Posts de Itamar Freitas
História e Linguagens / Mnemosine Revista / 2017
História e linguagens, arte e sociedade
Carl Schorske, em seu belíssimo livro Pensando com a História, apresenta aos seus leitores as particularidades de Clio, musa da História, a qual tece o seu tecido com os fios colhidos em outras disciplinas, formando um mosaico único que chamamos de narrativa histórica. Segundo o autor, a habilidade maior desta musa está em saber trançar os materiais colhidos e os conceitos adotados, que não necessariamente foram plantados ou criados por ela, em um tear do tempo que de fato é seu, construído a partir de perspectivas particulares, próprias do seu oficio.
Pensar a história como um campo interdisciplinar não é apenas admitir a possibilidade de se utilizar objetos e conceitos de outras áreas para a construção do conhecimento histórico. Ao contrário, é partir do pressuposto de que o historiador pode estabelecer canais de comunicação a partir das especificidades do seu ofício, fazendo perguntas e estabelecendo interlocuções que o diferencie dos sociólogos, dramaturgos, cineastas, críticos, etc. Sendo assim, eleger um objeto artístico como fonte de uma dada pesquisa requer, por parte dos pesquisadores, o enfrentamento dos desafios teórico-metodológicos inerentes a um espaço de conhecimento que se encontra nas fronteiras entre saberes específicos. Cabe, tal como proposto por Carl Schorcke, tornar “significativas e frutíferas” essas relações, construindo uma trama que permita o enfrentamento de novas e instigantes questões.
Tal reflexão diz muito sobre os trabalhos que serão apresentados nesse dossiê, haja vista que o elemento que os unem é justamente esse olhar múltiplo para o campo historiográfico, compreendendo os homens (tanto os estudados, como os que os estudam) como seres multifacetados, entremeados em diferentes teias de relações, as quais podem (ao menos parcialmente) ser apreendidas a partir das linguagens artísticas outrora construídas por eles. Sob esse prisma, a ideia chave para a compreensão dos mesmos é o de interdisciplinaridade, pensada aqui não apenas como teoria, mas como uma segunda pele que reveste desde a escolha dos temas até a urdidura dos textos.
Neste sentido, o diálogo entre História e Arte pressupõe não apenas encarar o estudo das linguagens e da ficção (em qualquer recorte temporal e espacial) como objetos de pesquisa para o historiador, como também a constante compreensão e desafio do próprio fazer histórico e sua escrita como variantes de perspectivas representacionais, simbólicas, de formação e de contatos com determinados grupos sociais e de estudo. Por outro lado, uma problemática que se apresenta é se debruçar sobre questões da especificidade da análise da obra-de-arte, seja ela cinema, teatro, música, literatura ou artes visuais. Ao prender-se em uma visão mais “panorâmica” da história da arte, as ideias e as diversas obras são estudadas como pontos abstratos que, em conjunto quantitativo, formam o número de produções ao longo da história.
Analisar dessa maneira não significa perder a ligação que elas compõem entre si, mas, sobretudo, compreender suas peculiaridades e as singularidades de seus autores naquele determinado momento de produção. Dessa forma, buscou-se trabalhos que conciliassem, independente da região ou período da pesquisa, esse contato entre o interno e o externo da obra (suas características estéticas e sociais), unindo texto e contexto – para utilizar um termo de Antonio Candido.
Sob esse prisma, parte-se do pressuposto de que a História é um campo múltiplo, que acolhe uma infinidade de possibilidade de temas, bem como de perspectivas teórico-metodológicas. E é justamente essa diversidade e interdisciplinaridade, bem como o rigor intelectual e interpretativo, as marcas que este dossiê busca trazer aos seus leitores. Por isso, para além do eixo principal “História e Linguagens”, tem-se aqui algo mais amplo que é a relação entre cultura e homem, em diferentes temporalidades e espaços.
Em um dossiê que se apresenta com uma amplitude de temas na área das linguagens e da cultura humana em seus artigos, ainda se destaca, em meio aos estudos teatrais, cinematográficos e imagéticos de maneira geral, a valorização precisamente da imagem em si mesma, para além do próprio texto. Em seu ensaio Mundo Imagem, a ativista e escritora americana Susan Sontag nos diz algo realmente muito impactante: o mundo não é texto, é imagem! A colocação da autora choca de imediato, pois ela é diametralmente oposta a proposta de uma sociedade que se entende essencialmente como letrada e que muito valoriza o conhecimento escrito. Esses elementos são centrais numa concepção iluminista e evolucionista para o que se entende como “moderno”, em contrapartida para o “primitivo” e “não racional” que privilegiaria o oral.
Apesar desse “mito” da modernidade, ao observarmos em longuíssima duração diferentes agentes e grupos sociais, o que se percebe é um constante uso e / ou apropriação de imagens para a produção de discursos político-sociais, religiosos e culturais, e esse é um dos principais elementos de contribuição dos artigos aqui propostos, enriquecidos com discussões também sobre música, literatura, entre outros. Nesse ínterim, justamente para abrir o dossiê, propõe-se a disposição do artigo “Happy Birthday, ‘Sgt. Pepper’: as comemorações de aniversário do mais emblemático álbum dos Beatles”, que constrói análises sobre a relação entre música e recepção a partir da problematização da memória musical e da indústria cultural do país através da análise da imprensa brasileira sobre as comemorações desse álbum dos Beatles.
Dialogando teatro, encenação, ator e literatura dramatúrgica, Dolores Puga Alves de Sousa, André Luis Bertelli Duarte e Rodrigo de Freitas Costa formam uma tríade de discussões historiográficas acerca do universo teatral e televisivo da década de 1960 e 1970 no Brasil. Com o artigo “Análise do espetáculo teatral: a encenação de Gota D´água nos anos de 1970 no Brasil”, Dolores Puga avalia as premissas do diretor Giani Ratto, sua trajetória, ideias estéticas e políticas para esse momento histórico no país. Em “Mirandolina – da Estala jadeira de Goldoni à Favorita do Bairro de Vianinha: adaptação televisiva de um clássico italiano da década de 1970”, André Duarte analisa as historicidades tanto do texto original Mirandolina, de Carlo Goldoni na Veneza dos anos de 1753, quanto às adaptações na TV de Oduvaldo Vianna Filho para o Brasil de 1970. Já no artigo “Ruth Escobar e o início dos anos 1960 no Brasil: a atriz luso-brasileira frente aos desafios do engajamento teatral”, Rodrigo de Freitas Costa propõe um debate acerca do teatro engajado nacional a partir da avaliação da trajetória profissional da atriz luso-brasileira Ruth Escobar.
Na leva de análises cinematográficas, têm-se o diálogo tanto entre cinema e teatro, quanto de cinema e religiosidade. O dossiê apresenta, assim, um colóquio entre produções fílmicas brasileiras dos anos de 1960 e 1970. Inicia com o texto “[In]convenções representacionais em Navalha da Carne (1967 / 1969) de Plínio Marcos: Perfomances da Contraviolência”, de Robson Pereira da Silva, que discute o texto teatral de 1967 Navalha da Carne, de Plínio Marcos, e sua adaptação cinematográfica realizada pelo diretor Braz Chediak, em 1969, compreendendo o Brasil dos anos de 1960 para a década posterior com as análises do chamado “milagre econômico” e o estado de exceção. Já Fábio Leonardo Castelo Branco Brito e Edwar de Alencar Castelo Branco apresentam o texto “Estilhaços, diáspora e desterritorialização: vivências juvenis nos super oitos Por enquanto (1973) e Tupi Niquim (1974)”, abordando análises fílmicas de Carlos Galvão sobre as vivências de jovens teresinenses no Rio de Janeiro nos primeiros anos da década de 1970, os quais compartilharam experiências com o poeta e letrista piauiense Torquato Neto em um processo de desterritorialização geográfica e afetiva.
No quesito cinema e religião, o dossiê apresenta o viés cômico da vida de Cristo, pelo olhar do grupo Monte Pyton e sua obra de 1979, no texto “A Paixão de Brian – uma breve análise do filme A Vida de Brian sob o viés da Paixão de Cristo”, de Tami Coelho Ocar, o qual analisa o estudo de Jesus histórico e suas representações. Complementando esse viés, Lair Amaro dos Santos Faria propõe um debate entre várias produções fílmicas que retratam a narrativa da ressureição de Lázaro, exclusiva do evangelho de João, pelo artigo “A ressureição de Lázaro nas telas do cinema”, abordando a diferença significativa entre os públicos do evangelho e da cinematografia.
Na linha de diálogo entre cinema e televisão, Victor Henrique da Silva Menezes ainda enriquece o dossiê com seu texto “Quando (não) há interesse pela ‘Rainha da Bitínia’. Recepções antigas e modernas da virilidade de Júlio César”, que, embora não trabalhe com a perspectiva religiosa, explora análises da antiguidade e suas recepções fílmicas, problematizando as imagens criadas da figura de Júlio César nas películas e abordando questões acerca da virilidade e do masculino.
Em contrapartida, fomentando análises da perspectiva religiosa na imagem feminina, Juliana Batista Cavalcanti – em seu texto “Um Discipulado CoIgual. Repensando a Categoria de a*delfoiVgunai’ka” –, analisa a função das mulheres no movimento cristão e sua atuação missionária nos paleocristianismos, levantando críticas sobre os silenciamentos da temática pela forma como se estabeleceram as traduções para o português. Em diálogo com análises da imagem feminina, María Cecilia Colombani explora, em seu texto “Los vasos “hablan”: lãs mujeres enimágenes. Mismidad y Otredadenlaficción genérica”, a representação da mulher nos vasos de cerâmica do período arcaico e clássico gregos, problematizando a relação do “mesmo” e do “outro” em uma dada cultura.
Ainda na relação historiográfica com a imagem, o dossiê apresenta artigos no diálogo imagem / poder e imagem / moralidade nas artes visuais, a partir de análises de Portugal e Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX. Assim se fundamenta o texto de Rodrigo Henrique Araújo da Costa, “Imagens das realezas do Império absolutista português: um estudo da relação entre o poder político da Coroa e as pinturas dos monarcas portugueses (1706-1826)”, que problematiza a questão das propagandas monárquicas a partir da avaliação das figuras retratísticas oficiais dos reis portugueses, nas pinturas, em comparação às trajetórias das nobrezas reais. E, da mesma forma, se configura o texto de Laila Luna Liano intitulado “Luzes e trevas: a moral ilustrada nas imagens de William Hogarth na Inglaterra do século XVIII”, o qual aborda as obras do pintor e gravador inglês William Hogarth (1697-1764) e o pensamento de moral nele suscitado.
O dossiê ainda apresenta outra análise sobre as terras britânicas, no entanto do século XV, abordando a relação entre imagem e morte. No texto “Da Carne ao Alabastro: formas de mostrar o corpo a partir da tumba de Alice de La Pole (Inglaterra, séc. XV)”, Amanda Basilio Santos explora as representações mortuárias a partir da iconografia presente na tumba transi da Duquesa de Suffolk, Alice de la Pole. A imagem ainda está presente em diálogo com a religiosidade no artigo “O medievo e a função das imagens na liturgia: uma breve tradução cultural do culto de São Francisco da comunidade Nova Assis em Capanema do Pará”, de Leonardo de Souza Câmara e Roberta Alexandrina Silva. Nesse texto, propõe-se fazer uma tradução cultural do culto de são Francisco por meio dos objetos litúrgicos na romaria à comunidade Nova Assis em Capanema do Pará em diálogo com o culto ao santo no medievo. Além disso, a perspectiva religiosa é mais uma vez abordada no texto “A Voz Que Grita no Deserto: João Batista Histórico e Seu Movimento”, de Vítor Luiz Silva de Almeida, no qual se analisa criticamente a trajetória de João (cognominado Batista) e seus seguidores inseridos nos movimentos e agrupamentos sociais de resistência na Palestina romana do século I.
Para finalizar a apresentação, o dossiê se fundamenta de artigos que exploram a literatura em suas diversas relações: seja pela perspectiva religiosa em conjunto com sua recepção, seja pela análise literária em conto ou pela estrutura e teoria literária. Em seu texto “Ireneu de Lyon e a Gnose Paleocristã: o uso do discurso performático em AdversusHaereses – século II EC”, Nathalie Drumond Alves do Amaral problematiza a pluralidade de interpretações sobre os ensinamentos de Jesus de Nazaré na realidade do paleocristianismo do século II, analisando o empenho discursivo como os do bispo Ireneu de Lyon, da região da Gália em sua obra Adversus Haereses.
Ao mesmo tempo, em seu texto “O sincretismo cultural nas aventuras de Pedro Malasartes”, Talitta Tatiane Martins Freitas propõe uma reflexão acerca do arquétipo do anti-herói e malandro, por meio da figura de Pedro Malasartese do folclore presente em seus contos. No texto “A descoberta das estórias como superação: Pingo-de-Ouro e Dito”, Mayara de Andrade Calqui parte de uma perspectiva psicanalítica das perdas afetivas e do luto nas estórias de Guimarães Rosa. Fechando o dossiê, no texto “Para além do velho mundo: problemáticas da dramaturgia comparada no Brasil”, Alexandre Francisco Solano explora o debate da formação da Literatura Comparada no mundo e, posteriormente, na América Latina, para apontar dificuldades e caminhos encontrados na comparação entre obras literárias e apresentações teatrais.
Os temas são ricos e múltiplos. Convidamos a todos a desfrutar desta proposta de enlace entre História, Linguagens, Arte e Sociedade. Tenham todos uma boa leitura!
Talitta Tatiane Martins Freitas – Doutora. Professora substituta no curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS / CPCX). Integrante do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura. Pesquisadora CNPq do grupo de pesquisa “História Cultural”.
Maria Dolores Puga Alves de Sousa – Professora Adjunta do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS / CPCX). Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ / PPGHC). Pesquisadora CNPq do grupo de pesquisa “História, Cultura e Sociedade” e do grupo “Universo Dialógico – Grupo de Pesquisa em Cultura, Política e Diversidade”.
Maria Juliana Batista Cavalcanti Miranda Tavares – Doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ / PPGHC). Pesquisadora e Coordenadora da Coordenadoria Cristianismos do LHER – Laboratório de História das Experiências Religiosas (IH-UFRJ).
FREITAS, Talitta Tatiane Martins; SOUSA, Maria Dolores Puga Alves de; TAVARES, Maria Juliana Batista Cavalcanti Miranda. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.8, n.1, jan / mar, 2017. Acessar publicação original [DR]
Deconstruir el archivo: la historia/la huella/ la ceniza | Ricardo Nava Murcia
LA RESEÑA EN LA ERA DE LA NUEVA DISPERSIÓN
Las ideas que a continuación aparecen –al fin espectros– intentan estar en tono y armonía con el reto impuesto por la obra que se reseña; esto es, el de ser capaces de proveer un ámbito propicio de diseminación y “destinerrancia” del pensamiento y constituirse como cónclave abierto a las diversas maneras de la imaginación. Se trata, entonces, de un intento por hacer de la escritura una recepción –rearticulación– filosófica e historiográfica. Sí, una invitación a la lectura del libro y mensura de su valía y pertinencia académica, pero desde una perspectiva del estado del arte que se radicaliza en los términos estéticos que componen epistémicamente los rasgos de la incertidumbre como modo del ser y la narración de sus historias. Leia Mais
The Story of Pain. From Prayer to Painkillers | Joanna Bourke
Nacida en una familia humilde en Pennsylvania, Mary Rankin vivió una vida larga y llena de amargura. Su precaria salud y sus continuos coqueteos con la muerte hicieron de ella una escritora sui generis, que sólo publicó The Daughter of Affliction (1871). El libro, cuyos cuatro mil ejemplares se agotaron con rapidez, narra una historia de religiosidad y sufrimiento que constituye uno de los cientos de fuentes que dan solidez al texto de Joanna Burke. En él, Rankin afirma que a pesar de sus atroces dolores resolvió negarse a aceptar cualquier forma de aliviarlos. Su mente –razonaba la piadosa decimonónica– podría embotarse de tal modo que la inconsciencia le impediría percatarse de su encuentro con el Creador (p. 285). Leia Mais
Ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX: novos objetos e nova temporalidade em um panorama internacional / Varia História / 2017
Desde fins do século XIX, não só no Brasil, raça foi um dos temas mais recorrentes entre pensadores sociais, literatos e cientistas, sobretudo aqueles ligados à medicina, à antropologia e à história natural. Com a emergente discussão sobre evolução, saúde pública, imigração e ocupação dos territórios nacionais, o tema se tornou ainda mais premente, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações sobre a formação e o desenvolvimento biológico dos povos dos vários países do ocidente – que se pretendiam em processo de modernização -, o que teve como um dos desdobramentos o pensamento médico-eugênico. Miscigenação racial e degeneração, branqueamento e assimilação, classificações físicas e psicológicas dos grupos populacionais foram alguns dos assuntos privilegiados pelos cientistas e pensadores, sobretudo no Brasil, país visto pela comunidade científica internacional como “um laboratório racial”. Importante também foi a influência dos estudos sociais e de viés cultural, que tencionaram os discursos eugênicos e raciais, pautados no determinismo biológico. Desde meados do século XX, com a reconfiguração dos olhares sobre a diversidade humana, os debates ganhariam novos significados, orientados pelos pressupostos científicos da genética, dos estudos populacionais, dos estudos culturais e novas perspectivas das ciências sociais.
Conforme já demonstrado por uma ampla historiografia, o conceito de raça foi introduzido pela História Natural no século XVIII, com imediata aplicação para classificar a diversidade dos seres humanos. Ao longo do século XIX e XX, vários foram os médicos, cientistas e intelectuais que contribuíram para a elaboração e transformação dos saberes sobre raça, consolidando-se o que conhecemos como racismo científico, o que serviu como um dos fundamentos para pensar a formação dos estados-nações. A partir do início do século XX, com o avanço de ideologias imperialistas e nacionalistas, o racismo se disseminou pelo mundo todo, alimentado pelos interesses políticos e econômicos e justificados pelo racismo científico, mobilizando uma série de ideias, teorias e explicações – “legítimas por serem científicas”- sobre as diferenças biológicas entre as nações e suas populações. Diferenças biológicas, tidas como hereditárias, inscritas em formas de hierarquização dos diferentes grupos humanos, e que eram consideradas como passíveis de modificação por meio da eugenia, visando o melhoramento dos indivíduos e, por consequência, das sociedades. Aliás, eugenia e racismo foram perspectivados como termos praticamente intercambiáveis. Porém, as intervenções eugênicas – sobretudo dirigidas para a reprodução – não se reduziram às questões raciais, mas a uma política científica de controle de todos aqueles sujeitos tidos como degenerados ou que não se enquadravam nos supostos ideias de aptidão. Reformas sanitárias e medidas de saúde pública, puericultura, esterilização, contracepção, aborto e, no seu extremo, a eutanásia e o extermínio foram algumas das diversas práticas eugênicas implementadas ao longo do século XX para operacionalizar certa lógica em que algumas vidas valeriam mais do que outras.
No contexto do pós-segunda guerra, doravante, ocorreu um revisionismo envolvendo o conceito de raça, no qual a genética e a noção de população tiveram papel fundamental. Tal revisão é reflexo da repulsa provocada pelas consequências ético-políticas do extremismo das abordagens eugênicas e dos usos perversos do racismo científico nazista. A propósito, em contraposição, tentou-se descreditar a eugenia e a ciência racial como pseudociências. E é nesse novo contexto que o presente dossiê temático centrará suas discussões, para que possamos refletir sobre as transformações e continuidades nas concepções de raça e eugenia; que, vale chamar a atenção, persistem em povoar o nosso presente, mesmo que retraduzidas e com novas configurações científicas e sócio-políticas. Pretendeu-se com esta reunião de artigos, de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, desenvolver uma discussão histórica sobre a construção de discursos acerca da eugenia e da questão racial, propondo uma problematização a partir de novos objetos em torno desses consagrados temas, aqui então perspectivados em um cenário nacional e internacional, com o recorte principal na segunda metade do século XX.
O artigo que abre o dossiê, de autoria da pesquisadora americana Diane Paul trata das transformações, nos anos 1990, dos parâmetros normativos de controle da reprodução, em que interromper ou impedir o nascimento de pessoas com doenças hereditárias graves passou a ser aceito socialmente em alguns países ocidentais, como uma questão de ordem privada, uma escolha individual, e não mais uma prática rotulada de eugênica. O artigo de Mariza Miranda e Gustavo Vallejo, ambos argentinos, também aborda as propostas eugênicas de controle da reprodução na Argentina, por meio da normatização e da disciplinarização da sexualidade, ainda muito difundida pelo ideário argentino católico e liberal anticomunista, pós anos 1950 (pós-holocausto). A originalidade deste artigo está em problematizar a continuidade da eugenia nesse cenário, até os anos 1980, como um saber universitário, com reconhecimento acadêmico, mesmo em um tempo em que a sua legitimidade científica passou a ser desconsiderada.
Com o artigo de Robert Wegner, pesquisador da COC-Fiocruz, recuamos alguns anos no tempo, entre 1929 e 1940, para problematizar a emergência no Brasil de concepções de hereditariedade segundo o ponto de vista da genética mendeliana – em dois geneticistas brasileiros, Octavio Domingues e Salvador de Toledo Piza -, suas implicações sobre o pensamento eugênico e o debate local acerca da miscigenação racial, em diálogo com o eugenista Renato Kehl. Tal discussão a respeito da história da genética, eugenia e raça no Brasil, é a ponte para uma reflexão mais ampla da pesquisadora alemã Veronika Lipphardt, que trata das transformações e permanências, em termos práticos e epistemológicos, com a passagem de uma ciência racial para as pesquisas em variação genética humana em meados do século XX. Como exercício empírico, a autora discute a persistente fascinação pela diferença biológica humana, abordando as permanências de uma lógica racial (segregacionista e discriminatória) nos estudos de genética populacional em ciganos, denominados também de os “Roma”.
Finalmente, o dossiê completa-se com dois artigos versando sobre o tema do antirracismo pós-1950. Marcos Chor Maio, também pesquisador da COC-Fiocruz, problematiza a oposição ao racismo científico e à eugenia presente na crítica do psicólogo e antropólogo judeu-canadense Otto Klineberg aos Testes de Inteligência e na sua atuação na Unesco. Crítica fundamentada nos argumentos sobre a importância de aspectos socioeconômicos e culturais no desenvolvimento da capacidade intelectual e que tomava as relações étnico-raciais no Brasil como um bom exemplo da inconsistência dos argumentos sobre a associação entre raça e inteligência. Para além da trama médico-científica e no âmbito das ciências sociais, este dossiê traz uma discussão sobre como os próprios sujeitos, alvos do racismo, enfrentaram relações e políticas raciais discriminatórias. O pesquisador americano Jerry Dávila contribui com um instigante artigo que justamente explora as tentativas para definir, reagir e combater a discriminação, partindo da análise de ações judiciais provocadas pela “Lei Anti-discriminação” brasileira de 1951. O autor busca demonstrar que tais enfrentamentos tinham inspiração nas experiências raciais estadunidenses, mas foram adaptados às circunstâncias legais, políticas, sociais e culturais locais.
Esperamos com este dossiê apresentar aos leitores da Varia Historia uma pequena amostra de uma produção historiográfica recente sobre ciência, raça e eugenia na segunda metade do século XX, procurando demonstrar as potencialidades e várias outras possibilidades de se explorar o assunto.
Ana Carolina Vimieiro Gomes – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: carolvimieiro@gmail.com
Robert Wegner – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Avenida Brasil 4036 / 407, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, robert@fiocruz.br
Vanderlei de Souza – Departamento de História, Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus Santa Cruz. E-mail: vanderleidesouza@yahoo.com.br
GOMES, Ana Carolina Vimieiro; WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei de. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.61, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]
As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga – FAGUNDES (RTA)
FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. As estórias a favor da História: as Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014. Resenha de: GIANELLI, Carlos Gregório dos Santos> Um inventário histórico de estórias inventadas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.339‐343. jan./abr., 2017.
A diferenciação entre o que é uma história verídica e o que seria uma ficção muitas vezes já é sinalizada no uso da palavra. Para citar o exemplo na língua inglesa, o story (estória) se apresenta quase sempre que uma ficção quer se fazer explícita em oposição à palavra history (história), que se trata do estudo, análise ou até mesmo relato de algum fato ocorrido. Na língua portuguesa praticada no Brasil essa diferenciação existe em nosso vocabulário, mas, vem sendo cada vez menos utilizada. Ao se checarem livros ou coleções mais antigas, as estórias em contraposição às histórias estão presentes. No entanto, a palavra estória vem caindo em desuso sendo que a história tem servido tanto para a dita ficção como para a realidade. Não é à toa que o título do livro de Bruno Flávio Lontra Fagundes faz uso desse jogo de palavras ao tratar do tema proposto. “As estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga” tem como um de seus objetivos e fio condutor refletir sobre essa tensão presente entre a ficção e realidade na tessitura das narrativas históricas. Historiador de formação, Fagundes buscou nesse trabalho, que resultou em sua dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós‐Graduação em Letras (Estudos Literários), da Faculdade de Letras da UFMG, aproximar duas áreas que muitas vezes foram consideradas totalmente opostas no campo da escrita: as estórias e as histórias.
Como indicado no título, o livro analisa a obra “As Efemérides Mineiras”, de José Pedro Xavier da Veiga, publicada em Minas Gerais no ano de 1897. Trata‐se de um livromonumento com mais de mil e oitocentas páginas, dividas em quatro volumes, que busca fazer um levantamento da história da província de Minas Gerais de 1733 a 1892. Torna‐se válido ressaltar que o próprio termo efeméride é pouco utilizado hoje, e cabe a breve explicação de que se trata do registro de algo importante que aconteceu em um dia específico. Levando‐se isso em consideração, fica um pouco mais clara a organização proposta por Xavier da Veiga em seu livro‐monumento. As efemérides não estão organizadas ano após ano, mas dia após dia. Essa primeira característica a ser observada logo no índice do livro já abre um espaço interessante de reflexão a respeito da organização cronológica e temporal que é proposta nessa obra do final do século XIX.
Fagundes ressalta que essa característica não era comum de outras efemérides realizadas na mesma época. Sendo assim, Xavier da Veiga propõe uma organização da história diferente deseus contemporâneos, tendo os anos como esteira condutora dos acontecimentos históricos. Nas “Efemérides Mineiras”, temos um calendário que parte de 1º de janeiro a 31 de dezembro, cobrindo não somente um ano, mas quase três séculos.
Nesse sentido, teríamos a organização mais ou menos desta maneira, como indica Fagundes: “1 de janeiro 1733 (…) 1740 (…) […] 2 de janeiro 1807 (…) 1811 (…).” O livro de Bruno Fagundes, a respeito da obra de Xavier da Veiga, se organiza da seguinte maneira: antes de fazer a sua análise das Efemérides, Fagundes mostra a apresentação que o próprio José Pedro Xavier da Veiga faz de sua obra monumental. O prefácio da obra de Xavier da Veiga contém desde instruções de como realizar a leitura, até uma espécie de pedido de desculpas pelas lacunas temporais presentes. Por se tratar de uma obra datada do ano de 1897, está inserida no contexto pós‐republicano em que se buscava de todo modo “re‐fundar” um novo país sob a égide dos novos ideais positivistas, materializados no lema ordem e progresso. Não se tratava apenas de buscar uma brasilidade moderna que fundamentasse as aspirações republicanas, mas de organizar a história do país muito mais por inventários documentais, como as efemérides, do que por outro tipo de produção historiográfica ou memorialística. Xavier da Veiga além de ser o autor das Efemérides foi o primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, o que denota o caráter depositário que a obra possuía para ele. Para Xavier da Veiga não se tratava apenas de contar estórias, mas de se guardar e, até mesmo, preservar a história.
Após a apresentação do livro, “Por ele mesmo”, Bruno Flávio Lontra Fagundes adentra a obra sempre mostrando algo que lhe sobressai e uma possível análise a ser realizada. Nos próximos três capítulos após a apresentação do livro pelo próprio Xavier da Veiga, Fagundes analisa três questões em que dedica um capítulo para cada: temporalidades; memória; e a própria noção de invenção da História que acaba suscitando das Efemérides.
Adiante, no livro, Fagundes analisa em seu quinto capítulo como Xavier da Veiga lidava com a carga documental que recebia de várias partes do estado de Minas Gerais para a realização da obra; é neste momento que o título dado por Fagundes faz‐se presente: “As estórias a favor da História”. Este que poderia até mesmo ser um lema adotado por Xavier da Veiga na compilação de documentos e testemunhos. O arquivista mineiro considerava importante desde os documentos oficiais, como decretos‐lei, até relatos de casos estranhos como alguns títulos indicam: “diamante achado por um preto; grandioso meteoro; um esqueleto monstro, etc.” Como já foi dito, o cargo de administrador do Arquivo Histórico Mineiro vai conferir a Xavier da Veiga a responsabilidade de salvaguardar todos os retalhos de história que lhe são enviados.
Anexos aos documentos que chegam para ele estão presentes, muitas vezes, bilhetes pedindo para que o pacote seja preservado, ressaltando a preciosidade daquele documento em questão. Tal cuidado que o arquivista e escritor mineiro possuía com os documentos que aos quais tinha acesso permeia toda a obra das Efemérides, assim como a função social do devir histórico que lhe é incumbido.
É dentro dessa questão que Fagundes, em seu sexto capítulo, lança a reflexão voltada à autoria das Efemérides. Seria apenas José Pedro Xavier da Veiga o autor de um livro que conta com tantas páginas resultantes de dezoito anos de trabalho? Qual a parcela de contribuição das centenas de anônimos que enviaram seus relatos e documentos para a realização desta empreitada? Tais reflexões cabem tanto para Fagundes, ao analisar as Efemérides, como para qualquer historiador que tenha contato com obras grandiosas, ou que no momento de tecer a sua própria narrativa histórica reflita sobre o lugar dos documentos e testemunhos em sua produção.
Em seu sétimo capítulo, é feita uma análise a respeito da figura do próprio José Pedro Xavier da Veiga, que além de ter ocupado o cargo de primeiro diretor do Arquivo Histórico Mineiro, também foi deputado, vinha de uma família de letrados que chegaram a ser proprietários de livrarias e possuía grande respeito justamente por ser apontado como um dos guardiões da história de Minas Gerais. No oitavo e último capítulo, Fagundes trabalha a relação entre Xavier da Veiga e o seu livro, mostrando como determinadas obras além de monumentalizar os personagens retratados nela podem enaltecer seus autores. Xavier da Veiga é destacado no imaginário social pela grande empreitada de memória e identidade mineira que constituiu suas Efemérides.
Por fim, cabe ressaltar a importância que o livro “As Estórias a favor da História: As Efemérides Mineiras de José Pedro Xavier da Veiga”, de Bruno Flávio Lontra Fagundes tem para o campo da História. As questões que o autor levanta, aproximando os campos dos estudos literários e da teoria da história são de grande relevância para aquele pesquisador que busca uma perspectiva interdisciplinar para o seu trabalho que acaba, em muitos casos, levando a uma reflexão mais profunda acerca do tema pesquisado.
Poderíamos, por fim, elencar os seguintes temas como muito importantes para o fazer historiográfico que são problematizados pelo autor: a questão da memória de um povo; o desafio da delimitação das temporalidades (tendo em vista a característica peculiar de organização temporal das efemérides que reverbera em sua narrativa histórica); o tratamento dado para um grande acervo documental; a função social exercida por Xavier da Veiga enquanto historiador mineiro; reflexões a respeito da autoria das efemérides (como podemos afirmar que Xavier da Veiga é o único autor de um livro composto por centenas de contribuições e relatos? Como podemos pensar nessa mesma problemática na tessitura de nossos trabalhos historiográficos?) e, por fim, a relação entre autor e obra.
Fagundes analisa com bastante seriedade um livro que se porta como monumento histórico e não apenas como uma narrativa histórica.
Carlos Gregório dos Santos Gianelli – Doutorando no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil gianelli.87@hotmail.com.
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História moderna | Paulo Miceli
Na introdução do livro, Paulo Miceli começa com uma divagação sobre a distância, mencionando a vagareza com a qual as notícias corriam ao longo do século XVI, mesmo que para reportar eventos grandiosos. Na sequência, o autor discorre sobre as grandes navegações, referindo-se à empreitada inicial dos portugueses na conquista de Ceuta, ocorrida em agosto de 1415. Em termos estratégicos, esta conquista implicava a posse de um “miradouro natural”, pois através dele seria possível vigiar a navegação que cruzava o estreito, na direção do Mediterrâneo e do Atlântico. A manutenção do território recém ocupado foi dispendiosa, devido ao estado de guerra constante, tornando-o pouco atrativo aos olhos dos portugueses. Em 1434, Gil Eanes foi responsável por ultrapassar o cabo Bojador, avançado rumo à tão mal afamada Zona Tórrida, que despertou temores na Antiguidade e Idade Média, por tratar-se de um limite a partir do qual as águas do mar ferviam, impossibilitando a manutenção da vida. Como bem lembra Paulo Miceli, a superação destas fronteiras possibilitava o aprimoramento do “desenho da Terra”: as novas rotas oceânicas ofereciam a possibilidade de se desbravar o desconhecido e de vencer antigos temores. Ao ultrapassar o cabo das Tormentas no ano de 1488, Bartolomeu Dias, pressionado pela tripulação que vivia maus bocados, retornou a Portugal, naufragando em sua segunda tentativa de ultrapassá-lo, no ano de 1500, comandando um dos navios da esquadra de Cabral. Leia Mais
História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade / Albuquerque: Revista de História / 2017
É com grande satisfação que apresentamos ao público-leitor o dossiê “História, democracia e diferenças: os direitos humanos na contemporaneidade”. A proposta desse compêndio de artigos escritos por pesquisadores de diversas partes do mundo é construir, desde o campo acadêmico, um olhar mais aberto ao inventário social que estabelece a relação entre História e contemporaneidade. A partir de abordagens teóricas plurais, as discussões sobre temas centrais como racismo, política, território, memória, gênero, e episteme, compõem um mosaico cultural definidor do maior desafio do atual cenário político internacional: a defesa de certo sentido de democracia no que se convencionou chamar de “Direitos Humanos”
O debate sobre o lugar das minorias em situações de conflito como as vivenciadas no mundo contemporâneo revela a urgência com que a produção científica atual precisa não apenas se posicionar em relação a contextos de exceção, de resistência e de luta, mas também se debruçar sobre temas espinhosos que, de forma geral, fazem com que a História e as demais ciências humanas tenham algo a dizer sobre a visibilidade social e politica que determinados grupos reivindicam. O silêncio diante da opressão é algo que precisa ser superado e debatido amplamente, e nada melhor do que a reflexão acadêmica para trazer à discussão as questões que fundamentam diversas agendas sociais. A utilização de um espaço consolidado de análise como a Revista Albuquerque mostra que o propósito desse dossiê atinge não somente a sensibilidade dos grupos envolvidos nessas demandas, mas alcança um universo alargado de preocupações teóricas que extrapola as convenções científicas e obriga a universidade pública a se aproximar das tensões que nos definem desde o passado em direção ao presente.
Os artigos que fazem parte desse dossiê foram produzidos a partir dessas inquietações, e almejam fomentar o anseio de se compreender a importância do tema dos Direitos Humanos e reconhecer a necessidade de considerá-lo como uma conquista que não pode ser monopolizada politicamente em tempos difíceis como o que vivemos. Com esse espírito, por meio de um olhar abrangente sobre o tema, Agustín Ávila Romero e José Luis Silvaran mostram como a História deve ser definida a partir de um binômio singular: a diversidade biocultural e as ontologias espaciais na América Latina. Para tanto, os autores superam a tendência geral de se olhar para a História mexicana exclusivamente por meio de fontes escritas espanholas, demonstrando certa resistência epistemológica ao se debruçar sobre formas narrativas próprias dos maias tzeltales de Chiapas para se compreender valores e saberes que se sedimentam no chamado Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN). A defesa do olhar local sobre o citado movimento é reforçada por escolhas teóricas apropriadas e inovadoras, especialmente quando se recorre aos conceitos de colonialidade do saber e colonialidade do poder para se redefinir uma espécie de memória zapatista. No pulsante coração da América Latina, o exemplo epistemológico dos autores serve de modelo para que outros movimentos sociais no mesmo continente sejam lidos por um viés mais autêntico e fiel aos grupos locais do que a velha e mofada epistemologia clássica.
Ainda sobre as questões ligadas ao exercício da dominação cultural na teoria do conhecimento que se reproduz nas universidades ocidentais, José Marín destrincha o vínculo entre eurocentrismo, racismo e interculturalidade no mundo globalizado. Os problemas contemporâneos, em suas múltiplas faces, garantem a sobrevivência de aspectos das relações humanas que já deveriam ter sido extintos no trato entre as diferentes culturas. Um desses elementos nocivos, que reforçam a necessidade de discussão sobre os Direitos Humanos é a herança colonial europeia de se desqualificar o outro para oprimi-lo. Marín nomeia essa estratégia epistemológica de “perversão ideológica” fundadora do racismo e do nacionalismo que nos dias atuais, se transformam em políticas de massas. Não reduzindo sua reflexão à denúncia dos males, e estendendo suas conclusões em direção a caminhos que permitam a solução desses problemas, o autor apresenta a educação como principal ferramenta de conciliação entre valores universais e particularidades culturais. O primeiro passo, portanto, seria a validação da ideia de que a História da humanidade é a história de nossas migrações.
Já Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado, em artigo sobre as narrativas de travestis, transferem o olhar do leitor para outro universo silenciado: o lugar desses indivíduos e de seus corpos no ambiente escolar brasileiro. A base teórica para essa análise seria o que os autores chamam de “estudos de gênero e pós- feministas”, o que por si só já conferiria a originalidade e a importância desse trabalho. O mapeamento da questão a partir das vozes de cinco jovens travestis de Rondonópolis, Mato Grosso, escancara pela ótica acadêmica o que se tenta ocultar pela opressiva caracterização de certa “normalidade” social O tempo da infância, o espaço escolar e a sociabilidade cotidiana são marcados por categorias emblemáticas da violência sofrida pelo “diferente”, traduzida em acepções como “viadinho”, “estranho” e até mesmo “corpo abjeto”. O resultado dessa dinâmica de opressão singular é a construção de estratégias de sobrevivência e resistência dentro de um espaço que deveria originalmente ser acolhedor e integrado como a escola. A dinâmica de violência do ambiente escolar em relação aos travestis tem um palco de atuação ainda mais central: o banheiro. É aqui que o “processo de negação e privação de direitos empreendidos sobre os corpos considerados grotescos certamente, a dimensão mais cruel das memórias escolares desses sujeitos formados pelos silêncios e pelas invisibilidades.
Outro universo a ser revelado pelas questões ligadas aos Direitos Humanos nesse dossiê é a luta pela terra como agenda global. Em seu artigo, Cassio Rodrigues da Silveira estabelece os parâmetros da reforma agrária como uma reivindicação social que transcende a demanda específica dos integrantes de um movimento organizado como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Em conflito não apenas com o latifúndio, mas também com o viés globalizante do capitalismo neoliberal, o combate pelo direito à terra defendido pelo MST confere uma dimensão social à questão agrária, já que passa a ser movida pela necessidade de sobrevivência, e não pela lógica do mercado fundiário. O problema da concentração da posse da terra, portanto, ultrapassa as fronteiras nacionais, pois o sistema econômico, o Estado e os interesses de classe são distintas dimensões de um debate assumido pelo MST como altermundialista. No entrecruzamento dessa questão estão as relações com os dois mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as expectativas construídas a partir do Fórum Social Mundial em 2001, e a luta anti-imperialista mundial, tudo expresso nas publicações do MST e na construção de um vocabulário político próprio em seus textos e redes de informação.
Mantendo-se no campo das lutas políticas em contextos de repressão, Aguinaldo Rodrigues Gomes apresenta o tema da resistência de intelectuais e estudantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro) ao regime militar brasileiro. O primeiro desafio enfrentado aqui é justamente contribuir com o recente debate historiográfico acerca do tema, que tem buscado pensar como esse acontecimento político, um dos mais dramáticos de nossa história, repercutiu fora dos centros de poder do país, especificamente o eixo Rio-São Paulo. O autor enfatiza no artigo as estratégias adotadas pelo PCB para a construção de uma luta pelos diretos civis no campo educacional por parte de estudantes e professores que ousaram enfrentar o regime em defesa das liberdades de expressão. No momento em que se discute o que foi a ditatura militar no Brasil, notória por seu completo desprezo aos Direitos Humanos mais fundamentais, estender o debate para outras partes do país é democratizar a luta contra um passado recente, além de ser também uma forma de resistência epistemológica que quebra a centralidade do Rio de Janeiro e de São Paulo no discurso sobre a memória política do Brasil contemporâneo.
Ainda em relação à resistência a ditadura militar em nosso país Ary Cavalcanti Junior nos traz uma narrativa sobre a resistência das mulheres ao regime a partir da trajetória da militante Diva Soares Santana que atuou em defesa dos direitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no grupo Tortura Nunca Mais-Bahia. Utilizando a metodologia da história oral, o autor busca representar as memórias, seus confrontos e ressignificações a partir dos relatos de Diva Santana. Nas palavras de Cavalcanti Junior a inserção de Diva na militância ocorreu devido ao desaparecimento de sua irmã Dinaelza, mas uma vítima do regime ditatorial. Sua busca pelo corpo da irmã nos fornece um claro retrato da face perversa da ditadura na Bahia, a exemplo do que ocorreu em diversas regiões do país e que ainda estão por ser descortinadas pelas pesquisas acadêmicas, daí a importância do texto de Cavalcanti Junior.
Com os olhos voltados para um dos grandes ícones da cultura brasileira, Tadeu Pereira dos Santos analisa a condição de subalternidade do negro no Brasil pela biografia de Sebastião Bernardes de Souza Prata, conhecido como Grande Otelo. As representações sobre negros e atores na imprensa brasileira, fonte principal desse trabalho, coloca elementos depreciativos como definidores da carreira de Grande Otelo, como por exemplo, a estratégia constante de reforçar a presença do alcoolismo em sua biografia. Alguém realmente pode conceber que o excesso de consumo de álcool pode ser um elemento central na trajetória de uma figura marcante como Grande Otelo? Parece que para a imprensa e a sociedade civil brasileira, com seus preconceitos e estigmas, o artista negro merece destaque por aquilo que se espera de alguém como ele: instabilidade, vício e práticas religiosas abalizadas pela dubiedade. A malandragem e a astúcia, tomadas em determinados contextos como uma ação social pejorativa, passa a definir, no artigo de Tadeu Pereira dos Santos, uma estratégia de sobrevivência a ser exaltada. Não se trata apenas de discutir os Direitos Humanos como uma questão de ordem jurídica e moral, mas como mais uma expressão da necessidade de se humanizar determinados grupos marginalizados pela hierarquia social vigente.
Na esteira das reflexões sobre a marginalização dos negros a historiadora Priscila Xavier de Oliveira Scudder ancorada no mapa da violência 2016 e na obra “A democracia da Abolição” da filosofa Ângela Davis nos apresenta uma comparação entre as facetas do racismo nos Estados Unidos da América e no Brasil. Perscrutando a história brasileira e suas práticas racistas decorrentes do colonialismo que se apresenta em um viés duplo, a saber, no plano da organização social e da própria construção do saber acadêmico, denuncia assim, o apagamento / silenciamento das minorias no âmbito da esfera social e mesmo no campo das narrativas epistemológicas. Seu texto aponta para a necessidade de uma resistência intelectual e popular contra as práticas legitimadoras da subalternidade que favorecem a discriminação, as novas formas de escravização e, sobretudo o extermínio da população negra em nosso país.
Se falar em democracia e Direitos Humanos é, sobretudo, conferir humanidade aos destituídos dessa condição, o artigo de Eliete Borges Lopes e Luis Augusto Passos segue esse mesmo princípio ao dedicar-se à análise da população em situação de rua da chamada Ilha do Bananal, em Cuiabá. A noção de resistência abarca também estigmas sociais comuns no Brasil como a pobreza e a violência, alicerçados em um competente arcabouço metodológico composto por uma cartografia das ruas, uma pesquisa exploratória e uma interpretação-descrição dos fenômenos. Independente das condições de vida e marginalização desse território e de seus moradores, os autores se valem de uma sensibilidade acadêmica rara para identificar nos sujeitos de sua pesquisa aquilo que chamam de arte-fatos e afetos da vida da cidade, expressos na paisagem local negociada entre o patrimônio arquitetônico e os graffitis, além da visibilidade de certa performance da população em situação de rua. Há que se considerar, portanto o potencial de “educação popular” da Ilha do Bananal, em uma época em que a presença do poder público nesses espaços de marginalização se fortalece por meio de ações autoritárias e de políticas intervencionistas agressivas nomeadas como “higienização”
E por fim, contribuindo para o debate sobre as relações étnico-religiosas e as origens do discurso sobre os Direitos Humanos, Karina Arroyo e Murilo Sebe Bon Meihy trazem à tona a necessidade de se romper o monopólio ocidental sobre o discurso dos Direitos Humanos. O lugar do Islam, e especificamente de um de seus grupos mais perseguidos, os muçulmanos xiitas, é analisado nesse artigo por meio de uma espécie de aproximação dos valores da citada religião com a moralidade laica e universalista atribuída de forma unilateral ao Ocidente após o século XVIII. Neste artigo, da filosofia de Kant às interpretações dos textos religiosos do Islam por seus jurisprudentes, o caminho escolhido pelos autores é o de reforçar o diálogo entre culturas como precondição para o debate sobre a aplicação geral do legado dos Direitos Humanos. Os xiitas no Brasil são os atores centrais desta reflexão, o que obriga o leitor a considerar que se há um processo de identificação do Oriente Médio como o espaço de desrespeito flagrante aos pilares dos Direitos Humanos contemporâneos, não nos esqueçamos de que as principais vítimas desse tipo de violência são os próprios muçulmanos, especialmente grupos minoritários como os xiitas, tanto no Oriente Médio, como no Brasil.
Enfim, a Revista Albuquerque oferece a todos um mapa bastante detalhado do uso político e seletivo que se dá atualmente aos princípios democráticos e ao direito em geral. O contato com esse dossiê deve ser acompanhado desse espírito crítico. Em um mundo tão pouco democrático e desumanizado como o atual, ter acesso a esses textos é mais que uma atividade intelectual. Chega a ser um direito…
Boa leitura!
Murilo Sebe Bom Meihy – Professor de História Contemporânea do Instituo de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: meihy1@yahoo.com.br
Aguinaldo Rodrigues Gomes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com
MEIHY, Murilo Sebe Bom; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]
História Indígena: o campo interdisciplinar renovado / Albuquerque: Revista de História / 2017
CASTRO, Iára Quelho de; VARGAS, Vera Lúcia Ferreira; MOURA, Noêmia dos Santos Pereira. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.9, n.18, 2017. Acesso apenas pelo link original [DR]
Patrimônio, Cultura Material e Imaterial: diálogos e perspectivas / Albuquerque: Revista de História / 2018
GIAVARA, Eduardo; FERREIRA FILHO, Aurelino José. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.19, 2018. Acesso apenas pelo link original [DR]
Arqueología de las sociedades campesinas en la cuenca del Duero durante la Primera Alta Edad Media | Carlos Tejerizo García
Os estudos sobre a Alta Idade Média vêm passando por uma forte renovação nos últimos anos. Um dos grandes exemplos da mudança experimentada pela área é a obra Framming the Early Middle Ages, de Chris Wickham,1 livro que sinaliza algumas profundas e necessárias transformações no que diz respeito à historiografia desse período. Entre elas, a incorporação sistemática das referências arqueológicas e um foco maior no mundo rural e no campesinato como um agente histórico fundamental, o que favorece novos olhares para esse período fundamental da história humana enquadrado pela passagem do Império Romano e o advento de um mundo propriamente medieval.
Assim, pode-se dizer que o livro de Wickham é em alguma medida tributário do desenvolvimento da arqueologia rural. Contudo, trata-se de uma área de conhecimento que vem conhecendo um desenvolvimento bastante heterogêneo no continente europeu, com algumas regiões pioneiras – como Alemanha e Inglaterra – desenvolvendo-o desde princípios do XX enquanto outras – como os países ibéricos – o iniciam bem mais tardiamente.2 Assim, a cultura material ainda é uma fonte pouco explorada para a compreensão das transformações da Península Ibérica altomedieval, com as primeiras sínteses regionais sendo produzidas bastante recentemente.3 Leia Mais
A invenção dos direitos humanos: uma história | Lynn Hunt
A autora de A invenção dos direitos humanos, Lynn Avery Hunt, nasceu em 1945 no Panamá e cresceu no estado de Minnesota nos Estados Unidos da América. Atualmente, leciona História europeia na Universidade da Califórnia e utiliza os pressupostos da História Cultural em suas produções acadêmicas.
Vinculada à História Cultural, em A invenção dos direitos humanos Lynn Hunt salienta a importância de abordar as transformações das mentes individuais ao trabalhar os processos históricos. Sendo assim, nos capítulos iniciais do livro a autora busca elucidar as novas formas de compreensão de mundo surgidas no século XVIII que possibilitaram a construção de pressupostos como os presentes na Declaração de Independência Americana (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).
A Declaração de Independência dos Estados Unidos, ao se desfazer da subordinação política para com a Coroa Britânica, fez uso das idéias iluministas ao declarar verdades auto-evidentes como igualdade de todos os homens e seus direitos inalienáveis: “Vida, liberdade e busca da felicidade”. Já a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi adiante e traçou que todos os homens são iguais perante a lei e que todos possuem o mesmo direito independente de sua origem ou nascimento. Pressupôs-se, então, a tolerância religiosa e a liberdade, além da autonomia e da independência dos homens.
Para as declarações, os direitos eram universais e iam além de classe, cor ou religião. No ato da escrita, já se partia da idéia de auto-evidência dos direitos, o que aponta para uma mudança radical nos pensamentos ao longo do século XVIII e insere uma problemática: se os direitos são auto-evidentes por que precisam ser declarados? Ao responder a essa questão Hunt salienta que a construção dos direitos é contínua.
As declarações são a materialização das discussões que haviam interpelado o século XVIII e rompiam com a estrutura tradicional de sociedade. Um novo contrato social foi forjado, centrado nas relações entre os próprios homens sem contar com o intermédio religioso: era o fim do absolutismo e a desconstrução do Direito Divino dos Reis de Jacques Bossuet. O fundamento de toda a autoridade se deslocou de uma estrutura religiosa para uma estrutura humana interior: o novo acordo social se dava entre um homem autônomo e outros indivíduos igualmente autônomos.
A montagem dessa nova estrutura só é possível devido a uma nova visão do homem: agora visto como alguém livre que tem domínio de si, que pode tomar decisões por si e viver em sociedade. A autonomia individual nada mais é do que a aposta na maturidade dos indivíduos. A partir dessa nova visão, nasce-se uma nova vertente educacional: modelada pelas influências de Locke e Rousseau, a teoria educacional deixa de focar na obediência reforçada pelo castigo para o cultivo cuidadoso da razão para formar esse novo homem crítico e independente.
Paralelo a isso, nasce-se uma nova visão de corpo. O corpo passa a ser algo de domínio privado, individual e não mais como algo pertencente ao corpus social ou religioso. Os corpos também se tornaram autônomos, invioláveis, senhores de si e individualizados.
Como um importante mecanismo de transformação, Hunt aponta a popularização dos chamados romances epistolares. As cartas enviadas pelas protagonistas abordam as emoções humanas para todos os leitores. As lutas de Clarissa e Pâmela, criadas por Richardson, além das questões de Júlia, escrita por Rousseau, fizeram com que os leitores reconhecessem que todos tem seus sonhos, almejam tomar suas próprias decisões e dirigir a própria vida. O desenvolvimento de um sentimento de empatia tornou possível a construção de pressupostos básicos como a autonomia, a liberdade e a independência, além da igualdade.
Outro exemplo de transformação social ocorrida no século XVIII foi a campanha contra a tortura. Hunt cita o caso Callas como disparador de um processo que espelhou a nova visão de corpo na sociedade francesa do século XVIII. Para Hunt, ler relatos de tortura ou romances epistolares causou “mudanças cerebrais” que voltaram para o social como uma nova forma de organização.
Houve uma queda na visão do pecado original, na qual todos são pecadores e duvidosos, para a ascensão do modelo de homem rousseauniano que aposta na bondade de cada indivíduo. Essa concepção, aliada ao novo conceito de corpo, agora dentro do limite privado, formulou um posterior novo código penal que gradualmente aboliu a tortura e deu ênfase à ressocialização do indivíduo. O corpo já não era punível com a dor para vingar o social e estabelecer um exemplo ao restante da população. O corpo agora era privado e o foco se tornou a honra social do indivíduo.
Após abordar as transformações que tornaram possíveis as declarações, Lynn Hunt se ateve às aplicações e ao processo de formação das sociedades ao tentarem aplicar esses direitos. Uma assertiva importante que a autora faz nesse capítulo é que declarar é um ato político de alteração da soberania: esta passou a ser nacional, pautada no contrato entre homens iguais perante a lei, sem intermédio da religião. Declarar significava consolidar o processo de mudanças que vinham ocorrendo ao longo do século.
Mesmo dizendo que naquele momento os direitos já eram auto-evidentes, os deputados criaram algo inteiramente novo que era a justificatição de um governo a partir de sua capacidade de garantir os direitos universais. Entretanto, nessa fase encontram-se os problemas inerentes a aplicação desses conceitos generalistas: declarar os direitos universais significava conceder direitos políticos às mais variadas minorias, e proclamar a liberdade colocava em cheque a escravidão colonial.
A partir daí muitos direitos específicos começaram a vir à tona na esteira: liberdade de culto aos protestantes significava direito religioso também aos judeus, bem como participação política; o mesmo acontecia com algumas profissões, além da situação das mulheres, defendida de maneira inovadora por Condorcet e Olympe de Gouges. Os direitos foram sendo concedidos gradualmente, a liberdade religiosa e os direitos políticos iguais às minorias religiosas foram concedidos no prazo de dois anos, bem como a libertação dos escravos.
A discussão da universalidade dos direitos foi caindo ao longo do século XIX. Alguns grupos assumiram as lutas políticas do século seguinte às declarações como os trabalhadores e as mulheres. O nacionalismo foi um protagonista importante da luta por direitos ao longo do século XIX, os pressupostos franceses internacionalizados pela expansão napoleônica surtiram o efeito inverso.
Após a dominação que caracterizou o período napoleônico, nos territórios ocupados se criou uma aversão a tudo que viesse dos franceses em detrimento do que simbolizasse uma identidade nacional. Com o tempo o nacionalismo foi tomando características defensivas e passou a ser xenófobo e racista, baseando-se cada vez mais em inferências de caráter étnico.
Teorias da etnicidade representaram um enorme retrocesso ao ideal de igualdade pois partiam para determinação biológicas da diferença, montando hierarquias e justificando a subordinação, e, por conseguinte, o colonialismo. Houve uma falência do novo modelo educacional, visto que dentro da nova ideologia social só algumas raças poderiam chegar à civilização rompendo também com o ideal de universalidade.
O ápice dessa visão nacionalista e racista foi a Segunda Guerra mundial, que com os milhões de civis mortos representou a falência dos direitos humanos, principalmente com os seis milhões de mortos por intolerância religiosa e discurso de raça. As estatísticas assombrosas e o julgamento de Nuremberg trouxeram à tona a necessidade de um compromisso internacional com os direitos humanos.
Apesar de reconhecimento da urgência desse compromisso, foi preciso estimular as potências aliadas a assinar a Declaração dos Direitos Humanos, visto que havia um receio de perder colônias e áreas de influência. Sendo assim, a Declaração de 1948 só foi assinada porque deixava claro que a Organização das Nações Unidas (ONU), ali criada, não influenciaria nos assuntos internos de cada país. Ao longo do tempo, as Organizações Não-Governamentais foram mais importantes para a manutenção dos direitos humanos ao redor do mundo do que a própria ONU.
A discussão acerca dos direitos humanos feita por Hunt termina por ressaltar o quão paradoxal é esse tópico, além da dificuldade de conter “atos bárbaros” até os dias atuais. Hunt (2009, p. 214) fala de “gêmeos malignos” trazidos pela noção de direitos universais: “A reivindicação de direitos universais iguais e naturais estimulava o crescimento de novas e às vezes até fanáticas ideologias da diferença”. Há uma cascata contínua de direitos repleta de paradoxos como o direito da mãe ao aborto ou o direito do feto ao nascimento.
Para Hunt, a noção de “direitos do homem”, bem como a própria Revolução Francesa, abriu espaço para essa discussão, conflito e mudanças. A promessa de direitos pode ser negada, suprimida ou simplesmente não cumprida, entretanto jamais morre.
Anny Barcelos Mazioli – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo; bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo. E-mail: anny.mazioli@hotmail.com.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 288p. Resenha de: MAZIOLI, Anny Barcelos. Um panorama da história dos direitos humanos: uma construção necessária. Revista Ágora. Vitória, n.25, p.142-145, 2017. Acessar publicação original [IF].
A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo – ROUSSO (RTA)
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido Santos. Rumo à catástrofe. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.20, p.333‐338. jan./abr., 2017.
A história do tempo presente está na moda. De uma abordagem comparada em curioso tom pejorativo ao jornalismo e à sociologia, nos últimos anos ela passou a receber tratamento atencioso no mercado editorial e obteve demonstrações de prestígio na Academia. Da rarefação passamos à oferta ampla. Este movimento, que levou a HTP da periferia para o cerne dos debates historiográficos, pôde ser observado no número crescente de congressos, workshops, simpósios temáticos, grupos de pesquisa e publicações dedicadas à rubrica.
Porém este avanço inspira cuidados. Como lembrou Robert Darnton ao tratar do Iluminismo, quando algo “está começando a ser tudo”, pode findar sendo nada (DARNTON, 2005:18). É preciso, então, buscar uma definição mais acertada das fronteiras, dos procedimentos e das especificidades da história do tempo presente. É este o desafio assumido no livro A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo, do historiador francês Henry Rousso, publicado no Brasil pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2016.
Nos quatro e densos capítulos – além da introdução e da conclusão –, a obra originalmente publicada em francês com o título La dernière catastrophe : L’histoire, le présent, le contemporain (Paris, Gallimard, 2013) propõe questionamentos e apresenta respostas possíveis com desenvoltura e coragem. Com o objetivo de “retraçar a evolução, compreender os móbiles, explicar os paradigmas e os pressupostos dessa parte da disciplina histórica que passou, em algumas décadas, da margem ao centro” (18), Rousso toma a metáfora da catástrofe como “revolvimento” e “desenlace teatral”(28) para, no desenrolar dos ensaios, oferecer uma leitura que parece colocar ordem no caos de abordagens sobre a história do tempo presente.
Os ensaios escritos pelo pesquisador nascido no Cairo, em 1954, são distribuídos através dos capítulos: 1. A Contemporaneidade no passado (31‐98), 2. A guerra e o tempo posterior (99‐164), 3. A contemporaneidade no cerne da historicidade (165‐218) e 4. O nosso tempo (219‐280). Os dois primeiros ensaios percorrem a trajetória da história do tempo presente, enquanto nos seguintes, sobretudo no último, Rousso encara o desafio de pensar respostas aos problemas que levanta na obra.
Assim, após demonstrar a persistência da ideia de uma história do tempo presente na longa duração, o autor evidencia uma forma “particular” de HTP a partir dos anos 1970. O olhar de Rousso percorre a historiografia produzida na Inglaterra, Alemanha e América do Norte, mas é na França, a sua base acadêmica – lembramos que ele é pesquisador do renomado Institut d’histoire du temps present, além de possuir atuação frequente no universo acadêmico dos EUA – o espaço de maior atenção, justamente por ver ali algumas das manifestações centrais ao desenvolvimento do campo.
De modo geral, na argumentação de Rousso, temos dois vetores importantes, dois “momentos inaugurais” fundamentais: a I Guerra Mundial – na qual emergem a testemunha, a busca por coleções e a figura do expert, e a II Guerra Mundial – que reforça a importância do passado recente enquanto objeto.
Mas se as duas guerras mundiais foram elementos fundamentais para uma mudança na prática e na percepção histórica, é nos anos 1950‐1970, que a HTP amplia a sua inserção como disciplina e obtém considerável apoio da mídia. A ideia de acontecimento e “acontecimento‐monstro”, como chamou Pierre Nora (1976), ganha contornos mais evidentes com episódios como o caso dos reféns nas Olimpíadas de Munique (1972) ou a Guerra do Vietnã (1955‐1975), eventos televisionados que ampliaram a demanda social por explicações “históricas”. Um sintoma deste avanço pode ser percebido na ocupação pelos historiadores de importantes espaços midiáticos na Europa (Georges Duby foi, provavelmente, o caso mais emblemático).
Mas quais as fronteiras do presente? Onde ele começa? Para Henry Rousso, na última catástrofe. O autor nos lembra do anjo pintado por Paul Klee (1879‐1940), o Angelus Novus (1920), o mesmo mencionado por Walter Benjamin (1892‐1940) em suas Teses sobre o conceito de História, de 1940. Ali, na nona tese lê‐se que “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés” (BENJAMIN, 1994:226).
Portanto, são os historiadores a definir a última catástrofe. Tais eventos catastróficos exigem das gerações a reflexão e a consequente síntese da sua história recente, implicam em muitas vezes reposicionar elementos da memória, transformam as identidades e acabam por reordenar as interpretações do passado. E quais os eventos “inaugurais” possíveis? Anos emblemáticos como 1789, 1917, 1940 (ao menos para a França), 1945, 1989 e 2001? Para além dos anos inaugurais, conforme o autor, a história contemporânea enquanto um conhecimento constituído a partir da mediação é caracterizada pelo peso dos eventos catastróficos, pela demanda social em torno do historiador, pelo quase inevitável envolvimento judicial e pela importância dada à memória e à testemunha. A propósito, a presença da testemunha é marca deste tipo de pesquisa e é necessário considerar os influxos da emergência da “testemunha que vê, a testemunha que fala, a testemunha que escreve, seja o próprio historiador, desempenha claramente um papel essencial, uma vez que é um mediador primário, para não dizer único” (282), como adverte Rousso.
Uma coisa importante é que o autor não apenas provoca questionamentos, mas demonstra coragem em respondê‐los no decorrer das 341 páginas do livro. A obra nos convida a refletir sobre o ofício do historiador e suas tarefas no século 20. Rousso aponta a relevância do debate sobre o problema fundamental da periodização. A proximidade com os eventos e os desdobramentos disto. Em que medida o historiador deve estar afastado? “A queda do Muro de Berlim ou os atentados de 11 de setembro podem por sua vez constituir fronteiras para um novo período contemporâneo? É… cedo demais para dizê‐lo” (279). Não há resposta fácil quando se trabalha com história do tempo presente.
O livro demonstra que a ideia de contemporaneidade sofreu profunda evolução.
Se “toda história é história contemporânea”, como afirmou Benedetto Croce (1866‐1952), Rousso adverte, no entanto, que: “Isso não significa, contudo, que existe uma concepção contínua e imutável através de vários milênios na maneira de escrever sobre o seu próprio tempo: as modalidades, os métodos, as finalidades de escrita da história mudaram consideravelmente de uma civilização para a outra” (281).
Mas, sim, toda história é contemporânea na medida em que “a história do passado encerrado que seria distinto, e até mesmo cortado em relação ao tempo presente, não tem sentido realmente” (41). Diferente de outros momentos, não se trata de obter o conhecimento a partir de uma ação da Providência ou de uma revelação, é importante considerar a história como conhecimento mediado como uma mudança crucial no sentido atribuído ao tempo presente.
Por sua vez, a ideia de memória é fundamental à história do tempo presente, pois ela descola a HTP do presentismo, da ideia de uma história imediata. A memória confere duração. Deste modo, Henry Rousso ressalta que se configura como um antídoto ao presentismo, não de um sintoma deste fenômeno. A desconstrução de uma leitura linear da história e a valorização das idas e vindas, da presença do passado no presente e do presente no passado exige o trabalho em duas frentes, como lembra o autor: “a da história e a da memória, a de um presente que não quer passar, a de um passado que volta para assombrar o presente, sendo a distinção entre as duas por vezes indisfarçável” (302).
A publicação da obra em português ocorre em momento bastante adequado, em tempos de ampla demanda por reflexões dos historiadores, dias de tensão nos rumos do Brasil, do Mundo, mas também em momento de duros questionamentos acerca do papel social do historiador, da sua necessidade nas salas de aula e da sua validade na orientação das políticas públicas. Neste aspecto, a obra contempla a situação de inúmeros intelectuais que, em diferentes países e contextos, foram chamados a colaborar em processos judiciais, foram interpelados pelas vítimas e pressionados pelos agressores.
Neste sentido, Henry Rousso nos lembra que “o historiador do presente mantém relações conflituosas com o poder, seja religioso, seja político” (282). Em tempos de Donald Trump acelerando o relógio do Armagedon na Casa Branca, Marine Le Pen tocando o tambor da xenofobia na França e quando, no Brasil, assistimos, atônitos, alguém democraticamente eleito ser afastado do cargo com votos dos que celebram eufóricos, cheios de ódio e preconceito, os piores momentos da ditadura e seus torturadores mais temidos, ler A Última Catástrofe é convite irrecusável.
Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. I.p.222‐234 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
NORA, Pierre. O Retorno do Fato. in NORA, Pierre, LE GOFF. Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.p.179‐193 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016.
Dilton Cândido Santos Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós‐Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe. Bolsista Produtividade CNPq. Brasil dilton@getempo.org.
[IF]
Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012) – ALMEIDA; SILVEIRA. (LH)
ALMEIDA, Pedro Tavares de; SILVEIRA, Paulo Sousa (Coord.). Do Reino à Administração Interna. História de um Ministério (1736-2012). Lisboa: INCM e Ministério da Administração Interna, 2015. 574 pp. Resenha de: SUBTIL, José. Ler História, n. 70, 2017.
1 Convém, desde já, chamar a atenção para um elemento que condiciona a apreciação desta obra e que diz respeito ao facto de se tratar de uma “encomenda”, ou seja, “um contrato de investigação celebrado entre a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna e a FCSH da UNL, em finais de 2010”. Não é, portanto, um trabalho que resulte de uma iniciativa científica, integrada ou não num centro de investigação. Estas encomendas tornaram-se frequentes nos últimos anos, muitas vezes satisfeitas por “curiosos” ou indivíduos ligados às instituições estudadas e, de uma forma geral, de qualidade inferior. Neste aspeto, a presente obra é uma exceção, na medida em que é realizada por historiadores, obedece a requisitos de qualidade historiográfica e a SG do Ministério da Administração Interna aceitou a “plena liberdade intelectual na conceção da obra e na redação dos textos”, o que é de realçar e aplaudir.
2 A obra está dividida em quatro partes, sendo que uma quinta diz respeito à prosopografia das elites. Na introdução adota-se uma exposição diacrónica do ministério, mas não se elucida o leitor sobre a escolha temática dos capítulos. Também teria sido útil uma justificação do plano e das fontes. A primeira parte, correspondente a cerca de 19% do texto, trata do “aparelho e os agentes” num leque temporal repartido entre 1736 e 2011, sem que haja referência ao período entre 1807-1834, o que nos leva a colocar a questão se a obra não deveria ser limitada ao período entre 1834 e 1922, uma vez que aos anos de 1736 a 1834 (35% do período) correspondem, apenas, 3% do texto. A abordagem mais completa quanto à evolução orgânica e os recursos humanos é de Rui Branco (1852-2011), se bem que o texto de Joana Estorninho se refira a um curto período (1834-1851) onde, apesar de tudo, explica a construção do modelo ministerial. O texto de Nuno Monteiro, que cobre o reinado de D. João V, desde 1736, e termina com as invasões francesas, é um remake de ideias já conhecidas, que, para além da caraterização já bem conhecida do sistema político do Antigo Regime, dizem respeito àquilo que o autor considera, em termos de dinâmica reformista, a superioridade da “mutação silenciosa” do reinado de D. João V sobre o impacto “político e simbólico” do período pombalino, insistindo no argumento da importância da reforma das secretarias de estado de 1736. Trata-se de uma interpretação polémica, que é aqui retomada, sem vantagem para a definição das funções que iriam ser assumidas pelo Ministério do Reino no final do Antigo Regime.
3 A segunda parte (30% da obra), intitulada “administrar e coordenar”, tem a colaboração permanente de Paulo Silveira e Sousa, sozinho para o governo no Antigo Regime e para os governos civis e poderes locais (1834-1926), e acompanhado por Rita Almeida de Carvalho no capítulo sobre os governos civis, municípios e freguesias (1926-2011), e por Jorge Miguéis e Pedro Tavares de Almeida sobre a administração das eleições. A terceira parte (cerca de 37% do texto) é designada por “proteger e controlar” e cobre o tema das polícias entre 1736 e 2011, a cargo de Diego Cerezales e António Araújo. O primeiro texto é relacionado com a questão da segurança e o segundo com os serviços de informação, para terminar com uma análise sobre as mobilidades populacionais (1736-2011), de Victor Pereira. A quarta parte, “auxiliar e regular”, é a mais pequena (13% da obra) e tem a colaboração de Rita Garnel, com um curto texto sobre a saúde pública (1834-1958), e de Paulo Jorge Fernandes e Paulo Silveira e Sousa sobre bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária (1736-2011). Segue-se a parte mais inovadora com um capítulo, sem texto, sobre ministros e secretários de estado (1834-2012), de José Tavares Castilho, e outro sobre secretários-gerais (1835-2012) e directores-gerais (1859-2012), de Pedro Silveira, informação completada com um valioso anexo.
4 Uma ideia central que persegue a história do Ministério do Reino é a de que esta instituição, desde o início do século XVIII, constituiu uma reserva imensa de funções governativas que, à medida que foi crescendo a população e se foi estruturando o modelo ministerial de tipo “estadualista”, perderia muitas dessas funções para outros órgãos, e inclusive daria origem a novos ministérios. Temos assim que, no século XVIII, ao lado da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, existiram apenas outras duas secretarias de estado destinadas a assuntos “fora” do Reino (política externa, guerra e ultramar). O primeiro sinal de exautoração funcional foi dado no final do século com a criação de Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda. Seguiram-se outros, ao longo dos séculos XIX e XX, pelo que o atual Ministério da Administração Interna tem já pouco do que foi o “velho” Ministério do Reino. Justamente por isto, a explicação desta dinâmica deveria corresponder à primeira parte da obra, acompanhada por gráficos representativos e pela evocação dos organismos que foram herdando funções do Ministério do Reino. Embora na introdução se faça uma breve síntese desta evolução, sem dúvida que tal ficou por fazer, à parte a inovadora abordagem sobre os contingentes dos funcionários públicos e a sua comparação com os recursos humanos do Ministério do Reino.
5 Uma segunda ideia, estruturante para caraterizar uma instituição como o Ministério do Reino, tem a ver com o recenseamento das áreas de governo que fizeram parte da sua missão ao longo dos três séculos cobertos pela obra, algumas das quais se foram autonomizando com o seu esvaziamento político. O que ressalta deste estudo é que as áreas do Ministério da Administração Interna foram privilegiadas em relação às do Ministério do Reino, em que algumas nem sequer foram estudadas. Uma das mais significativas é, sem dúvida, a saúde pública. Esta área esteve, no Antigo Regime, a cargo do Provedor-mor da Saúde, Junta do Protomedicato, Junta da Saúde, Físico-mor, Cirurgião-mor e outros agentes tutelados pelo Ministério do Reino. Depois da revolução liberal, o Ministério do Reino enquadrou a ação do célebre Conselho de Saúde Pública, a rede distrital das estações e delegações de saúde, o Instituto Vacínico, o Lazareto, o Conselho Superior de Higiene e a sanidade marítima dos portos, além da gestão e do controlo financeiro e administrativo de muitos hospitais. Esta faceta está muito ausente do trabalho, descontando as 24 páginas de síntese a cargo de Rita Garnel (de 1834 a 1958), que incide nos órgãos centrais e retrata o que a legislação permite dizer, o que é, de facto, muito pouco para caraterizar esta imensa atividade do Ministério do Reino.
6 Uma outra área, igualmente fundamental, é a instrução pública. Antes da revolução liberal, o Ministério do Reino tutelou politicamente, durante o período josefino e mariano, a Junta da Providência Literária, a poderosa Junta da Diretoria Geral de Estudo e Escolas do Reino e a Real Mesa Censória para, no século XIX, coordenar o Conselho Geral de Instrução Pública e toda a rede de escolas de instrução primária e secundária por cada distrito, intervir no ensino superior (Universidade de Coimbra, Academia Politécnica do Porto, Escolas Médico-Cirúrgicas do Funchal, de Lisboa e do Porto e Escola Politécnica do Porto). Também aqui não há nenhuma aproximação a esta área de governo da qual viria, aliás, a surgir o Ministério dos Negócios da Instrução Pública (1870) retomado em finais do século (Ministério da Instrução Pública e Belas Artes, 1890-1892). Nada é dito sobre esta função charneira assumida pelo Ministério do Reino até praticamente à República.
7 Uma terceira área esquecida está relacionada com a assistência social, uma matéria política que sempre serviu para aferir a dimensão da clivagem entre conservadorismo e inovação. Antes do liberalismo, o Ministério do Reino esteve implicado na gestão da rede das misericórdias, confrarias, hospitais e casas pias e, depois, na Monarquia constitucional, com o Conselho Geral de Beneficência, Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, colégios, recolhimentos, asilos e misericórdias. O mesmo se passa, também, com a supervisão das obras públicas, trabalhos geodésicos, cadastrais e topográficos, oficinas de conservação e restauro de monumentos históricos, bem como o planeamento e construção de estradas. Ou, ainda, com diversas superintendências como, entre outras, sobre o Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional de Lisboa, Biblioteca Pública de Évora, Imprensa Nacional, Academia Real das Ciências, Academia de Belas Artes, bibliotecas, museus, arquivos e o apoio ao Conselho de Estado e ao Supremo Tribunal Administrativo.
8 De facto, as áreas emblemáticas do Ministério do Reino estudadas foram a segurança e o controlo periférico. A primeira sempre fez parte da matriz do Ministério do Reino (no Antigo Regime com a Intendência Geral da Polícia, Guarda Real e, no liberalismo, com a GNR, PSP e polícias de informação). Já o controlo à periferia foi diferente, uma vez que durante o Antigo Regime esteve a cargo do Desembargo do Paço e, depois de 1820, seria assumido pelo Ministério do Reino em articulação com os governos civis. Sem dúvida, um dos temas mais desenvolvidos, a par da administração dos processos eleitorais. Por outro lado, talvez a escolha do controlo das mobilidades populacionais e a emigração (1736-2011), os bombeiros, proteção civil e segurança rodoviária pudessem ter uma análise diferenciada para o Ministério do Reino e o Ministério da Administração Interna num período tão longo.
9 Finalmente, uma observação metodológica e epistemológica. A abordagem historiográfica a uma instituição político-administrativa não pode prescindir do seu acervo arquivístico porque representa o “espelho” das funções, competências, perfil organizacional, tramitação documental, práticas burocráticas, sistema de informação/decisão e os canais de comunicação política e administrativa. O núcleo do Ministério do Reino à guarda da Torre do Tombo é um repositório monumental que permite, graças à qualidade das intervenções arquivísticas, uma consulta sistemática que devia ter sido feita (nem que fosse por amostragem) para revelar detalhes da “maquinaria” institucional deste ministério. À parte uma ou outra meritória evidência na utilização deste recurso, o certo é que a investigação se serviu, fundamentalmente, de bibliografia, coleções de legislação e orçamentos. Uma aproximação à história custodial teria sido útil, visto tratar-se de uma instituição de onde se autonomizaram outros órgãos da administração central. Uma nota, ainda, para a conceção gráfica, que cria dificuldades na leitura e gera confusão na consulta.
10 Apesar das lacunas e insuficiências apontadas, trata-se de uma obra útil para se compreender o processo de construção política e administrativa do Estado liberal e o alvor da democracia. O leitor comum ganhará uma visão geral da governação e o estudioso da história institucional colherá detalhes e estatísticas de grande relevância.
José Subtil – Universidade Autónoma de Lisboa
Wilhelm Ostwald: The Autobiography | Robert Smail Jack, Fritz Scholz
A despeito de um prestígio reduzido entre os químicos de hoje, Wilhelm Ostwald (1853-1932) foi um dos mais importantes nomes da Química entre o final do século XIX e o início do século XX. Sua relevância deve-se não apenas aos seus trabalhos sobre equilíbrio químico, catálise e cinética química, mas principalmente à sua atuação para o estabelecimento e popularização da Físico-Química e configuração moderna do ensino da Química, que em certa medida, permanece até os dias de hoje. Contudo, Ostwald é mais conhecido por ter sido adepto do Energeticismo e como consequência disso, por sua forte rejeição à teoria atômica, divulgada em inúmeros livros e artigos. Leia Mais
Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegação dos norte-americanos | Mary Anne Junqueira
O livro de Mary Anne Junqueira, produto de sua tese de livre-docência no Departamento de História da Universidade de São Paulo, é um relato expressivo da U.S. Exploring Expedition (1838-1842) chefiada pelo capitão Charles Wilkes da Marinha norte-americana. Segundo a autora, esta viagem teve pouca repercussão nos anos subsequentes, fato que talvez explique a razão da restrita historiografia sobre esta empreitada. O motivo desse “esquecimento” poderia estar no caráter explosivo e violento de Wilkes para com sua tripulação, que teve que encarar uma corte marcial quando voltou aos Estados Unidos. Só a narrativa dos acontecimentos ligados aquela expedição vale a leitura do livro de Mary Anne Junqueira. Cabe registrar o ótimo capítulo que explora a vida dos marinheiros a bordo, ricamente ilustrado, dando voz a um setor comumente negligenciado pelas narrativas históricas. Leia Mais
Mídias | Anais do Museu Histórico Nacional | 2017
Cinema, games e museus: meios, usos e mediações dos acervos históricos na era das audiovisualidades
O presente dossiê apresenta um conjunto representativo de algumas das pesquisas mais atuais e instigantes sobre as relações entre história, cinema, games e museus na constituição das interfaces, interdisciplinaridades e especificidades dos “meios, usos e mediações”[1] dos acervos históricos na “Era das Audiovisualidades”.
Na primeira metade do século XX, os estudiosos da chamada Escola de Frankfurt – como Theodor Adorno [2], Max Horkheimer [3], Walter Benjamin [4], seguidos mais à frente por pesquisadores contemporâneos como Guy Debord [5], Jean Baudrillard [6], Douglas Kellner [7], Néstor García Canclini [8], Jesús MartinBarbero [9], Pierre Lévy [10], dentre outros, têm refletido sobre a sociedade de massas na “Era do espetáculo dos meios de comunicação” e avaliado o papel das novas mídias nas práticas sociais e culturais que, cada vez mais, tem valorizado uma postura interativa do público espectador frente às “obras de arte na época da sua reprodutibilidade técnica”.[11] Leia Mais
Imprensa feminina e feminista no Brasil: século XIX – Dicionário Ilustrad | Constância Lima Duarte
Excluídas de uma efetiva participação na sociedade, da possibilidade de ocuparem cargos públicos e do acesso à educação superior, as mulheres do século XIX estavam, majoritariamente, circunscritas ao espaço privado (TELLES, 1997, p. 408). Além disso, estavam constritas por enredos de arte e ficção masculinas que reforçavam a idealização das mulheres em seus papéis familiares, como mães amorosas, esposas virtuosas e filhas dedicadas. Contudo, também foram muitas as mulheres que conquistaram o território da escrita, superando a “tirania do alfabeto, tendo primeiro que aprendê-lo para depois deslindar os mecanismos de dominação nele contidos” (TELLES, 1997, p. 410).
O livro de Constância Lima Duarte conduz o leitor pelo cenário multifacetado da imprensa destinada ao público feminino no Brasil do século XIX, no qual emergiram tanto discursos legitimadores do status quo patriarcal, quanto posicionamentos incisivos em prol da ampliação de direitos. Fruto de um extenso trabalho de pesquisa, a obra reúne 143 títulos de revistas e jornais que circularam ao longo daquele século, independentemente de terem sido escritos e dirigidos por homens ou mulheres e se identificarem ou não com o ideário feminista. A proposta da autora proporciona um olhar abrangente acerca da condição da mulher, de sua formação intelectual e da construção cultural e discursiva de sua identidade na sociedade brasileira oitocentista. Leia Mais
Antigo Oriente (M. Liverani)
LIVERANI, Mario. Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. Tradução de Ivan Esperança Rocha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016. Resenha de ROCHA, Ivan Esperança. História v.36 Franca 2017.
Após mais de trinta anos das publicações específicas e de envergadura sobre o Oriente Próximo Antigo, em língua portuguesa, representadas pelos dois volumes de Paul Garelli e de Valentin Nikiprowetzky, traduzidos pelo professor Emanuel O. Oliveira, o clássico livro Antigo Oriente, História, Sociedade e Economia, de Mario Liverani cumpre o importante papel de atualizar e enriquecer os conhecimentos historiográficos sobre as civilizações do Antigo Oriente Próximo.
O autor utiliza não apenas documentos sobejamente conhecidos, como os que integram parte da literatura clássica e antico-testamentária, mas inclui um conjunto de documentação primária trazida à luz por descobertas arqueológicas que, em muitos casos, contaram com sua participação direta, percorrendo três milênios (3500-500 a.C.) de uma história que deixa importantes traços na cultura ocidental. Liverani destaca que o surgimento de novas fontes acaba exigindo a revisão contínua de capítulos inteiros da história oriental e, naturalmente, com implicações historiográficas mais abrangentes.
Liverani publicou, originalmente, seu livro em 1988, mas em suas numerosas reedições, particularmente na reedição de 2009, utilizada nesta tradução, preocupou-se em incorporar as modificações surgidas na interpretação das fontes, nas discussões e metodologias aplicadas ao conhecimento do Antigo Oriente Próximo.
Como professor e pesquisador emérito da Universidade La Sapienza de Roma, Liverani nos apresenta de forma didática e inovadora seu conhecimento acumulado sobre sumérios, hititas, assírios, babilônios, judeus, fenícios, entre outros povos.
Oferece um rico conjunto de documentos, figuras e tabelas que colocam o leitor diretamente em contato com as fontes, com informações textuais, epigráficas, arquitetônicas e cartográficas combinadas de forma criativa, além de indicar possíveis reconstruções com base em informações arqueológicas.
Liverani tem como colegas vários pesquisadores da Universidade La Sapienza que também são responsáveis por novas descobertas no âmbito do Antigo Oriente como é o caso, por exemplo, de Ebla, onde foram encontrados em torno de 15.000 tabletes na língua cuneiforme que trouxeram uma rica contribuição para a ampliação dos conhecimentos sobre essa área.
O autor se apoia em conhecimentos consolidados sobre o Antigo Oriente Próximo, mas não deixa de apontar novas possibilidades e até mesmo superações necessárias de acordo com novos dados e tecnologias surgidos nesse campo historiográfico, que colocam em cena novos atores e novas relações ainda não conhecidos ou pouco explorados, mas não deixa de apontar para as dificuldades e desafios envolvidos.
Percorre os espaços da revolução urbana, da tecnologia de produção, do nascimento da escrita, das relações entre ‘metrópoles” e “periferias”, dos sistemas de governo e de administração, dos processos de fragmentações e unificações políticas, das relações comerciais locais, regionais e de longa distância e do dinamismo das relações culturais presentes nesse espaço.
O livro apresenta, enfim, uma nova perspectiva historiográfica sobre o tema, mesmo sem pretender arvorar-se na última palavra sobre esse amplo e importante espaço da antiguidade. Releva, outrossim, que sua principal contribuição é a tentativa de tecer uma visão de conjunto nesse campo, distanciando-se de abordagens excessivamente filológicas, elegendo um ponto de vista mais histórico e não se eximindo de indicar opções de recortes cronológicos, temáticos e geográficos.
O extenso livro, com 832 páginas, é dividido em seis partes. Na primeira, o autor faz uma longa introdução ao texto; na segunda trata sobre o período do bronze inicial; na terceira sobre o período do bronze médio; na quarta sobre o período do bronze tardio; na quinta sobre o primeiro período do ferro e na sexta parte apresenta uma discussão sobre os impérios orientais e movimentos de unificação.
Do ponto de vista cronológico, a obra se restringe ao período entre o Neolítico e o Império Persa (500 a.C.) que geograficamente se estende do planalto iraniano à Anatólia e do Mar Negro ao Golfo Pérsico, deixando deliberadamente de lado a história de culturas da península arábica. Mas com esta opção não quer defender o que poderia ser chamado de “imperialismos regionais” pois não deixa de se referir a regiões constituídas por outros núcleos fronteiriços e a redes de interconexão vinculadas aos espaços de seu recorte geográfico. No entanto, este recorte impede uma discussão sobre o Oriente Próximo no mundo helênico, deixando de relevar as importantes formas de adaptação e interação entre as sociedades do Oriente Próximo e as culturas helenísticas, assim como a contribuição intelectual de babilônios e assírios no âmbito da cultura antico-oriental. Por vezes, em virtude da falta de informações, utiliza dados mais recentes para se referir a realidades anteriores.1 Pouco se refere, também, ao crescente número de bases eletrônicas que disponibiliza um número cada vez maior de dados sobre fontes, cultura material e literatura sobre o Antigo Oriente.
Cada capítulo é lastreado por uma ampla bibliografia, que foi sendo atualizada ao longo das novas edições e, que além de subsidiar seu texto, possibilita ulteriores aprofundamentos sobre cada um dos diferentes temas discutidos.
O texto inclui um meticuloso índice onomástico de pessoas e divindades e de lugares e povos que facilitam e complementam a leitura desta longa, mas inovadora descrição historiográfica sobre o Oriente Próximo Antigo que se tornará uma obra de extrema importância não apenas para quem faz um estudo especializado de história antiga, mas para os leitores em geral.
A crescente ampliação das fontes e dos conhecimentos sobre o Antigo Oriente, como alerta o próprio autor, exigirá cautela e atualizações na leitura da obra. No entanto, as lacunas e desafios apontados não retiram o brilhantismo com que o autor apresenta e discute o conteúdo por ele elegido.
Notas
1LIVERANI, Mario . The Ancient Near East: History, Society and Economy. Tradução de Soraia Tabatabai. Londres; New York: Routledge, 2014. Resenhado por C. Jay Crisostomo. Bryn Mawr Classical Review, 19 outubro 2014.
Ivan Esperança Rocha – Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19806-900.
Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (C. E. Jordão et. al)
JORDÃO, Carlos Eduardo; MACHADO JR., Rubens; VEDDA, Miguel (Orgs.). Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 472 p. Resenha de: REBELLO, Hélio; MIOTO, Júlio César. História v.36 Franca 2017. Walter Benjamin: Experiência histórica e imagens dialéticas (T)
No já extenso leque da difusão da obra de Walter Benjamin nas edições brasileiras, e de seus comentadores, especialmente os brasileiros, o livro que temos em mãos, de fato contribui para a assimilação cultural da obra. Por se tratar de uma coletânea, com 472 páginas contendo 34 artigos distribuídos em cinco seções, o livro oferece, além de diversidade temática, uma gama de perspectivas vindas de pesquisas realizadas em diversos países. A coletânea é sistematização de textos apresentados, em grande parte, em um evento que ocorreu na cidade de Buenos Aires, no ano de 2010, sobre a questão da memória, embora não esteja muito claro, na apresentação, quais foram os textos escritos nesse contexto. Traz textos mais domésticos de pós-graduandos, gente de iniciação científica, em treinamento, e textos de receptores consagrados.
Os artigos têm vários níveis de elaboração, mas esse fato não denota uma correspondência exata com a graduação acadêmica de cada um dos colaboradores. Alguns dos autores são consagrados como pesquisadores da obra de Benjamin no Brasil; outros, como por exemplo Edmurt Wizisla, diretor do Arquivo-Benjamin em Berlim, cujo texto mostra forte proximidade filológica com os manuscritos, dão a conhecer, entre nós brasileiros, um trabalho já consolidado. A mesma proximidade com os manuscritos tem o professor Bolle, que trabalha no Brasil há anos, dedicando-se ao projeto da obra das Passagens. Nesse sentido, há textos absolutamente originais, por conta do trabalho filológico experiente, e, por outro lado, textos com tratamento mais conhecido, mas não menos sério, dedicados a temas já bastante estudados.
Diante dessa diversidade, o leitor pode se beneficiar com uma leitura integral desta coletânea, graças ao caráter de peça acabada dos artigos. Naturalmente, este aproveitamento dependerá do grau de conhecimento do leitor com relação aos estudos benjaminianos. Com efeito, o leitor a ser beneficiado pela leitura da coletânea pode ser classificado em três amplos estratos, não necessariamente autoexcludentes: aquele que procura aprofundar-se no pensamento do Autor; o que procura conhecer novos temas da obra benjaminiana, que é extensíssima; e, por fim, aquele que visa reconhecer novos olhares sobre temas mais conhecidos.
Como a tônica da coletânea é sua bem-vinda heterogeneidade temática, autoral e de estilo, é interessante fornecer uma amostra concreta dos graus de aproveitamento da coletânea, o que propomos, com o intuito destacar as virtualidades do texto e sem respeitar a apresentação linear da coletânea.
O tema recorrente do fetiche da mercadoria é tratado em artigos centrais bem iluminadores, com ênfase na compreensão do modo capitalista de produção que lhe é correspondente, a fim de dar destaque aos registros históricos do século XIX feitos por Benjamin, os quais poderiam passar despercebidos para o leitor atual. Identificar esse e outros núcleos temáticos depende da percepção histórico-crítica, mesmo da inspiração, da compreensão das estruturas históricas baseadas no modo de produção e dos fatos históricos a partir dos quais a crônica é feita.
O método benjaminiano de citação é tratado, muitas vezes, conectado a essa percepção histórico-crítica. Por exemplo, em um dos últimos textos desta coletânea – textos que serão descritos individualmente adiante – fica claro o que seria “imagem dialética”, seu efeito desalienante e como ela está relacionada com a citação. Segundo tal autor, Oehler discorre sobre uma “quase identidade” entre a montagem de citações e a imagem dialética. Essa identificação tem um espírito bem exato, o leitor pode ser esclarecido por meio dela quanto ao “agora de cognoscibilidade” tematizado nas Passagens e em Sobre conceito de história. Da mesma forma, pode intuir sobre o que é o fragmento e a sua relação com a verdade para Benjamin, tema do autor desde a obra filosófica anterior. Sem nos estender sobre a tendência ao fragmentar na obra de Benjamin, o importante é a noção da humanidade redimida, que torna o passado inteiramente citável.
Essa amostra acerca de dois núcleos da coletânea, ou seja, as referências históricas de Benjamin e o método de citação benjaminiano, evidencia uma virtude do livro em apreço, embora tais núcleos sejam restritos e limitados a alguns artigos, eles têm um efeito irradiador sobre o conjunto.
De forma diversa desse reforço de questões irradiadoras da obra do Autor, foco da coletânea, alguns dos temas fogem à pesquisa benjaminiana mais estrita. Isso se deve ao que podemos chamar da assimilação cultural já concretizada, de modo que os conceitos de Benjamin, reconfigurados, servem a usos não habituais. Essa constatação se aplica mais aos últimos textos da coletânea, que são sobre cinema.
Há, ainda, o que podemos chamar de temas benjaminianos sobredeterminados, em razão de sua recorrência. Mas, mesmo nestes casos, a maior parte dos artigos apresenta algo novo ao leitor que se situa na fronteira entre o interessado e o especialista em Benjamin. Por exemplo, a imagem biográfica de um Walter Benjamin isolado se desfaz quando fica muito claro nos artigos centrais o reconhecimento que Benjamin teve dos seus pares, como ele compunha uma intelectualidade que recepcionava o que se produzia por pares numa Europa em que havia a oportunidade histórica do socialismo (veja a esse respeito os artigos sobre Benjamin e Adorno, Benjamin e Bloch, Benjamin e Lukács). Sobre Benjamin e Lukács, os artigos tratam do tema do conto de fadas, do problema da situação do romance, do tema da morte do narrador, que exigiam uma política. Estes artigos, por si só, mostram a inserção de Benjamin no debate internacional de comunistas na Europa. Igualmente, a crítica da noção de progresso na história de Ernst Bloch e de Benjamin é observada por um artigo – Bloch, com sua noção de “matéria da história”, determinou questões de filosofia da história, em uma peculiar física relativista da história. No artigo, o pensamento histórico de Ernst Bloch é relacionado aos conceitos de Benjamin, de modo que a rica interlocução dos dois autores é recuperada.
Essa amostragem procura dar ao leitor uma visão das virtualidades da coletânea, visto que uma apreciação dos 34 artigos seria excessiva para este espaço. No entanto, há um interesse informativo em se apresentar uma descrição sumária desses artigos distribuídos em cinco seções.
A primeira seção do livro se denomina “Das imagens da memória ao fetiche e suas fantasmagorias”, com seis artigos. O livro se abre com o texto de Gagnebin, que vê no Brasil um trauma da memória. Ela discute os conceitos de memória em Benjamin, a crítica ao historicismo, em relação aos traumas nacionais, evidenciando que, no Brasil, falta uma política da memória. O segundo artigo é, justamente, do diretor do Arquivo-Benjamin, Wizisla, que comenta o método de Benjamin associado às suas estratégias de publicação de um ensaio, “Um Instituto alemão de pesquisa livre” sobre o Instituto de Frankfurt. O terceiro é de um professor de Constança, Stiegler, cujo tema é o artigo “A pequena história da fotografia” e outros textos de Benjamin conexos. O quarto artigo é de Alambert, professor da USP, sobre a forma mercadoria da arte. O quinto artigo é de Grespan, também professor da USP, o qual vê em Benjamin um crítico do fetiche da mercadoria, faz uma análise instigante da visão de Benjamin acerca do modo capitalista no século XIX – sistema que é ainda o vigente, com isso destacando-se atualidade do texto de Benjamin (as considerações tecidas por Grespan atualizam a crítica de caráter marxista de Benjamin). O sexto artigo é de um pós-graduando da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis-SP, Dias Durães, sobre as Exposições Universais. As fantasmagorias (ou imagens) do século XIX são mostradas a partir da obra das Passagens, e se intui bem a opressão rente aos fetiches, o que também havia sido notado por Grespan, como pulsão de morte, pulsão para o inorgânico.
A segunda seção – “Passagens, Teoria da História e Revolução” – contém sete artigos. O primeiro artigo desta seção, ou seja, o sétimo da coletânea, é de autoria de Löwy, benjaminiano que dispensa apresentação e trata do tema do enfrentamento de classes em Paris no século XIX (barricadas, Haussmanização, Comuna de 1871). O oitavo artigo é de Bolle, já referido, e tem por brilhante tese que a categoria do hipertexto explica o plano da obra das Passagens. O artigo de Olgária Matos é sobre os interiores, as passagens e os pórticos, sobre a vontade de que a cidade fosse uma extensão confortável da vida privada, onirismo de uma sociedade que se sonha sem classes, que é a falsa representação que a sociedade burguesa capitalista faz de si mesma, expressão de sua falsa consciência. O décimo artigo, de Zimmer, professor em Girona, Espanha, compara as críticas ao progresso de Bloch e de Benjamin. O texto do organizador Jordão Machado compara muitos momentos da obra benjaminiana para associar montagem literária e tempo messiânico, levando o leitor a observar o contexto da inflação alemã pelos olhos de Benjamin. O décimo segundo artigo é de Chicote, de Buenos Aires, que compara os estilos de Benjamin e de Lukács, assim como observa a importância de História e Consciência de Classe para o marxismo ocidental. O décimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Pisani, que procura comparar o Marcuse tardio a Benjamin.
A terceira seção se intitula “Literatura, Música e Surrealismo” e traz seis artigos. O décimo quarto artigo, primeiro desta seção, tematiza algo muito interessante, a política de conto de fadas na Hungria, sob ordens de Lukács, e as diferenças entre Benjamin e Lukács quanto à função desse tipo de literatura para a infância em uma política socialista; o texto é de Gángó, um húngaro da Universidade de Budapeste. Tema semelhante ao do próximo artigo, de Vedda, de Buenos Aires, também organizador da coletânea, este mais focado em Benjamin, porém. Koval, também de Buenos Aires, trata da Teoria do Romance de Lukács e de sua recepção indireta por Benjamin. O décimo sétimo artigo, de dois professores de Buenos Aires, Orlante e Salinas, trata da clássica leitura de Benjamin da obra de Kafka. No sentido do significado brechtiano e benjaminiano da política da arte, o professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Bastos, defende a obra musical engajada de Eisler, colaborador de Brecht no teatro épico, em artigo brilhante, no qual ele discute a oposição entre a lógica imanente do material musical e o uso no teatro da música de vanguarda. O décimo nono artigo é de dois estudantes da Unesp de Assis, Azevedo e Franco, sobre o instantâneo do surrealismo na inteligência europeia segundo Benjamin.
O vigésimo artigo, que inicia a quarta seção da coletânea denominada “Melancolia, Brinquedo, Freud e Leituras”, com oito artigos, vem assinado por um docente da Universidade de Hildesheim, Alemanha, Tohlen, que trata da “negatividade” da arte considerada na teoria estética do ponto de vista da história natural em Adorno e em Benjamin, mostrando a influência de Benjamin em Adorno. Maria Rita Kehl é a próxima autora, e faz considerações sobre a depressão e melancolia nos diagnósticos contemporâneos, comparando o conceito de melancolia de Benjamin com a designação do diagnóstico de um tipo de mania por Freud. O artigo de número vinte e dois é do psicanalista Dionísio, professor na Unesp de Assis, que fala da pertinência do conceito de Benjamin de inconsciente ótico e da natureza do olhar e da escuta psicanalítica. O vigésimo terceiro artigo é de uma professora da Universidade de Buenos Aires, Castel, sobre a recepção de Freud por Benjamin, em um estudo detalhado das listas de leitura de Benjamin, assim como da apropriação de conceitos expressos da psicanálise, e também da crítica de Benjamin a Jung. O vigésimo quarto artigo, de outra professora de Buenos Aires, Belforte, trata da profunda questão da ética erótica no comentário e na crítica de Walter Benjamin ao romance As Afinidades Eletivas, de Goethe, em um artigo clássico da juventude de Benjamin, depois ela também escreve sobre a paixão de Benjamin por uma militante comunista e sobre como isso representou uma conversão existencial para Benjamin, manifesta no teor dos textos a partir de 1927. O vigésimo quinto artigo é sobre o modelo de reminiscência em Benjamin, da sua própria infância e sobre sua concepção do brinquedo e do brincar. O vigésimo sexto texto da coletânea é de um pós-doutorando da USP, Gonçalves, que tece consistente e ousada crítica à apropriação de Haroldo de Campos do conceito de tradução em Benjamin. O vigésimo sétimo é de autoria de três professoras de Faculdades de Educação do Estado de São Paulo, Barbosa (Unesp), Catani (USP) e Moraes (USP). Em um dos artigos mais longos, as autoras tecem um balanço, inclusive quantitativo – porém mais do ponto de vista do modo de apropriação -, da recepção e dos usos dos textos de Benjamin nas publicações sobre ensino e educação no Brasil.
O artigo de número vinte e oito, que inicia a quinta e última seção (composta por sete artigos) intitulada “Cinema, Alegorias e Imagens Urbanas”, escrito pelo consagrado crítico e professor de cinema da USP, Ismail Xavier, realiza leitura marcante acerca das alegorias do filme Metropolis, de Fritz Lang, um filme sempre clássico. É bem uma interpretação imanente do universo diegético de Metropolis, e, ao final do artigo, que é um dos mais longos da coletânea, a alegoria langiana é comparada à benjaminiana. Machado Jr., mais um organizador do livro, escreve o vigésimo nono artigo, sobre a experiência, mesmo marginal, de um tipo de cinema feito na década de 1970, no Brasil, que utilizava o Super-8 como instrumento audiovisual básico. É um tipo de cinema difícil de conhecer pela experiência marginal mesma que ele constituiu, mas no artigo há referências a filmes e a autores, assim como uma descrição da experiência, feita a partir de referenciais benjaminianos. O trigésimo artigo compara as visões de Benjamin e Kracauer sobre a situação do cinema na década de 1930 e sobre o que é próprio à sua natureza. O doutorando da Unesp, Sinaque Bez, autor do artigo, pretendeu realizar uma descrição breve, exemplar e histórica do cinema do terceiro mundo, observando as potencialidades descritas por estes autores na década de 1930. Uchôa, autor do trigésimo primeiro artigo, faz uma discussão entre Benjamin e Kracauer, do mesmo modo, mas com outro objetivo, trata-se da questão do ator no mundo de hoje. Zannato, no trigésimo segundo artigo, mostra as tensões políticas envolvidas nas tentativas de Paulo Emílio de exibir filmes soviéticos, na década de 1950, além de detalhar o trabalho deste cineasta, crítico, intelectual do desenvolvimento etc., ao longo de sua vida; o texto tem belo teor biográfico-histórico. O trigésimo terceiro artigo, de Almeida Leonel, já foi referido e trata da montagem, ou melhor, do conceito que tinha Chris Marker, cineasta francês, da montagem. O autor envolve o “agora de cognoscibilidade” à inteligibilidade histórica politizada que o seu cinema oferece, especialmente quanto aos eventos de 1968, na França. O último artigo é de uma docente da PUC-SP, Ana Amélia da Silva, sobre o filme-ensaio de Godard, Histoire (s) du cinema (1988-1998). Ela lança mão dos textos de Walter Benjamin para constituir um referencial filosófico e histórico que ajude a explicar o filme-ensaio, atendo-se às referências internas dele, mas com instrumental teórico dos frankfurtianos.
Realizado este cômputo, podemos dizer que, do ponto de vista do conjunto, o livro dividido em cinco seções possui delimitação mais ou menos artificial, visto que, para cada seção, pelo menos um artigo não apresenta clara vinculação com a unidade temática ou supomos poder se situar em outra seção. No entanto, essa incongruência chega a ser compreensível em uma coletânea tematicamente diversa, cujo conteúdo de cada artigo necessariamente extravasa os limites previstos em virtude da própria difusão conceitual da obra de Benjamin. Particularmente, a última seção, que é integrada por sete artigos sobre cinema, faz um uso mais livre dos textos de Benjamin.
Para uma história da recepção mundial da obra de Benjamin, o livro estaria inevitavelmente inserido no turbilhão de publicações da era do paper, mesmo que muitos dos seus autores, os quais fazem a pesquisa desde antes da era da internet e estão bem vivos, representem a recepção histórica nos diversos países e cederam texto à coletânea. Há, no conjunto, sobredeterminantes, quer dizer, reiteração temática, mas, pelo menos informativamente e formativamente, nenhum dos artigos deixa de valer a leitura. Não é o caso de que seriam os mais jovens recém-chegados simplesmente repetidores e de que os eruditos e exegetas mais experientes trariam a última palavra. Em suma, o livro-coletânea sintetiza o estado dinâmico e intenso dos estudos benjaminianos e ainda os promove e impulsiona. Além disso, como a maior parte dos autores é composta de brasileiros e brasileiras de diversas gerações, podemos reconhecer a edição como uma prova de que a recepção brasileira dos textos de Benjamin, iniciada mesmo antes de sua tradução para o português (PRESSLER, 2006), mantém uma tradição que permite aos acadêmicos benjaminianos brasileiros figurarem como interlocutores de seus congêneres estrangeiros, haja vista a comunidade multilíngue que o livro-coletânea em apreço reúne.
Referências
PRESSLER, G. K. Benjamin, Brasil: A recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005: um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: Annablume, 2006. [ Links ]
Hélio Rebello CARDOSO JUNIOR. Professor Doutor – Prof. Adjunto de Filosofia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19806-900.
Júlio César Mioto – Professor Mestre – Mestrado em Filosofia. Universidade Estadual de Londrina, UEL, Brasil. Rodovia Celso Garcia Cid, Km 380, s/n – Campus Universitário, Londrina – PR, 86057-970.
História Tardo Antiga e Medieval / Caminhos da História / 2017
ARAÚJO, Vinícius Cesar Dreger de. [História Tardo Antiga e Medieval]. Caminhos da História, Montes Claros, v. 22 n. 1, 2017. Acessar dossiê [DR].
Novos objetos, novas abordagens / Caminhos da História / 2017
Prezadas/os leitoras/es,
Ao cumprimentarmos nossas leitoras e leitores, apresentamos a mais atual edição da Caminhos da História, destacando uma série de mudanças pelas quais o periódico vem atravessando durante esse ano, com a finalidade de acolher o conjunto de processos empregados pela Qualis Capes na avaliação de periódicos científicos afiliados às Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras.
Em 2020, o periódico Caminhos da História passa a fazer parte do novo Portal de Periódicos da Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes. Como a própria página do portal destaca, a intenção básica do portal é promover periódicos empenhados com a circulação, nacional e internacional, da produção científica, nos diferentes campos científicos, afora proporcionar apoio aos editores, autores e leitores dos periódicos, fornecendo infraestrutura, formação e facilidades de software.
Dessa maneira, o periódico do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Unimontes, dentro da sua ação de reformulação, passa a integrar, ao lado de outros 17 periódicos científicos da Instituição, esse portal, cujas publicações são feitas dentro do sistema Open Journal Systems (OJS), um software de código aberto para o gerenciamento de periódicos acadêmicos revisados por pares e criado pelo Public Knowledge Project, lançado sob a General Public License – GNU.
Mais uma questão abraçada pelo periódico foi a reformulação de sua Comissão Editorial, com evidência para o Comitê Consultivo. Neste ponto, o periódico expõe um conjunto de pesquisadorxs doutorxs especialistas em múltiplos domínios da História e campos afins. Nosso escopo foi, basicamente, contar com pesquisadorxs de Universidades Estaduais e Federais das cinco regiões brasileiras, afora pesquisadorxs estrangeirxs que pudessem colaborar com novos olhares para refletirmos acerca da História no Brasil. De tal modo, compõem o quadro pesquisadorxs vinculadxs a universidades na América Latina e Europa. Procuramos, ainda, ter o cuidado de combinar pesquisadorxs já estabilizados em suas carreiras com pesquisadorxs em ascensão, para que o periódico possa ser mantido por diferentes caminhos acadêmicos. Para nós, a finalidade dessa cartografia intelectual é clara: primar pela heterogeneidade geracional, institucional, de gênero e de fluxos de investigação. Por fim, mas não menos importante, gostaríamos de destacar a configuração que o periódico recebeu em 2019. O periódico passou a pertencer ao Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Unimontes, um programa com curso de mestrado.
Perante esse quadro, neste fascículo, apresentamos ao público 07 artigos originais e uma resenha, decompostos em duas seções: a primeira parte compõe um dossiê, com a temática “Novos objetos, novas abordagens”, organizado pela Profa. Dra. Ilva Ruas de Abreu, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Unimontes. Nele, os artigos destacam desde a História das Ciências, o campo médico-científico e suas técnicas e procedimentos, passando por novos olhares sobre os debates de gênero e suas formas de análise, enfatizando abordagens diversas que focam objetos instigantes, como a implementação de tecnologias e a sociabilidade esportiva. A segunda parte, composta por artigos de temáticas livres, conta com artigo sobre práticas fúnebres vinculadas a irmandades nos séculos XVIII e XIX, a análise do projeto integralista de Gustavo Barroso, finalizando com uma resenha do livro “Egressos do Cativeiro”, de Roberto Guedes, debatendo os significados da mobilidade social de diferentes camadas do período.
Como dito anteriormente, primamos pela diversidade institucional. Deste modo, o número ora apresentado agrega produções de autorias de distintas origens e formações do Brasil.
Indo direto ao ponto: esperamos que toda(o)s tenham uma excelente leitura!
Ester Liberato Pereira
Rafael Dias de Castro
PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v.22, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]
As questões socialmente vivas e a produção historiográfica / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017
Nesta edição, a Revista Clio se voltará às questões socialmente vivas e sua relação com a produção historiográfica. Ao propor este Dossiê, pensamos em mobilizar historiadores do Brasil a partir do interesse em contribuir, enquanto área do conhecimento, para análise e problematização dos retrocessos políticos e sociais do nosso tempo.
Vivemos em um tempo marcado pela retomada de ideias fascizantes, propagadas por setores conservadores da grande imprensa nacional, e materializadas nas propostas políticas que defendem, por exemplo, a “lei da mordaça” (Escola sem Partido), a redução da maioridade penal e o Estatuto da Família. Muitas dessas ideias remetem a tempos pretéritos, como os do colonialismo patriarcal, da escravidão e dos governos autoritários, e se apresentam como questões socialmente vivas. Mas, o que são tais questões?
Esta pergunta nos inquietou deste o início e se tornou um desafio. Os trabalhos recebidos nos levaram a problematizar a nossa proposta, uma vez que, mesmo apresentando um tema sensível muitos dos artigos não traziam abordagens preocupadas em responder os problemas sociais do nosso tempo. A partir das discussões construídas, chegamos a considerar que nem sempre um tema sensível é abordado a partir de uma questão socialmente viva.
Acreditamos que ao abordar os temas sensíveis à luz das questões socialmente vivas, os historiadores e historiadoras devem estar atentos à complexidade dos problemas sociais construídos historicamente que ainda nos afetam enquanto sujeitos individuais e coletivos, que nos afligem enquanto sociedade e que nos indignam enquanto sujeitos. A partir desse prisma é possível produzir outros deslocamentos de análise, buscando colocar no centro do debate os problemas sociais produzidos no passado que ainda se encontram presentes na nossa sociedade.
Ao trabalhar com a temática da escravidão negra no Brasil, por exemplo, a depender da abordagem, podemos invisibilizar os problemas sociais gerados pela prática escravista ou até reproduzir a ideia construída pelo projeto político colonial. Como trabalhar com a questão da escravidão a partir de uma abordagem sensível?
Debruçar-se sobre as questões socialmente vivas é estar preocupado com os problemas sociais historicamente construídos que ainda provocam desigualdades, intolerâncias e as mais diferentes formas de violência que desafiam a dignidade humana. Não podemos estudar a história da escravidão sem pensar no racismo que ainda permanece vivo, no genocídio da juventude negra, nas desigualdades econômicas que afetam a população afrodescendente.
A produção historiográfica ainda se encontra fortemente marcada pela tradição disciplinar, que por sua vez tende a tornar os temas sensíveis em temas cartesianamente positivados, negando os sujeitos e a complexidade de suas vivencias, no sentido individual e coletivo. O desafio de tornar um tema sensível em uma questão socialmente viva é o de “descolonizar” o olhar sobre o tema, fissurar os discursos cristalizados, questionando a própria forma que o conhecimento vem sendo construído sobre a temática.
Ao prefaciarem a coletânea Epistemologias do Sul, Maria Paula Meneses e Boaventura de Souza Santos afirmam que “toda experiência social produz e reproduz conhecimento”, ou seja, as nossas experiências podem nos levar a reproduzir trabalhos historiográficos que reproduzem o projeto colonizador ainda vigente.
Para Meneses e Santos, “não há conhecimento sem prática e sem atores sociais”, logo, é importante o esforço intelectual de questionar a lógica disciplinar ainda muito presente nas nossas produções. A lógica disciplinar, que consigo traz o ideário colonizador, nega o sujeito da história, pois é linear e constituidora de um cientificismo que não abarca a complexidade humana, muitas vezes o reduzindo a meras definições e conceitos vazios.
Desse modo, é fundamental desafiar a forma convencional de produzir a escrita da História, o que nos exige uma abordagem para além da perspectiva disciplinar. Os artigos que compõem este Dossiê abordam diferentes espaços e tempo históricos. São temas trabalhados a partir de historiadores e historiadoras de diferentes regiões do país, que trouxeram textos inéditos voltados para os temas sensíveis.
Apresentamos o artigo, Mulheres pedindo Justiça: processos criminais no Vice-Reinado do Rio da Prata (Século XVIII), do historiador Rafael Ruiz, que objetiva debater a questão da violência doméstica no período oitocentista, tendo processos civis e criminais como fontes de pesquisa. O texto permite construir uma reflexão sobre a relação entre a administração da justiça e as relações de gênero no América Espanhola.
O artigo História, legislação e ato infracional: privação de liberdade e medidas socioeducativas voltadas aos infantojuvenis no século XX, da autora Camila Serafim Daminelli, contemplará a história das legislações voltadas para adolescentes em situação de conflito com a Lei. Uma questão socialmente viva, fortemente marcada pelas contradições do “sistema de justiça” que não apresenta perspectivas de ressocialização para meninos e meninas que se envolvem em diferentes atos infracionais.
O historiador Helder Remigio de Amorim, em seu artigo Em tempos de guerra: Josué de Castro e as políticas públicas de alimentação no Estado Novo, de traz uma importante debate sobre a história do combate a fome no Brasil. A partir da trajetória intelectual de Josué de Castro, o historiador aborda, de modo sensível, a fome como um problema social e histórico. O autor destaca a atuação institucional de Josué de Castro em defesa das políticas de alimentação e da nutrição no Brasil.
A historiadora Kety Carla De March, no artigo intitulado“Hoje eu resolvi deixar o mundo”: Narrativas de suicídio m Guarapuava-Pr nos anos 1950, abordará neste Dossiêa questão do suicídio. A partir dos inquéritos policiais e de relatos de memórias, a autora procura analisar como foram construídos os discursos sobre as pessoas que cometiam o suicídio, na cidade interiorana do Paraná. Através deste artigo podemos (re)pensar a história da saúde mental no Brasil e os dispositivos de controle social construídos a partir da disciplinazação dos corpos.
Finalizando este Dossiê, trazemos o artigo Democracia, justiça e estado de exceção: Passado presente, do historiador Tásso Brito. Um texto que nos faz (re) pensar a “democracia” brasileira e como o cotidiano das pessoas comuns é marcado por diferentes formas de repressão. O autor questiona o discurso oficial da “República Cidadã” e reflete sobre as diferentes formas de injustiças e desigualdades sociais que marca a política e a sociedade brasileira.
Estado de exceção, suicídio, fome, adolescentes em privação deliberdade, mulheres em busca de “justiça”. Temas sensíveis que devem ser problematizados como questões socialmente vivas.
Parafraseando Marc Bloch, “eis portanto o historiador (e a historiadora) chamado a prestar contas” do passado (BLOCH, 2001, p.41). Para que os profissionais da história prestem contas do passado é fundamental a mudança de olhar sobre as temáticas que pesquisamos. Trabalhar com as questões socialmente vivas nos exige uma virada epistemológica, que nos leva a pensar o conhecimento histórico a partir de outra ética acadêmica que desafia o conhecimento disciplinar.
Pensar as questões socialmente vivas nos faz descolonizar o conhecimento tradicionalmente construído e enveredarmos esforço em uma ética transdisciplinar, que procura o diálogo entre as diversas áreas do conhecimento, que respeita as diferenças e coloca a produção historiográfica também como um instrumento para a transformação social.
Humberto Miranda – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Regional da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: humbertoufrpe@gmail.com
Isabel Guillen – Organizadora do Dossiê. Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: icmg59@gmail.com
MIRANDA, Humberto; GUILLEN, Isabel. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.1, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]
Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017
O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.
No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.
O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).
O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.
O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.
Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.
Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.
Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.
A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.
George F. Cabral de Souza
Antônio Paulo Rezende
Augusto Neves
Rômulo Nascimento
George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com
Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br
Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com
Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com
CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]
Historia social del delito: la policía y el castigo en América, siglos XVIII – XX | Claves – Revista de Historia | 2017
La cuestión de la seguridad ha adquirido un peso considerable en las últimas décadas en América Latina. La idea del aumento desenfrenado de la criminalidad, frecuentemente amplificada desde los medios de comunicación, se ha incorporado en la agenda política en donde se reiteran referencias al presente como el peor momento de la historia en materia de seguridad. La ausencia de reflexión se sustituye por el dominio de las consignas. Entendemos que los historiadores pueden/deben realizar un aporte al debate sobre elementos como las instituciones de control o el “mundo del delito”.
Las últimas décadas han marcado importantes avances en las investigaciones sobre el crimen, el castigo y las instituciones de control social en América Latina. Desprendiéndose de la historia del derecho y la administración de justicia más tradicional, fundamentalmente a partir de los años noventa, comenzó a registrarse un notable aumento de los trabajos que pusieron centro en las transformaciones en el delito, el delincuente y en las agencias de control. Leia Mais
História Social do Trabalho na Amazônia | Mundos do Trabalho | 2017
Até́ o início dos anos 1970, a teḿtica do trabalho ocupou, de modo geral, uma posição ambígua nas análises sobre história da Amazônia.1 Embora considerado um aspecto fundamental no processo de conquista socioeconômica e cultural da região, sua importância esteve frequentemente reduzida a um mero instrumento das ações políticas e alegados interesses civilizatórios dos colonizadores.2 Tal como em outras narrativas semelhantes, índios, negros e a maioria da população pobre livre e liberta figuravam como coadjuvantes de uma história que parecia ocorrer alheia às suas presenças, não obstante os constantes esforços para torná-los mão de obra disponível a quem pudesse reivindicá-la.
Desde entã̃o, muito se avançou nos estudos sobre história e historiograia da Amazônia, cujo escopo se ampliou significativamente, rumo aos mais diferentes temas. Num primeiro momento, entre o fim da dé́cada de 1960 e meados dos anos 1980, algumas pesquisas realizaram densas análises sobre as estruturas e relações econômicas da região, enfatizando os principais projetos políticos e atividades produtivas ali realizadas, desde a Colônia at́é o início da fase republicana.3 Já naquele mesmo período, surgiram estudos preocupados em interpretar as diferentes formas de exploração de trabalhadores indígenas, migrantes (principalmente cearenses) e os chamados “caboclos”, em recortes temporais que abrangiam desde o sé́culo XVIII at́é o final do XIX.4 Leia Mais
Cidadania, política e história do trabalho | Mundos do Trabalho | 2017
A revista Mundos do Trabalho é fruto do empenho de pesquisadoras e pesquisadores do GT Mundos do Trabalho, da Associação Nacional de História (ANPUH), em construir um espaço de divulgação e diálogo em torno desse campo de estudos. O projeto editorial colocado em prática desde o segundo número, lançado em 2009, previa a publicação semestral de dossiês, artigos livres e resenhas, afora entrevistas e comentários críticos sobre fontes e acervos documentais. Assim, o desaio assumido pelas equipes que conduziram os trabalhos editoriais ao longo de quase uma década foi o de contemplar a diversidade de problemas de investigação que atualmente pautam a produção acadêmica nessa área. A revista conseguiu reunir contribuições de autores nacionais e estrangeiros sobre relações de gênero; mundo urbano; experiências indígenas; mutualismo operário; embates entre trabalhadores e o poder municipal; processos e condições de trabalho; medicina e a saúde dos trabalhadores na América Latina; conlitos em torno do trabalho e da terra; trabalhadores em mineração; trabalhadores e a ditadura militar; biograia; perspectivas em torno da obra de E. P. Thompson; história social do trabalho na Amazônia; e trabalhadores livres no Atlântico oitocentista. Leia Mais
Carnaval e Ritmo / Revista Brasileira do Caribe / 2017
¡A RITMO CARIBE!
Los carnavales caribeños son expresiones culturales de síntesis y pugnas, en donde lo simbólico y lo material se dan cita una vez por año para restaurar memorias festivas, irónicas, tradicionales y ampliamente populares a través de sus músicas, bailes, trajes, juegos, personajes, escenificaciones mitológicas y espectáculos característicos. El presente número de la Revista Brasileira do Caribe tiene como objetivo abrir un diálogo regional en torno al complejo mosaico que configuran los carnavales caribeños contemporáneos.
Pese a que muchas veces asumimos o vivimos los carnavales como espacios de total libertad o de disolución de las fronteras sociales, lo cierto es que los festejos carnavaleros han enfrentado históricamente una serie de construcciones normativas, morales, económicas, políticas y patrimoniales, fenómenos que en nuestros días han redundado en toda suerte de reglamentaciones a sus desfiles, estandarizándolos como espectáculos exóticos de alto costo.
Así, ciertos festejos de la escena latinoamericana y caribeña se han homogeneizado y elitizado, convirtiendo una celebración de origen predominantemente disidente, diversa y popular, en un espectáculo mayoritariamente hegemónico y con un alto nivel de exclusión.
Entendemos la hegemonía como el estado en el cual los grupos dominantes ejercen una dirección ideológica sobre la manera en la que los sectores dominados conciben el mundo para legitimar y mantener el poder. Funciona desde la subordinación política, social y económica, más lo hace por consentimiento, permitiendo la coexistencia “pacífica” de heterogéneos e incluso antagónicos sectores sociales en un mismo espacio social. El rol de la hegemonía es garantizar la reproducción de una sociedad jerarquizada. Sin embargo, ella no es ni estable ni fija. Al contrario, parte de su eficacia radica en su capacidad de actualización y reproducción permanentes.
La disidencia por su parte, a diferencia de la rebelión, no confronta directamente a los detentores del poder. Se trata de acciones cotidianas y concretas que intentan detener los procesos de homogenización hegemónicos. Las respuestas disidentes suelen tener un origen sutil, poco visible, pero trascendentales en la medida en que logran realizarse históricamente, proyectarse socialmente y mantenerse en el tiempo, pudiendo configurarse como respuestas contra-hegemónica, es decir, de disputa directa al papel ideológico, sociopolítico y/o económico de los sectores dominantes.
En este marco, las grandes fiestas públicas aparecen como espacios privilegiados para la expresión de resistencias simbólicas y respuestas disidentes o contra-hegemónicas frente a la cultura dominante, aun cuando el festejo y su vistosidad expresiva puedan volcarse al poder o al mercado, al punto de desdibujar la politicidad de sus posiciones.
Como veremos a lo largo de los artículos de este dossier, el carnaval caribeño contemporáneo sigue siendo un espacio político en el que las identidades y relaciones sociales de clase, “raza”, etnia y género, se dan cita para reivindicarse, contestarse y reconfigurarse, transformando también al carnaval oficial en una vitrina simbólica de contradicciones sociales. O bien, generando respuestas autogestivas, en forma de carnavales no oficiales, a los diferentes tipos de dominaciones económicas y políticas al festejo.
Todas estas dinámicas, están además enmarcadas en políticas multiculturales del turismo global y la institucionalidad patrimonializadora, que vuelven un terreno aún más complejo y ambiguo al carnaval, haciendo de lo tradicional un espectáculo contemporáneo, y de lo popular una alegoría festiva que muchas veces queda excluida de su propio festejo.
Abordamos el carnaval caribeño contemporáneo desde sus rincones más vistosos, pero también más difusos, desde sus múltiples dimensiones y formas, así como también desde sus significaciones escondidas, camufladas. Cada artículo es una vitrina que permite afinar nuestra mirada, instándonos a abrir nuevas preguntas y posibilidades interpretativas sobre las especificidades y rasgos compartidos de los muchos carnavales caribeños, como también sobre las fricciones y conflictos latentes en su festejo: tensiones entre espectador y participante activo; adaptaciones de danzas y músicas “tradicionales” a un gusto “global”; reivindicaciones políticas y valorizaciones estéticas en resistencia que conviven con presiones económicas tendientes a su homogeneización; negociaciones y reivindicaciones de identidades invisibilizadas; y la constante pugna entre control y reglamentación del festejo, y su insistente subversión impúdica, satírica, creativa y organizativa.
En concordancia con la línea editorial de la Revista, comprendemos geográfica y simbólicamente el Caribe desde una amplia perspectiva territorial, como un dinámico espacio social, cultural, geopolítico y económico, que va más allá de las Antillas, abarcando las costas del Circuncaribe en centro, norte y sur América, lo que nos permite incluir reflexiones sobre expresiones de carnaval en “los caribes” colombiano, venezolano y mexicano. Asimismo, extendemos nuestra comprensión sobre “lo caribeño” a aquellos lugares donde el legado de la diáspora afrodescendiente y mestiza, producida durante la esclavitud colonial por los procesos de trata trasatlántica y comercio triangular, son parte fundamental en la cultura y la so ciedad caribeña contemporánea. Así, además de los territorios antillanos considerados –Haití, Cuba, Trinidad y Tobago y República Dominicana–, abordamos ejemplos situados en Brasil, en diálogo con Jamaica o EE.UU., o incluso coordenadas ampliamente lejanas de su propia geografía, resultantes de procesos migratorios contemporáneos, donde aparecen el Carnaval en Melbourne, Australia, o el recientemente inaugurado Carnaval Multicultural Migrante en Santiago de Chile. Dinámicas festivas caribeñas que en ese flujo dinámico y migrante, terminan siendo recreadas, actualizadas y adoptadas como propias.
El dossier abre con la sección Hegemonía y carnaval en el Caribe contemporáneo el cual incluye dos artículos de autoría de las dos organizadoras. En ellos se discuten las aproximaciones eurocéntricas, hoy clásicas, sobre el carnaval, para proponer rutas teórico-metodológicas propias, adaptadas a las especificidades de la escena carnavalera latinoamericana y caribeña. Después de habitar, desde la investigación festiva, diferentes expresiones del carnaval en la región, fue evidente que los planteamientos de Peter Burke, Julio Caro Baroja y Mijail Bakthin (tantas veces citados), no eran ya suficientes para explicar las complejidades y particularidades de los carnavales caribeños contemporáneos, considerados en su perspectiva histórica. Además, muchos de los procesos de mercantilización, significación política, subversión simbólica, reivindicación identitaria, (in)visibilización, disciplinamiento, resistencia y patrimonialización que identificamos, desbordan ampliamente las explicaciones clásicas del fenómeno carnavalesco. A partir de esta constatación Lorena Ardito desde la apropiación, deconstrucción y resignificación de la teoría cultural de Raymond Williams, y Laura De la Rosa desde la actualización metodológica propuesta por Michael Houseman, desarrollan su propuesta a la luz de dos ejemplos histórico-concretos del carnaval circuncaribeño. Esta sección cierra con el artículo de Danny González quien a través de sus análisis de imágenes (propias y de archivo) del Carnaval de Barranquilla, Colombia, nos ofrece un ejemplo de cómo una hegemonía estética se va construyendo y afianzando a través del lente fotográfico.
A continuación, cuatro artículos en la sección Disputas y horizontes en la escena de la calle discuten las tensiones entre hegemonías, contra-hegemonías y disidencias que tienen lugar en el espacio público. Las calles que se suponen comunes, colectivas, se vuelven espacios de confrontación entre el afán de control y reglamentación “desde arriba” del “orden” establecido por las élites y la reapropiación creativa de los sectores subalternos que responden desde el propio carnaval, como un espacio para la reivindicación, la ironía, la autoafirmación y la disputa.
El primer caso es expuesto por Mathilde Pèrivier, quien hace un contraste entre las notas periodísticas que muestran las “bandes-a-pie” del Carnaval de Puerto Príncipe en Haití, como “destructoras del espacio público”, y los datos recogidos en su trabajo de campo que demuestran la potencia en los procesos de re-significación política y articulación social comunitaria de los territorios habitados por las prácticas festivas de los grupos de jóvenes Seguidamente, Karen Gómez analiza la transformación patrimonial de uno de los blocos afrobrasileros más representativos del movimento musical, social y político del Samba Reggae, Ilê Aiyê, luego de haber irrumpido en el desfile de 1974, ser perseguido por la policía y recibir el apelativo de “bloco racista” por la prensa y las élites locales. Utilizando como bandera el ritmo de los terreiros de candomblé, la formación instrumental de las Escolas de Samba, la consciencia musical del reggae jamaiquino y la inclusión de los procesos reivindicativos afronorteamericanos del Black Power, Ilê Aiyé logró instalar un proceso de autoafirmación etnica e institucionalizar un espacio educativo propio en el entorno del barrio “de periferia”, utilizando como tribuna al propio carnaval que antaño le fuera negado.
Karina Smith, por su parte, traslada la discusión de la disputa por el derecho a las calles que tiene lugar en los festejos carnavaleros de Australia. En este caso, una comunidad negra anglófona venida del Caribe, encuentra en el desfile Moomba su espacio de visibilización en una sociedad que, aunque se declara multicultural, no se reconoce como multirracial.
Para cerrar esta sección central del dossier sobre disputas y escenificaciones carnavaleras en la escena de la calle, presentamos el trabajo de Priscilla Stilwell, quien realiza una comparación entre el arte callejero y festividades públicas masivas –dentro de las que considera al carnaval–. Su principal eje analítico es el uso social que adquiere el espacio público en tales manifestaciones, reiterando el poder de las calles como escenarios de expresión política popular, así como su potencial de reivindicación y disputa, cuya relevancia en América Latina y el Caribe radica en nuestras profundas condiciones de desigualdad social, conflicto y exclusión.
Finalmente, el dossier cierra con la sección Caribe a contracorriente el cual incluye dos trabajos histórico-sociales sobre los carnavales de Santiago de Cuba y Cartagena de Indias, territorios plenamente insertos en las dinámicas globales del colonialismo, la expansión capitalista, la trata trasatlántica esclavista, y sus formas conexas de organización social y simbólica, racializada y sexualizada, de la desigualdad. En ambos, se constata la ineludible impronta eurocéntrica en la formación de la sociedad y la cultura caribeñas, no obstante, también se evidencian los procesos de interconexión, respuesta y resistencia “desde abajo” que disputan el derecho a re-fundar un Caribe con voz propia.
Daniela Quintanar nos remite a la enorme influencia de la migración haitiana en el oriente cubano desde finales del siglo XVIII, empujada como consecuencia de la Revolución Francesa. Procesos globales que se actualizan en lo local, en este caso, como expresión de diversidad e interconexión que se manifiesta en los carnavales, músicas, danzas y formas de organización social (los cabildos de nación), adoptadas y adaptadas en Santiago de Cuba, como parte de una historia común diversa en las Antillas.
En el artículo de cierre del dossier Milton Moura propone una lectura irónica, desde el espíritu carnavalesco de la ciudad de Cartagena de Indias, al afán de control imperial español, recapitulando códigos normativos y cartas apostólicas, que pretendieron en el siglo XVIII constreñir la fiesta popular sin éxito, escandalizándose por la tozuda insolencia de sus protagonistas negros, pobres y artesanos.
Fuera del Dossier, en Otros artículos, Massimiliano Cartas describe el fenómeno de las artistas que afiliaron sus imágenes a la religión afro caribeña.
Invitamos a nuestros lectores y lectoras a recorrer las calles de este Caribe ampliado, danzando sus rasgos históricamente hegemónicos, contra-hegemónicos y disidentes, al ritmo de sus comparsas, disfraces, grupos musicales y cantos satíricos.
Agradecemos a todas las autoras y autores cuyas miradas enriquecen y entregan nuevas perspectivas a los planteamientos iniciales del presente dossier, como también a Olga Cabrera, por su infinita paciencia y compromiso con desenterrar de la Cuaresma a estos carnavales caribeños contemporáneos.
Laura de la Rosa Solano Lorena Ardito
SOLANO, Laura de la Rosa; ARDITO, Lorena. Carnaval e Ritmo. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.34, p.9-14, jan./jun., 2017. Acessar publicação original. [IF].
Páginas da arte, páginas da vida – DIAS (CN)
DIAS, Rosa. Páginas da arte, páginas da vida. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. Resenha de: GONÇALVES, Alexander. Cadernos Nietzsche, v.38 n.1 São Paulo jan./abr. 2017
O tema da arte atravessa toda a produção bibliográfica de Rosa Dias. Desde o seu Nietzsche e a Música (Rio de Janeiro: Imago, 1994) até Nietzsche, vida como obra de arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), a arte tem sido protagonista de uma reflexão que se move sempre no sentido de assumir o compromisso nietzschiano de superar os limites entre pensamento e vida, entre vida e arte. Em Páginas da vida, páginas da arte (Rio de Janeiro: Mauad X, 2016), este compromisso é uma vez mais afirmado e o resultado é uma obra cuja constituição teórica vem sempre acompanhada de um olhar sensível sobre a vida. Assim, os dez capítulos que compõem o livro apresentam a relação entre vida e arte de maneira programática e sob perspectivas teóricas diversas.
Já de início, em Homenagem ao professor Gerd Bornhein, o reconhecimento da autora ao intelectual gaúcho e seu importante legado para a filosofia e para a crítica da arte não está alheio ao sentimento de gratidão da aluna em relação ao mestre e educador, que pelos caminhos da vida diz ter encontrado a arte e que, pela via da arte, passou a pensar a vida.Em Uma filosofia do amor em Cartola, a crítica à atual situação de indiferença da cultura brasileira em relação aos seus “grandes homens”dá ensejo a considerações de notória inspiração nietzschiana acerca da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola. Dentre elas, destaco aquela em que Rosa Dias sugere que a poesia e a música do compositor carioca emanam de um sentimento profundo de afirmação do amor, que também é, em última análise, afirmação da dor e do sofrimento, enfim, da própria vida em sua condição trágica. A relação entre arte e sociedade é o objeto dos dois capítulos seguintes, momento em que a autora investiga, com Platão e Aristóteles, o papel que a música desempenha na vida do homem grego.Em Música e tragédia no pensamento de Platão, a autora procura avaliar o intento platônico de provocar profundas transformações no ethos grego tomando como ponto de partida uma revolucionária normatização dos procedimentos musicais da cidade ideal. Já no que diz respeito às idéias musicais de Aristóteles, em A música no pensamento de Aristóteles a autora se ocupa de apresentar, além da função político-pedagógica que a música assume em Aristóteles – e que este herda do mestre ateniense uma nova função de natureza psicológica: a purificação. Assim, ao apontar para o lugar de preponderância que a música ocupa no pensamento e na vida dos helenos, seja no âmbito político-pedagógico da Paidéia platônica, seja no registro psicológico da catarse aristotélica, Rosa Dias põe a nu a indiferença hodierna no que tange a relação entre música e a vida assinalando o abismo interposto entre nós e os antigos. Em “O autor de si mesmo”: Machado de Assis, leitor de Schopenhauer, o ponto de partida da reflexão será a inspirada interpretação machadiana da “metafísica do amor” do filósofo de Danzig. Dias resgata de maneira muito precisa e interessante alguns pontos consoantes às visões de mundo dos dois autores para, a partir daí, demonstrar de que maneira o “grande drama da existência humana”, drama em que o amor é protagonista, é posto em cena no afã de explicitar o pessimismo constitutivo de ambos em relação à felicidade humana e à vida.“Ecos” da filosofia de schopenhaueriana “ressoam” também na obra do escritor francês Marcel Proust. Em Proust: um leitor de Schopenhauer, o esforço da autora consiste em demonstrar a influência do pensador alemão no modo como Proust compreende o processo de criação estética. A busca incansável do narrador proustiano pela matéria de sua literatura; os esforços empregados pelo escritor na tarefa de apreensão e fixação dos signos sensíveis de sua arte; tudo isso é analisado sob a perspectiva da “metafísica do belo” de Schopenhauer e avaliado segundo o modo como este filósofo pensa o processo de apreensão das essências das coisas e a sua reprodução na arte. Os quatro últimos capítulos, todos eles dedicados ao pensamento de Nietzsche, nos oferecem uma visão panorâmica do modo como o filósofo alemão tratou a relação entre a vida e a arte desde suas reflexões juvenis até a constituição de seu pensamento maduro, o que deixa evidente a familiaridade da autora com o tema e com o corpus nietzschiano.Assim, enquanto Metafísica do gênio nas extemporâneas de Nietzsche explora as teses que o jovem Nietzsche apresentou, sobretudo em sua Terceira Extemporânea, em torno da problemática da “estética do gênio”, Do Imaculado Conhecimento: “olhos ébrios de lua” procura investigar na obra madura, de maneira especial no Zaratustra, os desdobramentos desta alegoria contida no título no sentido de reconstituir a crítica que Nietzsche dirige ao conhecimento puro, teórico e abstrato.Na sequência, Arte e vida no pensamento de Nietzsche procura abordar de maneira direta a relação arte e vida. Como já é anunciado nas linhas iniciais, o escopo aqui consiste em explicitar a concepção de vida como obra de arte na obra de Nietzsche. Percebe-se aqui certa insuficiência analítica que talvez resulte da amplitude do corpus escolhido, o que resta à autora dar à questão um tratamento panorâmico tornando inviável qualquer análise mais exaustiva. O confronto entre Nietzsche e Bergson fecha o livro de Rosa Dias. Em A questão da criação em Nietzsche e Bergson, o objetivo consiste em avaliar este confronto a partir do conceito de “criação”, isto é, do modo com que cada um destes filósofos pensou a vida como ato criador e, talvez, como obra de arte.
Fruto de longa reflexão e trabalho duro, Páginas da vida, páginas da arte oferece ao leitor, numa linguagem leve e elegante, uma reflexão sensível e plena de estímulos acerca daquele que talvez seja, para Rosa Dias, o seu tema mais caro: a relação entre vida e arte.
Alexander Gonçalves – Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Correio eletrônico: alexandergoncalves@uenp.edu.br
Dia-Logos. Rio de Janeiro, v.11, n. 1 , 2017.
Expediente
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- Conselho Editorial Revista Dia-Logos
- APRESENTAÇÃO
- André Luiz Vieira de Campos
Artigos
- Fiscalidade, Alfândega e Comércio no Rio de Janeiro no alvorecer do século XVII
- Helena de Cassia Trindade de Sá
- “O Teatro de Grandes Desgraças”: exclusão social e controle social no Recôncavo da Bahia no tempo da abolição
- Eliseu Santos Ferreira Silva
- Trabalhadores de Petrópolis no “Cinturão Vermelho”: o conceito de populismo e seu contraste na ação política das camadas populares petropolitanas no contexto do Golpe de 1964
- Diego Grossi
- “Filho-Marido-Casa”: mulheres representadas nos registros de nascimento do bairro de Guaianases (1930 – 1960)
- Sheila Alice Gomes Silva
- Um Padre Maçom em Terras Ultramontanas. A trajetória de Eutíquio Pereira da Rocha entre a Bahia e o Pará (1820 – 1880)
- Kelly Chaves Tavares
- Algumas questões sobre a cultura clássica na narrativa da Batalha de Hastings (c.1071) de William de Poitiers (c. 1020- c.1088)
- Paulo Christian Martins Marques da Cruz
- Análise Semiótica: campanha publicitária do Ministério da Saúde no combate à dengue
- Ricardo Santos David
- “O Caso da Escola Normal”: No rastro das charges da revista O Malho (1914-1915)
- Heloisa Helena Meirelles dos Santos
- Uma Análise Acerca dos(as) Diretores(as): sujeitos à frente do Grupo Escolar Farroupilha (Farroupilha/RS, 1927-1949)
- Cassiane Curtarelli Fernandes
- A presença das mulheres nos divertimentos de Barbacena – MG (início do século XX)
- Igor Maciel da Silva
IZECKSOHN, V. Slavery and War in the Americas (Topoi)
IZECKSOHN, Vitor. Slavery and War in the Americas: Race, Citizenship, and State-Building in the United States and Brazil. Charlottesville: University of Virginia Press, 2014. Resenha de: BEATTIE, Peter M. Guerra, mobilização e escravidão no Brasil e nos Estados Unidos. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.
Talvez o maior elogio que possa ser feito a um livro seja: “Por que ninguém fez um estudo desta natureza antes?” Entendo que Slavery and War in the Americas cabe nesta categoria de livro; mas o potencial do objeto de pesquisa de Vitor Izecksohn já fora previsto uma geração antes, pelo historiador James M. McPherson, em Battle Cry of Freedom: the Civil Era (Nova York: Ballentine Books, 1988). Como Izecksohn mesmo observa (p. 4), McPherson, baseado na literatura secundária, comentou que ao lado do povo paraguaio, que perdeu cerca de 50% de sua população adulta durante a Guerra da Tríplice Aliança (segundo algumas estimativas), os esforços da Confederação do Sul dos Estados Unidos pareciam fracos, pois os rebeldes só perderam 5% da sua população antes de se render. Dito isso, é possível afirmar que a resposta do historiador brasileiro ao chamado de McPherson é original, pois ele escolheu um ponto de comparação diferente e, a meu ver, mais interessante ainda. Em vez de examinar os exércitos da Confederação e do Paraguai, ele enfoca as dificuldades que os exércitos vitoriosos, da União dos Estados Unidos e do império brasileiro, enfrentaram para mobilizar soldados para o front. No final das contas, foram esses dois exércitos que tomaram parte na consolidação de suas nações, apesar da força de tradições e ideologias que favoreciam o poder local – especialmente quando se tratava dos sistemas de defesa. Em ambos os casos, as autoridades dos governos centrais tiveram que negociar com as autoridades locais para extrair soldados, ações que provaram ser insuficientes para as demandas dos conflitos. Os dois governos centrais chegaram ao ponto em que se tornara necessário mobilizar escravos libertos como soldados, a fim de fornecer o volume de tropas necessário para o sucesso. Os líderes nacionais, dessa maneira, consideravam a integridade territorial como um princípio fundamental, e, por isso, decidiram lutar por uma vitória total sobre seus adversários. Enfim, o livro resenhado fornece a mais extensa comparação entre a Guerra Civil Americana (1860-1865) e a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) produzida até agora, e por isso merece a atenção não só de especialistas, mas de pesquisadores interessados na história comparativa em escala mundial.
Por que, até agora, ninguém aceitou o desafio de McPherson? A resposta é simples: as dificuldades que trabalhos de história comparativa implicam para o historiador, principalmente quando se insiste na utilização de fontes primárias, são enormes. Aliás, outra característica original do livro de Izecksohn é seu ineditismo, já que se baseia em sistemática pesquisa arquivística, ocorrida em ambos os lados do Equador. O resultado, portanto, é um dos mais instigantes trabalhos de história comparativa produzido nos últimos anos, talvez desde o livro de Charles Degler, Neither Black Nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and the United States (Madison: University of Wisconsin Press, 1971), que, como o trabalho de McPherson, foi baseado em fontes secundárias.
As complicações e o tempo demandado pela pesquisa empírica além do Equador não são os únicos obstáculos que um historiador comparativo enfrenta para realizar um projeto como Slavery and War in the Americas. A historiografia da Guerra da Tríplice Aliança abrange quatro países e está em plena fase de expansão, enquanto os trabalhos sobre a Guerra Civil nos Estados Unidos são numerosos e o campo não demonstra sinais de decréscimo. Dominar a literatura em si já é um grande desafio, que Izecksohn passou anos digerindo. Por esses esforços, o autor merece reconhecimento, e esperançosamente, o trabalho inspirará outros jovens pesquisadores nos Estados Unidos, no Brasil e em outros países, a seguir seus passos.
Um dos principais pontos do livro de Izecksohn é a maneira como ele insere a história da mobilização de soldados nos contextos históricos do desenvolvimento das guerras e das políticas nos Estados Unidos e no Brasil. Em ambos os casos, havia bastante apoio popular inicial para as guerras e muitos cidadãos se voluntariaram para seguirem para os fronts. Ou seja, o patriotismo romântico associado à ideia do cidadão-soldado inspirou muitos homens a pagarem o seu tributo do sangue sem coerção. Contudo, o otimismo gerado pelos chamados às batalhas duraria pouco tempo, e quando ficou claro que as guerras não terminariam rapidamente, fator somado às notícias das baixas, doenças e condições onerosas que a soldadesca enfrentava, a popularidade das mobilizações caiu grandemente e o número de voluntários diminuiu de modo considerável. A partir de então, tanto o governo do Brasil como o da União contemplaram maneiras coercitivas para completar suas fileiras de praças e oficiais.
Na União, foi implantado um sistema de conscrição por sorteio, mas nem por isso se proibiu a substituição dos designados por outros ou o pagamento de isenção pecuniária. No Brasil, por sua vez, o governo imperial exigiu cotas das províncias, proporcionalmente às suas populações, chamando membros da Guarda Nacional, normalmente protegidos do recrutamento, para servirem ao Exército. Em ambos os casos, os sistemas de recrutamento não forneceram os números de recrutas necessários, e, por isso, decidiu-se pela mobilização de escravos e ex-escravos.
Izecksohn narra exemplos específicos de conflitos entre cidadãos e autoridades locais e centrais em várias comunidades, desde a região da Nova Inglaterra até o Meio-Oeste americano. Uma das características de seu texto, aliás, é a maneira admirável como o autor costura exemplos específicos, que envolvem indivíduos humildes e poderosos, sem perder a capacidade de síntese concisa requerida para contextualizar esses episódios.
Um exemplo é o caso do advogado William A. Pors, de Port Washington, Wisconsin, nomeado por seu governador para servir de comissário do sorteio militar em um dos distritos da cidade, em 1862. Ali, um grupo de homens e mulheres marchou, naquele ano, até o fórum, para, finalmente, desembrulhar uma bandeira, exclamando: “No Draft!” Aquelas pessoas também ameaçaram Pors: “Se ele for ao fórum, será um homem morto.” Pors, por sua vez, tentou acalmar o espírito dos manifestantes, pedindo a eles que se dispersassem, sem sucesso. Quando o grupo viu a caixa do sorteio militar, eles atacaram os condutores dela e a destruíram. Depois disso, espancaram William Pors, que conseguiu escapar e entrar na agência dos correios, onde encontrou proteção de outras autoridades. Esses atos de resistência ao sorteio, ocorridos por todos os estados do norte, em pequenas cidades como Port Washington, e em outras maiores, como Nova York, enfraqueceram a habilidade de mobilizar recrutas utilizando o novo sistema, uma proposta que supostamente teria dado mais autoridade ao governo central.
Tratando do Brasil, Izecksohn também incluiu exemplos interessantes. Um deles é o do jovem escravo Carlos, cujo mau comportamento levou seu dono a vendê-lo como recruta para o exército imperial. Mesmo assim, apesar da alta demanda, os inspetores das forças armadas o rejeitaram por seu mau estado de saúde. Ao perceber que seu senhor o venderia como escravo destinado às lides do campo, Carlos se evadiu, sendo capturado mais tarde no Rio de Janeiro. Ativando seus procuradores na corte, mais uma vez o senhor de Carlos ofereceu seu escravo como recruta, tarefa para a qual finalmente foi aceito – e, então, seu dono recebeu US$ 640.00, lucrando US$ 180.00 na operação (p. 128-129). Aqui, Izecksohn sucintamente ilustra como as ações de um escravo, seu senhor e as autoridades do governo negociaram o recrutamento militar, a alforria e a política de venda de escravos neste período singular. Entretanto, como o próprio autor enfatiza, o recrutamento de cativos ou homens livres para a Guerra da Tríplice Aliança exigiu a cooperação das lideranças e dos potentados locais. Senhores que não queriam vender seus escravos não foram obrigados a fazê-lo; chefes políticos protegeram efetivamente seus clientes (homens livres) de bandos de recrutadores, especialmente nos anos centrais da mobilização.
Como o título da obra indica, a escravidão é um tema privilegiado no livro. Dois dos cinco capítulos enfocam essa comparação, que constitui uma das contribuições mais interessantes do volume. Dessa forma, Izecksohn argumenta, de uma maneira distinta dos historiadores da Guerra Civil nos Estados Unidos até agora, que foi o fracasso das tentativas de implementar a conscrição que levou o governo da União a formar regimentos segregados, compostos por homens de cor, para lutar. Até o momento da formalização dessa medida, a ideia de ser cidadão-soldado havia sido considerada um privilégio dos brancos. Mas o elevado número de baixas e o ressentimento que a conscrição criou entre a população branca da União fez com que a mobilização de homens de cor parecesse mais aceitável à maioria nortista.
Diferentemente do Brasil, todavia, o exército da União manteve a segregação racial dos regimentos, regra seguida até a Guerra da Coreia (1950-1953). A envergadura desta mudança não deve ser negligenciada: ela foi fundamental para assegurar tanto a vitória da União quanto a abolição da escravidão. Mesmo que os direitos à cidadania para homens de cor tenham sido sufocados depois da Reconstrução (1865-1877), o serviço militar desses contingentes virou uma contradição e um fator-chave que por fim abriu espaço para as lutas políticas em prol de direitos civis e integração no século XX.
Quanto à Guerra da Tríplica Aliança, Vitor Izecksohn ainda demonstra que foram as ações do maior aliado brasileiro, a Argentina, que levaram o governo imperial a recrutar cativos para lutar contra o Paraguai. A instabilidade política da república argentina levou seu presidente, Bartolomé Mitre, a deixar o comando das forças aliadas e voltar à capital, Buenos Aires. Junto de Mitre foram seus soldados, e o Brasil teve que extrair ainda mais recrutas para sustentar a guerra. Uma carta do ministro da Guerra ao presidente da Província do Rio Grande do Sul, em 1867, demonstrou a conexão direta entre a retirada das forças argentinas e a necessidade de mobilizar escravos (p. 147).
Diferentemente dos Estados Unidos, onde movimentos sociais a favor da abolição e a opinião pública pressionavam o governo de Lincoln em favor do uso de escravos como soldados, no Brasil a decisão de mobilizá-los foi feita a portas fechadas, como uma necessidade de segurança nacional. No caso brasileiro, portanto, tal fato não era ligado a campanhas abolicionistas, onde a experiência militar seria um laboratório de cidadania para os homens de cor.
O autor de Slavery and War in the Americas utiliza estudos de caso para refletir sobre interpretações mais amplas que abrangem os resultados dessas duas guerras. Por exemplo, ele argumenta que o Brasil conseguiu vencer a Guerra da Tríplice Aliança sem grandes modificações econômicas e sociais, como novos (e onerosos) impostos, ou um surto de industrialização, ou ainda a abolição da escravidão. De maneira contrastante, o governo e a economia da União parecem muito mais próximos de um caso de guerra total, que estimulou a industrialização, destruiu escravidão como uma maneira de derrotar o inimigo e aumentou o poder do governo central. Assim, a Guerra Civil dos Estados Unidos abriu espaço para realizar políticas que os estados do norte favoreciam por décadas: tarifas para bens industriais importadas, imposto de renda, decisões econômicas mais centralizadas para desenvolver a infraestrutura de transportes e indústrias etc. Nesse sentido, para Izecksohn, a comparação oferece a oportunidade de criticar interpretações que dão pouca ênfase a Guerra Civil como um exemplo de guerra total (p. 175-176).
Este livro, portanto, oferece muito a leitores não especialistas, assim como aos especialistas, historiadores militares ou não. A prosa é clara e sucinta, e a leitura é prazerosa. Espero que a obra atraia muitos leitores e que não tenhamos que esperar mais uma geração para que trabalhos de semelhante ambição e alcance sejam levados a cabo.
Peter M. Beattie – Michigan State University – East Lansing, MI, Estados Unidos.
Arquivos literários: teorias, histórias, desafios – MARQUES (A-EN)
MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. Resenha de: COELHO, Haydée Ribeiro. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2015. Alea, Rio de Janeiro, v. n. jan./apr. 2017.
Arquivos literários, comparativismo e outras navegações
O livro que resenhamos, do professor e pesquisador Reinaldo Marques, decorre de reflexões teóricas, da prática de pesquisa em acervos e de sua experiência administrativa como diretor do Centro de Estudos Literários e Culturais da Faculdade de Letras da UFMG. Quatro dos nove ensaios que compõem o livro trazem nos títulos o termo “arquivos literários”. Qual o sentido de arquivo literário? Como conceituá-lo? Na “Apresentação”, o autor afirma ser um conceito que “resultou numa ficção teórica para ficar num registro borgiano” (p.10) e “como produto de uma atividade especulativa (…) remete a um objeto mais imaginado e ideal nem sempre localizável no mundo empírico” (p. 11).
Na exposição sobre o arquivo e a Literatura Comparada (“Arquivos Literários e reinvenção da Literatura Comparada”), parte da perspectiva de Spivack diante dos rumos da Literatura Comparada na contemporaneidade, destacando, entre outros, aspectos como a tradução e o diálogo transdisciplinar, o que o leva a ressaltar ainda o sentido da literatura comparada como “multilíngue”. A partir das questões do comparativismo, propõe pensar no “arquivo literário” e “no pesquisador comparatista no arquivo” (p. 18). Em relação ao primeiro aspecto, são objeto de consideração os sentidos topológico e monológico do arquivo; sua desterritorialização e reterritorialização (que se dá na passagem do privado ao público) e o limiar do privado ao público. A “feição heterogênea” dos “fundos documentais” e a abordagem transdisciplinar, que requer metodologias da arquivologia, da museologia e biblioteconomia, são alguns dos pontos que propiciam o estudo do “arquivo literário” sob a perspectiva do comparativismo.
A reflexão teórica sobre o arquivo, advinda de saberes diferentes como Filosofia, Política e, ainda, Estudos culturais, suscita a noção de “arquivo literário” como “espaço aberto e inacabado, zona de contato e relações entre distintas temporalidades e subjetividades, capaz de percorrer descontinuidades e estranhamentos em relação ao tempo presente, a ativar anacronismos potencialmente problematizadores da racionalidade arcôntica, estatal e científica, da evidência histórica, que normalmente rege o arquivo” (p. 22).
Se, por um lado, o arquivista é responsável por zelar pelos documentos, normalizar, hierarquizar, armazenar e recuperar os dados nos arquivos, cabe ao pesquisador comparatista “desconstruir a ordem estabelecida (…) a intencionalidade que a estruturou” (p. 25). Tornando-se um “anarquivista”, o pesquisador comparatista está atento aos jogos que envolvem o poder e o saber, torna-se um “genealogista” (o que remete ao sentido de arquivo para Michel Foucault). É importante salientar que a proposta do autor dos ensaios, conforme esclarece em nota, anarquizar não corresponde a “bagunçar” o arquivo, mas interpretar os documentos, estabelecendo outras lógicas, outros deslocamentos que podem ser realizados com base nas tendências do comparativismo contemporâneo.
O segundo ensaio do livro, “Arquivos literários, entre o público e o privado”, está dividido nas seguintes seções: Arquivos de escritores: desterritorializações e reterritorializações; O público e o privado: rasuras; O arquivo do escritor no espaço privado; e O pesquisador, o arquivo, a lei. Nos primeiros parágrafos do estudo, há o questionamento da crítica textual, tendo em vista outras abordagens como a pós-estruturalista e aquela desenvolvida pelos estudos culturais. Essas tendências, aliadas aos estudos já existentes sobre os arquivos, podem trazer contribuições inovadoras, como fica comprovado ao longo dos nove ensaios de Arquivos literários: teorias, histórias, desafios.
Ao ser evidenciada a diferença entre a noção de “arquivo literário” daquela de “arquivo do escritor”, é ressaltado que este “ganha visibilidade na cenografia do arquivo literário, exibindo máscaras da persona autoral” (p. 35). Na comparação entre posições críticas (de Michel Foucault e de Jacques Derrida), é observado que a concepção de arquivo para o primeiro é “mais acentuadamente discursiva” (p. 36). Para o segundo filósofo, o princípio institucionalizador do arquivo está marcado pelo “lugar de consignação”. O poder arcôntico da interpretação faz com que Reinaldo Marques trate das relações entre a retórica e os arquivos. A explicitação dos sentidos de “mal de arquivo” expõe as singularidades da teoria derridiana.
A noção de “arquivo do escritor” suscita reflexões sobre o público e o privado, abrindo espaço para um campo amplo de indagações. O autor do estudo toma como referência textos básicos da teoria política moderna (A condição humana, de Hannah Arendt e Mudança estrutural da esfera pública, de Jürgen Habermas). No contexto do mundo globalizado, há um “encolhimento do espaço público” (p. 49), havendo repercussões sob o ponto de vista ético. Ao abordar o arquivo do escritor no espaço privado, muitas são as ideias que Reinaldo Marques deixa semeadas no caminho de nossa leitura, cartografada por ele: a institucionalização da vida privada pela difusão da leitura e da escrita; a biblioteca como refúgio, gerando um duplo afastamento (público e civil); o mundo privado da escrita em comunicação com o público; a relação entre a vida privada e o mundo burguês; o “indivíduo privado” buscando os “holofotes da publicidade”; o “entre-lugar” habitado pelo escritor e “a prática de arquivamento de si”. Esse último ponto é exemplificado com base na correspondência trocada entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, escritores mineiros, cujas missivas são abordadas também em outro estudo do livro, tendo em vista o conceito “locação”, associado ao moderno “nos níveis literário, cultural, político e dos afetos” (p. 174).
Ainda no segundo ensaio, na seção destinada ao pesquisador, ao arquivo e à lei, é salientado, entre outros aspectos, no âmbito do público e do privado, o diálogo entre a arquivologia e o direito. Ao mostrar que o trabalho bemsucedido com os arquivos se realiza pela publicação dos resultados, o autor do livro em destaque, menciona dois exemplos de pesquisa “em acervos literários, um de êxito, outro de dificuldades”. No primeiro caso, refere-se aos trabalhos realizados e publicados a partir dos arquivos de Henriqueta Lisboa e, no segundo, ao “Diário alemão”, texto que foi traduzido e mantido inédito por questões jurídicas. Nessa exposição, fica claro que o arquivo e a memória representam um “campo de lutas políticas” (p. 83). É oportuno ressaltar que “Grafias de coisas, grafias de vida” (outro ensaio do livro) aborda justamente o “Diário alemão”, de Guimarães Rosa. O caráter heterogêneo dos “seis cadernos de anotações de João Guimarães Rosa” demandou um trabalho que abarca diferentes questões tratadas nos itens: leitura e escritura como coleção; a memória das coisas: breve biografia de um documento e biografias entrecruzadas.
No início desta resenha, mostrei que o termo “arquivo literário” aparece nos quatro primeiros ensaios do livro em destaque. No volume publicado, como no conto de Jorge Luis Borges, os artigos de Reinaldo Marques se imbricam e se bifurcam. Nesse sentido, a seguir, tratarei de aspectos que se interceptam e que criam outras possibilidades de análise dos arquivos, levandose em consideração o que já foi exposto e outros caminhos apresentados, no livro, sobre os arquivos.
A importância da imagem na cena contemporânea implica o estudo das representações do escritor, como este se encena nos “arquivos literários”. Tomando como referência o texto de Philippe Artières, Reinaldo mostra que, nas sociedades letradas, a existência dos indivíduos se faz pelo registro escrito. Ao utilizar o conceito de “arquivamento do escritor”, ele revela um duplo movimento que está associado ao arquivamento de papéis e ao arquivamento do próprio escritor que produz imagens de si mesmo, ao arquivar. Nos acervos literários, encontra-se uma variedade de imagens de escritores (“grafemáticas, fotográficas, plásticas, entre outras”). Exemplos ilustrativos, de imagens pictóricas, depreendidos do “Acervo de Escritores Mineiros”, dominam parte do ensaio destinado às imagens do escritor e aos arquivos literários. Os aspectos assinalados permitem que o leitor estabeleça conexões com outro texto do volume. Refiro-me ao artigo “O arquivamento do escritor” em que são assinalados “aspectos apontados por Philippe Artières, na constituição de arquivos pessoais” em confronto com “práticas de arquivamento” de escritores mineiros.
O pesquisador, que anarquiza o arquivo, não perde de vista os “restos” dos arquivos. Como dar conta dos “restos e ruínas”? Para essa travessia, Reinaldo se vale teoricamente das noções de “resíduos e farrapos da história”, de Walter Benjamin; da noção de “resto”, de Giorgio Agamben; e das considerações de Jeanne Marie Gagnebin, explicitadas na apresentação do livro do filósofo italiano – O que resta de Auschwitz. Na esteira da História, não faltam ainda em Arquivos literários: teorias, histórias e desafios, comentários sobre as relações entre arquivos literários e a formação do Estado Nacional; sobre o discurso e o saber sobre a literatura “capitaneado pela universidade”; sobre o papel pioneiro da Academia Brasileira de Letras, e a respeito das histórias locais e os arquivos literários brasileiros.
No último ensaio do livro, Reinaldo mostra que Terry Cook, ao abordar a questão dos arquivos, fornece elementos para se pensar na “dimensão subjetiva e de intervenção do arquivista”. Essa vertente da subjetividade, aliada ao conceito de “imaginação construtiva” (termo utilizado por Robin George Collingwood), evidentemente institui uma ligação intrínseca com o conceito de “arquivo literário” decorrente de uma “ficção teórica”. Apoiado na “imaginação construtiva”, que não perde de vista o “faro para a ‘estória’”, o autor do livro oferece múltiplas navegações em rede. Por essa e por outras razões explicitadas, a publicação comentada constitui uma referência fundamental para o estudo dos arquivos.
Haydée Ribeiro Coelho Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1973); Mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981); Doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1990) e Pós-Doutorado pela Universidad de la República, onde desenvolveu uma pesquisa sobre o exílio de Darcy Ribeiro no Uruguai. Dedica-se, atualmente, às interlocuções culturais, literárias e críticas entre o Brasil e a América Latina. Atualmente, é coordenadora do GT ANPOLL Relações Literárias Interamericanas. E-mail: haydeeribeiro@hotmail.com
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Os mortos não comem açúcar – FURTADO (Topoi)
FURTADO, Alexandre. Os mortos não comem açúcar. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015. 151p.p. Resenha de: VIANNA, Alexander Martins. Às margens da açucaristocracia: segredos internos da Recife da década de 1970 em um conto de Alexandre Furtado. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.
Não, não é um romance histórico… O livro Os mortos não comem açúcar também não é coletânea de contos, ou “contos interligados”, diferentemente do que sugeriu a Revista Continente ao noticiar o seu lançamento no café-restaurante Roda Cultural de Pernambuco em 21 de maio de 2016. O livro de Alexandre Furtado é um único conto com catorze entradas narrativas, ora assumidas por algum personagem, ora pelo narrador-voz-de-deus, configuradas com vigor de devassa indiciária. A sua estrutura narrativa cria um efeito magnético muito interessante de leitura: os silêncios suspensivos em cada capítulo são rachaduras que formam metonímias indiciárias de sentido que estão longe de serem banais e previsíveis. Cada capítulo envolve a perspectiva inevitavelmente parcial de cada modelo de narrador que nele predomina. Assim são revelados, aos poucos, os horrores formativos das existências presentes e passadas dos personagens que vivem à margem da açucaristocracia de Recife. Por conta de sua estrutura narrativa, parece interessante abordar o livro de Alexandre Furtado a partir de alguns caracteres que engenhosamente ganham carnadura em cada capítulo.
As tramas de vidas narradas no conto transcorrem na Recife de começos da década de 1970, no polo social da classe média alta, urbana e de serviços, que ainda tenta imitar, no traquejo social e na moralidade, as formas de distinção referidas à grandeza passada da açucaristocracia de Pernambuco. Há pequenos momentos de recuo para situar a trajetória de alguns personagens, mas o polo da trama gira em torno da expectativa do casamento de Laura e Fabio. Laura é filha de Silvina, que é esposa do comunista domesticado Marco Aurélio. Silvina e Marco Aurélio são pais de Pedro, que é irmão de Laura e jovem cobiçado por Albertina – a esguia, blasé, afrancesada, cu-sujo e aparentemente inacessível (fruta podre) jovem da açucaristocracia decadente de Pernambuco. Albertina contrasta fisicamente e sexualmente com o seu inseguro, gordinho, delicado, ejaculador precoce e pouco atrativo irmão Gabriel.
No presente e no passado de Laura e Silvina, há um mistério revelado aos poucos, por pequenas fendas narrativas, até o grande confronto de suas semelhanças, durante o casamento, no capítulo “Aos céus um pedido” (p. 139-151). Contudo, nos engenhosos mecanismos narrativos de Furtado, as vidas que se cruzam com a ascensão social de Silvina são reveladas pelas margens sociais, as quais abrem a possibilidade de o conto falar também a partir dessas vidas à margem – ou melhor, margens, sem as quais não haveria os centros dos pequenos horrores formativos de suas existências. Ao criar fendas extraordinárias devassantes da complexidade formativa das vidas dos personagens, tal estratégia de narrar a partir das margens é um dos grandes méritos de figuração de caracteres no conto de Furtado.
A aderência narrativa às margens é uma escolha de composição que não cria um efeito de maniqueísmo vítima-algoz; pelo contrário, revela gradativamente a complexidade do horror formativo das vidas que ainda giram paradigmaticamente em torno de saudosas referências à grandeza (violenta) da açucaristocracia. Não há um personagem que não espelhe, de seu lugar, a violência sutil que o forma: a desigualdade social, racial e de gênero; a caridade e a relação funcional-vingativa entre desiguais (sociais, raciais e de gêneros) no espaço doméstico patriarcal; o amor que pode se revelar e se fazer nas brechas dessas desigualdades (ou igualdades) sociais, raciais e de gêneros. O fato é que a barca do patriarcado recifense da década de 1970 faz água por todos os lados. São as fendas extraordinárias abertas pela lâmina narrativa de Furtado.
Há importância especial no fato de as narrativas parcialmente se centrarem nos jovens amigos de começos da década de 1970: por meio deles, os pais são revelados, mesmo aqueles que não têm existência enunciada em corpo narrativo. Embora preocupados em manter alguma aparência (particularmente no caso das mulheres de classe média), os jovens já têm o aval tácito dos pais para namorarem sem vigília acirrada: vão ao cinema, namoram sozinhos em casa, avançam o sinal, engravidam, abortam ou fazem casamento corretivo-ocultativo de gravidez não planejada. Portanto, mesclam o velho com novos padrões de pudor e hipocrisia social. Contudo, o que é brechtianamente assombroso na caracterização dos personagens de Furtado são os pais desses jovens ou, mais especificamente, as mães: donas de seu desejo em estratégica negociação corpo-mente nas margens da aparência de submissão aos códigos do patriarcado recifense.
Assim, os seus paradoxos são revelados: não há descendência ou linhagem plenamente segura no casamento, porque o próprio segredo no modo de viver a liberdade sexual cria válvulas de escapes que provocam múltiplas porosidades sociais, raciais e de gênero. Como a liberdade sexual ocorre enquanto segredo, não há liberação sexual em relação às regras de boa aparência social configuradas por binarismos raciais e de gênero. Assim, as mães socialmente brancas da classe média são donas de seu prazer por meio de adultério (bissexual) bem discreto; os pais e filhos têm os puteiros ou as áreas de serviço ao preço das filhas mal empregadas e mal nutridas dos desvalidos; as filhas socialmente brancas da classe média têm os seus namorados ou noivos para desafogo (mas também outros paralelos), com a anuência tácita de suas mães.
Dentre as mães que revelam as fendas no patriarcado, Silvina é um exemplo marcante no conto de Furtado: retirante de pele clara, isso a levou para lugares que foram negados às outras meninas da Casa 10. Ao cair nas graças do manipulador prof. Olavo, Silvina terminou o seu romance com a amiga Juliana, a qual se tornara dona e gestora do principal bordel de Recife. Depois disso, houve uma total reinvenção social de Silvina, à custa da educação e do suicídio de sua bem letrada mãe adotiva: Lúcia, que foi casada em segunda núpcia com Olavo. Este trouxera Silvina da Casa 10 para ser companhia filial para a infértil Lúcia; mas, em surdina, continuaram sendo amantes. Quando descobertos, isso provocou a depressão e o suicídio de Lúcia, expresso no surpreendente engenho narrativo do capítulo “Tristam Shandy c’est moi ou beijo de língua” (p. 90-100), no qual é a própria suicida que se narra enquanto a vida deixa o seu corpo.
Olavo era o pai biológico de Laura. Pouco antes de Laura nascer, Silvina casara com seu marido-tampão Marco Aurélio, um comunista doméstico que começou a envolver-se sexualmente com Laura desde o começo de sua puberdade. Silvina só soube disso no dia do casamento de Laura, quando ambas confrontaram seus segredos e suas semelhanças. Portanto, em certa medida, a falta de liberação sexual e a desigualdade de gênero em desfavor das mulheres da geração de Silvina criavam uma codificação específica de sujeito e liberdade sexual (escondida) configurada nos termos dos segredos do patriarcado. Esta é outra fenda extraordinária de Furtado, cuja reflexão se intensifica na narrativa do capítulo “Deus proteja os sem-vergonha” (p. 68-79), no qual o narrador-voz-de-deus devassa, pelas frestas, a consciência manipuladora das boas aparências da bem reputada Sueli, esposa do major Paulo e mãe de Ângela e Febo.
A hipocrisia da boa aparência é sustentada por várias válvulas perversas de escape. Perante a preocupada Silvina, Sueli figura como uma verdadeira tratadista sobre como ser dona de seu prazer por meio do adultério com o menor dano colateral possível para a família. Sueli e Silvina também tiveram um caso amoroso lésbico já sendo senhoras casadas, mas deixaram isso no passado… O que mobilizou a inesperada visita de Silvina foi a sua gravidez do médico Laércio. Ela queria abortar. Sueli também era amante de Laércio. Isso é engenhosamente revelado para o leitor por meio de seu diálogo à parte com a empregada Inácia. Sueli tinha gozo perverso por esta situação (p. 77). Portanto, no silêncio das frestas dessas senhoras com “S”, havia muita inveja e concorrência.
Não por acaso, Furtado reforça os paralelos entre Sueli e Silvina pelo fato de ambas terem casais de filho regulando na mesma idade – e, por que não dizer, ambas tinham maridos-tampão, mesmo que adversos: milico e comunista, respectivamente. Silvina nunca soube que Sueli tinha também caso com Laércio. Mas, nessa visita a Sueli, Silvina ficou surpreendida com a sua desenvolta postura consoladora ao usar exemplos domésticos. Silvina se sentia inferior a Sueli por seu passado de retirante que trabalhou como faxineira na Casa 10, mas a verdadeira aula de Sueli sobre como ser dona de seu prazer por meio do adultério – sem culpa e dano à família – deixou empatado o jogo social-moral entre ambas. Mais uma fenda extraordinária criada pela engenhosa lâmina narrativa de Furtado…
No seu conjunto, o livro de Furtado demonstra grande aproveitamento narrativo-borgiano dos detalhes significativos de longo alcance. Por isso, quando terminamos de lê-lo, ficamos com vontade de experimentar o livro de um lugar de onisciência que não é possível até a última página. O livro não se entrega fácil, não se reduz a clichês ou estereótipos de caracteres. Cada metonímia de silêncio é um convite a novos indiciamentos. Quando voltamos ao começo, detalhes suspensivos se amplificam em nosso cinismo cúmplice: somos o deus-fora-da-máquina-do-conto; somos o lugar de quem o escreve; saboreamos o seu processo de criação; reconhecemos a precisão narrativa dos seus recortes de silêncios; surpreendemo-nos com a forma como traz a língua-viva autônoma de cada personagem. Na máquina do conto de Furtado, há o domínio completo da arte que abre brechas na cegueira dos costumes, margina o silêncio grávido de horrores sociais e o ambienta num plano de critérios que visam a provocar deslocamentos críticos em relação a esquemas estereotípicos de caracterização na própria arte narrativa dos contos pós-Kafka, ou dos romances regionais pós-Jorge Amado.
O bom manejo da língua viva – talhada com limpidez de acordo com o lugar do narrador e/ou dos personagens – explora alguns motivos recorrentes: a bissexualidade (masculina e feminina); o adultério; a liberdade sexual feminina sem liberação sexual; a decadência física-moral-social da açucaristocracia; a hipocrisia das aparências de respeitabilidade social configurada em termos de binarismo racial e de gênero; a dignificação narrativa de marginais, como Juliana e Inácia, mas também reveladora do horror formativo de seus corpos e subjetividades; a evidente simpatia narrativa por Antônio em contraponto ao que representa Albertina. Há também o cuidado de criar efeito trágico surpreendente ao situar Silvina como mote dos suicídios de Lúcia e Juliana, ou seja, as duas mulheres que a amaram, a resgataram e a prepararam, ao seu modo, para a ascensão social: da retirante estuprada à senhora casada e educada.
Antônio é outra fenda extraordinária da açucaristocracia decadente de Recife que é revelada aos poucos: produto da caridade funcional do matriarcado sobreviventista das áreas de serviços das “casas grandes”, Antônio cresceu em proximidade afetiva, social e cultural aos filhos dos patrões de sua mãe e avó, tendo acesso à mesma escolaridade. Antônio é apaixonado por Cosme e fascinado por Albertina. Diferentemente de Sueli e Silvina, que são “S’s” paralelos, Antônio e Albertina são “A’s” social e racialmente adversos. Antônio é invisível para Albertina, que tem interesse sexual-predatório em Pedro, irmão mais novo de Laura. Os amigos ricos de Antônio periodicamente o lembravam que Albertina não era “para seu bico” de jovem engenheiro de origem negra e pobre.
Antônio e Cosme se percebem bissexuais… No capítulo dessa revelação, é Cosme que assume a narrativa. E vemos o seu fluxo de consciência migrando do particular ao cósmico. Trata-se de um momento especial no qual a narrativa concilia o meditativo-cósmico à árida delicadeza de “um montão de [grandes sertões] veredas” (p. 35) pelas quais caminhamos. Ambos não têm categorias para entenderem como sentem o que sentem “assim, quando menos se espera” (p. 25-35), mas o beijo impresso na pele encontra a recepção da carícia que se posterga, como uma sutil promessa que, no futuro, também poderia esconder-se num casamento-tampão… Tal afeição delicada é o oposto narrativo-tipológico da “macheza cênica” de Tales (namorado de Ângela, filha de Sueli) para os seus amigos na Casa 10: Ele acha que é um segredo vergonhoso-perigoso o seu gosto especial por fio-terra (p. 40). Em si mesma uma marginação do patriarcado, a Casa 10 tem em tais segredos os seus mais importantes recursos imateriais que possibilitam a sua sobrevivência social e econômica. O segredo é a alma desse negócio porque a vergonha machista ainda movimenta o corpo pútrido do patriarcado.
Dentre as várias operações pelas margens no conto de Furtado, destaco, por fim, o capítulo “Uma história assim é outra” (p. 123-131), no qual a voz narrativa é assumida por Inácia, cuja língua viva aparece com a autenticidade que passa longe da estereotipia. No estilo de Inácia, nota-se a sua revelação corpo-mente sobreviventista: como sente, pensa e revela o seu passado e a si mesma no presente; como lida com seus desejos; por que casar não é a melhor opção para ela; a violência estrutural que sofre sem percebê-la; o amor platônico que a desloca para fora dos hábitos violentos do patriarcado; as suas pequenas vinganças contra a patroa (Sueli), o patrão (major Paulo) e seus filhos (Ângela e Febo); os sexos ocasionais com Paulo e (e)Febo; os sexos ocasionais de fora da casa (mas dentro da casa) dos patrões… Tudo revelado numa voz narrativa leskoviana na qual autenticamente ouvimos Inácia em sua lógica formativa discorrendo-se para o leitor sem residuais interferências explicativas do autor.
Com Inácia, temos o nadir narrativo de Furtado encarnando perfeitamente o sentido crítico da “guerra de compreensão” dos modelos de narradores propostos pela poética contemporânea de Alberto Lins Caldas. Inácia transcorre em total autonomia em relação a Furtado – e, em certa medida, em relação aos homens em sua vida sobreviventista no patriarcado. Na máquina narrativa do conto de Furtado, Inácia se entrega ao leitor como se entrega aos seus homens: pelas frestas, pelas margens… Com tais operações engenhosas, Furtado agarra nos corpos narrativos do seu conto os vários nacos dos horrores formativos corpo-mentes dos personagens socialmente bem assentados, mas que vivem à margem da açucaristocracia decadente e refletem os seus rizomais sintomas. Aliás, como afirma Inácia, “uma história assim é outra” (p. 131): aquela dos muitos desconcertantes enigmas e fragmentos amargos de horrores da decadente açucaristocracia recifense da década de 1970…
Dizer mais é entregar cedo o doce que só os vivos comem… Então, recomendo: embrenhem-se no conto Os mortos não comem açúcar! Aqui deixei apenas algumas tramas furtadas de Alexandre.
Alexander Martins Vianna – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Seropédica, RJ, Brasil.
Estilo moderno: humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre | Marcelo Balaban
Integrante da coleção História Illustrada da Editora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é o segundo livro de autoria de Marcelo Balaban, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).1
Estilo moderno: humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre concede centralidade à discussão dos sentidos da modernidade para Tigre e seus pares literatos. As primeiras décadas do século XX foram marcadas por transformações e indeterminações diversas, inclusive sobre a própria definição do que seria o moderno. Ascendia um novo tipo de gênero literário relacionado aos novos tempos: o humor trocadilhesco, o calemburgo, a sátira politicamente informada, o risonho em substituição ao choramingo da literatura tradicional. Leia Mais
Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) – SOUZA (Tempo)
SOUZA, Robério S.. Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863). Campinas: Unicamp, 2015. 270p. Coleção Várias Histórias, 42.Resenha de Mac CORD, Marcelo. Acionando a chave de desvio dos trilhos: repensando a história social do trabalho ferroviário no Brasil império. Tempo v.23 no.1 Niterói jan./abr. 2017.
Trabalhadores dos trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1863) é a mais recente obra de Robério Souza. O livro desse talentoso pesquisador, que atualmente é professor do curso de história da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), oferece ao leitor uma série de análises das complexidades políticas, econômicas, culturais, sociais e étnicas que envolveram a construção da Bahia and San Francisco Railway. Publicado pela Editora da Unicamp em 2015, o livro, que faz parte da consolidada “Coleção Várias Histórias”, baseia-se na premiada tese de doutorado do autor, que, sob a orientação de Silvia Lara, foi defendida dois anos antes no Cecult-IFCH-Unicamp.
O livro Trabalhadores dos trilhos, com suas significativas inovações historiográficas, consolida a carreira de Robério Souza como um dos mais destacados especialistas sobre o mundo do trabalho brasileiro. E ratifica sua importância como historiador do mundo do trabalho ferroviário. Em 2011, pela EDUFBA, o pesquisador baiano publicou outro livro sobre a temática: Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Nesse trabalho inovador, fruto de sua dissertação de mestrado, o autor analisa os conflitos de classe e de cor naquela mesma ferrovia, mas privilegiou uma temporalidade que nos permite conhecer as lutas dos trabalhadores negros contra formas de trabalho análogas aos tempos da escravidão (Souza, 2011).
Ambas as publicações fazem parte da mais refinada história social de matriz thompsoniana produzida em nosso país. Tal historiografia, absolutamente identificada com a Unicamp, reconhece a importância da agência dos subalternos na condução de suas próprias vidas e de seu protagonismo na luta de classes – com desdobramento nas mais variadas lutas dos “de baixo” por direitos jurídicos, sociais, culturais, econômicos e políticos. De forma muito especial, o livro Trabalhadores dos trilhos ainda aponta para a possibilidade de convergências entre a história social da escravidão e a história social do trabalho stricto sensu, dissolvendo, assim, as fronteiras analíticas e temáticas que ainda existem entre elas.2
Em sua sólida trajetória acadêmica, Robério Souza não escolheu seus objetos de estudo aleatoriamente ou de forma diletante. Nascido em Alagoinhas, cidade cortada pela antiga Bahia and San Francisco Railway, a vida do autor, oriundo da classe trabalhadora, esteve ligada direta e indiretamente aos trilhos de ferro. Tal peculiaridade ganha ainda mais significado quando sabemos de sua cor preta. A experiência étnica e de classe do pesquisador foram fundamentais em suas investigações, permitindo que seu esforço científico desconstruísse uma historiografia que invisibilizava os negros como protagonistas tanto na construção da primeira estrada de ferro baiana quanto na organização das históricas lutas dos “de baixo” por direitos trabalhistas e sociais.
Do ponto de vista formal, Trabalhadores dos trilhos é um livro muito bem enredado. São cinco capítulos que dialogam entre si, abordando os seguintes temas: implicações político-econômicas da construção da Bahia and San Francisco Railway, engajamento da mão de obra nacional e estrangeira, acordos sobre contratos e arranjos de trabalho, surgimento de alguma consciência de classe nos canteiros de obras da ferrovia e conflitos entre empregados, patrões, encarregados e autoridades públicas. A documentação utilizada é vasta e densa: correspondências governamentais, registros policiais, processos criminais, periódicos, leis, relatórios oficiais, fotografias etc. Todo o material compulsado foi encontrado em arquivos baianos e ingleses.
Logo nas primeiras páginas, Robério Souza demonstra como muitos historiadores e cientistas sociais do século passado, pouco afeitos ao trabalho empírico, se apoiaram acriticamente na legislação imperial que proibia o uso de mão de obra escrava na construção de ferrovias. Aprovada em 1852, a norma acabou induzindo leituras sociologizantes sobre a temática, o que reforçou a explicação de que existiu uma transição teleológica do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil oitocentista. E, nessas sentenças, a ferrovia surgiu como símbolo de “modernização”, ou, em outras palavras, como um empreendimento que viabilizou o amadurecimento das relações capitalistas e do mercado de trabalho em nosso país.
No livro, o tradicional consórcio entre “modernização” do mundo do trabalho e construção das ferrovias brasileiras começa a ser desconstruído assim que o autor demonstra a relação umbilical dos ingleses da Bahia and San Francisco Railway e das autoridades locais com o escravismo. Segundo Robério Souza, por exemplo, muitos empreiteiros e técnicos britânicos compraram e mantiveram cativos em suas próprias casas. Portanto, no cotidiano baiano, era impossível dissociá-los. Para justificar e compreender essa prática, o pesquisador nos remete ao fato de que capitais e homens de negócios ingleses estiveram intimamente envolvidos com o tráfico atlântico ilegal até 1850 – pouco antes da abertura dos canteiros de obras da ferrovia.
As fontes compulsadas por Robério Souza ainda revelam que os profissionais britânicos responsáveis pela construção da Bahia and San Francisco Railway contratavam escravos para os canteiros de obras da ferrovia. Eles alegavam ser impossível identificar a real condição jurídica dos negros que buscavam serviço. De certa forma, em alguns momentos, como salienta o pesquisador, os contratadores poderiam dizer a verdade. Contudo, acostumados com o escravismo e preocupados em viabilizar as empreitadas, pouco se esforçavam para verificar a situação legal das pessoas escravizadas que se passavam por livres. E, aproveitando-se dessa situação, precarizavam ao máximo a força de trabalho dos africanos e de seus descendentes.
Os escravos que se passavam por homens livres, por sua vez, encaravam os serviços oferecidos pela primeira ferrovia baiana como uma possibilidade de se “esconderem” de seus senhores, como propõe Robério Souza. Conseguir um emprego nos trilhos de ferro também era uma forma de os cativos se passarem por homens livres, tendo em vista as determinações impostas pela lei imperial de 1852. Ainda sobre as estratégicas apropriações feitas pelos “de baixo”, o autor afirma que a construção da Bahia and San Francisco Railway serviu como forma de esconderijo para outros sujeitos, como criminosos e desertores. Tais indivíduos queriam ficar invisíveis aos agentes da polícia, da justiça, das milícias e das forças militares.
Entre os trabalhadores que estiveram vinculados às rotinas dos canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway, Robério Souza afirma que poucos eram africanos livres (gente ilegalmente traficada da África para o Brasil entre os anos 1831 e 1850) ou “índios”. Nas páginas de Trabalhadores dos trilhos, sobre o primeiro grupo, observamos que alguns grandes proprietários baianos desviavam os “escravos da nação” mais jovens, saudáveis e fortes para suas terras, impedindo que o governo utilizasse essa mão de obra nos canteiros de obras da ferrovia. Para substituí-los, os senhores de terra e de gente mandavam para as empreitadas os cativos mais velhos e alquebrados de sua propriedade.
Além de escravos que se passavam por livres, africanos livres, “índios”, criminosos e desertores, a Bahia and San Francisco Railway também contou com a mão de obra do nacional livre. Estes últimos eram referidos pelos contratantes e pelos administradores do empreendimento como “preguiçosos” e “inconstantes”. Robério Souza deixa claro que tais julgamentos eram preconceitos étnicos e classistas. Os nacionais livres não aceitavam certas condições de trabalho, rebelavam-se quando injustiçados e tinham na roça seu principal meio de sustento. De acordo com a sazonalidade de seus cultivos e das vantagens financeiras que poderiam auferir, eles conjugavam ou não o plantio de subsistência com os canteiros de obras ferroviários.
Em meio a tanta gente de pele escura (livre, liberta e escrava) em um empreendimento “moderno” e “modernizador”, o operário estrangeiro também se fez presente. Os italianos chegaram à Bahia com a promessa de “moralizar” e “morigerar” os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway. Apesar de serem os únicos a terem contratos formais de trabalho, também foram explorados pelos contratantes, tendo seus acordos constantemente desrespeitados. Robério Souza, por meio de farta análise documental, demonstra que isso gerou fortes tensões. Uma greve foi deflagrada por causa da insatisfação dos italianos, o que gerou forte repressão e posterior controle policial, com toques de recolher e cerceamento da livre circulação.
Historiador social arguto e sensível, Robério Souza entende a repressão sofrida pelos italianos como mais uma forma de constatarmos os tênues limites entre trabalho escravo e trabalho livre no Brasil império. Sobretudo após a deflagração da greve, os operários europeus da Bahia and San Francisco Railway foram vigiados mais de perto pelas autoridades policiais baianas e por seus patrões. Sob forte ameaça, tinham de seguir rapidamente dos canteiros de obras para seus alojamentos e ficaram com mobilidade limitada em seus momentos de lazer e de descanso. Ao exigirem o devido respeito aos contratos, os italianos experimentaram contratempos muito semelhantes àqueles que foram impostos aos africanos e seus descendentes escravizados.
Como podemos perceber, entre os anos 1858 e 1863, os canteiros de obras da Bahia and San Francisco Railway reuniram os mais variados tipos que viviam do suor do próprio rosto. O livro Trabalhadores dos trilhos chama nossa atenção para essa diversidade social e demográfica. E, mais do que isso, permite que conheçamos as alianças e os conflitos vivenciados pela multidão que construiu a primeira estrada de ferro baiana. Por um lado, como afirma Robério Souza, a precariedade possibilitou alguma consciência de classe: italianos e escravos criaram planos conjuntos de sublevação; as festas e as relações de vizinhança uniam pessoas. Por outro lado, ainda segundo o autor, refluxos ocorreram pelas diferenças de cor, nacionalidade e cultura.
Na construção da Bahia and San Francisco Railway, os fluxos e os refluxos da formação de alguma consciência de classe, processo muito bem analisado por Robério Souza, é um dos pontos altos do livro Trabalhadores dos trilhos. Inspirado por E. P. Thompson, o autor endossa a crítica de que a classe operária é uma construção histórica motivada por certas condições sociais. Portanto, como algo que é forjado na luta, a classe operária não surge pronta e acabada em determinado espaço-tempo, como algo exigido pela necessidade histórica – fruto do devir. O marxista inglês nos ensina que sua construção precisa dialogar com o processo histórico, algo que exige dos analistas especial atenção aos sujeitos, à crítica aos modelos engessados e à empiria.3
Por tudo isso, um dos maiores méritos de Trabalhadores dos trilhos é pensar a história social do trabalho sem engessamentos ou isolamentos teóricos. Robério Souza se apropria de instrumentos analíticos e categorias como etnia, classe, nacionalidade, trabalho escravo, trabalho livre e “modernização” sem perder de vista o processo histórico, a ação política dos sujeitos e a relação dos conceitos com sua pesquisa empírica. Ele ainda conseguiu tecer uma potente análise baseada na história social sem descuidar de elementos das histórias política, cultural e econômica. Utilizando a imagem da própria ferrovia, o livro é um entroncamento que nos permite visitar muitas estações da experiência humana.
Referências
CHALHOUB, Sidney; SILVA, Fernando T da. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas, v. 14, p. 11-50, 2009. [ Links ]
SOUZA, Robério S . Tudo pelo trabalho livre: trabalhadores e conflitos no pós-abolição (Bahia, 1892-1909). Salvador: EDUFBA; São Paulo: Fapesp, 2011. [ Links ]
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. 3. ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. v. 1. [ Links ]
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [ Links ]
2Sobre as fronteiras entre história social da escravidão e história social do trabalho stricto sensu, consultar Chalhoub e Silva (2009, p. 11-50).
3Para saber mais, consultar Thompson (1997, 1981).
Marcelo Mac Cord – Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói(RJ) – Brasil. E-mail: marcelomaccord@gmail.com.
O socialismo de Oswald de Andrade: cultura/ política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930 | Marcio Luiz Carreri
Obra originária de pesquisa para obtenção do título de doutor em história-social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP no ano de 2017. O livro “O socialismo de Oswald de Andrade: cultura, política e tensões na modernidade de São Paulo na década de 1930”, partindo da capa e seus contraste em preto e branco em que o autor destaca seus personagens principais que compõe sua narrativa histórica, como a Pagú, Mario de Andrade e sobretudo o Oswald tendo por base a foice e o martelo em vermelho, e acima de todos a figura emblemática de Marx.
Trata-se de escrita leve e fluente, sem o peso do academicismo que se exige para uma tese de doutorado em história, porém com o rigor metodológico dela. Marcio em seu trabalho consegue perfeitamente trafegar entre duas linhas tênues e belas que é a da confluência entre literatura e história, com o mérito de trafegar por essa zona quente sem se esquecer do metier, do construto da história. Dessa forma a literatura entra como pano de fundo para o fazer historiográfico de uma época de “tensões na modernidade de São Paulo” como diz o título. Leia Mais
Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.10, n.1. 2017.
ARTIGO
- Ameghino y el abordaje embriológico de la filogenia
Gustavo Caponi - A Revista do Museu Paulista no tempo em que Affonso Taunay foi o seu diretor
James Roberto Silva - Elemens de Chymie Theorique (1749) de Pierre Joseph Macquer: divulgando a química para um público amplo
Paulo Henrique Oliveira Vidal e Paulo Alves Porto - As práticas femininas e os conhecimentos sobre a matéria: alguns antigos cosméticos
Laís dos Santos Pinto Trindade e Maria Helena Roxo Beltran - Uma História Cultural da Teoria da Matriz-S: Geoffrey Chew e a Filosofia de Bootstrap
Gustavo Rodrigues Rocha - A Universidade de São Paulo: uma rota internacional do desenvolvimento da geometria algébrica
Eliene Barbosa Lima e André Luís Mattedi Dias - No trono da ciência II: laureadas com o Nobel na Fisiologia ou Medicina (1995-2015)
Luzinete Simões Minella - Notas para uma História da Ciência da Psicologia Política
Alessandro Soares da Silva
RESENHA
- De Mary Anne Junqueira, Velas ao Mar – U.S. Exploring Expedition (1838-1842). A viagem científica de circum-navegarão dos norte-americanos)
Moema de Rezende Vergara - De Robert Smail Jack e Fritz Scholz, Wilhelm Ostwald: The Autobiography
Letícia dos Santos Pereira
Sob Três Bandeiras: Anarquismo e imaginação anticolonial | Benedict Anderson
Como muito bem indicado por Mônica Dias Martins, no prefácio da edição brasileira do livro Sob Três Bandeiras de Benedict Anderson, ele “representa certa mudança no paradigma de como se estudam os nacionalismos” (p.15). Isso parece correto na medida em que é possível observar que ele desenvolveu uma análise que perpassa um conjunto de dados muito bem apresentados e analisados. Anderson se distancia, por exemplo, da clássica escrita de Hobsbawm, sobre os nacionalismos, já que não se ancora em dados não referenciados ou pouco referenciados em fontes, mas que desenvolve uma análise ampla que atravessa espaços continentais e não se restringe à preponderância dos problemas europeus. Seu trabalho não é original em relação à temática porque, anteriormente, já havia escrito Comunidades imaginadas, seu texto de referência sobre o nacionalismo, assim como Nação e consciência nacional, todavia é original ao vincular o anarquismo e a imaginação anticolonial ao que ele chamou de “Era da globalização primitiva”.
Cuba, China, Japão, Espanha, Estados Unidos, Filipinas, França, são alguns dos países que integram essa tensa “Era”. Anderson demonstrou, principalmente a partir de dois autores, Isabelo de los Reyes e José Rizal, como se configurou o levante em prol da independência das Filipinas em relação à Espanha e como as ideias transitaram pelo mundo no sentido de encontrar formas de estruturação da sociedade, distintas das que, até então, estavam vigentes, sob rédeas do capitalismo ocidental. Daí o sentido do subtítulo Anarquismo e imaginação anticolonial. Leia Mais
As Universidades e o Regime Militar: cultura política brasileira e modernização autoritária | Rodrigo de Patto Sá Motta
Rodrigo Patto Sá Motta, vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, é pesquisador da história política do Brasil contemporâneo. Sua escrita privilegia uma narrativa analítica, embasada em farto material empírico, resultado do domínio da bibliografia sobre a temática abordada, pesquisa em arquivos nacionais e nos EUA. Sua preocupação com a análise da “cultura política brasileira”, conceito esse que parece ainda não estar bem desenvolvido, também é preocupação de historiadores como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Marcos Napolitano. Embora não seja citado nas referências bibliográficas o nome de Sérgio Buarque de Holanda, essas reflexões parecem reabilitar o conceito de “homem cordial” por perseguirem os traços do personalismo na política, dentre outras características.
A obra As universidades e o regime militar faz parte de um conjunto de publicações realizadas no contexto dos 50 anos do Golpe Militar de 1964. Elas fazem uma espécie de “redescoberta” da ditadura brasileira, sobretudo ao analisar os aspectos autoritários de nossa cultura, manifestados nos ambientes institucionais. Algumas análises vão de encontro à memória coletiva de certos setores acadêmicos mais inclinados a ideologias esquerdistas, pois, se por um lado, confirma e aprofunda os aspectos ligados à repressão, por outro, expõe fatores que levaram à modernização das universidades, o que colaborou para a renovação da própria historiografia brasileira como, por exemplo, as mudanças trazidas pela Reforma Universitária e a sistematização e expansão da pós-graduação. Assim, o autor perpassa a transformação das universidades que antes da Reforma era uma federação de escolas e faculdades para se tornarem um sistema universitário articulado, que deslocou o poder anteriormente exercido pelos diretores de faculdades para as mãos dos reitores e modificou um “modelo” de universidade que havia perdurado por trinta anos. Leia Mais
História e Historiografia da Educação | GTHE/ANPUH-BR | 2017
A Revista de História e Historiografia da Educação (2017-) é uma publicação organizada pelo Grupo de Trabalho em História da Educação da Associação Nacional de História, em parceria com seus núcleos regionais.
Tem como objetivo a divulgação da produção científica no âmbito da História da Educação, proveniente de instituições de pesquisa nacionais e internacionais.
Periodicidade quadrimestral.
A Revista proporciona acesso público (Open Access) a todo seu conteúdo, seguindo o princípio que tornar gratuito o acesso a pesquisas gera um maior intercâmbio global de conhecimento.
ISSN 2526-2378
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Villas Miseria, Favelas y Asentamientos: nuevas rutas en Historia Urbana / Urbana / 2017
En años recientes ha crecido el interés académico hacia las urbanizaciones conocidas como villas miseria, favelas, cantegriles, callampas y asentamientos, como objeto de estudio, dando como resultado un importante corpus de trabajos científicos enfocados principalmente en su composición social, en las experiencias de organización de sus habitantes, en los conflictos sociales y políticos, y en las políticas públicas implementadas.[1] Los trabajos provenientes de la sociología, la antropología, la historia reciente y la ciencia política, que tienen en estos sectores de ciudad su objeto de estudio, permiten acceder al conocimiento de las cambiantes situaciones y a los conflictos de índole económica y política que atraviesan su tejido social, así como a las tensiones entre sus habitantes y la urdimbre urbana, más amplia, en que se insertan. A pesar de la importancia cualitativa y cuantitativa de estas urbanizaciones dentro del tejido urbano de ciudades como Buenos Aires, San Pablo, México, Salvador, Santiago, Montevideo, o Rio, los historiadores urbanos hemos dedicado a ellas menor atención que, por ejemplo, a la vivienda de ayuda estatal, al habitar de los sectores medios o a las casas y departamentos de las elites.
Este Dossier reúne una serie de investigaciones sobre este tipo de urbanizaciones, materializadas en tierras vacantes, principalmente tierras fiscales, que se caracterizan por formar tramas urbanas irregulares, con unidades habitacionales relativamente precarias, ausencia de algunos servicios e infraestructura pública, y con alta densidad habitacional. Estas urbanizaciones se han consolidado como la forma de habitar de los sectores sociales más humildes, en las ciudades latinoamericanas, desde la segunda mitad del siglo XX, si bien su emergencia puede datarse con anterioridad. Estas investigaciones cubren un área de vacancia temática, esencial para la comprensión de las dinámicas sociales, la construcción de identidades y las formas de habitar en las grandes urbes latinoamericanas. Sus autores asumen que la perspectiva histórica es fundamental para comprender el universo simbólico del presente de las villas y sus circunstancias. Por su parte, y consecuentemente, la mirada histórica constituye una herramienta de análisis ineludible para la articulación de respuestas a las problemáticas actuales, que contemplan la inclusión de prácticas de planeamiento participativo y políticas de urbanización que toman distancia discursiva, y muchas veces también fáctica, de las políticas preexistentes, tendientes en buena medida a la erradicación y traslado compulsivo de sus habitantes, cuando no a la simple y llana invisibilización de las mismas.
En cuanto al recorte temporal, se ha optado por cierta elasticidad, puesto que la aparición de estas urbanizaciones tuvo diferentes temporalidades, de acuerdo a las dinámicas asumidas en los diferentes países del continente. La consolidación de esta forma de habitar estuvo ligada a los procesos de concentración urbana, derivados de la modificación en los términos de intercambio, las políticas de fomento a la industrialización, vinculadas a ideas keynessianas, y la migración de trabajadores rurales hacia las ciudades. Si bien la aparición de las primeras urbanizaciones irregulares puede datarse desde fines del siglo XIX, fue para mediados del siglo XX que asumieron dimensiones hasta entonces inéditas. Fue entonces, cuando los modelos de desarrollo económico en la región promovieron la modernización de la sociedad, que pasaría de rural a urbana e industrial, con las consecuente modificación del empleo. Este modelo de desarrollo trajo aparejados problemas de distribución, a la par de cierto crecimiento económico. [2]
Desde el punto de vista urbano también hubo inconvenientes, pues la concentración poblacional en las ciudades latinoamericanas no siempre fue de la mano de un mejoramiento sustancial de las condiciones de vida de los sectores populares. Si bien un importante número de personas llegadas a las ciudades en busca de empleo logró acceder al mercado de trabajo no todos tuvieron garantizado el acceso a la vivienda, puesto que ni el mercado privado, ni tampoco el Estado, habían acompañado el ritmo de los cambios con la provisión de las viviendas necesarias. Este proceso tuvo diferentes temporalidades, de acuerdo a las dinámicas asumidas en cada uno de los países. En los casos de Brasil y de la Argentina, por ejemplo, hubo activas políticas de creación de vivienda estatal, en los años del varguismo y del peronismo, que fueron decisivos y dejaron una impronta insoslayable en las identidades sociales y políticas.[3]
Sobre todo en el caso argentino, la acción del gobierno de Juan Perón en la materia, cristalizó en identidades políticas que posteriormente tendrían impronta en las experiencias de lucha y reivindicación de los habitantes de las villas miseria frente a los intentos de erradicación de las sucesivas dictaduras, cuando los representantes de los habitantes de las urbanizaciones estuvieron en buena medida, identificados con la militancia peronista. Algunos de los trabajos reunidos en este Dossier arrojan nueva luz sobre estos temas y revisitan las experiencias asociativas y de resistencia, y sus vinculaciones con las identidades políticas de representados y representantes.
Como ha mostrado la bibliografía, las estrategias de la población que no pudo acceder a las viviendas de ayuda estatal, se inclinaron, por un lado, a alquilar habitaciones en viviendas urbanas compartidas, la mayoría de las veces en condiciones materiales deficitarias y con hacinamiento individual y colectivo. En otros casos, para quienes accedían a empleos informales, consecuentemente peor remunerados, o quienes quedaban fuera del mercado laboral, la opción fue encontrar un espacio para construir un refugio en tierras vacantes y en los márgenes de las ciudades. De acuerdo a factores como la cultura urbana, la gestión y valorización de la tierra y las características topográficas de las diferentes ciudades latinoamericanas, esas localizaciones variaron: en el alto o en tierras bajas e inundables, cerca de cursos de agua o en las colinas que rodeaban la ciudad consolidada, en tierras fiscales cercanas a los ferrocarriles, etcétera. Estos primeros asentamientos fueron entendidos inicialmente, por parte de distintos gobiernos, como un problema pasajero, que sería resuelto con el proceso de crecimiento económico y a través de las dinámicas de ascenso social.
Por su parte, la mirada higienista, que había construido discursos disciplinadores y alentado la sanción de leyes que afectaron la vivienda de los sectores más pobres (conventillos, casas de vecindad e inquilinatos) y a sus habitantes, en los diversos países latinoamericanos en el siglo XIX y las primeras décadas del siguiente,[4] pervivió, a veces de manera sutil, a lo largo del siglo XX. Para las décadas de 1950 y 1960, las reverberaciones del discurso higienista de las elites latinoamericanas fueron activadas al calor de los procesos de urbanización acelerada y se fusionaron con un conjunto de valores, ligados a la modernización cultural.
Para entonces, comenzaron a identificarse las deficitarias características de las viviendas de los pobres, con las costumbres rurales de sus pobladores, que no habrían asimilado aún, unas supuestas “pautas culturales modernas”. Esta modernidad cultural iba de la mano de un nuevo estilo de vida urbana, asentado en la familia nuclear, [5] en contraposición a la familia extendida, característica del medio rural. Los valores del modelo familiar nuclear estaban ligados a la propiedad de la vivienda, la planificación de la natalidad y el ascenso social a través del esfuerzo y la educación. El modelo incorporaba una valorización del confort a través del consumo de objetos durables provistos por los sectores industriales y promovidos por la prensa, la publicidad, el cine, las revistas y el mercado de la moda, crecientemente masificado.[6]
Una creciente estigmatización de las pautas culturales de los habitantes de las urbanizaciones y de sus prácticas de domesticidad, se consolidó a la par del proceso de industrialización en América Latina, que entre las décadas de 1940 y 1960 intensificó las dinámicas de concentración urbana. Estos procesos agudizaron la crisis de vivienda, puesto que el stock habitacional no crecía en la medida de las necesidades de la población. En este contexto, las villas miseria, favelas, callampas, cantegriles y asentamientos aumentaron su extensión y número de habitantes, mientras los gobiernos civiles y militares, que se alternaban en el continente, ensayaron diferentes respuestas que, miradas en conjunto, no lograron dar solución al déficit habitacional ni tampoco a los problemas sociales, políticos y ambientales de las urbanizaciones.
No deja de ser paradójico, que en años en que el ideal modernizador en torno de la familia nuclear (identificada como un núcleo familiar primario habitando una unidad residencial para su exclusivo uso) había impregnado los discursos y en general, las representaciones sobre la familia, algunas investigaciones sobre importantes capitales latinoamericanas, por ejemplo, la ciudad de Buenos Aires, muestren la pervivencia de la práctica de compartir viviendas entre varios núcleos familiares. En efecto, el análisis de la información censal para la capital argentina puso en evidencia que para 1960 las viviendas de la ciudad fueron compartidas entre un mayor número de personas que en la medición anterior, el Censo de 1947. En 1960, el promedio de personas por vivienda se incrementó en un 12%, sobre la totalidad de las viviendas de la ciudad y en un contexto en el cual el tamaño promedio de las familias había descendido de 3.80 a 3.14 miembros.[7] En síntesis, las familias eran más pequeñas, pero las viviendas eran compartidas por un mayor número de núcleos familiares bajo el mismo techo.
Desde principios de la década de 1960, la presencia de las urbanizaciones irregulares, y de sus habitantes, en la escena urbana, comenzó a ser objeto de reflexión por parte de las ciencias sociales. Al tiempo que en los círculos académicos se comenzó a hablar de las “urbanizaciones de la pobreza”, su aumento comenzó a llamar la atención de los diversos estados latinoamericanos, que desde fines de la década de 1950 y en la década siguiente, las percibieron como un “desorden urbano”.[8] En contextos políticos autoritarios, estas urbanizaciones fueron asimiladas a un mal descontrolado y consecuentemente, las políticas diseñadas para lidiar con este problema consistieron, lisa y llanamente, en extirpar el problema del cuerpo social. Esta mirada reforzó las barreras sociales y culturales preexistentes, y de larga data, entre las urbanizaciones y la “ciudad moderna”, que se veía a sí misma escindida de las primeras.[9] De este modo, se operó la transición, desde la invisibilización inicial, hacia un consenso social en torno a las políticas que, en un extremo, consistieron en arrasar los asentamientos, erradicar a sus ocupantes, y llevarlos a vivir a nuevas viviendas, construidas por lo general lejos del sitio original. Estas nuevas viviendas debían ser, ineludiblemente, “modernas”.
El requisito de modernidad implicaba que las nuevas viviendas fuesen concebidas como verdaderos laboratorios sociales, en los cuales los individuos y las familias operaran la transición desde sus pautas culturales de origen hacia un horizonte considerado como “civilizador”. Paralelamente, desde el campo intelectual, se estaban alumbrando las perspectivas fundacionales sobre las urbanizaciones informales. En este Dossier se discuten algunos de esos enfoques tradicionales. Para el caso de la composición social de las villas miseria en la Argentina, se revisitan las hipótesis de Gino Germani y de José Luis Romero, que abordaron la cuestión desde la sociología y desde la historia, respectivamente.[10] Ambos enfoques, habían asociado la conformación de las urbanizaciones en Buenos Aires con la etapa de desarrollo industrial y con las transformaciones acaecidas durante los primeros gobiernos peronistas. Las nociones de desintegracion social de Germani y de anomia, de Romero, son revisitadas para marcar su pervivencia en la bibliografía posterior, en la cual habrían colaborado a demarcar y reforzar las fronteras sociales preexistentes, entre los habitantes de estas urbanizaciones y el resto de la ciudad.
A lo largo de la vida de las urbanizaciones informales, en estos sectores de ciudad se produjeron transformaciones históricas que afectaron a su demografía, su organización social y la participación política y sindical de los sectores de trabajadores y desocupados que los habitaron. Estos ciudadanos, si bien carecieron de los recursos económicos para acceder al mercado formal de la vivienda, pudieron, en muchos casos, dar visibilidad a sus reclamos y negociarlos con los poderes públicos. En determinados países y escenarios históricos, los habitantes de las urbanizaciones irregulares vieron ampliados sus derechos y posibilidades de acceso a mejorar su calidad de vida, accediendo a nuevos consumos materiales y simbólicos.
Estos avances y conquistas se vieron brutalmente cercenados en otras coyunturas históricas, siendo las dictaduras militares quienes elaboraron las políticas más agresivas y violentas hacia estas urbanizaciones y sus habitantes. Sin embargo, sería una simplificación aplicar de manera taxativa una lectura sin mediaciones que identifique la democracia con un avance en los derechos de los habitantes de las urbanizaciones informales y la dictadura con la represión de los mismos. Las investigaciones recientes muestran un panorama mucho más poroso, que contradice lecturas más binarias y sin duda, más tranquilizadoras.
Algunas experiencias pioneras de proyectos participativos de vivienda de ayuda estatal, orientadas a mejorar las condiciones de vida de las urbanizaciones a través de “asociaciones para el proyecto y la ayuda mutua en la autoconstrucción” de viviendas, no tuvieron lugar bajo gobiernos democráticos. Por ejemplo, en el caso de la Villa 7 en Buenos Aires, la experiencia tuvo lugar durante el tercer ciclo de la dictadura conocida como Revolución Argentina, bajo el gobierno de facto del General Lanusse.[11] Se trató de un proyecto elaborado y ejecutado en conjunto entre los técnicos de la Comisión Municipal de la Vivienda y los habitantes de las futuras unidades habitacionales que habrían de reemplazar al asentamiento del que provenían, trasladando el barrio a un terreno lindero. Esta experiencia puede considerarse modélica desde el punto de vista socio- urbano. Debido al éxito en la ejecución, adjudicación y posterior apropiación de las viviendas, el caso de Villa 7 fue reconocido y tomado como ejemplo para muchas experiencias cooperativas posteriores, algunas de las cuales son analizadas en los artículos que integran este Dossier.
Ahora bien, si algunas de las experiencias más innovadoras no tuvieron lugar bajo gobiernos democráticamente elegidos, no es menos perturbador que algunos de los más violentos hechos represivos de las reivindicaciones sociales y políticas de los habitantes de las urbanizaciones informales y de sus referentes, hayan acaecido en ellos. Como ejemplo paradigmático de lo segundo, cabe citar los asesinatos del cura Carlos Mugica, referente del Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo [12], y activo representante de los derechos de los villeros ante la jerarquía eclesiástica, el 11 de mayo de 1974, en Buenos Aires y el de Alberto Chejolán, emblemático representante de la Villa 31 de Retiro, el 25 de marzo de 1974. Ambos fueron asesinados por miembros de la banda paraestatal conocida como Triple A, durante el tercer gobierno peronista. El líder de esta organización, el entonces Ministro José López Rega, fue un precursor a la hora de sentar los lineamientos de lo que posteriormente fue el accionar de la última dictadura militar argentina, en relación con las urbanizaciones.
La dictadura inaugurada en Argentina en marzo de 1976 llevó a cabo uno de los planes de erradicación más violentos de la historia de las ciudades latino-americanas [13]. En ese período, se demolió la mayor parte de la estructura urbana y habitacional de las villas y simultáneamente, se desmantelaron las organizaciones, asesinando y “desapareciendo” a muchos de sus referentes políticos.[14] La aplicación del Plan de Erradicación buscó expulsar de la ciudad a la totalidad de los habitantes de las villas hacia tierras de menor valor económico en los suburbios, haciendo uso de la violencia estatal. El resultado fue que mientras para 1976 la población total de las villas era de 213.823 personas, en 1980 había descendido a 34.068.[15] En el caso de la última dictadura argentina, que gobernó hasta 1983, se percibe un alto grado de cohesión entre los discursos y las prácticas estatales en torno a las urbanizaciones informales, que quedaron diezmadas y desarticuladas en su representación y capacidad organizativa.
Los casos señalados en los párrafos precedentes, que dieron como resultado los aparentes desfasajes entre los tiempos de la política, los modelos estatales y las acciones del poder político hacia las urbanizaciones informales no resultan de fácil interpretación. Intuimos determinaciones múltiples detrás de ellos. No es intención de este artículo hacer un análisis concluyente de estos fenómenos, en todo caso, nos limitamos a señalar que en el análisis de las políticas habitacionales es importante estar advertido acerca de buscar correspondencias directas entre los tiempos cortos de la política y los tiempos largos de la vida de las ciudades y de los cambios urbanos, que muchas veces obedecen a lógicas diferentes. Por los tiempos que conlleva la materialización de los cambios en el plano material de la ciudad (tiempos de proyecto, de aprobaciones de acuerdo a leyes y normas, tiempos de construcción, de adjudicación, etcétera), sucede que muchas veces, las iniciativas que tienen inicio en un contexto político determinado, son finalizadas y salen a la luz en circunstancias históricas diferentes, e inclusive antagónicas, respecto del momento inicial.
En segundo lugar, los tiempos de circulación de las ideas en los estratos intelectuales y en las elites profesionales, y su penetración en la cultura de la burocracia estatal, tampoco obedecen de manera lineal a los tiempos de la política, pues fluyen por otros carriles. Para iluminar este aspecto puede citarse la circulación, apropiación y posterior materialización de las ideas de la modernidad arquitectónica, para la vivienda de los trabajadores, en contextos económicos y políticos conservadores e inclusive, antimodernos. Ejemplo de esto son los conjuntos habitacionales de gran escala, construidos en la periferia de las grandes ciudades según ideales sociales y pautas de habitar modernas, en estilo internacional, en época de dictaduras nacionalistas y conservadoras desde el punto de vista social y cultural.
Otro ejemplo son los debates y la aplicación de las ideas de John Turner, quien fue uno de los principales críticos de las políticas de erradicación y promovió la autogestión y la autoconstrucción, a partir de su estudio de las urbanizaciones en Perú, Estados Unidos y el Reino Unido. Sus investigaciones de fines de la década de 1960 concluían que la planificación y los marcos de acción estatal habían sido insuficientes ante la crisis habitacional y proponía solucionar el problema tomando en consideración las estrategias de los sectores populares, en lugar de arrasar con ellas. En este sentido, Turner ponía de manifiesto las habilidades de los habitantes de las urbanizaciones informales para construir sus viviendas e intervenir sobre el hábitat, a pesar de contar con escaso capital económico.[16] Estas ideas, entroncadas con el pensamiento marxista e ideales autogestivos, impregnaron algunos programas de vivienda elaborados bajo gobiernos dictatoriales.
Las teorías de Turner fueron extensamente discutidas durante la década de 1970 en América Latina, especialmente su obra Vivienda, todo el poder para los usuarios, de 1976, así como los debates con sus críticos, Emilio Pradilla y Rod Burguess, que objetaban a Turner adjudicar capacidades y agencia a los sectores populares, relevando de esa responsabilidad al estado. Estos debates impregnaron el clima intelectual de los profesionales y técnicos que, en esos años, estaban elaborando políticas habitacionales en concordancia con las ideas de autoconstrucción y autogestión del hábitat popular.
Al calor de estas ideas, se gestaron intervenciones que pueden definirse como “soluciones alternativas” para el problema habitacional bajo distintos modelos estatales, en los cuales cierta porosidad permitió la coexistencia de ideas diversas, contenidas bajo el paraguas de idearios laxos de desarrollo y modernización, hallables incluso en gobiernos dictatoriales y de sesgo cultural conservador. Esta diversidad permitió que al tiempo que los estados erradicaban pobladores de las urbanizaciones informales y los trasladaban a viviendas transitorias o a grandes conjuntos habitacionales en la periferia de las ciudades, paralelamente, tuvieran lugar procesos de autoconstrucción, en los cuales los habitantes transformaban sus barrios, proveyéndose de servicios e infraestructura. Algunos de los trabajos reunidos en este Dossier enfocan este tipo de experiencias.
En la década de 1970 convivieron, entonces, programas de erradicación, que en aras del acceso a “viviendas dignas” acordaban en la necesidad de desmantelamiento de las urbanizaciones informales, a la vez que iban ganando terreno las ideas proclives al mejoramiento de las condiciones habitacionales de las villas, cantegriles, favelas y callampas, en la convicción de que “las razones del fracaso de la acción habitacional corriente —de programas y proyectos para reemplazar moradas deficientes— radicaban en la falta de concordancia entre las necesidades de la gente y las viviendas proporcionadas por las instituciones”.[17] Estas ideas fueron posteriormente recogidas desde agencias internacionales, como la Organización de Estados Americanos, que promovieron mayoritariamente la participación activa de los habitantes en la construcción. La Primera Conferencia sobre los Asentamientos Humanos de Naciones Unidas Hábitat I, realizada en Vancouver en 1976, hizo fuertes recomendaciones en este sentido.[18]
Mientras que desde algunos espacios de gobierno se defendía la intervención del estado frente a sujetos que eran concebidos como portadores de una “incapacidad” para su integración exitosa al escenario urbano, otra corriente de ideas encontró que la provisión de viviendas por el estado, en la matriz de los estados europeos, cuyo ejemplo modélico era la vivienda social construida en la República de Weimar, y que había conocido experiencias exitosas en las ciudades latinoamericanas, era insuficiente para dar respuesta a la demanda del momento. En este sentido, en un contexto de urbanización creciente, la provisión de vivienda repetitiva, planificada por el estado, para familias e individuos estandarizados, dejó de ser vista como la solución para cubrir el déficit. En ese escenario, la mirada que tomaba en consideración algún grado de participación de la población en la solución a su problema habitacional fue ganando terreno.
Los trabajos reunidos en este Dossier, dan cuenta, en buena medida, de la compleja y cambiante interacción entre urbanizaciones informales y estado. En algunos casos, se enfoca el momento en que se conformaron las primeras organizaciones sectoriales a través de las cuales los habitantes eligieron una representación que en muchos casos fue su respuesta frente a las decisiones del poder político de erradicarlas. Los trabajos dan cuenta de la resiliencia de la población villera y de las diferentes ideologías urbanas y políticas de los profesionales actuantes en las agencias estatales encargadas del diseño de políticas habitacionales, muchos de los cuales tenían una pertenencia y una militancia política que difería del aparato estatal al que pertenecían. Estas negociaciones, luchas y procesos de avasallamiento, avance y retroceso estatal, fueron diferentes en los distintos contextos latinoamericanos. Las investigaciones enfocadas en el rol del estado como sujeto histórico y de sus agencias, no siempre homogéneas en sus concepciones, permiten adentrarnos en las fronteras sociales y materiales establecidas entre las urbanizaciones informales y el resto de la ciudad. Fronteras móviles, más permeables o más rígidas, en los diferentes contextos históricos y nacionales.
Los artículos aquí reunidos abordan las cuestiones planteadas a través de una gran diversidad de fuentes y metodologías de análisis. Una parte de ellos, toma como material de análisis la experiencia de los habitantes, que refiere directa o indirectamente a preguntas identitarias, es decir, quién es el sujeto de la experiencia desde el punto de vista social, cultural, político, de género, etcétera. El análisis de la experiencia implica, paralelamente, una toma de posición del investigador, que elige algunos aspectos identitarios por sobre otros. En este sentido, los trabajos que analizan la experiencia de los habitantes abren una gran diversidad de facetas de análisis. Si para autores como David Harvey la experiencia está condicionada por la identidad de clase, los artículos que integran el Dossier abren ventanas hacia otros aspectos identitarios, como las identidades ligadas al mundo del trabajo y las experiencias de lucha sindical, las identidades nacionales, de género, religiosas y también, el papel de las identidades políticas vinculadas, en algunos casos, a la lucha armada. Si el análisis de las prácticas permite acceder a la representación del mundo social de los individuos, también, a la luz de las investigaciones empíricas, la experiencia aparece como un proceso de construcción y deconstrucción de la vida de los individuos. Estos trabajos tienen el interés de reabrir la pregunta acerca del valor del análisis de la experiencia, desde el punto de vista historiográfico, entendiendo a la misma como representación del universo social de los sujetos y como agente de configuración de identidades individuales y colectivas.
Las diversas investigaciones reunidas en este Dossier se inscriben en las líneas de indagación de las cuales este artículo introductorio ha trazado un boceto. La mayor parte de los artículos explora las dinámicas sociales y sus conflictos en su dimensión urbana y territorial, nutriendo una línea de los estudios urbanos promisoria y fructífera, pues la dimensión de la espacialidad ha estado ausente en buena parte de los estudios pioneros sobre las urbanizaciones irregulares. En tal sentido, el trabajo de Adriana Laura Massidda aborda las disputas y negociaciones por el espacio urbano entre el estado y los habitantes de las villas La Lonja, Cildáñez y Castañares, en la Ciudad de Buenos Aires, desde una perspectiva que identifica diversas dinámicas que tensionan la apropiación del espacio, por la cual los habitantes de esas urbanizaciones debieron recurrir a diferentes mecanismos a lo largo del periodo enfocado.
Las organizaciones villeras, sus identidades políticas y la relación con el estado, en la Argentina, están en el centro de los trabajos de Eva Camelli y de Manuela Luz Alvarez. Estas miradas resultan imprescindibles a la hora de observar las acciones estatales dirigidas hacia estos espacios urbanos y el componente identitario peronista, que ha caracterizado a buena parte de la dirigencia villera argentina. El grado de autonomía y los conflictos de esos dirigentes para sostener posiciones diferentes a las del gobierno peronista inaugurado en 1974 están en el centro del trabajo de Álvarez.
Por su parte, Erika Angélica Alcántar García & Héctor Quiroz Rothe realizan un aporte a la construcción de una historiografía que tiene su objeto en el análisis de la emergencia y el proceso de conformación del tejido socioespacial de las ciudades mexicanas contemporáneas. Su trabajo se apoya en los resultados de una investigación documental y en trabajo de campo realizado por los autores como integrantes del Seminario de Historia del Urbanismo Popular del Posgrado en Urbanismo de la Universidad Nacional Autónoma de México.
También sobre los asentamientos informales de México, el trabajo de Milton Montehano Castillo analiza un caso de estudio, la llamada Ciudad Nezahualcóyotl, una urbanización de origen informal de más de un millón de habitantes y más de cincuenta años de conformación, lo que permite al autor identificar algunos elementos de diferenciación social dentro de la urbanización y el establecimiento no solo de pautas sociales de diferenciación, sino también de sectorización en el espacio urbano, en base a criterios de antigüedad de la población residente.
Retomando el tema de la segregación social y el establecimiento de fronteras sociales, el artículo de María José Bolaña sobre la construcción del discurso público acerca del cantegril montevideano, contribuye a la comprensión del modo en que las políticas gubernamentales delimitan sujetos en la ciudad, ubicándolos en el espacio simbólico y material, y delineando sus características desde determinados modelos urbanos y sociales.
Luciana Vaccotti, por su parte, ha trabajado la condición de los migrantes en las villas a través de la bibliografía sobre informalidad urbana y procesos migratorios, así como el modo en que esos discursos han construido históricamente la categoría “migrante” en tanto problema sociológico. Su artículo revisita la producción académica sobre el tema, orientada a rescatar las disputas e interacciones entre colectivos migrantes y locales, en situaciones de conflictividad social, en las cuales muchas veces los derechos de los primeros se ven vulnerados.
El recorte del colectivo inmigrante, en este caso proveniente de un país limítrofe, aparece como una de las facetas del trabajo de Leandro Daich Varela. Su artículo enfoca el caso de la Villa 31 de Retiro, la urbanización irregular de más larga data que pervive en Buenos Aires, dando cuenta del proceso de creación de cooperativas de autoconstrucción de nuevas viviendas en la periferia urbana como estrategia frente a la erradicación. Su estudio de caso es la organización de la Cooperativa Copacabana, creada durante la última dictadura militar argentina (1976-1983). A su vez, el trabajo explora las estrategias, ideas y conflictos al interior de la Cooperativa, y entre ésta y las autoridades, así como las relaciones de este grupo con la Iglesia Católica y con el Movimiento de Sacerdotes para el Tercer Mundo.
También el trabajo de las investigadoras brasileras Jimena Alejandra Veja y María Cristina da Silva Schicchi está enfocado en las erradicaciones que puso en práctica la última dictadura militar argentina. Su caso de estudio son las villas del Bajo Belgrano y de Colegiales, ambas en la Ciudad de Buenos Aires. Su artículo presenta un análisis de las estrategias y prácticas urbanísticas y su traducción en el espacio material de la ciudad, con el fin de convertirla en una “ciudad blanca”, metáfora a que apelan las autoras en referencia a una ciudad moderna y socialmente homogénea.
Por su parte, el trabajo de Valeria Snitcofsky revisita críticamente las primeras interpretaciones producidas por Jose Luis Romero y por Gino Germani, desde los campos de la historia y de la sociología, respectivamente, para analizar de modo conjunto estos dos enfoques clásicos. Su trabajo revisa las herencias actuales de las perspectivas tradicionales que, aun cuando fueron criticadas en profundidad por una rica producción historiográfica desarrollada a lo largo de las últimas décadas, permanecen vigentes.
Finalmente, la investigación de Camila Chiara, María Mercedes Di Virgilio y Florencia Aramburu sobre la aplicación de una política pública reciente, los Planes Federales de Vivienda en el Área Metropolitana de Buenos Aires, reflexiona sobre las políticas habitacionales en el Conurbano Bonaerense. El análisis está elaborado a partir de una desagregación de datos y características de los mencionados Planes Federales en los diferentes municipios, buscando iluminar las diferencias en la aplicación local de este programa que si bien tuvo alcance federal, fue de implementación por cada uno de los cuarenta municipios que integran el Área Metropolitana
Los diferentes artículos que integran este Dossier despliegan, pues, diferentes miradas, estrategias metodológicas y enfocan diferentes objetos de análisis que encuentran un punto de convergencia en la cuestión habitacional de las villas miseria, favelas, cantegriles, callampas y asentamientos, como objeto de estudio científico de las ciudades latinoamericanas. Desde el punto de vista de la economía urbana y de las disputas por la inclusión y el derecho a la ciudad, los trabajos reunidos en este Dossier arrojan luz sobre la ciudad en tanto escenario de conflictos, entre intereses de agentes posicionados de manera diferencial, según su capital social, cultural y político, dentro de la escena urbana.
Dado que la ciudad puede considerarse como materialización de un excedente de producción y, por lo tanto, su control y apropiación son susceptibles de permanentes disputas, las urbanizaciones informales expresan estas tensiones con especial intensidad, debido a su vulnerabilidad social y jurídica. El objetivo de este Dossier es el de analizar y poner en discusión una serie de trabajos de investigación recientes, que renuevan este campo historiográfico, dando cuenta del despliegue político, social y territorial de estas disputas, en el largo plazo.
Notas
1. En los diferentes países latinoamericanos, se designa como villas miseria, favelas, cantegriles o callampas, entre otras denominaciones, a las urbanizaciones no planificadas en tierra vacante, por parte de familias e individuos, a lo largo del tiempo. Coincidimos con la mirada de Cravino, quien las entiende como urbanizaciones, con vocación de integración al resto de la ciudad. M. C. Cravino, Entre el arraigo y el desalojo. La Villa 31 de Retiro. Derecho a la ciudad, capital inmobiliario y gestión urbana, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento y Vivir en la villa. Relatos, trayectorias y estrategias habitacionales, Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento, ambos de 2009. En el contexto de este artículo, se utilizan las expresiones “urbanizaciones irregulares” en referencia a su trama, por oposición a las ciudades regulares de tradición hispánica y, en algunos casos “urbanizaciones informales”, por materializarse por fuera del mercado formal de la vivienda. Ambas expresiones se utilizan, de manera indistinta, a lo largo del artículo.
2. Sobre la emergencia de este tipo de urbanizaciones, véase la Tesis de Doctorado en Historia de Valeria Snitcofsky, ‘’Villas de Buenos Aires: historia, experiencia y prácticas reivindicativas de sus habitantes (1958-1983)’’. Universidad de Buenos Aires, 2015.
3. Para el caso brasilero, véase N. Bonduki, Origens da habitacao social no Brasil, San Pablo: Estacao Liberdade, 2011 y Ana Paula Koury y N. Bonduki, Os pioneiros da habitacao social. Cem anos de política pública no Brasil, San Pablo: UNESP, 2012. Para el argentino, véase A. Ballent, Las huellas de la política. Vivienda, ciudad, peronismo en Buenos. Aires, 1943-1955. Buenos Aires: Universidad de Quilmes, 2005 y R. Aboy, Viviendas para el Pueblo. Espacio urbano y sociabilidad en el Barrio Los Perales, 1946- 1955. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica- UdeSA, 2005, entre otros.
4. Al respecto véase David S. Parker & Gabriela Castillo, “Laws in Translation: Asymmetric Globality and the Dialogue between French Expert Knowledge and Chilean Social Legislation, 1889-1931”, Queen’s University, 2017 (Inédito)
5. Sobre la instauración del modelo de la familia nuclear, E. Míguez, “Familias de clase media: la formación de un modelo”. En Devoto, F y Madero, M. Historia de la vida privada en Argentina. La Argentina plural (1870-1930). Buenos Aires. Taurus, 1999. También I. Cosse, Pareja, sexualidad y familia en los años sesenta: una revolución discreta. Buenos Aires. Siglo XXI, 2010.
6. Al respecto, véase R. Fernández Wagner, “La construcción y deconstrucción histórica de lo social en el acceso a los bienes y servicios del hábitat”. En Boletín del Instituto de la Vivienda. Mayo, Vol. 10, Núm. 50, Universidad de Chile, Santiago de Chile, 2004.
7. Este análisis en R. Aboy, “Arquitecturas de la vida doméstica. Familia y vivienda en Buenos Aires, 1914- 1960”. Anuario IEHS, número 23, pp. 355- 384. ISSN 0326-9671. Tandil, 2008
8. He tomado la noción de ‘’desorden urbano” de Fernández Wagner, ob.cit.
9. Sobre la noción de “frontera social”, véase mi artículo “Ellos y nosotros. Fronteras sociales en los años del primer peronismo”. En Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Revista electrónica editada por L’Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Marzo, N.° 8, ISSN 1626-0252. 2008.
10. G. Germani, “Investigación sobre los efectos sociales de la urbanización en un área obrera del Gran Buenos Aires”, en Hauser, Philipe (editor), La urbanización en América Latina, Buenos Aires: Unesco, 1961; Política y sociedad en una época de transición. De la sociedad tradicional a la sociedad de masas. Buenos Aires: Paidós, 1962. J. L. Romero, Latinoamérica, las ciudades y las ideas. Buenos Aires: Siglo XXI, 1976.
11. Ver al respecto, R. Barrios, El Plan de Realojamiento de la Villa 7 en Mataderos, en Ciudad de Buenos Aires, entre 1971 y 1975. Tesis de Maestría en Administración Pública. Buenos Aires: Facultad de Ciencias Económicas, Universidad de Buenos Aires, 2012. Tambien de la autora, “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”. Cuaderno Urbano núm. 16; junio 2014. issn 1853 – 3655.
12. Este grupo de sacerdotes realizaba su tarea pastoral en las villas de la Ciudad de Buenos Aires en diálogo con las ideas de la Teología de la Liberación. Se había organizado en medio del clima postconciliar y proponía transformar a las villas en barrios obreros, en tanto éstas no eran consideradas como un hábitat digno. La denuncia de la estigmatización de los villeros y la tarea de los religiosos en su representación no implicaba la defensa de la existencia de urbanizaciones informales. Los curas eran proclives a su relocalización, siempre y cuando fuera llevada a cabo con el consenso de los habitantes y hacia “viviendas dignas”. L. Daich Varela, “El barrio La Asunción, relocalización de villas y autoconstrucción cooperativa en el ex municipio de General Sarmiento”. Tesis de Doctorado en curso
13. El Plan de Erradicación de Villas (PEVE) había sido inaugurado por el General Onganía, quien fue presidente de facto entre 1966 y 1970.
14. E. Blaustein, Prohibido vivir aquí: la erradicación de villas durante la dictadura. Buenos Aires: Punto de Encuentro, 2006.
15. L. Daich Varela, ob. cit. Y también L. Daich Varela, “Demandantes, autoconstructores y técnicos. Formas de resistencia en las villas de la Ciudad de Buenos Aires frente a las erradicaciones de la última dictadura militar”. Quid 16 N°6, 88-120. 2016; “Imágenes de la Cooperativa Copacabana. Un análisis sobre la erradicación de villas y la construcción de viviendas durante la última dictadura a partir de sus fotografías”. Clepsidra. Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria Nº9, (en prensa).
16. Sobre estos temas, ver R. Barrios, “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en Argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”. Cuaderno Urbano 16; Junio 2014. ISSN 1666- 6186.
17. J. Turner, Libertad para construir. Mexico: Siglo XXI Editores, 1972, p. 177
18. R. Barrios analiza este tema en su artículo “Entre la incapacidad de acción y la autonomía. Miradas sobre la participación popular en políticas de vivienda y hábitat en las décadas del 60 y 70 en Argentina. Los aportes de John Turner y Víctor Pelli”, ya citado
Referências
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Rosa Aboy – Professora Doutora. Universidad de Buenos Aires. E-mail: rosaboy@gmail.com
ABOY, Rosa. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.1, jan / abr, 2017. Acessar publicação original [DR]
De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850 | Mathias R¨hring Assunção
A publicação do livro De caboclos a Bem-te-vis em 2015 deve ser saudada, antes de tudo, por trazer ao público, 25 anos depois, o texto completo, atualizado e traduzido de um dos estudos mais utilizados pela historiografia maranhense dedicada às pesquisas situadas no século 19, embora o alcance e a atualidade do texto não se restrinjam ao Maranhão nem ao Oitocentos.
Até então, a tese defendida em 1990 na Freie Universität Berlin e publicada, em 1993, com o título Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850 (Fazendeiros, escravos e camponeses na província brasileira do Maranhão, 1800-1850), circulara em versões não publicadas, ou de modo fragmentado, em relevantes artigos acadêmicos e capítulos de coletâneas1.
Evidentemente, a publicação é impregnada pelas marcas do tempo em que o texto original foi produzido e, por isso, traz vigorosos debates acadêmicos comuns na década de 1990: a existência e a conformação de um campesinato no Brasil; um sistema escravista e suas variáveis; o plantation e o convívio com outras formas de produção. Tempo esse que convive com questões sempre contemporâneas, especialmente no estado do Maranhão, marcado por um processo contínuo de concentração fundiária, desapropriação de terras comunais e luta pela legalização/manutenção de territórios quilombolas.
Dentre os méritos que emergem do texto, talvez o mais significativo e (ainda) original esteja na proposta de explorar formas não escravistas de trabalho em uma das mais escravistas províncias do Império do Brasil. Tal opção não significou o desprezo pela análise da sociedade escravista; ao colocar em xeque a ideia de monocultura escravista algodoeira, propôs o debate sobre a diversidade dos meios de produção que conviveram/conflitaram com aquela estrutura, oferecendo ao leitor o resultado de uma pesquisa de fôlego sobre a sociedade maranhense.
Nas palavras do autor:
A tese central defendida ao longo das páginas que seguem é que a economia escravista de plantation – apesar de sua implantação tardia – caracterizou-se no Maranhão pelo desenvolvimento de uma economia camponesa relativamente importante, diferenciada e autônoma, sobretudo quando comparada a outras regiões brasileiras onde também predominou a grande lavoura escravista. Apesar de um segmento da economia camponesa assumir uma função complementar à economia de plantation, o antagonismo estrutural entre os dois setores está na base do conflito entre os fazendeiros escravistas e os camponeses, chamados e autodenominados caboclos desde aquela época. Este antagonismo foi a pré-condição para a eclosão da Balaiada (p.21, grifos meus).
A transcrição é longa, mas indispensável por evidenciar o principal pressuposto metodológico que orienta o argumento de Assunção: a perspectiva de uma história comparada à procura das diferenças que caracterizariam a sociedade maranhense, tornando-a capaz de produzir as condições para a emergência do movimento que ficou conhecido como Balaiada.
Confessadamente, o autor propusera-se analisar originalmente uma história da resistência popular maranhense que na Balaiada encontrara o seu ápice2. Ao longo da pesquisa, deslocara o foco para uma “análise das estruturas que levaram ao conflito” (p. 12).
Tais estruturas são apresentadas com base em quadros fartamente subsidiados pela rica documentação que orienta a pesquisa, dá solidez ao texto e serve como referência para a elaboração de dezenas de mapas, gráficos e tabelas, oferecidos pelo autor aos seus leitores (p.411-472). Paisagem; população; luta pela terra; economia e sociedade; estruturas de poder e processo político sucedem-se e imbricam-se, conduzindo o leitor à Balaiada, reservada ao último item do último capítulo (p. 352-366).
Ao longo desse percurso, o autor constrói um quadro com o que definiu como excepcionalidades da ocupação do território maranhense. Esse quadro seria composto por uma série de elementos, a saber: a) às vésperas da Independência, a população ainda se concentrava no núcleo inicial da colonização, com incipiente inserção no centro sul da capitania (p.60); b) a população indígena, arredia ao domínio português, era superior à população colonial (p.60); c) forte predominância de escravos da Guiné na região de plantation (p.72)3; d) menor predomínio da escravidão masculina (p.92-93); e) extensos territórios, nas imediações das zonas de plantation, escapavam ao controle das autoridades (p.106); f) a média de escravos por propriedade era inferior às existentes no engenho açucareiro (p.180); g) presença pouco significativa de uma classe média baixa, branca e escravista, capaz de cooperar com a estabilidade do sistema (p.234); h) parte da população livre, inclusive fazendeiros de médio porte, era hostil ao governo (p.311).
Pari passu, Assunção constrói outro quadro, centrado na região do Maranhão Oriental, especialmente o Vale do Parnaíba, palco principal da Balaiada. Para a região o pesquisador identificou elementos como a presença significativa de migrantes nordestinos (p.134); o número elevado de propriedades em que o dono não residia na freguesia (p.135); a importância dos proprietários médios e de uma “classe média rural” (p. 137-138); o mercado de terras ainda incipiente e predominância de formas não privadas de uso da terra (p.139-141).
Haveria assim, na região, uma concentração de camponeses e de fazendeiros voltados para o mercado interno, cujos interesses se chocariam com aqueles defendidos por negociantes e proprietários envolvidos na economia algodoeira. Razões políticas, historicizadas pelo autor a partir da Independência, teriam criado condições objetivas para a eclosão do conflito. Segundo Assunção, elas se acumulam no tempo. Desde de a Independência era recorrentes as queixas de políticos da região do Parnaíba pela não participação no governo da província – manifestações favoráveis à divisão da província foram relativamente comuns até o final da década de 1830 (p.317). Na década de 1830 se intensificou a histórica denúncia da exploração fiscal provincial por parte do governo central (p.279), a montagem da Guarda Nacional desencadeou resistência ao seu alistamento e, por fim, o sistema de prefeituras, introduzido no Maranhão em 1838, concentrou em São Luís a distribuição dos cargos mais lucrativos no interior da província (p.294). Como se vê, as reformas implementadas pela Regência teriam provocado ou agravado o desequilíbrio de poder entre as elites locais, regionais e nacionais (p. 302).
Contudo, se a motivação inicial da pesquisa foi a Balaiada, ou a análise das estruturas que levaram ao conflito, os resultados ultrapassaram extraordinariamente esses intentos. De Caboclos a Bem-te-Vis é leitura obrigatória para os pesquisadores dedicados às primeiras décadas do século 19. Mais ainda, é leitura obrigatória também aos interessados em compreender as estruturas econômicas, políticas e sociais do estado do Maranhão, outrora grande exportador de produtos primários, e que ontem como hoje preserva o gene da desigualdade social, da violência contra as populações mais pobres e do clientelismo político.
Notas
1. Como exemplos, cito: Quilombos maranhenses. In: João José Reis; Flávio dos Santos Gomes. (Orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, v. 1, p. 433-466; Exportação, mercado interno e crises de subsistência numa província brasileira: o caso do Maranhão, 1800-1850. Estudos Sociedade e Agricultura (UFRJ), 2000, v. 14, p. 32-71; e Miguel Bruce e os horrores da anarquia no Maranhão, 1822-27. In: István Jancsó. (Org.). Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005, v. 1, p. 345-378.
2. O próprio título do livro em português revela esse intuito. De um modo geral, as populações camponesas do Maranhão eram reconhecidas como “caboclos”; já os “bem-te-vis” eram os membros do partido liberal no Maranhão, origem de algumas reivindicações incorporadas pelos revoltosos, que passaram a ser reconhecidos, também, como “bem-te-vis”. De Caboclos a Bem-te-Vis transparece o percurso dessas populações até o momento de eclosão do conflito. Em 1988, antes, portanto, da defesa da tese, o autor publicou o livro A guerra dos bem-te-vis. A Balaiada na memória oral, reeditado em 2008 (São Luís: Edufma, Coleção Humanidades, v. 6).
3. Para essa excepcionalidade, o autor apenas observa que suas implicações foram pouco estudadas até aquele momento.
Marcelo Cheche Galves – Universidade Estadual do Maranhão, Maranhão – MA, Brasil. E-mail: marcelochecheppg@gmail.com
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. De Caboclos a Bem-Te-Vis: formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão 1800-1850. São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: GALVES, Marcelo Cheche. O Maranhão nas primeiras décadas do Oitocentos: condições para a eclosão da Balaiada. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 356-359, jan./abr., 2017.
Slave Emancipation and Transformations in Brazilian political citizenship | Celso Thomas Castilho
O livro de Celso Castilho apresenta uma abordagem pouco convencional e inovadora da abolição brasileira. Centrada na província de Pernambuco, com particular ênfase no Recife, uma das cidades onde o abolicionismo mais floresceu, a análise percorre do final da década de 1860 até os anos subsequentes à abolição, fornecendo um quadro de reflexões históricas e historiográficas de grande importância para todo o Brasil.
Castilho analisa a abolição à luz das disputas políticas geradas no seio do movimento da emancipação escrava e de sua inter-relação com práticas de cidadania efetivadas no devir histórico. Assim, o estudioso concebe a crise da escravidão como um ponto de entrada para a compreensão do problema da cidadania política brasileira, algo que extravasa a marcação temporal do século 19. Para atingir esse objetivo, o historiador escrutinou dois jornais de grande circulação no Recife, ações de liberdade, peças teatrais, correspondências privadas e coleções inéditas de documentos remanescentes de associações abolicionistas.
Munido dessas fontes, Castilho mapeia a “fermentação política” entre o final da década de 1860 e a aprovação da Lei do Ventre Livre, marcada pela intensa participação popular em manifestações a favor da abolição, que se expressaram na criação de associações, na celebração de cerimônias de manumissão, na ocupação do espaço público e em encenações de peças teatrais. Segundo Celso Castilho, nada disso tolhia a autoridade dominial e, por esta razão, essas ações foram toleradas pelos proprietários de escravos. A tolerância, todavia, mudou com a aprovação da Lei de 1871, que concedeu aos escravos novas prerrogativas legais para a obtenção de liberdade. Desse momento até a abolição, em 1888, senhores e abolicionistas mantiveram-se em severa oposição e tentaram determinar os termos do fim do cativeiro, algo que ecoou no período pós-emancipação.
Dois grupos antagônicos em oposição por conta do encaminhamento da questão servil? Até aqui, nada de novo. A inovação do trabalho de Castilho consiste no espaço dado ao embate entre os abolicionistas pernambucanos e os senhores de escravos daquela região, que, contrariamente ao que já se pensou, resistiram, como muito bem mostra o autor, até os últimos momentos na defesa da manutenção da ordem escravista. No desenvolvimento do livro, salta aos olhos do leitor a dinâmica de lutas políticas em torno da emancipação, ocorrida no Recife, que colocou em embate grupos sociais pró-emancipação e pró-escravidão. Uma das consequências desse tipo de análise para a compreensão histórica é o reconhecimento de que o fim da escravidão brasileira não foi um processo pacífico, mas sim fortemente marcado por um duríssimo conflito ideológico e social. De fato, essa noção atravessa todo o livro e faz com que seu autor lance luz não apenas sobre a mobilização dos abolicionistas, mas igualmente sobre a ação dos proprietários de escravos, algo ainda pouco desvelado pela historiografia brasileira.
É na relação conflituosa entre defesa e condenação do escravismo que Castilho consegue retirar elementos capazes de demonstrar que, nos últimos vinte anos do Império, houve transformações de fundo na cidadania política brasileira. As estratégias de manifestação dos abolicionistas, ao tomarem as ruas ou levarem o problema da escravidão para palcos de teatro, atraíam os diversos estratos da sociedade (inclusive libertos e mulheres), e não apenas uma restrita parcela dela. Desse modo torna-se possível constatar que o movimento abolicionista teve um forte caráter popular e, ao permitir o engajamento político do povo, mudou o exercício da cidadania política no Brasil. Desde jovens estudantes (alguns inclusive começaram sua carreira política na defesa da abolição) até antigos escravos, todos passaram a ter uma chance de participar nos rumos políticos e sociais do país. Tal prática política extrapolava muito as condições necessárias para o exercício do voto e as limitadas perspectivas de ascensão social e aquisição de direitos civis garantidas aos africanos libertos e aos seus filhos pela Constituição de 1824.
A agência escrava ocupa igualmente um lugar de relevo no livro. Ao perquirir os arquivos remanescentes do Clube Abolicionista e da Nova Emancipadora, associações abolicionistas do Recife, o historiador constatou que os escravos tiveram intensa participação no processo de emancipação. Por meio do pecúlio, oficializado desde 1871, os cativos contribuíam sobremaneira com o valor corresponde à compra de sua liberdade. Com efeito, os escravos tipicamente manumitidos pela primeira associação, as mulheres, chegavam a custear quase 70% do valor de suas alforrias. Além disso, os escravos, também na sua maioria as mulheres, peticionavam ao governo pela sua liberdade ou pediam empréstimos para comprá-la.
A açucarocracia escravista também se organizou, mas sem a participação dos setores populares da sociedade. De modo a defender seus interesses, em 1872, criou a Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco, “a primeira vez que os fazendeiros se mobilizaram politicamente como ‘fazendeiros’”. Contudo, vale mencionar que, possivelmente, essa não foi a primeira mobilização dos fazendeiros pernambucos enquanto grupo político. Em 1871, seguindo de perto seus pares do Vale do Paraíba, que enviaram representações ao parlamento imperial contra o ventre livre, os senhores de Pernambuco também endereçaram ao legislativo, pela via peticionária, sua oposição à emancipação escrava. Os proprietários pernambucanos chegaram a organizar dois Congressos Agrícolas, em 1878 e 1884, para discutirem os rumos econômicos da região. No primeiro, inclusive, a grande preocupação foi em como utilizar o trabalho dos ingênuos.
Ligando a análise regional à macropolítica imperial, Celso Castilho ainda demonstra como a abolição da província do Ceará, em 1884, impactou tanto o movimento abolicionista quanto os senhores de Pernambuco. No primeiro caso, houve um adensamento da participação popular e, no segundo, uma maior organização e um repensar da ação dos proprietários de escravos. De fato, foi nesse contexto que surgiu a primeira associação exclusivamente feminina, a Ave Libertas, e que as fileiras do partido republicano engrossaram. Mas não apenas: o auxílio a fugas de escravos para o Ceará, que já tinha áreas libertas desde 1883, tornou-se uma realidade premente. Tudo isso teve grande repercussão nas eleições, também em 1884, dos deputados ao Parlamento. Realmente, os candidatos manejaram do inicio ao fim da campanha os temas emancipacionistas.
Na esteira dos acontecimentos na província vizinha, os proprietários de escravos passaram a se organizar em clubes agrícolas e estruturam o segundo Congresso Agrícola do Recife. Nele, a grande preocupação dos senhores foi evitar que o radicalismo cearense se enraizasse em Pernambuco. Assim, eles se dedicaram a diminuir publicamente a importância do movimento cearense de tal forma a subvalorizar a participação popular. Na lógica dos senhores de engenho de Pernambuco, o abolicionismo havia se tornado um delírio.
Num salto qualitativo de análise, que nos permite a compreensão geral do livro, Celso Castilho demonstra que a abolição, cada vez mais intensa e com maior participação popular no decorrer da década de 1880, também animou as preocupações políticas dos fazendeiros quanto à manutenção da ordem social. Em Pernambuco isso se deu, sobretudo, por conta da ação do Clube Cupim, que até 1888 auxiliou na fuga de escravos em direção ao Ceará . A aceleração da abolição, que ocorria na frente de seus olhos, implicava a erosão da secular influência política dos senhores de engenho pernambucanos. Reavaliando as suas estratégias, os fazendeiros da região passaram a anunciar, no final de 1887, manumissões condicionais aos seus escravos, isto é, os cativos teriam a liberdade garantida mediante a prestação de serviços aos senhores durante certo intervalo de tempo.
A tentativa, por parte açucarocracia, de manutenção da ordem era apenas um prelúdio da ação que eles tomariam no pós-emancipação. A antiga elite escravista, junto aos setores republicanos, ao encetarem o golpe que culminou com a proclamação da República, construiu uma narrativa própria da abolição em que evocaram o caráter parlamentar do fim da escravidão e evitaram a memória do engajamento político popular. Não permitir que uma ampla participação do povo, agora adensado pelos escravos libertos em 1888, interferisse novamente nos destinos do país passou a ser o mote desse grupo. Assim, a construção da memória da abolição teve um intenso caráter ideológico e pautou a reformulação da estrutura política brasileira no advento da República. Nas palavras de um contemporâneo, dirigidas na última eleição do Império a um adversário que se opunha à participação popular na política: “Ele sempre tolerou a escravidão e agora ele quer uma ditadura sobre o branco proletário e sobre o descendente do escravizado, porque isso de governo não é para todos, mas só para quem é fidalgo, rico, e ainda hoje tem saudades dos bons e bucólicos tempos das senzalas e dos eitos para os quais quer fazer a pátria voltar” (p.189).
Por fim, vale salientar a falta de um exame mais detido acerca da economia e da demografia açucareira da província pernambucana na segunda metade dos oitocentos. Castilho não menciona que, a despeito da concorrência cubana, as exportações pernambucanas de açúcar mais do que dobraram entre 1860 e 1880. Assim, apesar de não representar o primeiro produto da pauta exportadora do Império, a importância da produção açucareira e, portanto, de seus produtores não era desprezível naquele momento. No que diz respeito à mão de obra empregada na produção de açúcar em Pernambuco, que mesclava livres e escravos, o historiador, a despeito de citar alguns dados demográficos, não fornece ao leitor qual a proporção do braço escravo em relação ao livre. Algumas estimativas sugerem que, em 1872, havia cinco trabalhadores livres para cada escravizado nas plantations açucareiras da região. Dado o avanço abolicionista na década de 1880, essa proporção favorável aos livres certamente aumentou. Já se argumentou, inclusive, que, em virtude do avanço do trabalho livre, a abolição praticamente não afetou a produção daquela província. Esses dados, sugerindo que a Pernambuco do final do século XIX tinha uma pujante economia com o concurso cada vez menor do trabalho escravo, reforçariam a conclusão de Castilho de que a elite agrária da região, mais do que lutar contra o fim da escravidão, tinha um projeto de manutenção da ordem que o movimento abolicionista colocava em perigo.
Bruno da Fonseca Miranda – Departamento de História da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: bruno.fonseca.miranda@gmail.com
CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian political citizenship. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2016. Resenha de: MIRANDA, Bruno da Fonseca. Novas perspectivas para o estudo da abolição brasileira: cidadania e ação senhorial. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 360-365, jan./abr., 2017.
A Morte da Tradição. A Ordem do Carmo e os Escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889) | Sandra Rita Molina
Ao longo das últimas três décadas, historiadores trataram o tema da escravidão com perspectivas que rediscutiram a atuação dos cativos dentro do regime escravista brasileiro, lançando luz sobre os diversos episódios em que a agência escrava se revelou crucial para entender o cotidiano, as formas de resistência e as vitórias (ou derrotas) desses personagens nos processos históricos do período colonial ou do Império do Brasil. Além do próprio ineditismo de tal abordagem, essa nova visão historiográfica desconstruiu a visão de que os escravos eram personagens sem vontade e totalmente submissos às vontades senhoriais.
Dentro dessa abordagem, autores como Maria Helena Machado, Sidney Chalhoub, Silvia Hunold Lara, Robert Slenes, Jaime Rodrigues, Beatriz Mamigonian, Keila Grinberg e Ricardo Salles, entre outros, descrevem como personagens subalternos atuavam em suas realidades, demonstrando um grande conhecimento de sua condição, abrindo a possibilidade de confrontá-la e, em muitos casos, reconstruí-la conforme suas vontades. Estamos falando de marinheiros, cativos urbanos, escravos de ganho, forros e famílias que ao longo de suas vidas construíram sua própria história. É dentro desse grupo de autores que Sandra Rita Molina se insere com uma obra baseada em extensa pesquisa.
Ao contrário dos outros autores citados, Sandra Rita Molina nos apresenta um mundo diferente e, até aqui, pouquíssimo analisado pela historiografia brasileira, que é a realidade dos escravos das ordens regulares, mais especificamente, dos escravos pertencentes aos Carmelitas Calçados. Esse novo mundo é explorado através das “relações desenvolvidas entre os frades e seus escravos em meio a um contexto de repressão legislativa empreendida pelo Estado Imperial” (p. 22). Dessa forma, a autora apresenta ao longo de seu trabalho uma tentativa de aproximação dos debates historiográficos sobre o abolicionismo e o debate em torno das relações entre Estado e Igreja, examinando qual é o lugar do clero regular dentro da esfera política e quais foram as alianças realizadas nesse processo.
Como não poderia deixar de ser, além do forte diálogo com a historiografia em torno da condição escrava e do abolicionismo, Molina apresenta grande contribuição para o debate em torno da questão da Igreja no Brasil ao contradizer a visão de que a Igreja era um espaço homogêneo e sem rupturas, uma instituição pura e injustiçada pelos desmandos do poder temporal. Molina também apresenta uma leitura alternativa às interpretações historiográficas do CEHILA (Centro de Estudos da História da Igreja na América Latina) e até mesmo com de pesquisas acadêmicas recentes. Ao contrário da maioria dos estudos disponíveis, a autora reconstitui o mundo das ordens regulares focando não apenas na perseguição da igreja pelo Estado e a consequente submissão eclesiástica aos decretos imperiais, mas sim nas relações, barganhas e atitudes cotidianas dos frades da Ordem com as diversas instâncias do Império, da própria Igreja e com a comunidade leiga.
Molina apresenta seu argumento em quatro capítulos bem estruturados e que impressionam pelo minucioso trabalho de pesquisa. O primeiro capítulo (“O mundo entre os muros do convento”) nos apresenta um importante panorama da vida dentro do claustro e da vivência com a sociedade que orbitava em torno desses prédios. O panorama permite que o leitor apreenda as estratégias religiosas para construir resistência às pressões externas, manter privilégios e governar a ordem como um todo. A relação das ordens regulares com o Estado Imperial sobressai no capítulo. Molina faz todo um percurso expositivo para que o leitor entenda a situação dessas ordens no século 19, apontando as diversas medidas que a Coroa tomou para a supressão das instituições religiosas, com um interesse especial para as que detinham grandes patrimônios, como o caso dos próprios Carmelitas Calçados e dos Beneditinos. Apesar da perseguição, são notórias as estratégias das ordens para fugir à investida, utilizando algumas vezes a própria estrutura e o discurso do Estado Imperial a seu favor (p. 88).
O capítulo 2 (“Uma Gomorra na Corte. Como o Estado imperial deveria agir com o clero regular?”) apresenta o outro lado da história, a perspectiva do Império no processo de supressão das ordens. Ao longo desse capítulo, o leitor se depara constantemente com as diversas revisões da legislação e das decisões políticas do Estado para conseguir seu objetivo máximo, que é a tomada do patrimônio das ordens regulares. As estratégias são as mais variadas. Incluem denúncias de desmoralização do clero, visto que para o Governo Imperial “a decadência e a ineficiência testemunharam que as Ordens traíram um pacto tradicional entre o Estado e estas Corporações, que previa atuação de benevolência e educação religiosa da população” (p. 120); e até medidas de controle dos bens dessas instituições, através de listagens, censos e regras para a celebração de contratos sobre esses bens. O capítulo também permite que o leitor tenha visão ampla sobre os bens eclesiásticos. Além dos imóveis conventuais e dos imóveis dentro dos centros urbanos, os maiores bens carmelitas eram as fazendas e os escravos sob sua tutela. Para protegê-los, garantindo que o Império não os incorporassem, os religiosos empregavam estratagemas como a realização de contratos de arrendamento das propriedades rurais e dos respectivos escravos.
O capítulo 3 (“Honestas estratégias: o Carmo reorganizando seu patrimônio em função da sua sobrevivência”) nos faz mergulhar ainda mais nas ações dos religiosos para conseguir a manutenção dos bens da ordem, seus privilégios e, consequentemente, a sobrevivência de um modo de viver. Nesse capítulo, aparece um elemento crucial na resistência dos religiosos às investidas do Estado imperial: a comunidade leiga. Desde o período colonial, as ordens religiosas gozaram de grande prestígio frente à comunidade leiga, não sendo incomum o fato de Câmaras Municipais solicitarem a instalação de conventos de franciscanos, carmelitas ou beneditinos em suas respectivas cidades. O cenário não muda ao longo do 19. Mesmo perante todos os problemas relacionados às medidas restritivas do Império e, em alguns setores, as constantes críticas à moralidade do clero regular, a cumplicidade entre leigos e clérigos é ferramenta poderosa para os frades. As relações, porém, eram de via dupla. No jogo de apoio recíproco, proprietários leigos acabavam recebendo o benefício de celebrar contratos com as ordens e usufruir das propriedades ou dos cativos da Santa.
O capítulo 4 (“Frades feitores e os escravos da Santa”) centra a sua discussão na relação dos frades com os cativos. Os momentos de convivência pacífica entre uns e outros eram frutos de várias concessões aos cativos por meio de práticas cotidianas que chegavam a ignorar os ordenamentos do Capítulo Provincial (p. 265). Um exemplo notável do espaço de autonomia concedido aos escravos é o caso de fazendas como a de Capão Alto em Castro no Paraná. Referências apontam que “essa fazenda ficou mais de setenta anos sob a administração direta e livre dos escravos” (p. 272/273). Obviamente, a autonomia se dava após “longos períodos de construção de cumplicidade em um mesmo espaço” (p. 266).
A autonomia dos cativos podia ser afetada com arrendamentos, cada vez mais comuns, devido a contexto de repressão à Ordem somada à carência de braços na lavoura depois do fim do tráfico negreiro transatlântico. Nesse contexto, a autora traz outra importante contribuição para a historiografia acerca da escravidão, especificamente ao pensarmos nas estratégias empreendidas pelos cativos para conseguirem fazer valer seus interesses. Alguns autores, como Lucilene Reginaldo e Antônia Aparecida Quintão, que tratam sobre a religiosidade negra e abordam em suas obras a questão da relação com os santos patronos das irmandades religiosas, apontam que eram comuns os irmãos dessas associações criarem uma aproximação ao nível de parentesco com o patrono. No caso dos escravos da Santa, essa lógica reaparece, mas transformada devido aos interesses dos cativos. Dentro de suas experiências, “incorporaram a ideia de que os frades eram apenas uma espécie de feitores e de qualquer decisão afetando seu cotidiano, deveria partir diretamente de sua senhora, que, no caso, era uma Santa” (p. 277), conseguindo dessa forma um forte argumento frente à opinião pública para conseguir seus objetivos. Do outro lado desse jogo, os frades detinham interesse em manter uma relação amistosa com seus cativos, pois essa era uma forma consistente de fruir seus privilégios tanto dentro como fora dos conventos. “Este processo colocou em muitos momentos escravos e senhores do mesmo lado, procurando impedir o fim do mundo que conheciam”, observa Molina nas considerações finais de seu trabalho.
A morte da tradição traz elementos complexos que contribuem para as diversas correntes da historiografia brasileira sobre a escravidão e igreja no Império do Brasil. O livro não apenas se soma à narrativa da história social que entende os escravos como personagens cujas lutas são peça-chave no quebra-cabeça que é o escravismo no Brasil. Explorando tópicos como autonomia escrava, estratégias clericais para manutenção de privilégios e ramificações das relações sociais de ambos os grupos, A morte da tradição ilumina o mundo clerical de uma maneira que as macro-análises da relação Estado-Igreja não conseguem capturar.
Rafael José Barbi – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Guarulhos – SP, Brasil. E-mail: rafael_barbi@hotmail.com
MOLINA, Sandra Rita. A Morte da Tradição. A Ordem do Carmo e os Escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2016. Resenha de: BARBI, Rafael José. Catolicismo, escravidão e a resistência ao Império: Um outro olhar. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 366-370, jan./abr., 2017.
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No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres | Jaime Rodrigues
Esta resenha começa com uma advertência, figura literária comum (como os modernistas tão bem sabem) em obras de autores pós-tridentinos, que a incluíam essencialmente para se exonerarem de responsabilidades, ao sustentarem a sua boa ortodoxia e ao afastarem de si e da sua obra todas as suspeitas de heresias religiosas ou políticas que pudessem fazer tremer trono e altar.
A minha humilde advertência não se rege pelas necessidades políticas ou religiosas, mas pela honestidade intelectual. A resenha que se segue é de autor cujo trabalho se centra no estudo da história religiosa nas vertentes institucional, cultural e das mentalidades, pelo que se afasta do perfil conhecido do nosso caríssimo Jaime Rodrigues.
Aproxima-nos a dedicação ao Atlântico enquanto espaço histórico de análise, e o interesse dedicado aos povos africanos (afinal tivemos por denominador comum a pertença ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto) e ao seu papel neste mundo definido pela língua portuguesa. A minha leitura é pois de alguém que, não sendo especialista nas áreas trabalhadas, está no entanto familiarizado com tema e com o autor e como tal atreve-se (humildemente) a resenhar. Perdoe o leitor (e o próprio autor) as limitações e as falhas de tal processo.
O primeiro contacto pessoal que tive com o autor de No Mar e em Terra – História e Cultura de trabalhadores escravos e livres foi no ano de 2013, quando de uma conferência que este proferiu na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Jaime Rodrigues teve então o ensejo de nos deliciar com a apresentação do seu projeto de pesquisa sobre a marinhagem escrava e liberta nos navios Atlânticos dos séculos 18 e 19.
Recordo não apenas o entusiasmo do palestrante sobre o tema que então o ocupava, mas também o daqueles que tivemos o privilégio de o ouvir dissertar, mesmo os que vindos de outras áreas de investigação (como eu próprio) e que rapidamente foram contagiados pelo interesse e novidade do que era apresentado. Jaime Rodrigues demonstrou a importância da pesquisa para um melhor conhecimento da marinhagem atlântica lusófona, em particular o papel quase ignorado dos escravos e libertos e das questões complexas que se lhes punham no tabuado dos navios portugueses que cruzavam o Mar Oceano.
Ao modernista que o ouvia foi difícil não ouvir o apelo de uma pesquisa que procurava recuperar o papel dos africanos neste universo tão particular e que foi elemento estrutural num Estado com características talassocráticas como o era o português da Época Moderna. Particularmente fez-me recordar, como ressonância longínqua, as linhas de Rui de Pina em que descreve a chegada de Diogo Cão ao reino do Congo e de como “…os negros da terra se fiavam delle, e seguramente entravam, já nos navios…” que os trariam a Portugal e à corte de D. João II. Dura ironia certamente.
Três anos passados sobre tal apresentação, e ao folhear o mais recente fruto do trabalho de Jaime Rodrigues (aquele que aqui se tenta resenhar), tive a felicidade de reencontrar (como capítulo terceiro do livro) o tema daquela apresentação de projeto, agora já convertido num produto final. O capítulo, antecedido por um sólido trabalho de enquadramento e de problematização, oferece ao atual leitor as mesmas premissas que nos tinham sido apresentadas em 2013 e a que se juntam agora os passos de pesquisa, os dados por ela coligidos e que sustentam a validade e a importância das conclusões.
O rigor científico e a erudição do trabalho do autor, não apenas neste como nos demais capítulos do livro, e que são naturalmente apanágio de um investigador e docente que conta com uma trajetória sólida e reconhecida, são o garante da qualidade do que nos é oferecido.
Como o prefácio de João José Reis e a própria apresentação do autor esclarecem, No Mar e em Terra é uma coletânea de diferentes artigos produzidos ao longo dos anos e dos quais resultam os sete capítulos da obra. Procurou o autor reunir num só volume trabalhos que andariam dispersos mas cuja afinidade de temas aconselhava a congregar, com toda a coerência, num único volume. Como já o prefaciador salienta, a atualização de bibliografias e a reflexão paralela que Jaime Rodrigues faz sobre a validade dos resultados do seu trabalho à luz da mais recente pesquisa histórica colocam-nos perante um livro que não apenas reúne como atualiza a pesquisa que o autor vem desenvolvendo ao longo do seu percurso profissional.
Com um arco temporal de abordagem que vai do século inicial da expansão marítima portuguesa até ao ainda muito próximo século 19, estes trabalhos encontram o seu fio condutor comum na geografia atlântica e no enfoque nas questões sociais geradas em torno das questões do trabalho (no mar ou em terra) e do papel e lugar dos escravos e libertos africanos neste mundo Atlântico lusófono.
Desde meados do passado século que as historiografias portuguesa e brasileira (e não só) têm dedicado um olhar cada vez mais interessado e aprofundado à importância econômica e social do mundo Atlântico português. O campo tem-se revelado vasto e fértil, as abordagens são múltiplas e vão-se renovando sistematicamente. Ultrapassadas as tradicionais abordagens de história essencialmente política, cujas vicissitudes do devir histórico faziam acentuar as diferenças, tornou-se possível aos acadêmicos compreender a importância dos elementos comuns.
Este é aliás o postulado do autor, bastante notório na introdução ao 2º capítulo, onde sustenta precisamente que uma análise histórica que tenha por foco o Atlântico não deve simplesmente fechar-se na experiência histórica dos homens do norte Atlântico (como fará a historiografia anglo-saxônica) mas perceber o que no conjunto dos territórios mediados por este oceano é elemento comum e pode ser analisado como tal.
Trabalho de um historiador representante de uma academia situada no sul Atlântico, como o Brasil geograficamente se situa e culturalmente se entende (pelo menos de um modo geral), a pesquisa de Jaime Rodrigues evita a tentação de centrar geográfica e humanamente a pesquisa na “sua” metade do Oceano.
Ainda que correndo o grave risco de cair em anacronia, seria interessante equacionar o entendimento que Jaime Rodrigues (bem como os historiadores que partilham do seu entendimento) tem do mundo Atlântico, como uma geografia histórica que é unida, e não separada, pelo oceano, com a visão que a civilização Romana tinha do mar Mediterrânico, o de um mar que mais não era que uma plataforma distribuidora que unia os limites do mundo latino que o rodeavam, e não a fronteira líquida em que se converteu a partir do século 7 e da expansão do mundo islâmico.
A amplitude da perspectiva na abordagem histórica, que também é perceptível na internacionalização do autor (já mencionei a sua participação num centro de investigação ligado à Universidade do Porto), é reforçada pelas fontes e pela bibliografia que utiliza na elaboração dos diversos trabalhos que formam este livro.
Será o caso da utilização que Jaime Rodrigues faz dos fundos dos arquivos históricos portugueses, onde trabalha com documentação que lhe permite contribuir para uma melhor percepção desse espaço Atlântico que é o cenário da sua pesquisa, e que se nos apresenta como um saudável desafio à própria academia portuguesa para que aprofunde os estudos sobre a questão laboral dos africanos nos contextos do mundo lusófono Atlântico.
É uma forma de acentuar o diálogo enriquecedor que o autor já mantém com os investigadores e os centros de investigação portugueses, onde as pesquisas focadas no universo marítimo estão em crescimento, nomeadamente – no que à Universidade do Porto e ao seu Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) respeita – com pesquisas em torno dos estudos dos portos e das comunidades marítimas, ou das redes comerciais dos primeiros séculos da modernidade, em que o comércio transatlântico tem um papel nada desprezível.
Também uma rápida leitura da listagem bibliográfica utilizada permite alargar esta compreensão do diálogo e inserção internacional do autor, ao colocar-nos perante bibliografia ampla e significativa para os temas abordados (aliás, como já mencionado, foi especialmente atualizada para esta edição), com uma notória e expressiva presença de bibliografia portuguesa e anglo-saxônica da mais recente produção.
Salienta-se o entendimento preciso que o autor tem sobre o universo que trabalha, bem como a diversidade e relevância das fontes e bibliografia que utiliza, para acentuar o fato de esta obra não ser de interesse circunscrito e localizado. Jaime Rodrigues organizou esta sua coletânea de textos numa gradação variável de perspectivas de âmbito geográfico e cronológico que nos permitem, sob a mesma linha de entendimento, ver diferentes graus de abordagem.
O autor aborda desde pesquisa que poderemos designar como de história local e regional (o estudo centrado na Fábrica de Ipanema, no capítulo sexto), ou com uma natureza temporal muito precisa (como o estudo sobre os escravos que tentaram obter a sua liberdade por recurso à Constituinte Brasileira de 1823, capítulo quarto), a estudos bastante mais dilatados no espaço e no tempo.
Com uma orgânica que segue inteiramente o plasmado no título, o livro pode-se dividir entre os capítulos que situam a sua análise no Mar Atlântico (os três primeiros capítulos) e os que a situam em Terra (capítulos quarto a sétimo).
O primeiro conjunto de artigos que supra se menciona apresenta três diferentes abordagens ao universo dos marinheiros Atlânticos e a questões culturais, materiais e laborais que se desenvolviam em alto-mar.
O primeiro capítulo introduz um interessante estudo no domínio da cultura marítima criada pelos marinheiros Atlânticos, que se apresentam como criadores, promotores e conservadores de patrimônio imaterial, num estudo dedicado aos ritos de passagem do equador, analisados entre os séculos 16 e 20, com testemunhos de autores oriundos das mais diversas nações que cruzam o mar Atlântico.
O capítulo sequente introduz-nos a uma das questões materiais mais relevantes na vida marítima, com consequências diretas na própria sobrevivência dos mareantes: Jaime Rodrigues oferece-nos um estudo sobre a relação entre alimentação e saúde a bordo dos navios que cruzavam o Atlântico, erguido sobre a análise cruzada das descrições de viajantes europeus e dados recolhidos em arquivos portugueses.
Salienta-se, num tema já tratado anteriormente pelo autor na sua tese doutoral e que agora retoma, a sua abordagem (no ponto III) à questão do conhecimento empírico gerado pela experiência de mar, uma verdadeira cultura prática marítima colocada ao serviço da preservação física dos homens do mar (nomeadamente no tratamento do escorbuto), e a importância desse conhecimento contra o qual se levantava a desconfiança dos oficiais médicos. Uma experiência aliás que transpunha para a alimentação a bordo todo o conhecimento novo que se obtinha de alimentos desconhecidos dos europeus pré-modernos e que as viagens de navegação Atlântica somaram à sua cultura material.
O terceiro capítulo, fruto da pesquisa que se menciona no início desta resenha, encerra o conjunto de trabalhos especificamente dedicados ao universo marítimo, cedendo passo aos trabalhos “terrestres”, conjunto de quatro trabalhos que têm por elo comum os trabalhadores escravos e libertos.
O capítulo quarto introduz-nos às tentativas de escravos de obterem a sua liberdade por recurso à primeira constituinte brasileira, cuja memória o autor recupera dos fundos do arquivo parlamentar. Demonstra materialmente como a retórica que acompanhou a emancipação política do Brasil teve eco entre a população escrava, que do recurso ao judicial e às novas autoridades políticas procurou obter a sua liberdade, anseio que soçobra ante o primado (próprio de um regime liberal) do direito à propriedade.
Se o quinto capítulo analisa e contextualiza criticamente a proposta teórica apresentada por um acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, logo nos primeiros anos desta instituição, em que defende a substituição da mão de obra escrava africana (que advoga incivilizável e até fonte de barbarização) por indígenas brasileiros “civilizados”; já o sexto capítulo vai no sentido oposto, passando dos debates teóricos sobre a natureza do trabalhador escravo africano à materialidade da situação do trabalhador africano livre em contexto industrial.
Com um artigo sobre os africanos que alcançavam a liberdade quando compreendidos na lei de 1831 que proibia o tráfico de escravos para o Brasil, Jaime Rodrigues analisa como a adoção de uma prática comum em estados com tradição histórica de escravatura, de colocar homens livres na condição de trabalhadores forçados, se desenvolve na fábrica de ferro de Ipanema, em São Paulo, análise que insere numa aprofundada contextualização e que termina urgindo por maiores pesquisas sobre o tema.
O último artigo desta coletânea avança numa direção diferente, e apresenta uma reflexão diacrônica sobre o modo como o preconceito contra África e os africanos assumiu um importante papel na construção de um discurso historicamente duradouro que atribui ao continente e aos seus filhos, muitas vezes transportados forçadamente e na pior das condições, a condição de fonte epidêmica, uma leitura que Jaime Rodrigues situa inicialmente no presente, para recuar nos séculos e demonstrar a sua constância.
Reunindo textos publicados entre 1995 e 2013, esta coletânea encontra um fio condutor que nos conduz à reflexão da importância comum do mundo Atlântico, e do papel que na sua construção tiveram os africanos, escravos e livres, e de como esse papel foi sendo acompanhado de incríveis demonstrações de preconceito e processos de subalternização; reflexão que o autor situa muito bem entre os trabalhos produzidos por esta área de pesquisa em constante expansão.
Ao mesmo tempo que nos apresenta os resultados do seu competentíssimo esforço, Jaime Rodrigues apresenta novas interrogações e apresenta linhas possíveis de pesquisa que apenas nos faz desejar que prossiga, sem mais demoras, o seu trabalho.
Nuno de Pinho Falcão – Universidade do Porto, Porto, Portugal. E-mail: nusfal@hotmail.com
RODRIGUES, JAIME. No mar e em terra: história e cultura de trabalhadores escravos e livres. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: FALCÃO, Nuno de Pinho. O Mar que nos une: trabalho, escravos e libertos no Atlântico Moderno e Contemporâneo. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 371-376, jan./abr., 2017.
Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e ‘outsiders’ no ocidente tardo antigo e medieval / Ágora / 2017
O dossiê temático desta edição, intitulado “Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e outsiders no Ocidente tardo antigo e medieval”, teve como proposta, e objetivo principal, reunir trabalhos que discutam a História do Ocidente tardo antigo e medieval, incluindo estudos sobre o pensamento. Foram aceitos trabalhos sobre todos os tipos de debates, polêmicas e tensões entre poderes em conflito, maioria e minorias, Igreja e dissidentes, que enfoquem os temas tratados.
O primeiro artigo é de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior e versa sobre um gênero literário, a Narrenliteratur (literatura dos insensatos), cujo principal objetivo era advertir o homem de então dos perigos de uma nova instância reguladora do orbe, não sendo a Igreja. Sebastian Brant com seu Das Narrenschiff (A nau dos insensatos) critica os desvios de então, personificando os agentes sociais como insensatos, que se deixam levar por novos modelos de comportamento. O espaço é o Sacro Império e o o recorte temporal é o século XV.
O segundo artigo é de autoria de Ana Paula Tavares Magalhães (USP), que também coordena este dossiê e trata do franciscanismo, um tema que tem reaparecido e gerado interesse na academia e na sociedade. Como ela explica, trata-se de uma “[…] controvérsia fundamental no interior da Ordem Franciscana ao longo do século XIII e parte do século XIV que opôs duas formas de interpretação da regra: ao passo que os “Conventuais” eram defensores de uma observância ampla, os “Espirituais” preconizavam a observância estrita, conforme o que imaginavam ser o projeto original de Francisco”.
O terceiro artigo nos vem do Paraná e também trata do franciscanismo. É de autoria de Angelita Marques Visalli e seu tema enfoca um dos espirituais franciscanos, nos apresentando uma abordagem sobre o personagem Jacopone de Todi (1236- 1306) a partir das relações de poder tanto institucionais (relação com o papado) como pessoais. Alocado na Itália medieval, no século XIII e início do XIV e no auge do conflito entre conventuais e espirituais. Faz, portanto um conjunto, com o artigo anterior, pois elabora um estudo de caso meticuloso, com análises de textos em italiano medieval e reflexões inéditas sobre este personagem.
O quarto texto é de um colega que colabora como nosso grupo de pesquisa há mais de uma década, sendo especialista em Inquisição e autor de alguns livros. Trata-se de Geraldo Magela Pieroni (UTP/PR) em conjunto com Alexandre Martins, doutorando em Filosofia (PUC/PR). O artigo denominado “Heréticas à margem: os estabelecidos inquisidores e as bruxas outsiders” faz um interessante contraponto entre a teoria de Elias e Scotson e as inter relações entre inquisidores e as mulheres acusadas de bruxaria. Como nos dizem os autores: “Muitas mulheres foram acusadas de práticas desviantes que maculavam a ortodoxia religiosa. Quem determinava estas condutas consideradas fora da lei? O que legitima a criminalização de um grupo acusado de heterodoxo? As leis são filhas do tempo no qual foram produzidas e, portanto, é inequívoco o embate entre duas visões de mundo, de um lado, a concepção erudita dos juristas e teólogos os quais definem situações e comportamentos como “certos” ou “errados”; e do outro, a da cultura popular do povo supersticioso”.
O quinto artigo nos vem de um dos discípulos do homenageado neste dossiê, que atingindo a titulação de doutor, pode homenagear seu mestre e amigo com esta publicação. Trata-se de Germano Miguel Favaro Esteves (UNESP/Assis) com seu artigo: “Entre a fé e o pecado: o olhar feminino na Incipit Obitvs cvivsdam Abbatis Nancti” que através da análise de um clássico da hagiografia do período visigótico, a obra “Vida dos Santos Padres de Mérida” faz uma análise da aguda misoginia clerical do personagem Nanctus. O tema é muito contemporâneo, mesmo sendo da Antiguidade Tardia e espacialmente alocado no reino visigótico, pois mostra a visão eclesiástica da malignidade da mulher e dos riscos que elas apresentam a um homem santo.
O sexto artigo, alocado na História das Mulheres enfoca a contribuição de uma mulher à cultura medieval, mostrando a participação destas na sociedade. O artigo vem do nordeste e é de autoria de Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB) e se denomina: “As memórias de Leonor López de Córdoba (1362/23-1430): inaugurando linhagens”. Nas palavras da autora trata-se de: “[…] obra escrita nos primeiros anos do século XV e considerada a primeira autobiografia em castelhano. Dada a importância desta obra, tanto do ponto de vista histórico, quanto literário, o estudo busca evidenciar a contribuição das mulheres nos estudos sobre gêneros autobiográficos […]”.
O sétimo artigo é de Mario Jorge Mota Bastos (UFF/Niterói/RJ) e se denomina: “Estabelecidos e outsiders na medievalística contemporânea”, nos traz reflexões sobre o tema no âmbito da historiografia. O autor visita a escrita da história recente, nos colocando a percepção dos europeus, em relação aos medievalistas de outros continentes e suas contribuições. Indaga e reflete sobre a visão de quem vive nos espaços outrora medievais, em relação a nós e outros como nós, e a nossa obra desenraizada, já que não tivemos medievo. Mário questiona, provocando a polêmica: “[…] Mas, será que de fato lhes pertence, de alguma forma superior ou específica, o “passado” em questão? Seremos, todos nós ‘outros’, outsiders ao promovermos a medievalística desde as “periferias” do mundo contemporâneo?”.
O oitavo artigo também vem da UFF (RJ) e é de autoria de Renata Vereza e se denomina: “Revendo a ideia de tolerância: os contornos da marginalização das comunidades mudéjares castelhanas no século XIII”. Um artigo que busca refletir sobre as relações dos castelhanos cristãos com os muçulmanos dos territórios ‘reconquistados’ pelos reis Fernando III e Afonso X, além de outros anteriores e posteriores. A autora revisita o conceito da ‘convivência’ tão caro aos historiadores no período da celebração dos 500 anos da reconquista/descoberta da América (1491/1992). Tenta demonstrar que já havia conflitos e tensões no século XIII e que se tornarão mais fortes no século XVI.
O nono artigo nos traz o segundo discípulo de nosso homenageado, que foi seu primeiro doutorando a defender na UNESP/Assis. Trata-se de Ronaldo Amaral (UFMS – Campo Grande) e que nos apresenta um artigo denominado: “Entre a longa-duração e a ruptura: a consciência mítica medieval apreendida pela dialética do eu e do outro no mesmo”. Traz no artigo uma ampla reflexão da compreensão de mundo no período tardo antigo ( e diria também medieval). Como nós, hoje, podemos entender o homem do passado? Seus códigos, sua concepção do mundo são vistos, por nós através das lentes do presente. O autor sugere: “Contudo, não havendo a possibilidade de encontrar o pensamento e o modus desse pensar do homem do pretérito por ele e nele mesmo, só poderemos apreendê-lo a partir de nós, no interior de nosso próprio espírito, e por meio de uma dialética entre a alteridade e a identidade, quando, sobretudo esta última poderá sobreviver ainda que obnubilada e ressignificada pela primeira”.
O décimo e último artigo é de minha autoria, como coordenador deste dossiê, não poderia deixar de homenagear Ruy de Oliveira Andrade Filho com um texto, mesmo se humilde demais, para tal missão. Como nos conhecemos estudando Isidoro de Sevilha e o reino visigótico de Toledo, não poderia ser outro o texto que agregaria a esta coletânea de autores para homenagear Ruy. Meu texto se denomina: “A ética e a concepção religiosa de Isidoro de Sevilha: o livro das Sentenças”. O artigo analisa a concepção de mundo isidoriana, na qual o mundo é um palco do confronto entre o bem e o mal, Deus e o diabo, chegando a se aproximar de um dualismo inaceitável para a Igreja. Nas palavras do autor, o artigo: “[…] pretende descrever e analisar a visão de mundo isidoriana, vista através do prisma da luta do Bem e do Mal, do confronto entre as boas ações e os pecados, que emana desta obra. A vida humana é o palco da luta das virtudes contra os vícios/pecados (De pugna virtutum adversus vitia). Tudo o que for prazer carnal, é definido como uma armadilha, uma tentação que leva o homem a cair nos braços do Diabo. Para vencer as tentações do Diabo e da carnalidade deve se elevar aos céus, a Deus”.
Ana Paula Tavares Magalhães
Sergio Alberto Feldman
Organizadores.
[DR]What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography | Arthur Alfaix Assis
What is history for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, escrito pelo historiador Arthur Alfaix Assis, é fruto de seu trabalho de doutoramento na Universidade de Witten/Herdecke, na Alemanha. O autor por ele pesquisado, Johann Gustav Bernhard Droysen, um dos grandes nomes da historiografia alemã do século XIX, nasceu no dia 6 de julho de 1808, na pequena vila de Treptow, na Pomerânia, e faleceu em 1884, em Berlim. Criador da Escola Prussiana, estabeleceu referências metodológicas, teóricas e estruturais para a pesquisa em história. Em princípio, com algum respaldo na teoria hegeliana, posteriormente, diferenciando-se claramente desta, submetendo todo material das fontes a exames críticos e filológicos, no senso estrito dos termos. Dentre suas obras, destacam-se História de Alexandre, o Grande, publicada em 1833, que veio posteriormente a fazer parte do livro História do Helenismo, composto por dois volumes, tendo sido o primeiro deles publicado em 1836; História da Política Prussiana, composta por catorze volumes, publicados entre 1855 e 1886, e finalmente, Historik, livro em que apresenta os parâmetros e sistematização da pesquisa e do estudo históricos, e posteriormente, Grundriss der Historik, um resumo explicativo do trabalho anterior de imensa importância, no qual se expõem todos os níveis de procedimentos metodológicos da história enquanto disciplina e enquanto ciência, apresentando de maneira ordenada as diferentes formas de operação historiográfica, a saber: a heurística – Heuristik; a crítica das fontes – Kritik; a interpretação – Interpretation; e a exposição histórica – Topik ou Darstellung. Forma-se, assim, uma valiosa articulação entre metodologia e sistematização histórica, introduzindo no meio científico a ideia da função antropológica da história, excluindo definitivamente qualquer relação com aspectos teológicos. Leia Mais
BRUN, E. Les situationnistes (RH-USP)
BRUN, Eric. Les situationnistes. Une avant-garde totale. Paris: CNRS Éditions, 2014. 454p. Resenha de: RODRIGUES, Lidiane Soares. Desinteresse interessado. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Em 30 de novembro de 1994, Guy Debord suicidou-se em sua casa com um só tiro no peito. Ele tinha 63 anos e uma doença incurável oriunda do consumo de álcool. Àquela altura, o animador da Internacional Situacionista (IS) amargava sua notoriedade, adquirida contra os princípios que orientaram sua produção artística e teórica.
A IS foi fundada em 1957 e autodissolvida em 1972. Inicialmente, reunia alguns pequenos grupos: a) a Internacional Letrista (IL, fundada em 1952), cujos representantes eram Guy Debord e Michèle Bernstein, sua primeira esposa; b) o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista(MIBI, fundado em 1953), cujos representantes eram AsgerJorn, Piero Simondo, Pinnot-Gallizio, Walter Olmo e Elena Verrone; c) a Associação Psicogeográficade Londres, fundada também em 1957, logo integrada à IS por seu único representante, Ralph Rummey. Em linhas gerais, os situacionistas entendiam que a divisão social do trabalho, a especialização das atividades que dela resulta e a decorrente cisão entre profissionais e leigos seriam superadas pela revolução. A “verdadeira revolução” colocaria fim ao reino da escassez materiale instauraria a satisfação plena do homem, tornado autêntico, para o qual seria possível “caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite e fazer crítica depois da refeição (…) sem por isso se tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico”.
Modularam este adágio do jovem Marx em tom próprio, nutrindo-se de outros autores, como Johan Huizinga do Homo Ludens. Imaginavam as profissões e especializações sendo substituídas por uma nova prática: a “construção de situações”, entendida como reapropriação coletiva da história humana e de todas as esferas da vida em conjunto. Elaboraram uma crítica da “representação burguesa da felicidade” e teorizaram a “vida que vale a pena ser vivida”. Esta foi concebida com referência à “vida boêmia”, tal qual resulta do acúmulo de gerações de vanguardas artísticas desde o final do século XIX: recusar a disciplina e a rotina, desembaraçar-se das coerções da reprodução econômica, exercitar a dimensão lúdica, viver aventuras, praticar jogos e lazeres não convencionais, criar conscientemente “situações” intervindo/testando a vida cotidiana.
A jurisdição a respeito da legitimidade deste estilo de vida depurado da degradação burguesafoi construída ao longo do percurso do movimento, variando segundo suas fases. Por um lado, elas são marcadas pela colaboração e concorrência com os representantes de diversas fontes: literárias (especialmente poética);artísticas (pintura,cinema, arquitetura e urbanismo); filosóficas (Feuerbach, Hegel, Marx – por meio de Henri Lefebvre);e político-revolucionárias (reivindicavam, particularmente, a Comuna de Paris e o comunismo de conselhos,1 discutiram muito com Argumentos, e Socialismo ou Barbárie). Se hoje obras situacionistas são evocadas em áreas as mais diversas (das artes plásticas à teoria da revolução), isso se deve a esta diversidade de interesses. Por outro lado, estas fases se caracterizam também por modificações substantivas na morfologia do grupo ede seu público. O crescimento deste último- resultante não prevista tanto de sua movimentação, indo das artes à teoria revolucionária, quanto de sua eleição a profetas em maio de 1968 – conduz o grupo à aporia final impeditiva da manutenção da lógica de integração construída na base do “quem perde ganha”.Eis o objeto do livro de Eric Brun – Les situationnistes. Une avant-garde totale –cuja apresentação é feita a seguir.
“Quem perde ganha” era o princípio gerador das práticas, das criações estéticas e teóricas do grupo, e seu líder carismático, elo entre a IL e a IS, Guy Debord, fez-se fazendo-o.
Segundo Brun,o problema que dá origem ao “quem perde ganha”, isto é, ao desinteresse interessado em ser reconhecido como desinteressado,responde à dificuldade de ser uma vanguarda autêntica nos anos 1950.Tal experimento precisava ser capaz de se proteger tanto da rotinização “pela vida burguesa vulgar e danificada” quanto da consagração que atingiram vanguardas anteriores. Eis uma das fontes da intransigência ética e do forjamento de um estilo de vida que tinha por princípio a austera recusa do sucesso. A rejeição do êxito torna-se o fiador da legitimidade do pertencimento à grade de valores do grupo. Daí, o decreto permanentedos limites“revolucionários” dos outros, animando a busca pela “ultrapassagem” politicamente radical, articulado ao comportamento contra a cultura vigente e ao risco de consagração, tornar-separa os integrantes o regramento máximo a partir da qual se julgam reciprocamente. E, obviamente, controlam-se reciprocamente. Trata-se de uma lógica do desinteresse pelo mundo -que os torna tanto mais interessados uns aos outros quanto mais a satisfação de suas demandas simbólicas depende desta libido socializada -fundada na honra de ser desprezado pelos que não pertencem ao grupo (a sociedade burguesa). Já para os aspirantes a “situs”, aquela régua de radicalismo torna-se uma barreira a atravessar, posto que delimitasse o direito de ingresso no coletivo em que fracassar é ser bem-sucedido (p. 103). Os interessados em ser situs deviam dar provas de seu desinteressenas glórias mundanas, afiançar o gosto não pela arte como parte da vida, mas de exercer “a vida como arte”; e, sobretudo, entrar no jogo paroxístico das negações bem orquestradas – “a poesia só sobreviverá por meio de sua destruição” (p. 149). Por fim, parao líder, o “quem ganha perde” como princípio gerador da prática foi fonte de acumulação e monopolização do carisma, malgrélui-même. É que a dinâmica de ultrapassagem que move a integração e a desintegração dos minúsculos grupos militantes os ultrapassa.
É este modus operandi do militantismo de pequenos grupos que a pesquisa infatigável de Eric Brun disseca ao esquadrinhar o labirinto da negação do status quoe da acumulação de “capital de radicalismo”, ao recuperar a leitura da sociologia da religião de Max Weber proposta por Pierre Bourdieu.2 Nada de se satisfazer, portanto, com o paralelismo fácil das posições do campo religioso no campo da cultura, tão ao gosto de um direitismo ideológico pouco diligente e zombeteiro. O “carisma (do profeta) não explica, [mas é ele que]precisa ser explicado” (p. 10).
A inteligibilidade do percurso que conduz o grupo das artes à políticapressupôs a reconstituição diacrônica e sincrônica da eleição de aliados/ adversários, assim como dos lances de cumplicidade e concorrência dela oriundos. A matéria diacrônica é o eixo da primeira parte do livro – em que o autor procura deslindar “[a]s coordenadas do posicionamento situacionista” – composta por quatro capítulos, a saber: “O envelhecimento social do surrealismo”; “Um novo pretendente à vanguarda: o letrismo”; “A internacional letrista à margem do campo literário”; “Guy Debord ‘na e para além’ da boemia”. O “espaço de posicionamento” se constitui do conjunto de aliados/ adversários a que os agentes se reportam – isto é, com os quais se importam. Esta eleição, por sua vez, resulta de esquemas de classificação do mundo socialmente fabricados pela trajetória social dos produtores e pela história dos campos nos quais suas aspirações são investidas. Então, ao invés de partir de uma definição fixa e normativa de vanguarda, Brun recupera os conflitos para defini-la em perspectiva relacional e histórica.Ao adotar essa abordagem, ele pôde surpreender no programa dos situs o empenho em se diferenciar dos antecessores eleitos.Omovimento apresenta-se como uma vanguarda artística pela filiação reivindicada (futurismo, dadaísmo, surrealismo), pelos princípios de valorização que mobiliza e pelos instrumentos de manifestação pública que emprega. A busca por proteger-se da degradação/consagração orienta tanto o ideal da “beleza como situação” quanto a conversão do grupo em agente que se dirigirá às disputas do subcampo político dos teóricos revolucionários. Tal reorientação consiste na aposta para superar a armadilha da consagração/degradação a que os outros sucumbiram em sua posteridade.
Há muitos exemplos dessa dinâmica, destaquem-sedois. Por exemplo, a reação do jovem Debord face ao balanço do surrealismo proposto por Maurice Nadeau -antigo militante comunista, depois trotskista e frequentador de André Breton. Ele indica o padrão de exigências a que se submeteram os situs:“[a superação do surrealismo se localiza no futuro] e provavelmente em outro plano que o da arte”, afinal, este movimento “antiliterário, antipoético, antiartístico só conseguiu criar uma nova literatura, uma nova poesia (…)”, inferior ao que havia prometido (p. 147). Daí, face ao diagnóstico do desgaste das experimentações formais em poesia, imaginarem a proposição das “situações” como “ação direta na vida cotidiana”, posto que provisórias, vividas verdadeiramente e conscientemente construídas (em oposição ao espontaneísmo surrealista). É pela elaboração de uma “retórica da negação” que Debord vai construindo “uma lógica de ultrapassagem incessante” do que for a convenção artística, e posteriormente teórica e política em vigência. Um segundo exemplo: sendo simpático à recusa de prêmios, seja Nobel seja Goncourt, isso não era suficiente. Uma vanguarda autêntica não deveria merecê-lo.
O mesmo impulso da diferenciação e ultrapassagem, surpreendido na relação diacrônica com os antecessores, orienta o grupo em direção à política. O marxismo das esquerdas revolucionárias externas e adversárias do Partido Comunista Francêsé central, obviamente. Em afinidade com os situs, o jogo eleitoral(mundano do PCF) não é, para elas, “jogo verdadeiro”. Por isso,a “teoria revolucionária”converte-seem centro de sua disputa – num típico movimento de “rechaço ao mundo” – sendo mesmo a base tanto de sua integração (contra o PCF) e de sua cissiparidade em grupúsculos (processo que leva à bolsa de “valores do radicalismo”).3 Como ocorre com frequência, este marxismo depurado da vida política real é a forma por excelência que assume a tomada de posição radical entre produtores simbólicos, conformando o estoque de anti-herois legítimos e de leituras “perigosas” exigidas assim como o banco de citações rotinizadas nesse universo – cujo uso eficaz depende do habitus militante, apto a acioná-los no momento exato e de modo correto.
Assim, se da IL (1952) à IS (1956) e durante os primeiros anos desta “o espaço de posicionamento” se delineia por controvérsias em torno do título de vanguarda cultural – e sua rede internacional se compõe de pintores, críticos de arte e intermediários de galerias de vanguarda -, a partir de 1959, sempre por iniciativa de Debord, é o espaço das revistas intelectuais radicais que passa a interessar a IS. Eric Brun acompanha, por meio da correspondência privada,4 a atenção de Debord voltada à controvérsia entre Arguments e Socialisme ou Barbarie (SouB), a respeito do comportamento da classe operária – sempre menos revolucionária do que gostariam os intelectuais – assim como as suas reações e a inserção da IS neste debate. Orienta-o, é evidente, a lógica da ultrapassagem e o típico procedimento de reenviar o adversário à posição inferior, parcial e insuficientemente revolucionária. Assim, comas duas revistasposiciona-se de acordo com o diagnóstico da apatia da classe operária e,contraArguments,nega a negativa do potencial revolucionário do proletariado;discorda da proposta dos então fundadores da sociologia do trabalho (Touraine, Collinet e Crozier, que assinam a intervenção) defendendo a integração da classe operária no sistema capitalista por meio de sua participação na gestão das empresas.Inicialmente cifradas no que tange à teoria, as críticas a Arguments são explícitas e impiedosas quando esta tratar de arte. O princípio dos situsé acotovelar estabelecidos para entrar no jogo e, uma vez nele, esbofetear quando o assunto for de seu domínio. Na lógica desse espaço, a rivalidade com Arguments favorece tanto a patronagem do então renovador do marxismo francês (modo eufemizado de dizer, “divulgador de Marx a serviço da crítica do PCF”), ou seja, Henri Lefebvre, quanto a aproximação com SouB.Trata-se do ponto alto da análise: a lógica argumentativa e o princípio de criação artística (ultrapassagem/quem ganha perde) dos situs/Debord correspondem à lógica de agrupamento/ruptura e cumplicidade/concorrência,em alta rotatividade e ritmo acelerado. Assim, a aliança com Lefebvre dura um biênio, com SouB, um triênio.
Se é impossível reproduzi-la neste texto, é incontornável assinalar o êxito da poderosa chave explicativa para a cisão entre SouB e IS, e para autodissolução desta última. Trata-se de um problema que ronda o subcampo político em questão e está na origem da ginástica classificatória e da multiplicação de seus labels, fazendo da ultraesquerda um caldo de sopa de letrinhas denominando as organizações múltiplas. Ora, a afinidade de disposições, de palavras de ordem, o mesmo sistema de oposições aos vícios mundanos do PCF etc. ameaçam os pequenos grupos de indiferenciação. Como não podem se confundir com a “direita” da esquerda, diferenciar-se dela é regra. Daí as rupturas públicas, amplificando diferenças criadas a partir de divergências mínimas.
A análise da autodissolução após a consagração e o aumento de efetivos pró-situs decorrentes de maio de 1968 é uma lição de como empatia ao objeto pode trabalhar a serviço da objetivação dele.Brun constata que a lógica da ultrapassagem também entraria aí em operação: Debord desqualifica seus adeptos, rechaça a moda situ, a adesão sem análise da inteligência e sentencia: “só se não precisarmos do grupo temos direito a fazer parte dele”.No limite, segundo “os critérios de avaliação das qualidades pessoais pouco explícitos e objetivamente controlados por Debord”, “só poderia restar um neste grupo: o próprio Debord”. Ao cabo de uma série de eliminações e renúncias, Debord “dá livre curso à disposição aristocrática”, intensificando o desprezo por tudo e por todos a seu redor (p. 424).
Guy-Ernest Debord nasceu em 1931 em Paris, mas passou infância e adolescência nosul da França. Ele perdeu o pai precocemente, foi criado pela mãe e avó. Sua aquisição da cultura literária clássica e legítima não se deu por via familiar, mas escolar, notadamente, por manuais de feitio lansoniano. Na composição global do capital de sua família, o econômico tinha mais peso do que o cultural. Desde muito jovem fascinado pelos surrealistas e inclinado a se expressar literariamente, suas relações com a autoridade escolar vão aos poucos se constituindo de modo desviante e herético. Não há espaço para a delicada reconstituição do habitus realizada por Brun, então que seja digno de nota o seguinte achado documental. Por ocasião das provas do “baccalauréat” ele e um amigo oanunciam, como se fosse um aviso de falecimento num cartão que convidasse para o velório: “é com pesar que informamos o sucesso no bac”. O potencial heurístico de uma “biografia sociológica”5 se entrevê em tudo que Brun é capaz de extrair em termos interpretativos deste registro – que não passaria de uma brincadeira para um pesquisador incauto.
Não se mensura a inovação promovida por Eric Brun quando se desconhece o estado da discussão a respeito da trajetória de Debord e deseu grupo: até então havia publicações de universitários, mas não pesquisas universitárias. Para o primeiro, a intenção explicativa mal alcançava até a simplória transferência do esquema edipiano da vida pessoal para a vida artística: tendo perdido o pai precocemente, Debord teria de matá-lo na vida simbólica – daí a “ruptura” com André Breton. Quanto ao grupo, a discussão não era muito animadora. Como na bibliografia brasileira sobre grupos e intelectuais de esquerda, explicava-se o fenômeno pela quadratura do círculo, isto é, suas intenções pelo que disseram, o que disseram pelo que pensaram, o que pensaram pelo que eram suas intenções.O raciocínio só poderia redundar num cenário idêntico ao dos estudos brasileiros sobre as esquerdas e os marxismos: o número de estudos dedicados ao grupo era o mesmo de “influências” (re)conhecidas, pois o diálogo entre os especialistas reproduzia a disputa dos agentes estudados. Pudera. Em que se pese o interesse da erudição dos radicais por estas “influências”,raciocinar nestes termos consiste em se deixar dominar por disposições cognitivas forjadas na dinâmica dos debates situs – documentando novamente a experiência e renunciando à sua inteligibilidade.
A saída de Brun às leituras teleológicas e anacrônicas, às explicações tautológicas das intenções/influências não redundou no postulado do cinismo pragmático das escolhasestratégicas – pois ele sabe que esta é uma conduta, entre muitas possíveis, a rigor, a mais fácil de ser explicada. Difícil é compreender o interessesincerono desinteresse, a ação verdadeiramente orientada pelo trágico do “quem ganha perde”.Esta elegante mescla de empatia e objetivação não seria tão sagaz sem uma meditada construção do problema de pesquisa. Ora, sendo os vanguardistas críticos sagazes e opositores sistemáticos do processo de diferenciação técnica/social do trabalho, como valer-se da ciência social que não rejeita esse processo por princípio, e pretende, explicando-o, dar conta das condicionantes deste rechaço em suas modalidades estéticas, intelectuais, políticas e organizacionais?
Elaborada por Pierre Bourdieu para dar conta do processo de diferenciação e especialização das atividades sociais, a teoria dos campos e o conjunto conceitual que a acompanha (habitus, campo, capital) pareciam ser desafiados por um grupo como este e por seus homólogos, posto que recusassem precisamente esta direção do mundo moderno e, para fazê-lo, tornassem-se sujeitos multiposicionais.6 Digamos que um pesquisador descuidado fosse, entretanto, encorajado a mobilizá-la para o “caso”. Certamente, depois de pensar sem refletir, diria, satisfeito: “Eureka! Trata-se do campo das vanguardas!”.
Na avaliação de Eric Brun, este tem sido um “uso sistemático e vulgarizado” (p. 6),responsável por um inflacionamento questionável dos “campos” e estéril para os situacionistas.Impregnado pelo espírito atrevido dos situs, Brun recusou este uso, carente de imaginação analítica e de malícia teórica.Se esta vanguarda se constitui na sucessão de oposições – às artes (diacronia/surrealismo) e aos grupos intelectuais (sincronia/Arguments, SB, Henri Lefebvre) – segundo ele, a pesquisa perderia caso se contasse com o enquadramento grosseiro do “campo das vanguardas”. Por isso, ele escolheu localizá-los nas relações de “com/contra” por meio da qual se construíram.
Por tudo o que foi apresentado – e também pelo que não coube neste texto – trata-se de uma pesquisa exitosa, pelos procedimentos adotados,pela laboriosaatenção à minúcia, pela exploração documental, pela reconstituição histórica e domínio pleno da teoria dos agentes que analisa, sem deixá-la se confundir com a teoria que mobiliza na sua análise. Sobretudo no que tange à construção do problema de pesquisa, tem abrangência mais ampla.As questões de método são idênticasàs de quem se dispusesse a mobilizar a teoria dos campos para analisar a produção intelectual de marxistas, as práticas de militantismo teórico, dentre outros. Por isso, vale a pena meditar a respeito delas e, torcendo pela tradução linguística do livro de Eric Brun, trabalhar por suatradução intelectual – infinitamente mais árdua e para a qual esta resenha gostaria de contribuir.
Referências
BOLTANSKI, Luc. L’espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe. RevueFrançaise de Sociologie, 14(1), 1973. [ Links ]
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sérgio (org. e trad.). A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003. [ Links ]
GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne: Éditions Payot, 1997. [ Links ]
HEILBRON, Johan. Comment penser la genèse des sciences sociales?Revue d’Histoire des Sciences Humaines, n.15, 2006/2 .Disponível em: http://www.cairn.info/ revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm. [ Links ]
1Grosso modo, grupos políticos antistalinistas, não trotskistas, que reivindicam um comunismo conduzido direta e democraticamente pela base, constituído por “conselhos de trabalhadores”. Inspiram-se nas experiências da revolução alemã (derrotada em 1918-1919) e, por vezes, no levante húngaro anti-URSS (de 1956).
2BOURDIEU, P. Gênese e estrutura do campo religioso. In. MICELI, Sérgio (org. e trad.). A eco nomia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2003.
3Dispensável dizer que os termos são utilizados pela precisão e não pelo tom pejorativo – que comprometeria qualquer análise desta experiência. Particularmente, “bolsa de valores do radica lismo” é uma ideia que Eric Brun explora a partir do seminal estudo de Philippe Gottraux sobre o grupo de Claude Lefort e Cornelius Castoriadis(GOTTRAUX, Philippe. Socialisme ou barbarie. Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre. Lausanne:Éditions Payot, 1997).
4Recentemente disponibilizada no acervo da Biblioteca Nacional da França e imprescindível para algumas conclusões do trabalho em tela.
5HEILBRON, Johan. Comment penser la genèse des sciences sociales?Revue d’Histoire des Sciences Humaines, n.15, 2006/2, p. 114.Disponível em: http://www.cairn.info/revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm.
6BOLTANSKI, Luc. L’espace positionnel: multiplicité des positions institutionnelles et habitus de classe.Revue Française de Sociologie, 14(1), 1973.
Lidiane Soares Rodrigues – Doutora pelo Programa de Pós-graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo – FFLCH/ USP. Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: lidianesrgues@gmail.com.
BOUREAU, A. Satã herético (RH-USP)
BOUREAU, Alain. Satã herético: o nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Tradução de Igor Salomão Teixeira e revisão técnica de Néri de Barros Almeida., Campinas: Unicamp, 2016. Resenha de: RANGEL, João Guilherme Lisbôa. Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Alain Boureau é um autor versátil, capaz de transitar por temas diversos com enorme erudição e de propor teses originais seja no campo restrito de cada um deles, seja na articulação entre vários problemas e objetos de pesquisa distintos. Em 2004, publicou Satan hérétique: naissance de la démonologie dans l’Occident medieval (1280-1330). Paris: editora Odile Jacob, traduzido em 2016 para o português pelo prof. dr. Igor Salomão Teixeira. A obra é, segundo o próprio autor (que o afirma em seus agradecimentos), fruto de 15 anos de pesquisa e de artigos publicados em periódicos diversos, que lhe propiciaram uma interlocução crítica com inúmeros outros estudiosos do tema da Inquisição, do sabá (reunião de bruxos) e da “caça às bruxas” no alvorecer da modernidade ocidental. Seja pelo estilo da escrita do autor, seja pelo bom trabalho que fizeram o tradutor e a revisora técnica, esta edição brasileira oferece uma leitura agradável e instigante e, o mais importante, uma tese rica e inovadora, indispensável para aqueles que se dedicam não só aos temas supracitados, mas também aos estudos sobre as heresias, as artes mágicas e as perseguições político-religiosas na Europa dos séculos XIII a XVI.
Inicialmente, no entanto, é preciso atentar para que, conquanto o título da obra proponha um recorte espacial genérico (o “Ocidente”, no título original, ou a “Europa”, no título português), Boureau tem um escopo efetivo menos abrangente: a Itália e a França, uma vez que os intelectuais e os tribunais da Inquisição de que fala estão todos no domínio do Reino francês e da Cúria papal que, àquela altura, residia em Avignon. Remissões a outras espacialidades – notadamente a península Ibérica e a Germânia imperial – são feitas, aqui e acolá, mas servem apenas para situar um ou outro argumento e para contextualizar tanto a abordagem de alguma fonte documental quanto a biografia de alguns dos intelectuais citados ao longo das análises.
Como propõe Martine Ostorero,1 a tese de Satã herético pode ser assim resumida: haveria uma continuação entre a demonologia escolástica do final do século XIII e a histeria da perseguição às bruxas a partir do século XV. Teria sido a racionalidade escolástica radical a abrir novos e perigosos campos de reflexão para a posteridade, incluindo a possibilidade de uma relação eficaz e maligna entre homens e demônios. Em outras palavras, Boureau tenta demonstrar que a escolástica é que permitiu a “emergência do sabá”. A investigação do autor se coloca, assim, numa espécie de genealogia do tema em questão.
De fato, em sua introdução, Boureau diz querer superar as explicações correntes sobre o fenômeno “louco” da “caça às bruxas”. Segundo ele, são quatro os grandes esquemas explicativos para a problemática: 1) a bruxaria derivaria de cultos ancestrais; 2) o sabá era uma invenção da própria Inquisição, que a imputava aos condenados por meio de violência; 3) ele seria uma “formação de compromisso” a partir da qual os clérigos transcreviam em termos cristãos esquemas antigos de comunicação com o além e atualizavam as suas representações; 4) a crença nos demônios teria moldado a cultura erudita europeia e marcado o Renascimento. Porém, para o autor, nenhum desses esquemas explica de forma satisfatória o fenômeno. É por isso que, ao longo de seu texto, Boureau enfrenta, de maneira crítica e contributiva, obras consagradas nesse campo de estudos, como a célebre Storia notturna: uma decifrazione del sabba, de Carlo Guinzburg, de 1988.
O argumento de partida do autor é que, até Tomás de Aquino (1225- 1274), os cristãos não teriam temido os demônios, pois os viam submetidos, inescapavelmente, ao poder de Deus; seria possível, inclusive, controlá-los por meio das artes mágicas (dentre elas a alquimia e a necromancia – a arte de conjurar espíritos ou demônios) e, sob a égide da fé, torná-los “servos” e colocá-los a serviço de causas justas e benignas. A mudança de mentalidade e de sensibilidade em relação às forças demoníacas não teria sido produzida por medos e histerias coletivas a partir do século seguinte – com o sofrimento de desgraças amplas e profundas, como a peste – mas, sim, pela elaboração de uma nova antropologia,2 de uma nova ciência sobre os homens que, enfatizando as possibilidades negativas e destrutivas das relações e dos atos humanos, transpôs para o plano espiritual as modalidades de engajamento temporal entre as pessoas e tornou o diabo não mais um mero servo, mas um agente positivo que, através do pacto com um homem, ganhava a capacidade de se fazer presente no mundo e, portanto, de desviar os homens da fé e de conduzi-los a ações malignas (assim como qualquer outro sujeito com o qual um homem pactuava). A partir daí é que se acreditou ser necessário perseguir aqueles que até então praticavam livremente a necromancia, porque os pactos que eles estabeleciam com os demônios passaram a ser vistos como ameaças à cristandade.
Podemos dizer que Satã herético se divide em duas partes: na primeira, que compreende os capítulos 1 a 4, Boureau se debruça sobre as múltiplas bases ideológicas e culturais que permitiram a formação de uma ciência demonológica no século XIV: respectivamente a base jurídica, a sacramental, a pactual e, por fim, a escatológica. Todavia, tais arcabouços não se encontram, no panorama global da tese, separados, portanto, a análise não se subdivide em segmentos estáticos, tornando a obra fragmentária. Todos os aspectos tratados estão atravessados tanto pela filosofia quanto pela teologia escolástica e partem, grosso modo, do mesmo corpus documental, permitindo que o leitor acompanhe o raciocínio do autor sem grandes dificuldades. Em suma, o fio condutor dessa primeira metade do livro é a problemática de como, através de quais mecanismos e manipulando quais elementos da vida política e religiosa baixo-medieval, o papado e os intelectuais que compunham a sua corte vincularam a necromancia à heresia e viabilizaram a instrumentalização do aparato inquisitorial para a perseguição dos bruxos e das bruxas a partir do século seguinte, o século XV.
Nesse sentido, dois outros argumentos expostos pelo autor nos parecem cruciais. Primeiro: a heresia teria sido o conceito-chave que serviu de ponte para conduzir a necromancia à alçada da Inquisição e permitir a criminalização das artes mágicas e, segundo: a heresia (e, por conseguinte, a própria necromancia) teria deixado de ser um delito de fé para se tornar um delito factual, concernente às ações e não mais às opiniões dos indivíduos. Aparece com enorme importância, então, a ideia de factum hereticale que constituía a prova material a subsidiar a Inquisição, a demonstração empírica daquilo que, de outra maneira, não se podia elucidar: o sabá que, obviamente, acontecia sempre em segredo e permanecia protegido pelas redes de silêncio e cumplicidade dos bruxos, oculto nas consciências indevassáveis dos indivíduos. Dito de outra forma, foi a mudança na concepção sobre a heresia, o enfoque na sua dimensão aparente, prática, fenomenológica, que permitiu a condenação do sabá, a despeito da crença do alquimista ou mago na força demoníaca. Afinal, no reduto da fé, era preciso levar em conta a reputação, a motivação e a intenção do necromante, o que podia permitir ao tribunal considerá-lo inocente ou ingênuo, especialmente se lembrarmos que boa parte dos necromantes era composta de clérigos regulares (como monges e abades) ou seculares (como cônegos e bispos), que faziam das artes mágicas partes integrantes de seus ofícios, das liturgias e da própria cura animarum.
A nosso ver, tais argumentos trespassam conjuntamente a primeira parte da obra de Boureau. Em seu primeiro capítulo, o autor trata da vinculação entre heresia e magia no seu âmbito jurídico e processual. Boureau tem sucesso em evidenciar o “esforço contínuo” e pessoal do papa João XXII (1249-1334, na sé de 1316 até a data de sua morte), mediante bulas e consultas teológico-jurídicas a membros de sua cúria, em tipificar a necromancia como heresia e em convencer os inquisidores a processá-las enquanto tal. Boureau ressalta que “(…) a tarefa dos inquisidores dependia antes da teologia que do direito” (p. 32) porque tradicionalmente não se via a necromancia como delito; foi necessário antes, portanto, forjar uma nova concepção sobre ela, problema que residia no campo teológico. A teologia norteava o direito e o esforço de João XXII consistiu justamente em uma inovação teológica que pudesse engendrar um novo direito, capaz de enquadrar os necromantes como hereges e torná-los condenáveis pelos tribunais régios e papais. Ao mesmo tempo, tratava-se também de um desafio epistemológico e de outro metodológico: era preciso, como dissemos, deslocar o foco da opinião para a ação, da fé para o comportamento, e criar meios de investigação que superassem os morosos e truncados trâmites dos julgamentos. Ambas as estratégias convergiam para a mesma finalidade: livrar a Inquisição das obstruções que o foro da consciência individual impunha e dar-lhe o poder de processar sumariamente os suspeitos de necromancia. A urgência dos processos escancarava o medo do segredo, situado na raiz da obsessão pelo complô que viria a ser atrelado ao sabá.
No segundo capítulo, Boureau trata da dimensão sacramental que se passou a atribuir à necromancia. Ela reforçava a imputação de heresia na medida em que apresentava a necromancia como uma perversão do sacramento divino, não tanto porque se movia por uma crença desviante – isto é, a crença em Satã ao invés da crença em Deus (já destacamos: a crença desviante era uma questão difícil de provar) -, mas porque o próprio ato sacramental que selava o pacto demoníaco implicava a submissão voluntária a um outro poder, que não aquele aceitável, o divino. O sacramento não tinha causa em si mesmo – por isso o problema não era a sua apropriação pelos necromantes -, mas usá-lo para invocar o diabo era colocar Satã no lugar de Deus e romper o pacto com este por uma nova aliança com aquele. O necromante aceitava espontaneamente, assim, a soberania do antagonista de Deus. E se o diabo era um ser naturalmente mau, qualquer pacto com ele só poderia ter fins malignos.
No capítulo 3, Boureau lida justamente com a invenção de um poder positivo, eficaz, para o pacto demoníaco. Frisa que “a força constitutiva dos pactos tinha, nas sociedades da Idade Média central, uma ampla pertinência da qual Satã podia lançar mão” (p. 83) e lembra que Tomás de Aquino, seguindo a doutrina voluntarista de Agostinho de Hipona (354-430) – segundo a qual o livre-arbítrio consistia não na liberdade plena, mas na capacidade de escolher o bem ao invés do mal -, havia aceitado a possibilidade desse tipo de pacto e o condenado, simplesmente porque o próprio Deus havia condenado Satã. Ostorero 3 pontua a importância da distinção que o autor faz entre pacto forte e pacto fraco. O pacto forte, mais poderoso, seria o engajamento legítimo, aceito, porque inserido na lógica sacramental (através de ritos como o do juramento) e partícipe da autoridade divina; ele não podia ser quebrado senão por um dissenso voluntário, movido por más intenções, constituindo crime e ameaça à ordem social. Já o pacto fraco, menos poderoso, seria aquele feito fora ou em afronta a tal ordem: ele teria a sua eficácia, mas não partilharia do poder divino – ao contrário: estaria sujeito às sanções dos poderes eclesiástico e régio, oriundos da autoridade divina – e poderia (ou deveria) ser quebrado. O pacto forte produziria o bem e a salvação; o fraco produziria a morte e a danação e precisaria ser, por isso, investigado e combatido, dissolvido à força, afinal, embora fraco, ele permitiria ao necromante trazer Satã e o mal para o mundo dos homens. Essa lógica reforçava o caráter sectário e privativo dos pactos demoníacos, opondo-os aos pactos legítimos que tinham por característica a publicidade. Destarte, a argumentação do autor é arguta em mostrar que, assim como a heresia, o problema da necromancia era questão de desobediência, de dissidência, não de crença ou doutrina desviante: “o pacto, aqui, é assimilado à traição feudal, que consiste em requerer por um acordo explícito a ajuda do inimigo de seu senhor. Essa concepção banal e externa do pacto, como modo de negociação entre poderes rivais a um nível vassálico, era muito difundida no século XIII” (p. 93).
No capítulo 4, o autor examina as ações dos agentes diabólicos. Como anunciado na introdução do livro, mostra-se aqui que, até o século XIII, a teologia não havia dado muita atenção aos demônios, mas que tal situação muda a partir do tratado tomista De malo, datado provavelmente de 1272. Os doze artigos presentes no tratado teriam renovado as considerações esparsas sobre o tema e formado um corpus doutrinário amplo e original. Boureau sustenta que o De malo não representaria, contudo, uma síntese de diversas opinões teológicas organizadas pelo dominicano, mas um posicionamento particular que rapidamente seria atacado por alguns franciscanos como Guilherme de La Mare, em 1277, e Pedro de João Olivi, no início dos anos 1280. As polêmicas giraram ao redor da natureza de Satã e de seus acólitos, bem como seus poderes e atuações. O autor indica que, enquanto Tomás separava o pecado de Satã do pecado dos homens (fixando um limite claro entre os demônios e a humanidade, uma vez que o primeiro pecaria por sua vontade, ao passo que o segundo o faria por sua natureza), opositores como Pedro Olivi destacavam que “o anjo não difere necessariamente do homem: nos dois casos, é o querer próprio da criatura que o dana ou o salva”; Boureau completa: “inversamente em relação ao anjo de Tomás, o anjo de Pedro Olivi é muito mais próximo do homem que de Deus” (p. 125). Em Tomás, portanto, os demônios eram impermeáveis à história (p. 130), enquanto que, em Pedro Olivi, eles a recuperavam. Assim, paradoxalmente, a teologia tomista, por um lado, acorrentava o diabo, por outro, teria sistematizado um saber acerca do demônio que abriria espaço para a reflexão demonológica por meio da qual os franciscanos teriam desacorrentado o diabo e seus seguidores, aproximando-os dos homens.
No capítulo 5, por meio dos processos de canonização do início do século XIV, ocorridos sob os pontificados de Clemente V e João XXII, Boureau analisa a transformação em torno da demonologia. O autor observa duas tendências no tratamento dos possessos: uma tratava a maioria dos casos como loucura, outra invertia a proporção e considerava a maior parte das vítimas como endemoninhados. Para o autor, tal discrepância indicia a naturalização e a medicalização da loucura no século XIII. A partir de então, muitos casos em que as testemunhas alegavam possessão passaram a ser encarados como loucura; a centralidade da taumaturgia cedia lugar, então, à centralidade da virtude. Contudo, propõe-se que os casos de possessão demoníaca não teriam desaparecido, mas tomado novos contornos. Em linhas gerais, Boureau sugere que a permanência das menções ao exorcismo não sinaliza meros arcaísmos em face de uma onda naturalista que medicalizava a loucura; ao contrário, a nova sensibilidade sobre a presença demoníaca entre os fiéis teria criado um verdadeiro embaraço para a Cúria pontifícia, para além do ceticismo médico, obrigando-a a encarar o problema da possessão. A partir daí, foram sistematizadas novas formas de possessão que associavam Satã às aparições, aos hereges e aos mortos sem confissão, no mesmo momento em que João XXII estava interessado em redefinir a relação entre magos, hereges e demônios. Nesse sentido, a figura do louco não esgotaria a complexidade dos quadros e se constituiria apenas como uma baliza para avaliar a suscetibilidade dos indivíduos à possessão.
Graças a essa nova antropologia, derivada tanto do saber naturalista quanto da reflexão escolástica, a constatação da presença invasiva do demônio teria assumido, no século XIII, um novo sentido. Exploravam-se as forças e as fraquezas da natureza humana. Ao inaugurar a reflexão sistemática acerca de Satã e de seus demônios, o saber escolástico se abriu para uma investigação dos próprios limites e ações humanas; em outras palavras, a partir de uma reflexão sobre o diabo e sobre sua ação entre os homens, refletiu-se acerca da própria natureza humana.
No capítulo 6, a fim de melhor compreender as “fendas abertas no edifício da personalidade humana” (p. 169), Boureau investiga a figura do sonâmbulo. Essa personagem é inserida por Clemente V (1264-1314, papa a partir de 1305), à época das Constituições clementinas, no cânone Si furiosus, que apresentava uma novidade: “o sono, como a loucura, a infância ou a legítima defesa, constitui então fator de irresponsabilidade penal” (p. 170). A inimputabilidade penal do sonâmbulo evocava certa natureza pura para o ser humano, que era reduzido a um estado de passividade, “como um simples receptáculo de influências” (p. 172). Nesse sentido, o sonâmbulo se aproximava da figura do endemoninhado, visto que ambos estavam suscetíveis à possessão externa.
Para o autor, os debates acerca da relação entre a alma e o corpo expandiram a discussão sobre a personalidade humana. Do lado tomista, ter-se-ia afirmado “a unidade do sujeito” e entendido a alma como uma infusão de Deus na matéria, e não uma dedução dela. De outro lado, os “neoagostinianos” – em especial os franciscanos, mas também alguns dominicanos e seculares – teriam defendido a ideia de uma pluralidade das formas substanciais do homem. Segundo Boureau: “a teoria pluralista colocava em evidência uma estrutura federativa ou mesmo confederativa do sujeito” (p. 185). Como notou Ostorero,4 admitia-se a possibilidade de em um mesmo corpo coabitar a alma do indivíduo e um hóspede divino ou satânico. Essa fragilidade é que viria a ser explorada à época da caça às bruxas.
Finalmente, em seu último capítulo, Boureau se atém justamente ao debate acerca da fronteira entre as possessões divina e demoníaca. Duas formas de possessão divina são identificadas: a incorporação e a inhabitação. Nos dois casos o que está em jogo é a abertura do sujeito para a própria salvação, bem como para a ação direta da divindade. Tais casos seriam tratados pela Igreja com cautela, porque “os inspirados ofereciam a imagem temível de um individualismo religioso que tendia a apagar e mesmo rejeitar a mediação da Igreja entre Deus e os homens” (p. 224); os partidários do livre-espírito (acusados de autodeísmo e antinomismo), por exemplo, foram considerados heréticos pelo próprio Clemente V. De toda forma, tal debate teria preparado não apenas a possibilidade da divinização do sujeito, mas também a oportunidade da evocação de anjos decaídos para dentro do possesso: “as novas Pandora místicas carregavam em seu seio uma temível caixa que não tardaria a ser aberta. Os demônios dela escapariam” (p. 225).
Ao longo de seus capítulos, Boureau faz digressões que tornam a sua obra valiosa não só para os estudiosos da Inquisição e da demonologia, mas para todos aqueles que se interessam pelas temáticas relativas à história medieval e à história moderna. Suas reflexões conciliam referenciais teóricos clássicos com outros mais atuais (considerando o ano da publicação original, 2004) e formam um arcabouço condizente com as teorias vigentes sobre seus temas correlatos – as heresias, a feudalidade, a santidade e os processos judiciários, por exemplo – e são capazes de conectá-los de forma pertinente à questão da demonomancia, construindo uma tese geral bastante coesa. Mesmo a introdução do livro faz uma digressão; esta, porém, é menos profunda do que gostaríamos, pois ela cumpre o papel fulcral de inserir a problemática no quadro dos conturbados acontecimentos coevos. Pouco retomada posteriormente – visto que o autor está mais preocupado com a história intelectual e a história do pensamento – ela acaba ficando em segundo plano no desenvolvimento da tese. Em poucas palavras o autor resume a sua contextualização:
O período da “virada demoníaca” (1280-1330) coincide com um momento de viva tensão entre os poderes espiritual e secular, entre o papado e as monarquias. Os elementos de uma perseguição pública dos adoradores de demônios podem ser facilmente identificados nesse contexto de violência institucional e ideológica, que culmina com a captura do papa Bonifácio VIII pelas tropas de Filipe, o Belo, em Agnani em 1303. A presença de Satã ao lado de uma ou de outra parte dá lugar a procedimentos jurídicos especializados e a grandes affaires (p. 19).
A superficialidade do tratamento dado a essa dimensão acaba deixando de lado as tensões e, especialmente, as colaborações que o poder papal em Avignon teceu com o poder régio francês, as quais encontraram na Inquisição um ponto de convergência, uma vez que a perseguição aos hereges era não apenas um negócio de domínio e submissão, mas também de conquista territorial. Nas palavras do próprio autor,
O pacto satânico tornou-se perigosamente atual no século XIII por duas razões: uma política, outra teológica. Desde o vasto movimento de expansão demográfica e de concentração do habitat que caracterizou o início do primeiro milênio, as formas de organização da vida coletiva multiplicaram-se e sobrepuseram-se (comunidades rurais e urbanas, paróquias, senhorios, principados, reinos etc.). O estatuto complexo, de níveis sobrepostos, da propriedade, no seio da organização feudal, multiplicou as situações de pertencimentos múltiplos. A um período de concorrência conquistadora, que conduziu ao esgotamento e ao abandono progressivo de terrenos e das possibilidades de expansão, sucede, no século XIII, um período de confrontos, tensões entre as diversas formas de organização. As soberanias tentavam se afirmar sem meios institucionais e ideológicos para fazê-lo (p. 20).
Tal argumento só será retomado, rapidamente, no curto epílogo do livro, quando Boureau lembra que o mapeamento dos assentamentos heréticos e das presenças de bruxas no século XIV indicia certo projeto de conquista de áreas, próximas aos Alpes, ainda fora das esferas de poder dos papas e dos reis franceses. Diante das experiências fracassadas de conversão dos judeus, dos muçulmanos e dos valdenses é que os teólogos e juristas passaram a conceber a sua perseguição e extermínio.
Além disso, uma grande motivação para o nascimento da demonologia no século XIV, que Boureau evoca logo em seu primeiro capítulo, fica infelizmente obliterada nos capítulos posteriores: o medo e a obsessão de homens como João XXII com relação às possibilidades de estender ou de encurtar a vida humana por meio da magia e da necromancia. Ela nos sugere que todo o processo histórico em questão não era apenas questão de mudanças mentais, ideológicas e culturais, mas também de estratégias de proteção e contra-ataque em disputas políticas. O próprio autor inicialmente lembra: João XXII, assim como todos os papas que ocuparam a sé de Avignon, foram eleitos em clima de intensas disputas que os fizeram temer pela segurança de seus mandatos e pelas suas próprias vidas. Se, enquanto cardeais, eles recorreram à magia e à alquimia para defender suas posições e seus interesses, após eleitos eles temeram que seus adversários, dentro e fora da cúria, empregassem os mesmos recursos contra eles, no que podemos ver, então, certa tentativa de controle dessas artes, não apenas uma vontade de exorcizá-las e suprimi-las.
A presente tradução conta com um prefácio escrito pela própria revisora técnica da edição, Néri de Barros Almeida. Em sucintas palavras, Almeida apresenta um excelente esboço do livro; todavia, a autora transcende os limites gerais atribuídos a um prefácio, conectando a obra de Boureau à própria essência do fazer historiográfico. Por isso, recomendamos que o leitor o leia após ter percorrido os capítulos do livro, pois a revisora oferece uma chave de leitura que amplia a compreensão de um tema que, malgrado a antiguidade, permanece contemporâneo.
1Em resenha sobre a obra de Boureau: OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique. Nais sance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). Médiévales [en ligne]. Vincennes: s. n., n. 48, printemps 2005. Disponível em: <http://medievales.revues.org/1087>. Acesso em: 18/02/2017.
2O próprio Igor Teixeira trata especificamente deste ponto em um artigo: TEIXEIRA, Igor Sa lomão. Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau. Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre [en ligne], n. 18.1, Auxerre: Bucema, 2014. Disponível em: <http:// cem.revues.org/13439>. Acesso em: 18/02/2017. DOI: 10.4000/cem.13439.
3OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique, op. cit., 2005, p. 2.
4Idem, p. 4.
Felipe Augusto Ribeiro – Doutorando em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais – Leme. E-mail: felipeaur@gmail.com.
João Guilherme Lisbôa Rangel – Mestre em História pelo Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFFRJ. Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística – Lepem. E-mail: jglhistoria@hotmail.com.
HEARTFIELD, J. The British and Foreign Anti-Slavery Society (RH-USP)
HEARTFIELD, James. The British and Foreign Anti-Slavery Society, 1838- 1956. A history. Oxford: Oxford University Press, 2016. xii + 486p. Resenha de: RÉ, Henrique. Uma história da Britsh and foreign anti-slavery Society: A instituição que internacionalizou o antiescravismo britânico. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Em agosto de 1833, o Parlamento da Grã-Bretanha aprovou a lei que emancipou os escravos das colônias das Índias Ocidentais, do Canadá, da Colônia do Cabo e das Ilhas Maurício. (Essa lei não eliminou a escravidão do Império britânico, como alguns abolicionistas insistiram: ainda restavam os escravos das Índias Orientais, cujo número estimado superava todo o conjunto de escravos das regiões do Novo Mundo).1 A lei de 1833 entrou em vigor a partir de 1º de agosto de 1834; contudo, ela não tornou os ex-escravos imediatamente livres. Eles teriam que passar por um período de “aprendizado” para que se acostumassem à sua nova condição – na verdade, tratava-se da regulamentação do trabalho forçado, com o objetivo de prolongá-lo por mais alguns anos. O “aprendizado” demonstrou ser um equívoco: ele desagradou aos abolicionistas, às autoridades coloniais, aos fazendeiros e, obviamente, aos aprendizes que, em muitos casos, viram sua situação piorar ainda mais. Diante da comoção pública e dos vários casos de abusos cometidos pelos fazendeiros e pelas autoridades coloniais, o Parlamento britânico resolveu reduzir os anos de prestação de serviço dos aprendizes. Em algumas ilhas, as próprias assembleias locais se encarregaram de acabar com o aprendizado antes mesmo da decisão do Parlamento britânico chegar às colônias. Assim, em 1º de agosto de 1838, o sol se levantou sobre o Caribe trazendo uma liberdade um pouco mais pura para os negros britânicos, e todos os aprendizes foram considerados livres.2
Inegavelmente, a campanha antiescravista britânica, iniciada na década de 1780, alcançou um triunfo quase completo. Mas alguns grupos abolicionistas não ficaram satisfeitos com a indenização de vinte milhões de libras concedida pelo Estado britânico aos fazendeiros. Eles julgaram que a concessão da indenização somente seria legítima se a propriedade fosse legal, condição que não poderia ser aplicada à escravidão de seres humanos. Nas fileiras antiescravistas também havia indivíduos que não estavam contentes com a perspectiva de encerrar a campanha abolicionista. Eles desejavam levar a luta contra o tráfico e a escravidão para outras partes do mundo, numa cruzada mundial. Mas, nesse momento, as instituições antiescravistas britânicas existentes não estavam capacitadas para desempenhar esse novo papel.
A alternativa consistia, portanto, em criar uma nova entidade, que tivesse capilaridade por toda a Grã-Bretanha, mas que também contasse com auxílio e inserção internacional. Entretanto, em decorrência da existência de inúmeros grupos abolicionistas, cada um defendendo posições e métodos diferentes, mais uma vez o movimento antiescravista britânico se viu dividido quanto às medidas a serem adotadas e à forma de implantá-las.
No final dos anos 1830, surgiram então duas entidades com pretensões de liderar a cruzada antiescravista mundial. Todavia, conforme um dos fundadores declarou, elas não eram rivais: como tinham focos diferentes, elas se complementavam.3
Thomas Fowell Buxton, um dos líderes abolicionistas mais reconhecidos e ativos naquele momento, vinha elaborando desde meados dos anos 1830 um projeto de colonização da África. A ideia consistia em estabelecer fazendas no continente africano para que servissem de modelo de desenvolvimento e desencorajassem os habitantes de participar do tráfico de escravos. Segundo Buxton, era necessário atuar para conter o tráfico de escravos, pois somente assim a escravidão poderia ser efetivamente eliminada. A instituição criada por Buxton, a Society for the Extinction of the Slave Trade and for the Civilization of Africa, organizou uma expedição ao rio Níger com o objetivo de implantar as fazendas, mas os integrantes da expedição foram assolados provavelmente pela malária, e o projeto de Buxton tornou-se uma tragédia. A Sociedade teve uma vida efêmera e foi dissolvida em 1843.
Outro grupo de abolicionistas, liderado por Joseph Sturge, um quacre de Birmingham, também vinha se organizando desde meados da década de 1830 para criar uma nova entidade, capaz de encabeçar a internacionalização do movimento abolicionista. Depois de várias reuniões no início do ano, surge em abril de 1839 a British and Foreign Anti-Slavery Society (BFASS), que existe até hoje ainda que com outro nome e, assim, é considerada a mais longeva instituição defensora dos direitos humanos.
Diferentemente da instituição de Buxton, a BFASS focou sua luta preferencialmente no combate à escravidão. Seus integrantes entendiam que, diante dos lucros do tráfico de escravos, de nada adiantaria combatê-lo diretamente, pois os traficantes sempre encontrariam uma forma de burlar qualquer tipo de bloqueio que lhes fosse imposto. Nessa perspectiva, combater a escravidão seria mais promissor, pois, uma vez eliminada a demanda, a oferta também seria extinta. Outra diferença da BFASS em relação a algumas sociedades abolicionistas anteriores era sua ênfase no imediatismo. Ela não via com bons olhos as medidas gradualistas para acabar com a escravidão e considerava que as vias institucionais eram os canais adequados para o avanço da causa antiescravista.
Tal como a maioria das sociedades antiescravistas anteriores, a BFASS era comandada por quacres – o grupo religioso que seguramente esteve mais envolvido nas ações antiescravistas britânicas desde o final do século XVIII. Embora a BFASS fosse uma entidade de caráter civil, onde qualquer um poderia participar desde que contribuísse com uma pequena quantia, os quacres eram os principais responsáveis pela sua manutenção financeira, e, por isso, tinham o poder de definir sua orientação ideológica e suas diretrizes. Como os quacres eram defensores fervorosos do pacifismo, a BFASS jamais endossou qualquer atividade antiescravista que utilizasse as armas ou a força, nem apoiou qualquer proposta de intervenção antiescravista que pudesse gerar derramamento de sangue.
O livro de James Heartfield traça a história dessa instituição desde sua origem, em 1839, até sua última troca de nome em 1956. O recorte temporal da obra é bastante preciso. Por setenta anos, a BFASS atuou prioritariamente como uma entidade preocupada com o escravismo, mas tal preocupação foi assumindo outros contornos a partir do final do século XIX, especialmente em decorrência da colonização da África pelas potências europeias. Em 1909, a BFASS se fundiu com a Aborigines’ Protection Society e transformou-se em Anti-Slavery and Aborigines’ Protection Society. Depois das duas guerras mundiais, ainda que a questão escravista fosse um assunto de extrema relevância, o início da luta contra o colonialismo na África e as discussões acerca da igualdade de direitos entre negros e brancos levaram a Sociedade a procurar “seus apoiadores para uma possível troca de nome, ‘que express[ass]e mais corretamente a extensão de suas atividades’” (p. 421). Em 1956, ela assumiu sua designação atual: Anti-Slavery Society for the Protection of Human Rights. No início do século XX, ela já havia atuado em várias ocasiões na Liga das Nações; depois da criação da ONU, a Sociedade continuou atuando como uma espécie de órgão consultivo.
Embora outros trabalhos já tivessem tratado da história da BFASS, nenhum o fez com tamanha abrangência. Em geral, as obras anteriores eram compilações de seus “feitos” (por vezes, uma espécie de prestação de contas organizada pela própria entidade), ou obras historiográficas que abordavam a participação da BFASS no movimento antiescravista britânico ou em contextos específicos.4 Enfim, é a primeira vez que surge uma obra exclusivamente voltada para a história dessa instituição e abrangendo todo o período no qual ela se dedicou prioritariamente à causa do antiescravismo.
Obviamente, como o próprio subtítulo do livro esclarece, trata-se de “uma história” dentre as inúmeras possíveis, especialmente quando se leva em consideração que o recorte temporal abarca um período de aproximadamente cento e vinte anos, no qual a instituição se envolveu em diversos assuntos em várias regiões do mundo, e respondeu de formas variadas aos desafios que se apresentavam.
Heartfield adotou uma forma expositiva que privilegia os temas principais nos quais a BFASS esteve envolvida, trabalhando-os separadamente em cada um dos capítulos. A narrativa segue uma sequência em que, na primeira parte do livro, são abordados os temas referentes à escravidão nas Américas; na segunda, a escravidão na África; e, na terceira, o trabalho contratado nas colônias das Índias Ocidentais e da África, e o posicionamento da Sociedade no período entre-guerras. Ao mesmo tempo em que essa estratégia expositiva permitiu maior leveza no tratamento dos assuntos, também dificultou o aprofundamento em alguns deles, como foi o caso do envolvimento da BFASS na escravidão cubana e brasileira ou na diplomacia britânica que atuou contra o tráfico de escravos. Tornou-se praticamente impossível abordar de maneira mais circunstanciada a forma como a Sociedade lidou com essas situações no decorrer das décadas em que esteve envolvida nestes casos.
Outro mérito do livro foi acompanhar a transformação da atuação da BFASS, que atendia às mudanças que ocorriam nas formas de trabalho – da escravidão nas Américas e na África para o trabalho contratado dos chineses e indianos nas Américas, na África, na Ásia e na Oceania, em áreas não necessariamente sob domínio britânico. A Sociedade combatia a utilização dessa forma de trabalho, mas apresentava como um dos motivos para recusá-lo a imoralidade dos trabalhadores: em muitos casos, alegava a BFASS, tratava-se de prostitutas, homossexuais e viciados de péssimo caráter (p. 341-2).
Contudo, a linha mestra que organiza toda a narrativa, ainda que em vários momentos não esteja claramente exposta, é uma sugerida interação entre a BFASS e o governo britânico. O autor evidencia essa perspectiva já a partir da primeira página da obra: “(…) a Sociedade ajudou a estabelecer os fundamentos de uma sociedade civil esclarecida; mas ao mesmo tempo esteve intimamente ligada ao Estado, baseou-se em relatórios oficiais, elaborou propostas de diretrizes e até engendrou a criação de um departamento antiescravista paralelo dentro do governo”. A atuação da BFASS também teria transformado concomitantemente o antiescravismo num mecanismo de projeção governamental britânica (p. 1).
Essa tensão perpassa toda a obra, e o autor teve méritos em demonstrar como a BFASS, ao apoiar a diplomacia contra o tráfico de escravos, ajudou indiretamente a estabelecer uma espécie de tutoria sobre os países que participavam dos tratados ou acordos bilaterais com a Grã-Bretanha para acabar com esse comércio e, consequentemente, difundir mais amplamente os interesses britânicos. Da mesma forma, a retórica antiescravista tornou-se um ingrediente do pacote ideológico que justificou a subjugação dos povos coloniais africanos a partir da década de 1870: paradoxalmente, a retórica abolicionista já continha as sementes do império (p. 75 e 229).
É certo que a BFASS se esforçou para impor certa diretriz abolicionista à política internacional britânica, mas é difícil conceber que ela dispunha de força suficiente para fazê-lo. Em 1841, sua pressão sobre o governo para que ministros, cônsules e agentes no exterior não negociassem escravos foi bem sucedida. Palmerston, então ministro do Foreign Office, enviou uma circular a todas as representações britânicas no exterior para que adotassem essa resolução, que havia sido elaborada pelo primeiro Congresso Antiescravista Mundial, organizado pela BFASS, em Londres, em meados de 1840.5 Não é difícil perceber, entretanto, que tal medida tinha pouca capacidade de influenciar os destinos da escravidão nos países escravistas. Tratava-se mais de uma questão de moralidade.
Portanto, o autor parece exagerar um pouco a interação entre a BFASS e o governo britânico. Se a Sociedade utilizava os relatórios consulares para elaborar seus estudos e matérias sobre o tráfico e a escravidão, ela também obtinha dados de outras fontes; por exemplo, de seus correspondentes no exterior, ou do caso extremo em que enviou uma missão secreta ao Brasil para coletar informações sobre a situação do tráfico e da escravidão.6 A utilização dos relatórios consulares não era exclusividade da BFASS, pois eles eram ansiosamente lidos em Madri, Havana e Rio de Janeiro, e o governo brasileiro chegou a utilizá-los como dados oficiais.7
Ainda que a BFASS também tivesse acesso às autoridades governamentais e tentasse influenciar politicamente as diretrizes antiescravistas do Estado britânico, isso em geral ocorria por meio de lobby parlamentar. A Sociedade procurava os parlamentares simpáticos à causa e os orientava sobre a maneira de proceder, de acordo com aquilo que julgava mais adequado para determinada questão. Nesses casos, provavelmente, o máximo que ela conseguiu foi a adesão de um ou outro parlamentar mais recalcitrante ou a flexibilização de algumas posturas mais conservadoras. Em muitas ocasiões, a BFASS viu seu pleito ser vencido nos gabinetes ou nas votações, como ocorreu, por exemplo, na anexação do Texas, no Tratado Webster-Ashburton, na questão da equalização dos impostos do açúcar e na repressão ao tráfico brasileiro no início da década de 1850. Como um historiador salientou, os abolicionistas muitas vezes tentaram confrontar a exploração escravista em qualquer país a partir de táticas de natureza moral, religiosa e pacífica, mas isso proporcionava uma base relativamente pequena para interferir nas diretrizes do Estado britânico. Além disso, desde a fundação da BFASS, alguns de seus principais membros ganharam a reputação de idealistas irresponsáveis.8
Seguramente, a difusão dos interesses comerciais, diplomáticos e políticos da Grã-Bretanha foi beneficiada pela retórica antiescravista tanto na metrópole quanto no exterior, dentro ou fora do Império britânico. Entretanto, são muito bem conhecidas pela historiografia as divergências entre o Comitê da BFASS e as autoridades políticas e militares britânicas. Em várias ocasiões, as decisões da Sociedade desagradaram os estadistas britânicos e, principalmente, os comandantes militares responsáveis pelo esquadrão naval estacionado na costa africana e americana.9 Portanto, supor uma interação entre a BFASS e o Estado britânico, como se a entidade antiescravista estivesse “intimamente ligada ao Estado”, é um ponto de vista que talvez precise ser relativizado.
Outro ponto que merece ser mencionado na obra de Heartfield – mais pela ausência do que pela presença – é a participação dos negros no próprio processo de emancipação ou, para usar um termo horrível, mas bastante utilizado hoje em dia, a “agência escrava”. É o próprio autor que afirma:
A escravidão é um ato belicoso e a mão-de-obra forçada estava sempre disposta a resistir e, muitas vezes, a se revoltar. As revoltas de escravos eram dispendiosas em termos de tropas e gastos militares e onerosas em matéria de prestígio para os governos europeus. Tão importante quanto o movimento de emancipação na Inglaterra era a recusa constante dos próprios escravos de não se deixar escravizar (p. 17).
Embora o capítulo 1 apresente um item chamado “Revoltas escravas”, em que é mencionado o protagonismo dos escravos no processo de abolição de alguns países, infelizmente, o autor não dedicou outros momentos para compreender por que a BFASS sempre declinou de qualquer participação direta dos ex-escravos na luta contra a escravidão nas colônias ou em outros países.
É certo que Joseph Sturge, o fundador da BFASS, e outros abolicionistas se dedicaram pessoalmente a empreendimentos nas colônias para a educação dos ex-escravos e para o estabelecimento de pequenas propriedades, mas não há registros de que a BFASS tenha aceitado ou incentivado a participação dos escravos e ex-escravos na luta abolicionista nas colônias britânicas. Essa recusa, provavelmente, não decorria exclusivamente de seu pacifismo, mas da maneira como entendia que a emancipação devia ser conduzida: sempre de forma ordeira, preservando o status quo e pela via legislativa. Qualquer ato que pudesse vir a prejudicar a produção e a economia ou que se desviasse dos padrões sociais britânicos deveria ser desprezado. Uma vez que o autor se preocupou em mencionar o tema da revolta escrava, ele poderia ter investigado um pouco mais a relação da BFASS com o protagonismo negro.
A BFASS e o Brasil
Embora seja correto afirmar que a abolição brasileira “nunca foi a principal prioridade da Sociedade” (p. 189), desde a sua fundação, a BFASS expressou preocupação com o tráfico e a escravidão brasileira, tanto que em seu Estatuto o nome do Brasil aparece ao lado dos Estados Unidos, do Texas e de Cuba como os locais para onde a Sociedade deveria dirigir seus esforços.10 Mas a preocupação da BFASS com o Brasil não esteve apenas formulada em seu Estatuto. Desde o início da década de 1840 até a abolição da escravidão brasileira, em 1888, a Sociedade realizou esforços para combater o escravismo no Brasil. A historiografia já documentou a relação entre Joaquim Nabuco e a BFASS na década de 1880; também já é conhecida a missão organizada secretamente pela BFASS no início da década de 1840 para investigar as condições da escravidão no país; do mesmo modo, são conhecidas as petições que a BFASS e outras sociedades antiescravistas auxiliares da Grã-Bretanha (ligadas à BFASS) enviaram ao imperador e às autoridades governamentais brasileiras, pressionando primeiramente pelo fim do tráfico e depois pelo término da escravidão.11
Infelizmente, nesse ponto, o livro de Heartfield é bastante sucinto e apresenta alguns equívocos. Todo o envolvimento da BFASS com Brasil e Cuba é abordado num único capítulo de pouco mais de vinte páginas. Tratando especificamente do caso brasileiro, pode-se afirmar que Heartfield se limitou a comentar alguns aspectos do Bill Aberdeen, do envolvimento do capital britânico em atividades escravistas brasileiras e de algumas petições contra a escravidão enviadas ao Brasil.
Além dos erros na grafia de alguns nomes, Heartfield se equivoca quando diz que “o líder da Sociedade para a Abolição do Tráfico de Escravos na década de 1870 era Joaquim Nabuco” (p. 194). Além dessa Sociedade nunca ter existido no Brasil, Joaquim Nabuco, no início da década de 1870, estava concluindo seu curso de Direito no Recife e logo depois viajaria para a Europa, onde passaria anos em estado de “lazaronismo intelectual”, como ele próprio reconheceu.12 Logo depois, graças aos contatos paternos, assumiria cargos diplomáticos nos Estados Unidos e na Inglaterra. Somente após a morte do pai e de sua eleição para a Câmara dos Deputados, em 1878, Nabuco se manifestaria no ano seguinte publicamente contra a escravidão.
Outro sério equívoco da obra de Heartfield foi afirmar que “a Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, foi proclamada em nome do Príncipe Imperial Regente, Rodrigo Augusta [sic] da Silva” (p. 195). O autor estava se referindo ao senador Rodrigo Silva, que na época ocupava ao mesmo tempo os ministérios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas e dos Negócios Estrangeiros, e foi o autor do projeto da referida lei.
São nos equívocos sobre o Brasil, provavelmente, que se manifesta mais claramente uma das deficiências dessa obra. Heartfield realizou uma ampla pesquisa sobre a BFASS, que abarcou quase cento e vinte anos de atuação de uma instituição que possuía capilaridade em várias regiões do mundo. Esse é um mérito que deve ser reconhecido. Porém, talvez devido às dificuldades de lidar com outras línguas, o autor se limitou somente à historiografia de origem anglo-saxã. E, no caso das fontes provenientes da BFASS, ele se limitou basicamente ao material impresso, em especial o Anti-Slavery Reporter, que era o periódico da Sociedade, e os Annual Reports. Heartfield não utilizou nenhuma vez sequer a correspondência trocada entre os membros do Comitê da BFASS e os correspondentes no exterior, tombada pela Rhodes House Library de Oxford, que guarda precioso material que não pôde ser publicado na época.
A análise dessa correspondência talvez permitisse que o autor percebesse a ambivalência do posicionamento da BFASS.13 A Sociedade desejava a extinção da escravidão por meio de métodos pacíficos, legais e economicamente viáveis, sempre de acordo com as concepções britânicas de liberdade e da organização liberal da economia. Entretanto, a BFASS tinha dificuldades para perceber ou aceitar que esses padrões sociais e econômicos dificilmente poderiam ser implantados sem ferir muitas crenças liberais. Em outras palavras, a BFASS não conseguia explicar como o fim da escravidão nas Índias Ocidentais levou ao colapso da produção açucareira, nem como a aplicação das diretrizes do livre-comércio ao tráfico de escravos geraria um salto grandioso desse comércio ou como o livre-comércio do açúcar favorecia a escravidão em Cuba e no Brasil.
Referências
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1TEMPERLEY, Howard. British antislavery, 1833-1870. Columbia: University of South Carolina Press, 1972, p. 94.
2HUZZEY, Richard. Freedom burning. Anti-slavery and empire in Victorian Britain. Ithaca: Cornell Uni versity Press, 2012, p. 10-11.
3HUZZEY, Richard, op. cit., p. 67.
4Ver, por exemplo, A chronological summary of the work of the British & Foreign Anti-Slavery Society during the nineteenth century (1839-1900). Londres: Offices of the Society, 1901; HARRIS, John. A century of emancipation. Londres: Kennikat Press, 1971. Harris foi secretário da Anti-Slavery and Aborigines’ Protection Society a partir de 1910; a primeira edição de seu livro ocorreu em 1933; TEMPERLEY, Howard, op. cit.; HUZZEY, Richard, op. cit.
5Ver, por exemplo, as correspondências de Palmerston aos representantes consulares britânicos no Brasil em FO 84/326, National Archives, Londres.
6Sobre a missão enviada ao Brasil, ver RÉ, Henrique Antonio. “Missão nos Brasis”: a BFASS e a organização de uma missão abolicionista secreta ao Brasil no início da década de 1840. Revista de História, n. 174, São Paulo, jan.-jun. 2016, p. 69-100.
7ELTIS, David. Economic growth and the end of the transatlantic slave trade. Nova York: Oxford University Press, 1987, p. 112.
8HUZZEY, Richard, op. cit., p. 67-8; TURLEY, David. Anti-slavery activists and officials: “influence”, lobbying and the slave trade, 1807–1850. In: HAMILTON, Keith & SALMON, Patrick. Slavery, diplomacy and empire. Britain and the suppression of the slave trade, 1807-1975. Londres: Sussex Academic Press, 2013, p. 88-90.
9Ver, por exemplo, o episódio em que Charles Fitzgerald, um tenente da Marinha Real, foi proibido por Sturge de se pronunciar no Congresso Antiescravista Mundial de 1840, pois ele se opunha ao “princípio pacífico” do referido congresso. HUZZEY, Richard, op. cit., p. 14.
10British and Foreign Anti-Slavery Society for the abolition of slavery and slave-trade throughout the world. Address. Londres: Johnston and Barrett, s.d. [1839?], p. 2.
11BETHELL, Leslie & CARVALHO, José Murilo de (org.). Joaquim Nabuco e os abolicionistas britânicos. Correspondência, 1880-1905. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008; ROCHA, Antonio Penalves. Abolicionistas brasileiros e ingleses. A coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
12NABUCO, Joaquim. Minha formação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 173.
13Sobre a questão da ambivalência do posicionamento dos abolicionistas, ver ELTIS, David, op. cit., especialmente o capítulo 7.
Henrique Antonio Ré – Pós-doutorando no Departamento de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: henrique.re@usp.br.
Teoria da história: uma teoria da história como ciência | Jörn Rüsen
RÜSEN, Jörn. Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins., Curitiba: Editora UFPR, 2015. Resenha de: REIS, Aaron. Rüsen e a Teoria da História como ciência. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Em Teoria da história: uma teoria da história como ciência, o professor emérito da Universidade de Witten-Herdecke (Alemanha) Jörn Rüsen retoma um conjunto de reflexões que, no Brasil, ficou conhecido a partir da trilogia Razão histórica (2001), Reconstrução do passado (2007) e História viva (2007). Na mais recente obra, traduzida para o português por Estevão Chaves de Rezende Martins – professor do Departamento de História da Universidade de Brasília -, o filósofo da história propõe uma revisão de sua teoria, publicada originalmente na década de 1980. Nela, reconhece o pesquisador, não foi possível considerar todo o debate “relevante” e necessário para uma “inovação” de suas ideias. Porém, ao recorrer aos seus próprios trabalhos – aqueles que originaram a trilogia e, também, produções posteriores -, Rüsen nos oferece uma síntese do que há de mais importante e atual em sua obra. Leia Mais
A filosofia e o cuidado da vida – BUZZI (C)
BUZZI, Arcângelo R. A filosofia e o cuidado da vida. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 1, p. 181-186, jan/abr, 2017.
A linguagem utilizada na obra não pretende esgotar o significado do que seja esse tal cuidado da vida, já anunciado no título, mas antes fazer notar a relevância de tal tema para a elaboração da própria tarefa fundamental do pensamento – pensar a vida –, também expressa no título sob o nome de filosofia. Nesse sentido, Buzzi não conceitua propriamente nem o que seja cuidado e nem o que seja filosofia, mas convida o leitor a traçar um caminho no qual ambos os termos estão conjugados. O modo de utilizar a linguagem, então, é fundamental, pois se trata de indicar sem determinar.
Além disso, a maneira simples com que são colocadas as palavras e as citações permite uma intimidade com a obra, realizando, de fato, a proposta de viabilizar um caminho. Engana-se, porém, o leitor que acreditar que na obra há uma linguagem simplista: a simplicidade da obra está em sua essencial preocupação com o fundamental de cada questão levantada, sendo o autor, dessa forma, objetivo e preciso em suas assertivas. Além do mais, o próprio autor se utiliza de grandes expoentes do pensamento, mostrando-os como vias possíveis para pensar os vários desdobramentos do cuidado da vida. Não há equívoco em afirmar: a obra serve tanto para aqueles que já são iniciados nessa dinâmica própria do filosofar quanto para introduzir, nessa tarefa, tantos outros que dela se aproximarem. Por isso, pode-se dizer que o autor é capaz de continuar um caminho, pois escreve àqueles que já estão inseridos na própria filosofia, bem como é capaz de convidar a esse caminho, viabilizando-o pela linguagem simples, fundamental e, acima de tudo, por permitir ao próprio leitor a tarefa de pensar. Leia Mais
Cultura legal y espacios de justicia en América – FERNÁNDEZ (RH-USP)
FERNÁNDEZ, Macarena Cordero; CORRADI, Rafael Gaune; JERIA, Rodrigo Moreno(org.). Cultura legal y espacios de justicia en América. Siglos XVI -XIX. ., Santiago: Centro de Investigaciones Diego Barros Arana, Dibam, 2017. 317p. Resenha de VALDEBENITO, Hugo J. Castro. Historia de las justicias latinoamericanas durante los siglos XVI y XIX. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Cultura legal y espacios de justicia en América. Siglos XVI-XIX constituye un verdadero esfuerzo colectivo por poner en el debate las policentricas y mul tidimensionales formas de aplicación de justicia durante el periodo colonial e inicios de la construcción del estado-nación en América Latina. Cuestiones como las intersecciones entre los delitos civiles y los de carácter religioso se trasponen en cada capítulo de la obra. Sus compiladores, los doctores Macarena Cordero, Rafael Gaune y Rodrigo Moreno, han reunido y coordinado 12 artículos que, divididos en dos partes tituladas la primera “Religiosidades y conflictos eclesiásticos”, y la segunda, “Lenguajes normativos”, practicas socioculturales y andamiajes políticos, profundizan a partir de estudios de casos los intersticios, las continuidades y rupturas en las diversas culturas legales de América Latina. Es por ello que su objetivo explicito es la exte riorización de aquellos intersticios, evidenciando ente otras cosas, como la crueldad, la clemencia, el castigo y el perdón tenían un mismo rostro (p. 10).
De manera que, siguiendo la división realizada por los compiladores, la primera parte del libro problematiza el cómo los actores locales nunca lograron alejarse del poder temporal, aún cuando las presiones de la Coro na y de la Iglesia americana, y el profundo regalismo ibérico desarrollado entre el siglo XV y el XVIII intentaban modificar aquello. La segunda parte en tanto, analiza la larga duración de las traducciones del orden jurídico en los diversos espacios locales y geografías americanas, configurando de este modo nuevos espacios de justicia mediante la praxis, la subjetividad, la participación de las comunidades y los andamiajes políticos locales (p. 12).
Sin embargo, el núcleo fundamental y lo novedoso de esta obra es que pone énfasis en el espacio.1 Más bien, en los espacios de justicia y sus procesos de transformación y adaptación, a partir de la acción de actores locales y subje tividades particulares, articulando la triada: actores, territorio y justicia (p. 15).
Siguiendo este planteamiento, el texto expone la necesidad de continuar con la inmersión en la territorialización e institucionalización de aquellos espacios de cultura legal, en especial durante el tránsito entre el siglo VI al XIX. El volumen colectivo reseñado pone de manifiesto en cada capítulo que aquella multiformidad de la cultura legal americana deriva de los procesos de acomodamientos territoriales desde donde operaban estas culturas lega les. En cuanto a esa territorialidad, se exponen los casos de Chile central, el Biobío, Chillan, Mendoza, Oaxaca, Santa Fe, Buenos Aires, el Rio de la Plata, Santiago y Lima.
Al analizar detalladamente la obra, nos encontramos con interesantes investigaciones que cumplen cabalmente el objetivo señalado por los autores al iniciar la obra. El primer artículo del volumen, titulado “Escenarios de sor presa; matrimonios clandestinos ante la audiencia eclesiástica de Lima, siglo XVII”, de la dra. Pilar Latasa, analiza profundamente el proceso de celebración de matrimonios clandestinos efectuados ante la audiencia de Lima, para corroborar si los novios que efectuaban dichos matrimonios de forma ilegal, recurrían a la sorpresa (p. 31) como mecanismo de saneamiento de la unión religiosa. La autora realiza un esfuerzo mayúsculo por indagar las motivacio nes que llevaban a los novios a realizar clandestinamente sus matrimonios.
Luego, el dr. René Millar desarrolla el artículo titulado “Las causas de canonización de los jesuitas Juan Sebastián y Francisco del Castillo. Procedi mientos y avatares. Siglo XVII-XX”, y nos muestra los intersticios evidentes entre la Compañía de Jesús y la sede religiosa en Roma durante las postu laciones a canonización de los jesuitas antes señalados, argumentando que dichos intersticios – determinados por las acciones misioneras, el ideal de santidad y la cultura legal de la Iglesia católica – dependieron necesariamen te de las practicas socioculturales desarrolladas en el Perú (p. 51). Posterior mente, el trabajo titulado “Configuraciones eclesiásticas del territorio. Una propuesta de abordaje: la diócesis de Buenos Aires en clave parroquial, siglo XVIII”, de la dra. Miriam Moriconi, se fundamenta en la pesquisa sobre la intervención de la justicia eclesiástica en la configuración territorial y homo logación jurídica de la justicia en la ciudad de Santa Fe. Afirma que la conso lidación de la justicia eclesiástica en el mundo católico se produjo de forma disímil y heterogénea (p. 84), provocando espacios de justicia que incluían una pluralidad de jurisdicciones con características distintivas uno del otro.
Al mismo tiempo, las dras. Ana Zaballa y Ianire Lanchas nos expo nen, en su artículo “Los conflictos entre la jurisdicción real y episcopal a fines del siglo XVIII, las problemáticas del obispo Oaxaqueño Gregorio Alonso de Ortigosa, quien debió defender su poder y jurisdicción del re galismo ibérico. En especial, las medidas tomadas por los doctrinarios para castigar a los feligreses de la diócesis de Antequera de Oaxaca, durante las últimas décadas del siglo XVIII. El artículo se ocupa de las discusio nes de jurisdicción, el poder de los curas y las reglamentaciones peninsu lares (p. 101), así como su impacto en los espacios de cultura mexicanos. Para finalizar la primera parte de este volumen colectivo, los compiladores presentan el trabajo de la dra. María Elena Barral, el cual lleva por títu lo “El bajo clero rioplatense: modos de abordaje de historias de gobierno local y de mediación social”. Su pesquisa toma como objeto de estudio a las parroquias rurales dirigidas por el llamado bajo clero rioplatense. El análisis realizado por la autora evidencia una preocupación por la modi ficación de roles y atribuciones que sufrieron los párrocos al concluir el periodo colonial (p. 132). Así también, expone sobre los procedimientos de resoluciones de conflictos que recaían en estos párrocos, quienes lograban – a través del ceremonial de “misión” – resolver controversias vecinales.
Al concluir la primera parte, se constata la importancia de los actores locales en la transformación e institucionalización de los procedimientos de justicia. El tránsito de lo colonial a lo nacional deja atrás ciertas conductas y homogeniza los espacios de cultura legal. Sin embargo, el rol jugado por la iglesia, sus contrariedades y discusiones con la justicia temporal, hacen que la lectura de aquella primera parte se vuelva lúdica e interesante al inves tigador que las consulta. Muchas preguntas quedan planteadas, dejando el texto en un evidente enchanche para continuar con la segunda y más exten sa parte de este volumen colectivo.
La segunda parte implica un evidente cambio de enfoque. La justica eclesiástica y los espacios de justicia modificados y acomodados por el papel de la iglesia quedan de antecedentes y el análisis se enfoca en los intersti cios de la cultura legal temporal, las instituciones y su dimensión política. Así, esta segunda parte inicia con el estudio del dr. Rafael Gaune, titulado “un manual en tiempos de guerra: Joost de Damhouder y la normativa de la paz en Praxis Rerum Criminalius (1554)”, quien propone que el concepto de paz se va modificando a partir del contexto histórico, las subjetividades y la participación de actores involucrados. Para lograr su objetivo, el autor realiza un interesante contraste con la realidad americana, tomando para ellos el caso de la guerra de los ochenta años entre España y los Países Bajos y las ediciones del manual de Joost de Damhouder: Praxis Rerum Criminalius.
En el siguiente trabajo, se comprueba que en Latinoamérica los espacios de cultura legal no fueron homogéneos, y que efectivamente se permearon de su contexto histórico y territorialidad, edificando praxis jurídicas hetero géneas en los diferentes puntos de aplicación de justicia. El artículo del dr. Ignacio Chuecas, titulado “Venta es dar una cosa cierta por cierto”, aborda analíticamente las formas en que la esclavitud infantil recubrió de un bar niz legitimario a partir de la costumbre y las prácticas ilícitas de agentes que no respetaban la normativa en materia de esclavitud indígena.
A continuación la dra. Macarena Cordero expone, en su trabajo titulado “Estrategias indígenas ante los foros de justicia”, como los indígenas de las zonas más rurales de Chile enfrentaron variados conflictos y controversias, siendo estos sometidos a la aplicación jurídica indiana. Su análisis logra ve rificar los mecanismos por los cuales los mismos indígenas lograron incluir en los procedimientos indianos, aplicaciones de justicia que los representara, considerando lo justo y legitimo para ellos (p. 210). Por su parte, la dra. Yéssica González realiza un bosquejo histórico en su artículo “Discurso y concepción jurídica del cautiverio colonial”, respecto las distintas reglamentaciones que han concurrido a las situaciones de cautiverio indígena. Analiza también el concepto del cautivo, a la luz del contexto histórico y territorial. También es interesante el estudio de la dra. Inés Sanjurjo, quien aporta a la obra con la investigación titulada “Gobierno, territorializacion y justicia. El curato de Corocorto en el periodo de cambio de jurisdicción de la capitanía de Chile al Virreinato de la Plata”. Este trabajo realiza un acabado análisis a la construc ción de espacios políticos por distintos actores durante el proceso de funda ción de nuevas villas en la provincia de Cuyo, Argentina. Lo interesante son los conflictos que dicho proceso pone de manifiesto, sobretodo aquellos que tienen relación con la superposición de poderes, derivados obviamente del hecho que los agentes, en muchos casos, poseían funciones jurisdiccionales que se entorpecían con las facultades de gobierno.
Víctor Brangier, por su lado, realiza una pesquisa que se ocupa básica mente de los juicios de conciliación, observándolos como mecanismos de resolución de conflictos civiles. Su artículo, titulado “Juicios de conciliación: raigambre en la cultura jurídica e hitos normativos. Chile. 1824-1836”, nos muestra y plantea como un espacio de justicia muta en ocasiones en espacio de política. Exalta en su trabajo la figura del juez local en su rol político de mantener la paz vecinal y social a través de la conciliación.
Finalmente, el último artículo de este volumen colectivo es del Dr. Darío Barreira, quien expone el caso de los jueces de paz de la ciudad de Rosario, Argentina. En su análisis, logra cohesionar el análisis historiográfico con la búsqueda de respuesta a las motivaciones de los vecinos para someter sus controversias ante la justicia. Analiza también la aplicación de esta justicia, que asegura se basó en la equidad como criterio para fallar. El artículo de este autor, titulado “La justicia de paz en la provincia de Santa Fe (1883-1854) justicia de proximidad, justicia de la transición”, resalta la importancia de analizar comparativamente las experiencias globales en ámbito de la con formación de espacios de justicia.
A mi juicio, la obra es completa, acabada e interesante, sin embargo se extraña un capitulo que realizara un balance historiográfico a nivel regional respecto de estudios sobre espacios legales y formas de cultura jurídica. Así también, hubiese fortalecido la obra un esfuerzo más amplio, desde el punto de vista geográfico puesto que hubiese sido relevante considerar los espacios de cultura legal en Brasil, a la luz de las controversias sobre la esclavitud, los castigos y sensibilidades en la aplicación de justicia en dicha nación.
La obra es un instrumento de consulta obligada para los investigado res, estudiosos y curiosos del binomio historia y justicia, su presentación es amable y su lectura expedita. En definitiva es un libro recomendable para ahondar en las problemáticas derivadas de la configuración de espacios, situaciones y cotidianeidades en la aplicación de justicia en América Latina.
Cabe señalar finalmente, que esta obra corresponde en gran parte a los textos presentados como ponencias en el seminario internacional realizado en la Universidad Adolfo Ibáñez, Chile, el 5 y 6 de agosto de 2014.
1Los autores recomiendan al lector introducirse al concepto de espacio en la obra de TOMAS Y VALIENTE, Francisco. Sexo barroco y otras transgresiones posmodernas. Alianza Editorial: Madrid, 1990.
Hugo J. Castro Valdebenito – Profesor e Investigador del Departamento de Historia de la Universidad de Playa An cha, Chile. Magister en Relaciones Internacionales por la Pontificia Universidad Católica de Valparaíso. Av. Playa ancha 850, Valparaíso, Chile. Facultad de Humanidades 4to piso. E-mail: hugo.castro@upla.cl.
Música e Ensino de História / História Hoje / 2017
Em nosso cotidiano, a música é distração e lazer, signo e linguagem, contato e convívio, percepção e diálogo acerca do mundo e da vida social. Podemos analisar a relação do ser humano com a música em diferentes perspectivas: os aspectos subjetivos, vinculados às percepções daqueles que ouvem e interagem com a música; as relações sociais que a música estabelece e proporciona em festas, shows e cultos religiosos e outros lugares de sociabilidade; a utilização da música como divulgação de modelos de linguagem, de estética e de posicionamento político; a sua construção como veículo de representações sociais que (re)produzem símbolos, valores e práticas cotidianas – e têm também uma forte dimensão crítica a eles; entre outros. A historiografia tem demonstrado que seja qual for a perspectiva, a utilização da música como fonte para a pesquisa requer do historiador conhecimentos e sensibilidades específicos, como o ouvido atento para as melodias e os olhos abertos para as letras, a compreensão de que a sua audição e dos demais está intimamente relacionada com seus respectivos contextos históricos, bem como o domínio da gramática básica da linguagem musical e das especificidades de cada gênero. Leia Mais
Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania cultural / Revista Transversos / 2017
A ambição discreta de ser ensaio ou tentativa move esta edição da Transversos. Trata-se aqui de experimentar, no sentido duplo do testar e do sentir. A moderação justifica-se diante da imensidade da questão: as vulnerabilidades. Investigá-las é apurar uma escuta “em abismo”, é tentar conhecer essa frequência incômoda. A tarefa, aqui, é mergulhar no historicamente silenciado em busca de seu som.
Dois termos conduzem as contribuições selecionadas: pluralidade e cidadania cultural. Das frestas de uma sociedade hoje globalizada, através de estreitas passagens que permitem alguma luz e algum ar, materializam-se corpos, rostos e vozes multiplamente apagados na história: vulneraribilis, do latim, “aquele que pode ser ferido”. Sujeitos que, na gramática da vulnerabilidade, são somente pessoas indeterminadas, cujo nome não se enuncia. Submetidos / sujeitados, são o avesso da versão luminosa dos indivíduos modernos – esse espécime em cujo nome se fala de liberdades, direitos e conquistas. No reverso de uma ordem discursiva eufórica, colhidos pela trágica contingência histórica e social, indivíduos e grupos confrontam-se cotidianamente com o risco, a adversidade e a deterioração forçada de seus laços e memórias.
Sem abrir mão da definição econômica de vulnerabilidade, novas reflexões sobre o tema permitem, hoje, ampliar não só o campo de exame do problema – nas ciências humanas e sociais, sobretudo – bem como rejeitar certo determinismo das visões tradicionais. A pobreza, condição decisiva dos grupos vulneráveis não é, assim, tomada como sinônimo de uma passividade incontornável. Nas franjas da lógica do mercado, de uma sociedade sempre disposta a reforçar e reinventar hierarquias, e disposta igualmente a multiplicar os preconceitos correlatos, um repertório de ações às vezes minúsculas, mas constantes, nos dá notícias da existência material e simbólica dessas coletividades e subjetividades caladas à força.
Nesse sentido, a Transversos traz aos leitores e leitoras a possibilidade de pensar a vulnerabilidade como pluralidades e como cidadania cultural, termos que nomeiam uma das Linhas de Pesquisa do Laboratório de Estudos Sobre as Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ). Aliás, é preciso que se diga, o próprio espaço institucional em que se situa o Laboratório experimenta, atualmente, as ambiguidades e as contradições do campo que elegeu investigar. Ao mesmo tempo em que é um espaço legítimo de produção de conhecimento científico, vivencia a situação de vulnerabilidade em que se encontra, hoje, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Produzir mais uma edição da revista é, assim, uma ação política de afirmação e de resistência de pesquisadores e pesquisadoras da instituição.
Este número marca também uma inflexão da própria linha de pesquisa, momento no qual se propõe uma ampliação do entendimento de vulnerabilidade. O conceito, que emerge do debate acerca dos Direitos Humanos, foi apropriado pela Saúde Pública com um fim específico, na década de 1980, o de demarcar os setores sociais com mais riscos de contaminação do vírus da Aids, considerando a relação entre a exposição à doença e a condição socioeconômica do vulnerável.[1] Logo as ciências humanas e sociais entraram no debate, refletindo sobre o perfil concreto da população considerada de risco. Esses estudos mergulharam no tema, investigando os contextos de desigualdade material e simbólica em que tais segmentos se encontravam. Para Rubens de Camargo Ferreira Adorno: “a expressão vulnerabilidade social sintetiza a ideia de uma maior exposição e sensibilidade de um indivíduo ou de um grupo aos problemas enfrentados na sociedade”.[2] O especialista em Saúde Pública acrescenta, ainda, que a vulnerabilidade “reflete uma nova maneira de olhar e de entender os comportamentos de pessoas e grupos específicos e sua relação e dificuldades de acesso a serviços sociais como saúde, escola e justiça”. As ponderações do autor fornecem alguns aspectos do caminho escolhido para mergulhar nesse debate.
Paulo Roberto Tonani do Patrocínio, no artigo que abre o Dossiê, oferece importantes chaves para a reflexão aqui desejada. Examinando as tensões entre identidade e diferença cultural, o autor mobiliza operadores conceituais decisivos, como o termo différance, cunhado por Jacques Derrida, para problematizar termos fundadores do pensamento ocidental contemporâneo, como, por exemplo, o fonocentrismo. Da perspectiva sugerida pelos Estudos Culturais e Literários, Tonani do Patrocínio atende ao debate sobre a vulnerabilidade ao dar espessura teórica às questões culturais e identitárias. No percurso proposto, problematiza matrizes discursivas dominantes e ilumina um caso específico, o tratamento discursivo da surdez, retirando-a, como assinala, “de uma leitura baseada na patologia e passando a compreendê-la como elemento formador de uma identidade própria: a identidade surda”.
Em seguida, Lucas Freire examina o modo como a luta pelos direitos das pessoas transexuais passa pelo reconhecimento de suas existências como humanas ou não no contexto das relações heteronormativas em que se amparam as representações jurídicas. Nessa relação entre saber e poder, embasado em sólida pesquisa, o autor mostra como o discurso médico é acionado de modo a dar inteligibilidade às existências e habilitá-las como portadoras de direitos civis.
Entre barracões de escolas de samba e a sala de aula: circulando os saberes da arte do carnaval, artigo de André Porfiro, recupera a singularidade da criação artística do carnaval das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, para, em seguida, experimentar esse conhecimento em sala de aula. A originalidade da abordagem é realçada pelo texto envolvente, através do qual percebemos que a contingência é a matéria-prima da “invenção”. Desta, como sugere o autor, é possível engendrar novas estratégias de ensino e aprendizado das Artes em uma escola pública do Rio de Janeiro.
Se a linguagem significa aquilo que entendemos como realidade, cabe, então, ao historiador desconfiar de categorias pré-estabelecidas. É o que faz Gustavo Sousa, ao problematizar a construção do Oceano Atlântico como espaço disciplinado-disciplinador, como diria Michel Foucault. Na dimensão concreta e simbólica do mar-oceano, os diferentes Estados Nacionais envolvidos no tráfico de escravos vão reivindicar o uso legítimo de suas águas utilizando, para isso, o moderno discurso jurídico do século XIX, conforme aprendemos do cuidadoso artigo.
Em Uma evangelização duvidosa: o caso do Frei Gaspar, Thiago Bastos de Souza propõe, a partir de fonte inédita, que experiências históricas não são nem essencializadas nem dualistas, mas sim marcadas pelas contradições entre os dispositivos que convocam a assumir categorias hierárquicas e a forma como cada indivíduo responde a tal chamamento. É o caso do processo aberto pelas mulheres indígenas do pueblo de Turuana contra o frei franciscano Gaspar. O ensaio minucioso equilibra reflexão teórica e manejo de dados empíricos. Não apenas no pleito das mulheres submetidas ao abuso sexual, bem como na figura de um mediador local, embaralham-se as certezas previamente dadas na historiografia sobre o período. A reflexão faz lembrar a afirmação de Stuart Hall, segundo o qual as identificações são “pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”.
Problematizar os papéis supostamente passivos das “excluídas” diante da atuação ativa dos “incluídos” é a proposta de Maria Eugenia Cruset em Imigración y exilio: el papel de las mujeres. Ao investigar a atuação de mulheres bascas na Argentina, a autora recusa-se a afirmá-las como simples vítimas, propondo-se a validar positivamente suas atuações políticas – ainda que se vejam inseridas em posições hierárquicas desiguais. Cruzet nos informa sobre as diferentes atuações e papéis destas mulheres imigrantes, enfatizando aquilo que Michel de Certeau definiria como um jogo de tática e resistência.
Ainda na perspectiva de renovação das pesquisas sobre migrações em seus aspectos transnacionais, El exilio radical y la última dictadura militar en Argentina, de María Soledad Lastra, analisa as tensões e conflitos dos exilados do partido argentino Unión Cívica Radical (1974-1983), grupo duplamente marcado por sua condição externa, no exílio, e sua condição interna, pois a UCR se manteve atuante na Argentina durante o período ditatorial. Para melhor compreender essa vulnerabilidade, Lastra apresenta o caso específico do jornalista argentino Miguel Ángel Piccato em seu exílio no México. Aqui, a suposta identidade oculta dos exilados é questionada para acentuar a naturalização de contradições como efeito dos próprios dispositivos de poder em que são construídas.
História, ficção e cinema: distopias sobre a personagem indígena argentina, de Juliano Gonçalves da Silva e Érica Sarmiento, apresenta uma perspectiva diferenciada acerca de duas produções cinematográficas contemporâneas: os filmes Jauja (2014) e Bolívia (2001), respectivamente do argentino Lisandro Alonso e do uruguaio Israel Adrián Caetano. Num caminho original, os autores examinam as duas obras sob o ponto de vista teórico da ficção, realçando a trágica persistência histórica do extermínio do indígena e seu apagamento discursivo e simbólico.
Desde Descartes, partimos do princípio do cogito para considerar a existência humana. A partir daí, a racionalidade guiaria a compreensão do que chamamos de realidade, presidindo nossa forma de atuação sócio-política, ética e estética. Em Aos simbolistas, as margens: experiências estéticas e subjetividades politicas marginalizadas, Mariana Albuquerque Gomes questiona a primazia da racionalidade como sistematizadora das ações políticas. Por meio de um sensível partilhado, conforme apresenta Jacques Rancière, a autora afirma a criação estética dos simbolistas brasileiros do final do século XIX como ato político. Tal produção resulta do desencanto desse grupo com a funcionalidade lógica da vida moderna e da percepção de que suas subjetividades políticas e estéticas não são aceitas como legítimas. O texto pensa a vulnerabilidade a partir de um exercício densamente teórico em torno da marginalidade, articulando referenciais historiográficos, filosóficos e sociológicos.
Reforçando a articulação entre vulnerabilidade e cidadania cultural proposta neste Dossiê, Flávia Almeida nos informa das relações socioeconômicas que as atrizes das companhias de teatro portuguesas vivenciavam no final do século XIX e início do século XX no Rio de Janeiro. Almeida destaca a precariedade das condições de trabalho dessas atrizes, inseridas num ordenamento social que as categorizava em identidades profissionais e de gênero hierarquicamente inferiores. No entanto, em meio às contradições do mercado teatral carioca, essas atrizes, como nos casos examinados, se apropriavam desses conflitos com vistas a defender interesses próprios, explorando afirmativamente as rivalidades instigadas pelos fãs e repercutidas pela imprensa, numa estratégia que ampliava a legitimidade de seu trabalho e o poder de suas vozes.
Na sessão Notas De Pesquisa, José Roberto Saiol e Lorelai Kury discutem o tema da modernização técnica e científica a partir do trabalho do ilustrador francês J. J. Grandville (1803-1847). Examinando a interação dos aspectos descritivos à natureza imaginada e propriamente artística das imagens, os autores mostram como a modernização penetra o cotidiano e é percebida na obra de Grandville. Na investigação dessa tópica visual específica, revelam-se importantes referências ao campo das artes, especialmente à música, à escultura e à literatura.
Em Do quimono à casaca: transformações e marcas identitárias no indumentário japonês, Jaqueline de Sá Ribeiro e Fabiano Vilaça apresentam um objeto de estudo pouco prestigiado pela historiografia brasileira: o “distante” oriente japonês e a moda, aqui tratada como fonte legítima de trabalho para o historiador. As relações de poder – tanto material quando simbólico – são problematizados por meio da indumentária. O resultado é uma análise sensível e inovadora do Japão em seu momento de transformação social em direção a uma sociedade moderna e ocidentalizada.
A sessão Artigos Livres se abre com a colaboração de Tatyana Maia, As comemorações cívicas do 1º de Maio nos cinejornais da Agência Nacional da Ditadura Militar (1964-1979). Em artigo marcado pela precisão e sensibilidade, a autora examina três diferentes momentos, refletindo sobre a evolução das representações visuais do trabalhador no período da ditadura civil-militar brasileira. Remontando ao Governo Vargas, estabelece e analisa as ressignificações políticas das relações entre trabalhador, patronato e Estado durante a ditadura. Das imagens fílmicas examinadas no artigo depreendem-se as linhas mestras da cultura visual oficialmente orientada: a figura do trabalhador simultaneamente partícipe e beneficiário da modernização-conservadora. Na contrapartida, como o texto demonstra, evidencia-se o silenciamento das vozes da oposição e dos movimentos sociais.
Aceleração do tempo e processo histórico em Reinhart Koselleck e Timothy Brook, de Luís Claudio Palermo, propõe um exercício de aproximação entre duas reflexões historiográficas distintas no intuito de aprofundar noções de tempo histórico. Em seguida, Luciana Christina Cruz e Souza, em Patrimônios possíveis: modernidade e colonialidade no campo do patrimônio, instiga à discussão sobre as categorias de episteme que definem o que é aceito como conhecimento inteligível e, por isso, verdadeiro. A partir da noção de colonialidade, a autora analisa os critérios de seleção do que é ou não um patrimônio cultural. O artigo questiona a especialização do saber embasada unicamente em referenciais teóricos globais do eixo norte, como forma universal de legitimação sobre o conhecimento das humanidades. Afirma, assim, a importância de criarmos categorias de pensamento próprias às experiências de colonialidade e de analisarmos o campo do patrimônio e as possibilidades de constituição de novos saberes para as políticas de preservação.
Em Favela, mídia e remoções: discurso jornalístico, imagens sociais e políticas públicas de habitação em favelas cariocas, Pablo Nunes problematiza o papel da imprensa na construção e sedimentação de imagens-estereótipos dos habitantes das favelas cariocas. O autor seleciona três momentos da história dessas comunidades na cidade do Rio de Janeiro para analisar a relação entre Estado, imprensa e sociedade na condução de políticas públicas direcionadas aos moradores de tais comunidades. Nunes destaca os jornais como demarcadores privilegiados da opinião pública, a qual legitima, por sua vez, as políticas violentas e segregadoras do espaço público, bem como naturaliza os tradicionais estereótipos dos chamados favelados.
Um aspecto pouco conhecido do cristianismo é apresentado em Ritos de humilhação: al-qasim ibn ubaydallâh e os cristãos coptas (734-741), de Alfredo Bronzato da Costa Cruz. A vivência dos cristãos coptas, dentro da experiência histórica de um Egito controlado politicamente pelo califado omíada é marcada por repressões, explorações e humilhações públicas destes cristãos por não partilharem da fé islâmica. Por meio da História do Patriarcado Copta de Alexandria, o historiador analisa as táticas de resistência dessa comunidade ao criar uma realidade na qual os eventos ocorridos adquiriram significados religiosos que possibilitaram a união e preservação do grupo. Aqui, mais uma vez, a importância do cultural se faz presente nas estratégias de construção de si e do outro por meio de significações partilhadas socialmente.
Finalizando essa edição, Horacio Miguel Hernán Zapata apresenta a resenha do livro Una “guerra que se continúa por otros medios”. Acerca de los Tratados de Paz entre el estado argentino y las sociedades indígenas de la Frontera Sur (1850- 1880), de Graciana Pérez Zavala. A obra aborda os conflitos e negociações entre o Estado Nacional Argentino e as chamadas fronteras interiores (Chaco, Pampa y Patagonia), região em que o governo argentino não conseguiu estabelecer seu controle durante o século XIX. O autor destaca a renovação interpretativa empreendida por Pérez Zavala, autora que destaca, ao lado das ações violentas, o modo como o governo central teve que desenvolver outras formas de atuação – diplomáticas – com as comunidades indígenas para, assim, negociar o estabelecimento de suas fronteiras. Aqui, novamente, as relações históricas não são polarizadas entre vítimas e opressores; destacam-se, outrossim, suas características híbridas, os confrontos e negociações entre os grupos analisados. O que contribui para o atual debate sobre as demarcações de terras indígenas e os direitos das populações originárias da América dentro dos Estados nacionais modernos.
As múltiplas respostas à chamada desta Transversos confirmam o quanto pulsam, inquietos, o pensamento e a curiosidade. Os vulneráveis são aqui os que resistem; são os que delatam a falha do discurso. Aqueles que, na sua forçada inexistência e mudez, insistem em apontar as fraturas do mundo e em desenhar seus nomes com letras, às vezes mínimas, no livro cotidiano.
Esta edição não seria possível sem a colaboração de José Roberto Saiol, Juliana Martins, Priscila Araújo e Paulo Henrique Pacheco. Juntos, inauguramos a nova fase da Transversos, que passa agora a sair trimestralmente. Visibilidade e vida longa.
Notas
- A esse respeito, consulte-se Carolina Salomão Corrêa. Violência urbana e vulnerabilidades: O discurso dos jovens e as notícias de jornais. Rio de. Janeiro, PUC-RJ, 2010, Tese de Doutorado.
- Rubens de Camargo Ferreira Adorno. Um olhar sobre os jovens e sua vulnerabilidade social. São Paulo: AAPCS -Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária, 2001
Laura Nery
Marina Carvalho
Rio de Janeiro, 17 de abril de 2017.
CARVALHO, Marina; NERY, Laura. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 9, jan. / abr., 2017. Acessar publicação original [DR]
A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos | James Scott
Com o recente lançamento de A dominação e a arte da resistência pela livraria Letra Livre de Portugal (especializada em escritos libertários) podemos enfim dispor em língua portuguesa de uma das principais obras de James C. Scott. Até então os interessados nas ideias deste autor no Brasil tivemos de nos contentar com as traduções de uns poucos artigos publicados em periódicos acadêmicos.3
Há cinco décadas James C. Scott, professor de Ciência Política e Antropologia da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, vem produzindo uma extensa obra que abrange diferentes campos de estudos, como economia política, relações agrárias, hegemonia e formas de resistência, política camponesa e, mais recentemente, anarquismo. Entre os seus livros mais importantes estão: The moral economy of the peasant (1979), Weapons of the weak (1985), Seeing like a state (1998) e The art of not being governed (2009). Leia Mais
Cultura material no universo dos Impérios europeus modernos / Anais do Museu Paulista / 2017
Render-se ao óbvio
Os eventos da história podem significar para o pesquisador um encontro com as formas materiais que deles são parte. Essas podem, para quem lhes é sensível, funcionar como um choque sensorial. [2] Nessa agressão aos sentidos do investigador pode fundamentar-se a força da leitura dos artefatos de modo a compreendê-los. Dependendo da sensibilidade do pesquisador (e de suas escolhas) a compreensão dessas estruturas materiais leva-o a vê-las como coisas do homem e, mais ainda, partes do humano. Às vezes, as percebe como componentes indistintos das opções do homem, de suas ações, de seus atos, enfim, dos fatos históricos. Os fatos do homem social incorporam indivisivelmente seus artefatos.
Pensar sobre os elementos materiais da cultura e tê-los como fonte de compreensão do mundo dos homens é o que fazem os autores que apresentam interpretações do mundo neste dossiê. Mundo de vários tempos; temporalidades que buscam uma certa unidade desigual. Embora marcadas, pelos organizadores do dossiê, como “o universo dos impérios europeus modernos”, são complexas e díspares as temporalidades próprias deste universo. Os tempos marcam os objetos tanto quanto os objetos marcam o tempo. Os elementos materiais dos “impérios europeus modernos” têm a diversidade dos mesmos impérios na modernidade. Vastos impérios! Tempos diversos! Artefatos amplos! Sacros, de consumo, simbólicos, significativos e de técnicas, não importa, são as coisas materiais dos gestos do homem.
Os objetos dão-nos a compreensão de nós e dos outros. Identificam culturas e nos evidenciam a “marcha do tempo”. Do tempo dos homens. Do homem no tempo.
Alguns diagnosticam os objetos como a parte “não humana” da vida. Ora, é preciso desumanizar a vivência humana para perceber o material como humano e ver a vida social como a indivisibilidade entre o humano e o material. Em exercício de contraponto é necessário humanizar o artefato. O conjunto de objetos de uma vivência, a chamada “cultura material”, é mais que o trabalho do homem, o seu produto, o consumo do homem, a técnica e a tecnologia que ele cria, o saber que ele inventa, o progresso da sociedade humana, a simbologia ou a filosofia do homem. O objeto é o homem; é a extensão do seu gesto. É o próprio gesto.
O gesto é artifício, é expressão, é movimento corporal que une o corpo e a materialidade própria do organismo humano. O artefato, materialidade que estende o gesto ao seu mundo, é instrumento das intenções, opções e sentimentos do homem.
Como lê o objeto o historiador, o antropólogo, o sociólogo, o filósofo? Como reflexo, representação, apropriação? Deveria lê-lo como indistinguível do humano! O artefato é legível como mercadoria, consumo, convivialidade, celebração, urbanidade, ruralidade, produto, trabalho? Os textos que se seguem respondem a esses questionamentos e levantam questões novas para se pensar o homem social e a cultura material que ele constrói.
A “cultura material” indefinida e indefinível não existe mais para o cientista social. Ela tornou-se definível com claridade ao conjugar-se com a dinâmica do homem social e com as leituras das várias disciplinas sociais.[3] Teorias e perspectivas distintas têm contribuído para enriquecer as análises da materialidade das vivências históricas, a despeito de ser comum, ainda, lermos e ouvirmos discursos que clamam por maiores definições do que seja “cultura material” e por metodologias que permitam seu uso como fonte de compreensão da história dos homens.
Há, entretanto, uma dinâmica tradição nas ciências humanas em tomar o campo da cultura material para se compreender as vivências históricas. Essa dinâmica, como é próprio às tradições, se apresenta em ritmos de manutenção de perspectivas e de questionamentos a formas de análises e de leitura dos artefatos. Uma nova antropologia do consumo, por exemplo, crítica à perspectiva semiótica – que trata a materialidade como algo inanimado ou simples instrumento da representação social – impõe ao objeto a condição de constituinte do homem.[4] Aí o artefato material é gerador de sentidos para a compreensão das sociedades, não apenas para a representação delas. O simbólico e o material são, assim, analisados como unidade.
Para Daniel Miller, os trecos materiais “têm uma capacidade notável de se desvanecer diante de nossos olhos, tornam-se naturalizados, aceitos como pontos pacíficos, cenário ou moldura de nossos comportamentos.”[5] A solução para Miller seria, então, colocar nossas abstrações teóricas “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram”.[6]
De modo geral, a historiografia, com honrosas exceções que não enumeraremos aqui para não cometermos injustiças, costuma dar um tratamento analítico restrito à chamada “cultura material”, tratando-a como reflexo da construção social e não como um repertório de manifestações e de elementos da cultura integrados em sua constituição histórica. Assim, os artefatos, os objetos, as materialidades são vistos como produtos, como consumos, como instrumentos técnicos do homem em sociedade, quando deveriam ser analisados como documentos do viver, das experiências de vida.
Não se deve ler os objetos deslocados do seu uso, dos seus sentidos sociais. Um garfo, por exemplo, tem sentido tanto como instrumento, quanto gesto humano; tanto como artefato, quanto fato. Um garfo é detentor de sentidos sociais. O garfo é um fato sócio-histórico.
A despeito da crítica acima, é grande a contribuição dos estudos de cultura material na área de história. Como vem acontecendo em sua tradição, ela possibilita aos historiadores compreender dimensões importantes da sociedade ao aquilatar a produção de riquezas, as construções técnicas e tecnológicas, as especificidades de categorias sociais, as distinções de ritos da vida, as representações sociais e simbólicas etc. Contribuição maior esses estudos dão quando dimensionam junto com tudo isso as experiências humanas, as vivências. Os objetos, afinal, são parte do conjunto complexo e dinâmico do viver.
De tão presentes, comuns, banais [7] e importantes para a vida, tendemos a naturalizar os objetos, desumanizá-los. Esquecemos que são construções do homem; são cultura. Repetimos a forma dicotômica de tratar o humano opondo as tríades mente / pensamento / linguagem à corpo / prática / matéria. Ao naturalizar os artefatos determinamos a eles a condição de obviedade de clareza axiomática, evidência intuitiva. É preciso valorizar o que parece óbvio; pensar as obviedades com curiosidade cognitiva. Necessário, enfim, deixar de opor o material ao simbólico, como temos deixado de opor o natural ao cultural.
Os textos que aqui se apresentam rendem-se à riqueza do que é óbvio. Eles impõem aos artefatos da vida a historicidade da qual são parte.
Notas
2. Farge (2015, p. 7).
3. Rede (2012), Appadurai (1986).
4. Miller (1987, 1998, 2013).
5. Miller (2013, p. 228).
6. Miller (2013, p. 230).
7. Roche (2000), Garcia (2011).
Referências
APPADURAI, Arjun. (org.). The social life of things. Cambbridge: Cambridge University Press, 1986.
FARGE, Arlette. Le peuple et les choses. Paris au XVIIIe siècle. Montrouge: Bayard, 2015. GARCIA, Tristan. Forme et objet. Un traité des choses. Paris: PUF, 2011.
MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987.
MILLER, Daniel. (org.) Material cultures: Why some things matter. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.
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José Newton Coelho Meneses – Docente do Departamento de História – FAFICH-UFMG.
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Arte e cultura material africana no Brasil: um campo em construção / Anais do Museu Paulista / 2017
Quando recebi o convite para organizar um dossiê dos Anais do Museu Paulista que tivesse como foco a cultura material da África, deparei-me com o grande desafio de encontrar estudiosos no Brasil que pudessem colaborar com esta edição. Se os nossos laços históricos com o continente africano propiciaram o estudo de temáticas abordadas por diversas áreas do conhecimento – como é o caso daqueles relativos à escravidão e mais recentemente os voltados para a história da África, que têm apresentando notáveis avanços no país – o mesmo não se pode dizer dos estudos que focalizam especificamente a cultura material africana, seja no domínio da arqueologia, da história social ou da história da arte.
Trata-se, sem dúvida, de um campo em construção, em que as iniciativas e ações para o seu fortalecimento são ainda bastante tímidas. Não é fácil compreender os motivos para toda essa falta de atenção, ainda mais se lembrarmos que o primeiro artigo que se tem notícia dedicado ao tema no Brasil data de 1904 – “As Bellas Artes nos colonos pretos do Brazil” – escrito pelo médico maranhense Nina Rodrigues, que abordou pioneiramente um conjunto de peças afro-brasileiras e africanas.
Se, por outro lado, pensarmos na existência e formação das coleções africanas no Brasil, é possível afirmar que sua presença também não pode explicar esse quadro deficiente. A coleção africana do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, tem, por exemplo, peças que entraram para o acervo desde o início do século XIX e, em meados do século XX, ela estava amplamente formada. Já a coleção africana do Museu paraense Emilio Goeldi, que foi constituída por peças coletadas na África central entre 1887 e 1904, passou a fazer parte do acervo do Museu desde a década de 1930.
Em 1958, Pietro Maria Bardi, em correspondência trocada com o galerista húngaro Ladislas Segy, tornou evidente o desejo de formar uma coleção africana para o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Apenas um ano depois, Agostinho da Silva, uma das figuras fundamentais na criação do Centro de Estudos Afro-Orientais, em Salvador, também manifestou o interesse em formar uma coleção africana desde a exposição “A Arte de um povo de Angola”, realizada, em 1959, na Universidade da Bahia, com peças do Museu do Dundo.
Em 1969, Ulpiano Bezerra de Meneses, então diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, colocou em prática o projeto de formar uma coleção africana para o MAE. Antes disso, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, havia adquirido um conjunto de peças africanas que pertenceu ao diplomata Gasparino da Mata e Silva.
Desde então, outras iniciativas voltadas para formar coleções africanas no Brasil foram encabeçadas por figuras como Pierre Verger, que se mostrou fundamental na formação, entre outros museus, da coleção do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia, inaugurado em 1982. Mais recentemente, Emanoel Araujo foi determinante na constituição da coleção africana do Museu Afro Brasil, em São Paulo, instituição aberta em 2004.
Ainda que não seja voltado para o estudo dessas coleções africanas existentes em museus brasileiros, este dossiê tem o papel de colaborar para que mais um passo seja dado para o fortalecimento, no Brasil, do campo de reflexão sobre a cultura material da África, oferecendo aos leitores algumas das diferentes abordagens possíveis. Desde o início, imaginamos apresentar artigos de pesquisadores brasileiros e do exterior, de modo a permitir a confrontação de diferentes metodologias que vêm sendo aplicadas em estudos envolvendo o que se convencionou chamar de objetos, peças ou obras de arte da África.
O primeiro artigo, denominado “Tecido estrangeiro, hábitos locais: indumentária, insígnias reais e a arte da conversão no início da Era Moderna do reino do Congo” foi desenvolvido pela historiadora da arte e professora da Universidade de Chicago Cécile Fromont. Utilizando o conceito de “espaço de correlação”, já explorado em seu livro The Art of Conversion: Christian Visual Culture in the Kingdom of Kongo, publicado em 2014, Fromont analisa as elaboradas transformações religiosas, políticas e materiais do reino do Congo, tendo como foco objetos como roupas, chapéus, espadas e imagens religiosas.
Já o artigo “‘Clara como céu, escura como água do Luembe’: trajetórias, usos e significados das contas de vidro entre as populações da África CentroOcidental (Lunda, 1884-1888)” é de autoria da historiadora e doutoranda Marcia Cristina Pacito Fonseca Almeida, no qual nos oferece um desdobramento de sua dissertação de mestrado. Aborda como a cultura material foi inserida na agenda científica da expedição portuguesa à Lunda, chefiada por Henrique de Carvalho entre 1884 e 1888, demonstrando o relevante papel que as contas vítreas, mais conhecidas como miçangas, desempenharam entre as sociedades centro-ocidentais africanas com as quais esse militar português teve contato.
De outra parte, Ana Cristina Pessoa Tavares e Maria do Rosário Antunes Rodrigues Martins, ambas do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, produziram o artigo “Singularidades museológicas de uma tábua com esculturas em diálogo: do alambamento ao casamento em Cabinda (Angola)”, no qual analisam a rica narrativa da tábua de casamento recolhida pelos missionários do Espírito Santo, revelando como um único objeto pode ser de grande relevância para a compreensão dos códigos sociais e simbólicos compartilhados pelos cabinda. Lembro que essa mesma tábua de casamento foi exposta em São Paulo na mostra “Da Cartografia do poder aos itinerários do saber”, realizada pelo Museu Afro Brasil em 2014.
O artigo seguinte – “As esculturas cokwe como respostas às assimetrias civilizacionais” – é de minha autoria e se trata de um desdobramento de minha tese de doutorado. Enfoca uma das muitas iniciativas desenvolvidas pelo Museu do Dundo voltadas para a preservação da produção artística dos povos da Lunda. O receio da extinção de uma arte reminiscente do “tempo tribal” fez com que o Museu do Dundo mantivesse em seus domínios um grupo de escultores a fim de evitar que as transformações ocasionadas pela situação colonial influenciassem os trabalhos desses homens. No artigo, busco mostrar como os anseios fictícios do Museu em relação a esses artistas foram fundamentais para compreender as constantes tensões e dificuldades em enquadrar no seu espaço esses homens e suas produções.
Em seguida, apresentamos o artigo de Lia Dias Laranjeira, antropóloga e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira (UNILAB), denominado “Migração makonde, produção de esculturas e mercado de arte no Tanganyika: a questão do estilo Shetani (1950-60)”, que tem como objetivo mostrar como a escultura makonde é um exemplo paradigmático de uma produção escultórica que marca a transformação dos tipos das peças e a relação dos escultores com os comerciantes dessa arte. Laranjeira explora ainda como o contexto de criação desse tipo de escultura no Tanganyka relaciona-se diretamente com a imigração em massa dos makonde de Moçambique para o norte do Rio Rovuma entre as décadas de 1950 e 1960, por conta da violência do regime colonial português.
Encerra o dossiê o artigo de Marta Heloisa Leuba Salum (Lisy Salum), professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. A antropóloga se destaca como a mais importante estudiosa da arte africana no país, tendo um papel primordial na construção desse campo. “Vistas sobre arte africana no Brasil: lampejos na pista da autoria oculta de objetos afro-brasileiros em museus” é o único artigo deste dossiê voltado para as produções afro-brasileiras e nele Lisy Salum expõe, conforme suas palavras, “uma experiência de interpretação de objetos em coleções atribuídos aos antigos candomblés, a partir da formação prévia de um corpus composto de esculturas publicadas por estudiosos da primeira metade do século XX”. Trata-se da publicação de parte de um estudo mais amplo da autora focado em reconhecer as “marcas de um Brasil africano ou de uma África brasileira em objetos de coleção”.
Esperamos que as diferentes propostas de análise da cultura material africana ou afro-brasileira apresentadas neste dossiê sejam um convite para que novos pesquisadores explorem esse rico universo temático, alargando um grupo ainda pequeno e colaborando para a consolidação desse importante campo de estudos no Brasil.
Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua – Historiadora, mestra e doutora em História social pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisadora no Museu de Arte de São Paulo (MASP).
BEVILACQUA, Juliana Ribeiro da Silva. Introdução – Arte e cultura material africana no Brasil: um campo em construção. Anais do Museu Paulista. São Paulo, n. Sérv., v.25, n.2, p.7-10, mail./agor., 2017. Acessar publicação original [DR].
Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil / Anais do Museu Paulista / 2017
Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil [1]
Entre 2012 e 2016, o Brasil teve dois de seus mais importantes marcos urbanos reconhecidos como patrimônio mundial pela Unesco. No Rio de Janeiro, essa honra recaiu sobre as “paisagens cariocas, entre o mar e a montanha” e, em Belo Horizonte, sobre o conjunto moderno de Pampulha. No primeiro deles, o perímetro de proteção abrangeu as montanhas cobertas de florestas tropicais do Parque Nacional da Tijuca, os famosos picos de granito do Corcovado e do Pão de Açúcar e parques como o Jardim Botânico, o Passeio Público e os jardins do Aterro do Flamengo. Na capital de Minas Gerais, a nominação incluiu os edifícios de Oscar Niemeyer que pontuam a lagoa da Pampulha, entre os quais se destaca a igreja de São Francisco de Assis e sua curvilínea silhueta, criações que deram a esse arquiteto brasileiro o início de seu reconhecimento internacional. Mas essas duas decisões da Unesco também constituem, em seus textos justificativos, uma homenagem explícita ao mais famoso paisagista brasileiro: Roberto Burle Marx (1909-1994). São de sua concepção a maior parte dos jardins da Pampulha, bem como os do Aterro do Flamengo e aqueles ao longo da praia de Copacabana, esses últimos ornados com mosaicos de pedra portuguesa igualmente desenhados pelo paisagista.
Burle Marx começou a obter seu reconhecimento internacional a partir da década de 1940. Foi nessa época que o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) exibiu projetos seus pela primeira vez, que passaram também a ser publicados regularmente nas páginas de revistas especializadas europeias e norteamericanas. A criação de novas linguagens artísticas modernas e a utilização de plantas tropicais em projetos de Burle Marx garantiram a presença de parques e jardins brasileiros em livros de referência sobre design paisagístico do século XX. As homenagens agora realizadas pela Unesco podem ser consideradas o ponto culminante desse processo de consagração internacional.
Mas para além das criações do mestre do paisagismo brasileiro do século XX, pode-se dizer que muitos outros parques considerados bens patrimoniais no Brasil – alguns deles datando dos séculos XVIII e XIX – são simultaneamente tema de interesse para pesquisadores, para gestores da esfera pública e para os cidadãos. Patrimônio multifacetado, esses espaços, que vêm atuando há séculos como mediadores da sociabilidade urbana, merecem mais atenção. Eles acolheram espécies de plantas de todos os continentes e permitiram experiências de criação artística e práticas inovadoras alcançadas por meio de sínteses realizadas por paisagistas, por jardineiros e por artesãos dedicados à sua ornamentação. Essas práticas paisagísticas, amplas e diversificadas, foram eclipsadas por aquelas advindas dos jardins tropicais criados por Burle Marx ou por seus discípulos, associados ao movimento moderno de arquitetura e de paisagismo. E, com efeito, a compreensão desse importante patrimônio cultural permaneceu, quase sempre, limitado principalmente aos aspectos relativos à sua concepção formal.
Pouco estudados pelas ciências humanas e sociais no Brasil, os parques e jardins de suas cidades são, no entanto, um objeto particularmente rico para quem está interessado nos modos de conceber, organizar, frequentar e preservar o espaço público. [4] Além disso, seu exame também permite iluminar questões e conflitos sociais, políticos e simbólicos. Esses locais, verdadeiros laboratórios de relações da sociedade, atravessam a história do urbanismo, do paisagismo e das políticas de definição e preservação do patrimônio cultural em nível local, regional ou nacional, bem como a própria história social das cidades. Tal temática também abrange o estudo da flora – que é selecionada, organizada e também revisitada para a composição e o desenho de um parque ou jardim – o que, no Brasil, ainda a relaciona ao imaginário dos trópicos e sua problematização. A escala, a preservação e a utilização dos espaços verdes das cidades brasileiras são, por fim, indicadores indispensáveis das condições da vida urbana. E se sua configuração atual nos interessa, tal se dá por relacionarem-se a uma história complexa, em que os mais diversos interesses econômicos e políticos ali convergem e se encontram. Tais lugares podem, portanto, tornarem-se ícones, dimensão que muito diz sobre o país, sobre as cidades e sobre a história que os moldaram. Trata-se, ao fim e ao cabo, de espaços-chave que, situados no centro das cidades e da vida urbana, viabilizam os encontros, o viver coletivo, o aprendizado tanto dos convívios quanto das exclusões, do reconhecimento entre os iguais e da experiência das desigualdades.[5] E constituem, sempre, referências centrais no mapa mental dos habitantes de uma cidade.
Inscritos na paisagem urbana brasileira desde o período colonial, os parques e os jardins remetem, assim, às tradições luso-tropicais de agenciamento desses espaços. O Passeio Público do Rio de Janeiro, criado na década de 1780, foi inspirado em jardins geométricos franceses, modelo que foi reinterpretado em Portugal e em seu mundo colonial. Ele é o exemplo mais conhecido do surgimento desses novos espaços urbanos brasileiros que, durante a segunda metade do século do século XVIII, associavam referências formais vindas da Europa ao cultivo de plantas nativas da América ou das Índias Orientais.[6] Nesse sentido, tais espaços foram laboratórios em que se reformulou a arte dos jardins vinda da Europa, favorecendo não apenas a reinvenção morfológica, mas também a seleção e adaptação de múltiplas espécies aos diferentes climas do Brasil. Essa aliança entre organização espacial e aclimatação vegetal marcou os jardins de numerosas cidades do país ao longo do século XIX.
Os parques e jardins franceses de estilo paysager concebidos e construídos em Paris durante o Segundo Império, de imensa repercussão internacional, constituíram outra referência para o paisagismo brasileiro, o que favoreceu a instalação de profissionais franceses em diversas cidades do país. O percurso profissional e a produção de Auguste Glaziou (1828-1906), o mais conhecido mediador dessas práticas paisagísticas entre a França e o império brasileiro, vem sendo tema de estudos recentes dedicados à compreensão de seu modo de trabalho e das soluções assumidas por ele em suas criações.[7] Seus discípulos frequentemente conciliaram a evocação do pitoresco, a técnica das rocailles (falseamento de pedras e troncos) e os traçados naturalistas característicos do estilo paysager com as aleias neoclássicas de palmeiras imperiais (Roystonea oleracea). Assim, Glaziou e seus seguidores realizaram sínteses audaciosas entre repertórios formais que se oporiam na Europa, fazendo com que o Brasil se tornasse berço dessas novas sínteses criativas. A reflexão sobre o paisagismo aqui se dava por meio das práticas, realizadas por agentes de origens diversas, cujas obras, muito embora fossem inspiradas em ideias e técnicas em voga na Europa, eram marcadas por especificidades locais.
Na virada para o século XX, a urbanização massiva ocorrida nas grandes cidades brasileiras – impulsionada pelas vagas de imigrantes e pelas intervenções urbanísticas ocorridas nas capitais por determinação das novas autoridades republicanas – reforçou a importância dos jardins e dos parques. Movidos por um imaginário europeizante, no mais das vezes afrancesado, os governantes multiplicaram as encomendas. Iniciativas de melhoramento e embelezamento foram facilitadas pela presença de artesãos qualificados em inúmeras especialidades, a maioria deles imigrantes, contratados tanto pelas autoridades públicas quanto pelas elites urbanas possuidoras de palacetes cercados de imponentes jardins privados.
Parques e jardins tornaram-se, então, verdadeiros cenários a céu aberto, que permitiam a exibição dos corpos de mulheres e homens de elite, a realização de práticas de lazer pelas camadas populares, bem como a percepção recíproca das diferenças sociais devidas tanto à emergência das classes médias quanto à própria complexificação da composição social. Espaços civilizacionais dos cidadãos por excelência, os jardins foram também lugares em que floresceram os equipamentos arquitetônicos e soluções paisagísticas característicos da Belle Époque: coretos para apresentações musicais, pavilhões, pérgulas, espelhos d’água, fontes e chafarizes, monumentos, bustos, esculturas e elementos decorativos variados, além de aleias e canteiros dos mais diversos tipos.[8]
Entretanto, conhecemos ainda muito pouco sobre a produção paisagística da Belle Époque brasileira. Os preconceitos interpretativos sobre tal produção, herdados do modernismo, estabeleceram uma barreira poderosa e longeva que desfavoreceram o seu estudo. Os idealizadores, artesãos e demais profissionais que a realizaram e mantiveram esses espaços são sempre ignorados. Tomados até muito recentemente como simples cópias sem grande interesse de modelos europeus, os jardins [e parques] da Primeira República começaram, a duras penas, a serem vistos como expressões efetivas de releituras locais em relação a seus referenciais. A retomada dos princípios paisagísticos herdados de Le Nôtre que caracterizou o paisagismo corrente nas principais cidades brasileiras a partir da década de 1900 – e que ali se deu quase simultaneamente ao que também ocorria na França – conectou tais cidades aos circuitos mundiais de difusão e de reelaboração desses princípios. Paisagistas franceses aqui estabelecidos foram promotores de tal fenômeno, sendo numerosos tanto no Brasil quanto em outros países latinoamericanos como a Argentina e o Uruguai, bem como no Ultramar francês.
Esse quadro foi transformado radicalmente a partir da década de 1930, quando a arquitetura moderna se aproximou das formas concebidas por Burle Marx para seus jardins brasileiros. Esse paisagista revolucionou as associações entre as floras nativa e exótica, bem como as relações entre espécies vegetais e os elementos arquitetônicos, em negação radical das referências historicistas correntes nas décadas anteriores. Autor de projetos que contribuíram de modo significativo para a configuração das identidades urbanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, entre outras cidades brasileiras, tanto quanto de obras icônicas do paisagismo de cidades [estrangeiras], tropicais e subtropicais, como Caracas, Kuala Lumpur ou Miami, Burle Marx é incontestavelmente o grande nome do paisagismo brasileiro do século XX. E esse protagonismo vem sendo reconfirmado no presente graças a exposições realizadas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.[9]
A notoriedade incontornável de Burle Marx acabou, entretanto, por eclipsar uma produção variada tanto de parques e jardins que se vinculavam e reinterpretavam as correntes paysagère e historicistas, quanto aos muitos outros que se inseriam nos princípios modernistas ou pós-modernos. Essas realizações paisagísticas vêm, contudo, sendo (re)conhecidas, de maneira cada vez mais sistemática, graças a pesquisadores prontos a documentar produções e percursos profissionais para além das armadilhas conceituais estabelecidas pela tradição interpretativa modernista.[10]
Essas complexas intervenções urbanas de caráter paisagístico tornaram-se tardiamente um objeto de atenção por parte dos órgãos responsáveis pela preservação e valorização do patrimônio cultural. Frequentemente negligenciadas e, por vezes, destruídas – como foi o caso dos parques do centro da cidade de São Paulo concebidos pelo francês Joseph-Antoine Bouvard (1840-1920) – tais obras paisagísticas sofreram as consequências das tensões entre os interesses públicos e privados (sob o pano de fundo da especulação imobiliária), bem como daquelas que privilegiaram a expansão de avenidas em detrimento da expansão ou da preservação dos espaços verdes.
Essas contradições, se se mostram particularmente agudas hoje em dia, não são, no entanto, recentes e menos ainda exclusivas da contemporaneidade. Pelo contrário, estão enraizados em uma longa história de conluio entre os interesses privados e a ação das autoridades públicas nas cidades brasileiras, especialmente no que se refere à propriedade e à especulação da terra. Os processos de urbanização, frequentemente violentos e sem planejamento, são responsáveis pelo limitado espaço disponível para os jardins [e parques] urbanos e também por seu abandono devido à sua falta de rentabilidade.
Este dossiê, sem pretender ser exaustivo, volta-se a momentos marcantes da história dos parques e jardins no espaço público brasileiro. Os artigos que o compõe se atém a temas, atores, práticas sociais e conflitos políticos caracterizaram esses espaços ao longo de sua trajetória. Várias são as abordagens utilizadas, capazes de configurar não apenas a riqueza temática proporcionada pelo objeto proposto, mas de trazer à tona aspectos que lhe são comuns.
Cristiane Maria Magalhães volta-se a uma técnica ornamental utilizada ao longo do século XIX e princípios do século XX – a rocaille – bem como aos artesãos que a dominavam e difundiam. Concentrando-se especialmente no Sudeste brasileiro, a autora reconstitui os percursos de dois dos rocailleurs mais importantes do período – o francês Paul Villon e o português Francisco da Silva Reis. Almejando mimetizar a natureza, as rocailles geralmente imitavam a textura de troncos de árvores e de pedras por meio do uso de cimento. Elas podiam ser encontras sob múltiplos formatos, tanto em ornamentos quanto em equipamentos habitualmente presentes nos jardins em estilo paysager: pontes, bordas de lagos e espelhos d’água, cascatas e grutas artificiais, mirantes, coretos e pavilhões, bancos de jardim, mesas, refúgios… E, segundo o gosto da época, as rocailles não eram exclusivas de espaços públicos, pois famílias abastadas as utilizaram tanto em jardins de suas residências urbanas quanto em fazendas. Apesar da sua disseminação, a moda das rocailles não deixou muitas pistas fáceis para sua documentação, haja visto, por exemplo, a raridade de assinaturas de seus artífices inscritas em suas criações. Muitas das obras desapareceram com a chegada, logo após sua voga, do paradigma estabelecido pela arquitetura moderna, também adotado pelo paisagismo e pelo urbanismo brasileiros de então. A autora deste artigo mobilizou diversas fontes para identificar as obras remanescentes, bem como para reconstituir o savoir-faire dos técnicos especializados em rocailles [– chamados por vezes de cascateiros –] que, numa época de grandes intervenções urbanas, trabalharam primeiramente no Rio de Janeiro e em seguida em muitas outras cidades do país.
Aline de Figuerôa Silva leva-nos aos jardins de Fortaleza, no Nordeste do Brasil, na passagem dos séculos XIX e XX. Examina as relações que ali se davam entre as características atribuídas à flora natural e as da vegetação dos jardins públicos desta cidade quente e árida. O imaginário que privilegia os jardins exuberantes do trópico úmido, considerados uma marca de brasilidade, é ali contrariada. A autora volta-se às técnicas desenvolvidas para superar o problema [da aridez]. O cerne do artigo refere-se à escolha das espécies arbóreas plantadas nos espaços examinados e às soluções hídricas utilizadas para combater os efeitos da insolação excessiva e a crônica falta d’água [que assola] a cidade. Ela se detém na implantação de lagos artificiais com finalidades utilitárias (e não decorativas) e, sobretudo, na instalação de cata-ventos de fabricação estadunidense visando ao bombeamento de águas subterrâneas e sua estocagem em reservatórios metálicos. Desaparecidos a partir da década de 1930, esses equipamentos permanecem, contudo, registrados em diversas fontes documentais, escritas e iconográficas. Tais cata-ventos instalados em jardins foram uma singularidade de Fortaleza no âmbito dos jardins urbanos brasileiros.
Os outros três artigos referem-se a jardins marcados pelos princípios de arte e da arquitetura modernas brasileiras, em que a produção de Roberto Burle Marx se impôs com maestria. Vera Beatriz Siqueira detém-se na maneira como o paisagista utilizou elementos arquitetônicos, recolhidos entre os destroços das demolições de imóveis cariocas erguidos no século XIX e primeiras décadas do século XX, para criar composições inusitadas em meio ao seu jardim privado – o Sítio Santo Antônio da Bica, atualmente denominado Sítio Roberto Burle Marx, no Rio de Janeiro. A autora constata uma conexão entre essas práticas de composição a ele específicas e aquelas de colecionador de plantas e objetos de arte que Burle Marx também foi. Segundo Siqueira, ao levar-se em conta a “tradicional [perspectiva] da história do modernismo brasileiro” essas intervenções poderiam ser qualificadas de conservadoras, ou até mesmo de “regressivas”. Sua análise permite, porém, construir novas ferramentas críticas para reler a obra do paisagista. Ao preservar e valorizar esses vestígios arquitetônicos do século XIX e da Belle Époque, Burle Marx contrariou a tendência de menosprezar tais testemunhos praticado por seus colegas, embevecidos que estavam pelo modernismo. Considerado um ícone de sua geração – quando vivo e também depois que partiu – vê-se aqui, contudo, que ele não seguia cartilhas.
Trabalhando o contexto paulista, Fernanda Araujo Curi se interessa, por seu lado, pela longa história de relações particularmente complexas entre Burle Marx e o Parque Ibirapuera, o mais importante espaço paisagístico de São Paulo, inaugurado em 1954 por ocasião do quarto centenário da cidade. Enquanto a maior parte das numerosas construções ali erguidas levam a assinatura de Oscar Niemeyer e de sua equipe, o projeto inicial dos jardins foi concebido por Burle Marx. Esse projeto, no entanto, jamais se efetivou. Apesar disso, paisagista foi ainda o autor de dois outros projetos para o Parque, realizados nas décadas de 1970 e 1990 e somente o último deles foi realizado, ainda que parcialmente. Fernanda Curi examina, ao longo dessa trajetória, as resistências impostas à implantação de cada um desses projetos de Burle Marx. Para tanto, a autora percorre as veredas de uma gestão pública extremamente instável, durante as seis décadas de existência do parque. Ela retoma, ao final, o destino do primeiro projeto, de 1954, do qual algumas pranchas originais pertencem atualmente ao acervo do MoMA. Embora não tenha conseguido realizar esse projeto, Burle Marx, de alguma forma, o perpetuou.
De volta ao Rio de Janeiro, Márcia Regina Romeiro Chuva trata dos processos de patrimonialização do Parque do Flamengo, um projeto de Roberto Burle Marx e do arquiteto Affonso Eduardo Reidy tombado em 1965 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A autora detém-se especificamente sobre as tensões que envolvem os jardins e o projeto arquitetônico do parque nos debates ocorridos no âmbito do Iphan no momento de seu tombamento e também nos que a eles se seguiram. A decisão de tombar o espaço foi tomada no contexto de profundas transformações urbanas sofridas pelo Rio de Janeiro, ocorridas quando a cidade ainda era a capital do país e, em seguida, sob o governo de Carlos Lacerda (1960- 1965) e no período militar, a partir de 1964. Privilegiando uma abordagem centrada na questão do “direito à cidade”, a autora lança luzes contundentes sobre os antagonismos existentes entre a preservação do patrimônio e a especulação imobiliária. E prolongando sua reflexão até as políticas patrimoniais recentes, Márcia Chuva as examina no contexto dos grandes eventos esportivos que ocorreram na cidade, desde os Jogos Panamericanos de 2007 até as Olimpíadas de 2016. Articula essa questão, por fim, com o papel desempenhado pelo Parque do Flamengo na decisão da Unesco, ocorrida em 2012, de conceder à “paisagem cultural” do Rio de Janeiro o título de Patrimônio Mundial.
Este conjunto de artigos pretende contribuir para a renovação, já em curso, relativa aos estudos de parques e jardins do Brasil, especialmente no que toca à superação das perspectivas formalistas que tanto marcaram esse campo de pesquisas. Essas últimas abordagens – ainda bem vivas – emanam de uma história do paisagismo que, até muito recentemente, era sobretudo concebida como uma extensão da história da arte. Este dossiê, deliberadamente interdisciplinar e voltado a questionamentos inovadores, traz à luz atores inesperados, técnicas pouco conhecidas e raramente estudadas ou, ainda, de modos pouco usuais de exercer a preservação patrimonial. Ele almeja ainda contribuir para o questionamento de práticas e paradigmas tão estabelecidos quanto impermeáveis a qualquer problematização.
Lembremos, por fim, que Fernanda Curi destacou claramente a procrastinação das autoridades públicas de São Paulo em implementar os sucessivos projetos de Burle Marx, privando assim a cidade de espaços complexos e de alta qualidade. A história recente do aterro do Flamengo, como relatado por Márcia Chuva, é outra demonstração da permeabilidade das autoridades públicas aos interesses privados pouco afeitos ao tombamento federal do parque e à sua inclusão no perímetro de proteção da Unesco em 2012. Da mesma forma, as iniciativas recentes da Prefeitura Municipal de São Paulo que têm por objetivo privatizar a gestão de todos os seus parques e jardins estão inscritas, sem qualquer contraste, numa história, no mínimo turbulenta, das práticas de valorização e de proteção desses patrimônios pouco conhecidos das cidades brasileiras – que este dossiê espera ter podido auxiliar em sua melhor compreensão.
Notas
1. A concepção desse dossiê – publicado em português por Anais do Museu Paulista e em francês por Brésil(s). Sciences humaines et sociales – originou-se de reflexões vinculadas ao projeto internacional “Do mundo em miniatura ao jardim planetário: imaginar, viver e (re)criar o jardim, dos mundos antigos aos nosso dias”, sediado na Universidade Sorbonne Paris Cité (USPC), reunindo pesquisadores da École des hautes études en sciences sociales (EHESS), da l’École nationale supérieure d’architecture de Paris-Val de Seine, da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
4. Ver, por exemplo, no que tange a São Paulo, o estudo de Vladimir Bartalini (1999)
5. Ver David Scobey (1992) e Elijah Anderson (2011, p. 104-150).
6. Ver Hugo Segawa (1996).
7. Ver Jean-Pierre Bériac (2012) e Carlos G. Terra (2000 e 2015).
8, Ver Guilherme Massa Dourado (2011).
9. Ver Lauro Cavalcanti e Farés El-Dahdah (2009); Lauro Calvalcanti, Farés El- -Dahdah e Francis Rambert (2011) e Jens Hoffmann e Claudia J. Nahson (2016). Essas três publicações foram editadas por ocasião de exposições dedicadas a Burle Marx. A primeira delas, realizada no Paço Imperial do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) e denominada Roberto Burle Marx 100 anos – a permanência do instável, foi posteriormente reapresentada na Cité de l’architecture et du patrimoine em Paris. A segunda exposição, denominada Roberto Burle- -Marx: A Brazilian Modernist, foi exibida em 2016 no Jewish Museum de Nova York (2016) e, posteriormente, no Deutsche Bank Kunst Halle em Berlin.
10. Ver, por exemplo, os trabalhos de Silvio Soares Macedo (1999 e 2012); Silvio Soares Macedo e Francine Gramacho Sakata (2002) e de Fabio Robba e Silvio Soares Macedo (2002), todos oriundos do projeto de pesquisa Quapá (Quadro do Paisagismo no Brasil, realizado na FAU-USP).
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Paulo César Garcez Marins – Historiador, docente e membro da esquipe curatorial do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), docente dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da USP; editor de Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material.
Mônica Raisa Schpun – Historiadora, pesquisadora do Centre de recherches sur le Brésil colonial et contemporain de l’École des hautes études en sciences sociales (CRBC / Mondes américains – EHESS, Paris) e professora-visitante na FAUUSP (2017-2020); editora de Brésil(s). Sciences humaines et sociales.
MARINS, Paulo César Garcez; SCHPUN, Mônica Raisa. Introdução – Para além dos trópicos e dos consensos: atores, práticas e questões na história dos parques e jardins no Brasil. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.25, n.3, p.9-18, set./dez., 2017. Acessar publicação original [DR].
Memórias em narrativas orais: história oral e oralidades sob os dilemas da cultura / Escritas / 2017
Memórias hostis: O rumor de vozes em escritos
“Morta” sob condições degradantes em um campo de trabalhos “correcionais” (Vtoraïa Rechka) aos redores da cidade de Vladivostok, extremo oriente da então URSS, a voz de Ossip Mandesltam (1891-1938) – poeta e ativista político – é memória em projeção graças à Nadejda Mandelstam, a esposa, e acima de tudo um diário orgânico desse “acervo” político-poético, permitido à publicação, a partir dos anos 60. Pelo trânsito de séries ou pela oralidade na busca de outros “corpos”, Mandelstam nos faz auscultar os ruídos subterrâneos de suas histórias e poéticas revolucionárias.
Sob o diapasão de Paulo Bezerra, “O Rumor do Tempo e Viagem à Armênia”, escrito originalmente em 1925 e publicado no Brasil em 2000, testemunha a voz se fazendo escritura. Mandelstam (2000, p.92), em relatos autobiográficos, erige força perlocutória ao “tramar” críticas sócio-políticas por sua radicalidade discreta: “Não quero falar de mim, mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo. Minha memória é hostil a tudo que é pessoal. Se dependesse de mim, eu me limitaria a franzir o cenho ao recordar o passado […] repito, minha memória não é amorosa, mas hostil, e não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. ” Leia Mais
Ensino de história: “A história na sala de aula” / Escritas / 2017
O presente Dossiê, Ensino de História, “A História na Sala de Aula”, foi concebido tendo em vista a crescente necessidade de ampliar as discussões sobre a História em sua relação com o ensino, em especial, com as pesquisas articuladas aos saberes docentes na sala de aula. Pensamos no dinamismo da História e do seu ensino à medida que consideramos professores e alunos como sujeitos do conhecimento histórico. Conforme Silva e Fonseca (2007 p.63-64): “É nas relações entre professores, alunos, saberes, materiais, fontes e suportes que os currículos são, de fato, reconstruídos”.
Há que reconhecer que, com a institucionalização da Histórica no século XIX, a disciplina foi-se revestindo de um caráter científico, restrito apenas ao ensino superior. Porém, sabe-se que o conhecimento das regras e princípios que norteiam a escrita da história auxilia na capacidade de leitura da realidade, repleta de discursos de diferentes origens. Assim, professores, alunos e a sociedade em geral podem ser “habilitados” a ler esses diferentes discursos, como afirmam Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco (2016, p.10): “A abundância de informação acessáveis através de várias mídias (internet, televisão, vídeos, periódicos), que se apresentam de maneira rápida e fragmentada, exige uma capacidade de diferenciação, avaliação e de perspectiva temporal que só a História pode oferecer”. Leia Mais
Brasil e América Latina nas Trilhas da Revolução Russa / Revista Trilhas da História / 2017
A primeira revolução proletária vitoriosa da história impactou de formas variadas a política, a cultura e as sociedades das Américas. Diversos partidos comunistas foram fundados e revoluções ocorreram após 1917 e, indubitavelmente, a utopia entrou no coração e mente de diversos operários, intelectuais, artistas e militantes também do outro lado do Atlântico.
Passados 100 anos a Revolução Russa tem gerado debates diversos entre os movimentos dos trabalhadores e na academia, especialmente na área de História. O Curso de História da UFMS Campus de Três Lagoas soma-se a essa efeméride com o lançamento deste dossiê e, desde já, convida os leitores à participarem da XVII Semana acadêmica que traz o tema “Centenário da Revolução que abalou o mundo: história e historiografia”, com conferências, mesas, comunicações de pesquisa e minicursos. O evento ocorrerá entre os dias 30 de outubro e 01 de novembro de 2017.
O campo editorial também aproveita o centenário para reeditar clássicos da história da Revolução Russa, bem como publicar trabalhos recentes e novas abordagens. As revistas científicas da área de Ciências Humanas têm lançado dossiês nesta perspectiva, contribuindo para o debate ao publicizar pesquisas recentes de temas inéditos e revisões historiográficas. A revista do Curso de História da UFMS / CPTL segue essa “trilha” com o dossiê “Brasil e América Latina nas trilhas da Revolução Russa” ao reunir artigos historiográficos ou que tematizam as experiências políticas e culturais na Rússia e na América Latina pós-Revolução de 1917, e que dialogam com os acontecimentos russos e seus desdobramentos.
O dossiê inicia com o texto de Wanderson Melo, “O processo da Revolução Russa de Fevereiro de 1917: protagonismo dos trabalhadores, estouro revolucionário e dualidade de poderes”, que caracteriza a Revolução de fevereiro de 1917 como um movimento abrupto e espontâneo dos trabalhadores, resultando na dualidade de poderes.
Alexandre Costa, em “As práticas da edição e a Revolução Russa: as representações da URSS nas páginas da revista Inteligência: mensário da opinião mundial 1935-1939”, discute as representações da Revolução no periódico brasileiro de direita, revista Inteligência da cidade de São Paulo. A análise dos textos e caricaturas publicados na revista permite ao autor compreender as posições dos editores quanto à política interna brasileira.
O artigo de Luis Genaro, “Distopia permanente: projeto da modernidade, condição pós-moderna e o novo tempo do mundo”, traz um debate teórico acerca da modernidade, pós-modernidade e o “novo tempo do mundo”, tendo como marcos as revoluções burguesa, industrial e proletária. O autor destaca a atualidade das lutas sociais herdeiras de processos revolucionários do século XX.
Em “A Revolução Russa e o movimento operário brasileiro: confusão ou adesão consciente?” Carlos Prado analisa as repercussões da Revolução Russa no movimento operário brasileiro e a posição assumida pelos militantes libertárias diante da revolução bolchevique, tendo como fontes de informação os jornais operários e da grande imprensa brasileira.
Fabiane Muzardo, no artigo “A (re)construção da cultura nacional mexicana no período pós-revolucionário: a sobrevivência da cultura ancestral em ‘Ídolos tras los altares’”, estuda a produção cultural mexicana nas décadas de 1920 e 1930, pós-Revolução Mexicana, caracterizada por uma fusão de diversos elementos da cultura indígena e popular, bem como pela cultura do período colonial e contemporâneo. A primeira fase da Revolução Mexicana (1910 a 1920) antecede a Revolução Russa e, de certa forma, é o marco inicial das grandes revoluções sociais do século XX. Todavia, os ideais da Terceira Internacional (e mesmo da Quarta Internacional ainda nos seus rascunhos, com a presença física de Trotsky no México) chegaram ao país latino-americano nas décadas posteriores e também influenciaram intelectuais e artistas que produziam uma arte revolucionária na estética e no conteúdo.
O dossiê se encerra com o artigo “Mariátegui e a resposta socialista à crise do mundo burguês”, de Ricardo Streich. Uma abordagem instigante da perspectiva socialista adotada pelo peruano Mariátegui no início do século XX, e a leitura que este faz da crise do liberalismo pós-Primeira Guerra, e o constructo teórico desse teórico militante a partir de Bergson, Croce, Einstein e Freud.
Na seção “artigos livres” Noemia Oliveira analisa a atuação do clero na revolta popular no povoado de Fagundes, Paraíba, na década de 1870, iniciada pelo questionamento à mudança no sistema de medida. O artigo “Um missionário subversivo: o Padre Ibiapina na Revolta do Quebra-Quilos” discute o movimento no contexto das mudanças políticas da segunda metade do século XIX.
Em “ensaios de graduação” temos dois textos de graduandos do curso de História da UFMS / CPTL que discutem a história indígena nos séculos XIX e XX, com foco na região do alto rio Paraná: Lucas Moreira, em “Nimuendajú, Ribeiro, Freundt: Contribuições para mapeamento etnográfico Ofaié na primeira metade do século XX”, e Vanessa Serra, “Os Cayapó e a história agrária e indígena no sul de Mato Grosso: entre roças, estradas e aldeamentos; entre encontros e desencontros (século XIX)”.
Na seção “resenhas”, Eduardo Dianna apresenta a obra organizada por Rodrigo Patto Sá Motta, Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai (2015).
Por fim, em “fontes” temos a apresentação que Daniel Caires faz do relato de viagem da família Segall em direção ao Brasil, em 1911, fonte sob a guarda do Arquivo Lasar Segall.
Fábio da Silva Sousa Vitor
Wagner Neto de Oliveira
Três Lagoas-MS, inverno de 2017
SOUSA, Fábio da Silva; OLIVEIRA, Vitor Wagner Neto de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.6, n.12, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]
Da Itália ao Brasil: processos educativos e formativos, séculos 19 e 20 / Revista História da Educação / 2017
No ano de 2015 comemoramos os 140 anos de história da colonização italiana no Estado do Rio Grande do Sul. Tal momento ofereceu a oportunidade de retomarmos com maior ímpeto um campo de estudo que há algum tempo é fonte de interesse de historiadores italianos e brasileiros. A oportunidade permitiu pensar de modo sistemático e orgânico aspectos menos conhecidos e estudados e que estão relacionados com o fenômeno: as experiências e os fatores que caracterizaram e acompanharam os processos de educação, de formação e cultura dos imigrantes italianos no Estado e no Brasil nos séculos 19 e 20.
As migrações são consideradas um dos acontecimentos mais relevantes da recente história contemporânea e expressa os movimentos de caráter transnacional que marcam os últimos dois séculos. As dinâmicas de caráter mais educativo, que acompanharam esses processos, representam um espaço de pesquisa que se demonstra muito fértil e pelo qual verificamos como foram desenvolvidas as sociedades multiculturais contemporâneas. Aos historiadores da educação cabe reconhecer que, nos últimos dois decênios, não manifestaram um grande interesse pelos processos educativos entre imigrantes e minorias étnicas (Myers, 2009).
As comemorações ligadas aos 140 anos da colonização italiana no estado do Rio Grande do Sul permitiram constituir uma retomada da reflexão historiográfica em torno da experiência histórica da imigração italiana no Brasil. A cooperação entre historiadores da educação brasileiros e italianos foi proposta como metodologia de trabalho, capaz de fecundar pesquisas já iniciadas. O contato entre as diversas experiências historiográficas constitui um caminho interessante para acrescentar conhecimentos e aprofundamentos analíticos a um âmbito histórico que ainda está por ser explorado, seja no contexto histórico italiano, seja no brasileiro.
Os estudos conduzidos pelo grupo de pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim – tem gerado a necessidade de promover questionamentos de pesquisa mais aprofundados e que permitam construir análises atentas à complexidade dos processos educativos dos grupos de imigrantes italianos, alemães e poloneses a partir da metade do século 19. Nos últimos anos investigações específicas foram desenvolvidas no âmbito das experiências da escolarização italiana, como em São Paulo, sendo pioneiro o estudo de Mimesse (2014), além de Franchini (2015). Os da área colonial italiana no Rio Grande do Sul, caso do estudo de Luchese (2015), Luchese; Rech (2014). Da colônia Colombo, no Paraná, os estudos de Maschio (2014, 2015). No Espírito Santo o estudo de Simões e Franco (2014), em Santa Catarina, a pesquisa de Otto (2014) e de Virtuoso (2008). Estudos sobre as escolas entre imigrantes italianos em Minas Gerais foram realizados por Rodrigues (2014), bem como no Rio de Janeiro por Pagani (2014). No conjunto esses estudos lançam luz sobre as diversas formas pelas quais a escolarização foi sendo constituída pelas iniciativas étnicas italianas, na configuração do fenômeno migratório nos diferentes estados brasileiros.
O processo da imigração italiana nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, por exemplo, foram muito diferentes daqueles vivenciados no Rio Grande do Sul ou em Santa Catarina, seja pela dimensão quantitativa, seja pela qualitativa. Os contextos locais produziram escolhas diferenciadas nos processos de escolarização. Nos Estados cujos núcleos coloniais não tiveram maioria italiana as orientações de alguns grupos dirigentes eram favoráveis à institucionalização de escolas mistas, atendendo italianos e descendentes e, também, os brasileiros. Características diversas são daquelas escolas localizadas em núcleos em que os imigrantes italianos foram predominantes.
Recentemente historiadores da educação começaram a demonstrar maior interesse sobre os processos educativos e identitários que tem inspirado algumas iniciativas ligadas à escolarização dos italianos e descendentes no Brasil. Também nesse caso é relevante destacar que, nos anos 1990, a proposta de prestar maior atenção aos processos educativos dos imigrantes durante os séculos 19 e 20 produziu algumas publicações sobre os países de destino da América do Sul e Estados Unidos, caso de Ambrosoli (1995) e Rosoli (1999). Algumas investigações ofereceram um primeiro quadro geral, sintético das políticas adotadas pelo governo italiano na promoção da escolarização dos italianos emigrados, caso de Salvetti (2002) e Ciampi (1998). Em outros casos os estudos foram desenvolvidos de modo mais aprofundado, mesmo que limitados a uma fase ou período específico, às orientações e às intervenções adotadas em nível ministerial para o lançamento de políticas em defesa da italianidade, caso de Pretelli (2010) e Barausse (2016).
Dentre as pesquisas ligadas às associações chamadas para empenhar-se na difusão da instrução e da cultura italiana, seja de caráter laico ou religioso, consta a Associação de inspiração laica Dante Alighieri, estudada por Salvetti (1995), a Associação Nacional para socorrer imigrantes e missionários italianos no mundo e a Italica Gens, conforme Confessore (1987) e Rosoli (1990).
Ainda temos uma ou outra pesquisa esporádica de casos, como a que aprofundou um estudo específico sobre o Instituto Médio Ítalo-Brasileiro Dante Alighieri (Dell´Aira, 2011). Recentemente, enfim, a atenção está nas culturas escolares e, de modo particular, nos livros didáticos e de texto que foram utilizados nas experiências escolares étnicas, caso dos estudos de Barausse (2015, 2016) e Luchese (2016), dentre outros.
Os artigos reunidos nesse dossiê não têm a intenção de serem estudos exaustivos no que diz respeito ao âmbito da investigação sobre as relações entre imigração italiana e educação, mas, buscam estimular a compreensão da necessidade de uma maior articulação dos caminhos investigativos e também do aprofundamento do que, até o presente momento, foi realizado. Com tal intento, as contribuições de Barausse, Maschio, Mimesse, Ascenzi, Luchese e Sani refletem os campos de pesquisa que podem ser, posteriormente, enriquecidos.
Já são alguns decênios que o estudioso italiano do fenômeno migratório Gianfausto Rosoli (1999) havia solicitado uma maior atenção da historiografia na identificação dos níveis de alfabetismo das populações de imigrantes, sua chegada aos países de destino e seus percursos de escolarização, em especial, atentando para como os imigrantes promoveram processos de alfabetização para os próprios filhos. Naquela ocasião, Rosoli (1999) apresentava a hipótese de que a imigração haveria alavacado, entre populações mais atrasadas, um processo de superação do analfabetismo presente entre muitos imigrantes. O estudioso documentou como os emigrantes solicitaram às suas famílias de origem que enviassem as crianças para a escola para dar-lhes melhores condições para enfrentar os desafios da integração nos países de recepção. Ao mesmo tempo, evidenciou que, para manter o contato com os lugares de proveniência, os imigrantes aprendiam a ler e a escrever.
As pesquisas desenvolvidas no decurso dos últimos anos por Luchese (2015) têm confirmado as intuições de Rosoli (1999), contrapondo o que alguns estudiosos no curso dos anos 1980 haviam formulado e tem lançando luz ao modo como os imigrantes agiram a favor de uma crescente demanda por instrução. Estamos, no entanto, ainda distantes da identificação de um mapa que consiga dar conta das múltiplas experiências de alfabetização e escolarização no Brasil. De todo modo a população imigrada deu valor aos processos de escolarização. Não estamos ainda em condições de definir quais e quantos os tipos de escola foram destinados aos filhos de imigrantes e aos seus descendentes, ou mesmo aos adultos, que tipo de escola e de educação foram predispostas para adultos imigrantes. Em tal direção é necessário considerar a presença de uma larga variedade de agências e atores destinados a promover a escola com base étnica: escolas rurais comunitárias, escolas urbanas e aquelas ligadas às associações de mútuo socorro, professores privados pagos pelas famílias, escolas paroquiais e também confessionais, escolas coloniais distintas com um vínculo muito próximo das autoridades consulares, escolas subsidiadas pelos Estados ou municípios. No conjunto, revelam o papel complexo da atuação consular, das instituições de caráter religioso, das autoridades locais e das famílias na promoção de processos educativos entre imigrantes e descentes.
A variedade de iniciativas nos impele a definir melhor a natureza e, em primeiro lugar, a distinguir entre as intervenções de caráter institucional e aquelas da sociedade civil que são a base para o desenvolvimento das formas de escolarização dos emigrados e imigrantes.
O artigo de Barausse, Focolari di educazione nazionale e di sentimento pátrio: le scuole italiane nel Rio Grande do Sul durante gli anni della colonizzazione di fine Ottocento (1875-1898), presta atenção ao primeiro movimento de escolas elementares étnicas com base nas fontes consulares utilizadas parcialmente pela historiografia da educação brasileira. Trata-se de uma primeira reconstrução que de um lado demonstra a heterogeneidade de características das escolas organizadas, a maior parte delas subsidiadas pelo governo italiano, a diversidade curricular e também de professores que atuaram. Ao lado do associacionismo mutualístico nos núcleos coloniais ou de imigração mais consistentes, muitos outros professores operaram nas áreas periféricas e isoladas das colônias para garantir instrução e educação, mediante as crescentes demandas.
O autor põe em evidência as estratégias e a mentalidade de uma parte consistente da diplomacia italiana estabelecida no Brasil meridional e a perspectiva que animava os cônsules para quem a escola não foi considerada apenas um veículo de alfabetização, mas também uma das principais agências de civilização e nacionalização: chamas de educação nacional, como definiu o subsecretário de Estado ao Ministério das Relações Exteriores italiano. A afirmativa consistia em uma tentativa de solicitar aos cônsules um empenho maior para fomentar a italianidade, contendo as forças de assimilação das autoridades políticas brasileiras, segundo uma perspectiva de defesa da laicidade do ensino, sem, no entanto, fechar-se às exigências de colaboração que poderiam surgir com parte do clero italiano estabelecido junto às comunidades de imigrantes.
O artigo de Maschio e Mimesse, Entraves no ensino da língua portuguesa nas escolas italianas privadas curitibanas e paulistanas (1883-1907), aborda a especificidade das características de algumas das múltiplas escolas italianas instituídas no Estado do Paraná e de São Paulo, bem com as problemáticas da nacionalização do ensino que seguiram um calendário diverso e que, no caso paulista, foi condicionada pela criação de um corpo de inspetores. Se as escolas no contexto paulista, segundo as duas autoras, eram subsidiadas pelo governo italiano e não atenderam às disposições de obrigatoriedade previstas pelo Estado, em virtude da fragilidade da rede de escolas públicas, no caso paranaense de Curitiba as escolas foram vinculadas às associações de mútuo socorro e receberam o subsídio do governo, mesmo tendo desconsiderado as disposições previstas nas normativas estaduais. Apresentam a análise das relações do corpo de inspetores que tinha como tarefa monitorar a aplicação de leis e regulamentos introduzidos em diversos momentos nos dois Estados e com a finalidade de ampliar as escolas públicas elementares no contexto paranaense e paulista. As duas autoras fazem emergir não apenas as condições de precariedade das escolas privadas italianas, mas a relutância em introduzir o ensino da língua portuguesa no currículo escolar, suscitando reações negativas nos inspetores.
As insatisfações e as tensões geradas entre as autoridades escolares brasileiras constituem o reflexo das consequências do duplo processo de nacionalização que submeteram os imigrantes. As consequências dos processos de nacionalização reverberam também em outro plano, aquele das práticas e dos saberes escolares. Sobre essas temáticas os artigos de Ascenzi e Luchese aprofundam a análise sobre um dos pontos mais interessantes do debate historiográfico atual na história da educação: os livros escolares.
O contexto no qual fazem referência é marcado pela experiência do fascismo na Itália e a crise da República Velha, seguida da Era Vargas no Brasil. Data desse período a difusão, nas escolas elementares italianas do Brasil, as leituras de Luigi Bertelli e Clementina Bagagli. O artigo de Ascenzi, Per l’educazione patriottica e nazionale degli italiani all’estero: l’edizione postuma del libro di lettura O Patria mia di Luigi Bertelli (Vamba) e la sua diffusione in Brasile, se concentra na reconstrução da gênese, dos conteúdos e dos endereços ideológicos e culturais e, a particular riqueza editorial registrada também no Brasil de um dos mais importantes e longevos livros de leitura para as escolas italianas no exterior entre as duas guerras mundiais: o Patria mia. A obra póstuma do célebre escritor para a infância Luigi Bertelli, melhor conhecido da vasta plateia de pequenos leitores, sobretudo como diretor do periódico semanal Il Giornalino della Domenica, com o pseudônimo de Vamba [1]. A estudiosa italiana refere à configuração da obra nacionalista de Vamba, a qual, após o advento do regime fascista na Itália, foi submetida, por desejo do editor florentino Bemporad, a uma espécie de fascistização do conteúdo. Ascenzi recorda que como a obra não foi a preferida pelo regime, na metade dos anos 1930, mediante a vasta difusão registrada, por exemplo, nas escolas italianas no Brasil, se decidiu por substituí-la por textos ideológica e politicamente mais sintonizados com os endereços do totalitarismo fascista.
O artigo de Luchese, intitulado Da Itália ao Brasil: indícios da produção, circulação e consumo de livros de leitura (1875-1945), mapeia o contexto da imigração italiana e dos processos de escolarização no âmbito brasileiro e do Rio Grande do Sul, para em seguida tratar da produção e circulação dos livros e alguns outros materiais didáticos produzidos e enviados pelo governo italiano para sinalizar sobre as possibilidades de consumo de tais livros. O percurso da análise atenta, em especial, para a coleção de livros de leitura organizados por Clementina Bagagli e que, nos registros de nacionalização, foram um dos estopins que justificaram o fechamento das escolas italianas no Rio Grande do Sul, em 1938.
Para além das intervenções de caráter institucional do governo italiano ou brasileiro, pelo texto de Roberto Sani Tra esigenze pastorali e impegno per la preservazione dell’identità nazionale: la Santa Sede e l’emigrazione italiana all’estero tra Otto e Novecento, podemos compreender os processos que orientaram um outro projeto institucional, o religioso. A contribuição de Sani analisa o percurso da Igreja Católica com relação ao fenômeno imigratório e, com rica documentação, apresenta as mudanças que, após as dificuldades iniciais em enfrentar a emigração de massas produziu, no interior da Igreja, novas orientações durante os pontificados de Leão XIII e de Pio X em matéria de assistência e pastoral dos emigrados para o exterior. Sani aprofunda e ilustra o percurso por meio das solicitações das autoridades eclesiásticas italianas, como Bonomelli e Scalabrini, mas também de alguns componentes do episcopado europeu e americano, sinalizando para o crescimento das obras de assistência e a tendência de centralização do governo no cuidado pastoral dos emigrantes.
O artigo introduz a complexidade que acompanhou o processo de resistência eclesiástica, seja em nível italiano ou aquele do episcopado brasileiro. Sani documenta, pois, que as dificuldades e resistências foram amadurecidas no interior do episcopado e induziram Pio X a sinalizar a uma crescente centralização das funções e das competências relativas à criação de uma pluralidade de instituições e iniciativas práticas para a assistência dos imigrantes. É no interior deste quadro que nasce a associação como a obra Bonomelli e a Federação Itálica Gens, junto com iniciativas dos comitês para a emigração no contexto nacional de partida e o nascimento da seção para emigração no interior da Sagrada Congregação Consistorial para a composição de um instituto de formação para o recrutamento e formação espiritual do clero, destinado à animação da vida religiosa das comunidades de imigrantes. Iniciativas destinadas a serem integradas ou suprimidas nos decênios sucessivos à Primeira Guerra Mundial, sob o pontificado de Pio XI, por novos organismos como o Prelado para a emigração italiana ou suprimidas pela Igreja para evitar a instrumentalização dos regimes totalitários.
No conjunto de artigos que compõem este dossiê desejamos que os leitores percebam a potencialidade e as brechas a serem pesquisadas na relação entre processos migratórios e práticas educativas, ultrapassando fronteiras nacionais e pensando-se em histórias conectadas, portanto, um calidoscópio de temas a serem investigados pelos historiadores da educação.
Nota do editor
1. ver ASCENZI, Anna; PATRIZI, Elisabetta. A missão educativa da geração intemediária em tempo de guerra: textos para a escola e para a juventude de Luigi Bertelli entre 1914 e 1918. Hist. Educ. (Online), Porto Alegre: Asphe, v. 20, n. 50, 2016, p. 193-218.
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VIRTUOSO, Tatiane dos S. Disputas de identidades: a nacionalização do ensino em meio aos ítalo-brasileiros (1900-1930). Florianópolis: UFSC, 2008. 142f. Dissertação (mestrado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina.
Alberto Barausse – Professor do Departamento de Ciências Humanísticas, Sociais e da Educação da Universitá degli Studi del Molise, onde lidera o Centro di documentazione e ricerca sulla Storia delle Istituzioni scolastiche, del libro per la scuola e della letteratura per l’infanzia e o Museo della scuola e dell’educazione popolare. Professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: barausse@unimol.it
Terciane Ângela Luchese – Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Caxias do Sul. Lidera o Grupo de Pesquisa História da Educação, Imigração e Memória – Grupheim. E-mail: taluches@ucs.br
BARAUSSE, Alberto; LUCHESE, Terciane Ângela. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 51, Jan / abr, 2017. Acessar publicação original [DR]
Propostas e desafios nos usos de documentos históricos em sala de aula / História Hoje / 2017
É do conhecimento dos historiadores que depois dos Annales o conceito de documento histórico foi ampliado, abarcando materialidades diversas. Jacques Le Goff (1993, p.29) chegou a definir o momento como o de uma “revolução documental”. O resultado é que vivenciamos cada vez menos, em nosso ofício, resquícios de uma “exclusividade do registro escrito” na escrita da História. Nesse sentido, acreditamos que cabe aos professores refletirem sobre a força da centralidade dos documentos escritos e proporem contrapontos aos registros de práticas letradas do passado.
Hoje, é possível afirmar que todos os professores de história usam ou já usaram, pelo menos uma vez, documentos históricos em sala de aula, seja uma imagem, uma música, um filme, ou um trecho de códice. Com uma maior, porém ainda não ideal, democratização dos meios de informação, esses usos aumentaram nos últimos anos, pois com poucos cliques e palavras-chave digitadas é possível acessar bancos de dados digitais com acervos riquíssimos. Além disso, os melhores livros didáticos, em geral, trazem distintos tipos de registros documentais e informações de como analisá-los. Leia Mais
História, Áudio e Visual | Ars Historica | 2017
História e Arte. Quais as possibilidades de pesquisa em história social e da cultura que aproximam o sonoro e o visual? Vivemos hoje a primazia da imagem. E a imagem constrói história e memória e vice-versa. Imagens fixadas no instante da fotografia, talhadas em marfim, esculpidas em mármore ou bronze, pintadas com tintas de variados matizes, e ainda imagens em movimento, correndo no tempo pelas telas do cinema e outras mídias. Há ainda sons e gestos que também são fazeres, saberes e expressões que compõe o que chamamos de cultura – de arte – e que precisam ser narrados pelos historiadores. São também imagens sonoras do vasto universo musical, como o samba, que tem uma rica história. Ou a dança, moda, corpos em performance que falam de outras experiências no contemporâneo. Bem como existe a literatura, os textos sobre as imagens, as artes cênicas e cinematográficas: é a crítica de arte. É com imenso prazer que apresento ao leitor interessado este Dossiê História, Áudio & Visual da Ars Historica que perpassa um caleidoscópio de novas abordagens sobre o saber histórico, demonstrando o vigor de pesquisas em temporalidades e espaços distintos em termos da História Social e Cultural produzida nas universidades brasileiras. Leia Mais
Do Outro Lado. História do Sobrenatural e do Espiritismo | Mary Del Priore
Depositário de filosofias e ciências europeias, mas singular no processamento destas, o imaginário do Brasil no século XIX é abarrotado de contribuições intelectuais, sobretudo francesas, que o tornaram um crente devoto, porém relapso, das ideias do progresso. Nesse ínterim, a religiosidade se manifesta num sincretismo de práticas e adorações, sendo o contato com o sobrenatural a marca que maior caracteriza a mentalidade comum a diversas camadas sociais brasileiras. É nesse sentido oculto que a obra “Do outro lado”, de Mary del Priore, transmite da maneira mais clarividente possível, os costumes e as esparsas formas de religiosidade durante o século XIX.
Autora reconhecida por suas pesquisas acerca do universo cultural brasileiro e suas mentalidades, vem cativando uma vasta gama de leitores por seus fascinantes temas e sua volumosa produção bibliográfica. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), concluiu seu Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo e defendeu sua tese de Pós-Doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris (1996). Premiada diversas vezes pela Fundação Joaquim Nabuco e pelo solene prêmio literário Jabuti, entre 1998 e 2000, por mérito de seus livros História das Mulheres no Brasil e História das Crianças no Brasil, desenvolveu pesquisas que vão da história colonial, história de gênero a amplas áreas da cultura, vida social no século XIX, tendo maior destaque biográfico de expoentes do período imperial brasileiro, como O príncipe maldito (2007), A Carne e o Sangue. A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro e Domitila, a Marquesa de Santos (2012), Condessa de Barral, a paixão do Imperador e O Castelo de Papel (2013). Atualmente é professora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO/NITERÓI e contribui como correspondente de diversas academias e institutos de pesquisa na América Latina. Leia Mais
Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung SCHWAB (ARF)
SCHWAB, Phillip. Der rückstoss der methode: Kierkegaard und die indirekte mitteilung. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012. Resenha de: BARROS, Wagner. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 17, jan./jun. 2017.
O livro de Phillip Schwab, intitulado Der Rückstoss der Methode, se apresenta como uma importante contribuição e indispensável para as pesquisas que versam sobre a comunicação indireta no pensamento de Kierkegaard. Ainda que inúmeros trabalhos tenham desenvolvido reflexões sobre o assunto, frequentemente o problema da comunicação é tratado de forma tangencial ou coadjuvante, dificilmente desempenhando um papel central. É neste contexto que a interpretação de Schwab se torna particular, pois o autor não concebe o discurso indireto como estilo literário ou um recurso utilizado por Kierkegaard para trazer a discussão sobre a existência, mas como elemento constitutivo do próprio processo de análise filosófica. Para Schwab, a comunicação indireta não é só principio estrutural, mas também o modo de realização essencial e a forma necessária do pensamento kierkegaardiano: A comunicação indireta não é uma peculiaridade estilística da forma, também não é uma roupagem literária do pensamento filosófico. A comunicação indireta não é […] uma tática maiêutico-pedagógica que serve ao objetivo de alcançar um resultado para o receptor da comunicação. A comunicação indireta é o método de Kierkegaard […] (p.12 – nossa tradução) Percebe-se, portanto, que a interpretação proposta não visa reduzir a comunicação indireta ao uso de pseudônimos, como sugere a explicação de Ponto de vista1. A leitura se afasta também da tese segundo a qual a comunicação indireta ou o discurso religioso adquirem sua significatividade mediante o reconhecimento da práxis religiosa, como apresenta Schönbaumsfeld2. Schwab entende o discurso indireto como um elemento central da filosofia de Kierkegaard que está articulado com todo o seu pensamento e se faz presente mesmo em obras que não exploram o tema de forma explícita, principalmente porque a comunicação indireta apontaria para um método que se auto revoga diante da tentativa de analisar a existência.
O objetivo da primeira seção do livro é realizar uma leitura “sistemática”, ou seja, explorar a estrutura da comunicação indireta e compreendê-la enquanto método. Embora não se encontre uma análise textual, o autor elabora um esquema conceitual que permite compreender a função do indireto. Assim, é destacado que a comunicação indireta representaria um contra-movimento [Rückstoss] do método, um movimento contrário a qualquer tentativa de definição. O contra-movimento do método descreveria o movimento fundamental de um método que trabalha contra si mesmo: é a tensão do pensamento. Este contra-movimento seria a primeira característica da comunicação indireta, uma vez que a busca de sua definição resulta em fracasso, ou melhor, é o próprio fracasso da representação que a comunicação indireta porta em si. Este fracasso da abordagem direta indicaria a inconclusividade [Unabschlossenheit] ou um contra-projeto que se opõe a qualquer pensamento sistemático.
Ainda na primeira parte do trabalho, o autor faz uma distinção entre o conceito [Begriff] e a realização [Durchführung] da comunicação indireta. No primeiro caso, trata-se das reflexões explícitas de Kierkegaard sobre a comunicação, enquanto o segundo diz respeito à comunicação indireta executada, ou seja, quando Kierkegaard a emprega. Por exemplo, Pós Escrito (1846) seria um texto que não só teoriza, mas também executa o método indireto.
É preciso ressaltar que, assim como o termo contra-movimento do método, a diferenciação entre realização e conceito não se encontra nos textos de Kierkegaard. A elaboração destes conceitos extrapola a análise textual e assinala o trabalho interpretativo de Schwab. Estes “conceitos” assumem a função de expor o discurso indireto enquanto método no interior das próprias obras de Kierkegaard. Desta forma, o livro de Schwab revela a unidade entre a leitura estrutural, histórica e exegética das obras, e a elaboração conceitual do próprio intérprete.
A segunda parte do livro se dedica a uma análise do discurso indireto em diversos períodos do pensamento kierkegaardiano e tem como objeto o conceito de comunicação. Schwab parte de Pós Escrito, onde o contra-movimento do método é descoberto na impossibilidade de uma representação da existência, sobretudo devido à incomensurabilidade entre interior e exterior. Para o autor, nesta obra a comunicação indireta não estaria restrita ao domínio religioso, mas abrangeria toda esfera existencial, uma vez que o existir não se deixaria representar pela linguagem. Segundo Schwab, Pós Escrito coloca a impossibilidade de uma comunicação objetiva sobre a existência devido à própria incapacidade de acesso direto à efetividade existencial. Assim, qualquer comunicação existencial direta é negada, visto que o existir não se deixa representar.
O próximo objeto de análise é a comunicação em Ponto de Vista explicativo da minha obra como escritor (1848). Neste texto, haveria um conceito maiêutico- -teológico da comunicação indireta, uma vez que comunicar indiretamente seria descrito por Kierkegaard como “enganar para a verdade”, retirar o indivíduo de uma falsa concepção de religiosidade para colocá-lo diante do verdadeiro cristianismo.
Schwab conclui então que o discurso indireto é considerado por Kierkegaard como algo transitório, pois o que é dito indiretamente poderia ser comunicado de forma direta. Assim, observa-se que Pós Escrito e Ponto de vista assumiriam concepções de comunicação divergentes, dado que, na primeira obra, o indireto diz respeito à impossibilidade da representação da existência, enquanto no segundo texto, o indireto é transição para o direto ou um simples recurso.
Enquanto a comunicação indireta, em Pós Escrito, tem como referência a existência que não pode ser pensada, em Ponto de vista Kierkegaard estaria preocupado com a explicação da totalidade de sua obra, ou seja, expor qual foi seu objetivo desde as primeiras publicações. Deste modo, Schwab considera um erro comparar ou estabelecer uma unidade entre as definições de discurso indireto, pois as estruturas e contextos de ambas as obras são totalmente diferentes. Em Pós Escrito, por exemplo, o uso do pseudônimo criaria um distanciamento e impediria qualquer relação direta com o escritor. Neste livro, não seria possível concordar ou discordar do autor porque não há a expressão da opinião daquele que redige o texto. Já em Ponto de vista, Kierkegaard se apresentaria como autoridade e explicaria como ele deve ser lido. Consequentemente, o espaço da apropriação do leitor é reduzido. Destarte, Schwab não tem a intenção de apresentar um conceito definido e determinado sobre a comunicação diante da totalidade das obras de Kierkegaad. Seu trabalho visa antes apresentar o contexto em que cada concepção é elaborada, trazendo assim os elementos que ocupam as reflexões de Kierkegaard. Para o autor, as obras são como constelações, autônomas entre si e possuem uma pergunta determinada que deve ser considerada quando se pretende interpretar as obras. Por estas razões, não seria possível estabelecer uma definição geral, uma vez que isso já implicaria em retirar o conceito de um texto e generalizar, esquecendo que cada livro se volta para um problema determinado: “ele [o indireto] se manifesta nos contextos respectivos de sua forma concreta e não se deixa determinar abstratamente e esquematicamente com antecedência.” (p. 301 – nossa tradução).
Entre os trabalhos que exploram o tema da comunicação indireta, é comum constatar a tentativa de defender uma concepção geral. Nos trabalhos de Clair (1997), Fahrenbach (1997) e Diep (2003), por exemplo, a comunicação indireta é apresentada como uma comunicação voltada para a existência e interioridade.
Trata-se de uma comunicação que não se pauta na objetividade, porém de uma comunicação aberta capaz de expressar o movimento do devir que caracteriza a efetividade existencial. É possível assumir ainda que comunicação indireta se caracteriza principalmente pelo uso dos pseudônimos, um recurso estilístico que está a serviço de um objetivo mais amplo, como o aprofundamento existencial ou retirar o leitor de um falso cristianismo3. Seguindo o quadro exposto por Schwab, observa-se que, caso a comunicação indireta seja compreendida como uma comunicação existencial que tem o sentido da existência como problema, então toma- -se Pós Escrito como ponto de partida. Por outro lado, Ponto de vista ofereceria a base para se interpretar a comunicação indireta como emprego de pseudônimos ou instrumento maiêutico-teológico. Neste contexto, o discurso indireto não estaria relacionado com a inexpressividade do existir, mas a um artifício que auxilia o leitor a sair de um erro.
Quando Schwab enfatiza a importância da avaliação das estruturas interna das obras e a necessidade em considerar sua autonomia, portanto não confundir o conceito comunicação proposto por Pós Escrito com aquele de Ponto de vista, o autor visa desfazer o embate entre as tentativas conflitante que procuram estabelecer um conceito universal do indireto. De acordo sua leitura, as diferentes abordagens de Kierkegaard sobre o tema da comunicação revelariam uma reflexão em movimento, uma reflexão e que é retomada em diversas fases. Cada texto do filósofo dinamarquês apresentaria elementos distintos no que diz respeito à comunicação. Por estes motivos, as reflexões de Kierkegaard não possuiriam uma unidade conceitual fixa.
Após expor e discutir as concepções divergentes de Pós Escrito e Ponto de vista, a próxima tarefa é elucidar como esta transformação ocorreu. O trabalho se concentra nos textos escritos por Kierkegaard durante os anos de 1846 até 1848.
Neste momento, o livro apresenta uma rica análise histórico-interpretativa sem perder do horizonte a tese defendida. Manuscritos e esboços de Kierkegaard pertencente a esta época, como os NB3, NB 4, NB 5, NB 6, NB 7, além de obras publicadas, como Obras do amor, a terceira versão de Livro sobre Adler e a segunda parte de Exercício no cristianismo, que foi concebida em 1848, são comentados e explorados detalhadamente. Estes textos apresentariam diferentes abordagens sobre a comunicação indireta, indispensáveis para a formulação final de Ponto de vista. Schwab evidencia que, se em Pós Escrito o tema da impossibilidade da representação da existência perpassa a comunicação, nos anos posteriores o filósofo dinamarquês começa a questionar o seu lugar pessoal em relação à totalidade das obras, sobre a produção pseudonímica e se ele próprio, enquanto pessoa, poderia ou deveria comunicar diretamente.
As explicações de Ponto de vista se tornam questionáveis principalmente devido à publicação, anos mais tarde, de Doença para morte e Exercício do cristianismo, cujo autor é o pseudônimo Anti-Climacus. Ora, Ponto de vista defende que toda comunicação indireta pode ser transformada em comunicação direta. Quais foram os motivos que levaram Kierkegaard a retornar os pseudônimos ou o indireto? Por que o filósofo, após explicar como deveria ser lido, volta a se expressar indiretamente? Esta dificuldade é explorada no final da segunda seção do texto de Schwab, que tem o objetivo de se aprofundar no conceito de comunicação após os anos de 1848. Para realizar esta tarefa, o autor se concentra nos escritos dos anos de1848-9, incluindo as anotações não publicadas. Estes textos enfatizariam a dúvida de Kierkegaard no que diz respeito à publicação de Ponto de vista e se tanto Doença para morte quanto Exercício do cristianismo deveriam ser assinados por algum pseudônimo. Schwab defende que, durante este período, a comunicação indireta não pode ser desvinculada do auto-questionamento de Kierkegaard. O conceito de comunicação estaria atrelado à decisão de como e se realmente as obras deveriam ser publicadas.
A segunda seção da obra de Schwab termina analisando as observações finais de Kierkegaard sobre comunicação. O autor ressalta que, nos últimos anos, o discurso indireto é submetido a diversas reformulações e reinterpretações.
Schwab conclui assim que, diante da ausência de uma definição fixa, a indeterminação seria um dos traços essenciais da comunicação indireta, pois significa que não é possível pensá-la in abstracto, mas apenas em situações específicas e contextualizadas, reforçando a independência dos textos e a necessidade de situar cada definição.
Esta pesquisa “histórica” de Schwab, que recorre principlamente aos NB e busca apontar os problemas singulares que cada obra enfrenta, merece destaque.
Algumas passagens apresentada pelo autor são traduções inéditas e revelam elementos fundamentais para um entendimento do tema da comunicação em Kierkegaard. Sem dúvida, havia a necessidade de um estudo que percorresse os desdobramentos da comunicação indireta no corpus kierkegaardiano e o trabalho de Schwab assume não só esta responsabilidade, mas realiza a tarefa de forma bem sucedida. Além disso, seu livro é um dos poucos estudos que procuram adentrar nas estruturas internas dos textos e realizar uma comparação sistemática durante os diversos períodos da produção de Kierkegaard, verificando em que medida há ou não modificações conceituais e como estas são concretizadas.
Após explorar os diferentes escritos kierkegaardianos que problematizam diretamente a comunicação indireta, a quarta parte do livro se volta para a relação entre ironia e comunicação. O foco passa a ser O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Apesar de Kierkegaard não mencionar o termo comunicação indireta no estudo dedicado a Sócrates, Schwab defende que a forma indireta realizada já se encontra presente naquele texto. Os traços do indireto poderiam ser localizados na figura de Sócrates, que expressaria a incomensurabilidade entre o interior e o exterior. Esta incomensurabilidade é o que aproximaria a ironia com o discurso indireto, pois o aspecto da representação do método indireto apontaria para a ambivalência de uma forma de representação que se volta contra si e é inconclusa, indicando a representação essencial do irrepresentável.
Um detalhe interessante é que, para Schwab, este elemento seria constatável também na ironia romântica. A comunicação indireta se negaria a um acesso direto, sistemático, tal como a ironia romântica escaparia de toda tentativa de uma determinação abrangente, direta, não irônica. Mas se é possível afirmar que o contra-movimento do método já se encontra pré-figurado nos românticos, a diferença fundamental consistiria em que, enquanto a ironia romântica a representação do absoluto é impossível, a comunicação indireta kierkegaardiana traz o particular como o irrepresentável.
O último tópico do livro traz a realização da comunicação indireta para o debate. Este capítulo se delimita a análise de três textos de Kierkegaard: A repetição, O conceito de Angústia e Doença para morte. Em A repetição, Schwab diagnostica processo indireto a partir do momento em que a própria obra não busca o conceito, mas como e se a repetição é atingida ou pode ser executada. Esta efetivação, porém, não se deixaria representar ou descrever, mas assumida. Neste aspecto, o autor entende que A repetição coloca o problema do querer dirigir-se a algo (repetição) que não pode ser representado diretamente, pois a repetição consiste exatamente na execução. A obra de Kierkegaard apresentaria um duplo movimento, o querer-dizer e não-poder-dizer, o falar e a frustração constante da fala que deve garantir paradoxalmente a efetividade da realização existencial que emerge no espelho da possibilidade.
Já no caso de O Conceito de Angústia, Schwab descobre o contra-movimento do método ou a realização da comunicação indireta quando Virgilius estabelece um limite para a ciência. Este limite seria o particular que permanece inacessível para método abstrato cientifico. O que poderia ser constatado, nas explanações de Virgilius, é o processo cientifico apontando sempre para algo que reside fora da especulação, como o “não lugar do pecado” ou a incomensurabilidade entre a esfera das ciências e a efetividade [Wirklichkeit]. Apesar de o texto ter a aparência de uma comunicação de saber ou teórico, Schwab defende que o indireto está presente na forma do tratamento conceitual do problema da angústia, posto que Virgilius levaria o leitor para a fronteira da abordagem científica.
Por fim, Doença para a morte apresentaria o indireto a partir do momento em que desespero não é descrito por Anti-Climacus como transição, mas diferentes formas auto-realização que é estática e contínua. A análise do desespero é horizontal e isto revelaria o processo indireto, dado que as múltiplas formas de desespero se revela incomensurável com a oposição conceitual abstrata.
No que diz respeito à estrutura do livro de Schwab, percebe-se a ausência de uma conclusão ou considerações finais. Porém, é necessário ressaltar que o texto não analisa as singularidades para chegar a uma tese geral conclusiva, mas apresenta o movimento inverso, ou seja, parte primeiro de uma concepção sistemática e, em seguida, expõe como o contra-movimento do método se realiza em cada obra. O leitor perceberá também a falta de uma discussão sobre os Discursos edificantes. O autor não investiga em que medida o indireto poderia estar (ou não) presente nestas obras e muito menos adentra na polemica travada por Pattinson (2002, p.12-34). segundo a qual os discursos edificantes também podem ser concebidos enquanto indireto, contrariando assim as afirmações de Ponto de vista. Todavia, apesar do silêncio, Schwab pode indicar caminhos para solucionar esta questão quando enfatiza a necessidade de se considerar o contexto específico de cada obra e evitar generalizações. Enfim, se o livro não encerra as controvérsias sobre o tema da comunicação indireta ou um conceito definitivo, a análise sistemática e histórica realizada por Schwab deve servir de modelo para os próximos estudos.
Referências
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Notas
1 Maiores detalhes, C.f. HONG, H. V., & HONG, E. H. (1998)
2 Maiores detalhes, C.f. SCHÖNBAUMSFELD (2007).
3 Algo semelhante pode ser encontrado na leitura de Conant. O autor compreende a comunicação indireta enquanto tática que visa atingir determinado fim, embora critique a possibilidade do indireto apresentar algum tipo de verdade “inefável”. C.f. Conant, J. (1997). Kierkegaard’s Postscript and Wittgenstein’s Tractatus: Teaching how to pass from disguised to patent nonsense. Wittgenstein Studies, v. 2, 1997. Recuperado de: http://sammelpunkt.philo.at:8080/520/ Acesso em: 12 abril 2016.
Wagner Barros – Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Flores, votos e balas – ALONSO (RH-SP) Tornando-se livre – MACHADO e CASTILHO (RH-USP)
ALONSO, Ângela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868 – 1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 529p. Resenha de: MACHADO, Maria Helena P. T.; CASTILHO, Celso Thomas(org.). Tornando-se livre. Agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015. 480p. Resenha de: SALLES, Ricardo. A abolição revisitada: entre continuidades e rupturas. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
O objetivo dessa resenha é apresentar, nos limites desse formato, uma apreciação crítica de duas obras recentes que recolocaram, em termos gerais, a abolição da escravidão no Brasil como tema de peso da história e da historiografia brasileiras.
A abolição da escravidão foi um fato central da história brasileira. Comparável à Independência, à Proclamação da República e à Revolução de 1930. Na verdade, nenhum destes três últimos eventos teve semelhante impacto transformador da vida social. A Abolição destruiu uma instituição e uma prática centenárias que moldaram a história, a sociedade, a política e a cultura brasileiras. A escravidão moldou a colônia por praticamente três séculos, mas também esteve na base da construção do Estado e da nação por 80 anos – se tomarmos como marco dessa construção a vinda da família real em 1808 – e, mesmo depois de mais de um século de sua extinção, ainda lança seus efeitos sobre os dias de hoje. Na época de sua abolição, a escravidão ainda estava no centro dos interesses da classe dominante do Império e, apesar do relato estabelecido em contrário, há muito desmentido pela historiografia, não era vista como um obstáculo central pelos novos grupos de proprietários rurais que emergiam no oeste paulista. Com tudo isso, é evidente que o processo histórico de derrubada – a Abolição – também deva merecer uma grande atenção por parte de historiadores. O que foi a Abolição? Quando começou? Foi um movimento conscientemente deflagrado? Por quem? Quando? Com quais objetivos mais específicos, além do genérico fim da escravidão? Quais seus êxitos e fracassos? Quais foram suas principais fases? Quem foram seus principais sujeitos históricos? Qual seu legado?
Muitas dessas perguntas foram formuladas nas décadas que se seguiram à Abolição e à Proclamação da República. Com a consolidação da República oligárquica e sua crise dos anos 1920, essas perguntas sobre a abolição diluíram-se em questionamentos mais abrangentes sobre a formação do Brasil e, eventualmente, sobre o lugar da escravidão em geral nessa formação. No final dos anos 1960 e início da década seguinte, contudo, as perguntas sobre a abolição voltaram a ser formuladas por historiadores, em especial por dois brasilianistas. São de 1972 as duas grandes histórias da abolição brasileira: The destruction of Brazilian slavery, de Robert Conrad, publicada em português em 1975, com o título de Os últimos anos da escravatura no Brasil, e The abolition of slavery in Brazil, de Robert Toplin, infelizmente, nunca traduzido. Em 1988, por ocasião do centenário da Abolição, Emilia Viotti da Costa que, em 1966, havia publicado Da senzala à colônia, trabalho mais abrangente sobre a escravidão e sua crise no século XIX, publicou A Abolição, pequeno livro de síntese e divulgação.
Tais obras, entretanto, não frutificaram. É certo que, desde os anos de 1980, com a multiplicação dos programas de pós-graduação, particularmente em História, uma quantidade imensa de dissertações de mestrado e teses de doutorado foi produzida sobre o assunto, muitas delas ganhando, posteriormente, a forma de livros. A maioria esmagadora dessas investigações foi e continua sendo de caráter monográfico, sobre aspectos particulares da escravidão ou mesmo sobre o evento de sua abolição, nesta ou naquela região, sob este ou aquele ponto de vista. Tais abordagens são muito importantes e ajudam a levantar novas questões, esclarecer temas e aspectos negligenciados. O lugar e o papel das lutas de escravos e libertos no processo de abolição foram a dimensão mais ressaltada em contraposição a uma historiografia mais estrutural da escravidão e da abolição, mais característica da década de 1960.
As duas obras aqui resenhadas buscam escapar dessa fragmentação historiográfica e só por isso já seriam muito bem-vindas. O livro de Ângela Alonso – Flores, votos e balas – é explicitamente uma síntese histórica e uma interpretação de conjunto. Por isso servirá como eixo desta resenha. Tornando-se livres é uma coletânea organizada por Maria Helena P. T. Machado e Celso Thomas Castilho que, em parte, baseia-se e tem como ponto de partida a mesma fragmentação temática acima apontada. Entretanto, em seu título e em alguns capítulos específicos busca também uma interpretação abrangente, ainda que não uma síntese, dos acontecimentos que marcaram a abolição da escravidão no Brasil. Por isso, serão estes os capítulos e a tese expressada pelo título da obra que serão avaliados com vagar nessa resenha.1
Tornando-se livre, de uma maneira geral, ressalta o papel do escravo – e também do liberto – como elemento ativo na sociedade escravista e, eventualmente, na moldagem de um clima de deslegitimação da escravidão, que se pode perceber principalmente a partir da segunda metade da década de 1860. É verdade que essa deslegitimação foi proveniente de eventos mais amplos, que não foram deflagrados pela participação ativa dos cativos e que não merecem uma atenção maior por parte dos autores da obra. Em primeiro lugar, foi efeito do desfecho da Guerra da Secessão (1861-1865) e da consequente percepção, por parte do imperador e de alguns de seus estadistas, de que o Brasil estava agora isolado no cenário internacional como nação escravista. Em segundo lugar, cabe ressaltar que a libertação de escravos para seu recrutamento para a guerra com o Paraguai tornou evidente a fragilidade das bases sociais do Império, em época de crescente mobilização nacionalista. Mesmo assim, o pleno significado desses eventos é incompleto caso não se leve em conta o lugar e o papel dos escravos, libertos e suas lutas naquela sociedade, e é principalmente disso que os 21 capítulos da obra tratam. O livro é dividido em quatro partes. A primeira – “Disputando liberdades” – aborda as lutas de “homens e mulheres escravos, libertos e libertandos em busca da aquisição da liberdade”, problematizando “os horizontes dessa almejada liberdade no contexto da escravidão e de seu afrouxamento na segunda metade do século XIX, sobretudo a partir de 1870” (p. 13). A segunda parte – “Disputando liberdades: histórias de mulheres com seus filhos” – retoma o tema “do acesso à liberdade e à autonomia,” enfocando o papel das escravas e libertandas como mulheres e mães (p. 14). Os capítulos da terceira parte – “Mobilização: dimensões e prática” – abordam a questão dos movimentos emancipacionistas e abolicionistas da segunda metade do século XIX e do pós-abolição, com o objetivo “de aproximar a movimentação em torno da abolição aos movimentos sociais deste período e dos seguintes, propondo elos e continuidades” (idem). A última parte – “Abolição em dimensão transnacional” – reúne textos que refletem sobre a “questão ainda pouco explorada por nossa historiografia, que é a dimensão internacional e atlântica do processo da abolição da escravatura no Brasil” (p. 15).
Já no que diz respeito a Flores, votos e balas, seu ponto forte é o destaque dado ao papel dos ativistas abolicionistas na formação, estruturação, desenvolvimento e direção do abolicionismo em quatro conjunturas que a autora distingue no movimento pela abolição: a conjuntura pré-Lei do Ventre Livre, a partir de meados da década de 1860; a ascensão do partido Liberal em 1878; o gabinete Dantas, de junho 1884 a maio do ano seguinte; e o gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888. Essas diferentes conjunturas, por sua vez, corresponderiam a três fases do abolicionismo brasileiro expressas no título do livro, que operou inicialmente no espaço público: momento das flores, na esfera político-institucional; momento dos votos; e, na clandestinidade, momento das balas (p. 19).
Tanto Flores, votos e balas quanto a maior parte dos capítulos de Tornando-se livres acentuam as continuidades entre o que seriam lutas, movimentos e iniciativas abolicionistas ou contra a escravidão antes de 1879, especialmente a partir da metade da década de 1860, e depois dessa data. Este ano (1879) é tomado por muitos, entre eles o autor dessa resenha, como marco inicial do movimento abolicionista, em contraposição ao que se convencionou chamar de emancipacionismo. Foi nele que o deputado liberal Jerônimo Sodré proferiu seu discurso no Parlamento demandando a abolição, pura e simplesmente, da escravidão. A demanda ecoava, é certo, outras vozes na imprensa e na sociedade civil que se manifestavam pelo mesmo objetivo. Contudo, as iniciativas e lutas anteriores que de alguma forma golpearam a escravidão, como a proibição efetiva do tráfico internacional de escravos, a lei de 28 de setembro de 1871, que declarou livre o ventre da mulher escrava, a ação de associações civis que promoviam a alforria de cativos, as ações judiciais impetradas pela libertação de escravos – as ações de liberdade – e as próprias lutas e revoltas de escravos, tanto individuais quanto coletivas, não haviam, até então, colocado explicitamente no horizonte político imediato a questão da abolição. Esta era vislumbrada em futuro não predizível e seria conseguida de uma forma ou de outra, pelo acúmulo de efeitos dessas leis, das ações de alforria e liberdade, das lutas e revoltas escravas. O discurso de Sodré desdobrou-se imediatamente em apoios e, em um crescendo, ganhou mais nitidez – abolição imediata e sem indenizações – transformando-se em um movimento político e social que resultaria vitorioso nove anos mais tarde.
Entretanto, nenhuma das duas obras coloca grande ênfase nessa novidade. Essa é a tese explícita de Flores, votos e balas e é também a tese esgrimida em mais de um dos capítulos de Tornando-se livres. Para ambos os livros, haveria uma continuidade entre antes e depois de 1879. Ângela Alonso assinala que essa continuidade existiria entre o que ela designa como abolicionismo de elite, característico das décadas de 1860 e 1870, e abolicionismo como movimento social, marca da década de 1880. A corroboração da tese vem pelo acompanhamento de algumas lideranças abolicionistas com atuação expressiva nos dois momentos, entre eles e principalmente, André Rebouças, mas também, como veremos abaixo, Abílio César Borges, educador e ativista abolicionista de segunda grandeza, se é que assim se pode considerá-lo.
Em Tornando-se livres, como colocado na apresentação do volume assinada pelos organizadores, a continuidade seria dada pelas experiências de busca de liberdade. Essas experiências, muitas vezes precárias e provisórias, principalmente na segunda metade do século XIX, “fizeram parte de um grande esforço social que redundou no processo de abolição” e que ainda se estendeu ao período da pós-abolição (p. 11-12). Para os autores, mesmo que as lutas de escravos, libertos e libertandos e os movimentos sociais da abolição não tenham andado sempre juntos, “a movimentação da abolição deve ser compreendida em sua ligação profunda com a realidade das senzalas e dos esforços dos escravos e dos pobres em geral de se livrarem do cativeiro e suas mazelas” (p. 14-15). No primeiro capítulo, intitulado “Da abolição ao pós-emancipação: ensaiando alguns caminhos para outros percursos”, assinado por Flávio Gomes e Maria Helena P. T. Machado e que funciona como uma espécie de direção geral da obra, essa perspectiva fica ainda mais explicitada. O capítulo visa destacar as possibilidades de se estabelecer as conexões analíticas entre expectativas e percepções de liberdade e autonomia por parte de escravos, roceiros, quilombolas e forros, antes e depois da abolição. Os anseios de escravos e libertos “em busca de autonomia e liberdade” integrariam um amplo movimento social que circundou a abolição no Brasil. Assim, os autores querem apontar as possíveis conexões analíticas “entre movimentos abolicionistas e atuação de escravos, libertandos e libertos, como partes integrantes de um amplo movimento social e político de superação da escravidão” (p. 20). Reconhecendo que a palavra “abolicionismo” adquiriu uso mais extensivo na década de 1880, em detrimento de “emancipacionismo”, mais comum até aquele momento, os estudos sobre a abolição teriam supervalorizado esse momento, assim como os espaços urbanos, os debates parlamentares e a imprensa. Os estudos sobre escravidão, abolição e pós-emancipação sofreriam, até hoje, de uma segmentação, resultando em narrativas lineares desses fenômenos. No caso específico da abolição, essas narrativas reduziriam em demasia os recortes e os atores, “aprisionando suas análises no espaço urbano e na última década da escravidão” (p. 19-20).
Tal perspectiva tem o mérito de salientar a importância do contexto das lutas e atuações sociais de escravos, libertos e livres para a compreensão mais geral do momento abolicionista. Mas a afirmação permanece em um plano genérico. Lutas e atuações de escravos, libertos e livres sempre existiram na sociedade escravista brasileira, tanto ao longo da história colonial quanto no decorrer da história imperial. Em que momento e como essas lutas e atuações influíram ou incidiram na formação de um movimento abolicionista? Toda a busca por liberdade, em uma sociedade escravista como a brasileira que comportava a alforria e a inserção social, econômica, cultural, jurídica e política do liberto, integrava “um amplo movimento social e político de superação da escravidão”? A permanência e a força históricas da escravidão brasileira atestam que não. Em que momento, por quais razões e como a liberdade deixou de ser uma condição individual de não ser mais escravo, e de eventualmente poder mesmo usufruir do direito de ser proprietário de escravos, para se tornar uma condição social, jurídica e política frontalmente contraposta à existência de qualquer escravidão? Inversamente, é preciso esclarecer como as lutas políticas abolicionistas ressignificaram, condensando, repercutindo, amplificando, as lutas de escravos, livres e libertos. Essa é uma questão de fundo que não pode ser enfrentada somente pela multiplicação e enumeração de “casos” de embates particulares entre senhores e o Estado, de um lado, e escravos, libertos e livres, de outro. Da mesma forma, se o movimento abolicionista não pode ser completamente seccionado das propostas anteriores, genericamente designadas como emancipacionismo, de abolição em um futuro incerto, de forma gradual e preservando os direitos de propriedade, não pode, tampouco, ser confundido com elas. O preço é uma diluição da singularidade da luta abolicionista, ao mesmo tempo em que não fica claro em que, e se é que, “as expectativas e percepções de liberdade e autonomia” da população escrava, liberta e livre seria diferente, no período da abolição, das expectativas de liberdade e autonomia que tinham antes.
Flores, votos e balas dá grande ênfase à movimentação abolicionista. Em uma nota à apresentação do livro, Ângela Alonso explicita o que ele traz de novidade em relação a uma longa série de obras anteriores sobre a abolição da escravidão no Brasil: uma visão de conjunto da mobilização abolicionista, considerando a dinâmica intra e extraparlamentar, a partir de sua periodização própria, salientando quatro conjunturas. Em termos metodológicos, seu levantamento sistemático das associações abolicionistas e eventos de mobilização a partir de notícias de imprensa também é original. Finalmente, haveria ainda o papel destacado por ela conferido à organização política do “contramovimento”, em oposição aos abolicionistas, que teria um papel importante “para a intelecção das estratégias abolicionista” (p. 373-4). No decorrer do livro, as lutas escravas só aparecem na conjuntura de acirramento do movimento abolicionista, no penúltimo capítulo, quando a autora, seguindo definição de sua principal referência teórica, o sociólogo norte-americano Charles Tilly, vê o ano de 1887 como uma situação revolucionária. Se é verdade que, neste ano, a situação desandou de vez, com a desorganização da produção e o caos social instaurado pelas fugas e rebeliões escravas, muitas delas incentivadas ou acobertadas pelos abolicionistas, é fato também que agitações entre escravos, variando dos casos de rebeldia individual, fugas, assassinatos de proprietários e seus feitores e capatazes a fugas e movimentações coletivas, intensificavam-se desde pelo menos 1882.
Aqui, a crítica a ser feita é quase inversa àquela em relação a Tornando-se livres. O papel de escravos e libertos na luta contra a escravidão surge quase como um subproduto do movimento abolicionista. Essas lutas não têm passado, tradições e condicionamentos socioeconômicos e culturais particulares, tanto aqueles inseridos em sua longa duração, remontando ao período colonial, quanto aqueles mais específicos, característicos de sua reconfiguração e expansão no período imperial. Ângela Alonso detém-se sobre a escravidão do XIX, mas o faz em busca dos fundamentos de uma retórica de defesa da escravidão que remontaria, por sua vez, a linhagens de defesa da instituição identificadas por David Brion Davis no pensamento ocidental. Aqui a escravidão não teria as mesmas características de racialização presentes na sociedade estadunidense. Em uma “sociedade aristocrática, a estratificação estamental garantia a ordem sem exigir argumentos raciais explícitos, embora nem por isso ausentes” (p. 57-8), e “era a base de um estilo de vida, compartilhado por todo o estamento senhorial, cujos eflúvios se espalhavam pela sociedade em círculos concêntricos, como pedra na água” (p. 53). Essa situação, por sua vez, propiciava uma argumentação de defesa da escravidão caracterizada pela autora como “escravismo de circunstância”, uma defesa enrustida, não racializada e justificada pelas condições específicas da economia nacional (p. 56 e ss.).
Essa linha de defesa da escravidão teve como campeão Paulino José Soares de Sousa, filho homônimo do visconde do Uruguai. Não há espaço aqui para debater essa ideia de escravismo de circunstância, fundamentado em uma sociedade aristocrática e estamental. É fato que a defesa da escravidão no Brasil seguiu uma linha de argumentação principal que a considerava um mal necessário, uma necessidade histórica, prescindindo ou minimizando sua defesa moral ou abrigada em razões raciais, tidas então como científicas. Já o argumento de que essa linha de defesa correspondia a uma sociedade estamental e aristocrática parece mais problemático. A aristocracia brasileira era meritocrática e não hereditária, não correspondendo, assim, a uma sociedade estamental. Por outro lado, uma linha de defesa mais pragmática que programática da escravidão era mais adequada ao caráter elástico da escravidão brasileira, como notou Joaquim Nabuco em O abolicionismo. A escravidão aqui estava presente em todos os cantos do território nacional, tanto no campo quanto nas cidades. Era um privilégio que podia se estender, e muitas vezes se estendia, a pequenos proprietários rurais e a setores médios e remediados nas cidades. Era um privilégio de brancos, mas podia abarcar – e às vezes abarcava – mestiços e negros, dos quais muitos tinham acabado de adquirir sua própria liberdade.
Flores, votos e balas compartilha a tese da continuidade entre o abolicionismo em sua fase do que se convencionou chamar de emancipacionismo e sua fase propriamente abolicionista, ainda que não calcada, como em Tornando-se livres, nas lutas de escravos e libertos. Ela assinala, é certo, a incidência dessas lutas, mas somente a partir de 1883 e sob o estímulo direto do movimento abolicionista, que então ingressava em sua fase de “balas”. Para Ângela Alonso, essa continuidade viria pela indistinção entre as propostas emancipacionistas e aquelas abolicionistas, corroborada pelo protagonismo de determinadas lideranças em ambos os momentos. Para tanto, ela acompanha as figuras de André Rebouças, um dos “papas” da luta pela abolição, e o menos conhecido educador Abílio César Borges. A tese é problemática. É verdade que Rebouças já batalhava pela abolição, mais como um objetivo vago, a ser alcançado por reformas, antes mesmo do movimento abolicionista ganhar seu contorno de luta pela abolição imediata, o que ocorreu a partir de 1879. Entretanto, essa continuidade do personagem não autoriza a interpretação da continuidade do movimento. A partir de 1879, Rebouças lançou-se resolutamente na luta pela abolição imediata e sem indenizações, distinguindo – assim como outros abolicionistas – essa nova luta das bandeiras emancipacionistas de abolição gradual que haviam culminado na lei de 1871. No final da década de 1870, estava claro que o emancipacionismo era insuficiente, com o fim da escravidão previsto para um futuro distante e indeterminado, além de deixar intacto o poder da “landocracia”, termo que ele utilizava para designar o poder dos grandes senhores de escravos e de terras que deveria ser quebrado. Rebouças era o mesmo, mas suas opiniões e práticas haviam mudado radicalmente.
No caso de Abílio Borges, enxergar neste personagem continuidades em uma pretensa cruzada abolicionista é ainda mais complicado. É verdade que ele considerava que a escravidão deveria ser extinta a bem do futuro da nação, e também que foi um dos fundadores, em 1869, da Sociedade Libertadora Sete de Setembro na Bahia. Entretanto, no capítulo do livro Tornando-se livres, de Ricardo Tadeu Caires Silva, que trata da mesma Sociedade Libertadora Sete de Setembro, ficamos conhecendo como pensava o dr. Abílio Borges. Em carta de 1870 a um correligionário, ele considerava que a substituição do trabalho escravo pela via da colonização só seria feita muito lentamente, por meio de uma lei do ventre livre. Os que tivessem nascido escravos que se sujeitassem à lei do seu destino, “porque a libertação em massa, além de não ser um bem para os próprios escravos, seria para o Brasil um mal imenso e de consequências funestíssimas” (citação à p. 304). Nada mais distante do ideário abolicionista que começa a ser construído em 1879, pregando a abolição imediata, sem indenizações, acompanhada pela destruição da “obra da escravidão”, com a distribuição de terras para os antigos escravos e seus descendentes e a tributação do latifúndio. Do ponto de vista das “formas de luta”, se é que assim se pode chamar as ações de compras de alforrias por sociedades emancipadoras, a mudança também foi radical. A atuação dessas sociedades e de novas que surgiram continuou, mas estas passaram a conviver com outras manifestações, ações e entidades, essas sim de luta, que demandavam a abolição imediata, e que acobertavam – quando não promoviam – fugas de escravos.
Essa radicalidade e essa novidade do movimento abolicionista são percebidas e valorizadas por Cláudia Santos em seu capítulo de Tornando-se livre, intitulado “Na rua, nos jornais e na tribuna: a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro antes e depois da abolição”. A partir da década de 1880, teria surgido um novo ativismo político conflitante com as estruturas dominantes do Império. A Confederação Abolicionista, fundada em 1883, teve um protagonismo destacado na conformação deste novo ativismo. De modo mais amplo, o movimento abolicionista foi um marco desse processo “não apenas porque foi determinante para a extinção da escravatura, mas porque organizou um novo tipo de atuação política, estruturada em torno da participação dos setores populares, da imprensa, das associações e dos meetings” (p. 338).
A importância das associações no abolicionismo é dos pontos centrais da argumentação de Ângela Alonso. Para a autora, haveria uma constante e crescente fundação de sociedades emancipadoras entre 1850 e 1888. Essa constatação é feita pelo levantamento na imprensa, no que é um dos pontos fortes de seu livro. De modo distinto de Cláudia Santos, esse fenômeno seria uma outra indicação da continuidade da mobilização pela abolição ao longo desse extenso período. É certo que a multiplicação de associações beneficentes e corporativas, e não apenas das destinadas a promover emancipação de cativos, foi uma característica geral da segunda metade do nosso século XIX. Entretanto, pelos próprios dados levantados, o que se nota é que, até 1869, a fundação dessas entidades foi esporádica. Fundaram-se duas em 1850 e outra em 1852. Apenas em 1857 uma nova associação foi fundada, assim como em 1859, 1860, 1864 e 1867. Somente em 1869 esse patamar deu um salto, com a fundação de sete associações emancipadoras, seguidas por 11 no ano seguinte. O número voltou a cair na sequência: cinco em 1871, três em 1872, uma por ano em 1873, 1874, 1877 e 1878. Em 1879, o número subiu com a fundação de três entidades, dando um salto nos quatro anos seguintes: 10 em 1880, 23 em 1881, 19 em 1882, e 103 em 1883! Não sabemos quais as diferenças de propósito entre essas diversas associações e se alguma mudança significativa pode ser percebida a esse respeito a partir de um dado momento. O que, no entanto, transparece desses dados é uma clara mudança de patamar na mobilização que corresponde a determinados momentos da conjuntura política. Assim, as associações surgiram no ambiente de discussão da abolição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850. Patinaram na média de menos que uma associação por ano até 1868. Em 1869, quando se dava a discussão sobre a emancipação do ventre da mulher escrava no contexto da guerra do Paraguai e da pós-abolição nos Estados Unidos, houve um salto de patamar na quantidade de associações fundadas. Esse número, entretanto, minguou nos anos seguintes, até 1879, quando voltou a subir. Esse minguar parece corroborar a tese já defendida por alguns abolicionistas e corroborada por historiadores de hoje de que a Lei do Ventre Livre apaziguou o que poderia ter sido um incipiente movimento abolicionista no Brasil. A fundação de 10 associações em 1880 indica, claramente, a propagação do movimento abolicionista, e não mais apenas pela emancipação por ações individuais, de caráter privado ou associativo, dentro dos parâmetros definidos pela lei de 28 de setembro de 1871. Em 1883, como se leu acima, o movimento abolicionista simplesmente explodiu, com a fundação de mais de uma centena associações.
Tornando-se livres e Flores, voto e balas são, em certa medida, obras complementares; a primeira enfatizando as lutas populares de libertos e escravos, a segunda, o movimento abolicionista como movimento social de caráter político. Essa é, no entanto, uma complementaridade por justaposição. Importante, sem dúvida, mas que ainda não compõe uma narrativa que mostre como, a partir de quando principalmente e em que medida as resistências e lutas escravas, o movimento social abolicionista e o movimento político se interpenetraram. A partir de perspectivas que, em larga medida, isolam essas dimensões, os dois livros propõem-se a realizar uma interpretação da Abolição. De forma mais explícita e integrada no caso de Flores, votos e balas, obra autoral, e como norte interpretativo mais geral, que guiou a organização do trabalho e a escolha dos autores em Tornando-se livres. Nesse sentido, são um grande passo na direção de ampliar as discussões sobre o significado da Abolição. As críticas aqui expostas não apontam falhas nas obras consideradas; são críticas de interpretação. Dessa forma, vêm no sentido de enriquecer o debate que Flores, votos e balas e Tornando-se livres, em boa hora, reabrem.
1Essa escolha não implica em qualquer juízo de valor sobre a qualidade dos capítulos omitidos, apenas a avaliação, evidentemente sempre sujeita a contestações, de que esses capítulos são menos sujeitos à comparação aqui proposta entre as duas obras.
Ricardo Salles – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: ricardohsalles@gmail.com.
Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII – RAMINELLI (RH-USP)
RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 260p. Resenha de: SOUZA, Priscila de Lima Souza. Nobrezas sem linhagem: a nobilitação na América Ibérica. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
A constituição das nobrezas na América ibérica durante os séculos XVII e XVIII é o tema investigado em Nobrezas do Novo Mundo, livro de autoria de Ronald Raminelli. Publicado no ano de 2015, o trabalho é o resultado de quase uma década de pesquisas parcialmente divulgadas em revistas nacionais e estrangeiras. Um dos destaques do livro é a abordagem comparada do tema, empreendimento pouco comum entre os historiadores brasileiros dedicados ao período colonial. Valendo-se do método da comparação formal, a América espanhola é concebida como parâmetro para problematizar e iluminar as especificidades da nobreza formada na América portuguesa, sendo esta, de fato, o objeto do livro. Os espaços selecionados para a análise são, na América espanhola, os vice-reinos do Peru e da Nova Espanha, cujas capitais concentravam parte significativa da nobreza hispano-americana, e, na América portuguesa, as capitanias de Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia, notoriamente privilegiadas em relação às demais.
Nas duas últimas décadas, a produção historiográfica sobre a nobreza do Antigo Regime tem aumentado consideravelmente. No interior desse campo de pesquisas, o livro de Ronald Raminelli diferencia-se por ser um estudo que propõe uma sistematização sobre as nobrezas existentes nas sociedades ibero-americanas entre os séculos XVII e XVIII, atentando particularmente para os seus traços constitutivos e para as suas transformações ao longo do tempo. Trabalhos com tal envergadura são menos comuns que os estudos de caráter monográfico e regional. Para o caso da América portuguesa, por exemplo, Ser nobre na colônia, de autoria de Maria Beatriz Nizza da Silva (2005), figurava como uma das únicas obras com essa ambição. Uma advertência feita por Raminelli diz respeito à tendência da historiografia brasileira em associar de modo naturalizado as elites coloniais com a chamada “nobreza da terra”. Contudo, no livro são considerados nobres somente os indivíduos que tiveram o status sancionado pelo poder régio por meio da concessão de títulos de nobreza, foro de fidalgo e hábitos das ordens militares (p. 24).
O autor afirma que a obra é, em primeiro lugar, um balanço da historiografia sobre os nobres americanos. Essa, de fato, é uma das qualidades do estudo, que dialoga com trabalhos clássicos e, principalmente, com a literatura renovada produzida nos últimos anos. Para os espaços da América portuguesa, porém, a pesquisa empírica ganha relevo com a análise de documentação proveniente de arquivos portugueses como o da Torre do Tombo. Nesse quesito, sobressaem as habilitações às ordens militares e ao Santo Ofício, material que permitiu ao autor investigar os trâmites institucionais da nobilitação.
O livro foi estruturado em duas partes, cada uma delas contendo três capítulos. Na primeira, denominada “Variações da nobreza”, o autor sustenta que a nobreza não deve ser concebida como uma condição homogênea, pois os critérios para o seu estabelecimento variavam no espaço e no tempo. Na segunda parte, intitulada “Índios, negros e mulatos em ascensão”, averíguam-se as possibilidades de nobilitação desses grupos sociais e as condições de manutenção da posição alcançada, análise que é circunscrita ao caso da América portuguesa.
Os dois primeiros capítulos apresentam uma temporalidade longa, que vai desde o século XVI até o contexto da segunda metade do século XVIII. Neles, o autor discute a natureza da nobreza americana, atentando particularmente para as suas hierarquias. Para tanto, compara as nobrezas peninsulares com as nobrezas americanas e estas entre si. Em primeiro lugar, sustenta que a nobreza americana se distinguia da nobreza radicada na península Ibérica pelo fato de, ao contrário desta, os seus títulos não serem hereditários. Em segundo lugar, sugere que uma das principais diferenças entre as nobrezas ibero-americanas era a existência da alta nobreza nos espaços espanhóis, segmento integrado por indivíduos que foram condecorados com títulos como os de marquês e conde, os mesmos concedidos à nobreza peninsular. Nos espaços luso-americanos, somente vice-reis e governadores, todos reinóis, ostentavam semelhante honraria. Em terceiro lugar, destaca-se a tese conforme a qual os processos de nobilitação eram mais rigorosos na América espanhola, pois lá se seguia mais estritamente os critérios de qualidade exigidos na Europa. Entre os hispano-americanos, faltas na qualidade – como a impureza de sangue – representavam um grande óbice à nobilitação. Por sua vez, em Portugal e em seus domínios americanos, havia certa flexibilidade na imposição desses critérios, os quais eram relevados em face dos serviços militares prestados à monarquia.
No segundo capítulo, “Nobreza e governo local”, discute-se a relação entre a ocupação de cargos na administração pública e a formação da nobreza americana. Tendo como referência teses consolidadas na historiografia, o autor demonstra que, por meio do monopólio das terras e do poder político exercido a partir dos cabildos e das câmaras municipais, os conquistadores e seus descendentes estabeleceram-se como nobreza local. Por outorgarem privilégios e o status de vecino/cidadão, tais instituições foram essenciais para o enraizamento da nobreza americana. Conforme Raminelli, a manutenção dessa posição ao longo das gerações permitiu ao grupo “consagrar-se como nobreza de sangue” (p. 85). Essa afirmação evidencia a necessidade de problematizar as fronteiras entre a nobreza política – dispensada pelo rei – e a nobreza de linhagem na América ibérica, uma vez que a tese defendida no primeiro capítulo é a de que a nobreza americana não se reproduzia hereditariamente.
O terceiro capítulo, intitulado “Riqueza e mérito”, é dedicado à análise das mudanças nas concepções sobre a nobreza ocorridas ao longo da segunda metade do século XVIII, fenômeno diretamente relacionado ao processo de centralização monárquica. Sugere-se que os critérios para a nobilitação, fundamentados na origem familiar, passaram a ser questionados devido à crescente valorização do mérito individual e da riqueza. O autor salienta que nesse período houve um aumento significativo na concessão de títulos de nobreza para grupos sociais tradicionalmente excluídos do acesso às honras nobiliárquicas, como era o caso dos comerciantes. Estes, valendo-se da prática da venalidade de cargos, títulos e hábitos militares, puderam ingressar na baixa nobreza. Raminelli admite que, se na América espanhola a relação entre riqueza e nobilitação era clara, o mesmo não pode ser afirmado para o caso português, em que a venda de cargos e títulos não constituía recurso comumente empregado (p. 120). Ainda assim, constata que ao longo desse período houve um aumento expressivo na concessão de hábitos das ordens militares em Portugal, tese que, no entanto, carece de dados empíricos para a América portuguesa.
Em “Malogros da nobreza indígena”, o quarto capítulo do livro, analisa-se a trajetória de ascensão social de índios em um recorte temporal compreendido de meados do século XVII até o início da década de 1730. A discussão é centrada na figura de dom Antônio Felipe Camarão e seus descendentes, índios da capitania de Pernambuco recompensados pela Coroa pelos serviços prestados durante as guerras contra os holandeses. Além das patentes militares, foram condecorados com hábitos das ordens militares portuguesas, inserindo-se, desse modo, na nobreza local. Raminelli sugere que a reprodução da nobreza indígena estava diretamente relacionada aos serviços militares prestados em situações de conflito bélico. Assim, com a relativa pacificação no início do século XVIII, as chefias indígenas foram paulatinamente perdendo seu poder de barganha com a Coroa, resultando na desmobilização completa do famoso terço de Camarão no início da década de 1730 e, consequentemente, no malogro de suas estratégias de ascensão social. A história dos corpos militares integrados por indígenas na América portuguesa ainda demanda pesquisas mais sistemáticas. Sabe-se que durante a segunda metade do século XVIII existiram corpos de ordenança e de auxiliares indígenas nas capitanias do norte pertencentes ao Estado do Grão-Pará e Maranhão, mas até o momento ainda são poucos os trabalhos dedicados às suas experiências. A discussão proposta por Raminelli constitui um bom caminho para incentivar novas investigações e problemas, o que permitiria averiguar se o fenômeno constatado por ele era restrito à capitania de Pernambuco ou consistiu em uma tendência de caráter geral.
O capítulo 5, “Militares pretos na Inquisição”, é o único que apresenta uma temporalidade curta, o que é justificado pelo objeto analisado. Nele, acompanha-se a trajetória de dois militares pretos do Recife durante a década de 1740. Esses homens eram integrantes do terço de Henrique Dias e, ao mesmo tempo, de uma fradaria, corporação que reunia características tanto de irmandade leiga como de ordem religiosa. Mesmo com parca atuação na corporação, os dois militares foram acusados de heresia e, por isso, presos e remetidos aos cárceres do Santo Ofício em Portugal. O autor demonstra que, diferentemente dos índios, os militares pretos que participaram das guerras contra os holandeses em meados do século XVII e seus descendentes não foram condecorados com hábitos das ordens militares, embora tivessem recebido promessas nesse sentido. Apesar disso, constituíam uma “elite preta” devido às patentes militares a eles outorgadas. Na perspectiva avançada por Raminelli, o episódio da prisão revela os mecanismos de exclusão social que afetavam os militares pretos em processo de ascensão social, tornando “instável a honra alcançada pela elite preta de Pernambuco” (p. 205). Não obstante a pertinência da interpretação, chama a atenção o dado conforme o qual os dois militares foram absolvidos e suas patentes restituídas, aspecto não problematizado pelo autor. Nesse sentido, seria promissor investir em explicações que considerassem a preservação do terço dos Henriques e de seus oficiais mesmo diante da oposição das elites brancas e do governo local.
Em “Cores, raças e qualidades”, o último capítulo do livro, procura-se entender os fundamentos que impossibilitaram a nobilitação de pretos e mulatos em Portugal e na América portuguesa. A discussão insere-se em um campo de debates polêmico, relacionado ao questionamento da existência de racismo e da ideia de raça em períodos anteriores à emergência das teorias cientificistas de meados do século XIX. Um dos méritos desse capítulo é a tentativa de definir de modo mais preciso a vinculação de pretos e mulatos à ideia de impureza de sangue, dimensão ainda pouco explorada pela historiografia portuguesa e brasileira. Mediante a análise de habilitações para familiares do Santo Ofício, o autor sugere que a falta de limpeza de sangue atribuída aos pretos e mulatos não era de natureza religiosa, como acontecia aos cristãos-novos, mas fundamentada na escravidão. Assim, ter “raça de mulato” remetia diretamente ao passado escravo e a crenças na transmissão hereditária de comportamentos. Diante disso, o autor advoga a pertinência do emprego das noções de raça e racismo para o período colonial, desde que suas particularidades no contexto sejam esclarecidas.
Ao longo do capítulo, sente-se falta de um diálogo mais estreito com a historiografia sobre os espaços hispano-americanos, que conta com uma boa produção de trabalhos que pensam o problema da raça e da limpeza de sangue relacionado aos afrodescendentes. Esse diálogo, tal como efetuado na primeira parte do livro, indubitavelmente enriqueceria ainda mais as discussões desenvolvidas na segunda parte do trabalho. Por outro lado, no que se refere aos impedimentos baseados na cor e na raça, a distinção entre pretos e pardos mereceria um tratamento mais detido. Ao questionar a inexistência da expressão “raça de preto” e a recorrência da “raça de mulato” (p. 237), Raminelli sugere que a condição material dos mulatos estaria na raiz da distinção. Dispondo de uma condição econômica mais abastada, por serem filhos de homens brancos ricos, eles pleiteariam por hábitos militares e familiaturas do Santo Ofício com mais frequência, instigando a concorrência com outros grupos em disputa pelas mesmas honras. Esta seria a origem da “raça de mulato”, um mecanismo empregado para excluí-los das posições sociais de maior prestígio. Embora o autor esclareça que se trata de uma hipótese, pode-se, no entanto, questionar os limites do argumento por centrar a explicação no fator socioeconômico. Seria importante considerar também as diferenças de status entre esses grupos, que tendiam a ser hierarquizados de acordo com a proximidade e o afastamento em relação à escravidão. Como a historiografia tem ressaltado, os pretos normalmente eram associados diretamente à escravidão e os mulatos, por sua vez, poderiam ser libertos ou estar afastados, em algumas gerações, do ascendente cativo. É possível inferir que era precisamente nesta última situação que a “raça de mulato” desempenhava a sua função primordial, qual seja, barrar a ascensão social de indivíduos que não podiam ser diretamente associados à escravidão.
A principal ressalva ao livro de Ronald Raminelli diz respeito ao descompasso entre as temporalidades abordadas na primeira e na segunda parte da obra. Se nos capítulos 1, 2 e 3 a narrativa foi articulada considerando os grandes contextos formativos da nobreza americana, desde o início da conquista até a transição para o século XIX, nos três últimos capítulos, o recorte limita-se ao tempo que vai das guerras contra os holandeses até fins da década de 1740. Conforme exposto no capítulo 3, a segunda metade do século XVIII foi uma época marcada, por um lado, pelo questionamento da primazia do sangue como critério para a condecoração dos súditos e, por outro lado, pela crescente valorização do mérito individual e da riqueza. Ao leitor fica a inquietação acerca do impacto desse quadro de mudanças nas possibilidades de ascensão social disponíveis a pretos, mulatos e indígenas, principalmente no que diz respeito ao ideário da pureza de sangue. Essa lacuna não diminui a importância do livro, que apresenta novos argumentos e complexifica teses já consolidadas. Ademais, Nobrezas do Novo Mundo indica um conjunto de temas ainda pouco explorados pela historiografia, evidenciando a existência de um promissor campo de investigações.
Priscila de Lima Souza – Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: cila_lima@yahoo.com.br.
SUMMERHILL, W. R. Inglorious revolution (RH-USP)
SUMMERHILL, William Roderick. Inglorious revolution: political institutions, sovereign debt and financial underdevelopment in imperial Brazil. New Haven: Yale University Press, 2015. Resenha de: MIRANDA, José Augusto Ribas. Da rua Direita à Lombard Steet: Império do Brasil e subdesenvolvimento financeiro. Revista de História (São Paulo) n.176 São Paulo 2017.
Lançado em 2015, a obra de Summerhill é um raio x de quase um século de atividade financeira e da formação do mercado de capitais no Brasil. Autor de Order against progress,1 lançado em 2003, Summerhill atua com profundo conhecimento sobre a história do Brasil imperial e grande desenvoltura para com os aspectos econômicos e financeiros do período.
Inglorious revolution possui duas grandes contribuições para a historiografia do Brasil imperial e para a própria história financeira do século 19.
A primeira grande contribuição é o tratamento intensivo e extensivo que Summerhill dispensa para os dados da atividade financeira e bancária do Brasil entre 1822 e 1889. Não se limitando a coletar os dados das fontes oficiais brasileiras e britânicas, o autor realizou um intenso trabalho de checagem cruzada de dados, no intuito de oferecer um conjunto de dados mais refinado e menos distorcido. Contando com os extensos trabalhos prévios de Liberato Carrera2 e Maria Barbara Levy,3 Summerhill reconstruiu a trajetória financeira do Império por meio de um conjunto de dados bem elaborado, indispensável para o pesquisador da temática.
A segunda e mais pertinente contribuição foi a grande pergunta do trabalho. Por que o Império do Brasil, que possuía uma trajetória exemplar no mercado de capitais interno e externo, não conseguiu criar um mercado de capitais privado dinâmico, propulsor do desenvolvimento manufatureiro e industrial, como assistido nas economias industriais do Atlântico norte?
A pergunta de Summerhill tem um ponto de partida claro. Em Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England,4 North e Weingast analisam a consolidação da dívida pública inglesa após a revolução gloriosa de 1688 e os efeitos da limitação constitucional ao poder do soberano na formação do mercado de capitais britânico, o mais importante até inícios do século 20. Partindo desse trabalho, o autor se propõe a pergunta: Por que o Brasil, que alcançou um estágio similar ao inglês, e único na América Latina, de cometimento com sua dívida pública, não conseguiu desenvolver um mercado de capitais dinâmico no setor privado?
O Brasil foi um caso de sucesso na América Latina tendo em vista a condução de sua dívida pública. Para além da boa reputação construída em Londres, onde contratou 19 empréstimos entre 1824 e 1889, o Império conseguiu fazer bom uso de seus credores internos, principalmente a partir da abolição do tráfico de escravos em 1850. Boa parte da dívida pública imperial foi contratada nas praças comerciais do Rio de Janeiro, onde fazendeiros e capitalistas encontraram nas apólices e títulos do Tesouro um investimento rentável e seguro. A credibilidade construída ao longo do período de vida do Império rendeu-lhe bons frutos. A partir de meados do século 19, o Império possuía condições de contratar empréstimos competitivos, oferecendo baixo risco aos investidores nacionais e estrangeiros. Todavia, o setor bancário foi submetido a um forte controle estatal, e a abertura de empresas de sociedade anônima encontrou muitas dificuldades em canalizar o capital doméstico, em um curso natural de alocação dos recursos para os setores produtivos.
O livro é dividido em oito capítulos. Nos primeiros quatro capítulos, o autor dedica-se a analisar a construção da credibilidade do Império nos mercados financeiros. Tanto em Lombard street quanto na rua Direita, a política de cometimento do Império em cumprir os serviços da dívida legaram ao país um histórico positivo e condições competitivas para contratar novos empréstimos. A constituição de 1824 legou ao Estado imperial mecanismos de controle sobre a dívida pública, uma vez que empréstimos nacionais e estrangeiros só poderiam ser contratados mediante aprovação da Câmara dos Deputados. Com o voto censitário, os deputados respondiam diretamente aos seus eleitores no tocante aos cuidados para o serviço da dívida. Esse eleitorado, composto por fazendeiros e homens de cabedais, era justamente o detentor das apólices e títulos de curto prazo da dívida pública, tornando o serviço da dívida algo necessariamente conectado com a formação das instituições políticas do Império, em especial no Segundo Reinado. No tocante à dívida externa, nos momentos de necessidade do erário imperial, acorrer a Londres para buscar empréstimos a preços competitivos fornecia mecanismos alternativos para contornar o crônico déficit orçamentário do Império, evitando aumentos de impostos e, acima de tudo, a emissão de papel moeda pelo Banco do Brasil, que poderia resultar em um intenso processo inflacionário, erodindo o retorno dos papéis nacionais pagos em mil reis, armazenados nas escrivaninhas e cofres da elite imperial.
Esse entrelaçamento de interesses entre o serviço das dívidas interna e externa por meio do arranjo político da monarquia constitucional brasileira dotou o Império de uma trajetória ímpar no continente quanto à credibilidade e à força de um mercado de capitais internos voltados para alimentar o voraz erário imperial.
A segunda parte do livro aborda os motivos pelos quais essa mesma solidez institucional que transformou o Brasil em um dos melhores pagadores do século 19 falhou em fomentar um mercado de capitais apto ao desenvolvimento de um setor privado pujante e competitivo como nas economias industriais do Atlântico norte.
Summerhill coloca como central a dificuldade em se criarem empresas de capital aberto para canalizar recursos em prol de atividades produtivas, a luta eterna do empreendedor Irineu Evangelista de Souza, o visconde de Mauá. Apesar do novo código comercial de 1850 já prever a formação de empresas em sociedade anônima e sociedade comandita com ações, os entraves para a abertura dessas empresas tornavam a tarefa um tortuoso caminho. O código de 1850 fora reformado em 1860 com a exigência de aprovação na Câmara, no Senado e no Conselho de Estado para abertura de empresas de sociedade anônima. Essas exigências tornaram a abertura dessas empresas uma tarefa muito mais política de lobby parlamentar do que uma simples ação administrativa, como na Grã Bretanha após a aprovação do Joint Stock Act e do Limited Liability Act de 1854 e 1855.
Com esse intenso sufoco burocrático, os bancos também sofreram grandes limitações para operar no Brasil. Conhecidos como agentes catalisadores do desenvolvimento industrial no Atlântico norte por sua capacidade de canalizar recursos e oferecer investimentos atrativos, os bancos no Brasil ficaram à sombra do gigantismo do Banco do Brasil, considerado uma ferramenta de estabilização monetária às mãos do ministro da Fazenda.
Aqui reside a resposta à pergunta inicial do livro. Summerhill aponta dois grandes motivos para o gargalo burocrático imposto à iniciativa privada do Império ante tão favorável quadro das finanças públicas. O primeiro deles era justamente o desenvolvimento adequado do mercado de capitais internos. Essa disponibilidade de capitais no país, em especial após o fim do tráfico de escravos, foi canalizada com maestria pelo Estado imperial para suas apólices e títulos de curto prazo. De fato, durante o Império, boa parte da dívida pública era composta por empréstimos nacionais, capital este que deveria ser redimensionado para os cofres públicos em detrimento do setor privado. As dificuldades impostas na abertura de empresas em sociedade anônima e novos bancos tornavam as respeitáveis apólices do Tesouro imperial um investimento muito mais atrativo e seguro para o fazendeiro e o rentista. O segundo motivo seria uma necessidade do Império em controlar quais áreas e quais empresas deveriam receber novos investimentos com permissões de funcionamento. Assim, o establishment imperial poderia dar prioridade a projetos de maior interesse político das classes atreladas ao gabinete, como ferrovias específicas e mesmo o todo poderoso Banco do Brasil.
A obra de Summerhill oferece respostas de peso para perguntas fundamentais na história e no presente econômico no Brasil. Por que o país falhou em gerar uma classe empreendedora e não conseguiu canalizar os vastos recursos presentes no país para projetos produtivos? A força analítica em Inglorious revolution, todavia, quando exposta em carne viva, pode afastar os leitores menos acostumados às profundezas da análise estatística. O livro encerra com dois apêndices com dados estatísticos trabalhados à exaustão, difíceis de serem depreendidos por leitores menos experientes. As análises de credit-risk e de retorno esperado e efetuado dos empréstimos (ex ante e ex post) também demandam maior entendimento de análise estatística por parte do leitor.
Apesar de certas partes de duro entendimento, os pontos fundamentais de Inglorious revolution são claros e assertivos. Summerhill conseguiu trazer um estudo profundo sobre questões primordiais na história econômica do Brasil, utilizando seu passado imperial como caso, captando as contradições entre a grande obra das finanças do Império e a sua maior falha.
Referências
CARREIRA, Liberato de Castro. Historia financeira e orçamentária do Império do Brazil desde a sua fundação. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. [ Links ]
LEVY, Maria Bárbara. The Brazilian public debt – domestic and foreign 1824-1913. In: LIEHR, Reinhard (ed.). La deuda pública en América Latina en perspectiva histórica. [The public debt in Latin America in historical perspective]. Frankfurt am Main; Madri: Vervuert ; Iberoamericana, 1995, p. 209-256. [ Links ]
LEVY, Maria Bárbara & ANDRADE, Ana Maria Ribeiro. El sector financiero y el desarrollo bancario en Río de Janeiro (1850-1888). In: TEDDE DE LORCA, Pedro & MARICHAL, Carlos (org.). La formación de los bancos centrales en España y América Latina : (siglos XIX y XX). Madri: Banco de España, Servicio de Estudios, 1994, p. 61-83. (Estudios de historia económica ; …). [ Links ]
NORTH, Douglass Cecil & WEINGAST, Barry R. Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England. In: ALSTON, Lee J.; EGGERTSSON, Thrainn; NORTH, Douglass C. (ed.). Empirical studies in institutional change. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. [ Links ]
SUMMERHILL, William Roderick. Inglorious revolution: political institutions, sovereign debt and financial underdevelopment in Imperial Brazil. New Haven: Yale University Press, 2015. [ Links ]
__________. Order against progress: government, foreign investment, and railroads in Brazil, 1854 – 1913. Stanford: Stanford Univ. Press, 2003. [ Links ]
1SUMMERHILL, William Roderick. Order against progress: government, foreign investment and railroads in Brazil, 1854 – 1913. Stanford: Stanford Univ. Press, 2003.
2CARREIRA, Liberato de Castro. Historia financeira e orçament á ria do Império do Brazil desde a sua fundação . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
3LEVY, Maria Bárbara. The Brazilian public debt – domestic and foreign 1824-1913. In: LIEHR, Reinhard (ed.). La deuda pública en América Latina en perspectiva histórica [The public debt in Latin America in historical perspective]. Frankfurt am Main; Madri: Vervuert; Iberoamericana, 1995, p. 209-256; LEVY, Maria Bárbara & ANDRADE, Ana Maria Ribeiro. El sector financiero y el desarrollo bancario en Río de Janeiro (1850-1888). In: TEDDE DE LORCA, Pedro & MARICHAL, Carlos (org.). La formación de los bancos centrales en España y América Latina : (siglos XIX y XX). Madri: Banco de España, Servicio de Estudios, 1994, p. 61–83.
4NORTH, Douglass Cecil & WEINGAST, Barry R. Constitutions and commitment: the evolution of institutions governing public choice in seventeenth-century England. In: ALSTON, Lee J.; EGGERTSSON, Thrainn; NORTH, Douglass C. (ed.). Empirical studies in institutional change. Cam bridge: Cambridge University Press, 1996.
José Augusto Ribas Miranda – Mestre e Doutor em História pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail:joseribas50@hotmail.com.
Gênero, mulheres e imagem: diálogos interdisciplinares (I) / Domínios da Imagem / 2017
Os estudos de gênero têm impulsionado pesquisas de múltiplas áreas. Um meio de compreender os sentidos e as relações complexas entre diversas formas de interação humana, gênero se refere, conforme postulado por Joan Scott, às construções históricas, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres. Percepções, gestos, sentimentos, pensamentos, hábitos e as maneiras de perceber a si e aos demais oferecem suporte para uma compreensão acurada acerca das relações de gênero. Nesse sentido, ganha relevância a aproximação dos estudos de gênero e a cultura visual, uma vez que as imagens desempenham um papel primordial na contemporaneidade por tocar os imaginários sociais e contribuir para a construção das visões de mundo dos indivíduos. As reflexões que possibilitam, permitem problematizar a constituição e distribuição de poder e prestígio nas sociedades.
O Dossiê que ora apresentamos, mostra a convergência de interesses e preocupações de um conjunto de investigadoras (es), advindos de diferentes campos disciplinares, na tentativa de contemplar uma pluralidade de abordagens tendo como foco gênero, mulheres e imagem. Por isso, agradecemos a generosa colaboração de todas (os).
Esperamos que os resultados das inúmeras perspectivas abertas – criativas e instigantes -, contribuam para desconstruir os papéis, os lugares ocupados, como também por focalizar as funções das mulheres e dos homens ao longo da história e possa favorecer a continuidade dos debates e suas repercussões nas práticas sociais.
Abrimos este dossiê apresentando o diligente ensaio de Ana Cristina Teodoro da Silva, Gênero como sertão, veredas em construção – filme, minissérie e livro. Em seu texto encontraremos reflexões acerca de papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres e suas relações, presentes no livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, e nas produções adaptadas desta obra, quais sejam, a minissérie Grande Sertão: Veredas, produzida pela Rede Globo, exibida em 1985 e o filme Grande Sertão, dirigido pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, de 1965. Em sua viagem pelas três narrativas, problematiza semelhanças, diferenças e ressignificações pertinentes às diferentes linguagens e a como cada período e cada mídia puderam configurar a rica trama rosiana.
Lançando mão do movimento de trazer o gênero ao contexto da imagem, em Poéticas de gênero e a transexualidade das fotografias bordadas, Marcela Vasco empreende uma aproximação entre os estudos da transexualidade e a antropologia da imagem. A transexualidade é entendida ao longo de todo o trabalho não como uma performance teatral onde o gênero é encenado, mas como transformações físicas, sexuais, sociais e políticas. Ao trabalhar com imagens tornando mais claro trajetórias de vida e de transição dos(as) interlocutores(as) e também a maneira como a fotografia era interpretada por eles(as), a autora recorre ao uso do bordado como método etnográfico, visando uma abordagem mais particular tanto da transexualidade quanto da imagem, e discute as potencialidades dos “encontros, contornos e emaranhados das linhas que as ligam”.
No artigo de Amaral Palevi Gómez Arévalo, Identidades en disputa: producciones audiovisuales LGBTI en El Salvador, encontraremos análises de produções audiovisuais salvadorenhas que tematizam as representações de identidades lésbicas, gays, bisexuais, trans e intersexuais. O autor preocupase em refletir sobre “los procesos de violencia que se instauran sobre determinados cuerpos por ejercer una sexualidad, identidad y expresión de género diferentes a las que ordena la norma heterossexual”. Para isso trouxe análises de documentários que narram a vida de pessoas que vivem em El Salvador assim como alguns curtas produzidos por diversos canais e organizações que abordam realidades LGBTI. Entre as narrativas e linguagens que analisa também estão as campanhas publicitárias de conscientização e fim da discriminação, e os áudios, como canções, “radio-conto” e publicidades divulgadas por este meio. Trata-se de trabalho que nos permite conhecer e refletir sobre as realidades desses indivíduos, as manifestações de discriminação das pessoas salvadorenhas e as respectivas formas de enfrentar tais questões.
Scripts juvenis delineados em imagens digitais: consumo, relações de gênero e sociabilidades, de Ana Carolina Sampaio Zdradek e Dinah Quesada Beck, nos contempla com debate que se insere no campo dos Estudos Culturais e de Gênero. Recorrendo ao movimento metodológico da etnografia e entendendo a linguagem como processo central nas cenas publicitárias da campanha “Fanta – Leva na boa”, o estudo coloca em tensionamento o modo como se movimentam normas, definições e compreensões a partir da construção de identidades descolada e alto astral produzidas. Resgatando os desdobramentos teórico-conceituais com relação aos scripts de gênero e sexualidade, as autoras analisam a representação de juventude e as sociabilidades que a comunicação digital proporciona na história do presente, ressaltando que a participação ativa de jovens nas redes sociais se mostrou a principal estratégia para efetivação do consumo e, nesse cenário, diferentes roteiros foram construídos para vivências jovens, os quais acionam efeitos de sentido sobre comunicação digital, gênero e relações sociais.
Priscila Miraz de Freitas Grecco, analisa a presença de fotógrafas amadoras brasileiras, durante as décadas de 1940 e 1950. Seu artigo, A presença feminina em fotoclubes no século XX: apontamentos preliminares, historiciza a participação das mulheres nos fotoclubes, especialmente no Foto Cine Clube Bandeirante, atuante na cidade de São Paulo desde 1939, e analisa a produção das mulheres fotoclubistas, suas trajetórias, as condições de produção de projetos pessoais das amadoras e profissionais que buscaram o fotoclube para pensar e produzir a fotografia. Nesse contexto, a autora nota as dificuldades para o desenvolvimento da pesquisa com as mulheres nos fotoclube, assinalando que a escassez de documentação sobre quem eram essas mulheres contribui para pouco sabermos sobre como era ser sócia de um clube de fotografia nos anos de 1940/1950 no Brasil. Suas análises reiteram a necessidade de trazer à tona a participação das fotógrafas nesse ambiente que se manteve por muito tempo majoritariamente masculino e de romper um silêncio que se relaciona muito mais com as questões de gênero, refletindo no comportamento social restritivo para as mulheres na sociedade como um todo, do que com qualquer questão que envolva o fazer fotográfico.
A relação mulher/fotografia também é o tema que nos apresenta Maria Cristina Pereira em O Revivalismo medieval pelas lentes do gênero: as fotografias de Julia Margaret Cameron para a obra The Idylls of the King e outros poemas de Alfred Tennyson. A partir das fotografias de Cameron, produzidas no século XIX, para compor o livro de poemas de Alfred Tennyson, e também de ilustrações feitas para outras obras desse mesmo poeta, a autora nos mostra em suas análises o pioneirismo de uma mulher na arte da fotografia, com uma estética “pouco convencional” ao apresentar imagens “fora de foco”, assim como a predominância de mulheres para retratar o período medieval como tema das suas produções. Destacando a peculiaridade das fotografias de Cameron, o estudo traz comparações com aquelas produzidas pelo ilustrador francês Gustave Doré, seu contemporâneo.
Também tendo como referencial teórico os Estudos Culturais e de Gênero, o artigo de Luciana Rodrigues de Oliveira e de Joanalira Corpes Magalhães Esse é o Show da Luna: investigando gênero, ensino de ciências e pedagogias culturais, traz como objeto de análise o desenho animado. Ao investigarem as potencialidades pedagógicas do desenho analisado e as falas das crianças participantes acerca do artefato cultural O Show da Luna, as autoras discutem e problematizam os entendimentos sobre o que é ciência, sobre o ser cientista e mulheres na ciência que as crianças têm. No bojo dessa discussão, uma das questões fundamentais debatida é a possibilidade de abordar gênero e ciência desde a Educação Infantil, respondendo às crianças e aos questionamentos presentes em seu cotidiano.
Trazendo questões bastante contemporâneas e efervescentes no campo da política, em Impeachment, perversão e misoginia são apresentadas considerações acerca das representações veiculadas pelas Revistas Veja e Isto É, nos anos de 2015 e 2016, por meio de textos e imagens, referentes ao processo de impeachment de Dilma Roussef, presidente da República do Brasil naquele momento. Muriel Emídio Pessoa Amaral e José Miguel Arias Neto partem do princípio de que a forma como algumas mensagens sobre a presidente foi veiculada configurou-se em montagens perversas, sendo que tais narrativas políticas contribuíram para a midiatização do ódio e da misoginia. Para empreender tais reflexões trabalharam com a definição de discurso de Michel Foucault, de gênero com Joan Scott e o conceito de perversão de Daniel Sibony.
Desejamos boa leitura a todos/as!
Edméia Ribeiro – Doutora em História. Pesquisadora na área de História da América, mulheres e gênero. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: edmeialondrina@uel.br
Maria Cristina Cavaleiro – Doutora em Educação. Pesquisadora na área de educação, gênero e diversidade sexual. Docente adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus Cornélio Procópio. E-mail: mariacristina@uenp.edu.br
RIBEIRO, Edméia; CAVALEIRO, Maria Cristina. Apresentação. Domínios da imagem, v. 11, n. 20, jan/jun, 2017. Acessar publicação original [DR]
A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668) | Emília Savado Borges
Mestre em História Moderna e pós-graduada em História Regional e Local pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Emília Salvado Borges desenvolve, fundamentalmente, investigação sobre a história da região Alentejana, no período correspondente ao Antigo Regime. Nascida na Vila de Cuba, em Portugal (Alentejo), dedicou boa parte dos seus esforços investigativos às histórias que envolviam a sua municipalidade e o seu entorno. Neste livro, a autora procura desvendar uma realidade pouco explorada por uma historiografia muito extensa e de debates acalorados, produzida principalmente pelos historiadores portugueses.
A produção acerca da Restauração é extremamente ampla e prolixa. Segundo Torgal, em artigo publicado poucos anos após a Revolução dos Cravos, a Restauração foi a grande vítima em Portugal, pois se prestava muito mais a justificar as ideologias que vicejavam em terras lusas do que a apresentar ao leitor um trabalho assentado em bases plenamente verificáveis [1]. Se isso prejudicou a objetividade, certamente não afetou a quantidade de textos produzidos, pois tanto durante o movimento, como séculos após, muito se publicou a respeito dos acontecimentos que colocaram a dinastia Brigantina à frente do governo lusitano.
Essa situação começou a mudar quando nos anos 1990, a historiografia sobre a Restauração se alargou consideravelmente, graças à contribuição de uma geração de historiadores tributários, em boa parte, dos trabalhos de António Manuel Hespanha [2], Fernando Bouzas Alvares [3], Rafael Valladares [4], entre outros. Estes trouxeram à baila uma série de questões, até então, pouco abordada por esta historiografia. Temas relativos à governança, à diplomacia, à cultura, entre outros, passaram a estar no foco das lentes desses pesquisadores.
O estado atual das investigações sobre a Restauração permite identificar, primeiro o desaparecimento das grandes sínteses sobre o movimento, e em segundo, a tendência de abordagens de questões relativas aos impressos, à religião, à guerra em seus diversos palcos e à diplomacia. E é nesse sentido que podemos inscrever este trabalho de Emília Salvado Borges, que revela nas suas primeiras páginas a forte influência dos estudos de Antônio Manuel Hespanha, principalmente no que tange à obra “As vésperas do Leviatan”.[5]
Esses novos objetos permitiram uma variação temática maior que vem sendo explorada em suas mais variadas vertentes. Essa mudança de foco revelou novas questões e este livro é fruto disso. Com uma descrição geográfica muito precisa, que tenta trazer o leitor para a região do Baixo Alentejo, Emília Salvado apresenta a fronteira hispano-portuguesa com todas as suas cores. Nessa obra, o leitor, mesmo que tenha tido pouco ou nenhum contato com o tema Restauração, consegue perceber que a região foi marcada por tensões permanentes. Tendo sido por este caminho que, em 1580, Felipe II mandou o Duque de Alba iniciar a ocupação de Portugal.
Profundas inimizades, ódios, rancores, saques, cercos, entre outros, são retratados em profusão, sempre muito bem documentados e ancorados nas fontes. Aliás, vale destacar que a pesquisa realizada pela autora, nos diversos arquivos distritais da região, é um dos grandes diferenciais do trabalho. Pois, além dos tradicionais arquivos portugueses, sai dos grandes centros decisórios de Portugal buscando nas periferias novas fontes de estudo, inserindo novos interlocutores nesse cenário, até então desconhecidos dos estudos tradicionais.
Sempre bem distante dos centros políticos, tanto de um lado como de outro da fronteira, mas sempre muito próximo dos efeitos que cabem em uma guerra, foi ali que as decisões de Lisboa e Madri tiveram o seu efeito prático. Consequências que conduziram ao despovoamento e à ruína do homem comum que sofreu com a guerra tanto na hora em que era convocado para defender a Coroa, quanto nos momentos em que ocorreriam ataques das hostes inimigas, são os assuntos abordados ao longo do livro.
Parte muito significativa do trabalho de Emília Borges tem sua base comprobatória, além das fontes impressas, em registros manuscritos. Esse cabedal muito rico e multifacetado de textos reflete as realidades vivenciadas naquela região, demonstrando a incidência dos “pequenos” fatos no cotidiano das pequenas povoações. Precedido de um detalhado índice e uma breve introdução, a autora divide seu extenso trabalho em três partes, onde cada parte possui seções e subseções muito bem definidas ao longo de 550 páginas. Ao fim, a obra ainda conta com três anexos em que o leitor, ao longo do texto, é constantemente convidado à consulta.
A primeira parte é distribuída em quatro seções e estas em muitas subseções. Sob o título de Cenário e actores, a autora aborda temas como A terra, que curiosamente não possui nenhuma subseção, Os homens, que em sua primeira subseção estuda as diversas tipologias dos integrantes do Exército Restauracionista. Continuando os estudos sobre os homens de guerra e os alentejanos a próxima subseção gira em torno de como eram pesadas as pressões sofridas pelas povoações locais quando estas tinham que ceder seus paisanos às levas e alistamentos no Baixo Alentejo.
A invocação de privilégios é frequente, tanto nos clamores contra as levas como na resistência dos homens ao recrutamento. O quadro geográfico do Baixo Alentejo, com suas extensas planícies forçam a ação da guerra, sendo um lugar propício ao ataque e à defesa. Os atores são obrigados a protagonizar combates bélicos mesmo contra a sua vontade. Esta realidade conduz à terceira seção dos estudos do Exército alentejano, o qual a autora qualifica como sendo um Exército de papel, diferenciando entre os que andam ausentes daqueles que protagonizaram a deserção e os que andam vadios e calaceiros na Corte. Por fim, centra a sua atenção no estudo das opções estratégicas do Exército de D. João IV, e sua forma peculiar de guerra ofensiva que privilegia as entradas e a pilhagem sobre o território inimigo.
A quarta seção enumera diversos incidentes em que se exemplificam estas entradas em território inimigo. Centrando os estudos nos protagonistas, no caso, as tropas de ambos os lados, seu enfoque se coloca dentro de quatro marcos temporais (1641-1646; 1647-1656; 1657-1666 e 1661-1668). Assim, aparecem situações de elevada violência como é o caso do O arrasamento de Barrancos (1641); O assalto Português a Valencia de Mombuey (1641) e etc.
Contributo dos Povos, a segunda parte de seu livro, se subdivide em três seções e variadas subseções. Em Despesas com a defesa, a autora se dedica a estudar aspectos diversos, como por exemplo, o peso dos impostos nas comarcas alentejanas, a complexa problemática ligada aos alojamentos dos soldados nas povoações e as despesas com as obras de fortificação nas comarcas de Campo de Ourique e Beja. Seguindo, em Carros, carretas e cavalgaduras para a guerra, Salvado aprofunda a questão da exigência de se ter eficientes meios de locomoção como forma de defesa e ataque. Finaliza essa parte com a sessão que aborda o abastecimento do exército.
No que tange ao terceiro trecho da obra, o destaque é direcionado para a Conflitualidade, decadência e morte. Tratando da pressão militar: prepotência e conflitualidade, diferencia o confronto entre o poder militar e o poder civil no espaço dos conselhos, assim como traça as difíceis relações entre os povos e os militares. A prepotência dos poderosos, não é deixada de lado, e nesse sentido, apresenta diversas e interessantes provas de uma situação de guerra que se registra e se padece em ambos os lados da Fronteira. Em O fim da prosperidade, destaca os assuntos demográficos, concluindo com um interessante aprofundamento das atitudes e comportamentos das pessoas comuns, paisanos e soldados perante a guerra.
Reafirmamos a ideia de que esta é uma obra que aborda de forma muito completa a problemática da Guerra da Restauração sob uma ótica muito peculiar. Como destaca Salvado Borges, grande parte dos trabalhos e publicações anteriores sobre este período de guerra peninsular ou está centrado exclusivamente na ótica militar, contendo uma análise de forte conteúdo estratégico ou se limita a destacar suas implicações políticas com particulares visões sobre as decisões tomadas ao nível central do Estado.
A autora, ao atrelar a diversidade de orientações, relacionando de forma causal as informações políticas, sociais e econômicas com outras de alcance mais local, consegue prender a atenção do leitor desvendando novas e instigantes situações desse cativante tema. No entanto, ao utilizar um marco espacial bem definido e delimitado com os métodos e teorias comuns da História, realiza além de um texto direcionado a todo e qualquer tipo de leitor, um excelente trabalho historiográfico.
Notas
1. TORGAL, Luís Manuel Soares dos Reis. A Restauração. Revista de História das Ideias, Coimbra, n. 1, p. 23-40, 1977. p. 23.
2. HESPANHA, António Manuel de. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político Portugal século XVII. Coimbra: Almedina, 1994.
3. ALVAREZ, Fernando Bouza. Papeles y opinión: políticas de publicación en el Siglo de Oro. Madrid: Editorial CSIC, 2008.
4. VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal, Guerra e Restauração (1640-1680). Lisboa: A esfera dos livros, 2006.
5. A proximidade com a obra de Hespanha está na abordagem geográfica, descrevendo a paisagem com detalhes muito precisos que tentam transportar o leitor para o ambiente estudado.
Luiz Felipe Vieira Ferrão – Mestre em História Política pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ e possui especialização em Relações Internacionais pela Universidade Cândido Mendes. Atualmente é Doutorando em História Social do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, onde é orientado pelo Prof.º Dr. Carlos Ziller Camenietzki. O foco de seu trabalho tem como pano de fundo a Restauração Portuguesa. E-mail: felipevf3@gmail.com
BORGES, Emília Salvado. A Guerra da Restauração no Baixo Alentejo – (1640-1668). Lisboa: Edições Colibri, 2015. Resenha de: FERRÃO, Luiz Felipe Vieira. A guerra vista de longe: o Baixo Alentejo e a Restauração. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 238-241, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]
Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura | Robert Darnton
Publicado pela Norton, de Nova York, em 2014, Censors at Work: How States Shaped Literature, o mais recente livro de Robert Darnton chegou ao Brasil em 2016 pela Companhia das Letras com tradução de Rubens Figueiredo, como Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura.
Em setembro de 2012, Darnton esteve no programa Roda Viva [1] e dentre vários temas abordados analisou a importância que o historiador deveria dar à pesquisa presencial nos arquivos. Para ele, desta maneira é possível encontrar o que se procura e dar espaço à serendipidade, ambos os movimentos de relevância para o desempenho do ofício.
Desde O grande massacre de gatos, seu primeiro livro no Brasil, saído do prelo da editora Graal em 1986, o historiador apresenta com maestria uma dinâmica que une pesquisa, análise, uso de fontes arquivísticas e escrita da História. Constitui, sem dúvida, um dos mais importantes historiadores do livro e da leitura de nossa época, que busca, a partir de uma metodologia rigorosa tratar de objetos aparentemente não tão evidentes, tomando como ponto de partida perguntas cuja forma de responder evidencia a necessidade do recurso à micro-história com reconstruções que poderiam passar ao largo de pesquisador menos experiente. Com Darnton, os personagens, suas vozes e ações emergem de documentos silentes.
Apesar de vultoso, este seu método segue semelhante como em outros livros de igual sucesso e publicados pela mesma editora que agora traz ao público brasileiro o resultado da sua nova investigação.
A História do Livro e da Leitura na França é uma constante em suas publicações assim como a força e o poder do impresso, seja de livros ou de folhetos, como analisou em O diabo na água benta (2012) ou na rede comunicação provinda de canções na frança oitocentista como nos mostrou em Poesia e Política (2014).
Controle, censor e censura freqüentemente estiveram na linha de conduta de governos ao longo da história. No século XX, caso de nosso país, especificamente a literatura foi alvo em dois momentos, durante o Estado Novo e na Ditadura Militar, antes, no século XIX, as mordaças estiveram nas mãos de Portugal. Para ambos os séculos, historiadores brasileiros ainda se debruçam e analisam os danos causados pelos censores não só na literatura, mas na música, cinema e teatro, no caso do último século.
No que tange às contradições e as diferentes “censuras”, cabe citar um exemplo nacional. De volta ao nosso período colonial, em 2007, no artigo “O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: outra visão da censura” a historiadora Márcia Abreu apresentou análise inovadora, dentro de temporalidade que abrange dois séculos examinando a ação da censura portuguesa nos romances. Com base em documentação impressa e manuscrita, a pesquisadora analisa as contradições e formas de análise do aparato censor para uma mesma obra – por exemplo. Estabelece a clara distinção entre circulação e produção de livros, discutindo os níveis de controle e, sobretudo, a forma de agir dos censores e sua trama no mundo tipográfico.
De igual modo, o autor norte-americano consegue traçar o perfil de alguns censores e das redes que se estabeleciam com as concessões e negociações de privilégios a tipógrafos e autores. Percebeu que, apesar das sucessivas mudanças na organização das instituições e na correlação de forças interna, o controle sobre os livros mantinha inalteradas muitas de suas práticas. Revelou também uma cultura política baseada em concessões, bajulações, trocas de interesses e uma censura que surpreendentemente considerava conveniência política, religiosa e moral, mas também sua qualidade estética. Por fim, um dos grandes méritos do texto foi seccionar uma imagem de uma censura puramente canhesca, maniqueísta e monolítica que havia sido cristalizada por estudos históricos do século XX.
Por essas razões, como método de análise Darnton propõe a etnografia e deixa apenas para as conclusões uma explicação que poderia ter sido apresentada ao leitor no início o livro. Para ele “uma visão etnográfica da censura a trata de maneira holística, como sistema de controle que permeia as instituições, colore as relações humanas e alcança as engrenagens ocultas da alma”. Como sempre traz uma pesquisa documental profunda e rigorosa, o que faz o livro ultrapassar o conteúdo que pretende e ser também um excelente exemplo de metodologia. Reforça que o “trabalho de campo nos arquivos leva o historiador a deparar com exemplos estarrecedores de opressão”.
O autor considera a literatura como um sistema cultural incorporado à ordem social e assim a propõe analisar, ponderando como a censura pode mudar a face da literatura, algumas vezes de forma muito explícita e de outras mais escamoteadas. Com grande brilhantismo, mostra a uma articulação entre temporalidades e contextos díspares, tendo como fio condutor o ato arbitrário do controle estatal das idéias através da censura.
A obra é dividida em três partes que sustentam a pergunta inicial: o que é censura? Para responder, indaga os próprios censores. Dois através dos arquivos – por exercício exegético fabuloso – e o último pessoalmente. Negociações, comprometimento, cumplicidade e negociação, ações que aparecem como práticas transgeracionais entre os censores e censurados. Assim, o livro perpassa três países em três épocas distintas. Em comum: três sistemas autoritários, ilustrando como a cultura política se consolida em cada caso.
Darnton abre o livro a partir da discussão sobre o ciberespaço que no início configurava-se um terreno fértil e livre, mas que com o passar do tempo virou um terreno de disputas, divisão, controle e vigilância. Lança uma questão que deveria estar constantemente em pauta: “será que a tecnologia moderna produziu uma nova forma de poder, que levou a um desequilíbrio entre o papel do Estado e os direitos dos cidadãos?”. A análise retroage ao passado e busca tratar do interior das operações de censura e evidencia que seja hoje ou no passado o objetivo era controlar a comunicação. Buscará na história comparativa a forma para tentar reconstruir a censura tal como operava em três sistemas autoritários: na monarquia dos Bourbon na França do século XVIII, no governo britânico na Índia – o Raj, do século XIX – e na ditadura comunista na Alemanha Oriental, no século XX. O autor considera que “cada um deles vale um estudo particular, mas quando tomados em conjunto e comparados, permitem repensar a história da censura em geral”.
A afirmação de Darnton se confirma ao longo dos capítulos, pois nos trará sistemas e formas distintas de exercer o controle. O autor se posiciona contrário à forma simplória que a censura foi estudada nos últimos cem anos. Parte do princípio de que não podemos falar em “a censura”, mas em censuras, pois elas diferem de acordo com lugares, tempos e personagens, por isso propõem uma abordagem etnográfica do objeto. Ele acredita que é preciso aprofundar a análise da dicotomia “repressão e liberdade” a fim de relativizá-la e perceber seus matizes. Ontem e hoje a censura poder ser muito mais sutil do que se supõe.
O primeiro capítulo, “A França dos Bourbon: privilégio e repressão”, é dividido em oito subseções, mas seu ponto nevrálgico se concentra em “A polícia do livro” e “Um sistema de distribuição: capilares e artérias”. Nele, Darnton articula os mecanismos para concessão de privilégios e mostra a fluidez e as promiscuidades da relação entre censores – em sua maioria professores da Sorbonne – os tipógrafos e autores. A burocracia, que aparece na França em 1750 com seus complexos sistemas de funcionários, simplificou e complicou o trabalho do censor. Eles atuaram praticamente como colaboradores de autores e as dedicatórias agiam como poderoso instrumento, mas era uma faca de dois gumes, pois “uma personalidade pública que aceitasse a dedicatória de um livro o endossava implicitamente e se identificava com ele”. Curioso fato foi que “apesar das disputas ocasionais”, escreve Darnton, “ a censura […] levou os autores e os censures a juntarem-se e não a separá-los”.
Tanto a trama de atuação dos censores quanto os seus critérios descritos por Darnton fazem lembrar o trabalho de Márcia Abreu – citado a cima – para os portugueses no mesmo século XVIII. O historiador americano apesar de mencionar várias vezes que o privilégio estava presente em outras partes da Europa, não nos indica onde ou como começou. Fermín de los Reyes Goméz no artigo “Con privilegio: la exclusiva de edición del libro antigo español”, publicado na Revista General de Información y Documentación (2011), informa que os primeiros privilégios foram conferidos na Itália, em 1469, a pedido de Antonio Caccia em Milão e de Johannes de Spira, primeiro impressor de Veneza. Deixa evidente que era um mecanismo que favorecia muitos tipógrafos e livreiros que a partir de então buscaram a proteção para seus negócios. De certo que não era nada ligado à proteção da propriedade intelectual, mas ao direito e aos regulamentos para exploração do comércio de livros. E assim como Darnton, verificou que o privilégio também englobava as mudanças de formatos do livro, uso de tipos diferentes e etc.
O segundo capítulo avança para o século XIX sob o título “Índia Britânica: liberalismo e imperialismo” e contêm igualmente oito partes, sendo a subseção “Vigilância” o ponto central do período tratado pelo autor. Ele relata o caso de James Long, um missionário anglo-irlandês em Bengala, que tentou “examinar tudo impresso em bengali entre abril de 1857 e abril de 1858”, a fim de ajudar o serviço civil indiano recém-criado a acompanhar o que estava sendo escrito, num esforço para “entender os indianos, não apenas para derrotá-los”, por isso “tudo foi pesquisado, mapeado, classificado e catalogado, incluindo seres humanos […]”. O governo britânico acreditava que para “manter seu império, eles precisavam de informação, que provinha, antes de tudo, do material impresso”. Surpreendidos pela Revolta dos Cipaios, em 1857, o Estado queria se antecipar aos revoltosos, ou seja, conhecer sua filosofia, seus pensamentos – uma justificava usada atualmente para controlar a vida de milhares de cidadãos. Para isso, Long colabora fazendo um levantamento de tudo o que foi impresso em bengalês entre abril de 1857 e abril de 1858, inspecionando as gráficas de Calcutá e comprando todos os livros publicados em 1857.
Darnton apresenta o processo de calúnia que Long sofreu após publicar um livro que tratava de um melodrama sobre a opressão dos trabalhadores nativos por plantadores britânicos. O historiador conclui com a pergunta: “o que se passava nos tribunais do Raj?”. Censura, vigilância e controle. Os britânicos mantinham o poder e exerceram a repressão com mão pesada.
Ao encetar o olhar para este exemplo, Darnton nos induz a pensar e questionar as práticas “justificadas” de controle e vigilância que vivemos hodiernamente no ciberespaço. Conhecer os hábitos, os costumes, a língua são algumas estratégias usadas há séculos como forma de dominação e exercício de poder.
O capítulo três, que adentra o século XX sob o título “Alemanha oriental comunista: planejamento e perseguição”, composto por também oito seções – equidade que mostra mais uma faceta do rigor metodológico do autor. Nesta parte, Darnton lança mão de fontes arquivísticas e de entrevistas com dois censores feitas nos anos de 1990, período em que esteve na Europa pesquisando.
Para compreender a forma de trabalho e o seu sistema, desta vez o historiador utiliza o relato de quem estava por dentro da máquina de censura. Como resultado, é proposto um diagrama – que pode ser adaptado para pesquisas afins – que mostra como funcionou o mecanismo de controle da literatura na RDA.
Ao longo da entrevista são detalhados os mecanismos de duas formas bem antigas de censura: os expurgos, quando parte do conteúdo era apagado ou rasurado e a prévia, quando a manipulação se dava no manuscrito. Tudo isto, baseado em um documento por escrito, o “Plano”, que funcionava como forma de guia sobre assuntos que poderiam ser publicados, mas também de controle sobre determinadas palavras. O entrelaçamento com práticas de censura de outras épocas e lugares é claramente ilustrado com o envolvimento de autores, editores, burocratas, e também leitores. Queria-se um a Alemanha Oriental livre da influência nefasta – assim reputada – do Ocidente, e para isto a literatura foi francamente manipulada.
Não resta dúvida tratar-se de uma obra que se sugere entusiasticamente pelo assunto – que nos interessa sempre – e por mais uma aula de metodologia utilizada por Darnton. O livro inova com sua desafiante análise comparativa envolvendo três séculos – mesmo com as dificuldades e riscos inerentes.
Nota
1. TV Cultura.
Fabiano Cataldo de Azevedo – Bibliotecário, professor assistente da Escola de Biblioteconomia da UNIRIO. Dourando em História Política do Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. E-mail: barleus@gmail.com
DARNTON, Robert. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: AZEVEDO, Fabiano Cataldo de. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, n.16, p. 242-246, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR]
Portugal: a revolução e a descolonização | Maurício Paiva
Resenhista
Juvenal de Carvalho Conceição – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: juvenal@ufrb.edu.br Leia Mais
Intelectuais nos(dos) Institutos Históricos / Revista do IHGSE / 2017
OLIVEIRA, João Paulo Gama. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.47, v.1, 2017. Sem acesso ao original [DR]
Os media na Guiné-Bissau | António Soares Lopes (Tony Tcheka)
A History of Borno: Trans-Saharan African Empire to Failing Nigerin State | Vincent Hiribarren
Resenhista
Olatunji Ojo – Brock University. E-mail: oojo@brocku.ca Leia Mais
Soccer Empire: The World Cup and the Future of France | Laurent Dubois
Laurent Dubois, um belga que com três semanas de vida foi viver nos Estados Unidos, escreveu um livro prazeroso, resultante de sua paixão pelo futebol e o conhecimento acumulado nos seus quinze anos de estudos sobre o esporte na sua versão francesa. É um texto envolvente, não linear, com onze capítulos, além de prefácio, introdução e epílogo, todos importantes, o que me conduziu a abordar o seu conteúdo por uma seleção dos principais temas. Leia Mais
No God but Gain: The Untold Story of Cuban Slavery/the Monroe Doctrine & the Making of the United States | Stephen Chambers
O livro de Stephen Chambers traz uma contribuição impressionante e relevante para a história dos Estados Unidos (EUA) e sua relação com a América Latina, especificamente com Cuba. A historiografia das relações econômicas e diplomáticas dos EUA com a América Latina durante o século XX é vasta e diversa; mas não foi senão recentemente que os historiadores começaram a prestar mais atenção ao estudo das atividades comerciais e do comércio exterior dos EUA dentro dos territórios hispano-americanos, e como tais práticas influenciaram aquelas relações no período 1790-1830. Esses historiadores trouxeram novas perspectivas sobre como o comércio de reexportação com a América Espanhola proporcionou a negociantes, banqueiros e investidores grandes lucros e importantes remessas de capital que foram usados nos primórdios da industrialização dos EUA.1 Leia Mais
Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem – CABRAL et al (S-RH)
CABRAL, Iva; SOUTO, Márcia; ELÍSIO, Filinto. (Orgs.). Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem. Lisboa: Rosa de Porcelana Editora, 2016, 398 p. [Acervo fotográfico e fac-símile da correspondência]. Resenha de: FLORES, Elio Chaves. Documentos afetivos: cartas, amorosidades e revoluções no mundo Atlântico (1946-1960). SÆCULUM – REVISTA DE HISTÓRIA [36]; João Pessoa, jan./jun. 2017.
A expressão “mundo atlântico” está inscrita na modernidade de Áfricas, Europas e Américas. A modernidade empilhou documentos da economia política do capitalismo (Europa), da escravidão e da colonização (Américas), do tráfico diaspórico e do colonialismo (África). Tudo isso tornou possível que um jovem nascido na Guiné na década e 1920, que fez estudos básicos em Cabo Verde, nas décadas de 1930-1940, e que se encontrava em Lisboa depois da Segunda Guerra Mundial, em meio ao primeiro arrebatamento amoroso, registrasse indignação sobre os problemas raciais no Brasil da “democracia racial”. Agora publicados, esses documentos afetivos – Aqui me tens − totalizam cinquenta e três cartas à colega (1946-1948), namorada (1949- 1951) e esposa (1952-1960) Maria Helena, escritas nessas temporalidades amorosas.
Na carta de 28 de agosto de 1950, Amílcar Cabral escreve a Maria Helena a sua percepção sobre o lado de cá do mundo atlântico, esse é o tema da missiva, o racismo no Brasil:
Recebi hoje tua carta, bem como o recorte do Primeiro de Janeiro, referente ao problema ‘racial’ no Brasil. O República já tinha publicado a notícia e também o acontecimento relativo à bailarina negra, Katherine Dunham, e ao campeão de box, Joe Louis. É mais uma prova de que a ‘lepra’ dos preconceitos raciais grassa por todos os lados.
[…] Uma coisa, porém, é preciso atenção: não serão, nem poderiam sê-lo, as leis como as promulgadas no Brasil que resolverão o problema. Em muitos dos Estados Unidos da América existem leis análogas – e o negro é linchado ou escorraçado. A Constituição portuguesa é um dos mais belos documentos da igualdade dos homens, sem distinções ante o direito às benesses da civilização – e o negro em Portugal, é afastado do exército, da marinha, da Magistratura, etc. Leis do gênero da referida – quando não servem apenas para ‘deitar poeira nos olhos’, não conseguem mais do que amedrontar os racistas menos audaciosos ou menos poderosos, economicamente. Outras serão as que hão de extirpar de vez e para sempre o preconceito – e essas terão de corresponder a uma alteração profunda do complexo econômico-social do Mundo, base, afinal, dos preconceitos.
Por isso que essas leis − levarão o seu tempo, mas hão de ser realidade – não interessarão apenas aos Negros: interessam a todos os Homens. (p. 312-313) A carta de Amílcar é, a rigor, uma “carta pública”, pois de íntima tem apenas o vocativo da amada, depois da data, “Lena”. Amílcar cita várias vezes o antropólogo norte-americano Alfred Métraux ao tecer críticas aos eventos racistas no Brasil contra Katherine Dunham e Joe Louis que foram proibidos de se hospedar num hotel supostamente apenas para brancos na cidade de São Paulo2. Para Métraux, o racismo era um “mito novo”, justamente dos séculos da modernidade atlântica e que, para ele, talvez não sobrevivesse “à grande revolução da nossa época” – as sociedades contemporâneas que acabavam de inventar os direitos humanos. Amílcar também cita e destaca estudos da UNESCO/ ONU assinados por cientistas de vários países do mundo sobre as “diferenças” e a “história cultural” dos grupos humanos:
“Os fatores que tiveram papel preponderante na evolução intelectual do homem são a sua faculdade de aprender e a sua plasticidade. Esta dupla aptidão é o apanágio de todos os seres humanos”. Amílcar parece estar ciente de que o racismo é mito novo, da ordem capitalista e, mesmo do lado de cá do Atlântico, para superá-lo, haveria de se gestar “uma alteração profunda do complexo econômico-social do Mundo”. Nem Amílcar nem Maria Helena que se enfiaram de corpo e alma nas revoluções africanas e contra o regime racista português de Salazar, suportariam o “dogma racial” nos exílios da Guiné-Conacry e do Marrocos.
Desde que Amílcar Cabral e Maria Helena se conheceram a “linha de cor”, inexistente para a amizade, parece que acaba por condicionar as relações familiares e as sociabilidades acadêmicas. Se na primeira carta (07 out. 1946) Amílcar se despedia como “colega ente amigo”, o namoro assumido no ano de 1948 informa uma poética de amorosidades que precisa enfrentar o dogma racial. Na carta de 25 de abril de 1948, Amílcar lamenta a “falsidade de preconceitos nascidos de condições criadas pelo próprio homem, da teimosia (cega, aliás) num erro que hoje, dentro de limitadíssimas oportunidades, é denunciado pelas mais palpitantes manifestações das realidades, realidades que a Vida patenteia e a Ciência demonstra” (25 abr. 1948, p.91). Pelos argumentos da paixão e pelo que se dizia de sua “africanidade”, Amílcar se sente interpelado a se posicionar etnicamente e a se universalizar na condição humana.
Não sabem (eu gostaria de poder dizer-lhes) que sei que sou negro, isto é, que não sou caucásico ou mongoloide, mas que entre estas três raças existem diferenças apenas na cor da pele e em alguns traços fisionômicos; que tu sabes que sou negro e, mais do isso, que não é na cor da pele que reside o valor de um homem ou as características que poderão denunciar sua superioridade ou inferioridade perante os outros indivíduos.
Não sabem, Lena, quando dizem “Ela não aguenta”, que na realidade não tens nada que aguentar, a não ser, do meu lado, algum passageiro dissabor que naturalmente te adviria de qualquer homem, e, do lado dos descontentes, uma incompreensão facilmente destrutível, filha, aliás, da ignorância e da cegueira causadas por infundamentados preconceitos; que o teu amor por mim não é um amor de mártir ou de sacrificada, mas, sim, o amor de uma Mulher por um Homem, amor que dignifica e eleva. Eu gostaria de dizer-lhes, Lena querida, que a “linha de cor” é um mito que, felizmente, a Humanidade, sempre progressiva, vai afastando do seu seio, semelhantemente ao que sucedeu a muitos outros mitos. (25 abr. 1948, p. 91) Isso não é tudo. Amílcar precisa responder a uma questão ainda mais complexa, pois se refere à reprodução social da vida. É que o dogma racial se antecipa ao próprio evento social: “Que será dela quando tiver um filho” – negro, moreno ou mulato, nas expressões lisboetas. Lembremo-nos de Fanon: um negro castrado não é problema; a negrura estéril é utopia da brancura. A resposta que Amílcar deseja que Maria Helena distribua a esse tipo abjeto de constrangimento racial é mundana: “Não sabem, Lena, que à pergunta ‘Que será dela quando tiver um filho’, tu poderás responder, muito singelamente que serás uma Mãe. Mas uma mãe consciente da sua missão, integrada nos problemas da Vida – e que saberá preparar, no Mundo e para o Mundo, os seus filhos” (25 abr. 1948, p. 91).
Noutra carta, do dia 20 de agosto do mesmo ano, Amílcar deixa transparecer na narrativa certo aborrecimento sobre a mesma questão que aparece reiterada na correspondência de Maria Helena, “às pessoas que te dizem coisas mirabolantes por causa da cor da minha pele”. Ele reitera que “o mito das raças é apenas um mito” e, taxativo, escreve: “Desde que sejamos absolutamente conscientes da nossa posição dentro do sério problema da nossa vida” (20 ago. 1948, p. 135). Essa longa carta, carregada de tensão e desejo, também define a confissão do “chamamento africano”, a justificativa para o retorno ao continente de origem: ”Mas tu sabes, como eu, quais as forças que me chamam pra a África, forças a que não resistirei, porque seria trair me, trair a própria vida”. Amílcar repassa para Maria Helena as contingências africanas e o faz na estilística da verve colonial, como se voltasse como herói civilizador, para “lá, onde pouquíssimo ou nada ainda se fez”; ou, “lá, onde a Técnica e a Ciência ainda são sombras”; ou, “lá, onde a vida me chama”. Trata-se de uma decisão que é comunicada à luz dos eventos relacionais envoltos na subjetividade da linha de cor. Assim foi narrado: “Hoje, já que as circunstâncias mo exigem, quero dizer-te que, se totalmente impossível, tu não me acompanharás. Mas eu tenho de ir.
Acabado o curso, eu só ficarei na metrópole, se de todo não puder seguir para África”. Depois, passa a explicar o sentido dessa decisão: “Não conto viver toda a minha vida lá, nem espero viver no sertão, longe dos grandes centros [que designou antes como cidades progressivas e belas do litoral]. Conto apenas viver parte da minha vida em África e dar, com toda a boa vontade de que for capaz, em todo o amor imenso que em anima, o meu esforço no sentido de fazer alguma coisa pelas gentes africanas, pelos homens, afinal”. O final do parágrafo é denotativo de um manifesto: “Quero dizer: subordino-me conscientemente a esta contingência da vida:
tenho de ir para África”. A leitura dos últimos dois parágrafos da carta permitem adjetivar esse manifesto de amoroso: “E viverão juntos [os dois enamorados] na terra onde a vida lhes oferece maiores horizontes no sentido de serem úteis à Humanidade.
E creio que tu concordas comigo que esse local, para nós e porque eu sou um desses indivíduos, deve ser a África”. Ao finalizar, duas verdades emolduram a missiva:
“uma, é que tenho de ir para a África; outra, Lena, a outra é esta: Eu amo-te” (20 ago. 1948, p. 137-138). Nas cartas seguintes, Amílcar reconhece o tormento, a tensão e a necessidade da “consciência coletiva vencer a individual”. Na carta de 26 de agosto ocorre a citação da resposta de Maria Helena: “resolvi deixar tudo para te ajudar e seguir-te” (26 ago. 1948, p. 175). É vida que segue3.
Na carta de 23 de agosto de 1950, uma semana antes da referida carta em relação aos eventos raciais no Brasil, Amílcar narra ironicamente o caráter burguês do bairro lisboeta onde estava residindo. O tropos da ironia para vituperar a classe burguesa será uma das expressividades de Amílcar. Ele informa que fixou residência à Av. Casal Ribeiro, num meio termo entre os bairros de Alcântara e Bairro Azul. Dizia que mais abaixo se encontravam Casal Ventoso e a Fonte Santa “e todas as demais imundícies que a injustiça social criou e alimenta”. A pobreza ao longe e o modo de vida burguês na sua proximidade:
interessante, mas o ar que se respira é demasiadamente burguês para nos deixar saborear a beleza das suas árvores centrais. Sim, demasiadamente burguês. Ali, defronte, as janelas eternamente fechadas: a ‘madame’ está na praia, como não podia deixar de ser. À tarde, meninas anêmicas e olheirentas penduram-se à janela, na linha dos cabelos propositadamente desprendidos atiram a isca de um olhar à Dorothy, condimentado pelo batom berrante. A mamã, rechonchuda e metafísica, de vez em quando vem à janela, observa a ‘pesca’ e palita os dentes, ruminando os detritos do ‘bombom’ que o papá-dinheirudo ofereceu, certamente uma compensação da última façanha extralar ou intracabret. (23 ago. 1950, p. 307)
Esse olhar crítico à cultura burguesa – às amorosidades burguesas – ironizada em 1950, ganha ares de indignação na única carta do início de 1951, na qual Amílcar se insurge contra as comemorações cristãs de passagens do ano: “O que espanta nesta decantada Civilização Cristã – é o cinismo comum às manifestações mais vulgares. Um cinismo tremendamente hipócrita, uma hipocrisia tremendamente cínica. Feliz Ano Novo” (03 jan. 1951, p. 329-330).
Amílcar Lopes Cabral (1924-1973) e Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues (1927-2005) se casaram no dia 21 de dezembro de 1951, afirmando um namoro interracial começado no Instituto Superior de Agronomia, quando eram colegas de faculdade, desde o ano de 1946, numa Lisboa salazarista e ainda “metrópole” de colônias portuguesas em África. Amílcar Cabral era filho de Juvenal Cabral e de Iva Pinhel Évora, ambos nascidos em Cabo Verde e que se encontraram na Guiné no início da década de 1920. A Guiné propiciou trabalho a Juvenal que se tornou funcionário administrativo, professor e comerciante. Sabe-se que Iva Évora chegou à Guiné aos 29 anos com um filho e, em seguida à relação amorosa com Juvenal, deu à luz ao segundo filho, Amílcar, no dia 12 de setembro de 1924, em Bafatá, na região central da Guiné. Maria Helena era filha de Joaquim Rodrigues e Carlota Ataíde Vilhena, nascidos e radicados no norte de Portugal. Carlota Ataíde deu à luz a Maria Helena em Chaves – Casas Novas, no ano de 1927. O pai de Maria Helena era capitão médico do exército colonial e há notícia de que foi gravemente mutilado numa das campanhas da África.
Para nós, brasileiros, que a cada três frases, pelo menos numa louvamo-nos como agentes das mestiçagens modernas, mas pouco toleramos amores entre homens negros e mulheres brancas, o conteúdo epistolar desses “documentos afetivos” – as cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena – escritos na temporalidade 1946-1960 podem inspirar algumas reflexões sobre os casamentos interraciais e seus desdobramentos político-afetivos no mundo atlântico contemporâneo, isto é, a segunda metade do século XX. Talvez seja preciso concordar com Frantz Fanon que, em Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), defendeu a ideia, num capítulo seminal, de que “é preciso falar mais longamente das relações possíveis entre o negro e a branca”.
Casas características nitidamente princípio do século, grandes prédios em linha impecável, esta Avenida é na realidade O primeiro semestre de 1952 foi de preparativos para a viagem de retorno à África. No mês de setembro acontece a viagem. Em carta escrita a bordo da embarcação, “Atlântico, a 12 horas de Cabo Verde, em 17/9/52”, Amílcar se prepara para rever Cabo Verde e, depois, chegar à Guiné, destino que aguardará, também, Maria Helena. Essa carta é expressiva do que estamos chamando “mundo atlântico”.
Embebido pela viagem, Amílcar observa para Maria Helena: “Hás de notar que o movimento constante do mar é o reflexo de um exemplo de movimento constante de tudo quanto existe”. Nesse estado de espírito, de rever Cabo Verde e, em seguida, rever Iva, a mãe, na Guiné, sabe-se da gravidez da Maria Helena: “Porque será que eu já não sei pensar a Iva sem pensar-te?”. Os planos nessa África atlântica não cessam e se a vida e o trabalho não vingarem na Guiné deveriam “abalar para Angola”. O Atlântico narrado por Amílcar não é o da Grande Travessia – a trágica Middle Passage – dos negreiros da modernidade atlântica, esse Atlântico “amilcariano” é uma espécie de passagem da promissão, uma vida adulta em África que se pretendia plena.
O mar, sempre em movimento, é um manto azul, salpicado de branco. Pequenas vagas que se formam e se desfazem no próprio seio do mar. Espumas. Um cardume-bando de peixes voadores que se assustou com o monstro do ferro, e levantou voo. Ali, à esquerda, há uma estrada de prata levando ao horizonte: o reflexo do sol no mar. A conga continua, dançando o navio ao som da sua música íntima e monótona: o motor que geme. Eu, aqui, esperançoso e esperançado, escrevendo para ti, falando contigo. Ouvirá o que não digo.
Sentirás o que sinto. […] Eu incompleto, chegando. (17 set.1952, p. 337-39) Na carta do dia 24 de setembro, na Guiné, Amílcar informa sobre o trabalho, a casa, a mobília, a granja, o emprego e os preparativos para a viagem e a chegada de Maria Helena. Apresenta a Guiné como projeção de africanidade emancipada: “A natureza aqui, apesar de tudo quanto opiniões metafísicas podem apontar, convida ao trabalho e à conquista no sentido da ‘vivificação da vida’. Se alguma certeza eu tenho – oh, se tenho certezas! – é a de que gostarás disto. Da terra e dos povos, das coisas e das gentes” (24 set. 1952, p. 348).
Não é possível saber da chegada de Maria Helena, o nascimento da primeira filha e os seus desdobramentos pela ausência de cartas, apenas uma no ano de 1953 e nenhuma no ano de 1954. Mas no ano de 1955 veremos Amílcar em viagem para São Tomé e depois para Angola. Decepciona-se com Luanda e o racismo intrínseco do fato colonial – “Isto de Luanda que estou a conhecer”, dirá consternado, “é das coisas mais miseráveis que imaginar se pode em matéria de ambiente colonial”.
Amílcar conta o que seus olhos avistam e compara realidades coloniais africanas. Trata-se de uma visada sociológica impressionista:
Há muitos prédios em construção, é certo, mas que valem os prédios, se os homens ‘vivem’ deploravelmente? Além disso, como cidade, coitadinha de Luanda aos olhos de Dakar, por exemplo. E coitadinhos dos indígenas destas paragens, aos olhos da gente da Guiné, sim, da Guiné dita portuguesa. Uma miséria, Lena. Só para pensares, fica sabendo que aqui, os choferes de táxi, os criados de hotel, restaurantes e cafés, etc. a raia miúda da sociedade é constituída por europeus.
Calcularás por certo quais as posições e as situações que restam (mas o que poderá restar?) para os africanos. Miséria de todos os tamanhos. Para brancos e pretos. Racismo do mais sujo, com sorriso nos lábios, só para os pretos. Enjoado, Lena. Mas a esperança e a certeza de que afora de tudo, o mundo marcha. Há de caminhar para a redenção na terra destes seres que por aqui vegetam e que são homens de coração e de cabeça.
[…] Passam crianças pretas sujas, mal vestidas. Parecem negros tristes e sem esperança. Passam brancos ricos, bem postos, de espada, e também brancos miseráveis. Eu penso em ti e na Mariva. (30 ago. 1955, p. 365)
São nas cartas de 1955 que, ao final, Amílcar passa a se referir, também, a Mariva – Iva Maria, a primeira filha. Parece aumentar a recorrência à “linha de cor”. Nesse caso, a linha de cor, sofisticada na metrópole e na academia, salta aos olhos no espaço colonial: “Passam negros tristes e sem esperança. Passam brancos ricos, bem postos, de espada, e também brancos miseráveis. Eu penso em ti e na Mariva”.
Pensar “raça” com Maria Helena e Mariva é universalizar a si mesmo, mas pensar “classe” amedronta o futuro. Vide que, aqui, é a “linha de classe” – ricos e pobres – que divide também os brancos. A experiência Angola/ Luanda fixa uma ambiguidade amilcariana que era apenas verve quando glosa do bairro burguês lisboeta da carta de 23 de agosto de 1950. Agora ele começa a trabalhar nessa dimensão: raça e classe, isto é, o fato colonial. Nas cartas seguintes, em que conhece outras cidades angolanas, Amílcar anuncia uma posição: “Lobito e Benguela são razoáveis. Mas a miséria continua. Miséria contra a qual hei de lutar” (01 set. 1955, p. 369).
Na carta de 10 de outubro de 1955, escrita em Catumbela, próxima de Lobito, Amílcar fala entusiasmado da leitura de Jorge Amado. Recheados na carta, copiados entre aspas, constam vários trechos da obra, mas não se menciona o título. Amílcar apenas diz: “Vou no 2.º volume e do primeiro vou transcrever-te umas passagens, belas de verdade pela poesia que encerram”. Essa pista leva à trilogia, Subterrâneos da Liberdade (São Paulo, Livraria Martins Editora, 1954)4. As passagens são aquelas dos enamorados, João e Mariana, operários que também se casam “por uma vida melhor”. Amílcar se inspira em várias literaturas e não seria exagero se falar de um Atlântico das letras. A prosa engajada de Jorge Amado parece empolgar o missivista para o advento da luta revolucionária e, ele mesmo, vê analogias entre a história de amor, ficcional do lado de cá, mas realista do lado de lá: Amílcar e Maria Helena. O primeiro volume, Os Ásperos Tempos, recebe um tratamento de poética de amorosidade à primeira leitura. Amílcar lê o Brasil da “democracia racial” pela narrativa de Amado:
Operários e camponeses, ‘coronéis’ e banqueiros, luta, flor.
Luta subterrânea, na legalidade e na ilegalidade, buscando em cada gesto, em cada pensamento, a estrela que a penumbra não pode esconder, gerando sob e sobre a lama dum presente de crianças famintas, o porvir de todos os homens. A hipocrisia e o cinismo desenfreados, o interesse, o estômago dominando o coração e o cérebro, a lealdade mais bela, a solidariedade transformada em atos vividos em cada instante, o desinteresse pessoal numa luta impessoal mas coletiva. E sobre esse mundo brasileiro de 37 a 40 [1937- 1940], a luz do luar e a luz do sol, do luar do amor e da esperança num céu grávido de estrelas, do sol nascendo da terra, das entranhas da terra, do coração dos homens e das mulheres que lutam, do olho simples e interrogativo das crianças desamparadas. O amparo nascendo do desamparo, a certeza gerada da incerteza, a luz brotando da escuridão. Só o amor, esse é o livro de Jorge Amado. Um livro dos homens, um livro para nós todos, na imensidão do seu amor e da sua esperança. Da sua certeza. (10 out. 1955, p. 373-374)
Pode ser que desse “céu grávido de estrelas”, nos dois lados do Atlântico, nasça algo parecido com a revolução da justiça e da igualdade. Na carta seguinte, Amílcar se acha “um pouco gongórico”, pois na medida em que se enfia no “sertão” angolano, mais necessidade de mudança ele sente para a África: “Campos de sisal por todo o lado. Nem uma parte da terra para o indígena cultivar. Exploração dos diabos. O que vale e consola e anima é que isso tudo vai mudar, vai acabar – oh se vai! – para a ressurreição da vida nestas paragens” (31 out. 1955, p. 378). Entretanto, dois anos depois, as vicissitudes econômicas do cotidiano, os problemas de saúde de Maria Helena e os seguidos deslocamentos pela Guiné, incitam uma frase lapidar, quase como súplica: “Que haja a compreensão e a paz racional que é a única mesologia adequada às nossas consciências” (21 out. 1957, p. 387).
A última carta é de 1960 e trata da guinada revolucionária. Desse lapso epistolar de dois anos o leitor nada saberá. A vida pública e a impossibilidade de servir ao Estado salazarista e aos empreendimentos coloniais parecem “apressar” uma possibilidade que vinha desde 1955 – “Não renuncio seja ao que for, mas penso que se impõe traçar um caminho seguro”. Escrita de Paris, Amílcar está imerso nas atividades revolucionárias. O plano está traçado: “Tenho na algibeira a passagem para a viagem definitiva. Tenho também a ordem das passagens para ti e para Mariva, que ficarão aqui depositadas em teu nome e à tua disposição”. Várias recomendações são elencadas para Maria Helena tomar providências: a papelada e os livros deveriam ser enviados para Dakar – Senegal; vender a mobília da casa e o carro; levar apenas as roupas e as coisas pessoais necessárias; transferir o dinheiro e economias para Londres; arrumar escola para Mariva; ajudar as mães de cada um, Carlota e Iva; ordens aos companheiros, resolver casos de hipoteca e cooperativa; enfim, “tudo o resto, inclusive o gato Mico”. O término da carta indica a “nova” vida, a vida revolucionada e pela revolução: “Por hoje, paro aqui. Cheio de saudades.
Talvez de ansiedade também. Mas cheio de esperanças no futuro, na vida que vamos construir. E a certeza, a consciência, a alegria de que esta carta é talvez a mais bela carta de amor que já te escrevi” (30 abr. 1960, 391-394). Ainda em 1960: Maria Helena e Mariva ficam oito meses em Paris. Amílcar Cabral adota o nome da clandestinidade, Abel Djassi. O decorrer do ano de 1960 é vida em profusão: Amílcar/Abel escreve ensaio sobre o colonialismo português; organiza quadros e escola de formação revolucionária na Guiné-Conacry; vai à China comunista; tornase a principal liderança do PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde; no mês de dezembro, o comitê do partido lança o informativo do movimento emancipacionista: Libertação. Amílcar Cabral organiza a luta e continua a escrever5.
A cuidadosa edição epistolar de Amílcar Cabral, com a adição de importante acervo fotográfico e a impressão fac-símile de cinquenta e três cartas escolhidas desloca do espaço privado para o campo da história política o cenário e a trajetória de formação e práxis revolucionária de umas das expressões do marxismo negro. As cartas, que podem ser definidas como poéticas de amorosidades compartilhadas, não deixam de narrar experiências de racismo, africanidades e vontades criadoras numa África que se pretendia emancipada do fardo colonial. Assim, um “patrimônio privado”, carregado de afetividades, foi possível ser disponível para um vasto público leitor graças ao projeto de edição coordenado pela historiadora Iva Maria Cabral, primeira filha de Amílcar Cabral e Maria Helena, pesquisadora da “história racial” em Cabo Verde e autora da tese de doutorado A Primeira Elite Colonial Atlântica: dos “homens honrados brancos” de Santiago à “nobreza da terra” – Final do século XV – Início do século XVII (Praia: UCV, 2013). Antes do “Aqui me tens” – o corpus epistolar − uma primeira parte, constitutiva de “considerações, apresentações e prefácios”, converge para a escrita e o casal protagonista. Os editores, Márcia Souto e Filinto Elísio, na apresentação “Triunfar sobre a morte vulgar ou considerações acerca da edição do livro Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do homem”, acertaram na metodologia de edição, ao proporem, em vez de anexos que se tornam irrelevantes, “acompanhar cada transcrição com seu respectivo original, de modo a propiciar ao leitor não só o acompanhamento, no calor da leitura, do texto manuscrito (o papel, a letra e os estados de alma, elementos que possam vir a revelar mais acerca do autor no momento da feitura da carta), mas também para facilitar alguma atenção especial que os leitores possam ter em relação a alguma passagem e facilitar o contato mais próximo com o texto autógrafo” (p. 13).
Pedro Pires, companheiro do autor das missivas nas lutas de libertação e atual presidente da Fundação Amílcar Cabral, assina o prefácio “Convergência no tempo e nos propósitos” (p. 19-24) onde se surpreende pela ausência da correspondência de Maria Helena, “desconhecemos a plenitude das suas cartas e das suas respostas aos apelos e interpelações do Amílcar”. Essa diluição da voz feminina nalgumas citações da escrita masculina não se coaduna com os avanços notáveis das teorias feministas desde que Maria Helena se tornou uma das primeiras engenheiras agrônomas formadas numa faculdade portuguesa. O olhar atento de Pedro Pires vê em “Lena” a confidente e depositária das ideias e reflexões de Amílcar Cabral, mas que, “por vezes, o diálogo ganhava a força de um monólogo em que martelava e repetia as ideias quase que se dirigindo a si próprio”. Pires atenta para cinco momentos reveladores das cartas que permitem acompanhar a trajetória e formação revolucionária do sujeito apaixonado. O primeiro foi o enfrentamento do racismo ao se relacionar com uma mulher branca. O segundo dizia respeito à questão ética das relações humanas e da política. O terceiro implicava a defesa da dignidade humana e as responsabilidades sociais frente às injustiças e desigualdades econômicas. O quarto, talvez o mais pragmático, seria o “chamamento africano” como se fosse um destino traçado em lutar pela emancipação dos povos africanos, notadamente os da Guiné e de Cabo Verde. Por fim, o quinto, narrado na última carta, configura “o fim do ciclo da vida privada” e a consequente “partida para o desconhecido e o incerto” com uma pitada de fé na “vitória sobre o colonialismo”.
A pesquisadora Inocência Mata, no ensaio prefacial, “As cartas de Amílcar a Maria Helena como documento expressivo na construção de uma narrativa coletiva” (p. 27- 33), defende a hipótese que as cartas formam “um duplo espaço biográfico” do emissor e da destinatária, ainda que estejam ausentes as “respostas físicas” de Maria Helena. A autora pontua que embora a função prevalecente nas cartas seja a “razão emotiva” o livro se constitui como “filigrana documentativa de um tempo ainda presente na memória coletiva, vale dizer, no caso, (trans)nacional (pelo menos Guiné- Bissau, Cabo Verde e Portugal) – e nisso consiste o interesse público e institucional deste acervo”. Outra apresentação das cartas, “História em Dueto” (p. 37-40), assinada por Carlos Lopes, organizador do importante livro Desafios Contemporâneos da África: o legado de Amílcar Cabral (São Paulo: Editora da UNESP, 2012) e atual secretario executivo da comissão econômica das Nações Unidas em África, observa que desde a primeira carta, datada de 1946, aparece “uma personalidade vocacionada para fazer história”. Lopes enfatiza um percurso, “indivíduo e sociedade”, perceptível no suporte carta, “documento afetivo”, que presumivelmente seria o espaço para a “vivacidade poética” e o “arrebatamento amoroso”. Lopes também lamenta ficar “sem acesso às cartas de Helena”, mas defende que a “história em dueto” seria também aquela protagonizada por Maria Helena, “a de Amílcar e a de África”.
Bem, já que decidimos apresentar a “primeira parte” ao final desta resenha, voltaremos, para concluir, à carta do dia 21 de outubro de 1946, a segunda do corpus, na qual Cabral escreve para uma já notada colega de faculdade, ela então com 19 anos e, ele, recém-chegado a Lisboa, com 22 anos: “Bem: já vou longe…
Retorno, e respeito o pouco tempo de que dispõe, cara colega. A propósito do tempo de que dispõe: eu queria escrever no princípio: Leia quando tiver tempo, mas só o faço no fim. Quantas vezes, na vida, o fim não é o princípio?” (21 out. 1946, p. 47).
Aqui me tens! Do privado para o público. Entretanto, segundo as teorias feministas, o privado é público e o pessoal é político. Então, além do que expressamos como documentos afetivos, esse conjunto de cartas não seria também um patrimônio?
Notas
2 A antropóloga norte-americana Irene Diggs também foi discriminada num hotel do Rio Janeiro, por essa mesma época. Alguns casos “internacionais” repercutiam na imprensa, mas as práticas racistas institucionais e nos estabelecimentos comerciais, clubes e escolas eram diárias assim como a ausência da população negra do processo político brasileiro. Para essa discussão no contexto 1945-1960, ver: NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003, p. 221-280.
3 A última carta de agosto é um relato “historiográfico” dos acontecimentos da África do Sul e da institucionalização do regime de segregação racial com a vitória do Dr. Malan, adepto do fascismo europeu, nas eleições de 1948. Amílcar anota o aspecto positivo de alguns casamentos interraciais na África do Sul (29 ago. 1948 p. 193-195). Em setembro vai para Coimbra e se encanta com a cidade, onde “sente-se toda a alma portuguesa” (12 set. 1948, p. 231). O ano de 1948 contém o maior número de correspondência: 31 cartas. Não foram escritas cartas no ano de 1949, mas aparecem três sonetos, dois dedicados a Maria Helena e um para a mãe, Iva Évora. Em abril de 1950, carta enigmática sobre a morte, onde Amílcar pensa duas mortes, a vulgar, “cessação do fenômeno vital”, e a outra, uma espécie de “morte social” (p. 275-278). Na carta de 18 ago. 1950 Amílcar estuda o “africanista” Maurice Delafosse e o poeta negro cubano Nicolás Guillén (p. 302-304).
4 Os volumes são: Os ásperos tempos (1.º), Agonia da noite (2.º) e A luz do túnel (3.º). As citações que Amílcar envia para Maria Helena são do primeiro. Publicados em São Paulo, pela Livraria Martins Editora, a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade ficcionaliza o Estado Novo (1937-1945) em três momentos, a partir da “voz” de um membro do Partido Comunista Brasileiro: a instauração da ditadura; a greve dos estivadores do porto de Santos; e, a perseguição aos comunistas. A edição mais recente da trilogia, no formato original, isto é, em três volumes veio a lume também em São Paulo (Companhia das Letras, 2011). Parece provável que Amílcar tenha adquirido a obra de Jorge Amado em Luanda, pois essa disponibilidade da literatura brasileira em Angola vinha desde os primeiros modernistas. Conferir: MADRUGA, Elisalva. Nas trilhas da descoberta: a repercussão do modernismo brasileiro na literatura angolana. João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 1998.
5 Quase a totalidade dos escritos políticos de Amílcar Cabral foi publicada numa primeira edição, em 1977, em dois volumes, sob a coordenação de Mário de Andrade, seu biógrafo angolano e também intelectual ativista das emancipações africanas, especialmente de Angola. Depois disso, a obra foi republicada. Ver: CABRAL, Amílcar. Unidade e luta: a arma da teoria. Vol. 1; Unidade e luta: a prática revolucionária. Vol. 2 (Obras Escolhidas). Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2013.
Elio Chaves Flores – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado do Departamento de História e Docente Permanente dos Programas de Pós-Graduação em História e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador do CNPq – PQ-2 (Área de História Moderna e Contemporânea). E-mail: <eliochavesflores@gmail.com>.
[MLPDB]Njinga of Angola: Africa’s Warrior Queen | Linda M. Heywood
Uma vasta literatura tem abordado a vida e os feitos de Njinga (também grafada Jinga, Nzinga etc) desde 1668, quando sua primeira biografia foi publicada.1 Mais de três séculos após sua morte, ela ganha sua primeira biografia em língua inglesa, que vem se juntar aos esforços de outros historiadores americanos, no sentido de resgatar a sua história.2 Linda M. Heywood, professora da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, é estudiosa do passado angolano e possui uma vasta gama de publicações acerca da presença centro-africana na diáspora e da formação de uma sociedade crioula em Angola. Para escrever o presente livro, Heywood acessou um extenso acervo documental espalhado por arquivos e bibliotecas na Europa, Angola e Brasil. Além de revisitar fontes já exploradas, a autora usa registros inéditos, tais como documentação da Companhia das Índias Ocidentais e cartas escritas por missionários capuchinhos e pelos secretários de Njinga, os quais adicionam novas informações acerca da trajetória da personagem. Apesar de ter conduzido entrevistas em Luanda e Malange, as fontes orais foram pouco exploradas pela autora ao longo da obra. Neste livro, Heywood apresenta a história de Njinga desde o período que antecede ao seu nascimento até sua morte e finaliza com um epílogo que trata da construção da memória em torno da figura da rainha do Ndongo. O livro se insere no campo da biografia; no entanto, apesar de sua importância para a história das mulheres e de gênero, a autora não faz uso dos aportes teóricos dessas disciplinas em sua análise. Leia Mais
Cultura e Poder | Em Perspectiva | 2017
As práticas culturais do social se constituem nas relações de poder, no sentido que a cultura é construída em um jogo de tensão a partir do modo de viver e de sentir dos sujeitos situados em suas múltiplas temporalidade e espacialidades.
Neste número, a revista Em Perspectiva reuniu trabalhos que têm como foco as experiências dos sujeitos como campo de conflito, marcadas pelas inúmeras táticas e estratégias de poder, enfatizando o desenvolvimento de reflexões acerca da escrita, da oralidade e da imagem. Leia Mais
Insubmissas lágrimas de mulheres | Conceição Evaristo
São alarmantes as estatísticas que contabilizam mulheres negras agredidas e mortas por seus parceiros e travestis, pessoas trans e lésbicas vitimadas por suas opções sexuais e ou escolhas de gênero.1 A travesti Dandara dos Santos, torturada e assassinada por mais de quatro homens que filmaram toda a ação e a postaram em redes sociais é exemplo do sentimento de impunidade e a desumanidade desse tipo de crime. 2 A mulher, negra, lésbica, Luana dos Reis, que faleceu após ser espancada por três policiais homens em São Paulo, depois de se recusar a abrir as pernas no ato de uma revista, diz da conivência estatal com tais crimes. 3 Leia Mais
Em Perspectiva. Fortaleza, v.3, n.1 2017.
Cultura & Poder
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- Terno de Reis de “ouro Verde”, Abaíra, Chapada Diamantina (BA)um estudo sobre cultura popular
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- (Re)invenções de presos políticos num presídio da ditadura militar
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Revoluções, insurreições e resistências/Tempos Históricos/2017
O ano de 2017 foi um importante marco comemorativo da história mundial: a Revolução Soviética de 1917. Este fato foi relembrado mundo afora, acompanhado de lembranças sobre outros momentos importantes do movimento internacional dos trabalhadores. No caso brasileiro, a Greve de 1917, e vários outros momentos da luta da classe que se inspiraram de alguma forma na Revolução. Tivemos nesse ano uma profusão de publicações sobre aspectos distintos da Revolução: a experiência soviética; o papel das mulheres; a questão sexual; a produção revisionista, são apenas alguns deles. Noutros pontos do mundo, e especialmente na Europa, o discurso revisionista, que desde há décadas tem procurado, como se fizera já no período de entre guerras mundiais, demonizar a Revolução de Outubro e, por consequência, apresentar os processos revolucionários como “excrescências” da história, teve que se enfrentar com a renovação do interesse na investigação sobre os processos de participação política de massas e os novos movimentos sociais à luz das releituras empenhadas da revolução de 1917. Leia Mais
A reprodução do racismo: fazendeiros/negros e imigrantes no oeste paulista/1880-1914 | Karl Monsma
Domingo de carnaval de 1894. Na Fazenda Sant’Anna, município de São Carlos, no Oeste paulista, cinco colonos italianos festejavam no terreiro da fazenda a folia de momo, embalados pela música, dança e bebida. Num determinado momento, o grupo decidiu ir para uma estação ferroviária, onde, em frente a uma venda, continuou a pândega em meio a transeuntes que circulavam pelo local. O “crioulo” Narciso, de aproximadamente 30 anos, fazia uma visita de cortesia ao proprietário da venda, o brasileiro branco Guilherme Hopp. Por volta das seis horas da tarde, Guilherme, com a ajuda de Narciso, começou a fechar a venda. Os italianos pediram mais vinho, e Narciso transmitiu o pedido a Guilherme, mas este se negou, dizendo que a venda estava fechada. Quando o “crioulo” comunicou a recusa aos italianos, obstruindo a porta do estabelecimento, pelo menos quatro deles o atacaram, dando-lhe “tapas e ponta-pés”. Guilherme socorreu Narciso para dentro da casa e fechou a porta. No entanto, os italianos arrombaram a porta e novamente agrediram o “crioulo” com socos e facadas, “sendo que duas foram bem visíveis, pois que a faca entrando enroscou-se, demorando o assassino em tirá-la’’. Guilherme conseguiu puxar Narciso para o interior da casa novamente e o aconselhou que se escondesse na roça de milho, afim de que pudesse escapar da fúria dos italianos. Narciso não resistiu. No dia seguinte, foi encontrado morto no milharal. Os italianos sabiam que Guilherme era quem não queria lhes vender mais vinho, mas atacaram o mensageiro “crioulo”. Algumas semanas depois, Antonio Augusto, um jovem branco brasileiro, deu pancadas num “preto” porque faltou ao trabalho na fazenda onde Antonio atuava como mestre. Em resposta, o “preto” matou Antonio com uma facada. Leia Mais
Enseñanza y aprendizaje de la Geografía para el siglo XXI | Rafael Sebastiá Alcaraz e Emilia Maria Tonda Monllor
El libro Enseñanza y aprendizaje de la Geografía para el siglo XXI editado por el Servicio de Publicaciones de la Universidad de Alicante (2017) supone una aportación al conocimiento de los recientes avances que se están produciendo en determinados ámbitos de la enseñanza de la Geografía y a la difusión de estas innovaciones. El objetivo de la publicación es responder a tres cuestiones básicas que se derivan de los cambios sociales, de la ciencia de referencia, es decir, de la Geografía, y de las formas o métodos de enseñar. En concreto, el libro aborda cuestiones relativas a la renovación de los diseños curriculares, al desarrollo y evaluación de los métodos didácticos y a los últimos cambios tecnológicos. Igualmente, pretende contribuir a la formación de los docentes en los distintos niveles educativos tanto universitarios como en los básicos. La preocupación de la publicación es impulsar la investigación en didáctica de la Geografía que, en ocasiones, aparece más preocupada por la ciencia de referencia que por la transmisión de sus conocimientos a los futuros ciudadanos. La enseñanza de la Geografía, disciplina necesaria y útil en la formación de los discentes, necesita seguir renovándose con la incorporación de métodos más activos que conviertan al alumnado en sujeto que construye y elabora su propio aprendizaje. Leia Mais
Experiência social e escrita da história: relações de poder na contemporaneidade/Tempos Históricos/2017
A construção do dossiê traz, nesse momento de inquietude histórica, um repertório de reflexões em que ganhou espaço questões tangenciadas por uma trama de mudanças e permanências na confrontação de valores, expressas no campo de forças da dinâmica social. Os artigos que compõem esse número não só reafirmam como determinadas problemáticas (significadas na experiência social) são pautadas na historiografia, mas indicam como os trabalhadores se colocaram, foram vistos nas relações em que se envolveram e avaliados na cena historiográfica. Leia Mais
Um editor no império: Francisco de Paula Brito (1809-1861) | Rodrigo Camargo Godoi
Este retrato de corpo inteiro de Francisco de Paula Brito que Rodrigo Camargo de Godoi nos proporciona ilumina aspectos sociais, culturais e políticos da sociedade brasileira do século XIX. No bem-sucedido esforço de estabelecer a genealogia de Paula Brito, o livro recua ao século XVIII nos fornecendo informações relevantes sobre casamentos entre pessoas livres de cor e sua inserção em determinado substrato da população por meio de suas ocupações: o avô, ourives e capitão; o pai, carpinteiro e senhor de pequeno engenho; o primo, livreiro e encadernador. Figuram também mulheres, como a bisavó escrava que ganhara a liberdade depois de ter tido um filho com seu senhor e que, aos 40 anos, vivia de “sua própria obra”. Se, nesse caso específico, não é clara a ocupação, o fato de ter sido alfabetizado pela irmã e de uma de suas filhas ter se tornado professora, inserem Paula Brito em um estrato social modesto no qual, como demonstra Godoi, havia plena consciência do papel da educação como estratégia de inserção no mundo, inclusive para as mulheres. Leia Mais
História das Religiões e religiosidades / Esboços / 2017
Foi, com imensa alegria, que recebi o convite para organizar o dossiê para a Esboços – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina – com a temática: história das religiões e das religiosidades.
O estudo da história das religiões e das religiosidades no Brasil é, sem dúvida, atualmente, um campo consolidado. Os historiadores brasileiros preocupados com o fenômeno religioso já estão inseridos em instituições de ensino e pesquisa, grupos de pesquisa ou trabalho e associações. Há, ainda, a realização de encontros regionais, nacionais e internacionais para debater a temática. As chamadas constantes para dossiês em periódicos científicos das ciências humanas, as quantidades – cada vez mais significativas – de iniciações científicas, monografias, dissertações e teses sobre a temática, e a presença de linhas de pesquisa em programas de pós-graduações, são indicativos dos espaços assumidos por esta vertente dentro da Historiografia1.
Entender a história das religiões e das religiosidades como um campo consolidado, faz-se necessário ressaltar, não significa entendê-lo como homogêneo ou livre de disputas e embates, mas ao contrário. Os vieses interpretativos do fenômeno religioso, assim como os demais objetos históricos, são variados e estão longe de oferecerem respostas ou soluções definitivas. Creio que os artigos que compõem este dossiê confirmam essas afirmações, seja quanto a qualidade de suas pesquisas e pesquisadores, seja quanto a variedade de objetos, documentos e abordagens.
O artigo que abre o dossiê intitula-se RELIGIÃO E RELIGIOSIDADE EM TRANSFORMAÇÕES – DILEMAS METODOLÓGICOS e é de autoria de Renata Siuda-Ambroziak (Universidade de Varsóvia). Nele, a autora tenta provar que as tradicionais ferramentas de pesquisa já não são suficientes para investigar os fenômenos religiosos contemporâneos, independentemente da forma como são definidos no mundo pós-moderno, no qual tem muitos concorrentes, perdendo sua credibilidade em termos de ser a religião a única fonte do sentido e da moralidade.
O segundo artigo, escrito por Emerson José Sena da Silveira (UFJF), intitulado RELIGIÃO, RELIGIÕES E CONCEITOS SOCIOLÓGICOS: Notas críticas sobre a hermenêutica normativa da religião, pretende analisar as mútuas influências entre o campo religioso e a sociedade a partir de algumas dinâmicas empíricas, tecendo críticas aos usos semânticos de algumas categorias e empreendendo também, esboços de releitura de algumas análises sociológicas clássicas do religioso.
ASSOCIAÇÕES LEIGAS CATÓLICAS: novos espaços, práticas religiosas e perspectivas no séc. XX, de autoria de Edilece Souza Couto (UFBA), trata das primeiras décadas do século XX, na Bahia, e suas tentativas de modernização urbana e civilização dos costumes. Atenta a demolição da Igreja da Sé, que, apesar de previstas, só ocorreram na gestão do interventor federal Juracy Magalhães (1931-1937).
O quarto artigo, RELIGIOSIDADE E DEVOÇÃO: Caminhos para pensar a cidade, de Cairo Mohamad Ibrahim Katrib (UFU) e Luciane Ribeiro Dias Gonçalves (UFU), analisa a festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário, na cidade de Catalão, localizada na região sudeste do estado de Goiás, como espaço para a materialização de muitas vozes que contam e recontam muitas histórias, dentre elas a da religiosidade e da devoção a uma santa católica.
O quinto artigo é de Vanda Fortuna Serafim (UEM), E SE DEUS EXISTISSE E MORASSE NA BÉLGICA? RISO, HUMOR E RELEITURAS DAS NARRATIVAS BÍBLICAS. Por meio do filme O Novíssimo Testamento (2014) dirigido e produzido pelo belga Jaco van Dormael ela busca perceber como as releituras das narrativas bíblicas do Cristianismo realizadas sugerem o riso e o humor na atualidade.
Lourival Andrade Junior (UFRN), por sua vez, em AS UMBANDAS NO CORDEL busca entender, a partir do universo destes cordelistas, como as Umbandas são entendidas por estes poetas e como este gênero literário contribuiu para a construção de suas imagens, sobretudo de suas entidades espirituais e dos Orixás.
No artigo PROTESTANTES NO BRASIL: ENTRE A OMISSÃO E O ENGAJAMENTO POLÍTICO, Elizete da Silva (UEFS) analisa a presença Protestante no Brasil, bem como a constituição de um setor Protestante Ecumênico no País, que se desenvolveu na segunda metade do século XX, vinculado ao Conselho Mundial de Igrejas e com uma proposta inovadora de diálogo respeitoso com as demais religiões.
Fabio Lanza (UEL) e Luiz Ernesto Guimarães (SEED-PR), no artigo RELIGIÃO, POLÍTICA E MEMÓRIA: ESTUDO DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NO PROTESTANTISMO HISTÓRICO EM LONDRINAPR NA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR (1964-1985), analisam a presença da Teologia da Libertação entre setores do protestantismo histórico em Londrina-PR no período da ditadura militar, ocorrida no Brasil entre 1964 a 1985.
Por fim, Fernanda Santos (Universidade Federal do Amapá – Campus Santana), em O COLÉGIO JESUÍTA NO CONTEXTO DO SÉCULO XVI: FORMAÇÃO DE UM NOVO HOMEM, estuda, a partir do século XVI, como os colégios religiosos iniciam a sua tentativa de formar mestres e discípulos dentro do ideário religioso preconizado e dentro de uma lógica contrarreformista.
Desejo a todos uma boa leitura!
Notas
1 Vide: SERAFIM, Vanda Fortuna. Instituições religiosas, vivências do religioso: possibilidades de abordagens historiográficas das religiões e das religiosidades. In: Maria Bernardete Flores Ramos; Ana Alice Brancher (orgs.). Historiografia: 35 anos. Florianópolis: Letras/Contemporânea, 2011. P. 142-159.
Vanda Serafim – Universidade Estadual de Maringá, Brasil. E-mail: vandaserafim@gmail.com Organizadora
[DR]Os Estados Unidos na Era Trump / Esboços / 2017
Desde a emergência do fenômeno da Pax Americana no final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos se mantém como a nação hegemônica do sistema internacional. Esta liderança se sustenta em uma série de mecanismos políticos, estratégicos, econômicos, sociais e culturais que a partir de 1945 influenciam a dinâmica das relações estatais e transnacionais. Seja para gerir a estabilidade, ou para gerar a instabilidade, os norte-americanos influenciam decisivamente os rumos da política global, mas se encontram cada vez mais imersos em suas contradições e fragmentações domésticas. Neste contexto, o objetivo desse Dossiê “Estados Unidos” pela Revista Esboços é apresentar uma análise histórica e contemporânea de alguns componentes internos e externos que caracterizam esta hegemonia, em constante processo de construção e desconstrução nos séculos XX e XXI.
Abrindo o Dossiê, o artigo “A presença do petróleo nos Estados Unidos: o hidrocarboneto na história de uma grande potência”, de José Alexandre Altahyde Hage, Doutor em Ciência Política pela UNICAMP e Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), apresenta um panorama sobre a questão energética nos Estados Unidos, traçando sua evolução desde os primórdios da exploração de petróleo internamente e seu peso como elemento de projeção global. Porém, energia e petróleo não se consistem nos únicos elementos desta projeção.
No texto seguinte “Do Estado empreendedor ao mito da não-intervenção: a inovação como instituição nos Estados Unidos”, o Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Doutor em Relações Internacionais pela UNESP, Hermes Moreira Jr. aborda um tema central da liderança hegemônica e sua sustentação: a inovação como base do progresso e fortalecimento nacional, desmistificando, e comprovando, o peso do Estado neste campo, e a forte interdependência entre o setor público e privado neste país.
Por sua vez, no que se refere aos elementos de poder mais subjetivos, Matheus de Carvalho Hernandez em “Os Estados Unidos e as negociações sobre a criação do posto de Alto Comissário para Direitos Humanos” aborda um tema controverso nos Estados Unidos: os direitos humanos. Com isso, o autor, Doutor em Ciência Política pela UNICAMP, Professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), avalia, a participação da hegemonia em mecanismos de proteção e promoção dos direitos humanos, e as contribuições positivas e negativas dos Estados Unidos, para o debate sobre a governança multilateral neste campo.
Ainda no que se refere a direitos humanos, mas indo além deste recorte, com foco na relação bilateral Estados Unidos-Cuba, Alfredo Juan Guevara Martinez Mestre em Relações Internacionais pela PUC-MG, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da UNESP (IEEI-UNESP) e Visiting Scholar na University of South Florida, no Institute for the Study of Latin America and the Caribbean (ISLAC) analisa esta interação estatal e suas particularidades: o antes e depois da Revolução Cubana, o contexto da Guerra Fria e o fim da bipolaridade, a questão cubana como tema de política doméstica e o papel dos grupos de interesse, as transformações do século XXI de Obama a Trump são algumas das temáticas abordadas.
Visando contextualizar estas transformações do ponto de vista interno a partir de 1989, Cristina Soreanu Pecequilo, Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), dos Programas de PósGraduação San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Economia Política Internacional UFRJ e Ciências Sociais UNESP, Pesquisadora do CNPq e do NERINT/UFRGS, delineia os fenômenos políticos domésticos que caracterizam os Estados Unidos no pós-Guerra Fria. O choque entre democratas e republicanos, as disputas inter e intrapartidárias, o peso dos atentados terroristas de 11/09/2001 e as transformações sociais, econômicas do país são contextualizadas para demonstrar a crescente polarização do país.
Esta polarização, a política doméstica, e seus impactos nas relações internacionais, o peso da religião e da Guerra Global Contra o Terror na sociedade estadunidense e seu sistema partidário são o objeto da reflexão em “God wants me to be President: o Papel do Cinturão Bíblico na Política Contra o Terror Durante os Governos de George W. Bush”, de Filipe Almeida do Prado Mendonça & Gabriel de Almeida Ribeiro, respectivamente Professor Adjunto do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia.
De um ponto de vista mais específico, Carlos Gustavo Poggio Teixeira & José Felipe Calandrelli Professor do curso de Relações Internacionais da PUC-SP e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (PUC-SP/UNESP/UNICAMP), coordenador do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU e Graduando em Relações Internacionais pela PUC-SP, pesquisador do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU) avaliam a trajetória do neoconservadorismo e a sensível avaliação do que Donald J. Trump representa neste espectro político em “Donald Trump e o Neoconservadorismo”.
Adiante, as contradições Trump e o fenômeno eleitoral a ele associado são também avaliados por Fernanda Magnotta & Victor Grinberg, em “Trump: Mídia, Opinião Pública e a Espiral do Silêncio” indicando a importância do papel da mídia no pleito de 2016. Os autores são respectivamente Mestre e Doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI) e do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos (NEPEU) e Especialista em Mídia, Política e Sociedade pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), certificado em estudos de Marketing Digital e professor de Relações Internacionais e Ciências Econômicas da FAAP.
Fechando o dossiê, Corival Alves do Carmo Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe e Mestre em Economia pela Unicamp, debate um dos tópicos mais latentes, contraditórios e eficientes da agenda de campanha presidencial em “Donald Trump: a resposta norte-americana aos efeitos desestabilizadores da globalização do capital: as críticas à globalização e os impactos econômicos que esta agenda poderá ter para o elemento econômico da hegemonia do país.
A partir deste conjunto de artigos espera-se oferecer uma importante contribuição aos estudos sobre Estados Unidos, nação muito comentada, mas pouco conhecida ainda em suas especificidades. Com isso, a revista Esboços abre novas perspectivas de debate, reforçando seu papel acadêmico na promoção do diálogo interdisciplinar na história, na sociologia, na ciência política e nas relações internacionais.
Cristina Soreanu Pecequilo.
Organizadora
[DR]“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro de 1890 a 1930 | Maria Clementina Pereira da Cunha || Uma História do samba: as origens | Lira Neto
Na década de 1970, Flávio Silva desenvolveu uma pesquisa audaciosa. Mergulhando na profundidade dos acervos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), ele transformou nosso entendimento da canção “Pelo telefone” e a própria história do samba.1 Registrado na BNRJ em novembro de 1916, “Pelo telefone” se tornou sucesso do carnaval em 1917 e até hoje é chamado, erroneamente, o primeiro samba; na verdade outras canções gravadas antes foram chamadas de sambas e o gênero musical que definiria a chamada Época de Ouro do samba não se consolidaria por mais uma década depois do lançamento daquela canção. Nos anos 1970, quando Silva fez sua pesquisa, nosso conhecimento de tudo isso era incompleto. Graças a ele sabemos, por exemplo, que embora “Pelo telefone” não fosse o primeiro samba, ele todavia representa uma transição importantíssima. Leia Mais
Mythos | UEMASUL | 2017
Mythos – Revista do Núcleo de Estudos Multidisciplinares de História Antiga e Medieval (Imperatriz, 2017-), originou-se do interesse de investigação de docentes e discentes sobre mundo antigo e medieval. As civilidades antigas, sejam orientais, sejam ocidentais, bem como a sociedade do ocidente medieval, são as matrizes culturais da sociedade contemporânea e revelam muitos aspectos das origens do nosso comportamento social. Olhar para o passado é, em certo sentido, olhar para si mesmo. A revista tem como objetivo divulgar e estimular o desenvolvimento de novas pesquisas acerca das sociedades antigas e medievais. Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão – UEMASUL
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN: 2527-0621
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Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas – ROMEIRO (VH)
SILVEIRA, Marco Antonio. Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2015. 356 p. ROMEIRO, Adriana. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 61, Jan./ Abr. 2017.
Mais de quinze anos depois de sua defesa como tese de doutorado, vem à luz o livro Fama pública: poder costume nas Minas setecentistas, de Marco Antônio Silveira, em cuidadosa edição da Hucitec, prefaciada por João Adolfo Hansen.
Trata-se de um livro original. E por várias razões, a começar pelo investimento maciço num corpus documental tão rico quanto pouco explorado pela historiografia sobre Minas Gerais: os libelos cíveis, depositados no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Em segundo lugar, pela sofisticação de sua abordagem teórico-metodológica, presente também em trabalho anterior do mesmo autor, O universo do indistinto, inegavelmente uma referência obrigatória sobre a sociedade mineira do século XVIII, cujas questões centrais são aqui retomadas e aprofundadas a partir de uma nova perspectiva. E, por fim, pelo olhar arguto com que Silveira formula seu repertório de problemas às fontes.
A arquitetura do livro merece destaque. Já de início, o autor apresenta as referências conceituais que orientam a investigação, expondo ao leitor os fundamentos teóricos sobre os quais constrói o seu argumento. Cada um dos capítulos é dedicado então à análise de um ou mais libelos cíveis, os quais desvelam histórias de vida, conflitos familiares, solidariedades vicinais, enfim, a trama microscópica que compunha o cotidiano das comunidades rurais da capitania, ao longo do século XVIII. Essa trama densa, protagonizada por brancos, negros e mestiços, é a matéria-prima de uma reflexão sólida e instigante sobre a natureza e a dinâmica da sociedade mineira. Ao final de cada capítulo, o autor junta os fios dispersos e alinhava as suas teses, desenhando uma interpretação inovadora sobre a “invenção da sociedade mineira” (p.27).
Do ponto de vista metodológico, a obra alia uma abordagem antropológica a uma perspectiva histórica. Como antropólogo, Silveira se debruça ao rés-do-chão, aproximando as suas lentes do cotidiano das comunidades rurais, com o propósito de sondar as ideias, os valores, as práticas e os comportamentos que estruturavam a vida social. É da antropologia inglesa, particularmente dos trabalhos de Victor W. Turner, que vem a inspiração para a estratégia analítica calcada na “possibilidade de traçar, por meio deles, as estruturas sociais que lhes emprestavam significado” (p.29). Graças ao conceito de drama social, o leitor se vê como o espectador privilegiado de uma cena que se desenrola diante dos seus olhos: a experiência cotidiana de homens e mulheres, extraída da vida real e concreta. Nota-se também a influência do método de descrição densa de Clifford Geertz, sobretudo na ênfase dada à dimensão social dos significados partilhados pelos sujeitos históricos; e do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg.
Como historiador, Silveira investiga o impacto das transformações em curso no século XVIII na dinâmica da sociedade mineira, articulando-o ao contexto macroscópico da emergência do mercado capitalista, que solapou os velhos valores e solidariedades, transtornando as sociabilidades tradicionais. É nesse cenário que a sociedade mineira teve de se inventar, elaborando os seus códigos de estratificação, em meio a forças de sedimentação e subversão, do que resultou um universo fluido, convulsionado e instável, permeado por contradições de toda sorte. Contradição entre as diferentes propostas de ordenamentos social, entre o costume e a lei, entre as solidariedades comunitárias e o apego à propriedade privada, entre as sociabilidades e a privacidade burguesa, entre a piedade e a violência das relações mercantis, entre a caridade e o lucro… Contradições que dão lugar a uma sociedade extremamente conflituosa, que Silveira descreve recorrendo a metáforas bélicas, tais como “campos de batalha” e “guerra”, em tudo contrária à imagem de comunidades idílicas e harmoniosas.
Ao leitor atento, não passam despercebidos os ecos das geniais análises de Sérgio Buarque de Holanda sobre a instabilidade congênita do universo social mineiro, que mal conseguia “dissimular a ebulição íntima”, pois que nascido sob a égide do aluvionismo, era “uma estrutura movediça que se desmancha, em partes, e se recompõe continuamente, ao sabor de contingências imprevisíveis (…)” (Holanda,1982, p.259-310) Para Silveira, é no arrivismo que se encontra a origem dessa dinâmica: de negros a brancos, todos buscavam ali a ascensão social, legitimando suas demandas por meio do repertório dos costumes locais, dos valores cristãos como piedade e caridade, do direito formal, num esforço para esgarçar as fronteiras da classificação social.
É de Sérgio Buarque de Holanda também outro conceito-chave do livro: o descrédito do formalismo, ou seja, o embaralhamento dos signos de distinção, típico do processo vertiginoso de ascensão, esvaziada dos padrões europeus de civilização. Homens rudes que o ouro enriquecia, mas não civilizava, transformavam a lógica social do Antigo Regime numa espécie de simulacro banal.
Os libelos cíveis põem a nu esse intrincado e complexo processo de ordenamento social, no qual a cultura jurídica funcionava como mais um instrumento de disputa nas mãos de homens e mulheres empenhados em fazer valer seus direitos, privilégios e benefícios, em meio à fragilidade do Estado, à economia moral comunitária e às exigências da nova ordem econômica. Nas palavras do autor, “manipulando o choque entre formal e informal, homens e mulheres reunidos no buraco negro das obrigações mútuas buscavam remodelar a seu favor as disposições de poder e patrimônio” (p.273).
O livro de Silveira ainda nos coloca diante de uma questão fundamental: será possível falar em colonização, sem levar em consideração os múltiplos sentidos que ela adquiriu no cotidiano de homens e mulheres? Aqui, já não se trata mais de privilegiar modelos teóricos apriorísticos, ou de perseguir a adesão ou a resistência ao projeto colonizador português, mas de reconhecer o peso da dimensão cultural e valorativa dos agentes históricos e sua imensa capacidade de criar sentidos novos. A colonização surge então como experiência – no sentido de E.P. Thompson – que só pode ser entendida à luz das inúmeras dimensões da vida social, num emaranhado em que se confundem “as práticas sociais e os valores, a vida material e as elaborações simbólicas, as instituições e o cotidiano.” (Silveira, 2001, p.985)
Fama pública é, por fim, um livro corajoso. Nesses tempos em que conceitos como acomodação e negociação tendem a elidir contradições e conflitos, ele nos proporciona uma representação da sociedade mineira como guerra sem trégua…Ou, ainda, quando se assiste ao deslocamento da escravidão como chave para compreensão do mundo colonial, em nome de aproximações com as categorias do Antigo Regime, Silveira, inspirado pela melhor tradição historiográfica brasileira, nos lembra que, afinal, a colônia foi, acima de tudo, uma sociedade escravista.
Referências
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In HOLANDA, Sérgio B. de (ed.). História Geral da Civilização Brasileira , 5a ed., tomo 1, vol. 2. São Paulo: Difel, 1982. p.259-310. [ Links ]
SILVEIRA, Marco Antonio . Ideologia, colonização, sociabilidade. In JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (org.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa . vol. 2 São Paulo: FAPESP/Imprensa Oficial, 2001. p.979-990. [ Links ]
Adriana Romeiro – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário, Belo Horizonte, MG,Brasil 31.270-901, adriana.romeiro@uol.com.br.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v.5, n.’, 2017.
ARTIGOS
- Editorial
- Ricardo Ângelo Pereira de LIMA
- ANÃLISE DOS CONVÊNIOS FEDERAIS PARA O MUNICÃPIO DE CALÇOENE-AP (1996-2016)
- Alex Maia XAVIER, José Francisco de Carvalho FERREIRA
- CONFLITO SOCIOAMBIENTAL NO CERRADO: A MONOCULTURA DA SOJA NOS MUNICIPIOS DE ITAUBAL E MACAPÃ, AMAPÃ
- Anderson Maycon Tavares LAMEIRA, Otávio do CANTO, Ricardo Ângelo Pereira de LIMA, André FARIAS
- EDUCAÇÃO DO CAMPO E INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO: TERRITORIALIDADES EM CONSTRUÇÃO
- Ângelo Rodrigues de CARVALHO
- EDUCAÇÃO DO CAMPO NO PARà E A REALIDADE DAS CLASSES MULTISSERIADAS/MULTIANOS NO MARAJÓ
- Vivianne Nunes da Silva CAETANO
- O SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÃGUA DO MUNICÃPIO DE ITAITUBA-PARÃ: ASPECTOS HISTÓRICOS E SUSTENTABILIDADE
- Corina Fernandes de SOUZA, Luisa GIRARD, Gilberto ROCHA
- ESCOLAS FAMÃLIAS AGRÃCOLAS E PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: POSSÃVEIS ALICERCES PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÃVEL DO AMAPÃ-AMAZÔNIA-BRASIL
- Josiane Pereira CARDOSO, Roni Mayer LOMBA
- TRANSFERÊNCIA DE TERRAS DA UNIÃO PARA O ESTADO DO AMAPÃ: MARCOS LEGISLATIVOS
- Laila Milena Teles MARTINS
- DIAGNÓSTICOS DOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS PERTINENTES A ÃREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DA FAZENDINHA- AP
- Lana PatrÃcia de Matos dos SANTOS, Daguinete Maria Chaves BRITO
- VIOLÊNCIA E HOMICÃDIOS NA CIDADE DE BELÉM-PA: ANÃLISE COMPARATIVA DOS BAIRROS DA BATISTA CAMPOS E JURUNAS
- Leonardo de Souza ALVES
- DINÂMICAS TERRITORIAIS DE UM QUILOMBO NO CERRADO AMAPAENSE: EXPERIÊNCIAS VIVIDAS E PERCEBIDAS NO QUILOMBO MEL DA PEDREIRA
- Liliane Rodrigues SOARES, Karoline Fernandes Siqueira CAMPOS
- DIREITO DO TRABALHO NO BINÔMIO EMPREGADOR E EMPREGADO E SUA RELAÇÃO COM O PRINCÃPIO DA PROTEÇÃO
- Simone Franceska Pinheiro das CHAGAS, João Marcio Palheta da SILVA, Gláucia Rodrigues Nascimento MEDEIROS
- IDENTIDADE CULTURAL RIBEIRINHA NO AMAPÃ
- Manoel Osvanil Bezerra BACELAR, David Junior de Souza SILVA
- O APORTE SOCIOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA ATIVIDADE TURÃSTICA NAS ÃREAS ADJACENTES DA HIDRELÉTRICA FERREIRA GOMES
- Marciléia do Socorro da Rocha Campos LOPES, Shirly Silva SANTOS, Suany Rodrigues da CUNHA
- IMPACTOS AMBIENTAIS NO ENTORNO DO IGARAPÉ DO TRILHO NO MUNICIPIO DE BENEVIDES-PA
- Mirian Maciel da COSTA, Heverton de Oliva PAMPLONA, Narjara Daphenn dos Santos MENEZES, Tássia Stêfany Lima BEZERRA, Vicka de Nazaré Magalhães MARINHO
- ANÃLISE DO ESTUDO SOCIOECONÔMICO DO LICENCIAMENTO AMBIENTAL DA HIDRELÉTRICA CACHOEIRA CALDEIRÃO NO AMAPÃ: ÊXITOS E LIMITAÇÕES
- Renan Gomes FURTADO, José Francisco de Carvalho FERREIRA, Gilberto Ken Iti YOKOMIZO
- COMUNIDADE RIBEIRINHA DO BAILIQUE: A HERMENÊUTICA DIATÓPICA COMO INSTRUMENTO DE RECONHECIMENTO DE IDENTIDADE
- Simone Maria Palheta PIRES, Adriana Goulart de S. ORSINI
- AS MÚLTIPLAS TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO AFETADO PELO EMPREENDIMENTO HIDRELÉTRICO BELO MONTE, NA AMAZÔNIA PARAENSE
- Tássia Stêfany Lima BEZERRA, José Antonio HERRERA, Luis Alexandre Bezerra do NASCIMENTO
- A FORMAÇÃO SOCIOESPACIAL DE SANTANA A PARTIR DA ORLA FLUVIAL: UMA PROPOSTA DE ZONEAMENTO
- Telma Maria da Silva VIANA, José Francisco de Carvalho FERREIRA, José Alberto TOSTES
A vista particular | Ricardo Lísias
Centro de Livre Expressão (CLE), intervenção na Praça da Sé, em São Paulo, intitulada Páginas Escolhidas, um dos pré-eventos que anunciavam o Evento de Fim de Década, 1979.
A arte como intervenção é uma questão antiga, embora siga atual e relevante. E a literatura desempenha um papel muito especial nesse debate. Se o paradigma da ficção realista vem fazendo água há tanto tempo, é porque modernamente não caberia mais, à literatura, reproduzir com fidelidade o mundo. Ninguém hoje defende o romance como grande mural da sociedade burguesa, como se lhe coubesse, exclusivamente, desvendar o drama do sujeito num mundo individualizado. De forma diversa, o escritor moderno instaura, em pleno gozo do caráter artificial de sua produção, um outro mundo, encravando-o no que cotidianamente chamamos de realidade. Resta lembrar que o “modernamente”, aqui, refere-se a um projeto mais que centenário de literatura moderna. Ou talvez se trate de uma potência ainda mais antiga, que aponta para os primeiros tempos do que orgulhosamente chamamos de era moderna. Mesmo evitando a mitologia dos momentos fundacionais, é difícil escapar da ideia de que Cervantes terá sido um dos primeiros autores a brincar livremente com as traves do próprio artifício literário, vendo nelas uma espécie de prisão fantástica, invenção que ameaça tomar o sujeito para transformá-lo em outra coisa. Ninguém escapa do mundo ficcional moderno: nem os personagens, nem o escritor, que se torna, ele mesmo, personagem.
O trabalho minucioso diante dos limites da ficção não é novo para Ricardo Lísias. Mas está claro, ao menos para o autor, que o rótulo da “autoficção” é insuficiente para compreender sua prosa. Para além do debate sobre a autobiografia, o que está em questão, no caso de Lísias, não é a contaminação do texto pela “realidade” vivida pelo autor, mas sim a possibilidade de se inventar um mundo completamente diferente do nosso, embora, ao mesmo tempo, incrivelmente próximo e passível de reconhecimento. É como se identificássemos cada milímetro do que é narrado, enquanto somos levados, sub-repticiamente, a um universo de absurdos que nos faz pensar que o que vemos através das lentes da ficção não é real. Ou será real? Leia Mais
Etno-história indígena: abordagens interdisciplinares / Diálogos / 2017
Com grande satisfação, apresentamos o dossiê “Etno-História Indígena: abordagens interdisciplinares”. Nas últimas três décadas, acompanhamos o crescimento da pesquisa sobre a história dos povos indígenas no Brasil, posicionando-os enquanto protagonistas da história e não apenas como vítimas da inexorabilidade histórica. Essa abordagem trouxe a lume questões e problemas relacionados ao uso de conceitos, e de metodologias. Hoje, existe certo consenso entre os pesquisadores da área de que a reflexão sobre a história indígena deve destacar a importância da conjugação de dados e métodos de várias disciplinas como história, antropologia, arqueologia, linguística, geografia, ecologia, dentre outras, metodologia que chamamos de EtnoHistória. Além disso, é fundamental que se valorize as tradições orais e os conhecimentos desses povos.
Os artigos publicados no dossiê apresentam uma diversidade importante de temas e abordagens, reveladoras do vigor crescente e da atualização da historiografia no Brasil do começo do século XXI, especialmente quando se trata dos povos indígenas na formação da sociedade e do território nacional (ou mesmo para períodos anteriores à chegada dos europeus, com métodos comparados sobre fontes históricas e abordagens multidisciplinares). Tal diversidade é salutar para perceber e dar conta da multiplicidade de eventos e processos ocorridos no Brasil desde o começo do século XVI. Junto com ela é necessário estar disposto a aprender e trocar conteúdos com os desenvolvimentos teóricos e metodológicos realizados em outros países, renovando os eixos temáticos tradicionais que foram estruturados no século XIX.
Ao todo trazemos onze artigos que contemplam diferentes recortes temporais, regionais e diversos povos indígenas.
Lúcio Tadeu Mota, com o artigo “A invasão dos territórios do povo Xetá na Serra dos Dourados/PR em meados do século XX”, apresenta os processo de apropriação e comercialização fundiária no território Xetá na região da Serra dos Dourados, no noroeste do Paraná das décadas de 1940 e 1950.
Em “Caciques sem poder e cacicados negociados nas missões do Chaco”, Guilherme Galhegos Felippe apresenta uma discussão sobre como os missionários, no século XVIII, em busca de uma liderança geral para os indígenas do Chaco, acabaram por constituir o cacicado, anteriormente inexistente, e como os indígenas, nessas relações, se apropriaram e se beneficiaram dessa construção.
O trabalho de João Paulo Peixoto da Costa, “Os índios do Ceará na Revolução Pernambucana de 1817” discute o recrutamento e a participação de indígenas na repressão à Revolução Pernambucana. Os indígenas, na condição de súditos da Coroa portuguesa lutaram em sua defesa. Este artigo dá uma grande contribuição para a compreensão da presença indígena na História do Brasil, fato que merece destaque, pois ainda hoje os indígenas, com muita frequência, são invisibilizados por nossa historiografia não especializada.
Carlos Alexandre Barros Trubiliano, com o artigo “Exploração da força de trabalho indígena na formação dos seringais em Rondônia”, nos leva para a Amazônia do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O autor discute as formas de utilização do trabalho indígena nos seringais do atual estado de Rondônia, bem como a expansão das relações capitalistas na região e seu impacto sobre os povos indígenas.
Em “Natureza e Civilização: a resistência indígena e as políticas de aldeamento nas margens dos rios Tocantins e Araguaia (1822-1850)”, Fabíula Sevilha analisa as políticas de aldeamento promovidas pelos presidentes da Província de Goiás entre 1822 e 1850. Para a autora, tais aldeamentos foram uma reação à resistência imposta pelos indígenas à transformação da natureza em “bens de capital”.
Flávio Braune Wiik e Rafael Pereira Simonetti abordam a temática dos discursos e representações produzidos pela imprensa sobre os indígenas. No artigo “Discursos na imprensa sobre índios e caboclos durante o Contestado: o caso do Diário da Tarde”, os autores analisam os discursos publicados no jornal O Diário da Tarde sobre indígenas e caboclos na região do Contestado durante o período da guerra de mesmo nome, ocorrida entre 1912-1916.
Em “A justiça contra o índio Kaiowá, Lucas Antônio Barros: conflitos interétnicos e cotidiano no Aldeamento do Paranpanema, Paraná (1867)”, a partir da análise de um processo crime, Jaisson Teixeira Lino e Ana Paula Galvão de Meira fazem uma análise de conflitos e relações interétnicas no Aldeamento Paranapanema.
“Entre a catequese e a tutela, do aldeamento à povoação: os indígenas de São Jerônimo – PR”, Éder da Silva Novak, demonstra a agência indígena para se manterem em seus territórios diante do avanço da colonização entre 1889 e 1922.
Alexandre Navarro em “As cidades lacustres do Maranhão: as estearias sob um olhar histórico e arqueológico” nos apresenta os resultados de um projeto arqueológico sobre habitações indígenas palafíticas localizadas na Baixada Maranhense, lançando de uma perspectiva multidisciplinar no uso de fontes históricas.
O texto de Francisco Torres Cancela, “Política indigenista e políticas indígenas na antiga Capitania de Porto Seguro no governo de José Marcelino da Cunha (1810 -1819), valorizando o protagonismo indígena, analisa o embate entre as políticas indigenistas e indígenas na Capitania de Porto Seguro durante as primeiras décadas do século XIX.
Fechando o dossiê, em “De aculturado exótico a raiz profunda: indigenismo e história indígena em narrativas de Ailton Krenak”, Cristiane de Assis Portela busca no pensamento do reputado intelectual e ativista das causas indígenas reflexões sobre importantes oposições semânticas presentes no discurso do indigenismo brasileiro.
Uma boa leitura aos colegas estudantes e pesquisadores da história dos povos indígenas.
Francisco Silva Noelli – Professor aposentado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, pesquisador no Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história (LAEE) da UEM. E-mail: chico.noelli@gmail.com
Lucio Tadeu Mota – Doutor em História pela UNESP/Assis-SP, professor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pesquisador no Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-história (LAEE) da UEM. Maringá, PR, Brasil. E-mail: ltmota@uem.br
Thiago Leandro Vieira Cavalcante – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2013). Atualmente é professor da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD onde atua no curso de Licenciatura e Bacharelado em História e no Programa de Pós-Graduação em História. E-mail: thiago.ppghufgd@gmail.com
[DR]Educação a Distância. Batatais, v.7, n.1, jan./jun. 2017.
Expediente
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- Evandro Marianetti FIOCO
- Ana Martha de Almeida LIMONGELLI
- Renata Simões MACHADO
- Célia Regina Vieira de SOUZA-LEITE
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Família/Acervo/2017
O dossiê da revista Acervo ora em tela atualiza a discussão sobre família e apresenta algumas tendências contemporâneas de seu estudo nas ciências humanas, com destaque para os campos da história, da antropologia e dos direitos humanos. Tais reflexões são resultado tanto dos desafios enfrentados pelas famílias e seus atores, no que compete à conquista e manutenção de direitos na atualidade, a exemplo do Estatuto da Família que tramita no Congresso Nacional (PL 6583/2013) e dos altos índices de violência contra a mulher no Brasil, quanto do fruto de uma longa tradição intelectual de reflexão sobre a família brasileira. Nos artigos que se seguem, o leitor terá a oportunidade de compreender as noções e organizações familiares que coexistiram em diferentes tempos e espaços, sua importância nas disputas políticas e sociais, bem como as fontes e metodologias de pesquisa utilizadas para apreender essa miríade de vivências e experiências. Leia Mais
A alma e o corpo por escrito: literatura religiosa e médica, séculos XVI-XIX / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017
Entre o século XVI e o início do XIX, a produção e difusão de livros e impressos ganhou significativa circulação entre a Península Ibérica e a América portuguesa. Textos de variadas ordens e objetivos, com diferentes origens editoriais, com múltiplos discursos – institucionais, científicos, biográficos, entre outros – foram produzidos com específicos objetivos. Entre eles, se encontravam tratados médicos, livros religiosos, catecismos, relatos de viagem, gazetas, dicionários, só para citarmos alguns exemplos entre aqueles utilizados como fontes pelos autores dos artigos que compõem este dossiê.
Muitas destas publicações tratavam de divulgar as percepções, tanto dos autores, quanto dos editores, sobre o corpo e a alma, mediante explicações para os elementos físicos e metafísicos, das características materiais e espirituais dos seres, das instruções para a saúde corporal e moral, numa relação marcada pela conjugação entre o racional e o transcendente em um espaço – o iberoamericano – onde predominavam fortemente influências religiosas católicas sobre experiências sociais, espirituais e políticas.
Na Europa ocidental, desde o início do século XVI, se pode verificar um eficiente mecanismo de difusão da literatura religiosa, tributário do espírito da Reforma Católica e das descobertas da anatomia divulgadas em publicações médicas. Não raro, estas produções dialogavam entre si, considerando que a disciplina da alma através do corpo era também um discurso recorrente e contemplado em ambas literaturas. Pelo menos até o decorrer do século XVIII, a literatura religiosa e a médica se apresentavam como modelos exemplares de leitura para diversos grupos sociais, uma vez que instruíam, ensinavam e formavam, a partir da idealização, sujeitos cristãos morais, virtuosos e saudáveis. Assim, textos religiosos e médicos, que remetiam às expectativas sociais dos leitores, foram produzidos com intuitos variados, dentre os quais se destacavam a salvação da alma após a morte e a vida saudável moralmente conduzida. Mas as recepções dos discursos textuais foram dinâmicas, na medida em que dependiam de particularidades culturais e sociais dos leitores e da materialidade e suporte dos escritos.
Assim, com diferentes objetos e problematizações, centrados entre os séculos XVI e XIX, os autores dos artigos deste dossiê acionam fontes textuais que se debruçaram sobre a alma e o corpo, buscando compreender, entre outros aspectos, o contexto de produção destes documentos, situando assim, as ideias, os discursos e os sentidos (re)construídos por autores, editores e leitores na sua historicidade própria e específica.
O texto da historiadora portuguesa Maria Marta Lobo de Araújo abre o dossiê, analisando os legados dos benfeitores das Misericórdias do Minho, Portugal, dos séculos XVII e XVIII, como elementos fundamentais para as práticas caritativas, com destaque para as esmolas dadas aos pobres, a assistência aos enfermos e as doações feitas com o propósito de assegurar a salvação de suas próprias almas.
Na sequência, o artigo de Leonara Lacerda Delfino, analisa concepções de enfermidade e cura através da causa mortis de escravos e libertos indicados em registros paroquiais de óbitos da Vila de São João del-Rei entre o final do século XVIII e início do XIX, destacando a apropriação do poder miraculoso de Nossa Senhora dos Remédios e de São Benedito, como entidades curadoras presentes nas acepções de solidariedade dos irmãos do Rosário. De acordo com a autora, a análise da documentação revela a concomitância de saberes médicos com as práticas mágicas do cativeiro.
Já o texto de Carlos Paz analisa discursos jesuítas sobre o consumo de bebidas por indígenas no Chaco, ao longo do século XVIII. Segundo o autor, os jesuítas compreendiam e relatavam as beberagens como um problema de saúde que corrompia o corpo da civitas cristiana, e, ainda, como um “espelho da alma” indígena, vinculada à barbárie e à indolência.
O artigo de Ane Mecenas analisa discursos religiosos sobre práticas de cura dos indígenas Kiriri no sertão da América portuguesa entre o final do século XVII e o início do XVIII. A partir de dois catecismos, escritos por um jesuíta e por um capuchinho, a historiadora destaca como, no trabalho de conversão, os religiosos descreveram as doenças que acometiam os indígenas e as práticas de cura empregadas.
O próximo texto é de Alexandre Varella e analisa o discurso médico de Juan de Cárdenas, presentes no livro Problemas y secretos maravillosos de las Indias, enfocando, especialmente, as orientações relativas à dieta alimentar dos espanhóis que viviam na América no final do século XVI. Para o autor, o médico Cárdenas procurava, a partir das regras alimentares não apenas evidenciar a presença de uma distinção social aristocrática na sociedade mexicana do final do século XVI, mas também a necessária busca por um sujeito ideal, que teria corpo de compleição sanguínea e colérica.
O texto de Jean Luiz Neves Abreu traz análises das prédicas para a saúde do corpo e a salvação da alma presentes em tratados de medicina e de teologia do século XVIII. O historiador busca, em especial, problematizar as relações entre a medicina e a religião no contexto luso-brasileiro, discutindo as aproximações e tensões entre os discursos médicos e religiosos relativos aos cuidados do corpo e aos sentidos das doenças produzidos no Setecentos.
No artigo de Juliana Gesuelli Meirelles, o foco está nas transformações das concepções de saúde e de medicina entre os séculos XVIII e XIX, a partir das mudanças políticas e culturais da sociedade luso-brasileira propiciadas pela reforma da Universidade de Coimbra. A autora destaca, ainda, a circulação de ideias a partir da criação da Impressão Régia do Rio de Janeiro, inserindo-a na política cultural e científica de D. João VI para a América portuguesa.
Encerrando o dossiê, o texto de Ricardo Cabral Freitas destaca a crítica à atividade confessional encontrada no livro Medicina Theologica, publicado em Lisboa, em 1794, apresentando-a como uma reivindicação de correntes filosóficas iluministas com vistas à reformulação das relações entre conhecimento médico e sociedade e à reparação de uma alegada decadência moral da população.
Por fim, cumpre dizer que ordenamos os textos em dois blocos. Se os quatro primeiros se encontram mais vinculados às análises de discursos produzidos sobre o corpo a partir de um viés religioso, os quatro últimos se detiveram mais em análises sobre os discursos médicos produzidos no século XVIII e no início do século XIX.
Neste dossiê, o leitor encontrará uma representativa mostra de investigações que vêm sendo realizadas por autores brasileiros e estrangeiros, que têm se dedicado a analisar, sob diferentes aspectos e enfoques teórico-metodológicos, a literatura religiosa e médica do século XVI ao XIX.
Uma boa leitura a todos!
São Leopoldo / Rio Grande, Inverno de 2017.
Eliane Fleck – Doutora em História (PUCRS), Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Mauro Dillmann – Doutor em História (UNISINOS), Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
(Organizadores)
FLECK, Eliane; DILLMANN, Mauro. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 17, jan. / jun., 2017. Acessar publicação original [DR]
El Caso Morillo: crimen/locura y subjetividad en la España de la Restauración | Ricardo Campos
Com certa frequência alguns casos de violência acabam tomando os meios de comunicação e comovendo a sociedade de modo a desencadear novas ou velhas polêmicas. Muitas vezes, o caso atinge proporções maiores e passa a ser discutido também nos meios acadêmicos, no ambiente familiar e nos mais diversos ambientes. Diferentes sujeitos, partindo de diferentes esferas da sociedade, apresentam seu ponto de vista a fim de rotular o autor do crime: Seria ele um louco? Um desfavorecido socialmente? Um herói? Ou simplesmente uma pessoa má? Leia Mais
100 anos da Revolução Bolchevique / Contraponto / 2017
Os 100 anos que transformaram o mundo
O aniversário de 100 anos da Revolução Russa é o tema do dossiê da Revista de História Contraponto. Nesse sentido, os historiadores têm a oportunidade de tratar em seus artigos de um dos mais importantes processos ocorridos no século XX, a narrativa sobre a construção do primeiro Estado operário da história. A Revolução Russa – com a Revolução Francesa – consiste em um dos maiores eventos da história humana. Trabalhadores e camponeses da Rússia mostraram sua determinação de não mais se submeterem a uma sociedade de classe opressiva.
Durante o século XIX, houve sacrifícios, coragem e militância, resultados de muitas lutas em diferentes países da Europa e da América. Mas o elemento que causou uma ruptura efetiva com o capitalismo em outubro de 1917 foi a ação de um partido de massa revolucionário que pode dar uma direção clara ao movimento político que ocorria na Rússia.
A burguesia nunca admitiu que houvesse perdido seu poder político. Até hoje a direita no mundo continua a dizer que a democracia foi suprimida na Rússia czarista. À época, uma alternativa diferente foi escolhida pela burguesia, pela aristocracia e pelos brancos: a opção militar com uma guerra civil entre 1917 e 1921. Nela, a burguesia poderia contar com o apoio de exércitos intervencionistas do Japão, França, Grã-Bretanha e EUA. — Seria essa a alternativa democrática? A posterior subversão da memória e da história da Revolução, e a criação de mitos sobre o Comunismo seriam outras opções. Alguns dos artigos do dossiê trataram dessas e de outras questões.
O impacto e o legado da Revolução Russa de outubro de 1917 são de importância crucial em todo o mundo. Para a Rússia e os países do antigo bloco socialista, a Revolução deixou uma herança profunda em diversos campos da sociedade, é o que vai tratar o artigo do Prof. Dalton Macambira.
Entre acertos e erros a Revolução também levou à fundação de uma tradição jurídica completamente nova, cujas influências ainda são sentidas nos dias atuais. Sobre as questões jurídicas, o artigo do Prof. Guilherme Barbon aborda a questão do constitucionalismo na Revolução Russa de outubro de 1917, e a importância acerca da construção dos direitos fundamentais.
Quanto ao texto do Prof. Johny Santana, procura mostrar como as historiografias – liberal ocidental; oficial soviético e libertário-revisionista – trataram e tratam a questão da Revolução Bolchevique de outubro de 1917, e qual o sentido de revolução hoje.
O trabalho do Prof. Ramsés Souza procura analisar as relações entre a construção do Programa Agrário dos Bolcheviques e a dinâmica da luta de classes no campo russo, no período dos anos de 1901 e 1917.
Entre a multiplicidade de seus efeitos, a Revolução Russa de outubro de 1917 também se tornou o ponto de partida da desconexão entre comunidades científicas, culturais e sociais do bloco socialista de países e outras regiões do mundo. Esse isolamento persistiu ao longo do tempo na União Soviética. Tais eventos foram vividos, contados, escritos, reescritos, analisados, reinterpretados. No entanto, nos dias atuais, apresenta-se ainda profundo desconhecimento do que foi a Rússia Soviética de ontem e o que é a Rússia Federalista de hoje; certamente muito mais herdeira de um nacionalismo czarista do que necessariamente do Socialismo, o que gera grande tormenta sobre o que ela foi e o que é.
A Revolução Russa de 1905 e de 1917 forma a maior caixa de ferramentas histórica, ideológica e política do século XX e parte do século XXI, portanto, ambas merecem ser estudadas e debatidas. Em razão disso, criou-se um imaginário que evoluiu por cem anos, alimentando alternadamente um ideal, ao mesmo tempo, uma nostalgia, uma hostilidade, e uma cultura comum que se liga à memória das gerações mais antigas, e mexe com a vida dos contemporâneos.
A todos uma ótima leitura!
Sabrina Steinke – Professora Doutora.
Túlio Henrique Pereira – Professor Doutor.
STEINKE, Sabrina; PEREIRA, Túlio Henrique. Apresentação. Contraponto, Teresina, v. 6, n. 1 jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]
I Cognomi degli italiani: una storia lunga 1000 anni | Roberto Bizzocchi
Outro livro que fala de cognomi (sobrenomes, em italiano)? É o próprio autor – Roberto Bizzocchi, professor de História Moderna da Universidade de Pisa – que se faz esta pergunta na primeira linha de apresentação deste trabalho, uma reconstrução pontual da história da antroponímia italiana desde a Idade Média até a atualidade. De fato, sobre tal assunto, não faltam textos e contribuições valiosas, que se limitam, contudo, ao esclarecimento do significado linguístico dos vários sobrenomes, por meio de uma impostação principalmente descritiva e tipológica. Este livro, ao contrário, tem um objetivo mais ambicioso, querendo reconstruir os vários acontecimentos históricos relacionados ao nascimento e ao uso dos sobrenomes na Península Itálica. Trata-se acerca de 250 páginas divididas em 44 capítulos tematicamente circunscritos, baseados em documentos de arquivo e em um poderoso material bibliográfico. Leia Mais