qué facultades) y por la consolidación de palabras como paridad, equidad o género en el vocabulario político. Pero Fredel se sirve de una metodología arqueológica impecable para producir una lectura no intencionada del pasado, una lectura que, desde la subjetividad que caracteriza a las Humanidades, puede considerarse imparcial. En otras palabras, los resultados de Fredel son valiosos para el avance del conocimiento porque se basan en un proceso de investigación riguroso y académico que, lejos de caer en la propaganda, reivindica con argumentos consistentes el papel femenino en la Historia. En este sentido, Fredel matiza que el hecho de que el espacio característico de la mujer en los contextos estudiados fuese el hogar no implica una devaluación de sus funciones. La mujer desempeñó entonces una serie de tareas muy importantes para el equilibrio y buena marcha familiar (en diferentes ámbitos), si bien es cierto que ello aconteció generalmente en una sociedad de marcado carácter machista y paternalista.

Todas estas ideas son planteadas desde un enfoque fundamentalmente cultural. Siguiendo a autoras como Andréa Gonçalves (2006) o Michelle Perrot (2007), Fredel entiende que la categoría género releva a un segundo plano la cuestión biológica, caracterizando las diferencias entre sexos como una construcción cultural. En efecto, este no es un libro de Antropología Física, sino de Arqueología. Con todo, en nuestra opinión el cuerpo humano también participa en la modelación del comportamiento y los hábitos. El objeto compresa, por ejemplo, pertenece al ámbito de la cultura material femenina debido a una necesidad fisiológica exclusiva de las mujeres dentro de un determinado rango de edad, aunque su uso se limite a ciertos contextos. Estamos de acuerdo en que buena parte de las diferencias existentes entre hombres y mujeres pueden explicarse desde los sistemas culturales y sociales en los que estos se insertan, pero el sexo (macho/hembra, en un sentido darwinista) también determina.

En otro orden de cosas, este libro refleja una realidad creciente en el campo de la Arqueología: la progresiva compartimentación de la disciplina en diferentes especialidades temáticas y cronológicas. La Arqueología de Género puede entenderse como un enfoque temático de aplicación diacrónica. Con todo, Fredel se centra en un periodo concreto (el siglo XIX) para analizar cómo un objeto determinado (la loza doméstica) puede reflejar ciertas mudanzas sociales de escala global.

Más específicamente, los problemas estudiados por Fredel, magistralmente contextualizados, se enmarcan en un periodo de cambio definido por la formación de la sociedad capitalista y del mercado global. El libro es interesante por mostrar cómo el consumo de los mismos materiales de importación pudo generar rasgos comunes en espacios diferentes y distantes. Esto se manifiesta, de manera evidente, en los gustos, rastreables en las formas y esquemas decorativos de las piezas compradas, pero también en cuestiones más complejas, como las relaciones sociales. A pesar de lo dicho, y como advierte la autora, los contextos de cada ambiente de consumo, y las diferencias existentes entre los propios consumidores, añaden también algunas especificidades.

Entre estas últimas, cabe destacar el particular proceso de industrialización brasileño, sobre el que este libro incide tangencialmente. Siguiendo ideas de Nelson Sodré (1998), Fredel defiende que en Brasil no existía un esquema de industrialización capaz de absorber la transición del trabajo servil al asalariado, lo que produjo un brusco hiato de dramáticas consecuencias para la población. En tales circunstancias, la comercialización de la producción agropecuaria (más específicamente, del charque) en Río Grande del Sur favoreció una serie de contactos con el exterior sobre la base de la exportación-importación. Fueron los productores y comerciantes de charque quienes, enriquecidos por las exportaciones y convertidos en elite pelotense, comenzaron a importar artículos de lujo europeos y norteamericanos (entre ellos la loza doméstica estudiada por la autora, pero también vestidos, muebles y hasta materiales constructivos) como elemento de distinción.

En una sociedad que se va haciendo más cosmopolita, los rasgos exógenos (presentes en los objetos de consumo, en la decoración arquitectónica e incluso en la educación de la propia prole) son leídos en clave de estatus y se vuelven hegemónicos en el ámbito comercial.

Fredel defiende que la penetración de estos productos fue más rápida que los valores que justificaban su uso, lo cual abre la puerta a un horizonte de interpretación que, más allá de la utilidad práctica de los objetos, conecta con su valor simbólico. Por otro lado, la dispersión global de la loza doméstica, que en el siglo XIX tuvo uno de sus principales centros de producción en Inglaterra, manifiesta la formación del sistema de producción y consumo de masa. O sea, la aparición de la sociedad de consumo.

La autora recuerda, basándose en Charles Orser (2000), que una parte muy importante de los artefactos vinculados a contextos arqueológicos de los siglos XIX y XX (y XXI) son resultado de un proceso de fabricación industrial. Es decir, objetos que a menudo son distribuidos y consumidos por personas diferentes a las que los producen. El artefacto puede configurarse así como un vínculo o elemento de conexión entre el receptor y el emisor de la cultura material, a veces ligados a sistemas socio-culturales muy diferentes e incluso separados espacialmente por miles de kilómetros. A este respecto, uno de los resultados más reveladores del trabajo de Fredel es que sus dos estudios de caso presentan las mismas tipologías a pesar de estar separados físicamente por casi 7000 km en línea recta.

No obstante, Fredel logró identificar dos marcas de fabricantes brasileños entre un total de cinco reconocidas (el resto, tres, inglesas). El dato es sesgado, pero no deja de llamar la atención que en el caso brasileño la producción nacional también tuvo un peso importante en los ajuares domésticos decimonónicos. La cuestión no es baladí, pues nos obliga a revisar algunas hipótesis y a matizar la posible dependencia del exterior y su repercusión (¿o es consecuencia?) en una industrialización débil y tardía. Por otro lado, no debe olvidarse que los productores brasileños optaron por reproducir las formas europeas, marginando así la tradición local o pre-colonial, apenas presente en las aisladas comunidades indígenas.

Desde el punto de vista metodológico, Fredel divide los materiales estudiados (previamente catalogados por los respectivos equipos arqueológicos que intervinieron en las viviendas seleccionadas como estudios de caso) entre objetos usados por hombres y mujeres, de un lado, y por señores y criados, del otro. La autora defiende que los artefactos de cocina se vinculan a la mujer, mientras que los de consumo de alimentos y bebidas son comunes a ambos sexos. Las diferencias más marcadas están en la esfera de la higiene personal. Se echa en falta, en este capítulo, una argumentación más desarrollada que justifique este sistema de clasificación por sexos, que a veces resulta poco consistente porque no se explican cuáles son los criterios adoptados. Faltan, además, los contextos arqueológicos específicos de las piezas estudiadas (¿en qué estancia fue encontrado cada artefacto y a qué estructuras y objetos estaba asociado?), que pierden así parte de su valor como fuente de información.

De hecho, esta publicación adolece, de manera general, de una mayor integración de la cultura material en el discurso. Los estudios arqueológicos de Fredel, tanto de las piezas de loza recuperadas en Pelotas y Habana Vieja como de las casas donde estas fueron encontradas, tienen una débil presencia en el libro, reduciéndose a una serie de anexos que ocupan las últimas páginas. Hay así un cierto desfase entre la propuesta de investigación y los resultados presentados, que, aun siendo de gran interés, derivan fundamentalmente de las reflexiones de la autora sobre el tema a partir de un estudio exhaustivo de la bibliografía disponible. Es decir, las conclusiones de Fredel se alejan un tanto de sus estudios de caso, que plantean varios interrogantes que no son resueltos en este volumen. Leído esto en positivo, este libro abre nuevas líneas de investigación y trabajo.

Existe, por otro lado, un desequilibrio en el tratamiento de los problemas tratados (tensiones femenino-masculino y señor-esclavo), con una clara priorización del primero (género) sobre el segundo (estatus). No se contempla, por ejemplo, la cultura material asociada a la mujer esclava, ni se aportan datos sustanciales sobre la vida cotidiana del servicio femenino. La mujer que protagoniza el libro de Fredel es burguesa.

Otro aspecto que podría servir para completar esta obra es la incorporación de referencias a paralelos que ayuden a comprender hasta qué punto lo sucedido en Pelotas y Habana Vieja sigue un determinado patrón (¿copia o modelo?) o constituye alguna singularidad. Debe ser advertido, en conexión con el párrafo anterior, que los dos estudios de caso presentados en este libro se refieren a casas destacadas en sus respectivos ámbitos urbanos. Es decir, viviendas que fueron ocupadas por unidades domésticas pertenecientes a las elites pelotense y habanera. Por tanto, es presumible que algunas de las conclusiones sobre diferencias de género alcanzadas a partir del estudio de la cultura material no tengan validez para otros estratos sociales.

Finalmente, se detectan otros problemas menores que, en caso de una eventual reimpresión o reedición, podrían corregirse, como los errores gramaticales y ortográficos presentes en las citas literales en español.

Más allá de estas pequeñas objeciones, que tal vez podrían mejorar un libro que ya es bueno, esta monografía supone una excelente puesta al día de las corrientes teóricas y la bibliografía sobre el tema Arqueología de Género. Este volumen tiene un fuerte sesgo teórico, y es cierto que se echa de menos una mayor contribución de la evidencia física de los casos de estudio. Pero ello puede justificarse, en buena medida, por el carácter innovador del trabajo planteado por Fredel, que tanto en Brasil como en Cuba puede considerarse pionero. Era necesario, así, el peso que la autora otorga al estudio crítico del estado de la cuestión, siendo de destacar que consigue definir un marco epistemológico propio para la Arqueología de Género a partir de una mirada amplia y global a la teoría arqueológica y a su desarrollo.

Al mismo tiempo, este libro cumple su objetivo de favorecer una mejor comprensión de los procesos de formación de la sociedad contemporánea y del papel de la mujer en la misma. Puede considerarse, por tanto, una obra de lectura recomendada para todos los interesados en el estudio del pasado reciente desde la Arqueología Histórica (o desde la Arqueología de la Industrialización, que no solo se preocupa por la producción de bienes, sino también por su distribución y consumo), especialmente para quienes deseen saber más sobre la organización de las unidades domésticas decimonónicas en Brasil y Cuba, la caracterización de sus espacios físicos y su asimilación del nuevo orden mundial traído por la industrialización capitalista.

Referências

FREDEL, Karla Maria. Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX. Erechim: Habilis Press, 2015.  GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. São Paulo: Autêntica Editora, 2006.  ORSER Jr., Charles. Introducción a la Arqueología Histórica. Buenos Aires: Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano (INAPL), 2000.  PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2007.  SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. Río de Janeiro: Editora Graphia, 1998.

Juan Manuel Cano SanchizFacultad de Ciencias y Letras de la UNESP en Assis (SP, Brasil), proyecto Memória Ferroviária. Becario de Post-Doctorado FAPESP: grant 2014/12473-3, São Paulo Research Foundation. Las opiniones, hipótesis y conclusiones o recomendaciones expresadas en este material son responsabilidad del autor y no necesariamente reflejan la visión de la FAPESP. E-mail: laciudadcritica@gmail.com

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[MLPDB]

Patrimônio Cultural e Ensino de História / Mnemosine Revista / 2016

Ensinar história por meio de registros culturais é considerar que professores e professoras têm no próprio vivido seu objeto de ensino e aprendizagem. A sociedade em seus gestos arbitrários de lembrança e esquecimento produz rastros materiais e práticas culturais vinculadas a tradições, sons, saberes, que, potencialmente, servem para identificar as disputas simbólicas implicadas nos usos que são feitos do passado.

Tanto professores quanto estudantes em contato com registros culturais elaboram narrativas que são tensionadas frente à narrativas acadêmicas e à história ensinada. As narrativas elaboradas são híbridas e exercem influências nas matrizes curriculares. Os estudantes elaboram sentidos em diálogo com a história ensinada pelos professores que, por sua vez, utilizam das percepções subjetivas e propõem outras formas de entender a história, mais próxima do vivido, incorporando lembranças despertadas no contato com o patrimônio cultural.

Esse movimento é interferente na cultura escolar. As estratégias de uso educativo do patrimônio geram um saber ensinado original, em diálogo com outros materiais pedagógicos em sala de aula.

Este dossiê reúne artigos que refletem sobre as práticas de memória e aprendizagens da história. Textos que se propõe a compreenderas potencialidades de do trabalho com fios de memória tecidos por disputas simbólicas, em que estão presentes gestos de esquecimento, exercícios de rememoração e intencionalidades educativas. Vincula-se aos estudos que configuram os diferentes espaços formativos que interpretam o vivido por meio da cultura material e que se propõe a analisar sujeitos ignorados por uma narrativa histórica canônica e triunfalista.

O primeiro artigo discute a memória histórica na tensão com as narrativas produzidas em livros didáticos e outros materiais disponibilizados na escola. Joan Pagés e Joan Llusá (Universidade Autônoma de Barcelona) apresentam experiências desenvolvidas na formação de professores e alunos da educação básica. Com foco nas memórias traumáticas, analisam como os sujeitos constroem tramas narrativas em que estão presentes gestos de lembrança e esquecimento. O uso da história oral é destacado como método para verificar esses gestos na confrontação com o que é ensinado nas escolas.

O artigo de Vitória Azevedo da Fonseca intitulado Educação Patrimonial Encontra o Ensino de História: perspectivas teóricas em práticas educativas, propõe uma reflexão sobre o uso do patrimônio em sala de aula. A autora apresenta atividade construídas em salas de aula da educação básica focadas em uma educação sensível que são interferentes na elaboração de sentidos para a disciplina história.

Em outra perspectiva, Marcela Mazilli apresenta as construções simbólicas que estão presentes na elaboração das narrativas museais. Em Museu do Diamante: o projeto de construção de uma identidade nacional por meio da criação de museus em Minas Gerais pelo SPHAN nas décadas de 1940-1950, a autora revela os projetos políticos presentes no colecionismo que deram origem aos museus no Brasil na década de 40. Apresenta, em diálogo com a educação, um espaço potente para o debate sobre a nacionalidade e as escolhas arbitrárias presentes nos museus.

Leonardo Palhares e Helena Azevedo analisam a presença do ausente quando discutem escolhas feitas por professores da educação básica no ensino da história e cultura indígena. Os autores apresentam experiências desenvolvidas em uma escola de Belo Horizonte em que os estudantes expressaram suas concepções acerca dos povos indígenas por meio de imagens. Questionam em que medida os livros didáticos mobilizados por professores em sala de aula possibilitam uma reflexão sobre a cultura indígena na medida em que muitos apresentam estereótipos sobre esses sujeitos esquecidos em uma narrativa histórica canônica e triunfalista.

O artigo subsequente destaca a legislação pertinente sobre a educação indígena em diálogo com conceitos presentes em uma literatura especializada. Elisom Pain, Patrícia Magalhães e Tatiana de Oliveira Santana, propõem olhar para a educação escolar indígena em processos na relação com o patrimônio cultural. No artigo Educação Escolar Indígena como Patrimônio Cultural, os autores discutem as leis relacionadas a educação indígena interconectadas a conceitos como de interculturalidade e entre- lugar.

Luciano Roza apresenta a possibilidade de discutir a positivação das memórias afro-brasileiras e africanas em museus digitais. Em seu artigo O Museu Digital da Memória Afro-Brasileira e Africana: potencialidades para o reposicionamento da experiência histórica afro-brasileira no mundo virtual discute as transformações nas representações sobre o negro no questionamento de narrativas históricas trazendo como possibilidade o uso da internet. O autor questiona em que medida esses instrumentos são usados para revelar o protagonismo de sujeitos antes subalternizados pelo discurso histórico ou se também podem circunscrever o passado do negro a eventos muito específicos impossibilitando a representação de suas ações a movimentos políticos mais amplos como o processo de independência do Brasil, por exemplo.

Os quatro últimos artigos estão focados na chamada educação museal. A Educação Museal é um processo no qual são ofertadas atividades pedagógicas pelos pelas instituições de guarda e preservação, mas também propostas por professores que realizam visitas com estudantes a esses espaços de formação e outros sítios e monumentos cuja questão da memória e do patrimônio cultural implique em uma abordagem educativa. Esse processo está relacionado à capacidade dos museus de produzirem conhecimentos. Os museus são instituições privilegiadas que propõem uma narrativa memorial constituída na visualização de objetos de cultura material, legendas, focos de luz, totens multimídia, entre outras soluções expográficas. Dessa forma, a educação por meio dos museus se estabelece na visualização de bens materiais expostos ao olhar que potencializam a aprendizagem sensível da cultura

Soraia Dutra e Maria do Céu analisam experiências educativas desenvolvidas em Inhotim, a partir de materiais pedagógicos disponibilizados para professores no projeto Descentralizando o acesso. As autoras investigam ações desenvolvidas por professores que utilizaram desses materiais e propõe discutir como museus e escolas podem estabelecer parcerias garantido a especificidade de cada espaço institucional.

Júlio César Virginio em Práticas de Memória em Ensino de História: as ressonâncias de uma prática com o museu, apresenta as potencialidades do espaço museal para ensinar história. Em seu texto, apresenta reflexões sobre as ressonâncias de uma prática educativa no ensino de história desenvolvida em um museu da cidade de Belo Horizonte no ensino da Pré-História do Brasil. Segundo o autor, a prática educativa e de memória é parte de um processo iniciado antes da visita e que prossegue após a visita, considerando as dinâmicas próprias da sala de aula.

Marlene Jéssica Souza Brito e Elizabeth Aparecida Duque Seabra em Saberes dos estudantes sobre patrimônio Cultural nas aulas de história apresentam os resultados iniciais de um projeto de trabalho desenvolvido junto a estudantes do ensino fundamental e médio na cidade de Couto de Magalhães de Minas, na região do Alto Jequitinhonha. O trabalho aponta as formas como os estudantes se apropriam do patrimônio cultural da cidade frente às demandas de preservação e como utilizam esses espaços públicos. A partir das respostas dos estudantes frente à questão da memória e patrimônio local foram elaboradas categorias capazes de entender o movimento de apropriação que inclui valores econômicos, afetivos, identitários e históricos.

Em outro artigo, Soraia Dutra expõe resultados de uma pesquisa feita no setor educativo do Museu Histórico Abilio Barreto. Em A Reinvenção do Museu e o Reencontro com a Escola, a autora debate sobre a importância de estruturação setores educativos nos museus. Localiza ações desenvolvidas no MHAB e analisa expectativas dos professores na relação com o museu, discutindo a escolarização de práticas pedagógicas.

Por último, Jezulino Lúcio, Maria Fernanda e Laudiene Maciel relatam uma experiência desenvolvida na cidade de Campanha, Minas Gerais, em que usam o museu e a cidade em processos formativos com professores e estudantes de uma escola pública. Em Itinerários e Visões da Cidade: Educação para o Patrimônio nas Relações com as Narrativas Visuais da História, os autores debatem o espaço urbano e as relações subjetivas impresas em modos de ver e sentir a cidade nas práticas culturais que são definidoras de identidades. O projeto desenvolvido na cidade de Campanha estabeleceu relação entre a narrativa do Museu Regional do Sul de Minas e o espaço urbano. Por meio de atividades formativas com professores e estudantes, discutimos o patrimônio oficializado pela politica publica municipal e os gestos arbitrários da narrativa museal, ao mesmo tempo em que revelamos outras formas de ler a cidade estimulando habilidades visuais, auditivas e táteis.

Esperamos que esse dossiê possa estimular atividades que considerem as referências culturais para o ensino de história compreendendo as potencialidades de aprendizagens que rompem com visões unívocas sobre o nosso passado. Os textos apresentam os diferentes espaços formativos que interpretam o vivido por meio das referências culturais, em metodologias aplicadas no contexto escolar e fora dele. Consideramos ainda que o debate proposto contribui para um ensino de história sensível, crítico e reflexivo que têm como foco a rediscussão do lugar de grupos esquecidos pela escrita da história nos processos de luta e transformação política e social.

Jezulino Lúcio Mendes Braga – Doutor. Departamento de Organização e Tratamento da Informação Escola de Ciência da Informação Universidade Federal de Minas Gerais

Elizabeth Aparecida Duque Seabra – Professora de Prática de Ensino de História Coordenadora do PIBID UNIVERSIDADE FEDERAL DOS VALES DO JEQUITINHONHA E MUCURI


BRAGA, Jezulino Lúcio Mendes; SEABRA, Elizabeth Aparecida Duque. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.7, n.4, out / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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Nietzsche e o espiríto latino – CAMPIONI (CN)

CAMPIONI, Giuliano. Nietzsche e o espiríto latino. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: BUSELLATO. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.3  out./dez. 2016.

À díade que parecia inalcançável, ou seja, os nomes de Colli e Montinari, na Europa, se acrescenta cada vez com mais frequência o nome de Campioni, e isso tem as suas razões de ser. Talvez um dos textos mais importantes de Campioni, que chega aos leitores brasileiros através das Edições Loyola na coleção Sendas

& Veredas, é uma valiosa demonstração. Desejado com previdência e acuidade e coordenado por ScarlettMarton, autora de uma “Apresentação à edição brasileira” (p.10-18) muito bem informa- da, traduzido com bom gosto por Vinicius de Andrade, Nietzsche e o espírito latino não apresenta só um estudo que poderá tornar-se referência para muitos pesquisadores que se dedicam ao pensa- mento do filósofo alemão. Esse trabalho contém algo que vai além do que se pode razoavelmente esperar de uma simples monografia. É o exemplo de uma metodologia, de uma relação peculiar, direta e íntima, com as páginas nietzschianas. Um trabalho de escavação, reconstrução e descobertas que oferece, no seu término, não uma figura-Nietzsche (operação sempre empobrecedora e frequente- mente falsificadora), mas o percurso-Nietzsche.

Esse percurso conduz propositalmente para longe das insalubres leituras rápidas, construídas mais por preconceitos, equívocos e exageros e não pela real necessidade de entender o pensamento de Nietzsche, como acontece aos “muitos que fruem esteticamente e em modo imediato do filósofo na busca de mestres absolutos de sapiência ou profetas do nihilismo” (p. 29). O que aqui se desmente é sobretudo a imagem caricatural e difícil de fazer desvanecer do Nietzsche germânico, o fato de fazer-lhe dizer o “Deutschelandüberalles” fazendo-lhe portar chapéus nibelungos e gritar a chegada de um Übermensch de olhos claros e de farda escura, como o próprio autor já se lamentava em Ecce Homo contra aqueles que apostrofava de “doutas bestas”.

Se a contribuição do texto fosse só essa, seria já um mérito, pois mérito é o fato de corrigir um erro de modo definitivo. Mas a demonstração do espírito latino de Nietzsche contra o mito germânico do Volk não se limita a isso. Reunindo idealmente as testemunhas onde o mestre Montinari mesmo tinha interrompido a sua pesquisa, isto é, iniciando a delinear o horizonte provençal e meridional como a melhor contestação do Nietzsche provincial e nacionalista3, Giuliano Campioni não só devolve o real diálogo através do qual se constituiu o pensamento nietzschiano, mas oferece um vasto panorama da cultura dentro da qual tal pensamento toma precisão, espessura e originalidade.

Esse é um outro Nietzsche em relação às interpretações “que só fazem tecer repetidamente uma discutível trama de filosofemas, sem nenhuma referência concreta à realidade da vida intelectual de Nietzsche”4. Nisso Campioni consegue os próprios resultados com aquilo que hoje, graças também aos seus trabalhos, é conhecido como o método da “escola italiana”, uma abordagem histórica (não historicista), que se move sobre um solo duramente filológico como base propedêutica necessária para uma exegese lúcida e fundamentada, com um cuidado especial para as leituras de Nietzsche, as fontes, a sua utilização frequentemente clarificante de aspectos que, deixados de lado, levam à cegueira – e um aguçado amor pelos detalhes que não derivam de uma supervalorização do fútil, mas de uma exigência pela verdade, como mostra a edição das cartas e das obras que Campioni dirigiu, antecipando – muitas vezes – os aparatos alemães e enriquecendo, nas novas edições dos fragmentos, com notas que são verdadeiros mananciais de referências e fontes.

Também nisso Campioni se revela um magistral aluno de Montinari, o qual advertia que o “mundo de Nietzsche – […] é o mundo de suas experiências, dos acontecimentos e das correntes de pensamento de seu tempo, de suas reflexões históricas e críticas, de suas leituras (e que leitor foi Nietzsche!)”5. Isso não significa, como seguidamente receia-se, subtrair originalidade ao pensamento de Nietzsche fazendo dele simplesmente uma mistura das próprias leituras; mas, ao contrário, exatamente olhando para essas leituras é possível medir, com frequência, o grau de audácia que se perderia desconhecendo o preciso terreno de confrontação no qual Nietzsche cultiva o seu pensamento. Um exemplo ulterior disso, da decisiva importância do extratexto, é a necessidade, para poder enfrentar a filosofia de Nietzsche, mais do que aquela de outros autores, de uma “nítida consciência de que só se pode abarcar toda a complexidade do texto saindo dele” (p. 28).

E é saindo do texto, estudando as leituras com as quais real- mente Nietzsche se confrontou, os autores hoje esquecidos que permanecem em suas páginas, emergem dos resultados historio- gráficos e exegéticos por outros lados inatingíveis. Começando com quanto podemos aprender pelo aprofundamento do confronto com Descartes, que a maioria das interpretações considera emblema de um racionalismo contrário ao gosto de Nietzsche, que sustentaria, pelo contrário, um raptus intelectual instintivo e romântico. O que Campioni mostra e demonstra, a partir da citação que o alemão escolhe como epígrafe da própria obra de libertação das metafísicas schopenhaueriana e wagneriana – uma passagem cartesiana extraída do Discour de laméthode que abre Humano, demasiado humano – é um Nietzsche que se confraterniza com um Descartes modelado através de intermediários como Richet, Ribot, Brunetiére e que exalta o equilíbrio, a clareza e o método, entrincheirando-se do lado de um iluminismo da tolerância, adversário dos fanatismos obscurantistas, que tem o seu mais sereno emblema em Voltaire. Um iluminismo que, para Nietzsche, define uma concepção de clássico que se opõe ao romântico, nutrindo-se de uma tradição que se refaz, uma vez mais, ao sol mediterrâneo do humanismo italiano e conduz à sutileza psicológica meridional, desconhecida na Alemanha, por exemplo, de um Stendhal.

A análise da interpretação cartesiana se oferece como possibilidade de desvelamento de um Nietzsche realmente longe do misticismo germânico irracionalista de algumas interpretações que, apesar de antigas, nolensvolens continuam irradiando distorções, como aquelas “mitológicas” de Bertram ou as “heroicas” de Baeumler, mostrando, ao contrário, uma figura moderada, consequente, amante do “piano” e do “adagio” oferecidos pelo Clássico, um Nietzsche para o qual é evidente “a superioridade do século caracterizado pela ‘razão de Descartes'” (p. 75).

O mesmo semblante nietzschiano, marcadamente mais do lado do equilíbrio do que do excesso, é aquele que emerge da aná- lise do confronto com Renan, que dá condições de embrenhar-se numa selva de questões decisivas do pensamento de Nietzsche como aquelas de caráter religioso, político e sociológico. A leitura que ele faz do francês no curso dos anos, revela-se logo de início bem diferente daquela wagneriana, aliás, distante desta à medi- da que o professor de Basiléia acolhe muitas posições críticas do colega Burckhardt, que revela ser para Nietzsche um verdadeiro antídoto crítico ao germânico wagnerismo centrado sobre o autoritarismodo”Gênio-tirano”(esteéumdecisivoaglomeradoconceitualaoqualCampioni,emparceriacomosaudosoSandroBarbera, dedicou um estudo específico, Il geniotiranno. Ragione e dominionell’ideologiadell’Ottocento: Wagner, Nietzsche, Renan, publicado em 1983 e republicado em 2010).

Aparecem nessa via algumas características claras de Nietzsche e muitas vezes esquecidas, como o antibelicismo e o antinacionalismo que considerava a vitória militar como uma imposição bárbara que não tem nada a ver com o espírito e com a cultura, que é a sua mais alta expressão; ou a tentativa de reagir àquele mesmo vazio que se abria diante da profunda crise que a segunda metade do século XIX conheceu, em relação à qual outros filósofos quiseram indicar a resposta no sentido de massificação, abnegação e sacrifício de si mesmos – solução que Nietzsche pressentiu de longe ser uma perigosa trilha que poderia levar exatamente aos horrores do fanatismo sanguinário que o século XX conheceu.

Desse modo, de um Nietzsche sentado à escrivaninha, com a intenção de meditar e a tomar distância em relação às páginas de Renan, e tendo consigo outros textos esclarecedores (Boueget, Bar- bey d’Avrevilly, Anatole France, Dostojevsky em tradução francesa e mediado por autores também franceses), torna-se possível medir a natureza real, a estratégia filosófica à qual é orientado e o significado sintético-conceitual do famigerado Além-do-homem e apanhar com mais clareza os contornos através da comparação com os devas renanianos, semelhantes ao filosofema nietzschiano, mas só superficialmente. Ambos são tentativas de “dar uma solução superior” a uma crise de nihilismoepocal, mas a tentativa de Nietzsche revela ser mais audaz e cautelosa ao mesmo tempo. Audaz porque rejeita qualquer tendência coercitiva que apele a substitutos metafísicos e violentadores (as “sombras de Deus”, temática crucial que em outras obras Campioni teve o mérito de colocar sob a atenção dos intérpretes), mas também cautelosa porque revela ser uma pro- posta antropológica de um tipo de homem que faça do equilíbrio uma preciosa virtude, conforme a afirmação no fragmento sobre o nihilismo europeu, incompreensível de outro modo, no qual lemos:

“Quais são os homens que se revelam então os mais fortes? Os mais moderados [die Mäßigsten], aqueles que não têm necessidade de artigos de fé extremos, aqueles que não só admitem, mas também amam uma boa parte de casualidade, de absurdidade, aqueles que sabem pensar sobre o homem com uma considerável redução do seu valor, sem por isso tornar-se pequenos e fracos” 6 .

Se a imagem do Nietzsche teutônico ainda permanece, isso se deve a alguns elementos (muitas vezes equivocados) que pertencem ao seu período wagneriano, e que já ele mesmo viu-se obrigado ainda em vida a escrever Nietzsche contra Wagner, na enfastiada tentativa de dissipá-los. Campioni adentra-se assim na tentativa de esclarecer os entornos, abandonados em seguida, e as precoces tomadas de distância em relação ao autor de Parsifal. Faz isso se- guindo os vestígios, totalmente preteridos, da literatura secundária, abordando os temas da “irredutível aversão à cultura romana [latina]” (p.162) wagneriana e oferecendo uma contribuição nova e preciosa aos estudos nietzschianos com a análise da interpretação e da relação que o filósofo alemão manteve com o Renascimento.

É exatamente no ato de valorizar o Renascimento, colocado como continuação do Humanismo e antecipação do Iluminismo, que se desenrola grande parte da oposição nietzschiana à cultura alemã, “a aposição do filorromano Nietzsche com Wagner, o Germânico” (p. 201). A essa tomada de posição concorrem autores específicos com os quais Nietzsche tece um relacionamento “complexo que nada tem de passivo” (p. 233) dos quais, entre tantos, Taine, Burckhardt, Stendhal, Bourget, Gebhart. Com eles, reúne e posiciona os representantes de um espírito latino solar capaz de dissipar o nevoeiro do obscurantismo alemão: Petrarca, Boccaccio, Petronio, Michelangelo, CesareBorgia, o abade Galiani e ainda outros. Não só isso, mas da análise dessas figuras torna-se possível também compreender corretamente alguns dos temidos elementos nietzschianos como a Raubthier, o Gewaltmensch ou a relação com Gobineau, libertando o filósofo de uma imagem que, reduzindo-o “a ser tão somente um ‘professor de energia’ ou um profeta da ‘religião da força’ desemboca imediatamente no grotesco e no mau gosto” (p. 234).

Não terminam aqui os resultados que a pesquisa sobre o Nietzsche “latino” consegue trazer à luz, e são tão numerosos e variegados que seria inútil uma tentativa de resumi-los pretendendo a exaustividade. Esses resultados estendem-se desde a descoberta de fontes até o momento pouco investigadas ou ignoradas (por exemplo: Michelet, Richepin, De Custine, Lemaître, Desprez, Diderot etc.), as quais permitem observar e compreender o que acontece nos bastidores do que Nietzsche coloca filosoficamente em cena, em comparações iluminantes com autores importantes e interpretações que fazem emergir em toda a sua riqueza a meditação nietzschiana (Goethe, Byron, Napoleone, Heine…) e que fornecem uma chave preciosa para entrar nas temáticas construtivas desta cena, como o pessimismo, a morte de Deus, os homens superiores do Zaratustra, aos quais são dedicadas análises impressionantes pela lucidez e pela capacidade explicativa.

Com esse texto Campioni não só inverte, sobre incontestáveis bases histórico-filológicas, a figura – canônica no amadorismo (e não só no amadorismo) – do Nietzsche germânico para oferecer-nos, ao invés, um espírito latino que permeia o autor tornando-o mais profundo, policromático, inteligente e inteligível, dotado de uma apaixonante complexidade que aumenta enormemente o pra- zer de estudá-lo – mas demonstra também que o especialismoniet- zschiano exige como própria condição a saída do especialismo. Re- quer o enfrentamento da longa e por vezes fatigante viagem através do Dédalo de avenidas, ruas e ruelas que constituem a topografia da Cultura em sentido autêntico. Demonstra que, para ler correta- mente uma página de Nietzsche, pode ser necessário ler inteiras estantes de bibliotecas. E ensina, enfim, que grandes resultados podem ser conseguidos também seguindo metodologicamente a cautela e deontologicamente a modéstia; aquela mesma requintada e exigente modéstia que Montinari seguia quando dizia de si mesmo querer “ser um bom ‘trabalhador’, como um bom sapateiro faz bons sapatos”7.

Aclamado, por ocasião da sua aparição na França, como algo que entre os estudos nietzschianos revela ser “um acontecimento” (Le Rider); traduzido em alemão e em espanhol, é agora acolhido no Brasil como um estudo que “apresenta uma nova face do autor de Zaratustra; bem mais, torna possível que ele fale outra vez com a própria voz. Haveria maior contribuição para promover o avanço dos estudos nietzschianos?”8

Portanto, é fácil prognosticar ao Nietzsche de Campioni, aqui no Brasil também, uma ampla difusão, como acontece naturalmente aos raros textos capazes de amadurecer nas bases os parâmetros interpretativos com os quais lemos um “clássico”.

Referências

CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006. [ Links ]

MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992. [ Links ]

MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975] , editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999. [ Links ]

Notas

2Tradução de Ademir Menin.

3 Cf. o aparato da Edição à seção VII, 1984 e 1986; MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992, p. 269-282.

4 MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975], editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999, p. 154.

5 Idem.

6Nachlass/FP 5 [71], verão de 1886 – outono de 1887, § 15, datado em 10 junho de 1887 e conhecido como Fragmento de LenzerHeide. Por uma sua interpretação, CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006, p. 47-60.

7 Carta de M. Montinari a G. Colli, 29 de setembro de 1967.

8 S. Marton, Apresentação à edição brasileira, p. 18.

Stefano Busellato – Pós-doutorando na Universidade do Oeste do Paraná, Unioeste, PR. Correio eletrônico:stefano.buselatto@email.i

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Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico – AURELL et al (S-RH)

AURELL, Jaume; BALMACEDA, Catalina; BURKE, Peter;  SOZA, Felipe. Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico. Madrid: Ediciones Akal, 2013, 494 p.  SILVA, Wilton Carlos Lima da. Outras palavras: sobre manuais e historiografias¹. SÆCULUM REVISTA DE HISTÓRIA [34]; João Pessoa, jan./jun. 2016.v

Entre minhas aventuras recentes se inclui uma tentativa de praticar exercícios e alongamentos através de aulas de Pilates, que resultaram ao mesmo tempo em uma rápida melhoria de minhas condições físicas de homem obeso e sedentário ao custo de algumas pequenas dores musculares e certas sequelas em minha autoestima – se a traição amorosa dói, no entanto pode ser relativizada pelas minhas particularidade e as do objeto do meu desejo, já a percepção de que seu próprio corpo está lhe traindo e que isso acontece porque somente você é o responsável dói o dobro.  No entanto, em meio ao desconforto pela constatação de minhas limitações físicas e certo orgulho pela persistência estoica naquela atividade que expunha de forma inquestionável uma de minhas muitas limitações, uma sobrinha, que é fisioterapeuta, me consolou: “Pilates é assim. Se está fácil é porque você não está fazendo direito!”.  Ensinar história, particularmente na universidade, é um desafio de mesma natureza e que poderia ser descrito de forma bastante semelhante – quando é feito de forma simples e fácil é porque não está sendo bem feito.  A tensão entre as exigências de uma boa formação, as limitações de tempo e de recursos para a construção de um bom curso, os diferentes níveis de envolvimento e cognição dos alunos, a intensa e extensa produção historiográfica contemporânea, a acessibilidade limitada aos textos, as dificuldades de intercâmbios intelectuais, as tendências corporativas e de endogêneses teórico-metodológicas, a crescente especialização do trabalho docente, entre outros aspectos do ensino universitário, tornam o surgimento de bons manuais algo extremamente necessário e positivo.  No caso brasileiro, o destaque confirmado pelas seguidas edições de Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia3, de 1997, e o surgimento de Novos domínios da História4, em 2012, ambos manuais organizados por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, entre outros exemplos possíveis, demonstra a importância desse tipo de publicação enquanto ferramenta de trabalho para professores e pesquisadores.  Publicações semelhantes em outros idiomas oferecem uma vantagem a mais, além do mapeamento e da ordenação de natureza didática e expositiva de um campo amplo e múltiplo que qualquer historiografia dinâmica apresenta, a possibilidade do reconhecimento de convergências e divergências temáticas e teórico-metodológicas são um ganho difícil de desprezar.  Nesse sentido, Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico é um livro com quatro autores, de três países distintos e diferentes especialidades, o que se traduz em um panorama historiográfico rico e diferenciado5.  A ambição de se oferecer uma história da historiografia, pelo menos em língua inglesa, tem outros respeitáveis representantes recentes em distintas tradições intelectuais, como A History of Histories: epics, chronicles, romances and inquiries from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century (2007), um alentado volume de 553 páginas do historiador inglês John Burrow6, A global History of History (2011), outro volumoso livro, de 605 páginas, do professor anglo-canadense Daniel Woolf7, ou The Oxford History of historical writing (2011-2012) que é uma obra coletiva, em cinco volumes, que envolve uma infinidade de autores e editores distintos por volume8. Embora todas as três tenham méritos indiscutíveis nenhuma delas está livre de algumas críticas e questionamentos.  O historiador inglês Keith Thomas fez uma elogiosa resenha do livro de Burrow, professor emérito de Oxford, na qual reconhece no autor, uma das maiores autoridades sobre a história intelectual dos séculos XVIII e XIX e, na obra, o resultado de um enorme esforço de erudição, com texto um muito agradável e repleto de observações agudas9.

Embora também assinale a existência de alguns pequenos equívocos só perceptíveis por especialistas, como por exemplo, a inclusão de somente duas mulheres entre os historiadores dignos de nota (Anna Commena, um princesa bizantina do século XII, e Natalie Zemon Davis, a autora norte-americana de O retorno de Martin Guerre10) ou seu escopo de análise limitado a historiadores da Europa e da América do Norte (particularmente os que escreveram em inglês ou estão disponíveis em tradução).  Por sua vez o livro de Woolf, que já havia organizado A global Encyclopedia of historical writing11, de 1998, impressiona pela combinação de uma significativa erudição com um estilo agradável e didático, utilizando-se de mútuas referências entre textos e imagens, em um esforço de apresentação de uma abordagem claramente desvinculada da perspectiva eurocêntrica, e que em busca de uma perspectiva verdadeiramente global, ao longo de seus nove capítulos, valoriza escritos históricos da América do Sul, Coréia, Tailândia, Islândia, Tibete e Pérsia ao lado de outros da Antiguidade Greco-Romana, do Renascimento e do Iluminismo no Ocidente.  Os dois últimos capítulos, inclusive, intitulados respectivamente “Clio’s empire: European historiography in Asia, the Americas and Africa” e “Babel’s tower: history in the Twentieth Century”, trazem duas questões extremamente interessantes: a questão da força e influência dos modelos intelectuais europeus na historiografia não europeia e a poliglosia do discurso historiográfico contemporâneo.  Curiosamente, talvez como sintoma de nosso isolamento intelectual, quer pela questão idiomática quer por limitações da produção local, nas dezesseis páginas do índice onomástico da edição em inglês não existe nenhuma referência sobre a historiografia brasileira.  Finalmente, a extensa obra financiada por Oxford tem uma clara preocupação em afirmar tanto a excelência acadêmica de sua equipe internacional de estudiosos quanto a ênfase na diversidade cultural.  O volume 1, com 672 páginas, é organizado por Andrew Feldherr12 e Grant Hardy13, oferecendo ensaios de diversos autores sobre o desenvolvimento da escrita histórica a partir do antigo Oriente Próximo, da Grécia clássica, Roma, e do Leste e Sul da Ásia desde as suas origens até 600 d.C.  O volume 2, também com 672 páginas, sob coordenação de Sarah Foot14 e Chase F. Robinson15 reúne vinte e oito especialistas que buscam apresentar a diversidade da escrita da história na Europa e na Ásia entre 400-1400, realçando tanto características regionais e culturais quanto abordagens temáticas e comparativas sobre gênero, guerra e religião, entre outros aspectos, que se fazem nos trabalhos de historiadores do período delimitado.  O volume 3, com 752 páginas, é organizado por quatro especialistas, o argentino Jose Rabasa16, o japonês Masayuki Sato17, o italiano Edoardo Tortarolo18, e o canadense, já citado, Daniel Woolf19, abordando o período entre 1400 e 1800, em ordem geográfica de leste a oeste, da Ásia as Américas, com as principais contribuições da escrita da história no período.  O volume 4, com 688 páginas e organizado pelo australiano Stuart MacIntyre20, Juan Maiguashca21 e Attila Pok22, apresenta ensaios sobre a historiografia no mundo entre 1800 e 1945, abordando um leque de culturas e países que se estende do pensamento histórico e da erudição europeia passando por Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, México, Brasil e América do Sul espanhola, além de China, Japão, Índia, Sudeste da Ásia, Turquia, o mundo árabe e da África Subsaariana.  Finalmente, o último volume, de número 5, com 744 páginas e organizado pelo sinólogo Axel Schneider23 e pelo canadense Daniel Woolf, que também participou da organização de um dos volumes anteriores, apresenta um arco temporal que se estende de 1945 até os dias atuais, discutindo distintas abordagens teóricas e interdisciplinares para a história assim como buscando demarcar particularidades e similitudes entre historiografias nacionais e regionais.  O diferencial de Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico, em contraste com as obras anteriormente citadas, segundo seus próprios autores, é que o time de quatro pesquisadores permite superar as limitações de formação de um único especialista (o caso dos trabalhos de Burrow e Woolf) ao mesmo tempo em que o número relativamente reduzido de colaboradores permite a articulação do texto enquanto um panorama mais articulado e menos semelhante a um jogral com temas estanques – o caso do manual de Oxford –, resultando em uma combinação específica de volume informacional e inteligibilidade do quadro panorâmico.  A famosa frase de Gaston Bachelard, que compara o conhecimento a uma fraca lanterna que é utilizada para iluminar um grande sótão, de modo que iluminar um dos cantos do aposento é deixar boa parte dele na escuridão, é uma imagem recorrente para descrever toda obra de síntese.  Assim como os três textos referenciados anteriormente apresentam problemas e soluções para o pesquisador ou docente interessado em ampliar ou compartilhar seus conhecimentos em uma perspectiva global da produção historiográfica, o mesmo se percebe no volume de Aurell, Balmaceda, Burke e Soza.

Esse trabalho, inclusive, apresenta mais duas particularidades, uma de dimensão geracional, pois Burke pode facilmente ser reconhecido como um autor consolidado em termos de tempo, extensão da obra e diversidade de temas, Aurell e Balmacera seriam autores de produção mais recente, com obras bem referenciadas, mas que ainda estão se constituindo, e Soza é um jovem pesquisador, e o foco linguístico cultural, pois o historiador inglês, casado com uma brasileira, tem tanto familiaridade com a tradição intelectual de língua inglesa e francesa, como também em português, e os demais autores, enquanto conhecem a historiografia europeia, também transitam pela produção de língua espanhola – entre outros aspectos isso permitiu, em contraste com algumas das obras citadas, que a produção espanhola e portuguesa aparecesse desde de a Idade Média e houvesse um capítulo específico sobre a América Latina (assim como outros dois sobre a historiografia chinesa e a árabe).  O esforço em resgatar a prática da cultura historiográfica enquanto rede de relações que envolve produtores do conhecimento, seus receptores e os mecanismos de conservação e divulgação aproxima a estrutura do trabalho da obra clássica da história da literaturas Mimésis24 (1946), de Erich Auerbach, na qual a apresentação do cânone divide espaço com o incentivo a descoberta e a busca dos originais. Para isso, ao final de cada capítulo há um conjunto de indicações bibliográficas e comentários sobre as principais tendências teórico-metodológicas, os autores e as obras mais representativas de cada período.  Em termos estruturais, os dois primeiros capítulos, sobre a antiguidade greco-romana (p. 09-94) ficam a cargo de Catalina Balmaceda; o terceiro capítulo, do período medieval (p. 95-142), é abordado por Jaume Aurell; os capítulos 4º, do Renascimento e a Ilustração (p. 143-182), e 5º, sobre historiografia islâmica e chinesa (p. 183-198), são escritos por Peter Burke; o 6º, sobre historicismo, romanticismo e positivismo (p. 199-236), o 7º, sobre a transição do século XIX ao XX (p. 237-286) e o 8º, sobre o giro linguístico e as histórias alternativas (p. 287- 340), são tratados por Jaume Aurell e Peter Burke; enquanto que o 9º e último capítulo (p. 341-437), sobre historiografia latino-americana, é assinado por Felipe Soza25.  Além da oportunidade de entrar em contato com características das obras de autores pouco conhecidos na tradição intelectual brasileira, como os árabes Ibn Khaldun e Mustafa Naima, os chineses Sima Qian e Ouyang Xiu ou o indiano Ranajit Guha, o livro destaca-se pela síntese rica e ampla sobre a historiografia latino americana.  Em geral os manuais enfrentam o desafio de equilibrarem-se entre a representação da extensão de um conhecimento sobre o qual se projetam e a síntese didática e acessível de um vasto campo de conhecimento, buscando oferecer um que o detalhismo do especialista.  Com certeza todos os trabalhos aqui citados, e em especial, pelas particularidades anteriormente expressas, o livro Comprender el pasado: una historia de la escritura y el pensamiento histórico cumpre de forma exemplar tais ambições, merecendo inclusive uma tradução para o português.  Quem ler, comprovará.

Notas

1 Este texto é resultado de um estágio de pesquisa realizado na Universidade de Sevilha, Espanha, entre janeiro e fevereiro de 2016, com bolsa do Programa de Movilidad de Profesores e Investigadores Brasil-España, da Fundación Carolina.

3 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

4 CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da História. Rio de  Janeiro: Campus; Elsevier, 2012.

5 Jaume Aurell é Professor Titular de Historia Medieval e Teoria da História na Universidade de Navarra, Espanha; Catalina Balmaceda, professora de Historia Clássica do Instituto de Historia da Pontifícia Universidade Católica, Chile; Peter Burke, professor emérito da Universidade de Cambridge, Inglaterra; e Felipe Soza, professor adjunto do Instituto de Historia da Pontifícia Universidade Católica, Chile.

6 A obra foi traduzida para o português. Ver: BURROW, John. Uma História das Histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Tradução de Nana Vaz de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2013.

7 A obra foi traduzida para o português. Ver: WOOLF, Daniel. Uma História global da História. Tradução de Caesar Souza. Petrópolis: Vozes, 2014.

8 FELDHERR, Andrew & HARDY, Grant (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 1: beginnings to AD 600. Oxford: Oxford University Press, 2011. FOOT, Sarah & ROBINSON, Chase F. (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 2: 400-1400. Oxford: Oxford University Press, 2011. RABASA, José; SATO, Masayuki; TORTAROLO, Edoardo & WOOLF, Daniel (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 3: 1400-1800. Oxford: Oxford University Press, 2011. MacINTYRE, Stuart; MAIGUASHCA, Juan & POK, Attila (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 4: 1800-1945. Oxford: Oxford University Press, 2011. SCHNEIDER, Axel & WOOLF, Daniel (orgs.). The Oxford History of historical writing – Volume 5: historical writing since 1945. Oxford: Oxford University Press, 2012.

9 THOMAS, Keith. “Mapping the world – a History of Histories: epics, chronicles, romances and  inquiries, from Herodotus and Thucydides to the Twentieth Century”. The Guardian, Londres, 15 dez. 2007. Disponível em: <http://www.theguardian.com/>. Acesso em: 20 out. 2015.

10 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

11 WOOLF, Daniel (org.). A global ecyclopedia of historical writing. Londres: Taylor & Francis; Nova York: Routledge, 1998.

12 Professor de Antiguidade Clássica na Universidade de Princenton, EUA.

13 Professor da História de Religiões na Universidade da Carolina do Norte, EUA.

14 Professora de História das Religiões na Universidade de Oxford, Reino Unido.

15 Professor da Universidade de Nova York, especializado em História islâmica.

16 Professor da Universidade de Harvard, EUA, especialista em literatura e estudos pós-coloniais.  17 Professor da área de Teoria da História e Historiografia da Universidade Yamanashi, Kyoto, Japão.  18 Professor de História Moderna e de Historiografia da Universidade de Turim, Itália.  19 Professor da Queen’s University, Kingston, Canadá.  20 Professor da Universidade de Melbourne, Austrália.  21 Professor especialista em História da América Latina da Universidade de York, Toronto, Canadá.  22 Professor da Academia Húngara de Ciências, Budapeste, Hungria.  23 Professor da Universidade de Gottingen, Alemanha.

24 AUERBACH, Erich. Mimésis: a representação da realidade na Literatura Ocidental. Tradução de G. B. Sperber. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015.  25 Sobre História e historiografia da/na América Latina, ver também: MAIGUASHCA, Juan. “História marxista latino-americana: nascimento, queda e ressurreição”. Almanack, São Paulo, UNIFESP, n. 7, mai. 2014, p. 95-116. Disponível em: <http://www.almanack.unifesp.br/>. Acesso em: 21 out. 2015.

Wilton Carlos Lima da Silva Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis. Professor Livre-Docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Assis. Coordenador do MEMENTO – Grupo de Pesquisa de Memórias, Trajetórias e Biografias (UNESP Assis/ Diretório CNPq). E-Mail: <wilton@ assis.unesp.br>.

https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/download/29242/15841

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Les musulmans dans l’histoire de l’Europe. t. 1. Une intégration invisible / Jocelyne Dakhlia e Vincent

Cet ouvrage collectif ambitieux et novateur interroge, dans un premier tome, « une intégration invisible » des musulmans en Europe occidentale entre le xive siècle et le début du xixe siècle, avant de mettre en exergue, dans un second tome, les dynamiques intégratrices qui animent les sociétés de cet « entre-deux » qu’est l’espace méditerranéen. Les deux volumes partagent la même ambition d’éclairer les débats contemporains sur l’Europe, sa définition, ses contours, ainsi que ses relations avec l’islam et le monde de l’Islam. Alors que la question de la candidature de la Turquie à l’Union européenne ou le projet de l’« Euroméditerranée » ont suscité les passions et interrogé la notion même d’Europe, ces deux volumes offrent de nouvelles perspectives pour mieux remettre en cause la vision réductrice de deux mondes qui s’affrontent et dont les échanges, faits uniquement d’emprunts culturels ou de traités diplomatiques, n’auraient été que sporadiques, voire anecdotiques, avant les expériences coloniales du xixe siècle.

Aussi les deux volumes entendent-ils réviser un certain nombre de topoi pour mieux « restituer de la chair » (t. 1, p. 22) à l’histoire des relations de l’Europe occidentale avec l’islam. Il s’agit de battre en brèche la supposée ignorance islamique de l’Europe de la fin du Moyen Âge à l’époque moderne pour réévaluer des circulations méditerranéennes bien antérieures aux confrontations coloniales. Cette étude des circulations délaisse logiquement l’Europe sous domination ottomane pour privilégier les régions de frontière et les espaces de commerce, à savoir la Méditerranée, la façade atlantique ainsi que la frontière de l’empire des Habsbourg avec l’empire ottoman. L’introduction du premier tome propose un cadre méthodologique et théorique stimulant dans la perspective d’une histoire nécessairement connectée. Elle pose les termes de la réflexion et ses gageures, notamment la difficile identification des musulmans dans les sources, tout en s’interrogeant sur les raisons qui ont poussé l’historiographie à négliger les musulmans présents en Europe lors de la période couverte, jusqu’à les rendre quasiment « invisibles ».

Tout en s’appuyant sur la bibliographie la plus récente, le premier tome explore, de la côte Atlantique du Portugal jusqu’à Vienne, en passant par la France et la Grande-Bretagne, les circulations des musulmans ainsi que la nature de leur intégration sociale, voire sociétale, dans ces espaces. C’est à la recherche des formes d’accommodement à l’islam et aux musulmans, en dépit de contextes souvent conflictuels, que les chercheurs construisent leur apport, dans un souci historiographique et méthodologique constant. Selon cette perspective, la première partie est consacrée à un état des lieux de la présence musulmane en Europe, avant d’en tenter une reconstruction historiographique pour en proposer finalement une lecture dynamique. Au fil des contributions, c’est tout un monde de marchands, de serviteurs, d’esclaves, de diplomates, d’artisans ou de soldats, parfois convertis au christianisme, qui émerge pour sortir de l’ombre historiographique.

Le lecteur comprend que, selon les contextes, des stratégies de dissimulation ont pu être mises en place par les musulmans eux-mêmes tandis que les sociétés d’accueil ont parfois préféré se montrer indifférentes à une telle présence qui, parfois considérée comme banale, explique le silence des sources. Les chapitres proposent différents éclairages sur cet objet complexe, alternant entre des approches micro-historiques de groupes d’individus relativement réduits et l’exploration de présences plus massives. Le service des sœurs Ayche et Fatma à la cour de Catherine de Médicis permet à Frédéric Hitzel de réfuter le préjugé selon lequel l’empire ottoman n’aurait jamais « fourni aucun élément de population intéressant » au royaume de France (p. 33). Les itinéraires étudiés par Simona Cerutti d’un tailleur anatolien à Turin ou par Emanuele Colombo du fils du roi de Fez entré dans la Compagnie de Jésus mettent en lumière la question délicate de la frontière religieuse dans le processus d’intégration individuelle dans les sociétés d’accueil. Dans le cas de Livourne analysé par Guillaume Calafat et Cesare Santus, cette intégration, à la fois considérable et bien visible, a donné lieu à des interactions multiples dans la société portuaire cosmopolite. Ces différentes approches trouvent leur unité dans une commune réflexion sur les sources, leur analyse et leurs limites, ainsi que sur la possibilité d’y identifier des « musulmans » et leurs réseaux.

Le second tome est consacré à une étude renouvelée des passages et contacts en Méditerranée. Cet ouvrage dresse un état des lieux bibliographique, historiographique et épistémologique complet et actualisé sur la Méditerranée comme objet historiographique. Faruk Tabak en avait résumé la disparition dans le champ des études historiques  [1]. L’inclusion de travaux en anglais, allemand, italien, espagnol, bosniaque, portugais, français, turc autorise une approche connectée stimulante. Dans l’esprit des areas studies, l’espace méditerranéen n’est pas pensé à travers une indéfinissable unité culturelle, politique, anthropologique ou sociale mais comme un espace de « l’entre-deux » connecté. Au-delà de la Méditerranée « homogène », selon les approches braudéliennes, ou « divisée », selon celles privilégiant le choc des civilisations, cette vaste enquête interroge ces « Méditerranées multiples » que l’on trouve chez Sanjay Subrahmanyam ou David Abulafia.

De la Méditerranée ottomane, européenne et maghrébine en passant par la Méditerranée insulaire, l’espace se dilate jusqu’à un au-delà méditerranéen incluant les colonies portugaises en Guinée. L’étude d’António de Almeida Mendes sur les Blancs de Guinée fait le trait d’union entre espaces méditerranéen et atlantique. Un espace également imbriqué, comme le montrent les présides ibériques au Maghreb et les possessions vénitiennes en Méditerranée islamique, et innervé par un vaste système d’interactions et de parcours.

Un concept clé et fructueux a été retenu dans ce second volume pour problématiser les liens tissés entre les différentes sociétés méditerranéennes, celui de « l’entre-deux ». Il permet de dépasser l’opposition entre une approche irénique et une approche conflictuelle des modalités d’interactions interculturelles ou intersociétales. Une réhabilitation du conflit est suggérée en l’interprétant non pas comme une fracture absolue mais comme une ligne de front et d’alliance, liée à la complexité des mouvements d’une rive à l’autre, où certains sont appelés à vivre un jour de l’autre côté. Wolfgang Kaiser démontre que le rachat des captifs faisait partie de l’ordinaire et non de l’extraordinaire dans la pratique du commerce méditerranéen. Islamiques ou européennes, musulmanes ou chrétiennes, les sociétés méditerranéennes sont traversées par des dynamiques d’exclusion et d’inclusion, de rupture et d’innovation, de rapports de force, d’ouverture et d’assimilation de l’altérité. Mathieu Grenet étudie l’exemple diasporique des sujets ottomans « Grecs de nation » tandis que Natalia Muchnik propose une étude commune des diasporas morisques et marranes pour montrer leur forte hétérogénéité sociale et religieuse.

L’entre-deux introduit un espace tiers, voire une culture et une altérité tierces encouragées par des acteurs qui jouent le rôle de véritables passeurs ou médiateurs entre cultures et langues. G. Calafat s’intéresse ainsi au rôle des interprètes de la diplomatie à Alger dans les années 1670-1680, même s’il n’est pas possible d’établir un idéal-type du médiateur interculturel. Étudier les formes d’interaction entre les sociétés islamiques et celles d’Europe occidentale suppose toutefois la singularisation de l’espace méditerranéen, trop souvent lu à l’aune du schème de conquête conceptualisé dans des contextes américains et hérité du modèle colonial atlantique. L’intercirculation séculaire en Méditerranée rend structurellement impensable une « première rencontre » ou un choc et, par conséquent, la reprise du concept de métissage, favorisant le rapport d’équivalence entre vaincus ou dominés et colonisés.

La question de l’islamophobie et de l’islamophilie savante est également posée concernant les passages de l’Islam en Europe, encore peu étudiés. Daniel Hershenzon souligne la fabrique de la Méditerranée jusque dans l’historiographie à travers la propagande chrétienne de la captivité. Il suggère une histoire connectée des formes de captivité et d’esclavage des musulmans en Europe et des chrétiens à l’intérieur de l’empire ottoman en montrant que les deux systèmes étaient étroitement reliés et interdépendants par le jeu des négociations. Il reconstitue de fait un cadre méditerranéen et non national, privilégié par le champ bourgeonnant des études sur la captivité, pour restituer les liens que la captivité a tissés entre le Maghreb et l’empire des Habsbourg.

L’entre-deux est lui-même invité à être dépassé ou nuancé par trois éléments : « espace liminaire ou hors lieu », il ne figure pas toujours comme un trait d’union entre deux sociétés mais parfois comme un espace plein et neutralisé, propre à la négociation. Il peut aussi s’agir d’un espace syncrétique modelé par des individus ou des groupes sans pour autant créer un tiers espace. Enfin, l’entre-deux n’est pas un monde en soi, un « middle-ground », du fait de l’état transitoire des processus d’intégration et d’assimilation, en recomposition permanente. Au-delà des phénomènes de porosité ou de transfert, un continuum véritable peut parfois émerger sans pour autant abolir les possibles adversités. Jocelyne Dakhlia l’illustre à travers le cas remarquable de Thomas-Osman Arcos. Chrétien renié et converti à l’islam, vivant à Tunis, membre de la République des Lettres, il plaide la possibilité d’être à la fois français et musulman tout en niant son acculturation tunisienne, pourtant bien fondée. M’hamed Oualdi étudie quant à lui l’économie générale de la mobilité des mamelouks des beys de Tunis entre le xviie et le xixe siècle.

Le brassage des cultures dans l’espace méditerranéen ne doit pas occulter les continuités culturelles entre toutes ces sociétés. C’est précisément cette familiarité structurelle qui explique l’aptitude des passeurs de frontières à maîtriser si rapidement les codes d’une société autre. Ce second volume invite donc, à travers de nombreuses études stimulantes, à repenser les sociétés méditerranéennes et les rapports entre l’Europe musulmane et chrétienne, islamique et occidentale.

Clarisse Roche


DAKHLIA, Jocelyne; VINCENT, Vincent (dir.). Les musulmans dans l’histoire de l’Europe, t. 1, Une intégration invisible. Paris: Albin Michel, 2011. 646p. Resenha de: ROCHE, Clarisse. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].

L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492 / Simon Shama

En lisant cette Histoire des Juifs de Simon Schama, on est à la fois ébloui et irrité. Plus on progresse dans la lecture, plus l’admiration et l’irritation vont croissant. C’est d’abord l’admiration qui domine. Pour la stupéfiante performance de l’auteur. L’ouvrage, écrit en marge de la préparation d’une série télévisée, couvre quinze cents ans d’histoire, puisqu’il va des origines bibliques à 1492, année de l’expulsion des Juifs d’Espagne (un second volume devrait suivre, courant de 1492 à l’époque contemporaine). S. Schama n’a travaillé qu’à ses tout débuts sur des aspects de l’histoire juive et si le savoir qu’il met ici en œuvre est pour une large part de seconde main, il a effectué et assimilé des lectures d’une étendue proprement gigantesque.

Pour la période biblique et l’interprétation des données archéologiques, un sujet de débats passionnés en particulier depuis une quarantaine d’années, il s’est adressé à des spécialistes reconnus et a tracé sa voie – une voie moyenne, entre la parfaite confiance dans le récit biblique et le postulat de sa totale a-historicité. Surtout, pour les périodes postérieures, depuis l’Antiquité gréco-romaine, avant et après la destruction du Temple de Jérusalem en l’an 70, jusqu’à l’histoire des Juifs dans l’Europe du Moyen Âge tardif, en passant par le monde juif en terre d’islam, l’auteur a consulté les travaux de recherche les plus récents et les plus novateurs. L’information bibliographique, signalée dans les notes, n’est nullement ornementale : le texte principal s’appuie tout au long sur les dernières publications qui comptent, dont, soupçonne-t-on, les spécialistes, dans les différents domaines, n’ont pas eux-mêmes toujours su saisir ce qui fait leur surcroît d’utilité.

Schama donne un texte très enlevé, mais, comme on pouvait s’y attendre, il est à son meilleur dans les deux exercices où l’on sait qu’il excelle, et d’abord dans l’usage des archives visuelles et des données matérielles. Ainsi fait-il merveille lorsqu’il introduit l’exposé portant sur les déchirements internes de la société juive et les circonstances de la révolte des Maccabées par une description évocatrice du palais édifié, à l’est du Jourdain, par Hyrcan, petit-fils d’un Tobiah connu grâce aussi bien à ce que dit de lui Flavius Josèphe qu’à la documentation laissée par un intendant du ministre des finances de l’Égypte ptolémaïque, et représentant d’un milieu juif particulièrement hellénisé. Ou lorsque, pour montrer l’ouverture sur les cultures environnantes, aux iieet iiie siècles de l’ère chrétienne, du judaïsme diasporique mais aussi palestinien, S. Schama mobilise le témoignage des peintures murales de la synagogue de Doura-Europos en Syrie orientale et celui des mosaïques et des restes architecturaux de Sepphoris en Galilée. Ou encore lorsque, afin de souligner la prospérité des Juifs d’Égypte, ou en tout cas de certains d’entre eux, à l’époque, entre xe et xiie siècle, qu’éclairent les documents découverts dans la gueniza (la remise) d’une synagogue du Vieux Caire, il décrit les garde-robes que nous font connaître les papiers publiés et analysés par Shlomo-Dov Goitein et par Yedida Stillman.

L’ouvrage se distingue ensuite dans la façon qu’a S. Schama de faire du récit l’élément même dans lequel se coule une analyse. Le morceau le plus réussi à cet égard est peut-être la mise en perspective de la condition des Juifs, à la fois solide et précaire, dans l’Angleterre des années 1240-1270, à travers le récit d’une vie, celle d’une femme d’affaires avisée, Licoricia de Winchester. Les grincheux diront que l’auteur emprunte sa documentation à une monographie récente [1] [2] Certes. Encore fallait-il savoir, à partir de celle-ci, à la fois brosser un tableau et conduire une démonstration.

chama fait preuve, en chaque chapitre, d’une remarquable capacité à synthétiser les résultats de la recherche, la clarté de la discussion et sa densité faisant bon ménage. J’ai eu à plusieurs reprises le sentiment, en cours de lecture, que, sur telle ou telle question abordée, et sur laquelle j’ai eu moi-même à consulter une abondante littérature, je n’avais jamais lu de présentation ramassée aussi pénétrante, qui sache dégager ce qui compte, et permette de comprendre mieux ou autrement un épisode que je croyais bien connaître. Il faut espérer que la traduction française de l’ouvrage trouvera de nombreux lecteurs, et qu’en particulier un lectorat universitaire saura reconnaître qu’il dispose là d’une « histoire des Juifs » saisie dans toute son ampleur chronologique, qui cumule les avantages, puisqu’elle est exposée selon les critères de l’histoire savante, qu’elle est parfaitement accessible et présente en même temps toute garantie de fiabilité.

Mais l’irritation ? C’est qu’on ne voit aucune des questions fortes que l’histoire des Juifs appelle, on ne dit pas tranchées, mais seulement posées. Pour fil conducteur, S. Schama a pris le thème de la puissance des « mots » : les mots, c’est-à-dire l’exégèse d’une parole tenue pour révélée, et la réinvention constante du sens attribué à son dépôt (d’où le sous-titre : « Trouver les mots »). Ce sont ces mots, nous dit-on, qui donnent la clé d’une pérennité. Peu importe que la proposition ne pèche pas par excès d’originalité. L’ennui est surtout que, sur ces « mots », l’auteur n’est pas à son affaire. À propos de la littérature talmudique et midrashique, il reprend un discours rebattu, et qu’on espérait définitivement remisé, sur un fatras parcouru d’étranges lueurs. Il s’enthousiasme, en revanche, pour Moïse Maïmonide, sans que perce une véritable familiarité avec l’œuvre et ses problèmes. Il suffit à S. Schama de savoir que Maïmonide a tenté de réconcilier l’intérieur et l’extérieur, l’étude du donné révélé et la réflexion philosophique à l’horizon de l’universel, l’ancrage dans l’intime d’une culture et l’ouverture à des questionnements qui s’adressent à tout homme, par-delà les appartenances spécifiques, sur fond de raison partagée ; et de conspuer les adversaires de Maïmonide, obscurantistes obtus.

On ne nourrit pas nécessairement des préférences et des détestations différentes. Mais ces développements rappellent, par la combinaison de la fadeur de la pensée et du lyrisme du ton, un discours apologétique largement diffusé, au moins dans certains courants du judaïsme des lendemains de l’Émancipation. Il s’agit, aujourd’hui comme hier ou avant-hier, de montrer comment l’influence du judaïsme a profité à l’avancement de la rationalité, comment les deux causes, celle de l’identité juive et celle du progrès moderne, se rejoignent naturellement. Et si le texte atteste une baisse de tension et une dérive vers la banalité, non seulement à propos de Maïmonide (qu’à titre exceptionnel S. Schama professe admirer), mais chaque fois qu’il est question des évolutions intellectuelles et religieuses, c’est que « les mots », l’auteur non seulement les connaît mal (il n’a pour bagage que des souvenirs d’enfance et des lectures récentes peut-être pressées), mais, assez manifestement, ressent pour eux peu d’appétence, et qu’ils suscitent chez lui, d’emblée, le malaise plutôt que la curiosité.

Au point d’avoir, face à l’empire des mots, érigé un contre-modèle : celui que lui offre la vie des soldats juifs en poste à la garnison de l’île d’Éléphantine, à Assouan, que nous font apercevoir, pour l’époque de la domination perse en Égypte, des papyrus en araméen découverts à la fin du xixe siècle. L’auteur ouvre son livre sur l’existence au quotidien, longtemps sans histoires, de cette colonie aux coutumes si éloignées de celles qui prévalaient dans l’Israël biblique (ne serait-ce que parce que ces soldats ont érigé un temple, et ignoré ainsi la prescription deutéronomique qui réserve l’exclusivité du culte au Temple de Jérusalem).

De ce que lui apprennent les documents, qui portent sur la vie familiale et les transferts de biens, S. Schama tire cette leçon : « Comme dans tant d’autres sociétés juives implantées parmi les Gentils, la judéité d’Éléphantine était prosaïque, cosmopolite, vernaculaire (araméenne) plutôt qu’hébraïque, obsédée par la loi et la propriété, attentive à l’argent et soucieuse de la mode, très préoccupée par la conclusion des mariages et les ruptures, le soin des enfants, les subtilités de la hiérarchie sociale, sans oublier les délices et les fardeaux du calendrier rituel juif. Par ailleurs, elle ne semble pas avoir été particulièrement livresque. […] C’est le côté suburbain, ordinaire, de tout cela qui, l’espace d’un instant, paraît absolument merveilleux – un peu d’histoire juive sans martyrs ni sages, sans tourment philosophique, le Tout-Puissant grincheux pas très en vue ; un lieu d’une heureuse banalité, très préoccupé par les conflits de propriété, l’habillement, les mariages et les fêtes […] un temps et un monde innocents du roman de la souffrance » (p. 39).

Il est arrivé à Gershom Scholem de moquer une historiographie juive qui dépeignait parfois les patriarches bibliques comme de braves bourgmestres de Rhénanie [3]. Puis-je prendre exemple sur lui pour exprimer des doutes sur une caractérisation des « sociétés juives implantées parmi les Gentils » qui propose de promener d’une époque à l’autre l’histoire de réussite et les préoccupations typiques d’une upper middle class suburbaine ? On a dénoncé, d’ailleurs très injustement, une historiographie juive du xixe siècle trop souvent organisée autour du diptyque souffrances/élévation spirituelle, misère et grandeur. On conçoit que, en période post-moderne où les causes quelles qu’elles soient ne font ni vivre ni mourir, il paraisse judicieux d’écarter le passé de souffrances et de substituer aux récits trop inspirés le prosaïsme de l’épanouissement personnel. Et, après avoir dit sa détestation de l’histoire lacrymale, de réintroduire le malheur pour réagir contre les excès d’un discours devenu rituel de dénonciation de ce type d’histoire, mais surtout pour mieux souligner la présence continue d’une faculté éminemment contemporaine : le rebond, la résilience. Cela revient à remplacer des anachronismes ridicules par d’autres anachronismes ridicules, et à mener l’œuvre apologétique par d’autres moyens. L’entreprise peut au demeurant rencontrer l’adhésion : le livre se transformera alors en livre-cadeau, offert à des enfants qui ne le liront pas par des parents qui ne le liront pas non plus, puisqu’ils ne ressentiront pas le besoin de légitimer par des précédents historiques l’existence suburbaine d’aujourd’hui. Ce serait dommage : voilà un livre qui, malgré ces faiblesses essentielles, est une manière de chef-d’œuvre.

Notes

1. Faruk Tabak, The Waning of the Mediterranean, 1550-1870: A Geohistorical Approach, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2008.

2. Suzanne Bartlet, Licoricia of Winchester: Marriage, Motherhood and Murder in the Medieval Anglo-Jewish Community, Londres, Vallentine Mitchell, 2009.

3. Gershom Scholem, « Réflexions sur les études juives », no thématique « Gershom Scholem », Cahiers de l’Herne, 92, 2009, p. 133-145, ici p. 143

Maurice Kriegel


SHAMA, Simon. L’histoire des Juifs. Trouver les mots. De 1000 avant notre ère à 1492. Trad. par P. E. Dauzat, Paris, Fayard, [2013] 2016. 506p. Resenha de: KRIEGEL, Maurice. Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].

L’économie de Dieu. Famille et marché entre christianisme, hébraïsme et islam / Gérard Denile

Sous un titre un brin paradoxal, Gérard Delille montre comment les trois grandes religions monothéistes issues du monde antique font système au sens structuraliste du terme, autrement dit comment elles entretiennent entre elles des rapports d’inversion qui sont corrélés à plusieurs niveaux de la réalité sociale. La parenté, au sens où l’entendent en général les anthropologues, sert de levier à l’auteur, lui-même historien, afin de brosser un large tableau du développement différentiel de l’Occident et du Moyen-Orient en fonction de la prédominance de telle ou telle religion. Au-delà de la parenté, l’argument mobilise de nombreux faits de nature théologique, juridique, dynastique, technique et, enfin, économique. Sa progression emprunte à différentes échelles d’analyse, allant de la micro-histoire, en se focalisant sur les communautés dont les archives recèlent de bonnes séries généalogiques – élément clé de la démonstration –, à la reprise critique des grandes synthèses historiques classiques. Au fond, bien que G. Delille s’en défende, son propos possède une indéniable tonalité wébérienne. Il renoue de même brillamment avec Karl Polanyi et sa fameuse thématique de l’émergence, en Occident à l’époque moderne, du marché comme domaine autonome, séparé de l’activité humaine.

La première partie du livre pose les jalons en mettant en relief ce qui différencie les règles matrimoniales dans les trois sphères respectives du judaïsme, de l’islam et du christianisme. Dans le judaïsme, le mariage entre oncle et nièce est préconisé, tandis que dans l’islam, c’est celui entre cousins germains patrilatéraux qui est érigé comme norme. Face à ces logiques d’endogamie s’oppose la règle que l’Église impose progressivement, à partir du haut Moyen Âge, à tout l’Occident chrétien. Ici, une exogamie très étendue, presque infinie, prévaut puisque est frappée d’interdit toute union en deçà du quatrième canon de parenté (extension considérable qui exclut comme conjoint potentiel jusqu’aux personnes issues des arrière-arrière-grands-parents).

Au total, on peut dresser le schéma suivant. À l’exogamie quasi absolue du christianisme s’oppose l’exogamie relative des systèmes juif et musulman. Ainsi que le rappelle G. Delille à la suite de nombreux auteurs, notamment à propos du mariage arabe, ces derniers exigent toujours un assez large degré d’exogamie pour « fonctionner » ; ils ne peuvent être entièrement endogames. Cela étant, leurs endogamies respectives les différencient dans la mesure où le mariage arabe renforce la patrilinéarité, là où les pratiques endogames des juifs (qui incluent le lévirat et le sororat) tendent à effacer l’opposition entre maternel et paternel. Les juifs se rapprochent à cet égard des chrétiens qui se situent du côté du cognatisme en matière de filiation.

La deuxième partie déplace l’argument sur le terrain de l’économie. Chez les musulmans, le système parental est signe de fermeture ; seule la guerre de conquête, synonyme de re-distribution à large échelle des richesses, y est un facteur de développement. Chez les juifs, l’alternance entre endogamie et exogamie parentale aussi bien que locale, associée au maintien de liens autant paternels que maternels, privilégie la constitution de réseaux aux ramifications étendues. Ceux-ci sont prédestinés à servir de support à des opérations commerciales à distance. Enfin, chez les chrétiens, l’exogamie forcée, mais aussi la monogamie et l’impossibilité d’adopter – ce qui revient à conférer à la filiation une sorte d’instabilité structurelle – se révèlent un atout considérable d’un point de vue psychosocial. Poussant à dépasser l’horizon de ses proches pour trouver un conjoint, intériorisant la fragilité des lignages, l’exogamie incite à une ouverture maximale d’un point de vue sociologique ; elle favorise, conceptuellement, la circulation au détriment de la thésaurisation. Assortie de l’interdiction, elle aussi d’origine théologique, du prêt d’usure, elle conduit en outre à rechercher d’abord dans le progrès technique la voie du développement des forces productives. Mais l’importance de la forme que prend la famille en Occident ne relève pas seulement d’un principe abstrait, d’une aspiration à exploiter l’ouverture et l’incertitude, autrement dit à « entreprendre » au sens contemporain du terme. Car si l’Église proscrit l’usure, elle tolère en revanche le prêt avec intérêt en cas de versement différé de la dot. Du coup, le mariage devient le lieu où s’articulent potentiellement circulation des femmes et spéculation monétaire.

Moins nourrie que les précédentes et plus classique dans ses assises théoriques, la troisième partie couronne la démonstration au niveau de l’exercice du pouvoir et de la construction de l’État. Elle oppose ainsi deux modèles, à savoir le despotisme oriental et la souveraineté royale prévalant en Europe (excluant un peu trop rapidement la question du politique dans le cas du judaïsme, alors qu’elle se pose aujourd’hui avec l’État d’Israël). D’un côté, il y a une absence de médiation entre l’État – incarné par un pouvoir centralisé, autocratique et, surtout, exclusivement patrilinéaire (le harem comme ruche procréative) – et les « sujets », que ces derniers soient des paysans attachés à la terre ou des marchands. État et société y vivent dans des sphères presque entièrement étanches, la première assurant le maintien de son existence matérielle et de son appareil militaire par le biais d’un tribut imposé à la seconde. De l’autre côté, le système politique de l’Europe occidentale repose au contraire sur une solidarité sociale assez large car fondée sur la reconnaissance des deux lignées, paternelle et maternelle, et l’exigence d’alliances les plus ouvertes possible. Une hiérarchie sociale existe mais à l’intérieur même de cette solidarité englobante. Là encore le mariage joue un rôle puisque, à travers le mécanisme de la dot, il autorise une légère hypergamie féminine.

L’économie de Dieu est un livre que nous attendions depuis longtemps. G. Delille y combine avec succès et générosité les démarches historiques et anthropologiques. Sa fresque embrasse des espaces, des temporalités et des thématiques extrêmement divers, qu’il parvient à relier avec une puissance heuristique peu commune aujourd’hui. Ce véritable tour de force rend malaisée la critique. Si nous devions toutefois en formuler une, elle porterait sur le primat accordé à la notion d’échange matrimonial.

Celle-ci a été forgée par Claude Lévi-Strauss dans le cadre de la théorie anthropologique, dont Marcel Mauss est l’initiateur, d’un lien social fondamental qui reposerait sur la force de la dette. L’auteur des Structures élémentaires de la parenté, non sans avoir mis entre parenthèses le mariage arabe, avait rangé l’Occident sous la rubrique d’« échange généralisé ». Ce faisant, il diluait tellement la notion d’échange qu’elle devenait synonyme de simple « circulation ». Or G. Delille, ici comme dans ses travaux antérieurs (dont d’ailleurs ce livre est également l’heureuse synthèse), utilise les notions d’échange et de réciprocité de façon, nous semble-t-il, trop rigide. On voit mal comment un dispositif, qui exclut la possibilité d’un « retour » du transfert de la femme concédée en mariage avant cinq générations, peut être globalement conçu sous le régime de la réciprocité, même différée. En l’espèce, et plus encore dans la perspective comparative adoptée ici d’un seul système, de nature transformationnelle, du mariage judéo-islamo-chrétien, il semble plus sage de se contenter du vocabulaire de l’endogamie et de l’exogamie, même si celui-ci apparaît moins « accrocheur » que celui de l’échange matrimonial. Au reste, il s’agit là d’une objection de fond qui n’entache aucunement l’admiration que nous portons à ce livre appelé à devenir rapidement un classique des sciences sociales. Un seul regret le concernant : un appareil de références extrêmement fastidieux à utiliser. L’absence de notes en bas de page, toutes rejetées en fin de volume, et de bibliographie générale se voit bien mal compensée par l’index, aussi exhaustif soit-il.

Emmanuel Désveaux


DENILE, Gérard. L’économie de Dieu. Famille et marché entre christianisme, hébraïsme et islam. Paris: Les Belles Lettres, 2015. 344p. Resenha de: DÉSVEAUX, Emmanuel. Resenha de: Annales. Histoire, Sciences Sociales. Paris, n.4, 2016. Acessar publicação original [IF].

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.4, n.1, 2015.

 

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.4, n.2, 2015.

 

Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.16, n.2, 2016.

Educação e pesquisa online

Expediente Revista EDaPECI

Apresentação do dossiê Educação e pesquisa online

Educação e pesquisa online

Bibliografia Comentada

Publicado: 2016-09-11

Língu@ Nostr@. Vitória da Conquista, v.4, n.1, 2016.

Apresentação

Artigos – Dossiê

Resenhas

Publicado: 2016-09-05

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.15, 2016.

Artigos

Resenhas

Publicado: 2016-09-04

Letra de índios: cultura escrita, comunicação e memória indígena nas Reduções do Paraguai – NEUMANN (RBH)

NEUMANN, Eduardo. Letra de índios: cultura escrita, comunicação e memória indígena nas Reduções do Paraguai. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2015. 240p. Resenha de: FELIPPE, Guilherme Galhegos. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.

Os estudos sobre a experiência missionária vivenciada por indígenas e catequizadores na região da Bacia do Rio da Prata colonial beneficiam-se da profícua produção textual que acompanhou toda a época da empresa missional. A grande quantidade de registros, apesar de marcada pela diversidade e riqueza de informações contidas em relatos, é caracterizada por ser predominantemente uma escrita produzida pelos estrangeiros. A escrita, para os membros da Companhia de Jesus, era prática de obediência às determinações da Ordem – que remontavam às Constituições de Inácio de Loyola – e ratificação da hierarquia que determinava a eficácia da circulação da correspondência e, consequentemente, das informações merecedoras de serem compartilhadas, a fim de estabelecer a união dos seus membros (Arnaut; Ruckstadter, 2002, p.108).

A escrita epistolar jesuítica, essa “laboriosa persistência na missão” (Hansen, 1995, p.99), garantia a contínua construção da retórica da evangelização do selvagem americano por meio do discurso edificante: escrever não era apenas registrar para manter a comunicação; era, também, justificar a conversão. O trabalho catequético, no cotidiano do meio reducional, implicava aos missionários uma aproximação com os indígenas que deveria ir além do ensino diário de bons comportamentos e das genuflexões nas missas. Os membros da Companhia de Jesus destacaram-se dos missionários de outras Ordens pela imersão que realizaram no contato e convívio com os índios reduzidos por meio da linguagem. A conversão, souberam desde o início, só seria uma possibilidade se os obstáculos da língua fossem superados com o desenvolvimento de meios materiais e simbólicos pelos quais os nativos se incorporassem às relações coloniais por seus próprios termos (Montero, 2006, p.41). Em dois movimentos vetoriais aparentemente contraditórios, os jesuítas aprenderam a língua dos índios para depois ensiná-los a escrevê-la (Agnolin, 2007, p.293).

O domínio da escrita foi, pode-se arriscar, o maior legado que os jesuítas deixaram aos Guarani na época das missões platinas. Contudo, isso não quer dizer que houve uma simples transmissão de conhecimento, em que o indígena, receptor passivo, tenha adquirido os manejos de uma tecnologia da qual não dava conta a não ser no âmbito da repetição e da cópia. É o que Eduardo Neumann procura demonstrar em seu livro Letra de Índios: os Guarani não só aprenderam a escrever – em espanhol e em sua língua nativa -, como, também, apropriaram-se dos métodos, técnicas e funcionalidades que a escrita possibilita para adaptarem-na às suas necessidades.

Publicado pela Nhanduti – editora especializada em estudos indígenas -, o livro de Eduardo Neumann apresenta a sua pesquisa realizada no Doutorado em História Social pela UFRJ, defendida em 2005. Em exaustiva pesquisa em arquivos do Brasil, da Argentina, do Paraguai, de Portugal e da Espanha, o autor coletou dados empíricos que lhe forneceram evidências suficientes para compreender “como os guaranis reorganizaram suas atitudes e seus costumes diante das novas demandas e desafios da sociedade colonial” (Neumann, 2015, p.30).

Para isso, o autor desconstruiu duas considerações que por muito tempo foram tomadas como dados irrefutáveis da história das reduções jesuítico-guaranis: que os poucos indígenas que tiveram acesso ao papel e à pena só haviam conseguido exercer a função de copistas, anulando-se, assim, qualquer possibilidade de uma atuação deliberativa por parte dos índios; e, em decorrência disso, que os missionários foram os únicos a produzirem registros que poderiam ser usados como fontes de pesquisa sobre as Missões. A documentação cotejada por Eduardo Neumann comprova não apenas uma intensa e contínua produção textual realizada pelos indígenas durante o período tardio das missões platinas (segunda metade do século XVIII), como, também, uma importante atuação no que competia aos trâmites internos da administração e da burocracia das reduções, principalmente naquilo que cabia às responsabilidades do Cabildo.

A partir disso, o autor ressalta que quase toda a produção escrita pelos indígenas foi produzida, fundamentalmente, por uma elite missioneira composta por membros que ocupavam cargos administrativos. Isto é, o ensino da escrita foi uma atividade restrita àqueles indígenas cuja apreciação, por parte dos missionários, posicionava-os em um grupo seleto, com prestígio e responsabilidades específicas. Escrever possibilitou a essa elite destacar-se dentro das reduções, principalmente para atuar na organização e definições dos expedientes da administração local, mas, também, “adquirindo competências e habilidades que os credenciam como mediadores e protagonistas nesse novo mundo letrado” (Neumann, 2015, p.53).

O acesso à escrita permitiu aos índios a produção de uma variedade de obras, dentre as quais o autor destaca as memórias, as atas administrativas, os vocabulários, as gramáticas e uma importante participação na elaboração de textos devocionais – sem contar os inúmeros bilhetes e cartas, escritos em guarani ou espanhol (algumas vezes, nas duas línguas), que as lideranças indígenas fizeram circular entre si, diminuindo as distâncias entre as reduções e dinamizando a comunicação oficial com as autoridades. Esse intenso trânsito epistolar demonstra “o quanto os guaranis não eram passivos, e como atuavam a partir de dinâmicas emanadas da interação com a sociedade colonial” (Neumann, 2015, p.90).

O livro, dividido em cinco capítulos, inicia apresentando o problema do contato linguístico, em que os jesuítas, que pretendiam fundar as reduções na Bacia do Rio da Prata, buscaram normatizar a língua guarani por meio de uma “redução gramatical” (Neumann, 2015, p.49). Ao definir a escrita como um instrumento a serviço da conversão, os esforços dos missionários voltaram-se para traduzir os signos linguísticos do Guarani a fim de torná-lo o idioma oficial da sociedade missioneira. Como consequência imediata, os índios apropriaram-se da escrita sem, com isso, inferiorizar a importância da oralidade enquanto tradição coletiva. Apesar disso, escrever não foi uma tarefa difundida entre todos os Guarani, restringindo-se apenas à elite que ocupava cargos administrativos nas reduções.

Assim, o Cabildo é descrito como espaço de atuação dos índios que possuíam a habilidade da escrita. A instrução escolar era oferecida a um seleto grupo de meninos e homens nos quais os jesuítas depositavam a expectativa de virem a ser colaboradores no funcionamento e bom andamento da redução. Não demorou muito para que os índios alfabetizados passassem a ter autonomia no envio de correspondências e, por isso, revelassem seu engajamento às causas que lhes eram pertinentes. Exemplo disso foi a época da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, e a consequente Guerra Guaranítica. Não só os conflitos armados e as diferenças ideológicas potencializaram a troca de correspondência, como o próprio fato de a aliança entre os jesuítas e as lideranças indígenas ter se enfraquecido em razão das desavenças no que competia à administração das reduções: “a escrita, nesse momento, conferia uma identidade comum no modo de fazer política por parte dos índios rebelados, ao expressarem suas insatisfações com os acontecimentos em curso” (Neumann, 2015, p.125).

Se, por um lado, o uso da escrita esteve reservado a um grupo restrito de índios, por outro, o formato dessa escrita não ficou preso às demandas da burocracia missioneira. Fica evidente que “qualquer novo sistema de escrita constitui-se e é reformulado na dependência de fatores que, além de serem de natureza ‘técnica’ ou ‘científica’, são políticos, ativos ou reativos” (Franchetto, 2008, p.32). Ainda que grande parte dos textos escritos pelos índios fosse de cunho administrativo, os indígenas letrados escreveram memoriais e diários que se tornam fontes para “avaliar os modos pelos quais os índios percebiam os acontecimentos e o seu interesse em estabelecer um registro dos mesmos” (Neumann, 2015, p.144).

Com a expulsão dos jesuítas do território da América espanhola, em 1767, a instalação de uma administração laica nas reduções alterou consideravelmente a forma como a elite indígena passou a se comportar frente à gestão reducional. O novo contexto retirou as reduções e suas lideranças do isolamento político, elevando o grau de relação que os indígenas instruídos passaram a manter com as autoridades coloniais, refletindo-se em um aumento da correspondência trocada – até mesmo em um maior número de cartas bilíngues. Ainda assim, mesmo que a expressão escrita tenha sido fundamental para que as lideranças pudessem deixar registradas as suas opiniões e descontentamentos em relação à nova ordem administrativa, não houve uma disseminação do aprendizado da escrita entre os índios, mantendo-se restrita a uma elite que escrevia entre si, mas assinava por todos.

Referências

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Guilherme Galhegos Felippe – Doutor em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Pós-doutorando, PUC-RS. Professor Colaborador (PNPD/Capes) do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-RS.

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Novas perspectivas na história da escravidão / Tempo / 2016

El historiador británico E. P. Thompson dijo en una ocasión que cada vez que tenía noticia de un dios nuevo sentía la necesidad de blasfemar. Armitage (2004)

O que pode ser chamado de “novo” na historiografia? Vivemos – pelo menos a partir da década de 1970, em que houve a junção na mesma frase das palavras novo e história (Le Goff e Nora, 1976 a,b,c) – buscando novidades que venham revelar o “verdadeiro passado” e, sobretudo, que venham revelar uma metodologia que se transforme em instrumento multiplicador de novos passados.

A partir da década de 1970, a novidade era enunciada em diferentes modelos: a história social, a história cultural e a micro-história. Todas essas “escolas”, que se desenvolviam com certa autonomia, vinculadas a tradições historiográficas nacionais, podiam combinar-se solidariamente. Enquanto Carlo Ginzburg e Carlo Poni falavam em trocas desiguais no mercado historiográfico entre Itália e França, denunciando certo isolacionismo italiano (Ginzburg, 1989, p. 169-178), no Brasil se abraçavam todas as novidades que a historiografia oferecia, sem se colocar o problema da recepção sem interlocução, isto é, da desigualdade nas trocas entre as historiografias mencionadas e a brasileira.

A crise de paradigma constituiu o fundamento epistemológico e ideológico que permitiu andar com certa rapidez no caminho que conduzia da necessidade à liberdade. Como disse Emilia Viotti em artigo canônico do debate da década de 1990, houve uma inversão dos “determinantes”; o econômico, material e objetivo passou a ser “determinado” pela cultura, pela política, pela linguagem e pelo significado. A dialética esteve ausente tanto no período do predomínio do econômico quanto no período do predomínio do cultural. Aquilo que teve uma formulação crítica nas abordagens de Raymond Williams e E. P. Thompson, entre outros, terminou contrariamente à intenção desses autores em simples “inversão” das proposições (Costa, 1998b p. 9). Ginzburg e Poni apontavam que pesquisas quantitativas demandavam investimentos financeiros consideráveis, investimentos que, no final da década de 1970, somente eram possíveis para o capital franco-americano e o computador (Ginzburg, 1989, p. 170). Os dois historiadores italianos consideraram ainda que a história quantitativa serial gozava de estabilidade epistemológica e formava parte da “ciência normal”, na denominação de Kuhn. Enquanto isso era enunciado e traduzido para o português, no Brasil cresciam o desinteresse e a desconfiança sobre a história quantitativa e a história econômica, que uniram seus destinos em uma homologação apressada. Nesse período, a história econômica saiu dos departamentos de história, salvo raríssimas exceções, para ficar “marginada” do campo historiográfico e ser realocada nos departamentos de economia.

Tanto os programas de pós-graduação quanto o mercado editorial davam a público teses e livros que juntavam várias escolas historiográficas em um convívio de fazer inveja aos “globalistas” contemporâneos. Conjugou-se o que aquelas tinham em comum: a circunscrição dos objetos, o método onomástico e o papel da “agência” (Ginzburg, 1989, p. 174; Johnson, 2003, p. 113-124). Houve outro processo de “inversão”; nesse caso nos referimos à inversão parcial dos objetos e dos métodos. Antes se utilizavam métodos quantitativos para abordar os estratos subalternos e o onomástico para as elites; a partir da década de 1980, utilizou-se o método onomástico para estudar os setores subalternos, resgatando a subjetividade do vivido, combinando micro-história com história social, ou história da cultura com micro-história. A subjetividade foi colocada em primeiro lugar, ao ponto que a escravidão foi estudada pelo prisma da liberdade. Como diz Johnson, não é necessário criticar os ganhos feitos com o conceito de “agência”, mas devemos colocar os limites de uma noção que parece falar mais de nós que dos sujeitos da nova história social. Em geral, os estudos sobre as classes subalternas, e entre eles os escravizados, tendiam a valorizar “qualidades” da individualidade, noção cara ao liberalismo (Johnson, 2003, p. 116). Apesar da polissemia da palavra agência, Johnson a vincula principalmente a categorias liberais do século XIX. A respeito dos estudos sobre a escravidão, podemos afirmar que, depois de depurados de conceitos como coisificação, anomia e anomalia, a historiografia buscou mostrar escravos iguais a “nós”, não somente do ponto de vista da humanidade compartilhada, mas iguais de um ponto de vista de uma racionalidade cartesiana, buscando empatia com o leitor. Premiaram-se com as narrativas os bem-sucedidos, os que agiram segundo critérios que são reconhecidos dentro de uma racionalidade que maximiza as oportunidades. Foi definido que o oposto de escravidão era liberdade, nos moldes da filosofia do século XVIII (Buck-Morss, 2009, p. 21-23), mais que comunidade. Houve também uma historiografia que entendeu a “agência” a partir da perspectiva do outro, sem projetar os valores contemporâneos e ocidentais às sociedades pretéritas (Gomes, 2005Machado, 1988 e 2010).

Mas se, por um lado, parece que fomos longe com o conceito de agência, por outro parece que não avançamos o suficiente com ele. É o caso dos estudos sobre a chamada “escravidão contemporânea”. Nesses estudos, continuam a predominar os enfoques “abolicionistas”, em que o protagonismo recai sobre os agentes da liberdade, os magistrados e fiscais do trabalho, e não as ações dos “escravizados”. Estes aparecem, em geral, como vítimas de esquemas nos quais não fizeram escolhas, salvo algumas exceções não predominantes na historiografia sobre o tema (Rocha, 2015Ferreras, 2013).

Tudo o que era novo nas décadas de 1970, 1980 e 1990 se tornou “ciência normal” no decorrer do final do século XX ao início do XXI, isto é, o paradigma predominante e quase exclusivo. Termos sistêmicos, como capitalismo e escravismo, foram “erradicados” dos vocabulários histórico-acadêmicos. No expurgo conceitual, aconteceram operações surpreendentes, como a que autonomizou a “brecha camponesa” do complemento / oposto que lhe dava sentido: “brecha campesina no sistema” (Cardoso, 1973, p. 216). De qualquer forma, houve uma notável renovação nas abordagens sobre a escravidão no Brasil. É difícil inventariar todas as contribuições, mas podemos mencionar algumas, como os estudos sobre a escravidão urbana, sobre práticas sociais de compadrio, família e demografia escrava, sobre práticas econômicas e identitárias, resistência escrava, normas e práticas legais relacionadas com o cativeiro, sobre práticas e estratégias no mundo rural, sobre alforrias etc. Embora muitos desses temas não fossem totalmente novos, tiveram uma nova perspectiva de abordagens e um novo repertório documental (Marquese, 2013, p. 228).

Também o nacionalismo metodológico foi predominante entre as últimas décadas do século XX e o início do XXI. Prevaleceram o particularismo e a excepcionalidade dos objetos e das perspectivas. As sínteses existentes foram examinadas, e em todas se encontraram excepcionalidades que não confirmavam a regra. Foram tantas as exceções achadas que a regra pareceu ser uma delas. Devemos mencionar que, a partir do final da década de 1980 e durante a de 1990, vivenciamos uma renovação geracional nos quadros acadêmicos universitários. O que transformou a disputa historiográfica no Brasil em uma disputa pela ocupação dos espaços acadêmicos. Como nos advertiu Bourdieu (1983, p. 1): “O universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas específicas. ” À crise de paradigma se somou a necessidade de legitimação dos novos quadros institucionais, o que levou a uma “radicalização” das críticas. As obras de autores como Caio Prado e Emília Viotti da Costa foram desqualificadas e citadas somente como antimodelos.1 Houve um novo consenso, o de que a teoria do “escravo-coisa” era compatível e até assimilável com as teorias sobre o funcionalismo do capitalismo. Isto é, que as explicações sistêmicas, aqueles que entendiam a escravidão a partir de uma lógica mercantilista primeiro e capitalista depois, eram compatíveis com os postulados da escola sociológica paulista.

Tudo o que era sólido se desvaneceu. As estruturas e as explicações estruturais foram abandonadas, e o contingencial ocupou o lugar que antes ocupavam aquelas. Na busca de novas fontes que permitissem enxergar do ponto de vista dos sujeitos subalternos, deu-se grande destaque às de origem judicial. As falas e estratégias individuais esgrimidas no judiciário foram tomadas e interpretadas sem que estivessem vinculadas à estrutura judicial e administrativa. A fala em primeira pessoa ocupou lugar de destaque sem que se prestasse atenção nas mediações. Na primeira metade do século XX, tinha predominado uma historiografia institucional em que os homens sucumbiam ante as leis e as instituições. Na segunda metade e, sobretudo, a partir da década de 1980 predominou uma historiografia em que os indivíduos usavam da lei (e da justiça) sem que esta os condicionasse. Dissera Pierre Vilar (1983, p. 106-120) que “a importância do direito na interpretação histórica de uma sociedade é que denomina, qualifica e hierarquiza qualquer divórcio entre a ação do indivíduo e os princípios fundamentais dessa sociedade”. Mas a diferença entre as ações dos indivíduos e os princípios da sociedade dificilmente foi cotejada.

A partir da primeira década do século XXI, vemos aparecer trabalhos que alargavam as fronteiras do observado. Primeiro, em um sentido literal, ultrapassando as fronteiras nacionais (Curthoys e Lake, 2005, p. 5-20); segundo, em um sentido metodológico, buscando as heterogeneidades culturais (Cornejo Polar, 1996), as mestiçagens (Gruzinski, 2001 e 2015) e as conexões (Subramayan, 1997, 2007 e 2012) de um mundo que começou a ser enxergado a partir de vários pontos de vista (Bertrand, 2011, p. 11-28).

A historiografia da escravidão nunca abandonou totalmente as perspectivas mais amplas, mundiais e “globais”, como no caso dos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro e Robin Blackburn. Nestes, houve um enorme esforço de explicação de processos históricos na longa duração e em espaços amplos. Daí que Alencastro diga em seu prefácio que não se tratava de estudar de forma comparativa as colônias portuguesas no Atlântico, mas de mostrar como as partes unidas pelo oceano se complementam em um sistema de exploração colonial (Alencastro, 2000, p. 9). Essas abordagens foram de alguma forma “marginais” à historiografia dominante e lidas como “contextuais”. A inovação estava nas escritas monográficas, circunscritas, com destaque para a subjetividade e as estratégias no cotidiano.

Nesse contexto, qual é a atualidade de um dossiê sobre escravidão?

No caso do Brasil, escravidão é daqueles temas sobre os quais recai grande parte da produção historiográfica e no qual se concentra boa parte das discussões internacionais. Pensar em novos problemas a respeito é pensar em tempos e espaços largos. Em primeiro lugar, significa estar atento à periodização. Sem abandonar os ganhos feitos a partir do conceito de agência, uma “nova” historiografia (novo Deus a ser blasfemado?) propõe estar atento ao “movimento global”, não como contextual, mas como parte do problema. Se a conflitividade entre senhores e escravos aumentou internamente depois de 1850, isso se deveu às tensões recorrentes do tráfico interprovincial articulado ao movimento mais amplo do mercado internacional (Marquese, 2013, p. 234). Assim, a questão da periodização, matéria fundamental para o ofício do historiador, foi colocada no centro da cena. Dessencializaram-se a condição escrava e a escravidão, vindo estas a estar expostas às contingências do devir histórico. Mas não somente o tempo está sendo repensado, também o espaço. Por isso afirmamos que tempo e espaço se alargaram. A escravidão foi colocada no mundo atlântico, um mundo atlântico que se inscreve em uma oceanografia maior, que pode incluir o índico e o pacífico (Alencastro, 2015, p. 1-79). Evidentemente, o recorte nacional deixou de ter capacidade heurística, embora não a dimensão local. Os estudos da escravidão tendem a uma história supraespacial.

Neste dossiê, Flávio Gomes, no artigo “Africans and “nations” in the slave trade through parish registers: preliminary notes for comparative perspectives on Brazil and Cuba in the seventeenth century”, oferece-nos um exercício metodológico: comparar as formas de registrar as “nações” africanas nas fontes paroquiais em Brasil e Cuba. Reúne cerca de 2.200 registros de batismos, casamentos e óbitos para as freguesias de Candelária, Sé, Cabo Frio, Irajá, Jacutinga, Magé, São João Batista de Niterói, Bonsucesso de Piratininga, Maricá, Itaboraí, Suruí e Engenho Velho para o Brasil. Para Cuba, analisa cerca de 900 registros de batismos e casamentos das paróquias de Guanabacoa e Santo Angel Custodio. Ambas as regiões são analisadas em um período prévio à sua transformação em áreas de plantações, quando passaram por grandes mudanças com a montagem de estruturas produtoras de açúcar baseadas no trabalho escravo. No entanto, no século XVII eram sociedades escravistas incipientes, cuja força de trabalho incluía escravos africanos e os povos indígenas, como evidenciam os registros analisados no artigo.

Como diz o autor, ainda sabemos pouco sobre os padrões de classificação das “nações africanas” nos registros paroquiais para destas poder inferir origens e identidades. Mas a abordagem comparativa permite descartar generalizações. Embora a Igreja fosse uma “instituição transnacional”, as formas de registro também estiveram condicionadas pelas práticas sociais locais, e Gomes nos alerta a estar atentos a elas. Discorrendo sobre as potencialidades dos registros paroquiais e os etnônimos, o autor afirma que podem ajudar na compreensão dos pontos de vista dos agentes coloniais sobre a África e os africanos, tanto quanto sobre a autorrepresentação.

No jogo necessário entre o macro e o micro, Flávio Gomes salienta que, sem perder de vista os aspectos africanos do comércio de escravos, as áreas de captura, as lógicas locais de microssociedades envolvidas no comércio de escravos, é essencial analisar contextos sociais e demográficos específicos. Esses contextos locais, estudados em perspectiva comparada, poderiam sugerir uma cronologia das adaptações e sociabilidade dos africanos e seus mundos circundantes nas Américas.

Preocupada em compreender melhor o funcionamento da instituição na chamada segunda escravidão – marcada por uma maior proporcionalidade de escravizados africanos -, Martha Santos, em ““Slave Mothers,” Partus Sequitur Ventrem, and the Naturalization of Slave Reproduction in Nineteenth-Century Brazil” mostra como os proprietários de escravos e políticos no Brasil após 1830 propõem explorar a vida sexual e reprodutiva das mulheres escravizadas a fim de gerar a domesticidade dos “ameaçadores” africanos.

Santos salienta que, embora o princípio romano de ventrem partus sequitur tivesse uma longa tradição na América portuguesa, no Brasil foi revitalizado a partir do fim do tráfico. Nesse momento, a reprodução da escravatura por meio dos nascimentos tornou-se um ponto focal de debate. Santos não se preocupa com a questão numérica da reprodução, mas com as questões simbólicas que nortearam os debates em que a antiga noção de ventrem partus sequitur adquiriu renovada importância jurídica, embora seja naquele contexto que o debate sobre a condição do ventre se incentiva.

A autora convida o leitor a prestar atenção nos discursos sobre a escravidão que surgiram desde o início da década de 1830 e que, de fato, naturalizaram a categoria de “mãe escrava” com a finalidade de dar centralidade à reprodução escrava. Esses discursos estariam motivados tanto pela preocupação com a reposição da mão de obra uma vez acabado o tráfico quanto com as rebeliões de escravos lideradas por homens. Nesse sentido, as mulheres escravizadas poderiam atender a esta dupla preocupação patronal: como reprodutoras da força de trabalho escravo e como “pacificadoras” de incontroláveis cativos.

O artigo de Norberto O. Ferreras, “A escravidão depois da escravidão: a questão do trabalho compulsório na constituição das organizações internacionais no período de entreguerras”, analisa, em uma perspectiva global e transnacional, a construção da categoria legal e discursiva da escravidão, historicizando a categoria e, portanto, desnaturalizando-a. Nesse sentido, afasta-se das abordagens que têm utilizado o conceito de “escravidão contemporânea” de forma a-histórica, dando o sentido de “continuidade” da instituição oitocentista.

O artigo examina as formas de controle e normatização do trabalho no decorrer do século XX, partindo da visão global, hemisférica e, portanto, civilizadora das primeiras instituições transnacionais que se ocuparam do tema do trabalho – da Anti Slavery até a Sociedade de Nações (SdN) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Salienta as diferenças entre elas e as tensões geradas entre a esfera global e a local. Enquanto a SdN buscava proteger a liberdade dos indivíduos, a OIT protegia o trabalho. Para a última, a perda da liberdade do trabalhador não estava vinculada à perda da liberdade individual, e sim à da liberdade econômica, uma vez que o trabalhador escravizado ou forçado não podia vender a força de trabalho “livremente”. No período entreguerras, essas organizações tiveram de lidar com a disjuntiva de que sem o trabalho indígena as colônias não prosperavam. Para entrar na “civilização”, era necessário participar do mundo do trabalho normatizado. Atento aos descompassos entre o global e o local, Ferreras salienta que os países da América Latina rejeitaram durante a década de 1920 a categoria de “trabalho indígena” com a qual a OIT queria englobar algumas experiências da região. Analisa convenções e recomendações da OIT como ponto de partida para alcançar acordos diplomáticos entre as potências colonizadoras de modo a limitar o trabalho forçado. Como acontecera no século XIX, os países que tinham tomado a iniciativa de aderir ao combate do trabalho forçado pressionaram os outros para também adotarem medidas restritivas.

O artigo de Ferreras outorga visibilidade à questão da escravidão e do trabalho forçado para além das balizas do século XIX. Portanto, oferece-nos uma importante contribuição para analisar a questão do trabalho na “era do mercado de trabalho” e de suas regulações.

Nota

1. No Simpósio Nacional da Anpuh de 2003, realizado em João Pessoa, Emilia Viotti da Costa apresentou em uma conferência seu livro Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos em Demerara em 1823(1998a) como uma proposta metodológica e evidência de que era possível e salutar uma historiografia que incluísse a liberdade e a necessidade, de forma dialética. Mas essa não foi a tendência predominante na historiografia do novo milênio.

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María Verónica Secreto – Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: mvsecreto@yahoo.com


SECRETO, María Verónica. Apresentação. Tempo. Niterói, v.22, n.41, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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