Ética em pesquisa em contextos educativos | Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais | 2017

Ética em pesquisa em contextos educativos: problematizações luso-brasileiras

O dossiê “Ética em pesquisa em contextos educativos” teve como objetivo problematizar as questões éticas no cotidiano da produção do conhecimento cientifico, em contextos de educação formal, informal e não formal, envolvendo artefatos culturais, midiáticos e tecnológicos. Provocados por algumas perguntas norteadoras, os autores brasileiros e portugueses problematizaram a produção do conhecimento cientifico tendo a ética em pesquisa como eixo central das discussões. No Brasil, esta problemática vem produzindo interlocuções e tomadas de posições, como no caso das resoluções sobre ética em pesquisa (Resolução 466/12 e Resolução 310/16 do CNS) e nos trabalhos de investigação envolvendo sujeitos de diferentes idades. Em Portugal, a temática também vem sendo foco da atenção de pesquisadores, dentre os quais podemos citar aqueles que pesquisa com crianças ou que realizam investigações em contextos digitais.

Neste sentido, as produções procuram apresentar contributos para alimentar o debate no que se refere aos aspectos teórico-metodológicos, em torno de pelo menos uma das questões sobre ética em pesquisa em educação. A seguir apresentamos as questões presentes no dossiê e os artigos que se propõem a discuti-las. Leia Mais

Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida – NIETZSCHE (CN)

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica, São Paulo: Hedra, 2017. Resenha de: JULIÃO, José Nicolao. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.2 maio/ago. 2017.

O ensaio de Nietzsche Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben apareceu ao grande público, em fevereiro de 1874, como a segunda parte de uma ambiciosa obra intitulada Unzeitgemässe Betrachtungen, cuja primeira parte, David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller, publicada no ano anterior, havia feito grande sucesso de vendagem, exigindo uma segunda edição, no mesmo ano de sua publicação, sobretudo devido à polêmica matéria enfurecida que o periódico Grenzboten, em sua edição de outubro de 1873 (ano 32, 2º semestre, 2º volume, p. 104-110), com o título “Herr Nietzsche und die deutsche Cultur”, havia lançado contra ela. A mesma audiência, contudo, não alcançou de imediato a segunda das Extemporâneas, retumbando sobre ela um sonoro silêncio1, para depois tornar-se uma das mais conhecidas obras de seu autor e talvez umas das mais influentes no âmbito das Ciências Humanas. Herbert Schnädelbach considera esse ensaio de Nietzsche como o primeiro documento crítico ao Historicismo alemão2; Karl Schlechta diz o seguinte sobre o tratado: “Nele, o ‘Historicismo’ toma consciência dele mesmo de forma assustadora: o diagnóstico do autor foi tão sombrio que foi necessário familiarizar-se com esse estado de risco doentio”3. O filólogo Karl Reinhardt considerou que o Historicismo foi tão depreciado que fica difícil que se possa achar ainda algo a dizer contra ele4. Fora o impacto crítico ou devido a ele, como chama atenção o tradutor André Itaparica, na sua aguda introdução à sua cautelosa tradução, há também o destaque que o ensaio ganhou em obras já consagradas sobre a filosofia de Nietzsche, como nos livros de Karl Jaspers (Nietzsche, Einführung in das Verständnis seines Philosophierens – 1946) e Walter Kaufmann (Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist – 1956), podemos adicionar a essa lista, entre aqueles que reconhecem o valor da Segunda Extemporânea e já se tornaram consagrados, Müller-Lauter (Nietzsche, Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie – 1971) e Michel Foucault (“Nietzsche, Freud, Marx” – 1967 – e “Nietzsche, la genealogie, l’histoire” – 1971). Itaparica menciona ainda o seminário ministrado por Heidegger, no semestre de inverno de 1938-39, dedicado à Extemporânea II (publicado no volume 46, da edição crítica: Zur Auslegung von Nietzsches II. Unzeitgemässer Betrachtung. In: Martin Heidegger Gesamtausgabe (HG. 46), Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2005) para dar visibilidade à dimensão da projeção e fecundidade do texto nietzschiano. Neste assunto, nós nos deteremos um pouco mais para estabelecermos um contraponto à nossa compreensão do texto traduzido impecavelmente por André Itaparica.

No seminário, Heidegger retoma e desenvolve teses já apresentadas, incipientemente, em 1927, no parágrafo 76 de Ser e Tempo, intitulado Der existenziale Ursprung der Historie aus der Geschichtlichkeit des Dasein, nas quais ele mostra a partir de Nietzsche que o homem é essencialmente histórico, entretanto, cabe saber até que ponto a história é útil ou prejudicial à vida, tema central, que deve ser compreendido, como a experiência da vida humana, que só pode ser pensada no interior de uma cultura. No que concerne ao seminário, Heidegger, já na introdução, previne que a concepção ampla e ambígua do projeto lhe garante certa liberdade interpretativa, propondo, em seguida, uma divisão do estudo em três partes: “Grosso modo, o trabalho que nos propomos contém três partes: 1. Introdução à formação conceitual filosófica, 2. mas isto, como leitura e interpretação para um tratado definitivo e, consequentemente, 3. na abordagem da filosofia de Nietzsche.”5 Ele também deixa claro de imediato que não escolheu Nietzsche por moda, mas porque ele foi “o último pensador da história da filosofia ocidental, isto é, da metafísica: pensar o seu pensamento é, ao mesmo tempo, levar a filosofia ocidental em suas linhas básicas ao primeiro patamar do saber”6. Heidegger, embora não se expresse de forma tão clara na escolha da Segunda Extemporânea como tema para o seminário, no entanto, ele sugere que o trabalho lhe apresenta uma oportunidade especial para ilustrar a posição de Nietzsche na história da metafísica. A análise do tratado, para ele, tampouco se limita a uma mera interpretação, mas fornece uma justificação permanente para compreensão da posição de Nietzsche dentro da totalidade da tradição filosófica. O Filósofo da Floresta Negra procede, todavia, em conformidade, no decorrer do seminário, estabelecendo uma diferença entre a consideração científica e pensamento filosófico, ou seja, entre a conceituação científica e filosófica na orientação da análise do conceito de “vida” em Nietzsche. Desse modo, a interpretação é guiada pela hipótese de que “vida” é a leitwort da Segunda Extemporânea, assim como de toda a filosofia de Nietzsche7. Mas, segundo o autor de Ser e Tempo, o conceito de “vida” é ambíguo em Nietzsche, pois significa o ser em sua totalidade e o modo de ser do ser particular, cuja vida é a humana. O ser compreendido como o ser humano, como em toda a tradição filosófica, a metafísica não é superada, porém ratificada. Para Heidegger, o homem continua sendo um animal racional: a única novidade é a ênfase dada à corporalidade, mas que, para ele, não é suficiente para se ir além de Descartes. A concepção do sujeito como ego vivo8 é a justificação como o mais alto representante da vida e da verdade como um erro necessário da vida, que Heidegger atribui a Nietzsche, contudo é válido apenas como conclusão da metafísica moderna, ou como uma (possível) transição para outro começo, mas não como um (real) outro começo9, e é por isso que ele afirma: “A principal questão sobre a Segunda Consideração Extemporânea de Nietzsche não é a desvantagem ou a utilidade da história, mas a compreensão da vida como a realidade básica no sentido de uma biologia cultural ”10. Para ele, Nietzsche não consegue a superação da metafísica nem uma investigação detalhada da história, porque ele não pensou a história da História, isto é, a essência do homem, e a sua relação com a verdade do ser.

Na nossa compreensão, a interpretação esquemática de Heidegger, tão entusiasmadamente defendida pelos heideggerianos, para analisar a história da filosofia a partir da sua Seinsgeschichte, reduzindo-a à história da metafísica, não é satisfatória para a análise da Segunda Extemporânea. Atualmente, na Nietzscheforschung, a interpretação dominante desse ensaio tende a arrefecer justamente a carga metafísica do texto nietzschiano, tão enfatizada por Heidegger, mesmo que ainda sobre ele reverbere teses metafísicas da obra inaugural. Em o Nascimento da Tragédia, Nietzsche havia se posicionado radicalmente crítico em relação à infecundidade criativa do que então chamou de metafísica racional, caracterizada pela crença otimista na capacidade da razão em alcançar um conhecimento objetivo que consolaria o ser humano da sua condição de finitude e fraqueza, e, como alternativa, defendeu também uma “metafísica de artista” em que valoriza os efeitos ilusórios e criativos da arte como forma superior de compreensão do mundo. A repercussão da crítica à metafísica racional na Segunda Extemporânea recai sobre o tratamento caudal científico da historiografia como um rebento moderno da racionalização humana. Portanto, o diagnóstico de que os males da cultura se devem à hipertrofia do sentido histórico apresentado nesse tratado depende da tese peculiar do Nascimento da Tragédia, segundo a qual há na modernidade uma hipertrofia dos impulsos cognitivos que impossibilita uma cultura realmente autêntica e elevada. Por isso, para Nietzsche, os interesses teóricos predominaram sobre quaisquer outros interesses, produzindo, consequentemente, um desequilíbrio vital que ele, em oposição, apresentou como superior o caráter criativo e ilusório da arte. É nesse sentido que ele propõe, na segunda de suas Extemporâneas, uma escrita da história como recriação artística do passado, que pode ser compreendida como a “força plástica”, como alternativa à tendência racionalista, predominante na historiografia alemã de sua época, sem, contudo, recorrer à própria metafísica, como fez na obra inaugural. Argumentando a respeito de como seria possível medir até que ponto é salutar lembrar e em que momento é vital esquecer, Nietzsche descreve o conceito de força plástica, diz ele:

A fim de determinar esse grau e, por meio dele, o limite do que deve ser esquecido, para que o passado não se torne o coveiro do presente, se deveria saber exatamente quão grande é a força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura, quero dizer, aquela força que cresce a partir de si mesma, transformando e incorporando o passado e o estranho, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma formas arruinadas (HL/Co. Ext. II, KSA 1.251).

Portanto, como capacidade de assimilação e resignação em relação ao passado como perda e alteridade, a força plástica habilita a memória a lembrar e esquecer, na exata medida, sem sobrecarregar-se de lembranças.

Nietzsche está, portanto, na busca de um saber filosófico que não seja nem filosofia da história nem história universal tal como já havia rejeitado Burckhardt nas primeiras linhas de suas Considerações sobre história universal:

Nós nos abstraímos de toda sistemática; não revindicamos nenhuma “ideia de história universal”, contentaremos em registrar nossas percepções e realizar uma série de cortes transversais ao longo da história na maior quantidade possível de direções; nós não oferecemos aqui nenhuma filosofia da história. Esta é um centauro, uma contradictio in adjecto, pois a história que coordena é a negação da filosofia, enquanto a filosofia que subordina é a negação da história.11

Ele busca uma base a partir da qual seja possível um saber que vincule a orientação à ação, pois nem a metafísica e nem a ciência – compreendida como ciência histórica -, podem mais oferecer tal nexo.

A tradução que André Itaparica apresenta de Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, recém-publicada pela editora paulista Hedra, ao público de língua portuguesa, sem querer desmerecer as outras, que são meritórias em diversos aspectos, é a mais completa e bem sucedida tradução desse tratado de Nietzsche que nos permitirá um grande avanço, renovando as pesquisas, possibilitando outras compreensões que nos desamarrem das antigas e viciadas interpretações. Elaborada com acribia, a tradução soluciona alguns problemas sintáticos que dificultavam a compreensão semântica de diversas passagens, consolida também o estabelecimento de alguns termos chaves, como, por exemplo, o mais emblemático, Unzeitgemässe, como extemporâneas que era frequentemente traduzido, nas traduções anteriores, como intempestivas e, ainda, nos oferece um grande número de notas esclarecedoras. Sabemos que toda tradução é uma atividade árdua e desgastante, nem sempre reconhecida quando acertada e bastante criticada toda vez que mal executada. A princípio, para traduzir um texto não basta simplesmente transferir as palavras de uma língua para outra, tem de ter a capacidade de interpretar o significado de um texto em uma língua e a produção de outro texto em outra língua, mas que exprima o texto original da forma mais exata possível na língua de destino, mesmo que recaia sobre o tradutor a já repetida, ad nauseam, máxima italiana, em forma de jogo de palavras, que diz “traduttore, traditore” (“tradutor, traidor”), pois todo tradutor teria de trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada. Entretanto, pode-se garantir que, em se tratando de texto filosófico, a traição ocorrerá a partir do instante em que as ideias do autor do texto original forem distorcidas ou contrariadas no texto traduzido, ou seja, se ao comparar o nível e compreensão dos leitores das duas línguas for observado que há divergência quanto à compreensão das ideias. Nesse sentido, Itaparica não é traditore – como muito em voga, em todos os âmbitos da nossa cultura -, mas um traduttore e isto ocorre devido ser ele um conhecedor das duas línguas em jogo na tradução, o alemão e o português, além de ser um estudioso da filosofia de Nietzsche e, no caso específico do texto traduzido, eu diria, um perito, bastante familiarizado com os termos e temas nietzschianos ali expostos.

1Karl Hillebrand, ex-secretário de Heine, quem Nietzsche cita em EH (Cf. EH/EH. As Extemporâneas, 1, KSA 6. 318), devido a sua resenha favorável à Extemporânea I, publicada no Allegemeine Zeitung Augsburg, número 256-266, setembro de 1873, p. 256-266, publicou, depois, comentários às três primeiras Extemporâneas, na coletânea Zeiten, Völker und Mennschen. Strassburg, 1892, mas escrito em 1874-5. Nada indica que Nietzsche tenha conhecido o teor dos comentários à segunda e à terceira das suas Extemporâneas.

2Cf. Filosofía en Alemania (1831-1933). Trad. Española. Madrid: Ediciones Cátedras, 1991, p. 81.

3Cf. Der Fall Nietzsche: Aufsätze und Vorträge. 2. Auflage. München : Hanser, 1959, p. 44. (“Nietzsches verhältnis zur Historie”).

4Cf. Von Werken und Formen. Godesberg, 1948, p.432,

5HGA 46, 3.

6Cf. HGA 46, 6.

7Cf. HGA 46, 108

8Cf. HGA 46, 142 ss.

9Este seminário é contemporâneo à elaboração da obra Beiträgen zur Philosophie (Vom Ereignis), entre 1936 e 1938, e que só foi publicada postumamente, na qual Heidegger propõe a transição de Ser e Tempo para um “outro começo”, expressão muito utilizada por ele na época.

10HGA 46, 255.

11Cf. Weltgeschichtliche Betrachtungen. 2. Ausgabe. Berlin/Stuttgart: Verlag W. Spmann, 1910, p. 2. Embora, a primeira edição dessa obra seja 1905, trata-se das Vorlesungen de 1870-1871, ministradas em Basel e que Nietzsche havia assistido.

José Nicolao Julião – Professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, Brasil. Pesquisador 2 do CNPq. E-mail: jnjnicolao@gmail.com

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Representações, identidades e literatura na América Latina / Varia História / 2017

A presente edição da revista Varia Historia traz o dossiê “Representações, identidades e literatura na América Latina” com a finalidade de contribuir para o sistemático e profícuo debate sobre as interfaces entre a história e a literatura. O dossiê tem como objetivos apresentar um enfoque interdisciplinar, trazer perspectivas diferenciadas acerca do tema e colocar em destaque a percepção de que diferentes narrativas, história e literatura, podem ser construídas, quase sempre, nas fronteiras. Utiliza-se fronteira como um espaço privilegiado para estabelecer laços, trocas, intercâmbios e não como um dado rígido e intransponível. Aliás, a fronteira é também movediça e sofreu no passado diversos deslocamentos (Pomian, 2003). O diálogo do historiador com diferentes linguagens, como a narrativa literária, possibilita-o “sondar outros terrenos de linguagem, construídos em torno de outros fazeres interpretativos, de outras experiências narrativas” (Pinto, 2004).

As diferenças e semelhanças entre história e literatura já foram amplamente debatidas. Debate que privilegiou as discussões sobre os limites e as especificidades das narrativas historiográfica e ficcional. Embora partilhem de recursos literários comuns, história e a ficção possuem metas distintas, com diferentes resultados. O discurso ficcional põe a “verdade” entre parênteses, enquanto a história procura fixá-la como conhecimento sobre o passado, ou seja, prima pela busca da condição de veracidade. Luiz Costa Lima sustenta que ambas são modalidades discursivas que “mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”. Além do mais, cada uma, história e literatura, “ocupa uma posição diferencial quanto à imaginação”. A imaginação “atua na escrita da história, mas não é o seu lastro. Porosa, a história não há de ser menos veraz. Mas veraz, ela não pode pretender, como as ciências da natureza, a formulação de leis porque não pode renunciar à parcialidade”. A ficção tem fronteiras muito mais fluidas que a história e não tem limites para a imaginação. Portanto, do ponto de vista dos seus respectivos princípios de organização, história e literatura são formações discursivas que guardam suas especificidades.

Mesmo sendo formações discursivas diferenciadas, a literatura se nutre da história e a história, da literatura. Desde a epopeia antiga, observa-se que a história tem servido frequentemente de inspiração para as mais diferentes formas de produção literária, do poema épico às canções de gesta, do romance medieval ao romance moderno. Outro exercício possível, que se relaciona com o que foi dito, é a inserção da obra literária no contexto histórico em que ela foi produzida. Há uma interação do texto ficcional com o contexto ao qual ele se insere, isto é, a uma determinada época em que foi produzido. Para Dominick LaCapra (1983), é fundamental privilegiar a leitura de um texto literário em relação a seu contexto, articulando a obra com a formação social e cultural de seu autor e o momento histórico em que ela foi produzida. Desse modo, a literatura pode ser também compreendida como a expressão ou sintoma de formas de pensar e agir dos homens em um certo momento da história. Para o autor, ao analisarmos os textos literários, é mister compreendermos que, quase sempre, eles propõem articulações gerais com os grandes problemas do momento e tendem a deslocar-se das questões parciais e específicas para as perspectivas globais, instalando-se na esfera pública e ali construindo sua interlocução.

A escrita da história está em constante movimento e se adaptando às “demandas” e transformações do seu tempo. A introdução de novos temas, novos objetos e o uso de novas fontes, permitiu aos historiadores a construção de novas metodologias de investigação histórica e novos métodos de produção do conhecimento. O alargamento do caráter interdisciplinar — ou a aproximação com outras áreas do saber — permitiu ao historiador aprimorar ainda mais a produção historiográfica. O texto literário passou a ser incorporado às pesquisas históricas como mais uma forma de acesso ao passado. O presente dossiê, nessa perspectiva, coloca em destaque o entrecruzamento de temas, ideias e fronteiras.

Na América Latina, a literatura esteve e está em constante diálogo com a história. No século XIX, foram intensas as conjunções entre política, literatura e cultura em textos ficcionais produzidos durante os intensos debates sobre a construção das identidades nacionais e os projetos de nação. No século XX, não foi diferente: as vanguardas, com seus manifestos e polêmicas; as revoluções mexicana e cubana que despertaram o apoio e a crítica de muitos escritores; o fenômeno do boom da literatura latino-americana; e as ditaduras caribenhas, centro-americanas e do Cone Sul, com seus mecanismos de poder autoritários, contribuíram enormemente para aproximar, cada vez mais, a literatura da história. Diferentes escritores como José Mármol, José Martí, Andres Bello, Machado de Assis, Ezequiel Martínez Estrada, Oswald de Andrade, Mariano Azuela, Gabriela Mistral, Jorge Luis Borges, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Miguel Ángel Asturias, Pablo Neruda, Alejo Carpentier, Pedro Henríquez Ureña, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Clarice Lispector, Diamela Eltit, Héctor Libertella, Jorge Volpi — e muitos outros —, são exemplos de escritores que, a partir de diferentes concepções estéticas e diferentes formas discursivas, aproximam ficção e história e nos levam a compreender que a literatura está em constante diálogo com as tradições e a modernidade, com as mudanças socioculturais, com as representações e construções identitárias, com os ideários políticos. Uma literatura que, de um modo geral, se quis realista, militante, utópica, mágica, ciclópica e mítica, mas que nunca perdeu seu diálogo, mesmo que, às vezes, em filigranas, com a história.

Pensar literatura e identidades na América Latina pressupõe pensar também a história da literatura, não somente para compreende-la ou revisá-la, mas como uma forma de acesso ao passado. Importantes empreendimentos para compreender a história da literatura na América Latina foram realizados por pesquisadores e críticos literários, e também da cultura, com o intuito de compreender as realidades latino-americanas — em diálogo com as realidades nacionais — como Angel Rama, Antônio Cândido, César Fernández Moreno, Bella Josef, José Miguel Oviedo, Rafael Gutiérrez Girardot, Ana Pizarro, Alfredo Bosi e tantos outros. As ideias de Rama e Cândido, em especial, tiveram o mérito de demarcar a preponderância da escrita literária para a formação das sociedades latino-americanas.

Os artigos que compõem o dossiê abordam temas como as capacidades imagéticas e representativas dos textos literários em suas relações com a história, as conexões texto-contexto, os vínculos com a cultura e a política, as dinâmicas criativas dos textos e os posicionamentos públicos de intelectuais latino-americanos. O resultado é a constituição de um dossiê formado por três densos artigos que abarcam temáticas variadas, apoiadas em fontes como romances, contos, poemas e ensaios.

No primeiro artigo, “Identidades erosionadas: literaturas latinoamericanas, de la espacialidad ontológica a la atopía”, Cláudio Maíz mostra como a literatura se constituiu como um importante espaço para expressar diversas identidades: das mais ontológicas às étnicas, sexuais e ecológicas. No século XXI, diferentemente do século XIX, e mesmo de grande parte do XX, as espacialidades e as tradições deixaram de ser os marcos referências para construções identitárias mais “homogêneas”. Em sua análise, o autor explora desde os textos sarmentianos e martianos, produzidos nos oitocentos, aos textos polêmicos da Geração de McOndo e do Manifesto Crack mexicano produzidos mais recentemente.

Indagar por que e como o ensaio se tornou, a partir da década de 1970, um espaço por excelência para compreender e definir a literatura latino-americana é o propósito do artigo “Literatura latino-americana e representatividade cultural. Uma leitura dos ensaios de Héctor Libertella e Jorge Volpi”, de Ana Cecília Arias Olmos. A autora analisa os ensaios do escritor argentino Héctor Libertella e do mexicano Jorge Volpi como importantes estratégias discursivas que contribuíram para a “descentralização de uma noção ideologizada da literatura latino-americana que a sujeitou a funções de representatividade cultural”, exemplificada, principalmente, pela narrativa do boom e do “macondismo”.

O escritor uruguaio Juan Carlos Onetti é o centro da análise de Júlio Pimentel Pinto no artigo “Sobre fantasmas e homens: passado e exílio em Onetti”. Como o próprio título sugere, o foco da análise é compreender, por meio dos contos “La casa de la desgracia” (1960) e “Presencia” (1978), como o escritor abordou, nos respectivos contos, temas recorrentes, tais como o passado, a memória, o tempo e o exílio, com o intuito de problematizar as fronteiras e os diálogos entre história e ficção.

Para finalizar, agradeço a todos os que colaboraram com a viabilização do dossiê e saliento que o intuito foi o de despertar inquietações para além das fórmulas já consagradas de pensar as interações entre história e literatura. Espero que a leitura dos textos que o compõem possibilite reflexões enriquecedoras para a construção de novos conhecimentos e a ampliação dos debates sobre o tema.

Referências

LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Ithaca / London: Cornell University Press, 1983. [ Links ]

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [ Links ]

PINTO, Júlio Pimentel. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. [ Links ]

POMIAN, Krzysztof. História e ficção. Projeto História, n. 26, p.11-45, 2003. [ Links ]

Adriane Vidal Costa – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: adrianeavc@gmail.com


COSTA, Adriane Vidal. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.33, n.62, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista – INGRÃO (RTA)

INGRAO, Christian. Crer e destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. Resenha de: BECHER, Franciele. Por uma antropologia das emoções do nazismo. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.482‐487, maio/ago., 2017.

A proposta de fazer uma “história das emoções” do nazismo pode parecer, em um primeiro momento, desconfortável. E isso ocorre, sobretudo, porque a representação mais recorrente do nacional‐socialismo sempre liga os seus atores a ações brutais, cegas e fanáticas. A imagem cristalizada do nazismo enquanto um caso de violência definitiva muitas vezes leva os historiadores a definirem categorias conceituais imprecisas ou genéricas, já adaptadas ao discurso que normalmente é utilizado no estudo dos regimes autoritários.

O livro de Christian Ingrao, historiador francês ligado ao Centre national de la recherche scientifique (CNRS) e antigo diretor do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP), procura traçar os itinerários profissionais e militantes de cerca de 80 intelectuais e acadêmicos que fizeram suas carreiras em órgãos de repressão ligados à Ordem Negra, a SS, ao Serviço de Segurança (SD), ou ao Gabinete Central de Segurança do Reich (RSHA).

Em comum, todos os sujeitos analisados têm a participação nas missões de repressão, combate e ocupação do Leste europeu, seja nas campanhas da Polônia ou da União Soviética, ao longo da Segunda Guerra Mundial. Muitos deles estiveram implicados diretamente nas matanças efetuadas pelas forças‐tarefa dos Einsatzgruppen, e nas medidas implantadas na organização do genocídio de milhões de judeus e outras vítimas eslavas.

Através dos pressupostos teóricos da antropologia social das emoções e da história cultural, e utilizando uma vasta gama de fontes e arquivos, que inclui narrativas de vida dos akademiker, suas trajetórias profissionais, documentações dos órgãos dos quais faziam parte e seus depoimentos nos julgamentos do pós‐guerra, o autor consegue traçar um panorama competente sobre as representações de mundo desses intelectuais.

Fugindo de uma análise funcionalista das instituições e de sua incidência sobre os comportamentos, Ingrao tece o esboço sobre a forma como esses sujeitos conseguiram aliar seu rigor científico às exigências da militância nazista, criando grades de leitura do mundo e discursos de legitimação que deram suporte aos massacres e ao genocídio.

Fruto da tese de doutorado do autor, escrita entre 1997 e 2001, na Universidade de Amiens (« Les intellectuels du service de renseignement de la S.S, 1900‐1945 »), o livro toma como ponto de partida a apreensão do nazismo enquanto um sistema de crenças que combina práticas e discursos frutos de políticas públicas e institucionais, mas que também são percorridos por uma gama de emoções que vão da angústia à utopia, passando pelo ódio, crueldade e desespero, e que não podem ser apreendidas dentro dos paradigmas clássicos da política e da sociologia. Ingrao procura compreender em que medida as experiências vividas por esses intelectuais foram capazes de modelar seu sistema de representações, criando eixos de consentimento que os levariam, no futuro, a legitimar a violência extrema.

Partindo da herança de historiadores da Primeira Guerra Mundial, sobretudo do seu orientador de tese, Stéphane Audoin‐Rouzeau, que trabalhou com as experiências infantis ligadas ao conflito, o autor procura apreender a militância nazista desses intelectuais como uma reação à experiência matricial de 1914‐1918, cuja coerência entre discursos e práticas se encarnou em suas trajetórias e carreiras. Em suma, procura compreender como esses homens fizeram para crer e, por consequência, destruir. Sujeito de pesquisa inquietante, sobretudo porque confronta o fato de que setores da alta excelência acadêmica alemã atuaram diretamente em um dos mais atrozes regimes autoritários, servindo‐se, inclusive, das Ciências Humanas e, em particular, da História, como legitimadoras desses processos.

O livro é organizado em três partes: na primeira delas, Ingrao traz três capítulos sobre a experiência matricial da Primeira Guerra Mundial, e de como toda a cultura do “mundo de inimigos” e da crença no papel defensivo da Alemanha no conflito, mesmo que silenciada pelos akademiker, influenciou suas trajetórias e seus imaginários. Além disso, estabelece um panorama das instituições e dos saberes acadêmicos e militantes construídos pelos futuros oficiais entre os anos 1920 e 1930, quando turbulentas disputas políticas influenciaram nos seus sentimentos de angústia, e interferiram em suas escolhas e ambições científicas e, claro, nos seus engajamentos políticos dos anos seguintes.

Formando‐se como advogados, economistas, geógrafos, historiadores ou linguistas no pós‐guerra, muitos deles com formações universitárias multidisciplinares com alto desempenho acadêmico, esses jovens, vindos em sua maior parte das classes médias alemãs, encontraram na SS um organismo elitista que se distanciava das “hordas” do partido de massa, ou da atuação pragmática das tropas de assalto (SA). Através de diversos ritmos e itinerários de militância, entraram no jogo dos mecanismos institucionais da burocracia nazista, contribuindo para sua justificação científica e ideológica e, ao mesmo tempo, reforçando suas próprias leituras de mundo, profundamente marcadas por suas experiências de vida.

A segunda parte do livro, consagrada à internalização das crenças, à adesão ao nazismo e ao engajamento intelectual e ideológico dos jovens acadêmicos, analisa as fundamentações do dogma nacional‐socialista em sua profunda inspiração de refundação da Alemanha no aspecto sociobiológico e racial. Estudando a grade da leitura sociológica dos discursos dos intelectuais SS, Ingrao demonstra como a ideologia racial incidiu na própria reformulação da história alemã, transformando‐a em uma série de lutas, confrontos e combates identitários, todos marcados pelo selo da etnicidade.

Problematiza como a História e outras disciplinas se tornaram ciências combatentes de legitimação das crenças nazistas, justificando a guerra que estava por vir como um último combate pela salvação providencial do Império Alemão.

Ingrao foge constantemente da armadilha fácil de usar conceitos genéricos e imprecisos como o do “oportunismo” da ascensão hierárquica dentro da estrutura do Reich. Demonstra, no caso dos intelectuais SS, que havia inclusive uma tentativa institucional de frear esses interesses para proteger o ativismo e a militância. O processo de politização dos saberes dos akademiker aconteceu paralelamente à sua própria construção, e foi fortalecido com a criação de instituições como o SD e o RSHA, quando puderam aliar seu rigor científico às exigências da militância, imprimindo suas marcas nos serviços em que atuaram e participando de forma determinante na organização da repressão.

Por fim, na terceira parte da obra, Ingrao volta seus olhos à experiência de guerra no Leste europeu, onde as crenças e o fervor nazista foram empregados na legitimação da violência extrema e do genocídio. Os últimos cinco capítulos dão conta do imaginário construído em torno do novo “mundo de inimigos” eslavos, analisando a ritualística da violência, e as estratégias empregadas para colocar em prática os massacres. Além disso, finaliza avaliando as posturas dos intelectuais SS frente à derrota iminente, assim como suas estratégias de negação e reelaboração da memória nos julgamentos do pós‐guerra.

Para os nazistas, o “Leste” simbolizava uma tábula rasa na qual a germanidade poderia se modelar, ocupando o espaço de povos vistos como bárbaros e inferiores.

Dentro da retórica do “sangue e solo”, a experiência de guerra inaugurada com a invasão da Polônia em 1939, e intensificada com o ataque à União Soviética em 1941, se transformou em uma luta total contra o inimigo “judeu‐bolchevique”. O “imaginário de cruzada”, uma mescla entre fervor, utopia e guerra, forneceu a moldura justificativa para a violência que os soldados deveriam empregar, dentro de um discurso ansiogênico que instilava os comportamentos coletivos à matança.

Nesse contexto, a prática genocida se tornou uma condição da germanização, o fim último da utopia milenarista do nazismo. Representado como uma ação defensiva (pois era legítimo se defender dos agentes de destruição da germanidade, argumento semelhante ao usado pelas elites alemãs para justificar o conflito de 1914.), e visto sob a ótica da deploração (matar é um trabalho asqueroso, mas necessário), o genocídio ocorreu em meio a um investimento afetivo real dos intelectuais SS. A leitura nazista dos acontecimentos, elaborada, interiorizada e difundida pelos akademiker, constituiu então o cerne do mecanismo de radicalização e de consentimento aos massacres.

Por trás dos imperativos de produtividade e exaustividade que foram usados para colocar em prática os assassinatos em massa, estavam preocupações com um imaginário asséptico que pouparia psicologicamente os atores do massacre, limitando o seu efeito desestruturante e traumático. O estabelecimento de hierarquias na matança, e o próprio gestual da violência, refletiam o sistema cultural em que essas práticas foram forjadas.

Angústia, deploração, repulsa, ódio e gozo se confundiram nos discursos e atitudes dos que atuaram no Leste, experiência que funcionava como um “rito iniciático” para que os oficiais provassem seu grau de interiorização da crença nazista. Porém, apesar da dimensão traumática exteriorizada nos comportamentos de vários oficiais, nunca houve ruptura com o consentimento à matança, e isso se deu em função do acompanhamento do discursivo legitimador, da sistematização dos gestos e dos processos de adaptação empregados.

Face à derrota iminente, os intelectuais SS apresentaram diversas estratégias de escape, em uma distorção crescente entre os comportamentos e a realidade do front, mesmo que possam ser detectados indícios da escalada de suas angústias. Após 1945, boa parte dos akademiker passou por tribunais e comissões de “desnazificação”, em que procuraram realizar uma gestão da memória de guerra e da sua militância, usando diferentes estratégias de negação dos seus crimes ao longo dos julgamentos. A própria tese da “obediência incondicional” dentro da hierarquia nazista, utilizada pelos historiadores durante muito tempo para analisar os comportamentos dos atores do genocídio, é decodificada enquanto um desses artifícios de despistamento utilizados intencionalmente pelos intelectuais julgados.

Publicado originalmente em 2010, pela Arthème Fayard, sob o título Croire et détruire. Les intellectuels dans la machine de guerre SS, a obra de Christian Ingrao demonstra que a interiorização do sistema de crenças nazista era muito mais um caso de fervor do que de cálculo político e militante. Mesmo que o livro não seja de fácil leitura (em função, sobretudo, da temática delicada, mas também em razão de certos aspectos da tradução brasileira), o autor guia habilmente o leitor pela intrincada burocracia dos órgãos nazistas, tecendo uma narrativa que foge de armadilhas conceituais psicologizantes ou abstratas. Apoiado por uma extensa bibliografia sobre o assunto em várias línguas, e por indicações de fontes impressas e de fundos arquivísticos, sua obra traz possibilidades teóricas de problematizar os diferentes níveis de instrumentalização dos saberes, o papel dos intelectuais, da educação e, particularmente, da ciência histórica na legitimação da violência e dos regimes políticos autoritários.

Franciele Becher – Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. Franciele.becher@gmail.com.

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Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias – RODRIGUES (RTA)

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias.Rio de Janeiro: Lamparina, 2016. Resenha de: BIAVA, Fernanda. Michel Foucault e os diferentes impactos nas vindas para o Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.9, n.21, p.488‐493, maio/ago., 2017.

Passados 32 anos da morte de Michel Foucault, podemos perceber como sua vida e obra ainda têm uma grande relevância em diversas áreas de pesquisa. Foucault foi um intelectual que realizou trabalhos em diferentes espaços, como o da história da loucura, envolvendo saberes psiquiátricos e dialogando com profissionais destas instituições; estudou e se envolveu com estudos sobre prisões, como sua participação no GIP (Groupe d’information sur les prisons) e como resultado deste trabalho publicou o livro “Vigiar e Punir” no ano de 1975, sem contar com seus estudos sobre discurso, arqueologia, genealogia, biopolítica, que reverberam até os dias atuais. As diferentes direções que Foucault tomou durante sua vida, seus estudos, acabaram chamando atenção não só da comunidade acadêmica, mas envolvendo outros setores sociais, o que resultou em uma vigilância constante nas suas viagens para o Brasil por parte dos militares, já que o país, durante o período das cinco vindas de Foucault ao país, estava sob um período de regime militar. A obra Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias, da autora Heliana de Barros Conde Rodrigues acaba por tratar sobre esses casos, sendo publicada em 2016, pela editora Lamparina.

Heliana de Barros Conde Rodrigues é doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Sua experiência principal é na área de Psicologia Social, com ênfase em História da Psicologia. Dedica‐se especialmente aos seguintes temas: práticas grupais, análise institucional, desinstitucionalização psiquiátrica, história oral, genealogia foucaultiana e estudos sobre produção de subjetividade. Atualmente é professora do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vinculada ao Programa de Políticas Públicas e Formação Humana na UFRJ.

O título do livro refere‐se, de forma simples e direta, ao que pode se esperar da obra. Este trabalho é a reunião de nove ensaios, anteriormente já publicados, mas que foram ligeiramente modificados, para evitar repetições excessivas. De forma simples, o livro aborda as cinco vindas de Michel Foucault ao Brasil (1965, 1973, 1974, 1975 e 1976), e o impacto, efeito e ressonâncias da sua presença no país. É prefaciado por Enrnani Chavis e traz a assinatura de Edson Passetti no posfácio.

A organização do texto segue uma ordem cronológica, mas que em alguns momentos acabam por dar um panorama geral de todas as estadas de Foucault no Brasil para facilitar a compreensão de alguns comentários feitos em colóquios recentemente.

Uma metodologia interessante utilizada por Rodrigues foi utilizar palavras‐chave nos títulos dos capítulos, estabelecendo uma relação entre o título e o conteúdo.

No primeiro capítulo “Michel Foucault no Brasil: esboços de história do presente”, a autora inicia o texto traçando um panorama geral sobre as viagens de Foucault pelo Brasil, desta forma nos auxiliando para as leituras conseguintes.

“Um (bom?) departamento francês de ultramar: Michel Foucault na USP, 1965” é o título do segundo capítulo, no qual a autora vai destrinchando, com mais detalhes e informações, essas viagens. No ano de 1965, Foucault era convidado para vir ao Brasil pela Universidade de São Paulo (USP), onderealizaria suas conferências na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), que durante um longo período,iniciado na década de 1930 (com a abertura da universidade) até as vindas de Foucault, foi responsável por um “intercâmbio cultural com a França” (2016, p. 30). Michel Foucault se deparou com um cenário político conturbado, e com a recente mudança na política brasileira. Suas palestras seriam realizadas na FFCL‐USP “onde o movimento estudantil era forte e contava com o apoio de inúmeros professores” (2016, p. 37).

No terceiro ensaio, “Da importância de não ser filósofo: um certo Clima e a docência de Jean Maugüé”, Rodrigues foca principalmente no Grupo Clima (1930‐1940), que era formado por jovens, muitos da FFLCH‐USP, que, reunidos, começaram a publicar a revista Clima, que tratava sobre temas do “cotidiano, livros, filmes, peças de teatrais, inovações científicas” (RODRIGUES, 2016, p. 50). Esse grupo teve grande influência dentro da USP, como a expansão do curso de Letras, implementação de pós‐graduação nessas áreas, entre outros pontos positivos. Um ponto interessante a citar é que não existe registro de conversas e/ou convívio entre Foucault e os participantes do grupo.

Esse ensaio foca também na figura de Jean Maugué, que teve grande influência na expansão da FFCL‐USP, assim como o Clima. Quando Michel Foucault chegou no Brasil, o grupo não existia mais, mas as consequências positivas na USP permaneciam.

Provavelmente Foucault e Maugué nunca tenham se visto, mas a hipótese da autora é de que teriam muito em comum. “Cromos, Kairós, aión: temporalidade de uma visita de Michel Foucault a Belo Horizonte” trata sobre a segunda vinda de Foucault, que ficou em Belo Horizonte, no ano de 1973. Rodrigues disserta sobre a postura do intelectual nas suas palestras, que surpreendia a todos que iam vê‐lo falar, pois, “ao invés de proferir uma conferência, convida a todos a formular perguntas ou a comunicar suas experiências” (RODRIGUES, 2016, p. 61). Durante sua visita, ocorreram problemas com uma imprensa, a qual a autora nomeia de “imprensa complicada”, e que seria formada por jornalistas invasivos, que incomodavam Foucault com flashes e comentários sobre o intelectual ser grosseiro.

O quinto capítulo, “Uma medicina sempre social? Efeitos foucaultianos no Rio de Janeiro, 1974” marca a sua terceira visita ao Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorreram seis conferências no Instituto de Medicina Social (IMS). Foucault esteve ligado a grupos de saúde no Brasil e “tudo isso nos leva a pensar que os temas discutidos com os profissionais da medicina social constituíam, à época, problematizações cruciais” (2016, p. 79), e convida a pensar na medicina como um corpo social, “o corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2014), dialogando com o conceitos que o autor utiliza.

O sexto ensaio, “Michel Foucault na imprensa brasileira: ‘cães de guarda’, ‘nanicos’ e o jornalismo radical”, é marcado pela discussão sobre a imprensa brasileira, momento em que a autora se apropria de expressões de Foucault como “práticas divisórias” para tratar a respeito de uma cisão na imprensa brasileira, que estava dividida entre os “cães de guarda” que apoiavam a ditadura, e os “nanicos” que seriam a imprensa alternativa, e que eram oposição ao governo militar. Neste texto, ela fala da quarta vinda de Foucault, que “na segunda‐feira, 27 de outubro, após o funeral de Vlado, irrompe uma greve na USP. Foucault suspende seus cursos” (2016, p. 93), lançando mais atenção sobre o posicionamento político de Foucault, estando a polícia a vigiá‐lo, e mesmo ele tendo essa suspeita permaneceu no país, participou da manifestação na Praça da Sé (São Paulo) e se uniu a milhares de pessoas pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog.

O sétimo texto, “Um Foucault desconhecido? Viagem no Norte‐Nordeste em tempos (ainda) sombrios”, falará da última visita de Foucault, que foi ao norte e ao nordeste do Brasil. Nesta vinda, sua “última estada em nosso país, entretanto, prossegue praticamente ignorada” (2016, p. 106), a autora apresenta o receio que o pesquisador tinha de voltar ao Brasil, por se sentir vigiado pelas autoridades e pelo país ainda viver em um regime militar. Nessa visita, Foucault acabou não gerando muito impacto ou comentário pela imprensa, levando então o título de “Foucault desconhecido” .

No oitavo ensaio, “Para além das categorias sociológicas: ressonâncias do pensamento foucaultiano no Brasil”, Rodrigues vai finalizando seu pensamento e falando sobre as ressonâncias do pensamento de Foucault no Brasil.

Por último, “Anarqueologizando Foucault”, encerra o livro com a relação entre Foucault e o anarquismo.

Minhas críticas ao livro são exíguas, mas necessárias de serem pontuadas. Primeiramente, a obra é de uma leitura acessível e tranquila, com um conteúdo único, mostrando Michel Foucault além de suas obras, como uma pessoa sensível a diversas causas. Entretanto, compreendo que Rodrigues acabou sendo muito repetitiva nas informações; muitos fatos são contados repetidas vezes, mesmo que na primeira parte do texto a autora tenha colocado que evitaria isso, entendo que ainda houve um excesso, como o fato de citar diversas vezes a impressão que Foucault tinha de estar se sentindo vigiado ou sobre o filósofo não se relacionar bem com a imprensa. De toda forma, o livro surpreende pelo seu conteúdo factual e pelo uso de diferentes fontes sobre as visitas de Michel Foucault ao Brasil, como revistas, jornais, fontes orais.

Por fim, o livro parece importante e bastante relevante para os trabalhos contemporâneos. Percebi nesta obra as posições políticas do intelectual Michel Foucault, com o aprofundamento das suas pesquisas e expansão de campos de estudo, como também as suas publicações e as atuações nas visitas ao país. Concluo meu texto com uma fala muito pertinente de Foucault sobre o poder das ideias que “são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonadas do que pensam os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e à explosão de sua força” (1994, p. 707). Michel Foucault fez diversos questionamentos na sua época, mas cabe a nós, críticos do nosso presente, intensificar esses estudos frente aos novos problemas.

Referências

FOUCAULT, Michel. Les reportages d´idées, Dits et écrits III, Paris: Gillimard, 1994.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

RODRIGUES, Heliana de Barros Conde. Ensaios sobre Michel Foucault no Brasil: Presença, efeitos, ressonâncias. I edição ‐ Rio de Janeiro: Lamparina, 2016.

Fernanda Biava – Mestranda no Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil biavafernanda@gmail.com

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Traduzione, transcreazione, saggi – CAMPOS (A-EN)

CAMPOS, Haroldo de. Traduzione, transcreazione, saggi. Tradução e organização de Andrea Lombardi e Gaetano D’Itria, Nápoles: Oèdipus/Fundação da Biblioteca Nacional, 2016. Resenha de MULLER, Fernanda Suely; BURNELLO, Yuri. Traduzione, transcreazione, saggi, Alea, Rio de Janeiro, v.19 n.2, may./aug., 2017.

A obra que ora vem a lume pela Editora napolitana Oèdipus, organizada e traduzida para o italiano por Andrea Lombardi e por Gaetano D’Itria, consiste na publicação de ensaios críticos de Haroldo de Campos na e para a Itália. Tal operação editorial objetiva tornar conhecida aos leitores italianos a faceta de crítico e teórico da literatura de um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX, para além de sua relevância como poeta contemporâneo.

A produção lírica de Haroldo de Campos se tornou conhecida na Itália sobretudo através do poeta Lello Voce que, no ano de 2005, organizou o volume L’Educazione dei cinque sensi (CAMPOS, 2005), coletânea de poemas do escritor brasileiro traduzidos por Daniela Ferioli. Somando esforços àqueles de Lello Voce, Andrea Lombardi – docente de Literatura italiana na UFRJ – tem se dedicado a difundir com afinco todas as nuances da ligação haroldiana com a Itália, tendo especialmente como leitmotiv a produção crítica e poética feita a partir do diálogo entre a visão estético-linguística de Haroldo de Campos e a arte de escritores de língua italiana. Uma das primeiras incursões de Lombardi nesse sentido tinha sido a organização de um livro dantesco de Haroldo de Campos, intitulado Pedra e Luz na poesia de Dante (CAMPOS, 1998), cuja ideia central, de certa forma, é continuada pela editora italiana Oèdipus. Com efeito, Traduzione, transcreazione, saggi avulta ainda mais pelo fato de que muitas das questões oferecidas ao público italiano por Andrea Lombardi e Gaetano d’Itria têm como temática principal a difusão de autores do cânone italiano, como Dante, Giacomo Leopardi ou Giuseppe Ungaretti. O rigor de tal desafio intercultural é confirmado pela participação no volume de dois intelectuais italianos de renome, como Umberto Eco – cuja contribuição constitui um dos últimos textos antes do falecimento – e Piero Boitani, professor titular de Literatura comparada na Università “La Sapienza”, de Roma, que assinalam respectivamente a importância do volume na introdução e na contracapa da publicação.

Traduzione Transcreazione Saggi é composto por sete textos de Haroldo de Campos anteriormente publicados e republicados alhures em português. Aos textos haroldianos, somam-se um capítulo sobre observações acerca da particularidade de traduzir Haroldo de Campos – Nota del traduttore – e, por fim, um posfácio de Andrea Lombardi, no qual o organizador escrutina a atividade e as especificidades de Haroldo de Campos enquanto tradutor em Una condizione babelica – Haroldo de Campos traduttore.

Se na Introdução Umberto Eco relata as suas conexões estabelecidas com Haroldo de Campos desde o ano de 1962, o capítulo inaugural La nuova estética di Max Bense discorre sobre as ideias do filósofo e crítico alemão Max Bense acerca da distinção entre a informação documentária, informação semântica e informação estética, no bojo do experimentalismo artístico-concreto, do qual Max Bense fora protagonista – juntamente com Haroldo de Campos e os outros integrantes de Noigandres – em meados da década de 1960. É necessário destacar a tessitura de Haroldo de Campos concernente ao tema que é igualmente um dos pontos nevrálgicos de sua produção enquanto artista, crítico e intelectual, que transpassa as questões relativas aos limites de uma tradução concebida como equivalente ao texto de partida (por isso, justamente, o uso, desde o título, do adequado vocábulo transcreazione, em português, “transcriação”).

Com efeito, tanto no ensaio supracitado quanto no capítulo Della traduzione come creazione e come critica, Haroldo de Campos apresenta ao leitor propostas desafiadoras no que diz respeito às problemáticas encontradas ao traduzirem ou “transcriarem” de suas línguas maternas escritores como Guimarães Rosa ou James Joyce. O transcriador “babélico” (CAMPOS, 2016: 162) – para mencionar uma das definições que Andrea Lombardi fornece de Haroldo de Campos – não se limita a exemplos de escritores em língua portuguesa, mas analisa soluções possíveis, tais quais a interpolação de versos alheios ou os “arrevesamentos sintáticos” (CAMPOS, 2016: 39CAMPOS, 2013: 10)3, encontradas por críticos-tradutores como Ezra Pound, teórico do make it new, da tradução como re-criação, ou Manuel Odorico Mendes, autor de “traduções-transcriações”, que “na história criativa da poesia brasileira […] tem um lugar assegurado” (CAMPOS, 2016: 42CAMPOS, 2013: 11-12).

Sendo o primeiro capítulo a abordar a literatura italiana em si nessa compilação de Andrea Lombardi e Gaetano D’Itria, Ungaretti e l’estetica del frammento constitui uma espécie de resenha sobre o legado ungarettiano. Haroldo de Campos percebe uma certa “distinção” entre duas fases do poeta italiano, com particular atenção ao seu último período: o crítico sublinha justamente que o fragmentário se torna a “única forma possível de poesia no universo fraturado em que vivemos” (CAMPOS, 2016: 71CAMPOS, 1969: 87). Ao refletir que tal estética fragmentária se coloca como tema do fazer poético ungarettiano tanto pela constatação realizada a partir da leitura de alguma de suas obras – como Il Taccuino del Vecchio – quanto pela reiteração proposta pelo próprio autor em uma conferência proferida em 1966, o ensaio Ungaretti e l’estetica del frammento acaba instituindo uma ponte entre as soluções de Ungaretti e suas inovações expressivas – o “sentimento de surpresa” (CAMPOS, 2016: 73CAMPOS, 1969: 88), “o inesperado que punge” (CAMPOS, 2016: 73CAMPOS, 1969: 88) -, que tinham sido elaboradas no século XIX por Giacomo Leopardi, cujas propostas teóricas “seriam traduzíveis em termos da atual teoria da informação” (CAMPOS, 2016: 73CAMPOS, 1969: 88).

Extremamente pertinente se confirma a decisão dos organizadores ao escolherem, como ensaio sucessivo, uma intervenção de Haroldo de Campos especificamente dedicada a tal questão – provocativa na época, assim como ainda é nos dias de hoje; ou seja, o vanguardismo de Leopardi. Em Leopardi, teorico dell’avanguardia, à luz de uma possível “poética sincrónica” (CAMPOS, 2016: 77CAMPOS, 1969: 186), teorizada sob a influência de Roman Jakobson, Haroldo de Campos coaduna ao já citado poeta outros pares (Friedrich Hölderlin e Sousândrade), sublinhando pontos convergentes entre os três. Haroldo de Campos discorre igualmente sobre a dificuldade de sistematizá-los em alguma categoria precisa de análise, sem deixar de considerar, contudo, o papel de crítico exercido por Leopardi sobretudo em Zibaldone (e suas “antecipações” sobre alguns temas polêmicos como a oposição entre a linguagem da ciência e a linguagem da poesia). O autor arremata ainda o ensaio com uma proposta de tradução de uma das obras mais famosas de Leopardi, L’infinito.

Nos três capítulos subsequentes, Haroldo de Campos realiza uma incursão mais aprofundada nas sendas da literatura italiana, ao analisar aspectos fundamentais do principal expoente literário daquele país: Dante. Assim, como podemos inferir pelo próprio título, em Petrografia dantesca, o crítico abordará as rime petrose de Dante, considerando-as como o ápice da criação dantesca antes da Divina Comédia. As petrose representariam, para Haroldo de Campos, um momento-chave de realismo no repertório do poeta italiano. Todavia, o realismo de Dante sobre o qual Traduzione, transcreazione, saggi foca não têm nada de referencial: nada têm da consistência figural da mimesis auerbachiana nem da “homologia estrutural” de Lucien Goldmann. Haroldo de Campos se detém ao experimentalismo de alguns procedimentos das rime petrose, concluindo que “o realismo destes poemas acaba sendo, em última instância, um realismo de signos” (CAMPOS, 2016: 92CAMPOS, 1998: 22), celebrando, portanto, a materialidade dos significantes das rime petrose.

Já no quinto capítulo, Luce: la scrittura paradisíaca, Haroldo de Campos esmiúça aos leitores seu projeto de tradução-transcriação de alguns versos do Paraíso de Dante, nos quais o mesmo se preocupa com a “reconstituição da informação estética do original em português […], com o escopo de produzir um texto isomórfico em relação à matriz dantesca” (CAMPOS, 2016: 99CAMPOS, 1998: 67). Para completar a tríade dantesca, sem abandonar a vertente exegética semiótico-estruturalista, em Il Dolce Stil Novo: bossa nova nel Duecento, o crítico se volta ao frescor juvenil de Dante na Vita Nuova, analisando algumas de suas estratégias formais “precursoras” do modernismo e possíveis reflexos na produção de Thomas Stearns Eliot e Ezra Pound.

O derradeiro ensaio acerca da crítica haroldiana sobre a literatura italiana mais estilística e estruturalmente questionadora, Dal testo maccheronico al permutazionale tem como mote a antologia de literatura então recém-lançada e intitulada I Novissimi (GIULIANI, 1961). Ao abordar a produção dos poetas ali compilados (Elio Pagliarani, Alfredo Giuliani, Edoardo Sanguineti, Nanni Balestrini e Antonio Porta), Haroldo de Campos destaca a função da “poesia macarrônica” utilizada por alguns dos poetas, a qual assume no entendimento do autor uma função muito mais crítica e lírica do que puramente satírica, efeito ao qual muitas vezes o macarrônico é interligado.

As referências ao “permutacional” (CAMPOS, 2016: 131CAMPOS, 2013b: 137) remetem à cibernética, assim como muitas das categorias utilizadas por Haroldo de Campos na interpretação dos escritores italianos estudados em Traduzione, trascreazione, saggi reenviam o leitor à teoria da informação, à semiótica de Max Bense, à linguística estrutural de Roman Jakobson, ou seja, a fenômenos hermenêutico-culturais de enorme relevância histórica, apesar – em parte de suas premissas e conclusões – ultrapassados. Oportunamente, Andrea Lombardi, no seu posfácio, acaba atualizando muitas das visões haroldianas, colocando-as dentro de uma perspectiva pós-estruturalista ou no âmbito das mais recentes aquisições dos estudos da tradução. À guisa de conclusão, o que ainda permanece viva é a solidez das intuições críticas de Haroldo de Campos, uma vez abstraídas dos paradigmas teóricos dentro das quais foram concebidas.

No ano de 2005, Gianni d’Elia deu ao seu estudo L’eresia di Pasolini o subtítulo de L’Avanguardia della tradizione dopo Leopardi (D’ELIA, 2005), para indicar que a escolha de uma forma em aparência tradicional tanto por parte de Pasolini quanto, anteriormente, por parte de Leopardi, tinha como pressuposto uma opção de ruptura cultural. Em 2016, Carlo Ossola, titular da cátedra de Literaturas modernas no Collège de France, publicou uma monografia sobre Ungaretti, Ungaretti, poeta (OSSOLA, 2016), na qual elogia a poesia ungarettiana pela sua “responsabilidade cósmica da palavra poética, herdada de Leopardi, para que nós possamos acompanhar o caminho deste século perdido” (OSSOLA, 2016b: 28, tradução nossa). No final da década de sessenta, Haroldo de Campos já tinha percebido na poesia leopardiana a presença de uma “fratura ideológica entre o ponto de vista clássico e o romântico antes se configurar na linguagem no nível do significado que no do significante” (CAMPOS, 2016: 78CAMPOS, 1969: 186), bem como assinalara a metafísica leopardiana do inacabado como representante da “raiz autóctone da poesia ungarettiana” (CAMPOS, 2016: 71CAMPOS, 1969: 87). Essas são somente duas das numerosas intuições hermenêuticas presentes em Traduzione, transcreazione, saggi que constituem prova irrefutável que, muitas vezes, os grandes críticos sobrevivem aos seus próprios métodos.

Referências

CAMPOS, Haroldo de. Traduzione, transcreazione, saggi. Tradução e organização de Andrea Lombardi e Gaetano D’Itria. Nápoles: Oèdipus/Fundação da Biblioteca Nacional, 2016. [ Links ]

____. Transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013a. [ Links ]

____. A ReOperação do texto. São Paulo: Perspectiva, 2013b. [ Links ]

____. L’educazione dei cinque sensi. Tradução de Daniela Ferioli e organização de Lello Voce Pesaro: Metauro, 2005. [ Links ]

____. Pedra e Luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, 1998. [ Links ]

____. A Arte no Horizonte do Provável. São Paulo: Perspectiva, 1969. [ Links ]

D’ELIA, Gianni. L’eresia di PasoliniL’Avanguardia della tradizione dopo Leopardi. Milão: Effigie, 2005. [ Links ]

GIULIANI, Alfredo (Org.). I novissimi. Milano: Rusconi Paolazzi, 1961. [ Links ]

OSSOLA, Carlo. Ungaretti, poeta. Venezia: Marsilio, 2016a. [ Links ]

____. Universi e fantasmi. Il Sole 24 Ore, Milano, n. 328, 2016b. [ Links ]

Notas

1Por convenção, por se tratarem de textos originalmente escritos em língua portuguesa, optamos por fazer a citação direta das obras originais e indicar, respectivamente, o número da página da edição italiana (objeto da resenha) e o número da página da edição brasileira. Nas citações subsequentes, que apresentam igual estrutura, adotamos o mesmo procedimento.

Yuri Brunello. Possui graduação em Letras pela Università di Genova (Itália) e mestrado em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Doutorou-se pela Università “La Sapienza” de Roma (Itália), em 2012. Atualmente é professor Adjunto de Literatura Italiana do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará. E-mail: ybrunelloomatic@gmail.com

Fernanda Suely Muller – Possui graduação em Letras português-italiano pela UNESP e mestrado e doutorado na USP. Atualmente é professora Adjunta de Língua e Literatura Italiana do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará. E-mail: fersmuller@gmail.com

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Galilée critique d’art | Erwin Panofsky

Once again, Erwin Panofsky returns to the publishing scene. In 2016, Galilee critique d’art was again published by Les impressions nouvelles. But, in fact, it is not just Panofsky’s return. In the French-speaking world, his text was hardly ever published alone. It was almost always accompanied by either Nathalie Heinich’s foreword or Alexandre Koyré’s review, or by these two works whose considerations gained a weight almost equivalent to Panofsky’s own text. On the one hand, Heinich elucidates, in the wake of Pierre Bourdieu, the fruitful method implied in the analyzes of the art historian. On the other, Koyré affirms and unfolds the reach of Panofsky’s statements that surpass his place of comfort, those based on the field of the history of the sciences, in which Koyré is considered an authority. And this is how the texts of Heinich, Panofsky and Koyré configure what comes to us as the book Galilee critique d’art.

In this work, Panofsky presents us with a series of statements that, in any way, could be included in the foreseeable assertions. It is in the midst of a disputatio over the superiority of painting or sculpture, a field where Leonardo da Vinci once engaged, which he places the mathematical physicist Galileo Galilei. In describing him, he does not speak of physical and astronomical theories, but of artistic tastes, he speaks of a character who knew by heart the latin classics, who loved Ariosto and repudiated Tasso, who was a designer and profound connoisseur of painting – even more inclined to study it than mathematics – who was a close friend of the painter Ludovico Cigoli, and for this very reason he was involved in the battle between the partisans of the painting and the sculpture, initiated in century XV. Leia Mais

Platon, Parménide et Paul de Tarse – FATTAL (RA)

FATTAL, M. Du bien et de la crise. Platon, Parménide et Paul de Tarse. Paris: l’Harmattan, 2016. Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. Revista Archai, Brasília, n.20, p. 355-360, Maio, 2017.

Michel Fattal is a member of the International Plato Society, lecturer since 1994 at the Université de Grenoble Alpes, a specialist on ancient and mediaeval philosophy. M. Fattal has published so far nineteen books and more than forty articles, most of them dealing with philosophical theories about logos, including the Pre-Socratics, Plato, Aristotle, the Stoics, Plotin, Saint Augustine, and the medieval reception of the Greek philosophy. “e academy of moral and political sciences awarded him the Charles Lyon-Caen Prize, rewarding him for the publication of Platon et Plotin, Relation, Logos, Intuition  (Paris, l’Harmattan, 2013). Michel Fattal is thus a most distinguished scholar and now he publishes a fine book on the good and the crisis, linking Plato, Parmenides and Paul of Tarsus. As is his style, Fattal builds his argument using short items, each from two to four pages each, on specific subjects, easing the task of the reader. Even though learned and fond of etymological turns, all the Greek quotes are transliterated in Latin letters and translated into French, so that even lay readers may understand his stand. “e volume also puts together papers to be delivered in 2016 in Brasília and Bologna.

The two key concepts are “to put together”(sundein) and “crisis”(krisis). Crisis comes from the Greek krisis, separation, and the verb krino means to split apart, and then to decide, to judge. From Parmenides to Paul o f Tarsus, krinein implies a norm or criteria for choosing what to do and what to avoid doing. Parmenides already proposed that critical reason, or logos, splits apart truth and opinion. Michel Fattal aims thus at studyi ng the critical logos of Parmenides and the noncritical logos of Paul of Tarsus. He starts by considering how the good is relational (desmos) at the Phaedo (99c5-6):

99 ξ τὴν δὲ τοῦ ὡς οἷόν τε βέλτιστα αὐτὰ τεθῆναι δύναμιν  οὕτω  νῦν  κεῖσθαι,  ταύτην  οὔτε  ζητοῦσιν οὔτε  τινὰ  ο ἴ ονται  δαιμονίαν  ἰσχὺν  ἔχειν,  ἀλλὰ ἡγοῦνται τούτου Ἄ τλαντα ἄν ποτε ἰσχυρότερον καὶ ἀθανατώτερον καὶ μᾶλλον ἅ παντα συνέχοντα ἐξευρεῖν, καὶ ὡς ἀληθῶς τὸ ἀγαθὸν καὶ δέον συνδεῖν καὶ συνέχε ιν οὐδὲν ο ἴ ονται. ἐγὼ μὲν οὖν τῆς τοιαύτης αἰτίας ὅπ ῃ ποτὲ ἔχει μαθητὴς ὁτουοῦν ἥ διστ ̓ ἂν γενοίμην: ἐπειδὴ δὲ ταύτης ἐστερήθην καὶ οὔτ ̓ αὐτὸς εὑρεῖν οὔτε παρ ̓ ἄλλου μαθεῖν οἷός τε ἐγενόμην, τὸν δεύτερον

99c the power which causes things to be now placed as it is best for them to be placed, nor do they think it has any divine force, but they think they cannd a new Atlas more powerful and more immortal and more all-embracing than this, and in truth they give no thought to the good, which must embrace and hold together all things. Now I would gladly be the pupil of anyone who would teach me the nature of such a cause; but since that was denied me and I was not able to discover it myself or to learn of  it from anyone else.

It is thus the good that embraces (sundei) and holds together (sunechei) everything. Plato (Phd. 99c5) puts together under a single article (to) agathon and deon, the good and necessary at once, considering that the verb deo  means to happen and to put together. “e good (agathon) is necessarily to put together. At the Phaedo the good is self-su cient as it is principle (arche) and cause (aitia), being thus relational cause and causal relation. Participation (methexis) means also to put together (metechein), so that the good is a bond at the heart of the human language. Fur- thermore, Fattal argues that in the Phaedo Plato ad- dresses not only the study of the vertical relationship, a hierarchical one, linking the sensible and the forms, but also the horizontal links that the forms establish among themselves, later developed in the Sophist. “e Phaedo extends the principle of mutual exclusion of direct contraries to indirect ones, proposes the rule of inclusion or inference enabling forms to be related to each other.

Michel Fattal turns then to Parmenides and to the origins of the crisis, especially his Poem (8 Fr. 50-52):

[50] Ἐ ν τῷ σοι πα ύ ω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθε ί ης· δόξας δ’ ἀπὸ τοῦδε βροτε ί ας μ ά νθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκο ύ ων.

50 Here shall I close my trustworthy speech and thought about the truth. Henceforward learn the opinions of mortals,  giving ear to the deceptive ordering of my words.  (English translation by John Burnet, 1892).

The goddess of the Poem is at the same time thea (goddess) and aletheia  (truth), urging the disciple to avoid opinion and preferring truth. So much so, that Parmenides, for the first time in western philosophy, considers that reason, or logos, has a function in relation to truth and critical assessment, enabling late r Greek philosophy to establish ontological and gnose o- logical hierarchies.

All those are the necessary steps conducing to a di¬erent Pauline reason, or logos, for it is a pneumatic one. Fattal concludes the study by focusing at th e First Letter to the Corinthians, dated around 56 AD and particularly comments a key excerpt:

Paul, 1 Corinthians 2, 14-16

14 ψυχικὸς δὲ ἄνθρωπος οὐ δέχεται τὰ τοῦ πνεύματος τοῦ θεοῦ, μωρία γὰρ αὐτῶ ἐστιν, καὶ οὐ δύναται γνῶναι, ὅτι πνευματικῶς ἀνακρίνεται·

15 ὁ δὲ πνευματικὸς ἀνακρίνει [τὰ] πάντα, αὐτὸς δὲ ὑπ ̓ οὐδενὸς ἀνακρίνεται.

16 τίς γὰρ ἔγνω νοῦν κυρίου, ὃ ς συμβιβάσει αὐτόν; ἡμεῖς δὲ νοῦν χριστοῦ ἔχομεν.

14 But a natural man does not accept the things of the Spir- it of God, for they are foolishness to him; and he cannot understand them, because they are spiritually appra ised.

15 But he who is spiritual appraises all things, ye t he himself is appraised by no one.

16 For who has known the mind of the LORD, that he will instruct him? But we have the mind of Christ.

New American Standard Bible

Paul proposes a spiritual conversion of the nous, intel- ligence, reason, intellect, so that the human being gets a superior understanding or judging capacity, and as such the spiritual human being discerns and judges (ankrinei) everything. This is thus the result of the conversion of the physical to the spiritual, enabling the spirit (pneuma) to foster critical discernment. Those proposals result also from the conflicts within the Corinthian church and they establish a non-critical reason or logos, in opposition to the critical one of Parmenides. The criteria proposed by Paul are spiritual, beyond and above the material world. Michel Fattal finisches the volume by questioning what he defines as nihilist approaches countering classical metaphysics, notably those thinkers of suicion, such as Freud, Nietzsche and Marx. Fattal does not consider that Freudian Subconscious, Nietzschean Der Wille zur Macht or Marxian infrastructure could explain and define humans, human values and conscience. Paul’s reason or logos, on the other hand, broadens human apirations, as it draws its strength from God, from love (agape), a superior grace. Michael Fattal concludes by stating that Paul’s methodical and dialectical reason or logos is valid for humans in any time. Michel Fattal relates classical ontology to Christian reasoning, opposing critical and non-critical, physical and spiritual reason pledging for the eternal value of a spiritual approached grounded on love. Not all modern scholars will agree wit his stand, but the main strength of the volume is in te in-depth analysis, of philosophical concepts from ancient to modern times.

Pedro Paulo A. Funari Du bien et de la crise. Platon, Parménide et Paul de Tarse Universidade Estadual de Campinas (Brasil). E-mail: ppfunari@uol.com.br

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Chora. Über das zweite Prinzip Platons – BARBARIC (RA)

BARBARIC, Damir. Chora. Über das zweite Prinzip Platons. Tübingen: Attempto Verlag, 2015. Resenha de: HERKERT, Felix. Revista Archai, Brasília, n.20, p.343-353, Maio, 2017.

Die platonische Chora ist in den letzten Jahrzehnten zunehmend ins Blickfeld der Interpreten gerückt. Dabei fällt auf, dass viele der zur Chora entstandenen Studien nicht aus der Feder von Altphilologen oder Spezialisten für antike Philosophie stammen, sondern von – nicht selten in den Fußstapfen Heideggers wandelnden – Phänomenologen. Es sei hier nur auf drei Aufsätze Nader El-Bizris (zwischen 2001 und 2004 publiziert)1, auf John Sallis’ Chorology (1999)2 sowie Günter Figals Kapitel zur Chora in seinem neuen Werk Unscheinbarkeit (2015)3 verwiesen, ganz zu schweigen von Jacques Derridas einschlägigem Text zur Thematik (1993)4. Was macht die Chora als Untersuchungsgegenstand philosophisch so interessant? Zunächst der Umstand, dass sie – seit der aristotelischen Umdeutung zur Hyle – innerhalb der platonisch-aristotelischen Tradition gleichsam von der Bildfläche verschwand. Im Rückgang auf die Chora lässt sich also, gegen die gesamte abendländische Tradition, ein bei Platon gedachtes, daraufhin sogleich der Vergessenheit anheimgefallenes Motiv wiedergewinnen und fruchtbar machen. Die Wieder-holung der Chora kann sich ferner verbinden mit der von Heidegger angestrengten Grundsatzkritik der Metaphysik, und zwar durch Bezugnahme auf eine Gedankenfigur, die von Heidegger selber erstaunlich selten thematisiert wurde.

Vor diesem Hintergrund lässt sich auch Damir Barbarics neue Studie zur Chora verorten. Diese beginnt kaum zufällig mit dem Hinweis auf den „anderen Anfang”(ἑτέραν ἀρχὴν), mit dem Platon im Timaios (48b2) die Passagen zur Chora als einer „dritten Gattung”neben dem Seienden und dem Werdenden einleitet. Barbarics These dazu lautet: „Wenn die »klassische”Lehre Platons, die im Laufe der Geschichte zum »Platonismus« als einer »ZweiWelten-Lehre”festgelegt wurde, das Wesen dessen ausmacht, was in Anlehnung an Nietzsche und Heidegger unter »Metaphysik”verstanden werden soll, dann könnte Platons »anderer Anfang« im Timaios sein bislang wenig beachteter, ja verkannter Versuch der »Überwindung« einer so verstandenen Metaphysik verstanden werden”(12). Platon erschiene demnach nicht nur als Begründer, sondern zugleich als erster möglicher Überwinder der „Metaphysik“. Die Grundintention liegt klar zu Tage: Platons „ anderer Anfang”wird gegen Heidegger mobilisiert, indem ein im Anfang der Metaphysik liegendes, von Heidegger nicht gesehenes Potential der Vergessenheit entriss en und  einer  ausführlichen  Interpretation  unterzogen werden  soll.  Der  Weg,  den  Barbaric  für  dieses Unterfangen einschlägt, ist nun ein von den anfangs genannten Studien grundsätzlich verschiedener. Wie schon der Untertitel des Buches – „ Über das zweite Prinzip Platons”– nahelegt, geht es ihm um eine prinzipientheoretische Interpretation der Chora, die sich  im  Rahmen  des  Tübinger  Platonparadigmas bewegt 5.  Die  Tragfähigkeit  dieses  Paradigmas  – demgemä ß  das  Dialogwerk  Platons  erst  vor  dem Hintergrund  der  sogenannten „ ungeschriebenen Lehre”seinen vollen Sinn entfalte – wird von Barba ric nicht grundsätzlich hinterfragt, vielmehr mit Blick auf die Chora zu entfalten und zu erhärten versucht. Der Gang der Untersuchung gliedert sich in mehrere Kapitel, in denen eine detaillierte Interpretation de r relevanten Timaios -Passagen unternommen wird. Im Rahmen dieser Interpretation ist Barbaric stets um eine sinnvolle Kontextualisierung durch Heranziehung sachlich  bedeutsamer  Parallelstellen  aus  anderen platonischen  Dialogen  (besonders  aus Philebos, Sophistes und Nomoi), sowie um die Einbeziehung der indirekten Platonüberlieferung (z. B. Alexander von Aphrodisias) bemüht.

Zunächst sucht Barbaric die Chora gegen geläu- fige Raum- und Materiebegri]e abzugrenzen, ist sie doch weder von einem homogenen, ausgedehnten, leeren Raumverständnis her, noch auch von einer substratha oder stofflich begriffenen Materie (d. h. vom aristotelischen sowenig wie vom neuzeitlichen Materiebegri]) her zu fassen. Auch wenn manche der  Metaphern, die Platon zur Veranschaulichung der Chora  anführt,  in  derartige  Richtungen  weisen, spricht der Umstand, dass die Chora als in sich bewegt und mit Krä”en erfüllt beschrieben wird (vgl. 52e), gegen genannte Deutungen. Dieser Aspekt, die dynami- sche Bewegtheit der Chora, ist es denn auch, den Barbaric ins Zentrum stellt. Wie aber interpretiert er die „ schwankende Bewegung”der Chora? Nicht im Sinne einer Ortsbewegung; vielmehr wird zur Erhellung des Sachverhaltes Philebos  24a ]. herangezogen, da die dortige Untersuchung des ἄπειρον gewisse Paralle- len zur Chora aufweist. Die Bewegung des ἄπειρον, das unendliche Auseinandergehen bei gleichzeitigem  In-sich-Zurücksinken,  das  unendliche  Fortschreiten in entgegengesetzte Richtungen, wobei sogar die jeweiligen Extreme nicht als beständig gedacht werden dür^en, wird von Barbaric mit der Bewegung der Chora zusammengebracht. Chora und ἄπειρον seien „ ein δυνάμει ὄν, ein Vermögen oder ein Sein- Könnendes”(45), das als solches unbestimmbar bleibe und sich lediglich im Verhältnis zu anderem bestimmen lasse. Gro ß en Wert legt Barbaric darauf, die δύναμις der Chora und des ἄπειρον nicht als „ Mög- lichkeit“, sondern als „ Kra^”oder „ Vermögen”zu verstehen, welche letztlich nichts anderes als Aspekte der „ unbestimmten Zweiheit”darstellen. Überhaupt sieht Barbaric im Begri] der δύναμις – auch in Anlehnung an Sophistes 248 ]. – geradezu die entschei- dende Seinsbestimmung des späten Platon. Wenn im Sophistes das „ Vermögen zu tun und zu leiden”sowohl den Ideen als auch den Erscheinungen zukommt, so sei in der so verstandenen δύναμις die Klu^ zwischen Sein und Werden überbrückt, ein beiden Gemeinsames gefunden.

Auch das Wirken der „ unbestimmten Zweiheit”sei als δύναμις zu fassen, die zumal allem Weltgeschehen latent zu Grunde liege. Deshalb dürfe der sogenannte „ vorkosmische Zustand”auch nicht im zeitlichen Sin- ne, sondern als immerwährend verstanden werden. Die „ vorweltlichen und vorzeitlichen »Geschehnisse”(παθήματα), aus denen die zwar sichtbare, aber noch nicht zur körperlichen Festigkeit und Beständigkeit gelangenden Kra^bewegungen der Chora  bestehen, ereignen sich […] immer, überall in der Welt und mitten in der Zeit, in jedem Augenblick”(61f.) 6.

Weiterhin sucht Barbaric zu begründen, dass von der Chora bzw. der „ unbestimmten Zweiheit”im Timaios nicht erst nach dem „ anderen Anfang”die Rede sei, sondern der Sache nach schon viel früher, z. B. in 30 ]., wo das dem Demiurgen Vor*ndliche als „ nicht in Ruhe, sondern regellos und ungeordnet bewegt”beschrieben wird. Nicht zuletzt in der Genese der Weltseele sei die Chora bereits am Werk, namentlich im „ Anderen”als Teil ihrer Mischung. Die Gattung des „ Anderen”wird bekanntlich im Sophistes  näher erörtert und nimmt dort – verglichen mit den sons- tigen „ höchsten Gattungen”– eine Sonderrolle ein, insofern ihr keine Selbigkeit eignet, sie mithin nu r im Bezug auf Anderes charakterisierbar ist. Im „ An- deren”erblickt Barbaric nun wiederum eine Ausprä- gung des zweiten Prinzips, das vom Demiurgen mit Gewalt (βία) zur Mischung gezwungen werden muss. Die kosmische Topologie der Bewegungen reicht im Timaios vom sich gleichbleibenden Kreis der Fixster- ne, in dem das „ Selbe”gänzlich dominiere, über die verschiedenen Planetenbahnen, in deren ellipsenför- migen und unterschiedlich schnellen Bewegungen bereits das „ Andere”seine Kra^ entfalte, bis hin zu den ungeordneten Bewegungen auf der Erde, wo der Ein- &uss des „ Anderen”(und d. h. des zweiten Prinzips) überwiege. Letztlich hat für Barbaric die harmonische Ordnung der Weltseele – zu deren musikalischem Hintergrund er auch einige Überlegungen entfaltet – ihren Ursprung „ in den Schwingungen der allem Leben zugrunde liegenden Urbewegung, die an sich ordnungs- und regellos ist, aber durch die Zahl und die auf ihr beruhenden mannigfaltigen Analogiever- hältnisse zum Teil geordnet werden kann”(78). Da- mit ist die dynamische Urspannung der zwei Prinzi- pien auch in der Seele (besonders in ihren A]ekten) präsent; ihre Herstellung sei lediglich als „ rationaler und das hei ß t harmonisch gestalteter Überbau”(107) des chaotischen Urgrundes zu fassen.

Die Spannung zwischen den zwei Prinzipien zieht sich im Grunde durch alle Wirklichkeitsebenen, deren Genese – wie schon Konrad Gaiser ausführlich dargestellt hat – in der sogenannten „ Dimensionenfolge”von Punkt, Linie, Fläche und Körper veranschaulicht werden kann, wobei das jeweils Einfachere als Grenze (πέρας) für die nächste Dimension fungiert. Was die Entstehung der Körperlichkeit aus der Fläche betri – und dies bezeichnet ontologisch ja den Hervorgang der Sinnenwelt (und damit das Thema des Timaios) –, unterzieht Barbaric folgende wichtige Stelle aus den Nomoi  (894a) einer näheren Betrachtung: „ Und die Entstehung von allem, bei welchem Geschehnis (πάθος) kommt sie zustande? O]enkundig dann, wenn der Ursprung (ἀρχή), die Dimension anneh- mend (λαβοῦσα αὔξην), sich in den zweiten Um- schlag-Übergang (μετάβασιν) begibt und von diesem in den folgenden, und so, zu drei Dimensionen kom- mend, den Wahrnehmenden die Wahrnehmungen gibt.”Hier sei, so Barbaric, von der sukzessiven Ent- stehung der Körperwelt die Rede, die sich über einen mehrfachen „ Umschlag”bzw. „ Übergang”vollziehe, und zwar dergestalt, dass im Umschlag zu einer neu- en Dimension jeweils die ungeordnete δύναμις des zweiten Prinzips wirksam sei, die freilich zugleich wiederum vom ersten Prinzip begrenzt werde.7 Diese Entfaltung sei nun – mathematisch betrachtet – zu- gleich das Kommensurabelwerden eines innerhalb einer Dimension Inkommensurablen, d. i. die Auf- lösung einer innerdimensionalen Spannung durch den Übergang in eine neue Dimension. Am Beispiel des Verhältnisses der „ irrationalen”Diagonale eines Quadrats zu dessen Seitenlänge lasse sich dies veran- schaulichen: eine Diagonale mit der Länge „ Wurzel 2”ist niemals kommensurabel mit der Seitenlänge des betre]enden Quadrats. Erst im Übergang zur nächs- ten Dimension (d. h. in der Selbstmultiplikation von „ Wurzel 2“) lässt sich die Spannung au&ösen. Barbaric weist diesbezüglich darauf hin, dass die Griechen die- sen Übergang mit dem Verb δύναμαι bezeichneten, z. B. in der Formel „ »die Linie kann (δύναται)  die Flä- che”[…], wobei dieses »Können”wohl im Sinne von »hat den Drang nach…”und »hat die Kra^ zu…”zu verstehen ist”(100). Erst unter Berücksichtigung die- ses aus der Sphäre des Mathematischen geschöp^en δύναμις-Begri]s, so die These, erhalte Platons späte Seinsbestimmung ihre volle Bedeutung. Diese Seins- bestimmung sei nämlich primär auf die durch die Spannung der Prinzipien generierte Entfaltung der Dimensionenfolge zugeschnitten.

In dem im Sophistes  und im Timaios  dargelegten Weltverständnis sieht Barbaric die Ideenlehre nicht auf- gegeben, vielmehr eingebettet in und vertieft durch die Prinzipienlehre, welche der Sinnenwelt allererst ih reigenes Recht lasse. Der Urbild-Abbild-Dualismus tret e zurück hinter einer dynamisch-kontinuierlichen, zum al substanzlosen Au]assung der Gesamtwirklichkeit, wo- bei der Streit zwischen den beiden Prinzipien sich auf je- der Wirklichkeitsebene austrage. Die Implikationen, die sich hieraus für eine Verhältnisbestimmung zwischen dem Timaios und Platons gro ß em Alterswerk, den Nomoi, ergeben, deutet Barbaric nur an: „ Die Gesetze sind sein [d. i. Platons] Versuch, diese neue Konzeption mits amt ihren weitreichenden Folgen philosophisch produktiv zu machen”(123) – und damit gewisserma ß en das poli- tische Gegenstück zum Timaios.

Barbarics genaue Interpretation des Timaios, die Bezüge, die er zu anderen Dialogen sowie nicht zu- letzt zur indirekten Überlieferung zieht, vermögen über weite Strecken zu überzeugen. Hinsichtlich des metaphysikkritischen Potentials von Platons „ ande- rem Anfang”ergeben sich allerdings einige Fragen: Muss man den von Barbaric behaupteten Versuch der Überwindung der Metaphysik im Sinne einer Zwei-Welten-Lehre im Timaios notwendigerweise an die „ ungeschriebene Lehre”koppeln? Ist Platons „ an- derer Anfang”und das damit verbundene (selbst)kri- tische Potential nur (oder überhaupt) unter Annahme eines prinzipientheoretischen Hintergrundes plausi- bel zu machen? Insbesondere stellt sich bei einer prin- zipientheoretisch fundierten Chora, die für den Ver- such der Überwindung der Metaphysik in Anspruch genommen werden soll, die Frage, ob die Lehre von den zwei Prinzipien nicht ihrerseits „ metaphysisch”ist. Tritt uns das Problem des Dualismus nicht auch hier entgegen, jetzt freilich nicht mehr im Sinne der Zwei-Welten-Lehre  sondern  prinzipiendualistisch? Ob sich die prinzipientheoretisch fundierte Chora für eine Metaphysikkritik im heideggerschen Sinne eignet, erscheint jedenfalls fraglich. Das Kriterium der „ zwei Welten”mag für Nietzsches Verständnis von Metaphysik entscheidend sein, nicht aber ohne weiteres – wie Barbaric suggeriert (vgl. 12) – auch für Heidegger. Dessen Paradigma der Metaphysik als Onto-Theologie kann, muss jedoch nicht notwendi- gerweise mit einer „ Zwei-Welten-Lehre”korrespon- dieren. Also nicht anhand der Überwindung einer „ Zwei-Welten-Lehre“, sondern anhand einer Über- windung der Onto-%eologie wäre mit Heidegger die Tragweite des platonischen „ anderen Anfangs”zu ermessen. Diese Probleme scheint Barbaric – auch wenn er nicht explizit darauf zu sprechen kommt – insoweit gesehen oder zumindest geahnt zu haben, als es ihm am Ende weniger um eine Überwindung der Metaphysik denn um eine Wiederbelebung derselben „ auf der Spur von Chora “geht (136).

Notas

1 „ Qui-êtes vous Khôra? Receiving Plato’s Timaeus “, in: Existentia. Meletai-Sophias, Vol. XI, Issue 3-4 (2001), 473-490; „ ON KAI KHORA: Situating Heidegger between the Sophist and the Timaeus ”, in: Studia Phaenomenologica, Vol. IV, Issue 1-2 (2004), 73–98; „ Ontopoiēsis and the Interpretation of Plato’s Khôra ”, in: Analecta Husserliana: 1e Yearbook of Phenomeno- logical Research, Vol. LXXXIII (2004), 25–45.

2  Chorology. On Beginning in Plato’s Timaeus, Bloomington 1999.

3  Unscheinbarkeit. Der Raum der Phänomenologie, Tübin- gen 2015, § 3: χώρα.

4  Khôra, Paris 1993.

5 Auch dieser Ansatz ist freilich nicht neu. So hat sich bereits Giovanni Reale (Per una nuova interpretazione di Platone, Milano 21 2003, Kap. 19) an einer prinzipientheoretischen Auswertung der Chora versucht, bei der er teils auf ähnliche Zusammenhänge eingegangen ist wie auch Barbaric.

6 In gewisser Hinsicht lassen sich Barbarics Ausführun- gen zur von der „ unbestimmten Zweiheit”her gedachten und immerwährenden Bewegtheit der Chora auch als Ergänzung zu Konrad Gaisers Ausführungen zur platonischen Geschi- chtsmetaphysik in Teil 2 von Platons ungeschriebene Lehre (Stuttgart ³ 1998) verstehen. In einer ausführlichen Interpre- tation des Politikos -Mythos hatte Gaiser eine Rekonstruktion des platonischen Geschichtsverständnisses vor dem Hinter- grund der Prinzipienlehre versucht, wobei Geschichte dann ni- chts anderes ist als die wechselvolle Austragung der Spannung zwis-chen den Prinzipien in der Zeit. Die geschichtsphiloso- phischen Implikationen von Barbarics Chora-Interpretation weisen in eine ähnliche Richtung.

7 Eine derartige Deutung hat auch Konrad Gaiser (Platons ungeschriebene Lehre, 187f.) nahegelegt.

Referências

DERRIDA, J. (1993). Khôra. Paris, Galilée.

EL- BIZRI, N. (2001). Qui-êtes vous Khôra? Recei- ving Plato’s Timaeus. Existentia. Meletai-Sophias, Vol. XI, Issue 3-4, p. 473-490.

EL- BIZRI, N. (2004). ON KAI KHORA: Situating Heidegger between the Sophist and the Timaeus. Studia Phaenomenologica, Vol. IV, Issue 1-2, p. 73–98.

EL- BIZRI, N. (2004). „ Ontopoiēsis  and the Inter- pretation of Plato’s Khôra ”. Analecta Husserliana: 1e Yearbook of Phenomenological Research, Vol. LXXXI- II, p. 25-45. https://doi.org/10.1007/1-4020-2245-X_3

FIGAL, G. (2015). Unscheinbarkeit. Der Raum der Phänomenologie. Tübingen, Mohr Siebeck.

GAISER, K. (1998). Platons ungeschriebene Lehre. 3ºed. Stuttgart, Klett-Cotta.

REALE, G. (2003). Per una nuova interpretazione di Platone. 21º ed. Milano, Vita e pensiero.

SALLIS, J. (1999). Chorology. On Beginning in Plato’s Timaeus. Bloomington, Indiana University Press.

Felix Herkert – Albert Ludwigs Universität Freiburg (Deutschland). E-mail: felixherkert@aol.com

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Lógica e Ciência em Aristóteles – ANGIONI (RA)

ANGIONI, Lucas (Ed). Lógica e Ciência em Aristóteles. Campinas: Editora. Phi, 2014. Resenha de: BERRÓN, Manuel. Revista Archai, Brasília, n.20, p.335-342, Maio, 2017.

El volumen compilado por Lucas Angioni contiene ocho artículos antecedidos por un prefacio de Rodrigo Guerizoli y Raphael Zillig y una introducción del p ropio Angioni. En dicha introducción, hace una somera per o valiosa presentación del contenido de los artículos. Éstos se abocan al examen de distintos aspectos de la filosofía de la ciencia de Aristóteles tales como, por caso, la teoría de la predicación, la teoría de la demostración y del silogis- mo en general, así como la importancia de la dialéctica en conexión con el conocimiento de los principios. El último artículo constituye una excepción puesto que se ded ica, como veremos, al examen de la aporía 11 de Metaph. B.

Tal como señalan Guerizoli y Zillig en el prefacio, el texto reúne un conjunto de artículos elaborados por investigadores vinculados a la Universidad de Campinas y orientados por Angioni. La unidad del grupo se observa por la coherencia en la perspectiva gene ral bajo la que se estudia Aristóteles. Un elemento característico de ella es la ponderación del silogismo como la herramienta adecuada para la expresión de las re la- ciones causales a las que aspira una genuina demostración científica. Tal tesis, opuesta a la interpretación más ortodoxa y difundida, entre otros, por J. Barnes en la década de 1970, constituye una interesante y destacada novedad en el plano de las interpretaciones de la filosofía de la ciencia del estagirita. En efecto, encontramos como característica general de esta nueva interpretación que la demostración científica posee una estructura tripartita fielmente expuesta en la estructura del silogismo; de esta manera, quedan unidos de modo indisoluble una herramienta formal como es el silogismo con la explicación causal científica.

El capítulo 1, “Os predicados per se em Aristoteles”de Carlos Terra, se dedica a examinar los sentidos en que se usa per se  (kath’hauto) en APo. I 4 y en Metaph. V 30. Terra defende la concordancia de ambos textos y, para probar la misma, se ocupa de comparar el listado de predicados per se en uno y otro texto. El problema del alcance de lo que es un predicado per se  es decisivo para la teoría de la demostración científica puesto que, tal como afirma Aristóteles en distintos lugares, dichos predicados son los requeridos para la demostración. En vista de la importancia del problema, el examen de Terra apunta a mostrar que las clasificaciones desarrolla- das en estos pasajes son armónicas pero, de un modo heterodoxo, pretende mostrar también que un sub- conjunto de sentidos de per se permite comprender a ciertos predicados no esenciales como per se. Esta tesis, enormemente sugerente, asume que los predi- cados “propios”, tal como se los conoce en Tópicos, y los concomitantes por sí mismos, aun no siendo esenciales son necesarios para sus sujetos y, así, podrían ser utilizados científicamente.

En el capítulo 2, “Demostração, silogismo e causalidade”, de Lucas Angioni, se examinan críticamente diferentes posiciones estándar sobre la relación en tre la demostración y el silogismo tales como la lectur a de Barnes, de Hintikka y las de Corcoran/ Smith. Según nos informa Angioni, estos intérpretes destacan el v alor que el aspecto formal del silogismo habría tenido para Aristóteles. En contra de estas lecturas, Angioni defiende en su artículo tres tesis centrales: i) que la de mostración tiene por objeto principal captar la causa par a un cierto explanandum; ii) a su vez, y como ha expuesto en otros artículos, defiende nuevamente que la noción de causa posee una estructura triádica fundamental y que esta estructura es clave para que el silogismo pueda explicar su propia conclusión; iii) por último, Ang ioni sostiene que Aristóteles habría utilizado el format o del silogismo justamente porque entre sus beneficios habría encontrado que dicho formato es el que mejor destaca la noción de explicación por la causa apropiad a. El texto tiene la particularidad de reunir sintéticamen te la opinión general de Angioni sobre distintos aspectos de la teoría de la ciencia aristotélica a los que ha dedicado muchos años de investigación y estudio.

El capítulo 3, “Silogismo e demonstração na concepção de conhecimento científico dos Analíticos  de Aristóteles”, de Francine Maria Ribeiro, aborda en una primera parte del texto y de modo crítico dos interpretaciones fuertes sobre la silogística aristotélica en el Siglo XX, a saber: las lecturas de Łukasiewicz y de Corcoran. Como es sabido, el primero tendió a interpre tar la silogística como si fuera una teoría axiomática mientras que el segundo la concibió como un sistema de deducción natural. Ribeiro apunta a destacar que l a elección del silogismo como formato para la demostración se debería a que éste es el modelo deductivo más apto para expresar relaciones causales apropiadas o adecuadas. Ribeiro fortalece su posición examinando detalladamente APo. I 2 71b9-16 allí donde Aristóteles establece que el conocimiento es de lo necesario o de lo que no puede ser de otro modo. De modo sintético, su lectura es que el silogismo no es un mero aparato formal deductivo sino que es el mejor modelo deductivo en tanto que permite expresar fidedignamente la conexión causal existente entre dos términos logrando así elaborar una genuina prueba científica.

En el capítulo 4, “Fundacionalismo e Silogística”de Breno Andrade Zuppolini, se investiga sobre la relación que existe entre el silogismo y el modo en que éste da pie -o no- para una visión axiomática y fundacionista de la estructura de la ciencia. Según algunos intérpr e- tes tales como J. Barnes, el proyecto axiomático more geometrico no sería armónico con la naturaleza del silogismo. Para salvar esta dificultad, Zuppolini apun ta a redefinir la ciencia demostrativa centrándose en la noción de aitía. Hecha esta asunción, se logra mostrar que los principios de la demostración son aquellos que realmente operan en las pruebas científicas y que, por ello, exhiben la causa. Con este esquema, desliga los principios comunes y las suposiciones de existencia de la demostración científica y exime a la trama final que adquiere la estructura demostrativa de cumplir con la exigencia de contenerlos explícitamente. Tal estrategia vale, finalmente, para liberar al fundacionismo aristotélico de la dificultad del uso del silogismo como herra- mienta demostrativa y, en este sentido, no sólo liberarlo sino volverlo compatible con el silogismo.

En el capítulo 5, “As proposições categóricas na lógica de Aristóteles”, de Mateus Ricardo Fernandes Ferreira -que lamentablemente carece de una introducción y sus conclusiones- aborda críticamente tres interpretaciones relativas al modo en que se interpreta el cuadro de oposición de las proposiciones categóricas en Aristóteles. Una (1) primera posición deriva- da de la lógica formal clásica -posición denominada semántico-existencial- asumiría el valor existencial de las proposiciones para garantizar las relaciones lógicas entre las cuatro proposiciones. (2) Una opción distinta (Wedin y Parsons) reordena la formalización del cuadro de oposición puesto que asume que sólo las proposiciones categóricas afirmativas poseen valor existencial. (3) Una tercera opción heterodoxa viene propuesta por Malink y, apoyándose en une lectu- ra diferente del dictum de omni et nullo  de APr. I 1 24b28-30, construye una interpretación no extensio- nal de las proposiciones categóricas. En sendos apar- tados subsiguientes, Fernandes Ferreira se dedica a discutir detalles de las lecturas de Wedin y Malink contrastándolas con pasajes del corpus aristotélico.

El capítulo 6, “Silogismos e ordenação de termos nos Primeros analíticos “de Felipe Weinmann, tiene por objeto el examen de la definición fundacional de silogismo de APr. I 1 24b18-20. El autor se detiene en ponderar la Cláusula Final (CF) de la definición, “em virtude de serem tais coisas”(su traducción), puesto que la misma ha sido objeto de controversia erudita: la tradición estándar la considera super>ua y como una mera adición a la definición estricta y de carácter inferencial mientras que otra tradición, contrariamente, defende que la CF posee un valor relevante aunque no logra explicar satisfactoriamente por qué. Weinmann defiende que la CF establece una impor- tante restricción concebida por Aristóteles y referida al modo en que los términos del juicio están ordenados. Su hipótesis es que CF se establece para asegurar que de dos premisas dadas se deriva necesariamente una conclusión tal en la que el término A se predi- ca de C. Con la finalidad de sustentar tal afirmación, Weinmann estudia en detalle APr. I 4 y I 7 como dos capítulos en donde Aristóteles utiliza efectivamente la restricción CF, y así su existencia no sería para nada super>ua, para mostrar la conexión entre las premisas y la conclusión en el sentido señalado.

En capítulo 7, “A utilidade dos Tópicos  em relação aos princípios das ciências”de Martins Mendonça, F. se aborda un asunto muy discutido recientemente relativo a la función de la dialéctica en su carácter de herramienta apta para alcanzar los principios del conoci- miento en el contexto de las investigación científica. El autor se ocupa de examinar, y relativizar, la muy difundida tesis de que la dialéctica posee un genuino valor heurístico en relación con los principios. Mendonça considera que debemos tener una posición deflacionaria sobre el poder de la dialéctica y, como principal argumento, afirma que el problema más difícil para atribuirle dicho poder consistiría en la asimetría existente entre los éndoxa, los puntos de partida del examen dialéctico, y los principios. Los primeros son sólo plausibles mientras que los segundos son verdaderos: ¿cómo asegurar su verdad? Mendonça considera que esta asimetría no puede ser salvada (p. 312-20). El argumento que se apoya en la coherencia -y que da origen a la versión coherentista de Aristóteles- no lograría resolver esta asimetría. Su hipótesis, de modo contrario, pretende restringir la función de la dialéctica a su función de entrenamiento argumentativo, a su carácter gimnástico. Las ciencias y la filosofía, dado su carácter argumentativo, se benefician por las técnicas desarr o- lladas por la dialéctica, y sólo eso. A modo de crítica, podemos señalar que el examen de Mendoça se restringe únicamente a Top. I 2 cuando la mayor parte de la bibliografía que reivindica el uso de la dialéctica con carácter heurístico se apoya, desde Owen en adelante, en el celebrado pasaje de Ética a Nicómaco VII 1, don- de Aristóteles afirrma que la búsqueda de los principios parte de éndoxa y que esto será “prueba suficiente”.

En último lugar, en el capítulo 8, “A aporia 11 e o projecto aristotélico de fundação da filosofia primeira”de Wellington Damasceno de Almeida, se aborda, desde luego, la aporía 11 de Metafísica  III (beta) en su desarrollo y desenlace tal como es presentado en Metafísica X (iota) 2. Según el autor, Aristóteles se esfuerza por examinar la semántica del término “uno”(to hen) por medio de la semántica del término “ele- mento”para poder luego discutir las interpretaciones que del “uno”, en primer lugar, hicieron los físicos materialistas y, en segundo lugar, los pitagóricos y Platón. Los primeros entendieron al “uno”como naturaleza subyacente mientras que los segundos hicieron de él una naturaleza en sí misma. El recorrido de la aporía concluye en establecer que el concepto de “uno”es un concepto de segundo orden utilizado para hacer referencia a una multiplicidad de entes de la misma clase. De este modo, “uno”permitiría algo así como conferir cognoscibilidad a la multiplicidad de entes de los que se predica (p. 365). Este término, así como causa, elemento, principio y otros, son “transcategoriales”y aseguran la inteligibilidad de las cosas, pero no logran establecer la naturaleza de las cosas (reservada a las definiciones de la esencia). En síntesis, según Damas- ceno de Almeida, los conceptos de este tipo son indis pensables para la construcción del conocimiento aun- que son incapaces por sí mismos de denotar la esencia de las cosas.

Para cerrar, quisiera destacar algunos detalles gene- rales y de forma: cada capítulo contiene la bibliografía utilizada al final pero, quizá, hubiera sido más útil el armado de una bibliografía común al final del volumen evitando las repeticiones innecesarias. Por otra parte, la obra carece de índices de nombres y lugares que seguramente hubieran sido de mucha utilidad a los lectores.

Manuel Berrón Chora. Über das zweite Prinzip Platons Albert-Ludwigs – Universidad Nacional del Litoral (Argentina). E-mail: mberron@fguc.unl.edu.ar

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Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850) – SOUSA NETO (HU)

SOUSA NETO, M. de. 2013. Entre vaqueiros e fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2013. 336 p. Resenha de: FONTINELES FILHO, Pedro Pio. Entre a fé, a política e a educação: Padre Marcos e traços da história do Piauí, na primeira metade do século XIX. História Unisinos 21(2):278-281, Maio/Agosto 2017.

Marcelo de Sousa Neto é um importante historiador da nova e consolidada geração de historiadores piauienses, levando-se em consideração a periodização proposta pela historiadora Teresinha Queiroz (2006) sobre a historiografia piauiense. Dentre seus muitos trabalhos de pesquisa, o que mais se destaca, sem dúvida, é Entre Vaqueiros e Fidalgos. Trabalho de excelente lavra, fruto de sua tese de Doutorado, concluída na Universidade Federal de Pernambuco.

Foi publicado após vencer, em primeiro lugar, o Concurso Novos Escritores, na categoria Realidade Histórica, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da cidade de Teresina, Piauí. O mesmo texto havia sido escolhido pelo Colegiado da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, para ser publicado pela editora daquela instituição, mas preferiu fazer a publicação pela Fundação Cultural, como mais uma demonstração de sua ligação com o Piauí. Os comentários contidos no Prefácio, na orelha e na quarta-capa do livro, escritos por renomados historiadores, atestam a qualidade e a profundidade da obra, que amplia os horizontes da história do Piauí do século XIX, em suas dimensões sociais, políticas, econômicas, educacionais e culturais.

Ao tomar a figura de Padre Marcos, Sousa Neto demonstra a habilidade na construção da narrativa histórica, pois liga a trajetória do sujeito em amálgama com a história da sociedade, considerando as nuances de espacialidades e temporalidades. Nesse sentido, a obra é desenvolvida nos lastros da proposta de uma biografia histórica, que toma o sujeito como uma forma de compreender as intrigas e ranhuras que constituíram a sociedade piauiense e brasileira no período oitocentista. Para tal empreitada, o autor faz diálogo teórico-metodológico com autores especialistas na discussão sobre sujeito, sociedade e biografia. Realiza isso sem perder de vista as discussões sobre tempo e temporalidade, entendendo que o sujeito deve ser percebido em suas interrelações entre o micro e o macro, entre o passado e o presente. A estrutura de organização do livro revela, também, a astúcia do autor, não somente como pesquisador, mas como exímio escritor, pois torna a leitura técnica mais acessível, inclusive para o público não especializado ou acadêmico. Está dividido em seis capítulos, distribuídos em três partes temáticas, ou melhor dizendo, eixos temáticos: A Serviço de Deus e dos Homens; Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí; e Nos Bastidores do Poder: Política e Família no Piauí do Século XIX. Na primeira parte, encontram-se os dois primeiros capítulos. O primeiro, intitulado “Entre o (Re)Criado e o Esquecido”, aborda aspectos do caráter lacunar da História, enfatizando a memória, no que se refere ao lembrar e ao esquecer. Ao clamar as reflexões sobre memória, o autor chama atenção para o fato de que a inscrição do Padre Marcos de Araújo da Costa está cravada na figura de “benemérito educador”. As suas identidades de atuação política e social encontram-se, na historiografia piauiense, esquecidas, ou, pelo menos, colocadas em um plano de pouca expressividade. Segundo Sousa Neto, isso se deu em decorrência do lugar social daqueles que produziram uma memória escrita, que centra e concentra seus olhares sobre um “Padre educador”, muito embora haja um caudaloso mar documental que falem do “Padre político” e do “Padre religioso”. O estranhamento inicial se dá em decorrência de que, ao se falar de um Padre, a priori, se esperaria uma memória escrita com destaque para o viés religioso. Tentando compreender esses “esquecimentos” ou “silenciamentos”, o historiador aponta o botânico inglês, George Gardner, que teria sido o primeiro a escrever sobre o Padre Marcos. Gardner foi o único memorialista e historiador a conviver com o Padre Marcos, pois teria visitado, em 1939, a fazenda de Boa Esperança, onde também funcionava a escola de mesmo nome, de propriedade do Padre. Escola essa que se firmava, “para toda a Província, como a principal escola de Primeiras Letras e de Instrução Secundária” (p. 40). Ao falar dessa visita, Sousa Neto aproveita para traçar o panorama da situação econômica e, principalmente, na Instrução Pública da Província, que passava por uma severa crise. O autor, assim, considera o botânico como o primeiro biógrafo do padre, minimizando “sua atuação como artífice político e como religioso, ressaltando apenas sua importância como educador” (p. 38). Assim, criou-se uma espécie de “tradição” historiográfica, na qual os escritos posteriores tomavam as informações fornecidas por Gardner e as reproduziam ou as endossavam. Sousa Neto, então, afirma que essa memória escrita e narrada “cria um espaço de ficção que, mais que descrever, realiza um golpe, um movimento que (re)cria o sujeito como ‘benemérito educador’, renascido entre o lembrado e o esquecido” (p. 38). No lastro dessa memória escrita sobre Padre Marcos, Sousa Neto destaca atuação de Fernando Lopes Sobrinho, José de Arimatéia Tito Filho, Antonio Reinaldo Soares Filho, Miguel de Sousa Borges Leal Castelo Branco, Joaquim Raimundo Ferreira Chaves, Marcos de Araújo Costa Ferro, Odilon Nunes, Francisco Augusto Pereira da Costa, Itamar Brito, Celso Pinheiro Filho, Wilson Carvalho Gonçalves, José Patrício Franco e Cid de Castro Dias. Dentre todos os seus biógrafos, segundo Sousa Neto, apenas Lopes Sobrinho e Castelo Branco teriam dedicado obras completas ao Padre Marcos. Os demais mencionam o Padre de forma secundária e periférica, mas todos enfatizando a atuação do Padre na perspectiva educacional, seguindo a memória escrita iniciada por Gardner. Ir além dessa “tradição” escrita sobre o Padre Marcos, como educador, não seria difícil, como afirma Sousa Neto. Para ele, “basta, para tanto, acompanhar alguns registros em documentação preservada no APEPI, mesmo que de forma não organizada” (p. 46). Assim, o historiador destaca suas atuações em funções públicas, como a vice-presidência do Conselho de Governo da Província e vice-presidência da Província, membro do Conselho Geral da Província, a presidência da Câmara de Jaicós, dentre outras ocupações, em diferentes anos e situações, de 1924 a 1950, quando veio a falecer.

No capítulo 2, “Padre Marcos e seu sacerdócio sagrado e profano”, o autor amplia as reflexões de que “Como membro de uma importante rede familiar, Padre Marcos destacou-se em diversos espaços do cenário sócio-político piauiense. Entretanto, suas ações como sacerdote são, indubitavelmente, as menos discutidas” (p. 53). Descendente de influente grupo familiar piauiense, Padre Marcos teria transitado por diversos e diferentes espaços sociais e políticos do Piauí, mas a sua atitude de homem mais reservado seria, segundo Sousa Neto, uma das razões que dificultam mapear a sua trajetória para além da memória escrita inaugurada por Gardner. Para o historiador, para compreender a sua atuação no sacerdócio é indispensável que se observe e se analise a própria atuação do catolicismo e da religiosidade no Brasil, com suas estruturas, ligações, conflitos, disputas de poder e os aspectos do padroado. É somente no tópico “De Reza e de Política: Padre Marcos e seu sacerdócio”, ainda do segundo capítulo, que Sousa Neto traça as primeiras linhas do que seria da biografia propriamente dita do Padre. Ele apresenta o ano de nascimento do padre, 1778, mencionando seu avô materno, bem como seu pai e sua mãe. Dá destaque para a atuação política de seu pai, Marcos Francisco, que teria ocupado cargos importantes na Capitania. Nesse sentido, afirma que “Filho de pais cuja atuação política e social já se destacava, Padre Marcos herda bens e prestígio que soube multiplicar, sabendo valer-se de sua condição de “homem das letras” e “homem do Sagrado”, agregando elementos de ordem econômica e política à sua atuação sacerdotal, que, por sua vez, resultou em novos proveitos para si e para o grupo familiar ao qual pertencia” (p. 66). O autor ainda discute sobre as discordâncias entre os biógrafos acerca da formação sacerdotal do padre, notadamente sobre a realização do curso de formação em Coimbra, Portugal, ou no Seminário, em Olinda. Sousa Neto fala que há registros relativos à permanência do padre em ambos espaços, concluindo que “a atuação em um espaço não exclui a participação no outro”, diferente de como sugeriam os outros autores. O autor aproveita a ocasião para discutir sobre o papel do Seminário de Olinda, inaugurado em 1800, seguindo os moldes do Iluminismo português. O Seminário, então, assumiu importante tarefa, além das funções religiosas, na formação educacional no Brasil, pois “constituiu-se na primeira instituição de ensino do Brasil a possuir uma estrutura escolar em que as matérias apresentavam uma sequência lógica, trabalhadas de acordo com um plano de ensino previamente estabelecido, em cursos que possuíam uma duração determinada e com alunos agrupados em classes, procurando ainda reunir em seu plano de estudos, o ensino clássico e moderno” (p. 71).

Isso possibilitou, em larga medida, a formação dos filhos dos grupos dirigentes, a formação ideal e necessária para o ingresso nas universidades europeias. E é nesse Seminário que Padre Marcos teria se matriculado. O autor chama a atenção para o fato de que os sacerdotes no Brasil e no Piauí do século XIX eram mal remunerados, o que lhes levava à busca de outras formas de complemento no sustento. No Piauí, os sacerdotes se afastavam do sacerdócio, “dedicados aos cuidados com suas fazendas de gado” (p. 81). Padre Marcos era um desses “padres fazendeiros”, mas, como afirma o pesquisador, não se afastou de suas obrigações sacerdotais. Ordenou-se Padre em Coimbra, no ano de 1805, retornando ao Brasil naquele mesmo ano, para Recife. Teria ido, também, para o Rio Grande do Norte, depois Oeiras e se mudou definitivamente para a fazenda Boa Esperança, em 1820. Nesse mesmo capítulo, Sousa Neto ainda destaca o trabalho de Padre Marcos nas construções arquitetônicas, com ênfase na capela de Santo Antônio, na fazendo de Boa Esperança, e a igreja matriz de Jaicós. Além dos aspectos de se inscrever por meio dessas obras, Padre Marcos teria atuado no sacerdócio, movendo-se, também, pelo sonho da criação de um Bispado no Piauí, sendo “o seu maior sonho e com certeza a sua maior decepção sacerdotal, em virtude da veemente recusa que impediu a sua criação” (p. 111).

No capítulo 3, “Entre o Gado e as Letras: a instrução escolar no Piauí”, Sousa Neto ressalta que discutir a instrução formal no Brasil do período colonial e imperial, mesmo diante do crescente número de pesquisas acadêmicas, ainda é um grande desafio, sobretudo por causa da escassez das fontes documentais. Ao falar dos “trôpegos passos”, diferente do que se costuma esperar de uma região na qual a oferta do ensino formal não era uma prioridade para grande parcela da população, o autor assevera que “a documentação consultada pôs em destaque a preocupação governamental com as chamadas Aulas Públicas” (p. 120), que começou a ter maior relevância no início do século XIX. Os baixos salários pagos ao magistério, contudo, constituiu-se em um dos entraves para a instrução pública, não só no Piauí, mas em outras províncias, levando-os a se dedicarem a outras atividades, inclusive o magistério particular. Como enfatiza Sousa Neto, a baixa remuneração fazia “parte de uma conjuntura política e econômica, na qual, com um discurso contraditório, os gestores da Instrução reconheciam a importância social do trabalho dos professores, mas, por outro lado, isso não correspondia a ações para melhor qualifica-los e remunerá-los” (p. 136).

Assim, o autor comenta inúmeras leis e decretos que impactaram nos rumos da Instrução Pública, que versavam sobre remuneração, oferta de cadeiras e currículos. É nesse cenário que a escola de Boa Esperança “distinguiu-se no cenário piauiense, atraindo o interesse de muitos pais e alunos, despertando uma forte demanda por vagas” (p. 171). Em relação a Padre Marcos, o autor diz que “a história da Escola toca e se confunde com a história do Padre” (p. 174), ao passo que discutir um implica transitar pela história do outro, pois a Escola “é tomada com um dos pontos de contato e de troca entre o indivíduo e o coletivo” (p. 174).

Dessa maneira, no capítulo 4, “Mão de ferro em luva de pelica: Padre Marcos e sua escola”, trata especificamente da escola de Boa Esperança e como ela se tornou referência de Instrução no Piauí, sendo “considerada a primeira instituição de instrução formal a funcionar efetivamente no Piauí” (p. 173). O autor afirma que, mesmo a parte da população mais interessada nas atividades de subsistência, a escola tornou-se a “mais importante e bem sucedida experiência educacional no Piauí, até a primeira metade do século XIX, tendo seus reflexos ultrapassando as fronteiras da Província e da própria educação, ajudando a formar boa parte de seu corpo dirigente e marcando significativamente a história local” (p. 173). Mesmo nos momentos em que assume funções na vida política, sobretudo a partir de 1824, quando assume a Vice-presidência da Província, suas ausências não comprometeram o funcionamento ininterrupto da Escola, até mesmo porque utilizou monitores, que eram os alunos mais avançados, para o acompanhamento dos alunos iniciantes. Outro aspecto da Escola, que permitiu o seu funcionamento durante as ausências de Padre Marcos, foi o formato de internato, ofertando, também, um ensino prático ligado às atividades mais desenvolvidas na região, notadamente as das fazendas.

No capítulo 5, “Nos bastidores do poder: política e família no Piauí do século XIX”, Sousa Neto analisa que as muitas facetas de Padre Marcos, como “clérigo, fazendeiro, intelectual, educador, político” (p. 219) devem ser compreendidas no seio das redes de poder nas quais ele estava imerso. Isso é pertinente, pois Padre Marcos foi “herdeiro político da elite dirigente do Centro-Sul piauiense, constituída a partir das redes familiares, que se alicerçavam” (p. 219) nas bases do parentesco e favores mútuos. Nesse sentido, o autor faz uma acurada discussão teórica e metodológica sobre a produção historiográfica pautada nas relações entre família, sociedade, política, economia e poder. A partir disso, traça o panorama das redes familiares, Estado e patrimônio no Brasil e no Piauí, do século XIX. Por esse viés, “Padre Marcos representou, assim, sujeito dos mais importantes nas relações de poder no Norte do Império, expressivo representante das redes familiares do Centro-Sul piauiense” (p. 246). Segundo o pesquisador, “o sucesso da escola de Boa Esperança deveu- -se, em muito, ao prestígio desfrutado por seu idealizador e à sua condição de mantenedora da ordem social vigente, ao oferecer aos jovens uma educação apropriada aos interesses dos grupos familiares da elite da época” (p. 247).

No capítulo 6, “Tempo de Semear; Tempo de Colher”, o autor menciona as diversas manifestações a favor da Independência, que ferviam por todo o Brasil e, também, no Piauí, sobretudo nas vilas de Parnaíba e Oeiras.

A Insurreição de 1817 atingiu, além de Pernambuco, as capitanias da Bahia, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Piauí. Nessa última o movimento “não ganhou maiores contornos nem firmou raízes” (p. 253), muito embora tenha havido um envolvimento concreto. Durante esse movimento de insurreição, conforme Sousa Neto, o Padre Marcos teria ficado afastado, pois não era de interesse de seu grupo familiar aderir à Insurreição, visto que, “de maneira geral, não havia entre os grupos familiares que compunham a elite piauiense, o desejo de ruptura com Portugal” (p. 254). As reverberações da Insurreição foram sentidas em momento posterior, com a agitação causada pela Revolução do Porto, em 1820. No Piauí, a inquietação se deu no ano de 1821, principalmente em Oeiras e nas vilas de Parnaíba e Campo Maior. Esse estado de agitação se prolongou durante todo o ano de 1822, cujo “projeto vitorioso de Independência foi o das elites locais, formadas a partir de influentes grupos familiares e que já faziam parte da administração provincial” (p. 266). E, no período, Padre Marcos “firmou-se como o grande articulador dos grupos familiares do Centro-Sul piauiense e da adesão da capital à Independência do Brasil” (p. 274). Para endossar seus argumentos de que Padre Marcos detinha muita influência, o historiador também fez análises de correspondências trocadas entre clérigos contemporâneos do Padre. Segundo Sousa Neto, “percebe-se que os argumentos usados por Padre Marcos foram tomados em consideração mais por seu prestígio pessoal”, em suas tentativas de intervir contra movimentos de insurreição. O respeito que o Padre possuía era de tamanha envergadura que a sua casa, “na fazenda de Boa Esperança, funcionou muitas vezes como ‘tribunal’, no qual muitas contendas políticas ou desavenças pessoais foram resolvidas” (p. 294).

Em Entre Vaqueiros e Fidalgos, Sousa Neto inscreve sua marca na historiografia como astuto pesquisador de História, desbravando as trilhas dos pensares e fazeres de uma temporalidade e de uma espacialidade circunscritas nos vários “entre” que engendram a construção de sua narrativa, contemplando os limiares entre o sujeito e a sociedade, bem como entre a história, a religião, a política e a educação.

O historiador Marcelo de Sousa Neto, de forma corajosa e competente, conseguiu construir uma narrativa esclarecedora sobre a história do Piauí e Brasil do século XIX, tomando as aproximações entre Padre Marcos e o seu período. Ele teceu “uma imagem que procurar recuperar, na narrativa, o macro através da poeira de acontecimentos minúsculos” (p. 315), com o intuito de demonstrar que, “por meio de uma trajetória individual, como as singularidades relacionam-se e podem expressar as regularidades coletivas” (p. 315). Assim, como ressalta o próprio autor, “o fato é que não era possível ignorar as páginas da história do Piauí que Padre Marcos ajudou a escrever e que continuam sendo reescritas” (p. 313) e relidas, reinterpretadas. E Entre Vaqueiros e Fidalgos é um indício provocador para novas reflexões sobre a história e a historiografia brasileira do século XIX.

Referências

QUEIROZ, T. de J.M. 2006. Historiografia piauiense. In: T. de J.M.

QUEIROZ, Do singular ao plural. Recife, Edições Bagaço, p. 141-170.

Pedro Pio Fontineles Filho – Universidade Estadual do Piauí. Campus Clóvis Moura. Rua Des. Berilo Mota, s/n, Dirceu Arcoverde I, 64001-280, Teresina, PI, Brasil. E-mail: ppio26@hotmail.com.

Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX – DEMETRIO et al (RIHGB)

DEMETRIO, Denise Vieira; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos; GUEDES, Roberto (orgs.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. Resenha de: TAVARES, Luiz Fabiano de Freitas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, a. 178 (474) p.343-349, maio/ago. 2017.

Segundo um de nossos mestres maiores, Sérgio Buarque de Holanda, uma das funções sociais do historiador consistiria em exorcizar os fantasmas do passado. Entre os espectros do nosso Brasil podemos contar a experiência histórica da escravidão, que ainda nos assombra, passados já cento e trinta anos da abolição. Objeto ainda de discussões sobre o presente e de polêmicos projetos para o futuro do país, o tema convida sempre o historiador a retomar e renovar a reflexão sobre esse fenômeno social que gostaríamos talvez de esquecer. Assim sendo, são sempre bem -vindos estudos como Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos, organizado por Denise Vieira Demetrio, Ítalo Domingos Santirocchi e Roberto Guedes.

Vale destacar, antes de tudo, a qualidade de composição da obra enquanto conjunto, uma vez que os capítulos se articulam com notável harmonia, complementando-se mutuamente de modo muito consistente – virtude importantíssima para qualquer obra coletiva. Não vemos no livro uma colcha de retalhos apressadamente costurada, mas um conjunto orgânico, dando-se a perceber como fruto de um diálogo amplo e continuado entre seus autores, ligados aos projetos Governos, resgates de cativos e escravidões (Brasil e Angola, séculos XVII e XVIII) e Testamentos e hierarquias em sociedades escravistas ibero-americanas (séculos XVI -XVIII), ambos coordenados pelo professor Roberto Guedes desde 2011.

O próprio título já é bastante feliz: a contraposição entre “escravizar gente” e “governar escravos” explicita as incontornáveis tensões e contradições vivenciadas em sociedades baseadas no trabalho escravo, exploradas de modo muito rico em suas múltiplas facetas ao longo dos capítulos do livro. Recorrendo à diversificada gama de fontes primárias, os autores perseguem com grande consistência empírica os rastros documentais tanto da gente escravizada quanto da gente que governava escravos – por sinal, gente que, às vezes, tanto foi escravizada quanto governou escravos, em diferentes momentos da vida, no que poderia parecer um paradoxo para nós do século XXI. Evitando compromissos fáceis com modismos acadêmicos ou causas sociais e políticas do presente, os autores analisam suas fontes sem ceder a interpretações de ordem teleológica acerca de problemas que ainda hoje nos acompanham, nem ao uso anacrônico do conceito de racismo, que, como salienta Guedes, em certas abordagens historiográficas recentes “se tornou tão largo que explica tudo, ou nada”2.

Recorrendo a testamentos, registros de batismo, recenseamentos, correspondências administrativas, periódicos e relatos de viagem, entre outros gêneros de documento, os autores nos apresentam um curioso elenco de personagens célebres ou nem tanto do mundo escravista dos dois lados do Atlântico, como Maria Correia de Sá, forra e senhora de escravos, Braz Leme, apresador de índios e pai de muitos mestiços, D. Paschoal, jaga de Cassange e (suposto) vassalo da coroa lusitana, D. Antônio Viçoso, “bispo ultramontano e antiescravista” ou ainda László Magyar, aventureiro húngaro nos sertões e costas angolanos, entre muitos outros.

Os capítulos alternam diversas escalas de análise, alguns centrados em trajetórias individuais, outros voltados à análise serial em escala regional, por vezes combinando métodos quantitativos e qualitativos de análise. A exemplo de outros grandes trabalhos em história atlântica, os estudos exploram de modo rico as dimensões partilhadas e imbricadas de experiências americanas e africanas. Sob esse aspecto, há que ressaltar a atenção concedida às práticas de escravidão vigentes em África, lançando nova luz sobre alguns aspectos da vivência da escravidão na América, apontando interseções e divergências entre as duas margens daquele “rio chamado Atlântico”. Também do ponto de vista cronológico há grande variedade de abordagens, enfatizando tanto processos de curta quanto de longa duração, de modo a desvelar as complexas e variadas temporalidades da escravidão atlântica entre os séculos XVII e XIX. O desdobramento dos capítulos permite refletir sobre continuidades e descontinuidades ao longo de todo esse período, apresentando a escravidão não como um bloco monolítico, mas como uma série de momentos distintos, um conjunto de experiências singulares, interligadas, mas não homogêneas, cada uma delas refletindo e refratando as dinâmicas mais amplas de uma América portuguesa, uma África não tão lusitana e um mundo atlântico em perpétuo movimento. Bom exemplo disso são as complicadas relações entre o jaga de Cassange e a coroa lusitana exploradas por Flávia Maria de Carvalho, que, embora vertidas no familiar idioma da vassalagem, revelam dimensões muito mais complexas, nem de parceria, nem de rivalidade, nem de dominação, nem de submissão – ou melhor, são um pouco de cada, à medida que se mostram diplomáticas, tanto quanto dialéticas: desdobram-se na duração, a partir dos encontros e desencontros de tensos cúmplices do trato negreiro3.

Uma característica digna de destaque é o apuro terminológico da obra, cujos autores se mostram atentos aos riscos de usar variados termos de modo anacrônico, reducionista ou reificado, salientando muitas vezes que essas noções não eram usadas de maneira linear ou uniforme em todos os contextos abordados, lembrando a polissemia de diversas palavras importantes no léxico da escravidão. Nesse sentido, são interessantes as anotações de Éva Sebestyén sobre as categorias de escravos que o idioma ovimbundu distinguia, como háfuka (escravo de penhor), em oposição ao pika ou dongo (escravo de compra), cujos respectivos estatutos jurídicos e perspectivas de vida no sobado de Bié eram bastante diferenciados, ou ainda sobre as distintas formas de fuga reconhecidas, como vatira, tombika ou kilombo. Seguem caminho semelhante as observações de Silvana Godoy acerca dos ambíguos significados de termos como alforria ou liberdade nos testamentos da São Paulo seiscentista. Da mesma forma, Guedes propõe interessantíssima discussão acerca do uso das “qualidades de cor” como negro, preto, mulato, pardo ou branco – qualificações que, muitas vezes, podiam ser aplicadas ao mesmo indivíduo em momentos, e principalmente, em circunstâncias distintas4.

Algumas problemáticas atravessam diversos capítulos da obra. Uma delas é a questão da heterogeneidade da classe senhorial; longe de constituir um grupo homogêneo e coeso, sua composição aponta para um caráter extremamente diversificado. Entre os senhores de escravos se encontravam desde os grandes pecuaristas e senhores de engenho aos pequenos agricultores e mesmo boa quantidade de egressos do cativeiro, alguns até nascidos em terras africanas; senhores que contavam seus escravos nos dedos de uma mão, e aqueles que os contavam às centenas. Ao que tudo indica, é provável que esses senhores com perfis tão variados mantivessem relações igualmente diversificadas com seus cativos. O estudo de Ana Paula Souza Rodrigues Machado investiga testamentos em busca de pistas sobre como diferentes senhores no recôncavo da Guanabara conduziam suas respectivas escravarias, enquanto o capítulo de Márcio de Souza Soares traça amplo panorama das peculiaridades da demografia da escravidão na região de Campos dos Goytacazes entre 1698 e 1830; Nielson Rosa Bezerra e Moisés Peixoto, por sua vez, estudam as trajetórias de duas senhoras egressas do cativeiro. Por fim, como ressalta Demetrio, a coisa podia se complicar ainda mais quando o senhor de escravos era também funcionário a serviço da Coroa5.

Outra rica problemática explorada pela obra é a questão da alforria em seus múltiplos aspectos. As situações de alforria estudadas pelos autores são interessantes não apenas enquanto testemunhos dessa prática, mas pela luz mais ampla que jogam sobre o próprio cotidiano da escravidão.

Em seu conjunto, os estudos enfatizam que em episódios específicos as modalidades jurídicas sob as quais a prática podia se dar contavam tanto quanto – ou até menos que – as motivações para sua realização, bem como os diferentíssimos significados com que os envolvidos em cada caso podiam investi-la. As detalhadíssimas instruções testamentárias deixadas por alguns senhores, alforriando certos escravos e deixando outros no cativeiro, legando aos libertos mais ou menos bens, exigindo ou impondo condições diferenciadas para cada remissão sugerem quanto de singularidade as relações entre um senhor e cada um de seus cativos podia comportar. O livro nos apresenta a alforria como fenômeno complexo, envolvendo dimensões de barganha e disciplina, cálculo econômico e gratidão, afeição e piedade cristã, entre outras possibilidades.

Desse modo, os autores exploram a alforria para além da prosa jurídica, abordando-a como um costume cujas implicações repercutiam em todas as esferas da sociedade escravista; longe de ser mero problema de razão econômica, atravessava os domínios da sexualidade e da religiosidade, do cotidiano doméstico e da governança pública, do nascimento e da morte.

Em seus variados registros documentais, os episódios de alforria permitem entrever a multiplicidade de vínculos entre senhores e escravos, livres, libertos e cativos, superando as simples relações dicotômicas entre opressores e oprimidos.

No desenrolar de seus capítulos, a obra também explora, com significativo rendimento analítico, as imbricações entre a escravidão e a religiosidade cristã; não poderia ser de outro modo numa sociedade profundamente católica e amplamente escravista. O cativeiro era, obviamente, objeto de controvérsias teológicas, mas essas interseções são igualmente visíveis enquanto problema moral, nas alforrias concedidas por amor de Deus ou por descargo da consciência, como discute Godoy. Também se refletia nas dimensões litúrgicas da vida, como o batismo, que tanto produzia parentesco espiritual como conformava o cotidiano de escravos, libertos e livres nas relações de compadrio, como Maria Lemke analisa cotejando registros de batismo. Também era tema de política eclesiástica, conforme exploram Ítalo Domingos Santirocchi e Manoel de Jesus Barros Martins em seu excelente capítulo sobre D. Antônio Viçoso, que propõe questionamentos importantes acerca das relações históricas entre a Igreja Católica e a escravidão no Brasil, convidando a repensar os significados do ultramontanismo no Império, bem como o conteúdo específico do conservadorismo professado pelo clero ultramontano, para além de estereótipos historiográficos consagrados6.

Por fim, vale mencionar os últimos capítulos do livro, centrados principalmente nas dinâmicas escravistas em solo africano, enfatizando principalmente as dimensões diplomáticas das relações estabelecidas entre autoridades lusitanas e poderes políticos africanos, como o estudo de Ariane Carvalho, devotado às dinâmicas guerreiras entretidas em terras angolanas, ou ainda o capítulo onde Ingrid Silva de Oliveira Leite explora

as sutis nuances dos escritos de Elias Alexandre da Silva Correa, militar português que servira em África no século XVIII7.

Evidentemente nenhum livro conseguiria exorcizar os fantasmas da escravidão em nossa formação nacional, mas Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos certamente traz valiosas contribuições para se pensar sobre o assunto a partir de um trabalho empírico denso e metodologicamente robusto, escorado em interlocuções historiográficas consistentes e questionamentos teóricos instigantes, a um só tempo olhando para o passado e dialogando com questões atuais de modo delicado, prudente e desapaixonado, com as melhores ferramentas que a crítica acadêmica pode oferecer.

1 – Luiz Fabiano de Freitas Tavares – Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional. Autor dos livros Entre Genebra e a Guanabara – A discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks, 2011), Da Guanabara ao Sena – Relatos e cartas sobre a França Antártica nas Guerras de Religião (EdUFF, 2011) e A ilha e o tempo – Séculos e vidas de São Luís do Maranhão (Instituto Geia, 2012).

2 – Cf. GUEDES, Roberto. “Senhoras pretas forras, seus escravos negros, seus forros mulatos e parentes sem qualidades de cor: uma história de racismo ou de escravidão?”. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e GUEDES, Roberto (org.). Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017, pp. 31-33, 43-45.

3 – Cf. CARVALHO, Flávia Maria de. Uma saga no sertão africano: o jaga de Cassange e a diplomacia comercial portuguesa no final do século XVIII. In: DEMETRIO, Denise Vieira. SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 227-252.

4 – Cf. SEBESTYÉN, Éva. Escravização, escravidão e fugas na vida e obra do viajante explorador húngaro László Magyar (Angola, meados do século XIX); GODOY, Silvana. Alforrias de forros indígenas: pelo amor de Deus e por descargo da consciência (São Paulo, século XVII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 173-196, 291-312.

5 – Cf. MACHADO, Ana Paula Souza Rodrigues. Testemunhos da mente: elites e seus escravos em testamentos (Fundo da Baía do Rio de Janeiro, 1790-1830); SOARES, Márcio de Souza. Angolas e crioulos na planície açucareira dos Campos de Goytacazes (1698-1830); BEZERRA, Nielson Bezerra e PEIXOTO, Moisés. Gracia Maria da Conceição Magalhães e Rosa Maria da Silva: os testamentos como documentos autobiográficos de africanos na diáspora; DEMETRIO, Denise Vieira. Artur de Sá e Meneses: governador e senhor de escravos. Rio de Janeiro, século XVII. In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 51-108, 125-172.

6 – LEMKE, Maria. Nem só de tratos ilícitos se forma uma família no sertão dos Guayazes. Os Gomes de Oliveira diante da pia batismal, c. 1740-1840; SANTIROCCHI, Ítalo Domingos e MARTINS, Manoel de Jesus Barros. “Quanto ao serviço dos escravos, eu os dispenso”: D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo ultramontano e escravista (século XIX). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. org.), op. cit., pp. 109-124, 197-224.

7 – CARVALHO, Ariane. “E carrega de cativos os vencedores”: guerra e escravização no reino de Angola (1749-1772); LEITE, Ingrid Silva de Oliveira. Tráfico e escravidão em Elias Alexandre da Silva Corrêa (Angola, século XVIII). In: DEMETRIO, Denise Vieira, SANTIROCCHI, Italo Domingos e GUEDES, Roberto. (org.), op. cit., pp. 253-290.

The World the Civil War Made | Gregory P. Downs e Kate Masur

A discussão sobre as consequências da Guerra Civil constitui campo central dos debates sobre a extensão da cidadania e a ampliação da ação estatal naquela república. Essa circunstância imprime forte demanda por originalidade aos trabalhos publicados pelas novas gerações, especialmente naquilo que toca à natureza do Estado que emergiu daquela contenda. Esse movimento implica tanto a escolha de novos temas, quanto a revisão dos cânones centrais da tradição anterior. Os trabalhos mais recentes buscam superar o que ficou conhecido como “a narrativa da liberdade”.[1] O que vem sendo contestado por essas pesquisas é uma forma de descrever o conflito e suas consequências a partir das transformações que levaram à emancipação dos escravos, a aprovação de três emendas que universalizaram a cidadania e o crescimento vertiginoso do poder de intervenção do Estado Nacional. A história seria muito bonita se tivesse terminado por aí, mas os caminhos tomados pela política dos Estados Unidos mostraram-se pouco promissores em termos das aspirações por integração racial e extensão da cidadania que marcaram os anos imediatamente posteriores ao final do conflito.

As abordagens que agora são criticadas operaram sobre a dicotomia escravidão/liberdade, na qual a Guerra atuaria como o grande vetor dessas transformações. Essa visão, que sobressaiu nos últimos cinquenta anos, derivou do impulso pelos direitos civis, que galvanizou o país com os movimentos de contestação do status quo, o combate à segregação racial e as lutas por inclusão social envolvendo negros, mulheres, índios e outras minorias. A percepção de que o país que ajudou a derrotar o nazi-fascismo discriminava parcelas expressivas da sua própria população causava desconforto na opinião pública. Essa sensação, potencializada pelos traumas da guerra fria, estimulou gerações de historiadores a mergulharem numa época em que foi possível pensar a construção de uma sociedade multiétnica tendo por base a ação de um Estado nacional de caráter reformista. Um período da história dos Estados Unidos durante o qual capitalismo e reforma social pareceram caminhar unidos.

A era da Guerra Civil passou a ser vista como uma janela de oportunidades durante a qual reformas importantes entraram em execução, destacando-se a emancipação de quase quatro milhões de pessoas e a destruição do sistema de plantation no Sul. Nesse contexto, a atuação do Estado nacional e de suas organizações, principalmente o Exército, foi associada a ações positivas que transformaram o caráter da cidadania norte-americana mediante a sua nacionalização e a redução da autoridade dos estados ou do poder das elites locais. A experiência da guerra teria sido positiva, sobretudo pela destruição da influência da oligarquia sulista, que exercia uma atuação reacionária na organização nacional tanto pelos obstáculos internos que ela criava quanto por seu projeto de expandir o escravismo no plano internacional. A derrota do Sul levou a um fortalecimento sem precedentes das prerrogativas do Estado Nacional, desacorrentado das amarras que limitavam suas ações no período pré-guerra. O Estado, segundo essa visão, tornou-se não apenas o propulsor do desenvolvimento econômico, mas a principal arena de defesa da expansão dos direitos, tendo como sua principal ferramenta a atuação de um Exército vencedor. Emblemático dessa posição é o livro de Eric Foner, que redefiniu a “revolução inacabada” como central para as mudanças nos padrões de comportamento da população frente ao Estado nacional. O trabalho de Foner reavaliou o processo de reconstrução do Sul dos Estados Unidos após a vitória da União como um momento significativo de mudanças, ressaltando a aliança entre o Partido Republicano, o Exército e os libertos, no contexto daquilo que Lincoln denominou como “O renascimento da liberdade”.[2]

As críticas atuais partem geralmente da percepção de que persiste a discriminação, que penaliza minorias e imigrantes. Da constatação de que promessas reformistas dos movimentos pelos direitos civis não se cumpriram. Da persistência de um processo de marginalização de amplos setores da sociedade norte-americana, a despeito de anos de políticas de ação afirmativa. Da comprovação de que essa situação é apoiada por setores da população. E da constatação das limitações do Estado que surgiu no pós-guerra. A pauta aqui enfatiza as continuidades, preocupando-se em entender os elementos que possibilitaram a manutenção das estruturas elitistas que permaneceram ativas no mundo criado pela Guerra. Esse movimento de revisão do revisionismo foi denominado pela historiadora israelense Yael A. Sternhell como “The Antiwar Turn”.[3

]A coletânea de treze textos organizada por Downs e Masur vincula-se ao movimento de reconsideração que contesta o legado libertário da Guerra. Ela resultou de uma conferência realizada na Pennsylvania State University sob o título “New Directions in Reconstruction”. Trata-se de uma visão mais cética da herança do conflito, atenta às injustiças e arbitrariedades que permaneceram ou mesmo se expandiram como resultado das forças que a vitória da União ajudou a deslanchar. Mas principalmente descrente dos efeitos benéficos da relação entre reformismo e capitalismo na história da nação. Ela cobre principalmente o período da chamada Reconstrução (1863-1876), quando as lideranças do Partido Republicano estabeleceram os parâmetros da operação do sistema político e do acesso aos direitos básicos nas diferentes regiões. Trata-se do projeto de reestruturação do Sul após a derrota, quando o partido Republicano e o Exército se associaram aos libertos e aos grupos pró-União numa tentativa de transformar as relações de trabalho expandindo direitos e realizando outras reformas tendentes a erradicar os fundamentos da sociedade escravista. Trata-se de uma revisão pela base, com o claro intuito de reformular o entendimento das consequências do conflito para diferentes setores, com ênfase nas experiências das minorias: índios, mulheres negras, coolies, mexicanos e outros grupos cujas identidades permaneceram subalternas no mundo que a Guerra Civil ajudou a criar. Como Steven Hahn destacou na conclusão “a principal tarefa daquilo que costumeiramente denominamos como ‘Reconstrução (…) foi a reorganização da economia política dos Estados Unidos, definindo o curso daquilo que se tornaria a próxima reconstrução – não nos anos de 1950 e 1960, mas através da reconstrução corporativa da América, na década de 1890” (340).

A crítica dirigida à Reconstrução fica evidente já na introdução, quando os organizadores sugerem que “a ideia é dispensável”. Essa sugestão deriva da persuasão de que a “Reconstrução” não proveu “a estrutura mais adequada para o entendimento do sentido das várias histórias dos Estados Unidos no pós-guerra” (4). O ponto reaparece com intensidade variável em diversos capítulos subsequentes ainda que alguns mantenham uma abordagem mais tradicional ao tratar de temas como o terror e a agressão sexual. Kidada E. Williams enfoca como os Afro-Americanos lidaram com o trauma dos ataques noturnos, praticados por organizações paramilitares como a Klu Klux Klan. Esses ataques visavam à eliminação ou a neutralização das lideranças negras que lutavam por igualdade de oportunidades entre as raças. Trata-se de um levantamento dos depoimentos prestados aos agentes da Secretaria dos Libertos (Freedmen’s Bureau) que expõem as representações do terror que estes indivíduos suportaram e os traumas decorrentes da violência e das injúrias recebidas, num contexto definido como “sofrimento social” (161). Numa linha semelhante, Crystal N. Feimster discute como a experiência da Guerra e da ratificação da 14ª emenda renovaram os esforços das mulheres negras no sentido de determinar quando e com quem consentiriam ter relações sexuais. Essa movimentação ocorreu contra uma cultura do estupro que era comum tanto aos senhores sulistas quanto aos soldados do exército da União. A despeito dos avanços obtidos após o final da Guerra, a retirada das tropas colocou em risco novamente a integridade física das mulheres negras, demonstrando a limitação do governo federal para protegê-las de uma tradição estupradora e intimidante, que persistiu no assim chamado “novo sul”. Ao expor como a herança da escravidão continuou a influenciar a economia política norte-americana, essas historiadoras contestam a noção de que a transição da escravidão para a liberdade tenha sido tão profunda como Eric Foner e outros gostariam. O continuum de violência contra os negros, se alongado do campo para as cidades, levanta questões traumáticas a respeito da narrativa da Guerra Civil e do período subsequente a sua conclusão, sugerindo que o mundo que a Guerra Civil criou permaneceu imerso em concepções de cidadania muito pouco igualitárias.

O legado da Reconstrução, agora enfocado como miragem, é igualmente minimizado no artigo de K. Stephen Prince, que trata da forma como as fotografias das ruínas das cidades sulistas foram recebidas pela opinião pública do Norte. Antes mesmo do fim da guerra a disseminação de exposições fotográficas retratando a destruição das principais cidades sulistas fortaleceu um senso de irreversibilidade histórica entre as audiências nortistas. As imagens de ruínas eram relacionadas à promessa de um Sul renascido (114), misturando-se tanto com a concepção de uma justa punição à rebelião quanto com o fim daquela sociedade tal como havia existido até então (114). Nesse sentido, a catástrofe confederada era vista como “produtiva, construtiva e necessária” (123). No entanto, essa interpretação ignorava que as lideranças sulistas não haviam aceitado sua condição como permanente. Um velho ditado sustenta que “o sul perdeu a guerra, mas venceu a paz”. Ele indica, entre outras coisas, que a mentalidade sulista foi menos atingida pela derrota que a realidade física de suas cidades. Consequentemente, a amargura da porção branca da população sulista fermentou intenções muito diferentes daquelas que os fotógrafos pensavam registrar. Intenções que favoreciam comportamentos, ideologias e estruturas sociais que antecediam à guerra. A permanência dessas atitudes ressalta o que o autor define como a “teimosa tenacidade do passado” (129).

Ainda no campo das crenças e representações, Luke E. Harlow demonstra como a chamada contrarrevolução sulista, baseada na manutenção da supremacia racial branca, derivou em grande medida da manutenção de uma moral cristã que antecedia à eclosão da rebelião. Esse padrão era sustentado pelos ramos sulistas das igrejas Batista, Metodista e Presbiteriana, que aturam como uma força coerente e que continuam a plasmar a cultura política da região. Elas constituíram o que o autor denomina como “uma teologia da escravidão” (151) em oposição aos ideais milenaristas que prevaleciam nos ramos nortistas das mesmas denominações. A busca de elementos de sustentação do passado escravista e a análise da sua persistência constituem pontos fortes dos artigos aqui analisados, especialmente quando lidam com questões relacionadas à memória e as comemorações do pós-guerra.

O principal alvo dos autores, no entanto, não é a propriamente a Reconstrução, mas o conceito de Leviatan Ianque, desenvolvido pelo sociólogo Richard Bensel no final dos anos 80 do século passado.[4] A visão de um Estado nacional revigorado, emergindo do período da guerra com a força de um vitorioso mandato sangrento foi central para a corrente conhecida como “American Development”. A ratificação do Homestead Act, o apoio à industrialização, o controle da atividade monetária constituem etapas importantes da aceleração do processo de formação do Estado, em cumprimento de uma agenda que datava do período Federalista. Os organizadores e a maioria dos autores de The World the Civil War Made criticam esse entendimento da autoridade esposada pelo governo federal. Eles enfatizam a vulnerabilidade dessa estrutura frente a soberanias locais e sua dificuldade para impor a autoridade longe dos centros urbanos.

Em geral, os artigos desta coletânea definem o Estado do pós-guerra através do conceito de “Stockade State” ou Estado de Paliçada. Essa estrutura seria constituída por uma coleção de postos avançados, espalhados pelo território, poderosos apenas dentro de limites geográficos estreitos. Essas composições encontravam-se vulneráveis tanto à ação de centros de poder alternativos, como ao movimento de indivíduos que viviam além de qualquer autoridade pública. A ênfase, portanto, encontra-se na fraqueza relativa do Estado Nacional que emergiu da vitória da União, destacando-se sua incapacidade para incorporar grupos minoritários a uma concepção mais abrangente da cidadania, bem como sua inaptidão para gerenciar os conflitos que emergiram na esteira da guerra. O ponto encontra seu paroxismo no trabalho de Laura F. Edwards, que sustenta que “nem o governo federal e nem mesmo os governos estaduais controlavam a lei e a governança nos Estados Unidos oitocentistas” (28).

Outros capítulos apresentam uma descrição dramática dos conflitos a respeito das formas de trabalho compulsório que se mantiveram após o fim da escravidão. Para Stacey L. Smith as lutas centrais do pós-guerra visavam ao mapeamento dos limites coativos no intuito de determinar como o governo Federal interviria para restringir o poder coercitivo de empregadores, corporações e estados. Analisando as situações da peonagem indígena e da exploração dos coolies, a autora demonstra como o governo republicano foi capaz de confrontar com sucesso a assertiva “de que a servidão indígena poderia ser benéfica” (52), ainda que soluções para a questão da peonagem viessem a ser estabelecidas de maneira lenta e conflituosa. Simultaneamente, a defesa da autonomia individual e da mobilidade ascendente, pedras basilares do credo liberal, levou os mesmos republicanos a baterem-se pela exclusão dos imigrantes chineses. Isso se deu a partir do entendimento de que os coolies, como eram pejorativamente chamados, seriam servis e dependentes num nível que excluiria sua assimilação como trabalhadores livres.

The World the Civil War Made apresenta o poder público como uma estrutura sitiada por forças locais, por funcionários ineptos, por questões constitucionais, todos atuando como limitadores da capacidade estatal de agir com alguma autonomia num cenário de tensões e incertezas. Nesse cenário, a violência assume papel central na narrativa, praticada com liberalidade frente à incapacidade do Estado para atuar com força na periferia da sociedade. Nas palavras dos editores: “{P}erguntamos se a cidadania, os direitos individuais, e a autoridade federal definiram a era” (14). A resposta certamente é negativa. As situações da persistência da peonagem e da exploração continuada dos imigrantes coolies evidenciam os limites da ação do Governo Federal frente a forças locais e costumes de exploração do trabalho, que pareceriam arraigados nas paisagens do Novo México e da Califórnia. Demonstram também que muitas das concepções ideológicas dos republicanos eram insuficientes para lidar com o grau de complexidade das realidades da fronteira oeste daquela república.

Outro lado da mesma crítica refere-se aos efeitos perversos das forças que a guerra deslanchou. Assim, o mesmo Estado que estimulou um desenvolvimento capitalista acelerado mostrou-se cada vez mais insensível frente à questão indígena. Stephen Kantrowitz em seu estudo sobre os índios Ho-chuck observa que as leis e emendas que referendaram a cidadania em escala nacional pretendiam que os nativos abraçassem uma matriz de valores e comportamentos que incluíam os princípios da propriedade privada e os hábitos da colonização, da orientação para o mercado e do lar patriarcal. Para Kantrowitz a experiência dos Ho-Chunks sugere que “a luta pelo significado da cidadania e a política de civilização coercitiva se entrecruzaram” (77). A partir da condição de rivais na disputa pelo uso do solo norte-americano, as tribos indígenas representaram um desafio direto à ideia do solo livre. A política de paz do presidente Grant procurou destribalizar os índios, substituindo sua vida comunal e a posse coletiva das terras por um sistema agrícola patriarcal. Dessa forma, “o conceito de cidadania funcionou como uma ferramenta disciplinar do Estado, não como um caminho para a cidadania indígena” (99).

Em seu capítulo sobre os paradoxos da política indígena, C. Joseph Genetin-Pilawa dissocia os conflitos envolvendo os nativos da trajetória da Reconstrução. O autor entende que o otimismo expresso na criação do Office of Indian Affairs declinou devido a mudanças de concepção entre os próprios legisladores. Estes deixaram de entender a soberania como pilar da política indígena, cedendo à política de colonização que afetava profundamente a capacidade de sobrevivência daquelas comunidades. Nesse sentido, a débâcle da soberania indígena sobre suas terras não resultou do terror ou da intimidação política, como no Sul, mas da ação de forças econômicas e migratórias que o governo Federal não quis ou não pôde controlar. O papel do exército também foi diferente. Se no Sul a instituição envolveu-se na reforma do sistema político contra uma oligarquia branca agressiva, sua atuação no Oeste foi bastante diferente. Ali o exército atacou sistematicamente as comunidades indígenas como forma de erodir sua soberania, tornado-se “um agente poderoso da política de colonização” (194). Sem o Exército, a política de remoção indígena que prevaleceu no final do século XIX seria impossível.

Barbara Krauthamer oferece um dos textos mais originais e provocativos da coletânea. Ela analisa a situação das nações indígenas, muitas das quais possuíam escravos e aliaram-se ao Sul durante a Guerra. O capítulo analisa o tratado de 1866, firmado entre o governo Federal e as nações Choctaw/Chicasaw. O tratado emancipou os escravos negros dos indígenas, simultaneamente afetando a soberania indígena sobre suas terras. Ao invés de alinhar-se às análises que consideraram a pressão antiescravista como um instrumento do avanço colonizador, a autora propõe entendê-lo como “ilustrativo do escopo complexo, contraditório e continental da Reconstrução” (242).

Dois capítulos parecem destoar da proposta do livro. Andrew Zimmerman tenta combinar uma analogia da tradição historiográfica marxista nos EUA aos escritos de Marx e Engels sobre a Guerra Civil. Através da análise da participação de exilados alemães nas forças da União o autor critica o conceito de Revolução Burguesa, que parte da tradição marxista associou ao legado da guerra. Zimmerman afirma que a própria dinâmica da Guerra mudou o conceito de revolução, influenciando os escritos posteriores de Marx e Engels. Trata-se de texto exploratório, crítico aos trabalhos que mais recentemente procuraram encontrar vínculos entre as revoluções europeias de 1848 e a liderança republicana nos EUA. O capítulo também reforça o conceito de agência, a partir da reconsideração da luta dos escravos, considerados atores centrais do proposto processo revolucionário. Aqui inexiste discussão sobre a Reconstrução ou sobre o caráter do Estado emergindo da Guerra, mas uma tentativa isolada e sofisticada de conectar o mundo da Guerra a uma perspectiva internacionalista.

A discussão de Amy Dru Sanley sobre os efeitos do Civil Right Act (1875) na política de direitos humanos demonstra os efeitos positivos da política da Reconstrução, ao considerar essa medida como precursora da criação de uma esfera dos direitos humanos. Essa ação infere que a linguagem dos direitos humanos nasceu naquele contexto, representando um divisor de águas tanto para o fim da escravidão como para a emergência dos discursos sobre reforma social, a partir da disputa sobre o direito ao divertimento. O artigo parte de um processo movido por um negro contra a segregação nos teatros. O direito ao lazer, visto como uma atividade menos relevante, fornece o ponto de partida para uma discussão crítica em relação à historiografia sobre direitos humanos. Trata-se de um dos mais imaginativos capítulos da coletânea, ainda que ele não se alinhe diretamente à discussão sobre a natureza do Estado proposta pelos organizadores.

A introdução, os doze capítulos subsequentes e a conclusão expõem as ambiguidades do mundo que a Guerra criou, enfatizando realidades complexas e multifaceadas. Assim, mais que um era de esperanças e promessas de liberdade, os trabalhos aqui expostos delineiam uma sociedade marcada pela violência e pela persistência de comportamentos tradicionais, estimulados por diferentes aglomerações de poderes locais. Eles descortinam uma agenda de pesquisas que permitirá ao leitor brasileiro situar-se a respeito das abordagens mais recentes sobre a História dos Estados Unidos durante a segunda metade do século XIX.

A distribuição dos artigos poderia ter obedecido a alguma forma de subdivisão temática que ordenasse por assunto. Essa organização tornaria a leitura mais agradável, reforçando a continuidade e facilitando a compreensão sobre as diferenças de concepção entre os colaboradores. Por outro lado, algumas vezes a uniformidade parece um pouco forçada sobre os textos, apesar dos esforços de vários autores para alinharem seus trabalhos aos conceitos-chave do livro. É compreensível que assim seja, já que um dos objetivos dos organizadores é o de entender “{C}omo as mudanças {proporcionadas pela guerra} ecoaram nas vidas das pessoas comuns e das comunidades”. Mas é preciso levar em conta o fato de que nem todos os autores parecem estar lendo por uma mesma cartilha analítica, apesar das referências trocadas entre vários dos capítulos. Ou seja, a coesão analítica nem sempre é consistente, circunstância que pode ser comprovada pela dificuldade para romper com a própria periodização da Reconstrução. Além disso, um pouco mais de uniformidade no tratamento de certos termos seria bem vinda. Os conceitos de Governo Federal, Estado Federal, Governo Central poderiam ter sido padronizados. Mas esse é um problema menor, que futuras reedições deverão corrigir. No geral, ainda cabe refletir até que ponto essas abordagens desautorizam ou complementam os estudos anteriores, particularmente no que diz respeito à longa tradição analítica sobre state building proporcionada pelos trabalhos da Sociologia Histórica, cuja ausência nesta coletânea é completa.[5] O estudo do Estado constitui uma espécie de caixa de pandora que uma vez aberta precisa ser enfrentada na sua totalidade. Assim, pode-se dizer que os estudos dessa coletânea apresentam propostas inovadoras e interpretações alternativas à grande narrativa da liberdade propondo novas direções para os estudos sobre a Guerra Civil e suas consequências. Portanto, eles abrem um caminho, mas ainda é cedo ainda para saber se um novo paradigma está sendo estabelecido.

Notas

1. A esse respeito ver, Caroline Emberton, “Unwriting the Freedom Narrative: A Review Essay”. In The Journal of Southern History, Volume LXXXII, no. 2, maio de 2016, pp.377-394.

2. Foner, Reconstruction: America´s Unfinished Revolution. Nova Iorque, Harper & Row, 1988; Lincoln, “The Gettysburg Address” In Harold C. Syrett (org.), Documentos Históricos dos Estados Unidos, p. 221.

3. Yael A. Sternhell, “Revisionism Reinvented: The Antiwar Turn in Civil War Scholarship,” Journal of the Civil War Era 3 (junho de 2013), pp. 239-256.

4. Richard Franklin Bensel, Yankee Leviathan: The Origins of Central State Authority in America, 1859-1877. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

5. Para uma coletânea sobre o debate ver, Peter Evans, Dietrich Rueschmeyer & Theda Skocpol, Bringing the State Back In. Cambridge, Cambridge University Press, 1985.

Vitor Izecksohn – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFF, Niterói – RJ, Brasil. E-mail: vizecksohn@gmail.com


DOWNS, Gregory P; MASUR, Kate. The World the Civil War Made. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: IZECKSOHN, Vitor. Guerra Civil nos Estados Unidos: novo balanço da Reconstrução. Almanack, Guarulhos, n.15, p. 346-355, jan./abr., 2017.

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Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império | Marta Amoroso

Conheçamos o projeto de uma fazenda ideal, imaginada por um francês no Brasil durante a primeira metade do século XIX. O sujeito pensou-a cercada por um cenário paradisíaco na Serra da Mantiqueira, interior de Minas Gerais. Seria uma fazenda produtiva e assentada em terras férteis. Para viabilizar tal prosperidade, o francês acreditava ser possível manter índios e negros em paz, submissos a ele e trabalhando de maneira eficiente. Os africanos escravizados, a benevolência de seu senhor faria que eles se portassem de maneira cordata, retribuindo com dedicação ao trabalho. Já os índios, estes deveriam ser atraídos com presentes. Uma vez que se tornassem aliados, o caminho para sua submissão seria a catequese (p. 38-39). Esse foi um projeto idílico de Auguste de Saint-Hilaire, botânico que viajou por diversas partes do Brasil entre 1816 e 1822, coletando milhares de espécies vegetais e animais, escrevendo relatos. Seus textos são alguns dos mais preciosos escritos sobre o Brasil no século XIX. Apresentam elementos não só sobre a fauna, a flora e a geografia do território, mas também sobre as populações dos sertões do Brasil, incluindo os povos indígenas das várias províncias que conheceu.

O projeto idílico da fazenda Saint-Hilaire, nunca realizado, era apenas uma miragem, uma idealização de como controlar a natureza submetendo-a aos interesses da ciência e do desenvolvimento econômico. Dentro dessa visão, alguns cientistas como ele acreditavam que os povos ameríndios representavam um estágio de degeneração da espécie humana e que cabia aos povos europeus encontrar caminhos para os “civilizar”.

A passagem descrita acima é uma das preciosidades apresentadas e analisadas neste novo trabalho de Marta Amoroso, publicado em 2014 e lançado em 2015 pela editora Terceiro Nome. Com base em arquivos sediados em diferentes países, em especial a documentação da Ordem Menor dos Frades Capuchinhos, de orientação franciscana, sediada no Rio de Janeiro (Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos no Rio de Janeiro), – Amoroso escreveu uma importante contribuição aos estudos sobre os índios do século XIX. Utilizando-se das ferramentas teóricas da Antropologia, relendo os estudos clássicos de Telêmaco Borba e Curt Ninuemdaju sobre os Guarani no início do século XX, a autora visa não só descrever as políticas de Estado e os dilemas que os freis enfrentaram nos interiores do Brasil, principalmente no Paraná, mas problematizar como os coletivos indígenas (termo up to date entre os etnólogos para se referir aos grupos indígenas) se inseriram nos aldeamentos.

Os aldeamentos no Império do Brasil foram um novo-velho modelo de controle dos índios. A política das aldeias sob controle dos brancos no XIX pode ser lida no sentido de uma reedição, uma espécie de mescla de referências jesuíticas e pombalinas do período colonial. Ao mesmo tempo, traz as novidades de um Estado nacional que buscava controlar as populações do território que pretendia como seu, dinamizando a economia dessas regiões dentro da lógica produtiva do capitalismo. Além disso, a autora mapeia os fundamentos científicos que embasaram as ações dos viajantes europeus ao Brasil no XIX, das concepções dos padres capuchinhos e das formas como os diferentes grupos indígenas traduziam e se inseriam nas novas situações.

Marta Amoroso é antropóloga, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Defendeu o seu mestrado na Unicamp, sob orientação de Roberto Cardoso de Oliveira, estudando o povo Mura na Amazônia no século XVIII. No doutorado, na USP, sob orientação de Manuela Carneiro da Cunha, fez uma etnografia do aldeamento São Pedro de Alcântara (1855-1895), onde viveram populações Guarani, Kaiowá e Kaingang na província do Paraná. Ingressou na USP como docente no ano de 2000. Desde então vem integrando importantes grupos de pesquisa, orientando pesquisadores e produzindo uma série de artigos e coletâneas centrados nos temas da Etnologia Indígena, História dos Índios no Brasil e estudos sobre os Mura na Amazônia. É uma das pesquisadoras principais do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA) na USP, coordenado por Dominique Gallois.

A tese de doutorado de Marta Amoroso, “Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895)”, defendida na USP em 1998 é um estudo denso que articula dados de arquivos e levantamentos quantitativos por meio de uma refinada leitura etnográfica. Amoroso, ao longo de sua obra e especialmente em sua tese de doutorado, resolve muito bem a leitura dos dados etnográficos sobre as sociedades indígenas, conseguindo fazer esses dados serem compreendidos dentro do contexto em que foram gerados. Realizar esse tipo de análise com méritos tanto no campo da História como na Antropologia, à maneira de Manuela Carneiro da Cunha e Nádia Farage, é algo raro e merece ser celebrado.[1]

No entanto, a tese de doutorado de Marta Amoroso permanece inédita, pois o livro não é a tese, avisa a autora logo na introdução. Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império é uma síntese dos estudos realizados nos últimos 20 anos pela autora. É certo que esses estudos se iniciam na tese, mas transcendem a ela. O presente livro, dividido em três partes, se propõe permitir uma melhor compreensão dos aspectos que cercaram seu objeto inicial, a experiência do aldeamento São Pedro de Alcântara no Paraná e os relatos do frei capuchinho Timotheo de Castelnuovo. É importante registrar que a não publicação da tese configura-se numa grande perda, pois ela é quase inacessível, estando disponível apenas para empréstimo físico na Biblioteca Florestan Fernandes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O banco de teses online da universidade não possui a tese de Amoroso em seu catálogo, visto que ela foi defendida antes de a USP implantar seu acervo digital de acesso universal.

Voltemos ao livro. A primeira parte, “Explorando a Mata Atlântica”, é composta pelos capítulos “O mal-estar de Guido Marlière” e “Dos Andes e Amazônia, rumo ao crânio botocudo”. Discute os princípios científicos que respaldaram a atuação de muitos viajantes estrangeiros atraídos para o Brasil depois da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. É nessa parte que está situada a análise da “fazenda imaginária” de Saint-Hilaire, mencionada no início desta resenha.

Já a segunda parte, “Propondo a catequese e civilização”, integrada pelos capítulos “Das selvas ao solo ubérrimo” “Descontinuidades”, aparece como um ensaio antropológico. Aqui a autora utiliza o conceito de “equivocações controladas”, de Eduardo Viveiros de Castro, para pensar desencontros e traduções dentro e fora dos aldeamentos entre os diversos coletivos indígenas, capuchinhos, escravos negros, imigrantes e demais moradores do entorno.

A terceira e última parte, “Construindo o aldeamento indígena”, que contém os capítulos “Ficções em frei Timotheo de Castelnuovo”; “Lavoura (s)” e “Um kiki-koi para Arepquembe”, é identificada pela própria autora como uma releitura de sua tese.

Como já mencionado, há várias passagens riquíssimas no livro. Destaco aqui o capítulo intitulado “Um kiki-koi para Arepquembe”, em que Amoroso apresenta a forma como os Kaingang aldeados, mesmo já convertidos ao cristianismo, conseguem retomar um ritual funerário típico de seu grupo, o kiki-koi, para enterrar o cacique Manoel Arepquembe, assassinado em 1872. Uma das grandezas do capítulo está nas relações que a autora estabelece entre as doenças mortais que atingiram diversas vezes os índios dos aldeamentos e de seu entorno e as releituras das mitologias de fim de mundo entre os Guarani e Kaiowá. Outro aspecto analisado é que o modelo de missão do século XIX eliminou uma estratégia fundamental dos jesuítas no período colonial, que era a tradução das línguas indígenas. No Oitocentos, isso resultou no fato de que os freis Timotheo de Castelnuovo e Luís de Cimitille tinham muito menos elementos para descrever e compreender os rituais funerários Kaingang do que os missionários de séculos anteriores tiveram em relação às etnias com as quais conviveram.

Para o historiador Carlos Zeron, que escreve a orelha do livro, o trabalho de Amoroso prima justamente pelas “pontes” que estabelece com outros períodos históricos. De um lado, o modelo de catequese capuchinha é obrigado a dialogar com a tradição colonial jesuítica, que vigeu no Brasil durante cerca de 200 anos. De outro, a realidade dos indígenas no Brasil de hoje é tributária de ações de avanço sobre os territórios indígenas no século XIX.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, no prefácio do livro, destaca por sua vez as peculiaridades do Brasil do século XIX. Tratava-se de um território que, ainda sob o domínio português, se abriu aos interesses de artistas e cientistas europeus convidados pelo príncipe-regente João VI e que culminou com uma política de civilização e catequese de índios a partir de 1845, a qual também previa a vinda de estrangeiros, desta vez padres, sob controle do Estado para se efetivar.

O livro de Amoroso possui uma característica relevante, menos de conteúdo e mais de forma, que eu gostaria de apontar nesta resenha. É uma reflexão que nos ajuda a pensar a eficácia dos formatos aos quais destinamos nossas pesquisas acadêmicas. Por uma série de motivos profissionais e pessoais, podemos deixar de publicar, em formato de livro, as teses e dissertações que produzimos. O que não significa que sejamos pouco produtivos. Ao contrário, desenvolvemos uma série de pesquisas, obtemos financiamento, realizamos trabalhos de campo, vamos a arquivos fora do país, participamos de congressos em diversas partes do mundo. As pesquisas são ricas, como no caso de Marta Amoroso, as análises refinadas, os resultados promissores. No entanto, a exigência de uma produtividade acadêmica que nos remete a uma escala de produção industrial obriga-nos a realizar muito, porém muito fragmentado. Papers em congressos, conferências e comunicações, artigos com número de palavras e páginas estritamente controlado. Com isso, os textos que produzimos, pelos limites impostos pelo tempo e espaço, não conseguem aprofundar os assuntos, muitas vezes são pinceladas a respeito de uma pesquisa maior. A pergunta é: quando, em nosso meio, conseguimos dar a conhecer essa pesquisa maior tanto em tamanho quanto em grau de aprofundamento?

Assim, quando Amoroso opta por publicar um livro que é uma coletânea de artigos, acaba trazendo resultados panorâmicos inconclusos. O leitor fica com muitas indagações que foram mais bem respondidas em outros artigos e na própria tese da autora. Uma das questões, por exemplo, refere-se às articulações e arranjos políticos que estiveram por trás da vinda dos missionários capuchinhos ao Brasil, medida efetivada com a lei de 1845 (Decreto 426 de 24/07/1845). Em artigo publicado em 2006 a autora arriscou uma hipótese, bastante plausível, envolvendo o casamento do imperador Pedro II com a princesa Teresa Cristina, de Nápoles, em 1843, demonstrando que a aliança matrimonial tinha também sentido político e estratégico. Daí concluirmos, seguindo os passos da autora, não ser por acaso a vinda de trabalhadores imigrantes italianos e padres capuchinhos ao Brasil a partir da segunda metade do Oitocentos.[2]

A despeito da ressalva, é evidente que o livro releva grandes achados. No capítulo 4, por exemplo, a autora inicia uma discussão sobre os termos da legislação indigenista do Império e seus desdobramentos. Amoroso nos mostra que os aldeamentos do período significariam uma “descontinuidade” em relação às ações missionárias cristãs. Para a autora, a política dos aldeamentos do Império (1845-1889) trouxe o conceito de tutela do Estado aos índios e, ao mesmo tempo, propôs que seu direito à terra estivesse atrelado ao grau de “selvageria” (p. 76). Dentro dessa lógica, os antigos aldeados não teriam mais direito de permanecer nas missões. Os Guarani-Kaiowá rapidamente aprenderam a jogar dentro desse esquema: se necessário, antigos aldeados “vestiam-se de selvagens” para poder entrar nos novos aldeamentos que se iam fundando (p. 78-80).

No Capítulo 2, Amoroso mostra que o príncipe alemão Maximiliamo Wied-Neuwied, após uma convivência intensa entre os Botocudos, subverteu o binômio tupi-tapuia no século XIX, ao afirmar que os “botocudos” com os quais conviveu eram tão amistosos quanto os tupis do passado. A despeito dessa interpretação mais progressista, os cientistas no período se pautavam nos pressupostos da nascente antropologia física, que postulava os princípios da degeneração das espécies da América, crendo que os botocudos se assemelhariam aos animais, pois não tinham chefia, uma liderança como os andinos (p. 43-8).

Já no capítulo 6, Amoroso mostra uma das formas através das quais os franciscanos tiveram êxito no programa de catequese: com a montagem de uma destilaria de aguardente no aldeamento de São Pedro de Alcântara em 1870. O assunto não foi propagandeado, na verdade seguiu oculto no meio da documentação da Ordem Menor (no Arquivo da Custódia dos Padres Capuchinhos do Rio de Janeiro), visto que o consumo de bebidas alcoólicas entre os índios foi sempre uma prática condenada pela religião católica, o que obviamente não evitou o seu uso, especialmente de bebidas fermentadas e utilizadas nos rituais indígenas. No caso da cachaça, seu consumo esteve sempre relacionado aos danos que causava às populações indígenas, daí o ocultamento do tema (p. 160-1).

Por fim, Amoroso traz novos aportes para que os especialistas enfrentem uma antiga polêmica. Trata-se da afirmação de Manuela Carneiro da Cunha, escrita no começo dos anos de 1990, de que “questão indígena no século XIX era uma questão de terras”:

A “questão indígena”, no século XIX, deixou de ser uma questão de mão-de-obra, para se converter essencialmente numa questão de terras. Há variações regionais, é claro: na Amazônia, onde a penúria de capitais locais não permitiu a importação de escravos africanos, o trabalho indígena continuou sendo fundamental, e foi reaviventado no fim do século, com a exploração da balata, da borracha e do caucho. No Mato Grosso e no Paraná, ou mesmo em Minas Gerais e no Espírito Santo, as rotas fluviais a serem descobertas e consolidadas exigiram a submissão dos índios da região. Mas se se pode arriscar falar “em geral” de um século inteiro e do Brasil como um todo, a tônica foi, no século XIX, a conquista de espaço. Em áreas de índios ditos então “bravios”, tentava-se controlá-los, controlando-os em aldeamentos, “desinfestavam-se” assim os sertões. Nas áreas de ocupação colonial antiga, tentavam-se ao contrário extinguir os aldeamentos, liberando as terras para os moradores. Essas diferenças regionais nada mais eram, portanto, do que duas etapas de um mesmo processo de expropriação. [3]

Amoroso demonstra em seu livro que o projeto dos aldeamentos no Paraná a partir da segunda metade do XIX não tinha por objetivo engajar trabalhadores em atividades de interesse do Império, mas retirar os índios de terras e caminhos estratégicos, abrindo espaço para que chegassem outros trabalhadores, como os imigrantes europeus, considerados mais lucrativos no sistema capitalista. Nisso a afirmação de Cunha casa-se com os dados levantados aqui. De todo modo, a análise de Cunha assenta numa generalidade que o próprio trabalho de Amoroso permite contradizer ao exibir inúmeros episódios em que os índios trabalhavam para além dos aldeamentos, especialmente quando já eram considerados “civilizados” e empregavam-se como “camaradas” contratados por jornadas pelos fazendeiros paulistas (p. 173). Além disso, o problema do texto clássico de Manuela Carneiro da Cunha é afirmar isso para o século XIX como um todo, quando estudos mais recentes sobre a primeira metade daquele século vêm mostrando a importância dos índios como mão de obra em várias partes do território brasileiro.[4]

Outro dado importante, que instiga o leitor a compreender melhor, mas que a autora não fornece maiores dados no livro, ao contrário do que faz na tese, é sobre a presença de população de negros nos aldeamentos e em seu entorno. Esse dado gera perguntas no leitor sobre como se dava essa convivência, que papel ocupavam os negros nesse contexto. Na tese de 1998 é possível descobrir alguns dados mais sobre essas populações que, no entanto, não são explicados no livro. Assim, a presença de africanos e afrodescendentes nos aldeamentos esteve relacionada ao envio de trabalhadores especializados, como ferreiros, marceneiros etc. para trabalhar na Fábrica de Ferro de Ipanema em Sorocaba na década de 1850. Não eram necessariamente libertos, mas estavam na condição de “tutela”, sofrendo ainda castigos físicos conforme as vontades de seus senhores.[5]

Em síntese, os estudos de Marta Amoroso, em seu conjunto, são de uma qualidade ímpar, de grande importância tanto no campo da História quanto da Antropologia, principalmente na intersecção entre elas. A única coisa a lamentar é que o livro foi muito curto perto dos dados que a autora levantou ao longo das últimas duas décadas.

Notas

1. CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Fapesp/SMC, 1992 (como organizadora e autora de um dos capítulos); _____ (org.). Legislação indigenista no século XIX. Uma compilação (1808-1889). São Paulo: Comissão Pró-Índio/Edusp, 1992; FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões. Os Povos Indígenas no Rio Branco e a Colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra ANPOCS, 1991.

2. AMOROSO, Marta. Crânios e cachaça: coleções ameríndias e exposição no século XIX. Revista de História 154 (1º, 2006), 119-150 p. 128-30. Disponível em http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/19024/21087 Último acesso em 07/04/2017. Outros estudos que poderiam ajudar a problematizar a questão: SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil imperial. Volume I: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012

3. CUNHA, Manuela Carneiro da. Prólogo. In: ____ (org). Legislação indigenista no século XIX. Op. Cit., p. 4

4. Alguns trabalhos mais recentes, no campo da história sobre os índios, abordaram a participação indígena também no trabalho no Brasil império: COSTA, João Paulo Peixoto. Na lei e na guerra: Políticas indígenas e indigenistas no Ceará (1798-1845). Tese de Doutorado. Campinas: IFCH, 2016; LEMOS, Marcelo Sant’ana. O índio virou pó de café? A resistência indígena frente à expansão cafeeira no Vale do Paraíba. Jundiaí: Paco Editorial, 2016; MACHADO, André Roberto de. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime Português na província do Grão-Pará (1821-25). 1. ed. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2010; MOREIRA, Vania Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, nº 166, 2012; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros. Op. cit.; XAVIER, Maico Oliveira. Extintos no discurso oficial, vivos no cenário social: os índios do Ceará no período do império do Brasil. Trabalho, terras e identidades indígenas em questão. Tese de Doutorado. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 2015.

5. AMOROSO, Marta. Catequese e evasão. Etnografia do aldeamento indígena de São Pedro de Alcântara, Paraná (1855-1895). Tese de Doutorado em Antropologia. São Paulo: FFLCH-USP, 1998, p. 130-2.

Fernanda Sposito – Pesquisadora de Pós-Doutorado em História na Unifesp. Bolsista FAPESP. E-mail: fifaspo@yahoo.com.br


AMOROSO, Marta. Terra de índio: imagens em aldeamentos do Império. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. Resenha de: SPOSITO, Fernanda. Além do sertão: indígenas no Brasil do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 343-351, maio/ago., 2017.

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Educação na era digital: a escola educativa – PÉREZ GÓMES (C)

PÉREZ GÓMES, Angel I. Educação na era digital: a escola educativa. Trad. de Marisa Guedes. Porto Alegre: Penso, 2015, Resenha de: MENDES, Michel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 394-400, maio/ago, 2017.

O que significa formar uma personalidade educada, capaz de enfrentar, com certa autonomia, o vendaval de possibilidades, confusão, riscos e desafios deste mundo globalizado, acelerado e incerto? Como superar o vazio de um conhecimento retórico que não serve para orientar a ação? É possível ter uma escola verdadeiramente educativa, que ajude cada indivíduo a se construir de maneira autônoma, sábia e solidária? Essas são algumas das provocações “guarda-chuvas” que modelam e orientam a obra de Pérez Gómes. O autor é de origem espanhola, nascido em Valladodid, cidade situada a noroeste da Península Ibérica, Doutor em Pedagogia pela Universidade Complutense de Madrid e Professor Titular na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Málaga.

As provocações apresentadas na obra refletem a necessidade pessoal do autor de pensar e reconsiderar questões pertinentes à educação, as quais também são compartilhadas por inúmeros profissionais da área. Leia Mais

Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – NODARI (C)

NODARI, Paulo César. Ética, direito e política: a paz em Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Paulus, 2014. Resenha de: RECH, Moisés João. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 401-407, maio/ago, 2017.

A tarefa que Paulo César Nodari se coloca é, em grande medida, ambiciosa, para dizer o mínimo. Sua pesquisa de tese de Pósdoutoramento que se constituiu na presente obra, tem como mote o “projeto filosófico da paz no contratualismo moderno” (2014, p. 298), na qual Nodari empreende profundos estudos acerca de autores clássicos do pensamento político-moral da modernidade: Hobbes, Locke, Rousseau e Kant – com notória ênfase no pensador de Königsberg. O inovador enfoque elaborado em Ética, direito e política… é justamente olhar sob um novo prisma os autores destacados, qual seja, o prisma da paz. Desse modo, Nodari desembaraçar-se da carga pessimista que os autores contratualistas carregam consigo, no que diz respeito à propensão da natureza humana à guerra.

Para tanto, o texto se desenvolve a partir de duas partes, que se dividem em seis capítulos. A Primeira Parte, intitulada: “O contratualismo moderno e o projeto filosófico da paz: Hobbes, Locke e Rousseau” é subdividido em três capítulos, que, igualmente, são divididos em partes de contextualização e de inovação. Leia Mais

Cidade e cultura visual / Urbana / 2017

A Revista Urbana apresenta, em sua trajetória, uma especial atenção aos documentos visuais. Nos artigos reunidos pela revista, não é raro o uso de fotografias, cartografias, desenhos e outros suportes visuais, num diálogo muito profícuo e latente com as reflexões diretamente ligadas à cultura urbana. A própria transformação e o desenvolvimento dos debates acadêmicos expressos ao longo de seus volumes têm trajetória inerente a um diálogo com esses documentos, destacando uma ligação que acompanha a própria constituição dos saberes urbanos. Não por menos, logo em seu segundo volume, a Revista Urbana foi organizada em torno do tema ‘Cidade, Imagem, História e Interdisciplinaridade’, marcando, desde o seu início, a necessidade de se pensar a história urbana a partir de documentos visuais.

O volume publicado há uma década se insere num contexto muito específico dos estudos urbanos, mas também de um momento próprio da disciplina da história – em seu sentido alargado. Naquele momento, passava-se a incorporar os estudos visuais como um de seus problemas de investigação. Josianne Francia Cerasoli, no editorial do volume publicado em 2007, destacou que aquela publicação era fruto de reflexões que se deram em dois Simpósios Temáticos da ANPUH, sendo um deles proveniente do GT “Cultura Visual, Imagem e História”. Essa não é uma informação menor, visto que aquele GT nascera no ano de 2003. Foi, portanto, no início dos anos 2000, que os historiadores se puseram a pensar mais cuidadosamente as fontes visuais, propondo novos caminhos e sentidos para a história urbana. Não por menos, o grupo formado naquele GT se consolidou e relevantes pesquisas se estruturaram em torno de seus núcleos de pesquisas.

Vale destacar que esse interesse dos historiadores pelas imagens – com especial atenção à fotografia – vinha tomando corpo a partir de meados dos anos 1980, no Brasil, com notável desenvolvimento a partir dos anos 1990. Trabalhos de expressiva amplitude e cuidado metodológico foram publicados nesse período, onde se pode destacar o volume 6 da revista Acervo do Arquivo Nacional e o volume 5 do Boletim do Centro de Memória da Unicamp, ambos publicados em 1993; o número 27 da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1998 ou o volume 32 dos Anais do Museu Histórico Nacional; além de outras publicações como Retratos quase inocentes, de autoria de Carlos Eugênio de Moura e publicado em 1983, ou a publicação organizada por Annateresa Fabris, Fotografia: usos e funções no século XIX, publicado em 1991. Os documentos fotográficos – nesse caso – passavam a ser tratados não apenas como iconografia para a história, mas eles mesmos – documentos – passavam a ocupar o lugar central de reflexão dos historiadores.

No que se refere aos debates da cidade, da arquitetura e do patrimônio, o uso de documentos visuais também passou a ser recorrente nos trabalhos acadêmicos. Através desse interesse dos historiadores, colocou-se em debate momentos específicos da trajetória das cidades, especialmente no caso dos grandes centros urbanos que tiveram seus aspectos radicalmente transformados pelo processo de urbanização do século XX. Nesse sentido, o trabalho Fotografia e Cidade, das historiadoras Vânia Carneiro e Solange Lima, logo se estabeleceu como uma importante referência para qualquer pesquisador dedicado ao tema. O debate em torno dos mapas, proposto por Beatriz Bueno em Desenho e desígnio, também marca esse momento da produção acadêmica, interessada em pensar a formação das cidades brasileiras a partir dos documentos visuais.

Essa renovação em torno dos suportes documentais seguiu o momento decisivo pelo qual a historiografia brasileira da arquitetura e do urbanismo passou a partir a partir dos anos 1980. Já amplamente destacada e enfrentada em publicações organizadas pelo Dr. Abílio Guerra (2010) e pelo Dr. José Tavares Correia de Lira, através dos números 11 e 12 da revista Desígnio (2011), a revisão historiográfica da arquitetura e do urbanismo é, em grande parte, devedora dessa renovação em torno das fontes, documentos e arquivos. Desse modo, foi possível que novos objetos de investigação e novos problemas pudessem contribuir com uma transformação plural. Num movimento correspondente, Ana Claudia Veiga de Castro e a Joana Mello de Carvalho e Silva organizaram recentemente um número temático dos Anais do Museu Paulista sobre o estatuto das fontes e dos acervos nas pesquisas de história da arquitetura e da cidade, ampliando o debate especialmente no que se refere aos diferentes suportes documentais. Os arquivos e coleções passaram também a ocupar um lugar importante dentro desse movimento de renovação da historiografia.

Não por menos, identifica-se uma nova guinada nos trabalhos dos historiadores, colocando novas perguntas e novos problemas para se pensar os documentos visuais. Já no final do século XX, é possível identificar uma série de trabalhos icônicos que contribuíram de maneira singular para se pensar e produzir história com documentos visuais. De forma pioneira, Michael Baxandall constituiu uma importante contribuição sobre o Renascimento italiano, articulando de forma inovadora imagem e texto. A produção do real através de instrumentos científicos e a constituição de seus suportes visuais, numa relação imbricada com a sociedade, aparece caracterizada de forma cuidadosa no trabalho da pesquisadora Svetlana Alpers. Assinalava-se, assim, o que se denominou por Cultura Visual, um campo de saber interdisciplinar constituído “através das relações de interlocução e produção de sentidos com a história da arte, literatura, filosofia, estudos cinematográficos e de cultura de massa, sociologia, antropologia e arquitetura” (SCHIAVINATTO; COSTA, 2016). No Brasil, esse debate é recente e teve início nos trabalhos Fontes visuais, cultura visual, história visual, de Ulpiano Bezerra de Meneses; e em O desafio de fazer história com imagens, de Paulo Knauss.

A renovação historiográfica associada à cultura visual coloca, portanto, no centro de seu debate não apenas o estatuto das fontes – sua natureza – nas suas diferentes tipologias, mas também as interrelações e o lugar ocupado por elas na relação com seus temas e objetos diretamente relacionais. Isso quer dizer que pensar com imagens não significa uma associação direta com uma questão real ou objeto descrito ou ilustrado pelo documento. O documento, em si, é artefato – tem matéria – e, portanto, tem uma natureza específica que é inerente a uma dada cultura. Desse modo, é possível compreender que o documento visual funciona como elemento intrínseco e indissociável de uma dada cultura, fazendo com que certas especificidades sejam fundamentalmente importantes para a compreensão de seu lugar e relevância. A imagem que carrega uma fotografia, um filme, um livro, um mapa ou desenho é, portanto, apenas um dos elementos fundamentais para a leitura do documento. Este possui também um suporte que carrega uma imagem, valorado diferentemente em acordo com sua natureza; assim como um lugar e uma importância numa dinâmica cultural, que envolve os agentes diretamente ligados a sua produção, circulação e consumo; como também o modo como essa imagem foi produzida, sua linguagem e seus signos e instrumentos diretamente relacionados.

Foi a partir dessas avaliações que os artigos aqui reunidos foram ordenados. Primeiramente, privilegiou-se as tipologias documentais, favorecendo a futura leitura de pesquisadores interessados em determinados documentos. Assim, este número da Revista Urbana pretende servir como apoio a futuras investigações que se dediquem não apenas a um dos temas aqui tratados, mas à natureza do documento enfrentado. Para tanto, a organização deste número apresenta artigos que tratam de livros de arquitetura, produções cinematográficas, telas históricas e fotografias, como que fornecendo subsídios para que se possa acompanhar mais claramente a renovação historiográfica em curso. Paralelamente, é possível notar que os primeiros artigos se enquadram mais cuidadosamente no que se entende hoje por Cultura Visual e, neste aspecto, vale uma pequena descrição.

Em “A imagem da Cabana Primitiva no Renascimento”, Francisco Dias de Andrade apresenta um texto de grande importância para o entendimento de como a imagem da cabana primitiva foi se equacionando a partir da redescoberta do tratado De Architectura de Vitrúvio. Cuidadosamente debatido a partir de fontes, o autor demonstra como essa imagem, hoje consagrada através do trabalho de Joseph Rykwert, é fruto de disputas e tensões culturais. De maneira semelhante, Herta Franco, em seu “Cinema, Estigmatização Territorial e História Urbana”, e Flaviano Isolan, em seu “Metropolis, Trem Azul e Zumbis”, demonstram brilhantemente como a produção cinematográfica não apenas contribuem para a consolidação de significados sobre o próprio território, como no caso de Franco, mas também podem intervir no próprio campo historiográfico, mudando conceitos e sentidos sobre movimentos, como apresentado por Isolan. O cinema não é, portanto, apenas uma representação, mas ocupam uma posição ativa na formação de sentidos sobre um determinado território.

Seguindo uma reflexão cuidadosa em torno da cultura visual, Carlos Oliveira apresenta uma bela contribuição sobre o papel que a circulação de imagens teve para os debates patrimoniais. Apresentando algumas das telas produzidas por Émile Rouède, Oliveria deixa claro que os debates patrimoniais e preservacionistas, gerados pela mudança da capital de Minas Gerais no final do século XIX, guardam associações diretas com a produção visual daquele momento. De maneira semelhante, Bruno de Andrea Roma apresenta uma importante reflexão sobre o papel ocupado pela fotografia na consolidação dos debates ligados à preservação de bens culturais. Em ambos os casos, Oliveira e Roma contribuem para reforçar a importância do estatuto das fontes na relação com os debates patrimoniais, sendo que, nesse último caso, a fotografia ocupa o centro da reflexão para os debates contemporâneos ligados à preservação no Brasil.

Vera Lucia Vieria Lima e Renata de Almeida, em “Arquitetura das colônias de imigração alemã”, assim como Laura Cury, em “A imagem do Parque do Ibirapuera”, se não investem especificamente sobre os debates da cultura visual, apresentam bons contributos para se pensar a imagem na organização de uma memória. Seja sobre a cultura arquitetônica alemã ou mesmo na modernidade expressa através da arquitetura do Parque do Ibirapuera, ambos os artigos representam a natureza intrínseca dos documentos fotográficos.

A Revista Urbana apresenta, desse modo, uma mobilização renovada em torno dos debates visuais. Com este número, espera-se que os debates ligados à cultura visual possam avançar nas universidades brasileiras, renovando as perspectivas possíveis de produção intelectual ligada aos estudos urbanos.

Referências

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Eduardo Augusto Costa – Pós-doutor em história pela Unicamp (2018). Foi vencedor do XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2010). Atualmente é Pesquisador Colaborador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. E-mail: eduardocosta01@gmail.com


COSTA, Eduardo Augusto. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.2, maio / ago, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? – SILVA (RM)

SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação. [Sn]: 2017.  Resenha de: MACHADO, Anderson dos Santos. As camadas na floresta do simbólico: uma leitura do livro “Diferença e descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do excedente de significação”. Revista Memorare, Tubarão, v.4, n. 2 esp. dossiê I, maio/ago. 2017, p.192-200.

Se em As Tecnologias do Imaginário, Silva (2012) debate a construção do imaginário como um fenômeno tecnológico e nos apresenta ferramentas para o trabalho metodológico, com abordagens da sociologia compreensiva para a produção de sentidos na sociedade contemporânea, no livro Diferença e Descobrimento: o que é o imaginário? A hipótese do Excedente de Significação (Silva, 2017), nos fala sobre a natureza dessa dimensão do real e como a própria realidade se configura como imaginário. Trata daquilo que sobra, do que transborda do real cristalizado em significado e objetividade. O autor aborda que é dessa diferença, dessa saliência que sobrepõe ao esperado que o imaginário opera, seja pelo sonho, pela ideia, pelos ideais, pelas representações. Silva nos convida neste novo livro a reconhecer as diferentes possibilidades de sentidos e usos do conceito de imaginário e como elas oferecem leituras interessantes sobre o (s) mundo (s), sempre nos provocando com afirmações certeiras, mas que mexem com nossas convicções e nos instigam a descortinar esse campo. No resgate de uma de suas crônicas, Silva relembra a indagação de um aluno no corredor da faculdade: “- Professor, afinal, o que é o imaginário? ”. A resposta foi: “- Uma floresta encantada” (Silva, 2017).

O estudante, que esperava uma carona, saiu correndo, atônito, sem ouvir o complemento da instigante resposta. Essa obra (Silva, 2017) vem nos contemplar com a visão do pesquisador sobre o tema e nos provoca a adentrar nesse bosque rico de sentidos, signos, significantes e significados, denso pela variedade de estruturas simbólicas, em imagens, palavras e símbolos, que constituem a fauna e a flora desse terreno a ser explorado. Silva nos alerta com sua resposta que este é um cenário denso, múltiplo e que não conseguimos enxergar por inteiro num primeiro olhar (ou vislumbramos do alto a copa das árvores sem observar a riqueza de suas entranhas, ou nos detemos na beleza de uma de suas clareiras sem a garantia de mensurarmos a imensidão dessa floresta). O imaginário é o que escapa, é o excedente.

Silva nos sugere que o imaginário deve ser analisado como uma pátina, técnica de pintura que sobrepõe diferentes camadas de tintas e materiais usados, criando um efeito que traz para a superfície o que está encoberto sem, contudo, revelá-lo por completo. O diferencial desse recurso está em criar uma composição única, singular, na qual é necessário recorrer a técnicas de arqueologia para resgatar as diferentes fases, suas histórias que emergem para a borda.
Ao longo do texto, vai descortinando o imaginário com afirmações firmes que vão rasgando a densidade de cada camada de tinta que vai sendo revelada. Mas pela natureza do imaginário, o contraste em cada uma dessas camadas vai compondo diferentes texturas que não se fecham numa única versão. Ao contrário, mostram uma tendência a inspirar novas possibilidades de olhar. Silva nos diz que o sentido, então, só se dá no imaginário, que rompe com o dique do bom senso daquilo que já aceito.

O excedente é o que aparece na noite obscura da floresta simbólica da resposta dada ao aluno, onde a névoa dispersa a visão objetiva, mas abre flanco para a imaginação, para a fantasia, numa aventura inesperada na criação de mundos, lendas, mitos e verdades que se constroem nas narrativas. Abre espaço para construções que se apresentam como incontestáveis na visão do narrador. Cabe diferenciar imaginação de imaginário:

Há imaginação no imaginário. Nem sempre há imaginário na imaginação. A imaginação não tem compromisso com o real. O imaginário depende de um real – o ocorrido – a ser transfigurado. Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. Salvo aquele que perdeu o significado. (Silva, 2017, p. 75).

Nos fala dos paradoxos desse imaginário, que por sua capacidade de definição do indefinível, vai criando rastros de imaginação que se disseminam na teia do cotidiano, criando tramas, redes, bifurcações que vão rompendo com as convicções e pretensiosas firmezas da objetividade do rigor científico. Mostra que mesmo a convicção dos positivistas está imbricada num imaginário que dialoga com a subjetividade, com a esperança do resultado, com as narrativas de suas produções, que muitas vezes superam a realidade nua de suas práticas. “A racionalidade mostra-se irracional pela sua incapacidade de aceitar e compreender os simbolismos que pontuam a existência e dão-lhe significado e grandeza” (Silva, 2017, p. 36).

Seria esse imaginário apenas relacionado com a fantasia, com o mito, com os monstros e criaturas absurdas que povoam a noite desse lugar insólito? Não. Silva nos fala que, assim como a ciência, o jornalismo também se apresenta na busca de catalogar assepticamente, à luz do dia, o real, crendo que, mesmo se deparando com rastros, não reconhece os seres que habitam as entranhas desse cenário. Mas esquecem os jornalistas que, para fazer essa afirmação, é necessário circular nessa mata. E com isso, Silva traz a angústia de apostar no real como distinto do imaginário. E percorrendo inúmeros pensadores, vem colocando as diferentes possibilidades de pensar a realidade e o que imaginamos ser essa realidade. Antes de tudo, afirma:

Só há imaginário na medida em que existe um real. O imaginário funciona com um acréscimo do real, não podendo prescindir dele. O que é o real? O existente sem significação atribuída pelo imaginário. […] O imaginário é o sentido que redimensiona o fato sem que se possa anulá-lo por iluminação. (Silva, 2017, p. 25).

E o que pode ser então esse imaginário? Silva chama outros desbravadores desse campo, bandeirantes que tentam demarcar esse território sinuoso. Vão avançando sobre as inúmeras camadas de sentido que alimentam ecossistemas próprios que reconfiguram o cotidiano para a produção de imaginação: uma aura, uma atmosfera.

Em contraponto, o real é equiparado à depressão, onde o deprimido preocupa-se apenas com os fatos, os resultados, com o que é palpável, ainda que pela razão. O ser do imaginário, ao contrário, divaga, se põe a postos para a batalha, cria histórias de guerra e enredos que vislumbram uma epopeia. No devaneio, brilha o encantamento com o mundo: a capacidade humana de dar luz por meio da atribuição de sentidos.

O imaginário tem a infância (e sua eterna recorrência) com um solo fértil onde esse imaginário ganha colorido, é copulativo, inseminador, orgiástico, barroco e hedonista. A criança valoriza a riqueza e a variedade. Ficar velho é render-se ao real, que conforma, que informa, é replicador, copiador, formatador. O adulto busca na arte e no devaneio, como na poética de Bachelard (1996), para recuperar a super-realidade da infância que lhe é negada. E quando o real se torna saturado, esgotado, sacrificado, não há mais imaginário: cai em depressão, a “doença do imaginário”, que se instala quando este “já não comunica, não produz calor, quando a comunicação, reduzida a uma troca de informações, perde sua função de cola social” (Silva, 2017, p. 78).

E diante do duelo que não parece ter fim, o autor denuncia que há um crime: “O imaginário, de certa maneira, sempre mata o real. Mata-o por transfiguração” (Silva, 2017, p. 22). Constatado o óbito, ainda que simbólico, cabe nos atentar sobre a diferença do imaginário para com a subjetividade. O imaginário opera como subjetividade aplicada, consumada. Decorrência que abala os pilares importantes para a ética no jornalismo: neutralidade, objetividade, imparcialidade e isenção – são essas possíveis de serem atingidas sem a dimensão da subjetividade? Um exercício racional dessas premissas não estaria sendo um imaginário das práticas da comunicação?

E a ideologia, prescritiva e que busca a reprodução do estado das coisas para Althusser (1992), onde toda representação ideológica seria imaginária do mundo real, resultaria numa deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. Não seria, então, a ideologia uma forma de encobrimento do real, que condiciona o olhar? O imaginário revela, a ideologia esconde para impedir o descobrimento. A repetição, a cultura e a reprodução são cúmplices de um real abalroado, é aquilo que desertifica e mata o imaginário, agora vítima de outro crime, esse de forma lenta.

Estas “mortes”, porém, não se consumam por completo, pois esse imaginário, sempre paradoxal, põe limites ao real, sem eliminá-lo. Então, o imaginário é falso, fictício, ilusório? Não. Silva diz que é uma mitologia concretizada, que depende do real. “Só há imaginário na medida em que o real é possível e passível de distorção” (Silva, 2017, p. 38). Quem mergulha no imaginário faz um contrato com essa narrativa, passa a aceitá-la como plausível e possível, mesmo na sua impossibilidade e irracionalidade. Ela precisa fazer sentido, ser lógica.

Ninguém, no entanto, escolhe um imaginário. “Há um encontro, uma construção, uma descoberta, uma luz” (Silva, 2017, p. 42). Ainda que essa verdade discursiva seja, como disse Nietzsche (2008), uma ilusão que esqueceu de ser o que é, metáfora que perdeu sua força sensível pelo uso excessivo, uma convenção consolidada: uma mentira coletiva que a todos se torna obrigatória.

Na busca de entender essa contraposição entre realidade e imaginário, Silva vai trocando as lentes do binóculo para contemplar a paisagem. E se depara com o hiper-real (Baudrillard, 1991), a realidade transfigurada pelo sentido, e que é reconhecida por Lacan (1974/1975) como sendo o nascimento do ego, instância psíquica constitutiva e estruturante da subjetividade. Gilbert Durand (1999; 2001) e Michel Maffesoli (2008) veem o imaginário como acontecimento cheio de símbolos, imagens e afetos que canalizam a subjetividade para lagos sensíveis.

É o imaginário também visto como surreal, quando se exprime na fantasia, na loucura criativa das artes, que exaltam o belo e o maravilhoso para Breton (1985), no devir de Deleuze (1974), que buscam valorizar no vivido a crença de um real que remodela a precariedade da “vida real”, obstruída pela educação dos sentidos e pela opacidade utilitária.

Estaria ainda o imaginário no super-real, dimensão fantástica do real, uma lente poderosa de aumento, que transfigura, desfoca e deforma o cotidiano, gerando “caricaturas” com traços exagerados sobre o real, que leva a “uma vivência emocionalmente profunda que, como num passe de mágica, faz um pacto com a credibilidade” (Silva, 2017, p. 61). Esse super-real não seria contemplado apenas pelos artistas, mas compartilhado no cotidiano em nossos hobbies, jogos, aventuras e todas as espécies de devaneios que colocam na berlinda a conversão do imaginário em mercadoria pelas tecnologias de produção simbólica da sociedade urbanizada pós-industrial.

Silva nos fala até de um direito ao imaginário, como uma necessidade social, de constituir heróis e estrelas que tornam o real suportável. E também uma necessidade biológica do ser humano de buscar o devaneio, como aquilo que dá sentido à vida.

[…] o real é a prosa, o imaginário é a poesia do cotidiano. O real expressa o céu cinzento, enquanto o imaginário transforma as nuvens em utopia. […] que se acrescenta inconscientemente ao acontecido, mas que se torna, depois de fixado, a única consciência possível do existente (Silva, 2017, p. 58).

Na discussão sobre o documentário, o jornalismo e a história, nos traz a ficção como forma de representar o real e dos limites para o imaginário. Trata da natureza da ficção, que por ser inventada: existe, mas é irreal, sendo um real irreal. Uma dramatização num documentário ou reportagem pode recriar uma realidade, mas não é capaz de dramatizar algo que não existiu. A ficção depende – então – da realidade, do ocorrido, do fato.

A ficção não tem limites. Nem mesmo o da verossimilhança. O verossímil pode ser fictício. O imaginário é sempre verdadeiro. […] está ligado a um real que, embora sempre alterado pela subjetivação do olhar que reconstitui o ocorrido, recusa o procedimento da invenção absoluta. (Silva, 2017, p. 69).

Mesmo o realismo fantástico, em autores como Balzac (1954), Kafka (1986) e García-Marques (1974), suas narrativas conservam um fio com a realidade, que faz o excedente de realidade mostrar-se, potencializando muito de seus efeitos de reflexão sobre o real.

Das seis fases da bacia semântica de Durand (1999), que remetem à figura das águas para vislumbrar a formação simbólica do imaginário (escoamentos, divisão das águas, confluências, o nome do rio, organização dos rios, esgotamento dos deltas), Silva (2017), propõe nove etapas do imaginário como recobrimento do banal (vazamento, infiltração, acumulação, evocação, transbordamento, deformação, transfiguração, metáfora, derretimento/evaporação), na qual sugere momentos importantes de análise da produção do imaginário.

Da mesma forma, também questiona se o imaginário pode ser um agenciamento das ideias, a partir das pautas impostas pelo agenda-setting (Mc Combs e Shaw in Hohlfeldt, 1997) (acumulação, consonância, centralidade, tematização, saliência, focalização) e questiona o agendamento de bens simbólicos:
O desejo do consumidor costuma coincidir estranhamente com o desejo do produtor e fornecedor de objetos a consumir. Só se deseja o que se deve ser desejado. A agenda do consumo não produz negação. Um imaginário? (Silva, 2017, p. 95).

O imaginário se comportaria como um agendamento involuntário que se consumou temporariamente. Um transbordamento que se agendou para ser alcançado no momento de onipresença midiática e social.

Silva faz ainda considerações sobre o imaginário e a história e a produção de narrativas, lendas e das fragilidades do pensamento jornalístico (que, por vezes, se contenta com o comentário e não com a investigação) e científico (que se detém a uma verdade objetiva superior, respaldada pelos pares). Nessa reflexão sobre essas duas formas de registro da realidade, que possuem conjuntos de regras codificadas que remetem à produção dos dados.

O imaginário opera no campo do discurso, do saber, do poder. O imaginário é reservatório de experiências e motor de ações significativas, que geram uma “pro-vocação”, modo específico de descobrimento das vocações, um vínculo, um pertencimento, um compartilhar. A vocação do homem é o imaginário, afirma Silva (2017), “arranca o ser da banalidade e, pelo bem ou pelo mal, pelo sublime ou pelo hediondo, dissemina significados que não podem ser apagados com toda prosa do cotidiano” (p. 108).

Também está o imaginário no recobrimento e no depósito de material significativo do terreno fértil, está onde há saturação, acúmulo, no que se sobrepõe e no que gera saliência. O imaginário está na surpresa diante do que está a ser descoberto na passagem da aldeia para a cidade natal e desta para a metrópole. É o deslumbramento da novidade, que gradativamente vai se perdendo pelo costume, até se deparar com a fantasia de encontrar um lugar maior que o quintal que estávamos acostumados a trilhar.

Silva segue questionando o imaginário a partir da produção de sentidos, no jogo da linguagem, como sugere Wittgenstein (1987) e na produção da interpretação dos acontecimentos para Deleuze (1974) que sugere cercar o imaginário pelo excesso, uma erupção da lava simbólica dos acontecimentos. Silva também contrapõe a interpretação (dialógico entre duas partes) da compreensão (reconhecimento do outro que surpreende, atrai e fascina) e da explicação (descrição do outro). Fala do descobrimento como forma de trazer à tona sentidos encobertos, por meio de inúmeros pares intercambiáveis como memória no esquecimento, sentido na ausência, luz e obscuridade, obsessão e encantamento, diferença e repetição, entre tantos outros.

De toda forma, nos faz perceber que, depois de tiranias realistas, também há o temor quanto aos imaginários tirânicos, à imposição de imaginários que suplantam o real e nos (i) mobilizam coletivamente. O imaginário também pode se impor como autoritário, ditatorial, fascista, constrangedor. Silva nos revela que ninguém é autor do seu imaginário na escrita autobiográfica: o imaginário se impõe ao imaginante como um texto extraído de suas vivências, onde não há autonomia deste imaginante. “Ninguém pode rejeitar o imaginário, nem se negar ao imaginário. O imaginário é uma submissão” (Silva, 2017, p. 167-168).

Navegar no imaginário é sempre uma aventura, nos garante o autor. Faz-se necessário adentrar ao bosque encantado e explorar o que transborda desse simbólico. O imaginário como instância do real, se faz presente. Negá-lo não deixa de constituir também um imaginário.
A obra que aqui analisamos traz reflexões que não se esgotam. Certamente não era essa a intenção do autor, por mais criteriosa e densa que tenha sido sua pesquisa. Mas ao desdobrar suas reflexões, ele respeita a natureza do objeto em análise. O imaginário é…

Na resposta cabem outras possibilidades que excedem os significados apontados em seu texto. O que não se pode negar é a contribuição relevante do autor para problematizar o imaginário com essa roupagem instigante de um excedente, pela diferença e pelo descobrimento, nas inúmeras camadas de sentidos que podemos ir raspando do real que nos é possível escavar.

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Anderson dos Santos Machado –  Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil. Doutorando em Comunicação pela PUCRS. E-mail: andersonsmachado@gmail.com

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[MLPDB]

 

Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente,  circulação de saberes e práticas pedagógicas – SILVA et al (RHHE)

SILVA, Alexandra lima da; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José. Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente,  circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015. Resenha de: VARELLA, Jacqueline de Albuquerque. Mulheres viajantes: olhares femininos sobre a educação. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 1, n. 2, p. 304-311, maio/agosto de 2017.

O livro organizado por Alexandra Lima da Silva, Evelyn de Almeida Orlando e Maria José Dantas tem como objetivo lançar novos olhares sobre a temática das mulheres viajantes e a historiografia da educação. São questões que problematizam a trajetória dessas mulheres: “Como viajavam? Para quê? Quais os desdobramentos das viagens nas trajetórias dessas mulheres? Qual a dimensão educativa presente nas mulheres em trânsito?” (p. 9).

Estão reunidos trabalhos de pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades sobre a atuação de mulheres que romperam barreiras geográficas, legitimando a ação feminina em diferentes aspectos da sociedade. Os autores trazem novas pistas sobre as experiências educativas dessas mulheres através de suas viagens. Ao contrário dos homens, quase sempre precisavam de justificativas e apoio para a realização destes deslocamentos. O livro “Mulheres em trânsito” apresenta investigações a respeito das especificidades que envolviam o universo das mulheres viajantes de acordo com os capítulos descritos a seguir.

* * *

Viajeras y educación femenina en el siglo XIX”, de Sara Beatriz Guardia, aborda a luta pelo direito feminino à educação no Peru, pelas trajetórias das intelectuais Mercedes Cabello de Carbonera e Clorinda Matto de Turner. A autora mergulha no contexto político e social perua-no do século XIX, período onde novos discursos e análises sociais davam, gradativamente, maior visibilidade à mulher.

A intelectualidade peruana, num processo de mudança de mentalidade, teve homens de letras como Manoel Gonzales Prada, que denunciava a abusiva autoridade da Igreja Católica. Prada discursa em favor da educação laica como uma ferramenta, um caminho, para emancipação feminina no Peru. Eram mulheres dominadas pelos dogmas católicos e pelo cerceamento da Igreja.

Pode-se mencionar algumas revistas que foram fundadas por mulheres (ou que as tinham como colaboradoras), como El Album, por Jua-na Manoela Corriti e Carolina Freire de Jaimes, e a Revista Semanal pa-ra el Bello Sexo (1874-1875), com a colaboração de Juana Manuela Lazo de Elespuru, Mercedes Cabello de Carbonera, entre outras escritoras. Guardia destaca a viagem realizada por Clorida Matto à Europa, que também viajou ao Brasil e fala sobre suas impressões do Rio de Janeiro e de sua visita á Coelho Netto.

Mujeres en misión: la participación femenina en las misiones protestantes de América del Sur”, que tem Paula Seiguer na sua autoria, aborda a temática das viajantes desde uma perspectiva religiosa. Caracterizam-se por mulheres que viajam em missão religiosa no contexto protestante. Essas mulheres viajavam acompanhadas de figuras masculinas, seus maridos, que em alguns casos faziam parte da conjuntura da Igreja ao qual pertenciam. O intuito dessas viagens era de expandir o movimento protestante, evangelizar através da assistência aos mais necessitados, na tentativa de alcançar, em especial, a população indígena.

Este grupo de mulheres possuía uma justificativa para essas viagens que se inscrevia desde uma lógica patriarcal, encaixando-se no modelo feminino burguês do século XIX. O texto traz os aspectos das viagens de mulheres como Mary Bridges e Alice Wood.

Encuentros con un mundo rural: história de una maestra errante”, de Blanca Susana Veja, põe em foco a biografia da professora mexicana Petra Hernandez Martínez, professora viajante e atuante na zona rural de San Luiz Potosí, no México. A partir da história de vida de Petra Martínez, surgem questões sobre viagens pedagógicas, educação rural (as demandas e especificidades geográficas, culturais e pedagógicas) e formação de professores no contexto histórico rural mexicano de meados do século XX. Fotografias, documento de identificação, documento profissional da professora e relatos de viagens são algumas das fontes utilizadas para a pesquisa, que abarcam a infância e as experiências da maestra dentro e fora do espaço escolar.

Ana Maria Magaldi e Maria João Mogarro, por sua vez, analisam os estudos biográficos na história da educação em “Mulheres de letras e educação feminina no espaço luso-brasileiro: ligações em torno da infância nos escritos de Júlia Lopes de Almeida e Emília de Souza Costa”. As autoras abordam as redes de sociabilidade e a ligação entre as duas intelectuais, assim como as similaridades de ideais entre elas, levando em consideração o contexto político-social português e brasileiro no início do século xx.

A viagem realizada por Emilia de Souza Costa ao Brasil, para conferência no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, é destacada no texto. A conferência intitulada “Mulher” destinava-se às mães e possuía a temática da educação infantil na sua centralidade. O texto destaca ainda a ação excepcional das duas mulheres num contexto social onde a figura masculina predominava no campo literário. Destaca-se a ascensão destas  mulheres na produção de uma literatura voltada ao público feminino, escritas por mulheres e destinada a mulheres, tendo foco a educação feminina, a relação mãe e filho, e a educação infantil e higienista.

“Itinerários de uma professora em fins do século XIX”, de Carla Chamon, analisa a trajetória da professora Maria Guilhermina Loureiro de Andrade e sua viagem feita aos Estados Unidos. Nascida em Minas Gerais, mas atuante no norte fluminense quando se muda ainda menina, Maria Guilhermina possuía uma característica diferenciada em relação às mulheres criadas no século XIX, no Brasil. Incentivada pela família, segue ainda jovem os passos de sua mãe, fundadora do Colégio de Instrução Feminina, em Vassouras, Rio de Janeiro. Guilhermina não se casou, nem teve filhos, mas foi “professora, tradutora, escritora, conferencista, parecerista de congressos e diretora de escolas” (p. 61). Participou da fundação do Colégio Andrade, no Rio de Janeiro.

A autora traça a trajetória da educadora a partir de suas viagens e dos vestígios de seu trabalho pedagógico em jornais do período. Destaca a viagem feita aos Estados Unidos, o abandono da religião católica e sua relação com os missionários e educadores presbiterianos. As viagens da professora e seus itinerários caracterizam sua busca por novos métodos educacionais e sua tentativa de fundar, no Brasil, um jardim de infância. Tem como modelo o método intuitivo e, posteriormente, os modelos da Educação Nova.

“Literatura de viajante: Chiara Lubich, uma professora italiana no Brasil”, de Maria José Dantas, analisar a biografia da supracitada professora, utilizando-se de diferentes fontes, como diários, livros e cartas, desde a perspectiva da história da educação. Num primeiro momento, Maria José Dantas contextualiza aspectos da vida de Chiara no cenário político e social da Itália do fim da primeira metade do século XX. Destaca a trajetória escolar da professora, seus estudos numa escola católica, a dificuldade financeira da família e sua formação como professora, na cidade de Trento.

Segundo a autora, “a educação na Itália, neste período, era caracterizada pela reforma do ministro Giovanni Gentile e pelas propostas metodológicas de Maria Montessori, que sublimou a experiência sensório motora das crianças e Maria Bochetti Alberti, responsável por instituir a escola serena” (p. 128). O texto aborda ainda as mudanças vividas por Chiara por conta dos bombardeios à sua cidade, durante a Segunda Guerra Mundial. A atuação junto aos frades Capuchinhos marca a trajetória social e religiosa da professora, com a fundação do movimento chamado Falcolano, que se difundiu no mundo todo, incluindo o Brasil. Chiara viajou ao Brasil por duas vezes, sendo uma vez em Recife e outra, já no fim de sua vida, em São Paulo, promovendo o movimento Falcolano no Brasil e a educação católica.

Em “As viagens da advogada e professora Maria Rita Soares de Andrade (1904-1998): vivências formativas em busca da emancipação feminina”, Anamaria Freitas lança seu olhar para as correspondências trocadas entre a advogada, professora e feminista Maria Rita Soares de Andrade, Bertha Lutz, Carmem Portinho e Maria Luiza Bittencourt. Destaca a luta feminista pela emancipação feminina no Brasil, o preconceito e a repercussão em jornais sergipanos e cariocas sobre as discussões feministas.

Sergipana, Maria Rita de Andrade formou-se em Direito, tendo uma trajetória marcadas por lutas e emancipação, diferente da maioria das mulheres sergipanas no início do século XX. “Andava pelos cafés, espaços predominantemente masculinos, em Aracajú, nas décadas de 1920 e 1930. Costumava viajar sozinha” (p. 144). As cartas, organizadas cuidadosamente pela autora, traz à luz as redes de sociabilidade entre essas mulheres, evidenciando seus trabalhos, conferências, discursos e estratégias de luta, como a reivindicação do direito feminino ao voto, na década de 1930.

“Um olhar feminino sobre Mato Grosso (1897-1899)”, de Carolina Lima, interpreta a trajetória da escritora viajante Maria de Carmo de Melo Rego, em viagem realizada à Cuiabá. A partir da rota traçada em viagem de navio pelo Rio da Prata, Maria de Carmo Rego deixou registros do seu olhar em cada lugar que passou, e descreve sua relação com a cultura mato-grossense e indígena naquela região. Foi casada com o presidente da província o Coronel Francisco Rafael de Mello Rego.

Através de um mapa ilustrativo da viagem, organizado pela autora e mostrando as cidades visitadas por Maria do Carmo e seu marido, podemos analisar o itinerário com início no Rio de Janeiro, seguindo por São Paulo, Rio Grande do Sul, Uruguai, algumas cidades da Argentina, Paraguai, Bolívia, e Mato Grosso. A escritora fez apontamentos em suas cartas durante a viagem ao Mato Grosso, descrevendo as casas e suas arquiteturas, a cidade de Cuiabá, o contato com as mulheres indígenas e as mulheres escravizadas.

Em “Quase tudo: educação entre música e emoções nas viagens da pianista Magdalena Tagliaferro”, Ednardo Monti apresenta as viagens da pianista a partir dos estudos sobre a escrita biográfica, autobiográfica e escritas de viagens. O autor apresenta um panorama da vida de Magdalena Tagliaferro, pondo em foco a influência que ela recebeu de seus pais franceses para a música, assim como sua formação ao longo da vida adulta. Uma trajetória de constantes viagens e amor pela música, pelo Brasil e suas memórias afetivas sobre a França. Ednardo mergulha nas memórias da pianista, suas redes de sociabilidades, os estudos no conservatório Nacional de Música de Paris e a contribuição musical e pedagógica da pianista para o ensino de música no Brasil.

Montserrat Sanuy: la introducción de la aplicación del método Orff en escuelas de España en los años 60”, de Maria de Rosário Rodri-guez, tem como foco a trajetória da musicista desta professora catalã. Destaca a educação recebida por Monserrrat, seu contato desde criança com a música, as viagens realizadas à Espanha, França e Alemanha. Na Alemanha, a professora estudou no Institut Orff, que se apresentou como um divisor de águas na sua vida profissional e nas suas contribuições pedagógicas e metodológicas para o ensino de música nas escolas da Espanha.

Junto ao reconhecido músico e professor Carl Orff, a musicista insere uma metodologia que vê “la música como algo natural, que todos los niños pueden hacer con facilidad porque lo llevan dentro, y que se aprovecha para desarrollar un laboro educativo integral, centrada en el leguaje, em la creación colectiva y en la felicidad” (p. 203). Monserrat obteve destaque no rádio e na televisão, apresentando uma nova perspectiva de ensino de música na Espanha.

O texto de Evelyn Orlando, “Quando o mundo cabe na bagagem às experiências de formação e distinção de Maria Junqueira Schimidt no cenário educacional brasileiro”, apresenta a trajetória intelectual e profissional da educadora supracitada, com foco nas suas diversas atuações no campo educacional. Ao longo de sua vida, a educadora fez diversas viagens, realizando seus estudos no Instituto Santa Úrsula, na Suíça francesa. De família católica, Schimidt destacou-se, inicialmente, como professora no Colégio Jacobina, no Rio de Janeiro, e como professora e diretora do Colégio Amaro Cavalcanti, considerando-se que em 1933 poucas eram as educadoras que conseguiam ocupar um cargo de gestão em espaços escolares.

Schmidt também foi orientadora escolar e participou como membro da Comissão Nacional do Livro Didático. Ao longo de sua vida, realizou parcerias com Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Aracy Freire. Parcerias essas que resultaram em diversas viagens pedagógicas aos Estados Unidos, em meados dos anos 1930.

Em “Histórias cruzadas? Mulheres viajantes e o ensino da educação”, Alexandra Lima da Silva problematiza histórias de mulheres viajantes que foram silenciadas, trazendo novos olhares e perspectivas para as temáticas sobre viagens e viajantes no âmbito da história da educação. Destaca as histórias de três viajantes: Amanda Berry Smith, negra e lavadeira, que saiu dos Estados Unidos como missionária para os continentes africano, europeu e asiático; Ina Von Binzer, alemã que viajou ao Brasil para dar aulas e ser preceptora de crianças da elite brasileira durante o período Imperial; e Leonowens, uma mulher indiana, naturalizada inglesa, que viajou à Ásia, tornando-se professora dos filhos do rei no Sião.

* * *

O livro “Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas” contribui de forma significativa para a historiografia da educação, trazendo em sua composição  pesquisas de qualidade que privilegiaram diferentes e amplas fontes. Os autores reunidos nesse livro lançam seus olhares sobre diários de viagens, escritas biográficas, escritas (auto)biográficas e sobre periódicos, além de outras fontes citadas ao longo da resenha. O livro contribui para dar visibilidade a trajetórias muitas vezes esquecidas, ou mesmo silenciadas.

Mais que recomendada a sua leitura, o livro “Mulheres em trânsito” reúne trabalhos consolidados de pesquisadores do Brasil, do México, da Espanha, do Peru e da Argentina que tratam sobre a atuação feminina em contextos geográficos, sociais e históricos distintos. No entanto, quando reunidos e lidos no seu conjunto, ressignificam a identidade e a atuação destas mulheres que, por diferentes motivos, podem ser consideradas pioneiras em suas respectivas práticas pedagógicas viajantes.

Jacqueline de Albuquerque Varella – Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). E-mail: jacquevarella@gmail.com.

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Áfricas e suas diásporas / Revista Transversos / 2017

A Revista Transversos em sua 10a edição floresce a partir de múltiplos esforços. Seiva, fibra e ritidoma1 vêm de resultados da linha de pesquisa Áfricas e diásporas negras do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES), que contempla os estudos africanos, assim como, problematiza a diáspora negra a partir das manifestações políticas e culturais no Brasil.

Por obstinação, analisa-se as matrizes discursivas que definem as identidades culturais e as reinvenções da África e africanidades no Brasil a partir da Lei Federal 10.639 / 03.2 Esta edição é incensada pela atuação de autores angolanos, brasileiros, estadunidenses, que, pela diversidade dos temas, promovem a pluralidade como cariz desse dossiê. O prazer motivado pelos laços, reencontros e resistências, iluminam as diferentes histórias das Áfricas e suas diásporas. Por lá e por aqui, homens, mulheres e crianças experimentaram histórias singulares em suas trajetórias de vida.

A arte do jovem artista-historiador José Victor Raiol traduz esse sentimento de ser e espargir. A árvore da vida, um baobá estilizado, mostra a dimensão de uma África robusta, diversificada e propagadora. Enquanto, suas folhas proliferam vidas, sujeitos, discursos e experiências. O baobá e suas folhas tramam o fio condutor dessa edição: o entrecruzamento da África –com suas raízes históricas e suas vias repletas de seivas- e a heterogeneidade das diásporas com – o vento que conduz suas folhas, sua transformação e sua continuidade.

São laços que unem as duas margens do mundo afro-atlântico-americano; reencontros como formas de multiplicar os objetos de estudos; e por fim; ampla resistência. Afinal, africanos, africanas e as identidades diaspóricas lutaram os mais diversos combates em prol das suas histórias. E ainda lutam!

Logo de início, o dossiê faz um registro de solidariedade a luta dos professores, técnicos, bolsistas, discentes e da comunidade que resistem aos ataques à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Um baobá das políticas afirmativas, em nosso país, a UERJ diasporizou seu sistema de cotas aos afrodescendentes por outros espaços do Brasil. Além disso, não podemos esquecer da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Em 2017, a UNILAB sofreu com os cortes de incentivos estudantis aos alunos dos países africanos. A partir da luta, a comunidade da UNILAB reconquistou a garantia dos estudantes de ingressar na Universidade. Em nome da Revista Transversos, obrigado por vocês existirem e resistirem. Continuemos na luta!

Esse pensamento como ação nos direciona para a produção de uma escrita da História Africana como definida por Carlos Lopes: uma pirâmide invertida. Segundo o guineense:

Uma história que se vai concentrar nas mudanças sociais, na contribuição africana, na resistência ao colonialismo e no conceito de iniciativa local. Uma História que tentará demonstrar que se a civilização ocidental bebeu no conhecimento grego, não é por acaso que Platão, Eudore e Pitágoras viveram no Egito entre 13 e 20 anos. Egito visto como uma civilização negra por excelência.3

Uma História da África feita por africanos / as e demais pesquisadores / as sensíveis as particularidades das múltiplas historicidades daquele continente. Uma narrativa ativa e altiva das singularidades das experiências africanas. Já a heterogenia das diásporas segue as pistas do Atlântico negro de Paul Gilroy em que:

No espírito do que pode ser chamado de história “heterológica”, gostaria que considerássemos o caráter cultural e as dimensões políticas de uma narrativa emergente sobre a diáspora que possa relacionar, senão combinar e unificar, as experiências modernas das comunidades e interesses negros em várias partes do mundo.4

Espalhar-se não significa manter uma identidade cristalizada e homogênea. Assim como Gilroy, os nossos estudos combatem a essencialização, que muitas vezes – nos desejos da naturalização – persistem nos estudos diaspóricos. Não se trata, exclusivamente, de entender a vida de africanos e africanas fora da África, mas de analisar o saber / conhecimento desses sujeitos hibridizar / espargir-se nas várias partes do mundo.

Com saber / sabor os artigos nos embalam e instigam. Nas pistas do baobá estilizado e o espargir de suas folhas, a 10a edição é inaugurada com o artigo de Judith Carney e Rosa Acevedo – Plantas de la diáspora africana en la agricultura del Brasil. As autoras examinam as plantas de origem africana que se tornaram fundamentais para a subsistência e economia no período da escravidão. Ao traçarem o perfil dessas plantas, analisam as distorções nas narrativas da troca colombiana, que permaneceram centradas na agência europeia. Em destaque, a ênfase colocada no conhecimento botânico africano e sua expressão em paisagens de escravidão.

Alair Figueiredo Duarte e Maria Regina Candido no artigo Será possível, na atualidade, escrever a História Antiga da África?- analisam como construir um olhar alternativo afastado da narrativa eurocêntrica hegemônica, repleto de preconceito sobre o continente africano, considerado uma sociedade primitiva sem escrita, sem passado e sem história. Com ousadia propõem um rompimento, de vez, com os estereótipos que tentam impingir a História da África.

Condições políticas da era de ouro da Dhimmah na história do Egito islâmico (séculos IX e X AD) de Alfredo Bronzato da Costa Cruz percorre o período de governo fatímida do Egito (969-1171). O texto reconstitui algumas tramas que compuseram a complexa conjuntura política do Egito e do Levante no interior do ecúmeno islâmico dos séculos IX e X AD que permitiu afirmar como o mais tranquilo e próspero período para os judeus e cristãos desde a conquista islâmica do Vale do Nilo até a Contemporaneidade.

Vivian Santos da Silva escreve sobre O Conflito Tuaregue ao norte do Mali: a geopolítica da resistência no Sahel Africano. O artigo analisa o conflito a partir da crítica da geopolítica, em que se apreende o poder e sua relação com o espaço de forma multidimensional. Por meio dessa perspectiva, a autora possibilita uma maior compreensão do complexo movimento de resistência, de insurgência e de luta pela emancipação política.

Vestígios de uma fábrica britânica em fotografias de seus trabalhadores de Rute Andrade Castro estuda a exploração britânica de recursos minerais e humanos num contexto imperialista do século XIX, em uma vila do sul da Bahia – Brasil. A partir de fotografias do empreendimento britânico, a autora adensa as possibilidades dos usos históricos daquelas imagens.

Gian Carlo de Melo Silva investiga o batismo, e sua dinâmica numa sociedade marcada pela escravidão, como uma das formas de alforrias existentes no período colonial no artigo “Dizia que forrava a dita criança”: os forros na pia batismal no Recife Setecentista.

Já em Africanas, libertas e seus filhos em narrativas de violências e outros dramas entre a escravidão e o pós-abolição no Sul da Bahia, Cristiane Batista da Silva Santos nos traz histórias de adversidades femininas vivenciadas por africanas e suas descendentes – escravizadas, libertas ou livres pobres – em situações de violência nas mais variadas formas entre as décadas finais da escravidão e período posterior a abolição.

A parceria de Alan Augusto Moraes Ribeiro e Deivison Mendes Faustino no artigo Negro tema, negro vida, negro drama: estudos sobre masculinidades negras na diáspora revisam um conjunto de estudos publicados em língua portuguesa e língua inglesa que tratam do tema masculinidades negras. Nesse processo, refletem sobre como raça, gênero, classe, etnia, sexualidade e nacionalidade foram articulados para falar sobre homens negros nessas literaturas.

O artigo Museu Afro Brasil: a querela da identidade, de Ana Carla Hansen da Fonseca, debruça-se sobre os avanços e limites do trabalho do museu na construção de memórias, identidades, na preservação do patrimônio africano, e nas formas de representação dos africanos que foram escravizados.

Mario Eugenio Evangelista Silva Brito com o artigo Uma leitura desde a diáspora sobre historiografia africana independentista: a década de 1950, os casos de K. O. Dike e C. A. Diop faz um estudo sobre a historiografia acadêmica africana (feita por africanos), enfocando as obras: Trade and Politics (1956), de Kenneth Onwuka Dike e L’Afrique Noire Précoloniale (1960), de Cheikh Anta Diop. Desta forma, o articulista expõe a especificidade dessa historiografia nos diferentes contextos de sua produção, além de debruçar-se sobre a trajetória socioespacial desses historiadores.

Em O papel da Comissão do Golfo da Guiné na segurança marítima em África, Rita Suriana Amaro Gaspar analisa a questão da segurança marítima na região do Golfo de Guiné. A partir das recomendações das Organizações das Nações Unidas à União Africana, a autora avalia de que forma a garantia da defesa e segurança da região tem sido feita tendo por orientação as diretivas do “Código de Conduta de Yaoundé”.

Abordar as representações sobre relações raciais erigidas por diplomatas estadunidenses, autoridades portuguesas, nacionalistas angolanos e militantes pelos direitos civis nos EUA é o objetivo de Raça e diplomacia: a correspondência diplomática estadunidense sobre Angola, 1960-1961 de Fábio Baqueiro Figueiredo. O autor baseia sua análise a partir das correspondências consulares estadunidense sobre Angola entre 1960 e 1961, num momento de ascensão política mundial das discussões sobre raça.

Karina Ramos em A angolanidade literária nas páginas da Revista Mensagem (1951- 1952), apresenta as propostas de construção de uma identidade cultural para Angola do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (MNIA) por meio da revista literária Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1951-1952). No universo discursivo da revista Mensagem, a autora problematiza as formas de construção de uma angolanidade literária.

Encerrando o dossiê, temos o artigo Cultura, identidade e neoliberalismo na Ruanda pós-genocídio: em busca de um novo homem ruandês escrito por Danilo Fonseca. O autor estuda as propostas realizadas, no âmbito de práticas e valores culturais, pelo governo da Frente Patriótica Ruandesa após o genocídio ruandês de 1994 cometido contra tutsis e hutus moderados. Assim, analisa as mudanças nas questões que envolvem o patriotismo, a unidade nacional e o mundo do trabalho.

Na sessão de artigos livres, Victor Hugo Abril em Um estudo sobre os Governos interinos no Rio de Janeiro (séculos XVII e XVIII) esquadrinha os governadores coloniais interinos no espaço-tempo da cidade do Rio de Janeiro, c. 1680 – c. 1763. Em sua análise, privilegia os agentes nas suas trajetórias, não só no reino, como nas colônias.

Merece destaque também Other Views on the African Diaspora: An Interview / Outros olhares sobre a diáspora africana: uma entrevista com o Prof.º Robert Voeks, da Universidade da Califórnia, realizado por Gustavo Pinto de Sousa e Rogério da Silva Guimarães.

Convidamos a seguir os leitores e leitoras a descortinarem as próximas páginas. Afinal, “somos cultura que embarca”5. Enfim, que os artigos inquietem, provoquem e sejam compartilhados. Em tempos africanos e diaspóricos: desejamos caminhos abertos!

Notas

  1. Camada externa da casca das árvores e outras plantas lenhosas. Cuja função, entre outras, é proteger a planta. In: < http: / / dicionarioportugues.org / pt / ritidoma>.
  2. Atualmente, a Lei 10.639 / 03 foi reformulada pela Lei 11.645 / 08 que além dos estudos de História e Cultura Africana e Afro-brasileira também contempla a História e Cultura Indígena.
  3. LOPES, Carlos. A pirâmide invertida – historiografia africana feita por africanos. In: Actas do colóquio Construção e ensino da história da África. Lisboa: Linopazas, 1995. p.26
  4. GILROY, Paul. Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001. p.11.
  5. Você Semba de Lá, Que Eu Sambo de Cá- o Canto Livre de Angola. GRES Vila Isabel, 2012.Autores: Evandro Bocão, Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Artur Das Ferragens. Disponível em: http: / / liesa.globo.com / 2017 / por / 09-colocacoes / 2012.html

Gustavo Pinto de Sousa (UFOPA)

Rogério da Silva Guimarães (UERJ)


SOUSA, Gustavo Pinto de; GUIMARÃES, Rogério da Silva. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, v. 7, n.7, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História da educação católica: produção e circulação de saberes pedagógicos / Revista História da Educação / 2017

Este dossiê apresenta parte das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projeto Igreja Católica e circulação de saberes pedagógicos: intelectuais, impressos e práticas educativas (1916-1970) [1]. Embora a ação de intelectuais leigos católicos de destaque tenha história de pesquisa em nosso país, veja-se, por exemplo, os estudos sobre Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima [2], para além, contudo da Revista A Ordem e do Centro Dom Vital, lócus privilegiado da intelectualidade católica leiga e combativa, a partir de 1922 há outros espaços em que intelectuais leigos, mais ou menos brilhantes, com maior ou menor visibilidade, atuaram fazendo circular saberes, representações, defendendo valores e divulgando uma moral. A ampliação dos estudos sobre outros espaços de circulação desta intelectualidade visa a contribuir para a compreensão das várias formas assumidas pelo catolicismo (como prática e como conjunto de ideias) em nosso país, intervindo na educação, seja ela entendida como escolarização ou como socialização.

Os artigos aqui apresentados versam sobre um conjunto de práticas educativas produzidas e postas em circulação por diferentes estratégias e endereçadas a públicos distintos. Todas, no entanto, se valeram do impresso – de forma mais ou menos privilegiada – para sistematizar e difundir os saberes que estavam sendo produzidos por meio dessas práticas. O proselitismo, a doutrinação e a evangelização por meio de impressos foi assunto bastante cuidado pela hierarquia da Igreja Católica, veja-se, para o final do século XIX e início do século XX, o documento resultante do I Concílio Plenário da América Latina, que orientou as ações de religiosos / religiosas e leigos / leigas na região (LEONARDI; BITTENCOURT, 2016). O alvo era a cultura e a sociedade em geral com multiplicidade de ações que buscavam dar conta de diferentes segmentos da sociedade, envolvendo adultos e crianças, leigos / leigas e religiosos / religiosas. Investigar as ações pedagógicas / evangelizadoras empreendidas por intelectuais e educadores leigos favorece a compreensão de como as determinações da Igreja católica, atravessando diversos sujeitos em situações distintas, contribuíram para a permanência do catolicismo na sociedade e no cenário educacional brasileiro ao transitarem no campo da produção, mediação e circulação dos saberes pedagógicos, influenciando a reconfiguração do campo educacional no Brasil.

Com público mais amplo ou direcionado ao campo pedagógico, os impressos colocam em evidência um conjunto de estratégias de difusão e imposição dos modelos pedagógicos ou de comportamento e de táticas de apropriação desses modelos, utilizados como importantes dispositivos pelos diferentes atores que ocupavam o campo educacional na primeira metade do século XX (CARVALHO; TOLEDO, 2007). Assim, além de difundir determinadas práticas, são, eles mesmos, uma prática.

Os impressos aparecem aqui de forma transversal ou como ponto de intersecção entre os sujeitos e suas práticas. Muitos deles produziram livros, escreveram em jornais ou, simplesmente, tiveram suas ações noticiadas por esses veículos, foram editores ou articulistas de revistas. De uma forma ou de outra, usaram a palavra impressa para difundir valores, hábitos, comportamentos que defendiam como os ideais para a sociedade brasileira e portuguesa. O uso dos impressos na conformação de um campo pedagógico ou educacional inspira o que Marta Carvalho e Maria Rita Toledo (2007) denominam de “multifacetado campo de investigações”. São essas investigações que, segundo as autoras, “dão sólido suporte a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se aproxima” (CARVALHO & TOLEDO, 2007, p. 89). Educar pelas leituras tornou-se uma estratégia eficaz e utilizada, em geral, por diferentes grupos de educadores.

Os textos apresentados neste dossiê cobrem o período 1930-1960 e dirigem seu olhar para a ação de leigos ou para a formação de leigos, por meio do estudo do bandeirantismo, da Escola de Pais, dos Focolares, da Escola Ativa católica. Todos tem o impresso como fonte e / ou como objeto. O período dos estudos cobre a ditadura Vargas, a II Guerra Mundial e o pós-guerra. No campo da educação, assistimos aos embates entre leigos e católicos no Brasil pelo Sistema Nacional de Educação, à retomada da Igreja na cena pública brasileira e à inserção de seus pontos de pauta nas Constituições e na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Os leigos forneciam a base de apoio social e combatiam nas mais diversas frentes tendo os impressos como meio.

Os três primeiros artigos abordam práticas educativas distintas e dois deles têm a marca do protagonismo feminino. É sabido o papel fundamental que as mulheres tiveram no projeto de recatolicização, fosse como religiosas ou como leigas (LANGLOIS, 1984). Na qualidade de leigas, é possível identificar suas ações nas mais diversas áreas dando visibilidade e difundindo os padrões de comportamento e valores católicos nos espaços públicos, atuando muitas vezes como mediadoras culturais (SIRINELLI, 1996) no ensino primário, secundário, profissional ou superior, na imprensa periódica ou nas associações filantrópicas (PINHEIRO, 2015).

O bandeirantismo brasileiro e suas relações com o catolicismo é perscrutado por Alexandra Lima, a partir das páginas do Correio da Manhã, marcado pela atuação de Maria José de Queiroz Austregésilo de Athayde, na década de 1950. O estudo indica que, por meio de tal movimento, as mulheres constituíram uma rede de sociabilidades, apoio e prestígio.

O movimento dos Focolares e o periódico Cidade Nova, criados pela professora italiana Chiara Lubich, durante a Segunda Guerra, são objeto de Maria José Dantas (2013). O movimento, simultaneamente eclesial, pedagógico e civil utilizava-se deste impresso que circulava no Brasil, para divulgar sua perspectiva educacional. Neste artigo, a autora atenta para o conjunto de códigos que favorece a formação educacional em tempos e espaços distintos.

O terceiro artigo chama a atenção para as práticas endereçadas às famílias, pondo em relevo não apenas os saberes produzidos e endereçados às mesmas, como também as estratégias de formação e mobilização dos pais como verdadeiros agentes da causa educacional no Brasil e em Portugal. Foi nesse escopo de atuação mais diversificado que o movimento da Escola de Pais nasceu no Brasil em 1963, liderado por um grupo de pais e intelectuais católicos. Filiado à Fédération Internacionale pour L’Éducation des Parents, com sede em Sèvres, França, estrutura sua matriz em São Paulo, desdobrando-se daí para todo o país e estendendo-se à Portugal e outros países da América Latina. Neste artigo, Evelyn Orlando e Helder Henrique Martins analisam os contornos do movimento, e os saberes produzidos e endereçados à sociedade, tanto no Brasil quanto em Portugal, apoiados na documentação de ambos os países.

Esses três primeiros textos chamam a atenção para outros movimentos relacionados à educação empreendidos pela Igreja, os quais – sem perder de vista a escola – buscaram alcançar outras instituições, ampliando com isso as frentes de ação do laicato católico no projeto de recatolicização da sociedade brasileira. Já os dois últimos artigos abordam impressos pedagógicos, de naturezas distintas, que se propuseram a servir como veículo de formação nos dois países aqui abordados.

Joaquim Pintassilgo, por dentro do regime autoritário português de Salazar, investiga o jornal dos estudantes do Colégio católico Manuel Bernardes intitulado A Nova Floresta. Encontra, aí, uma experiência de «self-government» e de «educação integral» articulada à «Escola Ativa» com um projeto católico e conservador, que contribui para reforçar a identidade institucional do Colégio.

O conjunto de textos reunidos neste dossiê busca dar visibilidade à multiplicidade de ações desenvolvidas pela hierarquia eclesiástica e o laicato católico em diferentes setores da sociedade que, por diferentes caminhos, fizeram circular ideias, saberes e práticas que configuraram o pensamento educacional católico no Brasil.

As pesquisas no campo da História da Educação já vêm atentando para a importância de pensar a circulação de saberes e modelos pedagógicos como caminhos de compreensão dos processos educacionais, de escolarização, da formação e da profissão docente. Nessa relação direta com Portugal, alguns colegas pesquisadores buscam aprofundar a discussão sobre as estratégias mobilizadas por diferentes sujeitos, atentando para as relações que estes atores estabelecem no cenário internacional, e consideram, em alguns casos, uma compreensão a partir da perspectiva comparada. Este dossiê visa a ser mais uma contribuição nessa direção, trazendo como foco privilegiado a relação entre Igreja e Sociedade nos projetos educacionais desses dois países em relevo [3]. O leitor poderá identificar inúmeros pontos de contato, estratégias similares, repertórios que se aproximam – sobretudo, pela circulação dos sujeitos e suas produções pondo em relevo a formação e a experiência dos diferentes atores que estiveram envolvidos, de diversos modos, nos processos de produção dos saberes que conformaram o campo pedagógico no Brasil e em Portugal, especialmente ao longo do século XX.

Notas

1. Apoio CNPq [2014]

2. Há inúmeros estudos a respeito, dentre os quais: PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). Tese de doutorado em Ciência Política, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007; CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Estado, igreja e educação no Brasil nas primeiras décadas da República: intelectuais, religiosos e missionários na reconquista da fé católica. Acta Scientiarum. Education, v. 32, n. 1, p. 83-92, 2010; ARDUINI, Guilherme Ramalho. O Centro Dom Vital: estudo de caso de um grupo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: Intelectuais e militância católica no Brasil. Cuiabá: EdUFMT, 2012; ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945). São Paulo: Edusp, 2014; RODRIGUES, Candido M. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Fapesp, Autêntica, 2005; RODRIGUES, Candido M. Aproximações e conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos anos 1928-1946, São Paulo: Alameda, 2013.

3. Os livros organizados por Pintassilgo et al (2006), Araújo (2009), Carvalho & Pintassilgo (2011), Cardoso (2014), Xavier (2013) e os artigos publicados em co-autoria por Xavier & Mogarro (2011) Mogarro & Orlando (2015), Mogarro & Magaldi (2015), dentre outros, vêm dando conta de ressaltar essas questões. Os livros organizados por Rodrigues & Zanotto (2013) e Pintassilgo (2013) reúnem diferentes pesquisadores que vêm atentando para essa questão da laicidade e religiosidades nas escolas públicas, considerando suas práticas de circulação.

Referências

ARAÚJO, Marta Maria de (Org.). História(s) Comparada(s) da Educação. Brasília: Líber Livro / UFRN, 2009.

ARDUINI, Guilherme Ramalho. Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social (1928-1945). São Paulo: Edusp, 2014.

_____. O Centro Dom Vital: estudo de caso de um grupo de intelectuais católicos no Rio de Janeiro entre os anos 1920 e 1940. In: Intelectuais e militância católica no Brasil. Cuibá: EdUFMT, 2012.

CARDOSO, Teresa Fachada Levy (Org.). História da Profissão docente no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Mauad X / FAPERJ, 2014.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de; PINTASSILGO, Joaquim. Modelos Culturais saberes pedagógicos, instituições educacionais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / FAPESP, 2011.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de; TOLEDO, Maria Rita de Almeida. Os sentidos da forma: análise material das coleções de Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. In: OLIVEIRA, Marcos Aurélio Taborda de (Org.). Cinco estudos em História e Historiografia da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 89-110.

CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos. Estado, igreja e educação no Brasil nas primeiras décadas da República: intelectuais, religiosos e missionários na reconquista da fé católica. Acta Scientiarum. Education, Maringá, v. 32, n. 1, p. 83-92, 2010.

LANGLOIS, Claude. Le catholicisme au féminin. Les congrégations françaises à supérieure générale au XIXe siècle. Paris: Les Editions du Cerf, 1984.

LEONARDI, Paula; BITTENCOURT, Agueda. De documento religioso à fonte histórica: as Atas do I Concílio Plenário da América Latina. Revista Educação e Filosofia, v. 30, n. 59, p. 135-158, jan. / jun. 2016.

MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello; MOGARRO, Maria João. Mulheres de letras e educação feminina no espaço luso-brasileiro: lições em torno da infância nos escritos de Julia Lopes de Almeida e Emília de Sousa Costa. In: SILVA, Alexandra Lima; ORLANDO, Evelyn de Almeida; DANTAS, Maria José. Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015, p. 81-107.

ORLANDO, E. A.; MOGARRO, J. M. Estratégias católicas de formação de professores e circulação de modelos culturais e pedagógicos no Brasil e em Portugal. Rev. Diálogo Educacional, Curitiba, v. 15, n. 46, set. / dez. 2015, p. 749-769.

ORLANDO, Evelyn de Almeida. Educar-se para Educar: o projeto pedagógico do Monsenhor Álvaro Negromonte dirigido a professoras e famílias través de impressos (1936-1964). 2013. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

PAULA, Cristiane Jalles de. Combatendo o bom combate: política e religião nas crônicas jornalísticas de Gustavo Corção (1953-1976). 2007. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

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PINTASSILGO, Joaquim et al. (Org.). História da escola em Portugal e no Brasil: circulação e apropriação de modelos culturais. Lisboa: Colibri, 2006.

RODRIGUES, Candido M. A Ordem. Uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte: Fapesp, Autêntica, 2005

_____. Aproximações e conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos anos 1928-1946. São Paulo: Alameda, 2013.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.) Por uma História política. Rio de Janeiro: UFRJ; Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 231-269.

XAVIER, L. N.; MOGARRO, M. J. Itinerários profissionais de professores no Brasil e em Portugal: redes de intercâmbio no contexto de expansão do movimento da Escola Nova. História da Educação, v. 15, p. 117-136, 2011.

XAVIER, L. N. Associativismo docente e construção democrática: Brasil-Portugal (1950- 1980). 1. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ – FAPERJ, 2013.

Evelyn de Almeida Orlando – Professora adjunta da Escola de Educação e Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2013), com período de estágio sanduíche na Universidade de Lisboa 20 (financiamento Capes). E-mail: evelynorlando@gmail.com

Paula Leonardi – Professora adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Educação pela área História da Educação e Historiografia da Faculdade de Educação USP (2008), com período de estágio no exterior na École des Hautes Études en Sciences Sociales (financiamento Capes); Pós-doutora em História da Educação e Historiografia pela Faculdade de Educação USP (2011), com financiamento Fapesp. E-mail: leonardi.paula@gmail.com


ORLANDO, Evelyn de Almeida; LEONARDI, Paula. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 52, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. il. color, ISBN: 978-85-7740-206-9.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise RosaUniversidade Federal do Rio de Janeiro(marlise.mrosa@gmail.com)

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciênc. Hum. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

 

Hélio Oiticica: folding the frame | Irene Small

Na História da Arte do século XX, Hélio Oiticica ocupa uma posição crucial, sendo indispensável para as versões transnacionais da (neo)vanguarda e para as narrativas pós-coloniais que buscam desafiar dos modelos de transmissão artística baseados na noção de centro-periferia. Uma vez que a carreira de Oiticica encarnou uma transição do modernismo tardio para o contexto contemporâneo globalizado, suas práticas heterogêneas figuraram em exposições recentes e em relatos históricos da arte que buscavam compreender as geografias mais abrangentes da arte moderna e contemporânea. Entre essas iniciativas, vale destacar a Documenta X (1997), de Catherine David, a exposição “Out of actions: between performance and the object, 1949-1979”, no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (LA MoCA) e Contemporary artworld currents, livro de Terry Smith (Pearson, 2011). Embora sejam esforços admiráveis, existe ainda o risco de que esse tipo de abordagem incorra em um tipo de tokenização. De fato, a arte de Oiticica pode ser imbuída de certo exotismo, em virtude de suas origens não euro-americanas, de um imaginário erótico do Brasil. E, ao mesmo tempo, suas inovações formais são perfeitamente incorporadas a um cânone contemporâneo ampliado como construtivismo do pós-guerra (Zelevansky, 2004), arte conceitual (Alberro e Stimson, 1999), cinema expandido (Michalka, 2004), performance (Jones e Heathfield, 2012) ou participação (Bishop, 2006).

Enquanto primeira monografia em inglês sobre o artista, Hélio Oiticica: dobrar a moldura, de Irene V. Small (University of Chicago Press, 2016), enfrenta, portanto, um desafio triplo: narrar uma mini-história do Brasil e de sua arte em meados do século XX, analisar as inovações formais de Oiticica em relação às vanguardas históricas e a um reconhecido cânone euro-americano da arte do pós-guerra, além de propor uma metodologia para o estabelecimento de uma História da Arte no contexto contemporâneo da globalização. Leia Mais

As quatro partes do mundo: história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Resenha de: SÁ, Charles. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas. vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia (charles.sa75@gmail.com)

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.178, n.474 maio/ago. 2017.

I – ARTIGOS E ENSAIOS

  • ARTICLES AND ESSAYS
  • Governo representativo e eleições no século XIX
  • Representative Government and Elections in the 19th Century
  • Miriam Dolhnikoff
  • A rede de sociabilidades do Barão do Rio Branco e a defesa da soberania territorial brasileira
  • Baron of Rio Branco´s network of sociability and the defense of Brazilian territorial sovereignty
  • Luciene Carris
  • O Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia de Defesa e a Política Externa Brasileira
  • The Development of Defense Science and Technology and the Brazilian Foreign Policy
  • Luiz Rogério Franco Goldoni
  • Notes on the “Agudá Jubilee”: the great Brazilian Celebration of the Abolition of Slavery (Brazil and Lagos, West Africa, 1888)
  • Notas sobre o “Jubileu Agudá”: A grande festa brasileira da Abolição (Brasil e Lagos, África Ocidental, 1888)
  • Eduardo Silva
  • Negócios impressos: o editor Francisco de Paula Brito e a edição de periódicos, teses e livros de medicina no Brasil Oitocentista
  • Printed Business: the Editor Francisco de Paula Brito and the Edition of Periodicals, Theses and Medical Books in Eighteenth-Century Brazil
  • Monique de Siqueira Gonçalves
  • Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira
  • Os refluxos culturais da emigração portuguesa para o Brasil no fim do século XIX e no início do século XX – um olhar a partir do Folclore Cultural
  • Reflux of Portuguese Emigration to Brazil in the Late Nineteenth and Early Twentieth Centuries as Seen from Folklore
  • Jaime Ricardo Gouveia
  • Missão Naval Americana: os primeiros 20 anos (1922-1942)
  • American Naval Mission: the First Twenty Years from 1922 to1942
  • Ricardo Pereira Cabral
  • Thiago Sarro
  • O Estado Novo brasileiro como espelho do salazarismo: Autoritarismo e corporativismo na seção “crítica” da Revista Brasília (1942-1944)
  • The Brazilian New State as a Mirror of Salazarism: Authoritarianism and Corporatism in the “Critique” section of the Brasilia Magazine (1942-1944)
  • Marcello Felisberto Morais de Assunção
  • O expansionismo japonês e a experiência dos Koutakussei na Amazônia
  • Japanese Expansionism and the Experience of the Koutakusseis in the Amazon
  • Reiko Muto
  • Luis E. Aragón

II – COMUNICAÇÕES

  • NOTIFICATIONS
  • Alexandre de Gusmão e a demarcação das fronteiras da Amazônia: Os Jesuítas matemáticos e astrônomos Italianos
  • Alexandre de Gusmão and the demarcation of the Amazon borders: the mathematical Jesuits and the Italian astronomers
  • Vasco Mariz
  • Para o “crédito e reputação do governo”: circuitos de deliberação e a governação por conselhos superiores na monarquia pluricontinental portuguesa (1640-1688)
  • To the “Credit and Reputation of Government”: Circuits of Deli- beration and Governance by Superior Councils in the Portuguese Pluricontinental Monarchy (1640-1688)
  • Marcello José Gomes Loureiro
  • Dentre Gazetas
  • From Among the Gazettes
  • Cybelle de Ipanema

III – DOCUMENTOS

  • DOCUMENTS
  • Memórias do governador Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça (São Paulo, 1799)
  • The Memoirs of Governor Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça (São Paulo, 1799)
  • Pablo Oller Mont Serrath
  • V – RESENHAS
  • REVIEW ESSAYS
  • O Rei condenado à morte & outras histórias
  • Adelto Gonçalves
  • Normas de publicação
  • Guide for the authors

Partir pour la Grèce – HARTOG (VH)

HARTOG, François. Partir pour la Grèce. Paris: Flammarion, 2015. 286 p. TRABULSI, José Antonio Dabdab. Partir pour la Grèce. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 62, Mai./ Ago. 2017.

Na década de 1960, meu querido mestre Pierre Lévêque convidava os franceses a viajar, numa série de guias então muito conhecidos (Partons pour la Sicile; Partons pour la Grèce). E é para uma viagem igualmente interessante, mas de outra natureza, uma verdadeira viagem ao interior da nossa cultura, que nos convida François Hartog. E é um encantamento viajar com ele, nas páginas deste livro.

Trata-se de uma coletânea de textos mais ou menos recentes, ligados pelo interesse permanente do autor pelas relações que a nossa cultura manteve com a Antiguidade. É uma feliz iniciativa, essa de juntar num volume esses escritos de vária natureza (artigos, introduções, prefácios e outros), alguns de difícil acesso, outros de acesso quase confidencial, pois esses textos formam um conjunto coerente e uma reflexão de fundo sobre a questão. Conhecemos a importância do tema para o autor, especialmente em seus livros sobre Le XIXe siècle et l’Histoire. Le cas Fustel de Coulanges (Paris, PUF, 1988), Régimes d’historicité (Paris, Seuil, 2003), Anciens, Modernes, Sauvages (Paris, Galaade, 2005), ou ainda Evidence de l’Histoire (Paris, Editions de l’EHESS), entre outros.

Os escritos diversos aqui reunidos são enquadrados por um prefácio substancial (“La Grèce vient de loin”, pp. 9-48), e por um epílogo (“Vers d’autres départs”, pp. 269-276) que augura e deseja que outras viagens sejam empreendidas. Ao longo dos capítulos, o conjunto de temáticas caras ao autor são tratadas. Destaquemos algumas, como “O duplo destino dos estudos clássicos”, pp. 49-68), onde ele explica os estudos clássicos como “mais e menos do que uma disciplina” (p. 50 sq.), para mergulhar em seguida num questionamento sobre as condições de surgimento da nossa disciplina. Em referência às Sagesses barbares caras a Momigliano, ele nos explica a “endurance du Barbare” (pp. 115-137), um de seus primeiros textos, que testemunha de seu interesse de sempre pelas relações entre Antigos, Modernos, Bárbaros e Selvagens.

Os capítulos 3 a 6 formam um verdadeiro elenco de “partidas para a Grécia”, onde, voltando a Winckelmann, ele faz a revista das abordagens mais importantes ao longo da época contemporânea: a partir da Romênia, com Mircea Eliade (pp. 149-157); a partir de Cambridge, com Moses Finley (pp. 157-162); a partir do “fim da democracia ateniense”, com Claude Mossé (pp. 162-178). Ele examina também uma série de “partidas francesas” para uma Grécia à moda francesa”, senão até para “cidades gregas à francesa”, de Fustel de Coulanges a Emile Durkheim, e de Emile Durkheim a Jean-Pierre Vernant. Ele aí retraça os percursos a partir de uma posição de grande conhecedor dos problemas e da maioria das pessoas envolvidas (o que dá ao texto deste historiador considerado austero um tom afetivo inabitual). É uma das mais belas “aventuras gregas” do nosso século XX, a da antropologia histórica e a da psicologia histórica, com Gernet, Meyerson e Vernant, e também a das relações entre memória e história, com Vidal-Naquet, que é aqui tratada. Na apresentação do livro, tínhamos recebido a promessa de uma investigação sobre o nosso relacionamento com a Grécia, pois “essa herança, durante tanto tempo no coração da cultura europeia, é feita de múltiplas viagens em direção a um objeto feito e refeito ao longo dos séculos. De que significações a Grécia foi sucessivamente portadora, em Roma, na Idade Média, no Renascimento, e desde a Revolução francesa? De que maneiras ela ajuda a definir as identidades culturais ou nacionais, a democracia, a história? E que sentido isso pode ter, ainda hoje, ‘partir para a Grécia’?” (quarta capa). Podemos dizer que a aposta foi ganha com o texto do livro.

O leitor me perdoe, por favor, por não entrar mais no detalhe dos capítulos deste livro impossível de resumir, em sua grande variedade de temáticas. Que ele considere isto mais uma notícia do que uma resenha. O livro, entretanto, apesar de um aspecto um pouco disperso por ser uma coletânea de textos escritos em momentos muito diferentes da vida do autor, possui uma unidade profunda, que é a do pensamento de Hartog. Para os que conhecem bem os livros do autor, sua leitura será um prazer renovado e prolongado; para os que não conhecem seus livros, será uma excelente introdução, que dará certamente vontade de ler todos os outros. Pensando bem, ele é talvez uma espécie de balanço da obra de Hartog; mas tudo o que nós pedimos a ele é que não pare de nos levar em outras viagens.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário Belo Horizonte, MG, 30.310-770, Brasil. dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.

A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) – MAGALHÃES (VH)

MAGALHÃES, Rodrigo César da Silva. A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. 420 p. ANAYA, Gabriel Lopes. A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968). Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 62, Mai./ Ago. 2017.

O livro de Rodrigo Magalhães tem como foco a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti promovida pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) entre 1947 e 1968. A narrativa historiciza de maneira bastante articulada como a Campanha Continental foi o resultado de um processo histórico dinâmico, com antecedentes na Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller (FR), iniciada em 1918. Nesse processo, Magalhães aborda uma multiplicidade de condicionantes políticos e científicos no desenvolvimento da Opas, e como um programa de erradicação internacional pioneiro, considerando suas continuidades e descontinuidades históricas, influenciou os rumos da saúde pública internacional ao longo de cinco décadas.

O trabalho é bem sucedido na sua análise de como a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti se definiu como um dos grandes esforços de cooperação internacional pautando de maneira decisiva a “definição da agenda de saúde internacional do século XX” sendo responsável em grande medida por um estreitamento das relações internacionais que culminou na consolidação de “um processo de cooperação interamericana na área de saúde que perdura até hoje” (p.329). Expondo de maneira habilidosa a própria história do princípio de erradicação no âmbito das relações em saúde pública no contexto internacional, Fred Lowe Soper (diretor do Serviço Cooperativo de Febre Amarela no Brasil em 1930, e posteriormente diretor da Opas a partir de 1947) se destaca como fio condutor da narrativa de Magalhães, enfatizando a confiança desse personagem histórico na erradicação de espécies de mosquitos como solução para doenças como a febre amarela e a malária. O ápice narrativo guiado pela atuação de Soper se dá no capítulo 6: “A ‘Era Soper de Erradicação’ e o apogeu da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti.”

No percurso de sua narrativa é notável a habilidade de Magalhães em apresentar de maneira clara a diversidade das relações estabelecidas entre pesquisadores e autoridades em saúde pública de uma comunidade internacional em crescimento. Ao longo de pelo menos cinco décadas, são analisados os processos políticos e científicos que favorecem retomada da proposta de erradicação (como o extermínio do mosquito Anopheles gambiae do Brasil em 1940 e o advento do DDT após a Segunda Guerra Mundial) e sua modulação a novos contextos e expansão, com o início da Campanha Continental e consolidação da Opas. Se Fred Soper é uma importante personalidade que sustenta a narrativa de Magalhães (participando dos principais eventos ao longo do recorte temporal desenvolvido), o mesmo está longe de ser retratado como um personagem plano, motivado cegamente por uma postura erradicacionista simplória com motivações imperialistas. Na conturbada década de 1960, quando há uma reinfestação do A. aegypti na América Central e do Sul, concomitantemente ao fracasso da campanha contra esse mosquito nos EUA, Magalhães aponta importantes controvérsias e condicionantes históricos que ajudaram a delinear o fim da Campanha Continental em 1968. É nesse instigante período de inflexão, que sua narrativa mostra o seu ponto alto, na medida em que apresenta Soper como crítico de seu próprio país ao pressionar “ativamente o governo norte-americano a aderir ao programa de erradicação continental, com o qual o país tinha assumido um compromisso formal” (p.289). O incremento na cooperação entre as repúblicas americanas e o papel fundamental da Opas ao final da década de 1950, coloca em evidência a delicada posição dos EUA na sua ausência em implementar as medidas contra o mosquito em seu próprio território – iniciativa tomada apenas em 1964.

A publicação é fruto da dissertação de doutorado chamada: A Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti da OPAS e a Cooperação Internacional em Saúde nas Américas (1918-1968), defendida por Magalhães em 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. O volume de documentos pesquisados fornecem a base para uma abordagem abrangente e sólida, que maneja com sucesso os desafios narrativos que se apresentam nas tensões das narrativas históricas transnacionais. Entre os arquivos situados no Brasil estão o arquivo da Casa de Oswaldo Cruz (COC) e do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV) ambos no Rio de Janeiro, e o Centro de Memória da Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A pesquisa internacional se deu nos EUA, principalmente no Rockefeller Archive Center (Sleepy Hollow – NY) e o National Library of Medicine (Bethesda – MD). De maneira geral, a análise focada na história dos programas de saúde pública e órgãos internacionais apresentados é equilibrada, se encaixando no que pode ser chamado de terceira onda dos estudos históricos relacionados à Fundação Rockefeller, pois considera as nuances de diversos contextos e complexidades situadas das relações transnacionais.

A perspectiva apresentada se coloca especialmente no questionamento da visão puramente imperialista, ou “via de mão única” e observa o forte intercâmbio interamericano proporcionado pelo caso em questão como um complexo entrelaçamento das relações político-científicas que integra o campo da história da saúde internacional. Destaca-se a importância dada às relações entre os países da América Latina para além da “questão da hegemonia de um suposto modelo sanitário norte-americano” (p.323), enriquecendo os sentidos das relações político-científicas no âmbito da saúde internacional. A qualidade da pesquisa e engenhosidade com o manejo das fontes na narrativa fornece uma grande contribuição historiográfica para o campo.

A evidência atual do Aedes aegypti nas políticas de saúde internacional e a necessidade por histórias que ressoem com inquietações do presente tornam tal publicação indispensável. A articulação do conteúdo, fontes e especialmente das questões colocadas acerca do entrelaçamento entre a história das doenças transmitidas por mosquitos e as políticas de saúde pública nas relações internacionais pode parecer demasiado densa para o leitor casual ou sem contato com o tema, porém, com a elucidativa introdução e inteligente divisão dos capítulos, essas dificuldades iniciais tendem a ser minimizadas, favorecendo o percurso do leitor não familiarizado.

Gabriel Lopes Anaya – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. Casa de Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21.045-900, Brasil. gabriel.lopes.mailbox@gmail.com.

Cadernos Pagu. Campinas, n.49, 2017.

Apresentação Dossiê História Das Mulheres, Gênero E Identidades Femininas Na África Meridional

Cadernos Pagu. Campinas, n.50, 2017.

Conservadorismo, direitos, moralidades e violência: situando um conjunto de reflexões a partir da Antropologia* Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência

  • Facchini, Regina; Sívori, Horacio
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • A onda quebrada – evangélicos e conservadorismo Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Almeida, Ronaldo de
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • La Iglesia Católica frente a la política sexual: la configuración de una ciudadanía religiosa Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Vaggione, Juan Marco
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • La travesti permitida y la narcotravesti: imágenes morales en tensión Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Cutuli, María Soledad
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso neoconservador Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Machado, Lia Zanotta
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • La regulación de las tecnologías reproductivas y genéticas en Argentina: análisis del debate parlamentario Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Ariza, Lucía
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • “Refugiados LGBTI”: direitos e narrativas entrecruzando gênero, sexualidade e violência* Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • França, Isadora Lins
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima* Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Efrem, Roberto
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • “#queroviajarsozinhasemmedo”: novos registros das articulações entre gênero, sexualidade e violência no Brasil Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Piscitelli, Adriana
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • Ensino religioso, gênero e sexualidade na política educacional brasileira Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Carvalho, Marcos Castro; Sívori, Horacio Federico
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • A criminalização da “ideologia de gênero”: uma análise do debate sobre diversidade sexual na Câmara dos Deputados em 2015 Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Luna, Naara
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • De médico e de monstro: disputas em torno das categorias de violência sexual no caso Abdelmassih Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Almeida, Heloisa Buarque de; Marachini, Laís Ambiel
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • “Poner el cuerpo” en las calles: los enfrentamientos de las activistas feministas y los grupos anti-derechos Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Tarducci, Mónica
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • Por amor, por dinheiro? Trabalho (re)produtivo, trabalho sexual e a transformação da mão de obra feminina Dossiê Conservadorismo, Direitos, Moralidades E Violência
  • Silva, Ana Paula da; Blanchette, Thaddeus Gregory
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • La “ideología de género” frente a los derechos sexuales y reproductivos. El escenario español Artigos
  • Cornejo-Valle, Mónica; Pichardo, J. Ignacio
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • ¿Un cuerpo propio? – Formas de la representación femenina, resistencia y reproducción en la Argentina de inicios del siglo XX: un análisis a través de la autobiografía de María Rosa Oliver (1898 – 1977) Artigos
  • Becerra, Marina
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • Cativas do corpo, libertas pelo trabalho: casos de mulheres de cor nas fronteiras entre escravidão e liberdade (Mariana, séculos XVIII e XIX) Artigos
  • Pinheiro, Fernanda Domingos; Maia, Ludmila de Souza
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Teología feminista en Chile: actores, prácticas, discursos políticos* Artigos
  • Gajardo, Antonieta Vera; Cayumán, Angélica Valderrama
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • O debate sobre aborto na Câmara dos Deputados (1991-2014): posições e vozes das mulheres parlamentares Artigos
  • Mariano, Rayani; Biroli, Flávia
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Hacerse hombre en el aula: masculinidad, homofobia y acoso escolar* Artigos
  • Barbero, Matías de Stéfano
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • Para uma história dos concursos de beleza trans: a criação de memórias e tradição para um certame voltado para travestis e mulheres transexuais* Artigos
  • Silva, Aureliano Lopes da
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Viagem e gênero: tendências e contrapontos nos relatos de viagem de autoria feminina* Artigos
  • Franco, Stella Maris Scatena
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT

Rumos da História. Vitória, v.1, n.5, mai./ago. 2017.

Expediente

Artigos

 

Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 16 n. 1, 2017.

Editorial

Décio Gatti Júnior

Artigos

Resenhas

Publicado: 2017-04-27

Revista Escrita da História. [?], v. 1, n. 1, abr./set, 2014 / v.5, n.10, jul./dez, 2018

Revista Escrita da História. [?], v.5, n.10, jul./dez, 2018

Ensino de História: posicionamentos didáticos, teóricos e políticos

PUBLICADO: 15.12.2018

Revista Escrita da História. [?], v.5, n.9, jan./jun., 2018

Religiões de matrizes africanas e intolerância religiosa no Brasil

PUBLICADO: 03.10.2018

EDITORIAL

Revista Escrita da História. [?], v.4, n.8, jul./dez, 2017.

Revoluções e movimento operário no século XX

PUBLICADO: 15.12.2017

Revista Escrita da História. [?], v.4, n.7, jan./jun. 2017.

Perspectivas sobre o Brasil Império

PUBLICADO: 13.08.2017

Revista Escrita da História. [?], v.3, n.6, jul./dez., 2016.

Elites e instituições no Brasil Império

PUBLICADO: 31.01.2017

Revista Escrita da História. [?], v.3, n.5, jan./jul., 2016.

Elites e instituições no Brasil colonial

PUBLICADO: 13.07.2016

Revista Escrita da História. [?], v.2, n.4, set./dez. 2015.

Memória e Teoria da História: debate e prática historiográfica

PUBLICADO: 01.02.2016

Revista Escrita da História. [?], v.2, n.3, abr./ago., 2015.

Intérpretes do Brasil e leituras críticas

PUBLICADO: 11.09.2015

Revista Escrita da História. [?], v.1, n.2, out./nov. 2015.

Intelectuais e Estado brasileiro

PUBLICADO: 18.04.2015

Revista Escrita da História. [?], v.1, n.1, abr./set., 2014.

Concepções conservadoras e autoritarismos

PUBLICADO: 20.10.2014

 

Contextos – Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales. Santiago, n.20, 2008.

Ponencias sobre el imaginario

Ponencias Área de Educación

Ponencias Área de Tecnología y Comunicación

Ponencias Área de Cultura y Música

Ponencias Área de Metodología y Didáctica

Publicado: 2017-04-10

Mnemosine. Campina Grande, v. 8, n.1, 2017.

História e Linguagens

 História e Linguagens

APRESENTAÇÃO ……………………………………………………………………………. 5

ARTIGOS DO DOSSIÊ

  • HAPPY BIRTHDAY, ‘SGT. PEPPER’: AS COMEMORAÇÕES DE ANIVERSÁRIO DO MAIS EMBLEMÁTCO ÁLBUM DOS BEATLES
  • Christiano Rangel dos Santos……………………………………………………………. 10
  • ANÁLISE DO ESPETÁCULO TEATRAL: A ENCENAÇÃO DE GOTA D’ÁGUA NOS ANOS DE 1970 NO BRASIL
  • Dolores Puga Alves de Sousa… ………………………………………………………….. 28
  • MIRADOLINA – DA ESTALAJADEIRA DE GOLDINI À FAVORITA DO BAIRRO DO VIANINHA: ADAPTAÇÃO TELEVISÃO DE UM CLÁSSICO DO TEATRO ITALIANO DA DÉCADA DE 1970
  • André Luis Bertelli Duarte …………………………………………………………………. 58
  • RUTH ESCOBAR E O INÍCIO DOS ANOS 1960 NO BRASIL: A ATRIZ LUSOBRASILEIRA FRENTE AOS DESAFIOS DO ENGAJAMENTO TEATRAL
  • Rodrigo Freitas Costa ………………………………………………………………………. 79
  • [IN]CONVENÇÕES REPRESENTACIONAIS EM NAVALHA NA CARNE (1967/1969) DE PLÍNIO MARCOS: PERFORMANCES DA CONTRAVIOLÊNCIA
  • Robson Pereira da Silva …………………………………………………………………… 94
  • ESTILHAÕES, DIÁSPORA E DESTERRITORIALIZAÇÃO: VIVÊNCIAS JUVENIS NOS SUPEROITOS POR ENQUANTO (1973) E TUPI NIQUIM (1974)
  • Edwar de Alencar Castelo Branco e Fábio Leonardo Castelo Branco Brito ……… 111
  • A PAIXÃO DE BRIAN – UMA BREVE ANÁLISE DO FILME “A VIDA DE BRIAN” SOB O VIÉS DA “PAIXÃO DE CRISTO”
  • Tami Coelho Ocar …………………………………………………………………………. 127
  • A RESSURREIÇÃO DE LÁZARO NAS TELAS DO CINEMA
  • Lair Amaro dos Santos Faria ……………………………………………………………. 146
  • QUANDO (NÃO) HÁ INTERESSE PELA “RAINHA DA BITÍNIA”. RECEPÇÕES ANTIGAS E MODERNAS DA VIRILIDADE DE JÚLIO CÉSAR
  • Victor Henrique da Silva Menezes ……………………………………………………… 160
  • LOS VASOS “HABLAN”: LAS MUJERES EM IMÁGENS. MISMIDAD Y TRENDAD EM LA FICCIÓN GENÉRICA
  • María Cecilia Comlobani …………………………………………………………………. 190
  • IMAGENS DAS REALEZAS DO IMPÉRIO ABSOLUTISTA PORTUGUÊS: UM ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE O PODER POLÍTICO DA COROA E AS PINTURAS DOS MONARCAS PORTUGUESES (1706-1826)
  • Rodrigo Henrique Araújo da Costa …………………………………………………….. 204
  • LUZES E TREVAS: A MORAL ILUSTRADA NAS IMAGENS DE WILLIAN HOGARTH NA INGLATERRA DO SÉCULO XVIII
  • Laila Luna Liano de Leon ………………………………………………………………… 218
  • DA CARNE AO ALABASTRO: FORMAS DE MOSTRAR O CORPO A PARTIR DA TUMBA DE ALICE LA POLE (INGLATERRA, SÉC. XV)
  • Amanda Basilio Santos …………………………………………………………………… 238
  • UM DISCIPULADO COIGUAL. REPENSANDO A CATEGORIA DE A*DELFOIV GUNAI’KA
  • Juliana B. Cavalvanti …………………………………………………………………….. 253
  • A VOZ QUE GRITA NO DESERTO: JOÃO BATISTA HISTÓRICO E SEU MOVIMENTO
  • Vítor Luiz Silva de Almeida ……………………………………………………………… 267
  • IRINEU DE LYON E A GNOSE PALEOCRISTÃ: O USO DO DISCURSO PERFORMÁTICO EM ADVERSUS HAERESES – SÉCULO II EC
  • Nathalie Drumond Alves do Amaral …………………………………………………… 287
  • O SINCRETISMO CULTURAL NAS AVENTURAS DE PEDRO MALASARTES
  • Talitta Tatiane Martins Freitas ………………………………………………………….. 303
  • A DESCOBERTA DAS ESTÓRIAS COMO SUPERAÇÃO: PINGO-DE-OURO E DITO
  • Mayara de Andrade Calqui ………………………………………………………………. 321
  • PARA ALÉM DO VELHO MUNDO: PROBLEMÁTICAS DA DRAMATURGIA COMPARADA NO BRASIL
  • Alexandre Francisco Solano …………………………………………………………….. 332
  • O MEDIEVO E A FUNÇÃO DAS IMAGENS NA LITURGIA: UMA BREVE TRADUÇÃO CULTURAL DO CULTO DE SÃO FRANCISCO NA COMUNIDADE EM NOVA ASSIS EM CAPANEMA DO PARÁ
  • Leonardo de Souza Câmara e Roberta Alexandrina Silva …………………………. 349
  • ARTIGOS DE FLUXO QUADRO DA NATUREZA E FIGURAÇÃO DAS MINAS DO OUTRO, NA VILA RICA DE RUGENDAS
  • Francisco Eduardo de Andrade …………………………………………………………. 370

Publicado: 2017-04-03

Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.17, n.2[45], 2017.

Abril/Junho

Editorial

Artigos

Consultores para este volume

Publicado em Abril de 2017.

Trabajar con mapas en educación secundaria – SANDOYA (I-DCSGH)

SANDOYA, M.Á. Trabajar con mapas en educación secundaria. Madrid: CCS, 2010. Resenha de: RUBIO CÂMARA, Santiago. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.87, p.82-83, abr., 2017.

Este interesante libro aporta un marco teórico sobre la enseñanza de la geografía que, partiendo de enfoques innovadores, llegue a dotar de un valor educativo a la geografía. Tras analizar los mapas como recurso didáctico, su autor recomienda cómo deberían utilizarse éstos y describe una propuesta de trabajo que pueda servir de guía a los docentes para su implementación en sus programaciones y actividades de aula. La obra se cierra con una reflexión relativa a la cuestión de cómo mejorar los procesos de enseñanza-aprendizaje de la geografía en nuestras clases. Leia Mais

Antes que sea tarde – PARGA (I-DCSGH)

PARGA, C. Antes que sea tarde. Prólogo a la 1.ª ed.: Fernando Morán; prólogo a la 2.ª ed.: Alfonso Guerra; presentación: Fernando Serrano Migallon México: Porrúa, 2007. Resenha de:Del MORAL, Cristina. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.87, p.81-82 abr., 2017.

Carmen Parga es una exilada más, no tan conocida como su marido Manuel Tagüeña y tantos otros intelectuales y políticos que tuvieron que abandonar España en 1939. Una mujer culta, sensible y comprometida cuyo testimonio enriquece nuestra visión del exilio español de 1939 a 1955 y nos plantea una reflexión sobre el compromiso personal en momentos muy aciagos.

Estas memorias son un ejemplo de resistencia frente a los imperativos de los avatares históricos y demuestra la capacidad del ser humano, más frecuente entre mujeres que entre hombres, de preservar la intimidad en medio de las situaciones más adversas. En suma, un libro optimista.

La obra se articula a partir de tres planos. En el plano íntimo, aunque no es un libro intimista, refl eja la cotidianidad, la vida como madre, con momentos que emocionan, cuando cuenta sus esfuerzos para criar a sus hijas; como hija, siempre apoyando a su padres; como esposa, a la sombra de su prestigioso marido, y como hermana, luchando por ayudar a su hermano que regresa tuberculoso del frente. En el plano histórico, si bien Carmen Parga se cura en salud diciendo que su libro se basa en notas sin ningún rigor científi co ni histórico, nos muestra su vida universitaria en la Segunda República, la guerra civil, el exilio a Rusia, la vida en Moscú, la Segunda Guerra Mundial en la Unión Soviética, el día a día en el campo ruso y en Uzbequistán, mostrando en todo momento un espíritu crítico ante la situación, pero también un gran respeto y cariño hacia los rusos, a los que alaba por sus múltiples cualidades, en especial por su espíritu de resistencia y el afecto y solidaridad hacia los españoles.

Por último, en el plano ideológico, la autora narra cómo –al igual que muchos otros compatriotas suyos– se fue despegando progresivamente de la doctrina comunista, cuyo peor ejemplo está en las jefaturas soviéticas, a partir de su estancia en Yugoslavia y Checoslovaquia, y cómo fi nalmente su familia y ella recalan en México, donde renuncia a la militancia en el partido. A lo largo de este periplo se ve obligada a luchar entre su formación y militancia comunista y sus ideas, vivencias y ansias de libertad, hasta que se confi esa socialista. A pesar de sus críticas, Antes que sea tarde no es un ajuste de cuentas con el comunismo, pero sí una denuncia –por ejemplo cuando describe el hambre en Tashkent– y una amarga refl exión por la falta de rebeldía.

La lectura de algunos fragmentos de este libro en clase servirán al profesorado de historia no sólo para conocer y enseñar un período apasionante de la historia de Europa en Rusia, Yugoslavia y Checoslovaquia, sino también para fomentar la empatía (especialmente entre las alumnas), pues Carmen Parga escribe sobre su vida cotidiana, sus relaciones familiares, sus preocupaciones por la salud o el nacimiento de sus hijas en circunstancias muy difíciles. Asimismo, por su valor poético y alta calidad literaria puede ser una lectura susceptible de ser compartida con los docentes de literatura. Al respecto, hay escenas –como la entrada en el puerto de Leningrado del barco ruso con los exilados españoles y la muerte de la foca arrastrada por aquél– dignas de los grandes narradores rusos. Además, las fotos que ilustran el libro pueden ser también fuentes de gran interés para el estudio de la vida cotidiana y de los personajes históricos en su faceta más cercana. De nuevo, un buen instrumento para desarrollar la empatía entre el alumnado. En definitiva, una obra optimista, que denuncia algunas consecuencias perversas de la Revolución rusa.

Cristina del Moral – E-mail: cdmoralitu@gmail.com

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Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888) – FRAGOSO (Topoi)

FRAGOSO, João. Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888). Rio de Janeiro: 7Letras, 2013. Resenha de: SANTOS, Marco Aurélio; MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da economia cafeeira do vale do Paraíba. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.

Nos últimos anos, as pesquisas feitas nas áreas de História Social e História Econômica vêm deslindando a complexa realidade econômica, política e social de diversas localidades brasileiras. Historiadores com diferentes abordagens, favorecidos por uma ampliação do conjunto documental acessível à pesquisa, estão conseguindo descortinar a significativa complexidade brasileira. O livro Barões do café e sistema agrário escravista: Paraíba do Sul, Rio de Janeiro (1830-1888), do historiador João Fragoso, insere-se nesse amplo corpus bibliográfico que vem, a cada ano que passa, enriquecendo a compreensão de diversos municípios do país. Em linhas gerais, Barões do café é uma versão resumida dos capítulos de história agrária de sua tese de doutorado, defendida em 1990,1 e procura investigar a estrutura e a hierarquia no sistema agrário escravista-exportador, bem como a reprodução desse sistema no município de Paraíba do Sul, situado no médio Vale do Paraíba fluminense.

João Fragoso inicia o capítulo 1, “Estrutura e hierarquia no sistema agrário escravista-exportador”, lançando um conceito-chave: o de “recriação de sistemas agrários escravistas”. Segundo seu ponto de vista, esse conceito apresenta três significados. A citação, apesar de longa, merece ser reproduzida na íntegra, pois mostra o que pode ser considerado como sendo a tese central do autor. Sendo assim, “a noção de recriação de sistemas agrários escravistas {…}”

– diz respeito à continuidade de uma sociedade não capitalista, onde (sic) as relações sociais de produção identificam-se com relações sociais de subordinação, os fatores de produção (inclusive a mão de obra) se apresentam enquanto mercadorias e se verifica a hegemonia do capital mercantil (fenômeno que se traduz na preponderância da elite de comerciantes de grosso trato sobre a hierarquia econômica colonial);

– essa recriação gera demanda para as produções voltadas para o mercado interno e, com isso, permite a recorrência da formação econômico-social escravista-colonial;

– e, por último, tal movimento reitera, na fronteira, os traços gerais da sociedade escravista: a produção de mercadorias, uma hierarquia econômico-social diferenciada e a hegemonia do capital mercantil. (p. 43)

Um pouco adiante, Fragoso escreve que, nessa economia de Paraíba do Sul,

as relações de produção se confundem com as de poder, ou melhor, cuja forma de extorsão do sobretrabalho depende de elementos extraeconômicos: o trabalhador direto é homem de outro homem. Entretanto, esse fato não causa o desvio do excedente da economia. Ao contrário de outras sociedades pré-capitalistas, a recorrência das relações de poder (e, com elas, as de produção) está presa aqui ao retorno do sobretrabalho para a produção por meio dos senhores de homens. (p. 43-44)

Essa sociedade, porém, tem especificidades: “a reprodução ampliada adquire um sentido particular que tem como resultado a reiteração e o aumento do poder, sem que isso signifique que tal economia se fundamente numa lógica do lucro pelo lucro” (p. 44).

Como já foi dito, esse início de capítulo apresenta a base conceitual que dá suporte ao estudo sobre Paraíba do Sul. Nesse sentido, partindo do que Fragoso escreveu, é possível tirar as seguintes conclusões sobre o “sistema agrário escravista-exportador”: (a) esse é um sistema de agricultura mercantil-escravista; (b) o sistema baseia-se na monocultura, na agricultura extensiva e no baixo nível técnico; (c) existe a produção de lucro, com a ressalva já apontada; (d) o sistema agrário funciona numa sociedade pré-capitalista/não capitalista (os dois conceitos são usados ao longo do trabalho); (e) fatores de produção como a mão de obra “se apresentam como mercadorias”; (f) o capital mercantil é hegemônico e, por fim (g) existe produção de mercadorias (café entre outras).

Uma primeira observação a ser feita é a de que o autor associa dois conceitos que são significativamente diferentes: o de “sociedade pré-capitalista” (p. 44) e o de “sociedade não capitalista” (p. 43). Fragoso usa diversas variantes desses dois conceitos. Algumas delas são: “estrutura econômica pré-capitalista” (p. 45), “agricultura pré-capitalista” (p. 57), “mercado pré-capitalista” (p. 57) e “mercado pré-industrial” (p. 58). Todas essas classificações seriam características do “sistema agrário escravista-exportador”.

Para Fragoso, Paraíba do Sul foi uma área de “agricultura pré-capitalista altamente especializada, cuja reprodução, tanto no que concerne à geração de suas rendas como o seu abastecimento, passa pelo mercado”. Esse é mais um trecho que confirma que se trata, segundo o autor, de uma sociedade pré-capitalista produtora de mercadorias. Afinal, se as rendas e o abastecimento passam pelo mercado, então o que a sociedade produz são mercadorias para abastecer a fazenda e para garantir sua sobrevivência (reiteração/reprodução, como talvez preferisse escrever o autor).

Ora, em primeiro lugar deve-se salientar que a caracterização de Paraíba do Sul como uma sociedade pré-capitalista mostra um vínculo do autor com o trabalho de Eugene D. Genovese, The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South.2 Por outro lado, fica claro que muitas das caracterizações feitas por Fragoso carecem de rigor conceitual. Deve-se sublinhar, de imediato, que existe uma diferença abissal entre os conceitos de “sociedade pré-capitalista” e “sociedade não capitalista”. O prefixo “pré” significa anterioridade e um momento de transição entre uma sociedade, digamos, colonial, e outra capitalista. Já afirmar uma sociedade “não capitalista” significa conceber outro sistema ou modo de produção. Como o autor não conceitua essas expressões, é impossível associar o conceito de “sociedade não capitalista” com o de “sociedade pré-capitalista” em Paraíba do Sul. O conceito “sociedade não capitalista” permite pensar que a “sociedade em estudo {no caso Paraíba do Sul} não é capitalista”. O adjunto adverbial de negação “não” faz supor a existência de outro modo de produção. De qualquer modo, ao associar “sociedade não capitalista” e “sociedade pré-capitalista”, tem-se uma confusão conceitual que dificulta a compreensão da agricultura cafeeiro-escravista de Paraíba do Sul. Essa falta de rigor conceitual marca a obra e chama facilmente a atenção do leitor.3

De modo geral, João Fragoso é pouco cuidadoso nos procedimentos metodológicos empregados em Barões do café. O autor utilizou “mais de 400” inventários post mortem e 2.223 escrituras públicas de compra-venda e hipotecas entre os anos de 1830 e 1885 (p. 20). A partir dos inventários, os agentes coevos foram distribuídos em uma hierarquia econômica composta por três grandes grupos de fortunas (em libras esterlinas). Quanto ao corte cronológico, Fragoso não justifica a pertinência de dividi-lo em subperíodos (1830-1840; 1845-1850; 1855-1860; 1861-1865; 1870-1875; 1880-1885) e nem a razão pelo qual certos quinquênios foram excluídos da amostra. Da mesma forma, não apresenta o método de conversão do mil-réis em libras esterlinas. Por fim, não esclarece os motivos pelos quais não utilizou em todos os quadros, gráficos e tabelas que contemplam dados extraídos dos inventários, a totalidade de processos de sua amostra inicial (os 462 inventários, como se constata no Quadro 16, no capítulo 1).4 Por exemplo, o Quadro 3, na página 48, apresenta os “investimentos nas fazendas de café”. Nesse quadro, o autor utiliza-se de 224 inventários, ou seja, cerca de 49% do total pesquisado. O mesmo número de inventários (224) se repete nos Quadros 14 e 15, às páginas 70 a 72.

Deve-se destacar que, em alguns casos, a amostra de inventários é tão pequena que pode até mesmo comprometer a validade das análises de João Fragoso. Um bom exemplo do que estamos apontando pode ser observado no Quadro 24 (p. 122), que exibe a origem dos créditos dos grupos de fortuna em Paraíba do Sul entre 1840 e 1880. Nota-se que o autor utilizou pouquíssimos inventários (12 para o período 1840-1850, 33 para 1851-1871 e 10 entre 1871-1880) para determinar se o crédito era oriundo de Paraíba do Sul ou do Rio de Janeiro.

João Fragoso reconhece que a metodologia adotada em sua pesquisa tem “uma série de problemas” (p. 22). Contudo, malgrado essa observação, o autor acredita ter alcançado o objetivo proposto ao perceber as “mudanças de uma dada hierarquia social, e a vida de seus agentes, no tempo, e portanto em meio às flutuações econômicas da sociedade” (p. 22). No entanto, seu livro não apresenta a dinâmica desse sistema na formação histórica do Brasil e não leva em conta os processos globais mais amplos da economia-mundo capitalista. Além disso, Fragoso afirma que o sistema agrário de Paraíba do Sul conserva “uma certa autonomia das flutuações da economia escravista-colonial frente às conjunturas do mercado internacional” (p. 65). Ora, sabe-se que essa autonomia nunca existiu. Esse assunto é objeto de importante debate historiográfico pelo menos desde a publicação de O arcaísmo como projeto.5

Trabalhos recentes em inventários questionam outra tese presente em Homens de grossa aventura6 e n’O arcaísmo como projeto e reproduzida em Barões do café. A noção segundo a qual a história do sistema agrário escravista é resultado de um processo global de reprodução que foi “originado de uma acumulação previamente realizada no comércio” (p. 43) é uma hipótese que pode servir para alguns casos específicos. Contudo, essa hipótese não deve ser generalizada para as demais regiões do médio Vale do Paraíba, coração da cafeicultura escravista do Oitocentos. Em Bananal – e em outras localidades do Vale do Paraíba paulista7 – a montagem da cafeicultura escravista obedeceu a outros mecanismos. A implantação e a disseminação da cultura cafeeira provocaram intensas mudanças na composição econômica dos domicílios. Os fogos que, em sua maioria, dedicavam-se à produção de mantimentos (milho, arroz, feijão e farinha de mandioca), sobretudo para a própria subsistência, no início do século XIX, logo se converteram em propriedades rurais voltadas à exportação de café para o mercado mundial. Os agricultores que não dispunham de capital para ingressar na cafeicultura adotaram a estratégia de cultivar milho e feijão entre as fileiras dos arbustos de café recém-plantados. Com isso, eles foram se deslocando paulatinamente da produção de gêneros para a atividade cafeeira, sem abdicar do cultivo de víveres para o autoconsumo.8

Por fim, cabe salientar que, apesar de questionar alguns procedimentos metodológicos utilizados para compor o livro Barões do café, Fragoso reproduz uma série de argumentos de seus trabalhos anteriores, como a noção de “autonomia”. Esses argumentos, já amplamente debatidos pela historiografia, apontam para outra direção, diferente da sustentada pelo autor. De qualquer modo, cabe salientar o esforço de Fragoso em olhar para as elites e suas estratégias empresariais e tentar compreender sua atuação no contexto do desenvolvimento da economia cafeeiro-escravista do século XIX. Malgrado as polêmicas em torno de suas teses, sua empreitada fomenta o debate historiográfico e o conhecimento da formação econômica e do Estado nacional brasileiro no Oitocentos.

1FRAGOSO, João L. R. Comerciantes, fazendeiros e formas de acumulação em uma economia escravista-exportadora no Rio de Janeiro: 1790-1888. Tese (Doutorado em História Social) — PPHS-UFF, Rio de Janeiro, 1990.

2Um exemplo desse vínculo pode ser lido no seguinte trecho: “The planters were not mere capitalists; they were precapitalist, quasi-aristocratic landowners who had to adjust their economy and ways of thinking to a capitalist world market. Their society, in its spirit and fundamental direction, represented the antithesis of capitalism, however many compromises it had to make”. GENOVESE, Eugene D. The Political Economy of Slavery: Studies in the Economy and Society of the Slave South. Middletown: Wesleyan University Press, 1989, p. 23. Para uma avaliação crítica da interpretação de Genovese, ver TOMICH, Dale W. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 28-32.

3O conceito de “sociedade pré-capitalista”, com o prefixo “pré” compreendido como um momento de transição, está muito bem caracterizado no “Debate Brenner” e no debate sobre a transição do feudalismo para o capitalismo. Não é objetivo desta resenha desenvolver essa questão do conceito de sociedade pré-capitalista. Contudo, vale a pena ler a definição de R. H. Hilton para “pré-capitalista” em HILTON, R. H. Introduction. In: ASTON, T. H. & PHILPIN C. H. E. The Brenner Debate: Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 5. Ver também a definição apresentada por Robert Brenner em BRENNER, Robert. The Origins of Capitalist Development: a Critique of Neo-Smithian Marxism. New Left Review, Londres, n. 104, 1977, p. 37. Mais ainda, vale a pena considerar a proximidade entre a “sociedade pré-capitalista de Paraíba do Sul”, conforme caracterização de Fragoso (ver especialmente os itens “c”, “f” e “g” citados anteriormente), e o conceito usado por Paul M. Sweezy de “economia pré-capitalista de produção de mercadorias”. Esse conceito foi usado por Sweezy para entender “o sistema que prevaleceu na Europa ocidental durante os séculos XV e XVI”. Ver SWEEZY, Paul. O debate sobre a transição: uma crítica. In: SWEEZY, Paul et al. A transição do feudalismo para o capitalismo: um debate. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 60-63. O artigo citado de Brenner é uma apreciação crítica da caracterização de Sweezy sobre o período de transição e sobre uma sociedade que, segundo o entendimento do historiador norte-americano crítico de Maurice Dobb, não era nem feudal nem capitalista nos séculos XV e XVI.

4Apenas na confecção do Quadro 16 (p. 78), que apresenta dados referentes à presença de fortunas no mercado de escrituras de Paraíba do Sul, Fragoso valeu-se de todos os inventários de sua amostragem.

5A tese segundo a qual a economia colonial brasileira gozava de “autonomia” frente à economia global já havia sido desenvolvida pelo autor em O arcaísmo como projeto, redigido em parceria com Manolo Florentino. FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1840. 1. ed., 1993. Ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Vale notar que esta tese também está presente em: FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). 1. ed., 1997. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. Para um contraponto ver, entre outros, os seguintes estudos: MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: SALLES, Ricardo; GRINBERG, Keila (Org.). O Brasil imperial (1808-1889). Volume II (1831-1871). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 345-347. TOMICH, Dale. A “Segunda Escravidão”. In:______. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011, p. 81-97. MARQUESE, Rafael. As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira. Revista de História (USP), v. 169, p. 223-253, 2013. MARIUTTI, Eduardo; NOGUERÓL, Luiz Paulo; DANIELI NETO, Mário. Mercado interno colonial e grau de autonomia: crítica às propostas de João Luís Fragoso e Manolo Florentino. Estudos Econômicos: IPE-USP, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 369-393, abr./jun. 2001. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (Org.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, p. 328-350.

6Cf. FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

7Cf. MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: estrutura da posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829). São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999. LUNA, Francisco; KLEIN, Herbert. Evolução da sociedade e economia escravista de São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005.

8Cf. MORENO, Breno Aparecido Servidone. A formação da cafeicultura em Bananal, 1790-1830, op. cit. Ver também o livro de Maria Luíza Marcílio, resultado de sua tese de livre-docência apresentada junto ao Departamento de História da Universidade de São Paulo em 1974. Nessa pesquisa, Marcílio procurou investigar como “a infraestrutura ou o suporte humano, material e social sobre o qual se instituiu a economia cafeeira teve formação anterior a ela e não apenas concomitante”. MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo: Hucitec/Edusp, 2000, p. 16.

Marco Aurélio dos Santos – Doutor em História Social pela FFLCH-USP, Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil. E-mail: marcoholtz@uol.com.br.

Breno Aparecido Servidone Moreno – Centro de Estudos Migratórios – São Paulo, SP, Brasil. Mestre e doutorando em História Social pela FFLCH-USP. E-mail: berenomor@yahoo.com.br.

An African Slaving Port and the Atlantic World – CANDIDO (Topoi)

CANDIDO, Mariana P. An African Slaving Port and the Atlantic World. Benguela and Its Hinterland, (2013). ., Nova York: Cambridge University Press, 2015. Resenha de: ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Uma história de Benguela na economia do Atlântico Sul. Topoi v.18 n.34 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2017.

Este é um livro pioneiro: trata-se do primeiro trabalho exaustivo sobre um importante território angolano ao sul do rio Kwanza: Benguela, hoje uma das principais províncias do jovem país1 e, historicamente, durante mais de duzentos anos, o terceiro maior porto de embarque de escravos do Atlântico. O recorte temporal é abrangente, desde a primeira expedição portuguesa à localidade que ficou conhecida como “Benguela Velha”, no início do século XVI, até meados do século XIX, quando Benguela perde sua importância na economia atlântica devido à legislação que determina o fim do tráfico de escravos para o Brasil.

Mariana Candido, ao propor um diálogo assíduo com diversas correntes historiográficas, se insere em um conjunto de autores que abordam a história do continente africano a partir de uma perspectiva “afrocêntrica”, tributária dos caminhos abertos por uma historiografia que se voltou para o estudo dos portos de escravos na África, centra sua análise na agência africana.2 Dessa forma, ao escrever a primeira história detalhada sobre Benguela e o seu hinterland – e a formação de seu porto no centro da economia escravista do Atlântico Sul – a autora destaca o papel das “pessoas que construíram esses lugares e o inseriram na economia global” (p. 24). E, ainda que não negue a importância da participação dos oficiais portugueses e de comerciantes estrangeiros nessa história, sua narrativa privilegia as trajetórias dos africanos e, como veremos, com enfoque nas mulheres africanas.

O conjunto de fontes que compõe essa análise é vasto e advém de três continentes; são documentos coloniais produzidos por portugueses, brasileiros e africanos – relatórios, cartas, ofícios, censos, dados de exportação, registros paroquiais, crônicas, relatos de viagem provenientes dos arquivos de Angola, Portugal, Brasil, Canadá e Estados Unidos. Consciente da limitação dos documentos coloniais, por serem produto de uma visão europeia, a autora se esforça para reconstruir uma história social da região afirmando que mesmo nas lacunas e nos silêncios é possível encontrar indícios do que foi destruído, transformado e criado pelos atores envolvidos (p. 23). Embora tenha recorrido a entrevistas, registros de missionários e antropólogos do século XX para complementar os dados insuficientes das fontes escritas, privilegia as informações dos documentos que encontrou nos arquivos de Luanda e Benguela.3

Como debate historiográfico central, An African Slaving Port and the Atlantic World discute o impacto da economia Atlântica e do tráfico transatlântico de escravos nas sociedades da África Centro-Ocidental. Ao contrário do que defendem Thornton e Miller,4 Candido busca comprovar que as transformações provocadas na organização social, política, cultural e econômica dos Ndombe – um dos povos que primeiro estabeleceu contato com os portugueses na região – e de outros grupos vizinhos deixaram marcas devastadoras, pois levaram à expansão do colonialismo, à dependência africana da economia Atlântica, à instabilidade e perda de autonomia política e à violência incitadas pelos constantes (e, ao longo do tempo, cada vez maiores e mais frequentes) conflitos que tinham por objetivo o apresamento de escravos. Para a autora, esses fatos não podem ser desvinculados da situação de declínio econômico e político enfrentada pelos africanos no final do século XIX.

De maneira eloquente, vemos surgir a emergência de uma sociedade escravista na África e os efeitos do colonialismo português na desarticulação dos estados africanos. Embora estudos quantitativos já tenham informado sobre os impactos do tráfico transatlântico5 – número de cativos exportados, a relevância da reprodução natural, os números da produção alimentícia -, eles negligenciam as transformações sociais, tal como a dependência local do trabalho escravo (p. 14). A escravidão se tornou em Benguela, como em outras colônias, o elemento fundante da ordem econômica e social, e foi por meio da ação de seus agentes (traficantes, oficiais coloniais, entre outros) que a colonização se instaurou: a língua portuguesa, a religião católica, novos padrões de alimentação e consumo, mudanças nas relações de gênero.

A estrutura do livro se divide em dois capítulos introdutórios que cobrem a história de Benguela até 1850 e três capítulos temáticos em que a autora aborda com mais detalhes algumas questões. An African Slaving Port and the Atlantic World traz a descrição dos estágios da colonização portuguesa em Benguela dos primeiros contatos, que foram atraídos pelas notícias da abundância de cobre na região e de uma grande densidade populacional, em fins do século XVI, até quando todo um esforço de colonização teria conferido uma maior estabilidade à presença portuguesa, ao longo do século XVIII. Logo que o acesso às minas de cobre foi dificultado pelas chefias africanas, o tráfico de pessoas foi eleito como o comércio mais rentável.

O porto de Benguela se tornou o centro do colonialismo português e do tráfico de escravos ao sul do rio Kwanza. Uma das questões defendidas neste trabalho é a centralidade deste porto para o tráfico transatlântico já no século XVII, explicada tanto pelos dados demográficos do tráfico quanto pela invasão holandesa de 1641-1648: “Se a exportação de escravos não era importante em Benguela, por volta de 1640, como podemos explicar a invasão e ocupação holandesas”? (p. 69). Para além da costa e mesmo ao longo dela, a colonização portuguesa não se fazia forte ou impenetrável. Os poucos homens nas guarnições já reduzidas, espalhadas pelos presídios e feiras que foram surgindo, estavam debaixo da constante ameaça dos africanos e de outros europeus.

Muitas chefias que desafiaram a presença portuguesa nas primeiras décadas do século XVIII desaparecem nos relatos dos anos seguintes. Isso é interpretado como um indício de como o tráfico transatlântico levou ao colapso antigos domínios centro-africanos e, por conseguinte, à sua fragmentação política e a ciclos de violência que traziam fome, insegurança e possibilitavam a captura massiva de cativos. Essas premissas são comprovadas no estudo da reconfiguração política dos estados de Wambu, Mbailundu e Viye. As próprias identidades que assumiam as vítimas do tráfico de Benguela ao chegarem nos portos de destino (em sua maioria, eram enviados para o Brasil) – Kitata, Kalukembe, Kitete, Mbailundu e Wammbu – eram resultado de um processo fluido de migração: em busca de proteção e segurança contra os mecanismos de escravização, as pessoas se anexavam a uma ou a outra chefia local. Assim, a identidade étnica hoje conhecida como Ovimbundu, um grupo coeso do interior de Angola, não existia na era do tráfico transatlântico; essa singularidade foi construída posteriormente (p. 292 e ss.).

No seu compromisso de dar nome e rosto aos números da demografia da escravidão, Mariana Candido segue os esparsos registros que a documentação oficial deixou para reconstruir as trajetórias de homens e mulheres que foram escravizados. Os processos e mecanismos de escravização – guerra justa, razias, sequestros, condenação judicial, escravidão por dívida, punição por crime – são analisados à luz da luta de Quitéria, Juliana, Albano, Katete, Vitória, Nbena, José Manuel e outras pessoas que, enquanto agentes históricos, utilizaram todos os seus recursos à procura de alguma segurança, equilibrando-se na linha tênue que determinava as formas legais e ilegais de escravização. Essas histórias mostram que a escravidão era uma ameaça a todos: tanto os que moravam ao longo da costa e que, sendo vassalos da Coroa, eram cristãos, dominavam o português, e, portanto, estariam protegidos pela legislação portuguesa, quanto os gentios que habitavam o interior. Candido contesta nesse ponto a tese de Joseph Miller segundo a qual a fronteira da escravidão se moveria cronológica e progressivamente para o interior do continente africano, criando uma margem de proteção para os moradores do litoral.6

A noção de crioulização sustenta muitos argumentos da presente obra. Apoiando-se sobretudo nos apontamentos de James Sweet,7 a autora defende que só é possível compreender a crioulização em sua relação íntima com o tráfico de escravos e o colonialismo, como uma transformação sociocultural; não uma ocidentalização ou aculturação, pois as resistências aos elementos da cultura europeia eram evidentes – tais como o sincretismo religioso e a persistência da poligamia (p. 12). O conceito é visto como uma via de mão dupla, em que tanto as instituições portuguesas tinham de se ajustar às mudanças provocadas por elementos africanos, quanto os estados africanos se viam obrigados a ceder espaço na violenta negociação com as forças coloniais.8

Os autos de vassalagem colonial, tratados em que as autoridades centro-africanas – os sobas – oficializavam sua sujeição à Coroa portuguesa, mediante o estabelecimento de obrigações e direitos definidos para os dois lados, se misturavam com as cerimônias de undamento locais. Ao undar, deitar pó ou farinha no corpo de um novo chefe, os mais velhos da comunidade confirmavam sua autoridade e poder. O mesmo procedimento foi adotado pelos portugueses, que, ao ratificarem suas alianças, undavam o soba que passava a lhes ser sujeito.

O conceito de crioulização também é desenvolvido ao analisar a participação de portugueses, brasileiros, filhos da terra (nascidos na colônia) na formação das sociedades Luso-Africanas em Benguela e seu interior; trata-se de grupos de uma nova elite intrinsecamente ligada ao estado colonial. A presença de brasileiros é realçada devido, entre outras razões, ao intenso tráfico de escravos que a colônia americana demandava e, assim, ao constante trânsito de traficantes ou degredados brasileiros que iam se instalando na margem africana do Atlântico Sul.

Se o papel das mulheres é abordado de forma transversal em An African Slaving Port and the Atlantic World, é ao descrever o papel econômico e cultural das mulheres africanas que a temática ganha peso. As donas, mulheres que se envolviam com portugueses ou brasileiros e que acumulavam riquezas, eram responsáveis por um grande número de dependentes, pelo funcionamento do tráfico de escravos, o cultivo de alimentos e a comercialização de mercadorias. Além disso, “elas assumiam a responsabilidade que reproduzir hierarquias sociais, enfatizando sua aliança com a Igreja Católica e com o comércio Atlântico (p. 135) ”.

No decorrer do livro, Candido se lança a um esforço de comparação com outras realidades coloniais, assim, aparecem ligações com a África Ocidental, a América Hispânica, com os imperialismos britânico e francês. Do mesmo modo, dialoga com a historiografia brasileira em temas fulcrais como a polissemia dos termos que aparecem nas fontes coloniais, que ora determinariam a cor da tez, ora a condição social. Contudo, ao descrever os mecanismos de escravização de africanos e luso-africanos, uma maior aproximação dos estudos sobre o aprisionamento e a escravização de indígenas no Brasil poderia lançar novas questões, além de renovar algumas interpretações.9 Entretanto, a forma eloquente e balanceada como os argumentos são construídos em torno do problema histórico do colonialismo é precisa. Trata-se de um estudo de fôlego com vasta pesquisa histórica e densa reflexão, incontornável aos que se dedicam à análise da História da África e dos africanos, da escravidão e da formação do império português.

1Embora Benguela apareça como objeto de alguns estudos anteriores, é a primeira vez que lhe dedicam uma análise extensa, com vasta pesquisa arquivística e novas interpretações. Exemplos de outros estudos sobre a temática são aqueles de Ralph Delgado que, escritos enquanto Angola ainda era colônia portuguesa, trazem muito do ponto de vista colonial: DELGADO, Ralph. A famosa e histórica Benguela: catálogo dos governadores, 1779 a 1940. Lisboa: Cosmos, 1944 e O reino de Benguela. Do descobrimento à criação do governo subalterno. Lisboa: Imprensa Beleza, 1945.

2Alguns exemplos dessa historiografia: HEYWOOD, Linda M.; THORNTON, John. Central Africans, Atlantic Creoles and the Making of the Foundation of the Americas, 1585-1660. Nova York: Cambridge University Press, 2007; SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Caroline Press, 2003; LOVEJOY Paul E.; TROTMAN, David V. Enslaved Africans and their Expectations of Slave Life in the Americas: Towards a Reconsideration of Models of “Creolisation”. In: SHEPHERD, Verene; RICHARDS, Glen L. (Ed.). Questioning Creole: Creolisation Discourses in Caribbean Culture. Kingston: Ian Randle, 2002, p. 67-91.

3Vale lembrar que a guerra foi um fator desarticulador da reconstrução de alguns aspectos da tradição oral, da memória das gerações passadas na África Central.

4THORNTON, John. The slave trade in eighteenth century Angola: effects of demographic structure. Canadian Journal of African Studies, v. 14, n. 3,p. 417-427, 1980; MILLER, Joseph C. The significance of drought, disease and famine in the agriculturally marginal zones of West-Central Africa. Journal of African History, v. 23, n. 1, p. 17-61, 1982; MILLER, Joseph C. Way of death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988.

5Exemplos de estudos quantitativos sobre o tráfico transatlântico: CURTIN, Philip.The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison: University of Wisconsin Press, 1969; ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. Nova York: Oxford University Press, 1987; ELTIS, David; RICHARDSON, David (Org.).Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database. New Haven e Londres: Yale University Press, 2008.

6MILLER, Joseph C. Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, op. cit., p. 140-169.

7SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770, op. cit.

8Seguindo a interpretação de Hawthorne, para os africanos, a crioulização era um exemplo de uma criatividade cultural sob opressão. HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: Culture, Identity and an Atlantic Slave Trade, 1600-1800. Nova York: Cambridge University Press, 2010.

9MONTEIRO, John. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Crislayne Gloss Marão Alfagali –Universidade Estadual de Campinas – Campinas, SP, Brasil.

Cadernos do Tempo Presente. São Cristóvão, n.26, 2017.

Entre Relações de Poder e Modernização Urbana: as muitas faces da 26ª edição – ISSN: 2179-2143

Artigos

Resenhas

Publicado: 2017-04-01

About Oneself: De Se Thought and Communication – GARCÍA-CARPINTERO (M)

GARCÍA-CARPINTERO, Manuel; TORRE, Stephan (eds.). About Oneself: De Se Thought and Communication. Oxford: Oxford University Press, 2016, 368p. Resenha de: VALENTE, Matheus. Manuscrito, Campinas, v.40 n.2 Apr./June 2017.

About Oneself: De Se Thought and Communication is a recently published collection of eleven papers on de se thought, i.e. thoughts about oneself as oneself, and its implications for a theory of communication. Edited by Manuel García-Carpintero and Stephan Torre, this volume contains contributions from many distinguished experts and presents the state-of-the-art discussions on this important field.

The issue of de se thought dates, at least, as far back as the late 1960s1, when some noticed that, in order to characterize the information encoded in a de se thought, one must reject some traditional assumptions about propositional attitudes. Take, for example, Perry’s famous story of when he tried to find the person making a mess in the supermarket by following a trail of spilled sugar only to subsequently realize that he himself was the culprit. It seems that, whatever the content of Perry’s epiphany is – the one he could express by uttering “I am making a mess” – it resists characterization by traditional conceptions of propositions (i.e. as sets of possible worlds or structured Russellian propositions).

Most of the chapters in this volume are primarily concerned to defend one or another theory of de se thought and to examine their implications for an account of communicative success. Due to shortage of space, this review will focus on the papers that are directly involved with these questions. Our main objective will be weaving these papers together such as to make explicit their points of agreement and disagreement.

What, after all, is so special about de se content? This is not an easy question to answer. Indeed, some philosophers even got as far as declaring that there is no real problem of de se content over and above the typical issues that singular thought (in general) brings about, such as Frege’s Puzzle2. Dilip Ninan’s paper – What is the Problem of De Se Attitudes? – intents to reach a verdict about the extent to which some content is essentially indexical. According to Ninan, only de se attitudes (as opposed to other de re attitudes) are such that they give rise to cases where two subjects agree about all the objective properties of a situation while still diverging in their behavior. This happens, for example, in Perry’s bear scenario (1979), in which I am being chased by a bear while you are watching from a safe distance. Even though we may agree on our objective beliefs about the situation (e.g. that I am being chased by a bear and you are not) as well as in our desires (e.g. we both desire that I don’t get killed), it is still true that we will be motivated to behave differently (e.g. I will curl up into a ball and you will run to get help). That is, only when de se attitudes are concerned, there can be full belief-desire agreement concomitant with divergent behavior. That conclusion leads to an outright denial of Explanation:

(Explanation) If a subject’s behaving in a certain way is explained by his set of belief-desire pairs, then any other subject possessing the same set of belief-desire pairs will be disposed to behave identically.

Ninan’s paper help us see how most theorists of de se thought are trying to hold onto Explanation in the face of conflicting evidences by rejecting one of the following two theses:

(Absoluteness) The contents of attitudes are absolute, i.e. contents do not vary in truth-value across individuals or times.

(Publicity) The contents of attitudes are public or shareable, i.e. if an agent x can entertain a content p, then so can any other agent y. (p. 111)

If Explanation and Publicity are true, Ninan claims, one must agree that someone could possess one of my de se beliefs, e.g. that I am being chased by a bear. Per Explanation, we would then be disposed to behave identically – we would both be disposed to, say, curl up into a ball. However, since it is possible that our beliefs diverge in truth-value – one of us could just be overly paranoid – we would then have to dispose of Absoluteness. This is the path (Lewis, 1979) famously took by defending that the content of de se attitudes are properties (or, equivalently, centred propositions), entities which vary in truth-value relative to non-worldly parameters.

Clas Weber – in Being at the Centre: Self-location in Thought and Language – explicitly sets out to defend a Lewisian theory of propositional attitudes and to show how the communication of de se thoughts would be possible inside that framework. In order to do this, Weber advances the Transform-and-Recenter Model of communication, according to which there is no single content being replicated from speaker to hearer in successful instances of de se communication. Since assertions present their contents as being essentially from a particular perspective, Weber claims, we must perform a series of transformations on other people’s asserted contents, so that a piece of information that was originally presented from the speaker’s perspective becomes a piece of information relative to the hearer’s.

In his contribution, De Se Communication: Centered or Uncentered?, Peter Pagin argues that no Lewisian theory positing centered contents can give a suitable account of de se communication, since “the connection between a [centered] content and its thinker is not representational” (p. 275). In a Lewisian theory, the content of de se thoughts are impersonal properties, e.g. the property of being chased by a bear. Only when a thinker believes that property, i.e. self-ascribes it, a connection between her and the content of her thought is drawn. Pagin argues that this entails that a thinker may never merely entertain a thought, e.g. that she is being chased by a bear; what she entertains is just the property of being chased by a bear, not that she is being chased by a bear. After considering various recent incarnations of the Lewisian theory, Pagin goes on to advance his own Fregean-inspired view, maintaining Absoluteness in exchange for Publicity, and thus, giving rise to the famous issue of ‘limited accessibility’. Pagin claims the denial of Publicity should be seen as non-problematic since (i) it is an independently motivated thesis that subjects rarely have the same conception of the concepts they employ and that (ii) this should not harm communicative success in the least.

In opposition to both Lewisian and Fregean theories, some philosophers argue, following (Perry, 1979), that sameness of behavior between A and B should not be explained by them believing a common content, but by them believing possibly distinct contents under the same guise. François Recanati and Manuel García-Carpintero both identify themselves as developing their own Perrian accounts of de se thought. These two authors argue that, in order to clarify these issues, one has to take into account two distinct semantic levels about which one’s attitudes and assertions are accountable: the presuppositional content that one’s representations carry and the content that they properly expresses. The former accounts for the cognitive significance of a thought, whereas the latter accounts for our intuitions on (dis)agreement and sameness of subject matter. Recanati, in Indexical Thought: The Communication Problem, presents his version of a Perrian two-factor theory by means of his independently motivated framework of Mental Files, i.e. psychological guises by means of which we produce and retain singular thoughts. Recanati considers multiple accounts of de se communication before settling for an improved variant of Weber’s Transform-and-Recenter model. Differently from Weber, who frames his model by means of metarepresentations, Recanati fleshes it out in terms of Mental Files. For this reason, he claims to be able to overcome the aforementioned objections from Pagin. One interesting consequence of Recanati’s account of de se communication is that the idea of the thought expressed by an utterance, over and above the thoughts of the speaker and her interlocutor, comes out as otiose. As the author emphasizes, as long as we have our hands on the thought of the speaker, the thought of the hearer, and a suitable relation of coordination between them, there remains no theoretical role to be played by a neutral notion of the thought expressed by the utterance.

Manuel García-Carpintero’s paper, Token-Reflexive Presuppositions and the De Se, agrees with Recanati’s in that both argue that the cognitive state of a subject undergoing a de se thought must be characterized not only by (i) that subject (mentally) asserting a certain content but also by (ii) her thought triggering certain reference-fixing presuppositions. Thus, even if the content of de se attitudes are to be fleshed out as familiar singular propositions, “when I judge I am hungry I [also] presuppose that the person of whom I am predicating being hungry is the thinker of this very judgement” (p. 191). García-Carpintero points out the importance of distinguishing the attitude a subject holds towards an asserted content from the attitude held towards a content that she presupposes in virtue of having made that assertion. The author claims that the attitude towards a presuppositional content cannot be that of belief, since anyone else could believe a certain presuppositional content without being motivated to act in the special way de se attitudes motivate us to act. Because of these reasons, García-Carpintero notes, even a Perrian theory is bound to posit some kind of limited accessibility to de se thoughts. In his own framework, the limited accessibility arises from the fact that, while anyone can have a belief about the owner of a certain thought of mine (e.g. that the owner of that thought is hungry) only I can have a thought about myself by correctly presupposing that the owner of that thought is hungry. One shortcoming of that paper, as the author himself admits, is that it does not provide a deeper development of the attitude of presupposition. More particularly, it would be enlightening to know more about a subject’s understanding of her own presuppositions besides the fact that it should be merely implicit. Should it, for example, be characterized as dispositional knowledge that one would be able to manifest given sufficient time and reflection or is it something even less substantial, such as, perhaps, a matter of knowledge-how? These questions remain open for further inquiry.

Robert Stalnaker’s positions about de se thought have been usually understood as being in opposition to a Perrian two-factor theory. Be that as it may, in his contribution – Modeling a Perspective on the World – we see him getting closer and closer to that tradition. Stalnaker’s most immediate concern in that paper is proving that one does not need to add centers to possible worlds in order to model attitudinal content. According to him, the formal apparatus of centred possible worlds is theoretically useful, not for modeling contents, but for modeling belief states, i.e. the relation between particular thinkers and the set of doxastic alternatives accessible to them. More specifically, belief states are modeled by Stalnaker as pairs consisting of a base world (the world and time in which the subject is in that state) and a set of doxastic alternatives available to that subject (the worlds that might, for all that subject believe, be the actual one). As more than one author in this volume has noticed3, Stalnaker’s resulting theory resembles a typically Perrian theory with two levels of content, one playing the internal role of psychological rationalization (the doxastic alternatives) and the other, playing the external role of providing absolute truth-conditions for the relevant attitude (the base world). One might wonder, as García-Carpintero (p. 188 ff. 21) suggests, whether this means that Stalnaker’s theory is not concerned, as it used to be in earlier works, with providing a holistic individuation of a subject’s total belief state, but with characterizing specific parts of a subject’s belief states. Unfortunately, Stalnaker does not comment on that, so we are left to our own speculations.

No theory of de se thought has an easy way out of the problem of communication. In Varieties of Centering and De Se Communication, Dirk Kindermann claims that no variant of the Lewisian and Perrian accounts of de se thought4 allows us to maintain a simple picture of communication as the replication of thought from speaker to hearer. He takes that and related facts to motivate a neutral position on the issue of de se thought: “everything that can be done by one view can also be done by the others; the views cover exactly the same empirical data and do so in equally simple ways; the choice between the views is a matter of (theoretical) taste and prior commitments” (p. 309). Kindermann’s conclusion implies that, at least some disagreements between philosophers working on de se thought are not fundamental, such as those about which theory provides a simpler account of de se communication, propositional agreement/disagreement or of samesaying. Coming last in a volume about de se communication, Kindermann’s paper has a particularly anti-climactic feel. If, as this author suggests, there are no knock-down arguments waiting to be discovered in favor of this or that theory, philosophers might need to put the issue of de se thought into a new perspective in order to avoid reaching an argumentative dead-end.

There are four remaining papers. Isidora Stojanovic’s Speaking About Oneself investigates the concept of samesaying in relation to de se utterances and argues that it neither tracks the character nor the Kaplanian content of an utterance. In Why My I Is Your You, Emar Maier presents a formal model of de se communication using the apparatus of Discourse Representation Theory. Aidan McGlynn’s Immunity to Error Through Misidentification and the Epistemology of De Se Thought claims that de se thoughts are not epistemically special and that the phenomenon of IETM should be characterized as a matter of degree. Finally, Kathrin Glüer’s Constancy in Variation tackles the issue of perceptual content and defends the thesis that it does not need to be modeled by centered contents.

One may ask, what is the upshot of the discussions and arguments contained in this volume? Here’s a tentative answer: to account for de se intentionality, we need to explain (i) why two people who have identical de se beliefs are (ceteris paribus) disposed to behave identically while (ii) two people who seem to agree on all the objective properties of a scenario may nonetheless go on to act differently. This was, as we have seen, one of the lessons of Ninan’s contribution to that volume. Most authors seem to agree that, in order to explain (i), we need fine-grained representations of one’s beliefs and/or belief states; however, it is crucial to distinguish the attitude one has towards those fine-grained objects from the attitude one has towards one’s beliefs. On the other hand, there is not much consensus nor positive suggestions about how to explain (ii). Again, most authors point out that merely having beliefs with the same objective truth-conditions is not enough for two people (or two temporal stages of the same person) to count as being in agreement with each other. However, it is not clear what else is necessary. One interesting theoretical possibility is suggested by Recanati’s talk of “coordination” among different thoughts, but the idea is arguably underdeveloped as it stands. Another possibility is to see Weber’s Transform-and-Recenter model as providing a constraint on the agreement relations between two thoughts, e.g. two thoughts A and B agree with each other if and only if B would be the output of the Transform-and-Recenter operation on A and vice-versa. However, that route seems to lead one to conclude that communication and belief retention are highly intellectual inferential processes, whereas intuition has it that they are just the opposite.

All in all, the issue of de se thought is by now a firmly established area of philosophical research and this volume points the way future discussions should take. We recommend it to any reader who is interested in the latest discussions in the philosophy of language and their ramifications into the philosophy of mind and epistemology.

References

Castañeda, Hector-Neri ‘He’: A study in the logic of self-consciousness. Ratio 8 (December):130-157, 1966. [ Links ]

Perry, J. The problem of the essential indexical. Noûs 13 (December):3-21, 1979. [ Links ]

Lewis, D. Attitudes de dicto and de se. Philosophical Review 88 (4):513-543, 1979. [ Links ]

Prior, A. N. Thank Goodness That’s over. Philosophy 34 (128):12 – 17, 1959. [ Links ]

Frege, G. The thought: A logical inquiry. Mind 65 (259):289-311, 1956. [ Links ]

Cappelen, H. & Dever, J. The Inessential Indexical: On the Philosophical Insignificance of Perspective and the First Person. Oxford University Press, 2013. [ Links ]

Magidor, O. The Myth of the De Se. Philosophical Perspectives 29 (1):249-283, 2015. [ Links ]

Notas

1(Castañeda, 1966), (Perry, 1979) and (Lewis, 1979) are usually referred as the first authors to address the issue of de se thought. However, the origins of the argument in favor of essentially de se thoughts can be traced to even earlier works, such as (Prior, 1959) and (Frege, 1956).

2For some recent de se eliminativists, see (Cappelen and Dever, 2013) and (Magidor, 2015).

3García-Carpintero, p. 188 ff. 21; Recanati, p. 144 ff. 5; Weber, p. 249 ff. 5.

4lt seems that Kindermann could very well extend his argument to Fregean theories, although he does not go in that direction.

Matheus Valente – Universitat de Barcelona – Department of Logic, History and Philosophy of Science, Carrer de Montalegre 6 Barcelona 08001, Spain, matheusvalenteleite@gmail.com

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Tratados de paz en las pampas. Los ranqueles y su devenir político (1850-1880) | Graciana Pérez Zavala

A pesar de que una de las prioridades de la elite dirigente argentina en la tarea de edificar el Estado Nacional era asegurar las fronteras y construir la imagen de una unidad geopolítica – a partir de la visualización de cierto espacio como “territorio nacional” –, los conflictos internos y externos que conmovían los proyectos de acción política y control estatal durante la segunda mitad del siglo XIX hacían que la administración central no estuviera en condiciones de disputar el territorio a las poblaciones indígenas de Chaco, Pampa y Patagonia. En esos espacios, por entonces denominados eufemísticamente como “fronteras interiores”, el dominio blanco se mantuvo débil e impugnado durante mucho tiempo por las diversas parcialidades indígenas, las cuales debieron recurrir a múltiples estrategias políticas y étnicas para denunciar la pérdida de sus territorios y recursos. De ahí que la violencia interétnica fuera un componente sustancial de los vínculos sociopolíticos entre las sociedades indígenas y el Estado republicano, invisibilizando otros modos posibles de interacción. Sin embargo, algunas recientes investigaciones –en las que el diálogo entre la Antropología y la Historia tuvo un rol significativo– han comenzado a mostrar que en ese mismo período los postergados y/o frustrados proyectos de expansión y ocupación territorial del Estado convivieron con la actividad diplomática llevada a cabo por gobierno con las principales agrupaciones nativas. Y, en tal dirección, el libro Tratados de paz en las pampas. Los ranqueles y su devenir político (1850-1880) de la historiadora argentina Graciana Pérez Zavala, constituye un claro ejemplo de esas novedosas investigaciones centradas en el análisis de la política de los tratados de paz establecidos por el Estado argentino con el amplio espectro de los agrupamientos indígenas de Pampa y Patagonia. Leia Mais

História e ensino de história / Mnemosine Revista / 2017

A construção deste dossiê segue recortes temáticos, temporalidades e espacialidades diversas, porém, tem como fio condutor trabalhos que refletem sobre temas ligados a História cultural das instituições escolares: refletindo sobre questões ligadas a educação infantil, profissional e do campo; representações e práticas do cotidiano escolar; identidades e diferenças; construção de masculinidades; disciplinarização dos corpos e relações de gênero.

No artigo que introduz o dossiê “Refúgio das crianças”: os institutos de amparo as crianças desvalidas e a adestração de corpos na Paraíba (1889-1930), os autores Azemar dos Santos Soares Júnior (UFRN), Edna Maria Nóbrega Araújo (UEPB) e Joedna Reis de Meneses (UEPB), nos conduzem a cidade da Parahyba entre o final do século XIX e início do século XX, cartografando subjetividades construídas pela pedagogia, medicina, polícia para as práticas de disciplinarização dos corpos infantis, durante o período de 1889 a 1930.

Os caminhos / descaminhos da educação profissional no Brasil e no Rio Grande do Norte no século XX são abordados em dois artigos. O primeiro sobre “O ensino profissional no Rio Grande do Norte: uma análise das ações do estado entre os anos de 1908 e 1957” é resultado do mapeamento das ações do governo Potiguar referente ao ensino profissional, no período de 1908- 1857. As autoras Karla Katielle Oliveira da Silva (IFRN) e Olívia Morais de Medeiros Neta (UFRN) refletem especialmente, sobre as criações de instituições, cursos e subvenções, para o ensino profissional no estado.

O segundo artigo, sobre “O ensino profissional no Rio Grande do Norte: uma análise das ações do estado entre os anos de 1908 e 1957” os autores Karla da Silva Queiroz (UERN) e Francisco das Chagas Silva Souza (IFRN), nos convidam a refletir sobre o processo de industrialização e as políticas educativas de formação profissional no Brasil ao longo do século XX.

As autoras, Ana Claudia de Andrade Costa (UFERSA) e Kyara Maria de Almeida Vieira (UFERSA), no artigo “O olhar e o sentir: aula de campo como metodologia de ensino e aprendizagem” nos convidando a pensar acerca da aula de campo como metodologia de ensino e aprendizagem. Apontando, dentre outras questões, para a luta e o protagonismo das mulheres, que lutam todos os dias contra as desigualdades de gênero e o capitalismo para manterem de forma solidária, saudável e sustentável a agricultura familiar, a agroecologia e a economia no oeste potiguar.

Experiências em sala de aula, práticas educativas sobre o corpo, filosofia da diferença, estas são algumas das questões analisadas no artigo “Porta giratória da diferença: “quem de nós não foi ainda amaldiçoado (a) pela víbora?””, a autora Eronides Câmara de Araújo (UFCG), nos convida a refletir sobre a relação do “Eu com o Outro”.

Em “entre vivências e experiências: o PIBID de História do CERES / UFRN e a Escola Estadual Monsenhor Walfredo Gurgel (Caicó- RN – 2012-2014), as autoras Ana Carla de M. Trindade (UFPB) e Jailma Maria de Lima (UFRN), refletem sobre a importância do PIBID de História para a formação docente dos licenciandos, relatando algumas das experiências desenvolvidas no cotidiano escolar.

No artigo “Pedagogias da virilidade: modelos e avessos do homem trabalhador em A Bagaceira (1928)” os autores, Matheus da Cruz e Zica (UFPB) e Carlos André Martins (UFCG) a partir do romance “A Bagaceira” escrito por José Américo de Almeida (1887-1980) e publicado em 1928 e chama-nos atenção para refletir sobre as representações de masculinidades e virilidades, enquanto “instituinte da própria ideia de região”.

No artigo Receitas e conselhos: “O Livro das Noivas“ pedagogizando a família, a autora Regina Coelli Gomes Nascimento (UFCG), propõe uma reflexão acerca da construção de modelos femininos e discursos disciplinadores das relações de gênero para formação das famílias na década de 1930, a partir da leitura de “O Livro das Noivas” de Receitas e Conselhos Domésticos, publicado em 1929.

No texto da professora Suelly Costa (SEC / PB), “O patronato agrícola de bananeiras: uma experiência de atendimento e educação para a infância pobre na Paraíba (1924-1934)”, está posta a discussão sobre a criação e dinâmica interna do Patronato Agrícola de Bananeiras entre os anos de 1924 e 1934, avaliando o desenvolvimento de ações escolares assentadas no ideário civilizador e de modernização do setor agrícola brasileiro à época, com remissão aos rumos da educação profissionalizante desenvolvida nessas instituições se firmaram na tradição da modernidade, nacionalismo e ideologia do progresso, e a ação reflexa dos proprietários rurais em particular no âmbito da sociedade civil

Em “Bem-estar / mal-estar docente: a perspectiva dos professores de história da educação básica”, de Gabriela Alves Monteiro, em pesquisa que incorporou entrevistados em escolas das redes públicas e privada apresenta-se a tentativa de identificar os fatores que mais influenciam a incidência do bem-estar e do mal-estar docente a partir da perspectiva dos professores de História da educação básica, e a partir disso indicar os níveis de bem-estar no trabalho apresentados pelos professores. Para tanto, utilizou-se a Escala de Bem-Estar no Trabalho (EBET) proposta por Paschoal e Tamayo (2008), e a técnica de análise de dados da estatística descritiva e a análise de conteúdo.

No texto de Mariane Vieira da Silva e do professor Antônio de Pádua Carvalho Lopes “A função de direção escolar na legislação educacional piauiense (1910-1947)” é investigado o processo histórico que instituiu a configuração da prática da direção escolar no ensino primário piauiense entre 1910 e 1947, a partir da legislação, sua dimensão legal imposta a partir de 1910, dentro dos grupos escolares implantados no estado, e a dinâmica que levou as variações dessa função mapeadas neste artigo , notadamente os critérios de escolha, remuneração, qualificação e experiência para o exercício deste, particularmente a mudança no critério de experiência docente para a de domínio de conhecimentos em torno da administração escolar, sobretudo, por intervenção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos / INEP.

Assim, envolvendo professores pesquisadores de diferentes instituições (IFRN, UFCG, UFPB, UEPB, UFRN, UFESA, SEC / PB, UFPI) os textos ora apresentados abordam aspectos diversos de práticas educativas, campo de discussão que cada vez mais se afirma e firma nas pesquisas educacionais e historiográficas. Boa Leitura!

Jailma Maria de Lima – Pós- doutora em História pelo PNPD / UFCG e professora do DHC / UFRN

Regina Coelli Gomes Nascimento – Pós-Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (UFPB) Professora do Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal de Campina Grande

Organizadoras


LIMA, Jailma Maria de; NASCIMENTO, Regina Coelli Gomes. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.8, n.2, abr / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo I: De la colonia a la organización nacional (1808-1845) – CROCE (A-EN)

CROCE, Marcela (Dir.). Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo I: De la colonia a la organización nacional (1808-1845). Villa María: Eduvin, 2016. Resenha de: COUTINHO, Eduardo. Alea, Rio de Janeiro, v.19 n.1, jan./apr., 2017.

Embora as relações entre o Brasil e os países hispano-americanos estejam constituindo cada vez mais objeto de estudo, em especial nos planos econômico, social e político, essas relações ainda são muito tímidas no que diz respeito à esfera da cultura, e, mais particularmente, da produção literária. Sente-se falta de textos que abordem mais de perto a literatura brasileira e a dos diversos países hispano-americanos, focalizando, por uma perspectiva comparatista, suas semelhanças e diferenças, de modo a estabelecer-se um verdadeiro diálogo entre essas vozes. Têm surgido, nas últimas décadas, histórias literárias voltadas para a América Latina como um todo, que deixaram clara, pelo próprio uso do termo, sua preocupação em incluir o Brasil no conjunto – citem-se aqui as belíssimas séries Palavra, literatura e cultura (1993), organizada por Ana Pizarro, e Literary Cultures of Latin America: A Comparative History (2004), coordenada por Mario Valdés e Djelal Kadir. E lembre-se que, já na década de 1940 (mais precisamente em 1945), Heríquez Ureña expressou essa preocupação ao publicar a sua Corrientes literarias de América Latina, que incluía o Brasil. No entanto, o que prevalece em todas essas histórias é a noção mais ampla de “continente”, recorte adotado que não só justifica, como requer a referida inclusão.

É verdade que o conceito de “nação”, identificado a “estado-nação”, é hoje um conceito que não mais se sustenta do ponto de vista ontológico, como quiseram os adeptos do Iluminismo, mas que ainda tem uma existência sólida como construção discursiva e que se acha presente na maioria das instâncias da vida contemporânea, desde a configuração política dos países no contexto internacional, até os aspectos mais banais da vida cotidiana, como as competições desportivas e as festas que celebram aspectos que se dizem próprios da cultura de um povo. A nação política como construção calcada em interesses específicos do grupo que a constituiu continua atuando como referência nos discursos em voga nas mais variadas áreas do conhecimento, e o conceito segue desempenhando um papel crucial no panorama internacional. Na História, e mais especificamente na História Cultural e Literária, ele é muitas vezes complementado por outros conceitos, como o de “região cultural”, mas não é em momento algum abandonado. A “nação” permanece no contexto internacional como um conjunto que difere de outros por singularidades que, embora provisórias e plurais, atuam como marcas de diferenças. E são esses traços que, mesmo em sua variedade e provisoriedade, devem ser estudados ao abordar-se a produção de um país.

Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña, que Marcela Croce organizou, e para a qual contribuiu também com a redação de diversos capítulos, sozinha ou em colaboração com outro estudioso da questão, é, nesse sentido, uma contribuição extraordinária e pioneira para o estudo da produção literária dos dois países. O Brasil e a Argentina são duas nações geograficamente vizinhas, que passaram por processos de colonização semelhantes, mas com diferenças também importantes, que obtiveram a independência política mais ou menos numa mesma época, mas continuaram dependentes do ponto de vista cultural e econômico, e que chegaram à modernidade com uma série de aspectos que as aproximam e, ao mesmo tempo, as distanciam. Essas semelhanças e diferenças em seu processo de constituição são o objeto de estudo dessa história literária que, entre seus muitos méritos, busca romper a barreira que infelizmente ainda perdura entre os dois países, e para a qual contribuiu inegavelmente a diferença idiomática, sobretudo quando comparamos com o que ocorreu entre os diversos países da América Hispânica.

Na estruturação do volume, que é, aliás, o primeiro de uma série de seis, a organizadora e seus colaboradores optaram por uma metodologia comparatista perfeitamente adequada ao diálogo que pretendiam estabelecer: a relação de semelhanças e diferenças entre as produções dos dois contextos. Foi feita uma seleção de textos literários que contribuíram para a formação de cada nação, e de pontos de encontros e desencontros na história cultural dos dois países, e construiu-se um contraponto rico e instigante, sempre baseado em fatores históricos concretos, que deu origem a uma discussão bastante frutífera entre vozes nem sempre pensadas pelo que tinham em comum, como é o caso de Hidalgo, Ascasubi e Hernández, de um lado, e de Fagundes Varela, de outro, ou de José Bonifácio de Andrada e Silva e Juan María Gutiérrez, os dois últimos lidos pelo autor do capítulo como intelectuais orgânicos na terminologia de Gramsci. Observe-se, contudo, que em todos esses casos foi levada em conta a relação entre os aspectos culturais e histórico-políticos, evitando-se sempre qualquer tipo de arbitrariedade nas aproximações estabelecidas.

O fato de tratar-se de uma história literária que tem como objeto dois países da América Latina já constitui por si só uma grande inovação, na medida em que se rompe com o modelo tradicional desses estudos, quase sempre voltados para a fórmula Europa/América do Norte x América Latina, em prol de um comparatismo intra-americano, mas o mais relevante, no caso, é o abandono da perspectiva hierarquizadora, presente, por exemplo, nos estudos de fontes e influências, e sua substituição por uma visão crítica apurada em que põe por terra qualquer sentido de superioridade ou inferioridade de um dos termos da comparação, adotando-se, em seu lugar, um tratamento em pé de igualdade. Não se trata, nas palavras da organizadora, de “avaliarem-se inovações nem de se estabelecerem prioridades no tempo, mas de se mostrarem as variantes que alguns modelos externos adquirem em cada país”. É assim que o Indianismo brasileiro de um Gonçalves Dias, que idealiza o índio, é confrontado com o Romantismo argentino, que o aborda como um sujeito sem identidade; ou o mito rural na poesia gauchesca, no qual o tipo regional adquire voz, que é estudado lado a lado à figura do negro no século XIX brasileiro, visto antes como objeto do que como sujeito.

Sem nenhuma pretensão de construir-se uma história literária de caráter totalizador, o recorte adotado pela organizadora toma como ponto de partida um momento que considera fundamental na história dos dois países – a recepção local da Revolução Francesa e suas consequências mais representativas, que têm como corolário a constituição das pátrias argentina e brasileira. A partir daí, são traçados paralelos que nem sempre correspondem a uma cronologia rígida e nem a uma equivalência exata no que concerne ao objeto – autores ou obras, por exemplo, são, por vezes, comparados a movimentos literários -, mas esse aspecto, longe de constituir problema, revela, ao contrário, a flexibilidade do método comparatista e a riqueza que este método permite na abordagem do fenômeno. Daí a forma de ensaio que a história literária apresenta, mas de um ensaio que não deixa jamais de lado a dimensão histórica, instituindo-se antes como um conjunto orgânico, uma produção sistemática cuja articulação fica assegurada, nas palavras da própria organizadora, “pela avaliação e relevância que os fatos adquirem nos textos e a maneira com que logram articular-se em uma construção discursiva”.

Eduardo F. Coutinho – Doutor pela Univ. Califórnia (Berkeley, EUA). É Professor Titular de Literatura Comparada da UFRJ e pesquisador I A do CNPq. Tem sido Professor Visitante em diversas universidades no Brasil e no exterior. É membro fundador e ex-presidente da ABRALIC, Vice-Presidente da AILC (Associação Internacional de Literatura Comparada) e consultor científico de diversas agências de fomento à Educação. Publicou grande número de ensaios em revistas e periódicos especializados do Brasil e do exterior e é autor e organizador de diversos livros, dentre os quais The Synthesis Novel in Latin América: a Study of J. G. Rosa’s Grande sertão: veredas (1991), Em busca da terceira margem: ensaios sobre o Grande sertão: veredas (1993), Literatura Comparada na América Latina: ensaios (2003), publicado também em espanhol (Colômbia, 2003), e Literatura Comparada: reflexões (2013). E-mail: eduardocoutinho17@gmail.com

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Introdução à História Pública – ALMEIDA; ROVAI (RO)

ALMEIDA, Juniete Rabêlo; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à História Pública. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2011. 231p. Resenha de: ULISSES, Ivaneide Barbosa. Argumentos por uma História Pública: perspectivas e possibilidades. Revista Observatório, [Palmas], v.3, n.2, p..622-630, abr./jun., 2017.

Ivaneide Barbosa Ulisses – Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de História – Universidade Estadual do Ceará/Faculdade Dom Aureliano Matos. E-mail: ivaulisses@yahoo.com.br.

Acesso apenas pelo link original

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Mythos – Revista de História Antiga e Medieval. Imperatriz, n1, 2017.

Edição I

Editorial

  • Me. Fabrício Nascimento de Moura, 7

Artigos

  • UNA CARTOGRAFÍA HESIÓDICA. EL TERRITORIO DE LO SOCIOPOLÍTICO
  • Drª María Cecilia Colombani, 10
  • DA GUERRA AO SACRIFÍCIO NA CIVILIDADE MAIA DO PERÍODO CLÁSSICO DE 250-900 A.C
  • Vangela Fernandes De Oliveira, 26
  • PUREZA E CASTIDADE NO MUNDO MEDIEVAL: UMA ANÁLISE DOS VALORES CRISTÃOS DOS TEMPLÁRIOS NA BAIXA IDADE MÉDIA
  • Wekslley Santos Machado, 42
  • A ORIGEM DAS ARTES LIBERAIS NA IDADE MÉDIA
  • Francisco Weslley Fernandes Bezerra, 52
  • AS PRÁTICAS MÁGICAS NA GRÉCIA DO PERÍODO ARCÁICO: RITUAL DE NECROMANCIA NO SÉCULO VIII A.C
  • Lennyse Teixeira Bandeira, 64
  • O RENASCIMENTO DO COMÉRCIO E DAS CIDADES – SÉCULO XI E XIII
  • Raimundo Carvalho Moura Filho, 81
  • DO MYTHOS AO LÓGOS: A TRANSIÇÃO PARA A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NA GRÉCIA CLÁSSICA.
  • Leandro De Almeida Costa, 96
  • FERRAMENTAS DIDÁTICAS UTILIZADAS PELA IGREJA CATÓLICA NA IDADE MÉDIA PARA O CONTROLE SOCIAL: UM ESTUDO BIBLIOGRÁFICO
  • Lucas Veloso da Silva; Vitória Santos Esteves, 111
  • INFERNO: DISCURSO E IMAGINÁRIO SOCIAL NA OBRA A DIVINA COMÉDIA, DE DANTE ALIGHIERI.
  • Saulo Breno Sousa Da Silva, 122
  • ASPECTOS DA SOCIEDADE ANGLO-SAXÃ DO SÉCULO X NA ELEGIA THE HUSBAND’S MESSAGE – UMA ABORDAGEM COMPARATIVA.
  • Amanda Carraro Moraes, 134
  • O MITO DE ÉDIPO NA GRÉCIA ANTIGA: ELEMENTOS REAIS E IMAGINÁRIOS PARA SE PENSAR O HOMEM OCIDENTAL
  • Iara Aparecida Paiva, 154
  • A RELIGIOSIDADE E O IMAGINÁRIO SOCIAL SOBRE A MORTE NO FIM DA IDADE MÉDIA
  • Kerlys Santos de Sousa, 163

Publicado: 14.12.2021

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.18, 2017.

Dossiê

Artigos

Publicado: 2017-03-30

Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 16 n. 1, 2017.

Editorial

Dossiê: Produção de conhecimentos, difusão e ensino na (e da) História da Educação

Resenhas

Publicado: 2017-04-27

Heródoto. Guarulhos, v. 3, n. 1, 2018

Edição completa

Editorial / EDITORS NOTE

Apresentação / Preface

  • Apresentação
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF
  • Preface
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF (English)

Notas e depoimentos/Notes and testimonials

Artigos / Articles

Resenhas / Reviews

Notas de Pesquisa/Research Notes

Publicado: 2018-03-27

História e Cultura. Franca, v.6, n.1, 2017.

Dossiê 100 anos da Revolução Russa

EDITORIAL

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS – DOSSIÊ

ARTIGOS – LIVRES

RESENHAS

Publicado: 2017-03-17

Revista de História da Arte e da Cultura. Campinas, v.6, n.1, 2017.

Dossiê 100 anos da Revolução Russa

EDITORIAL

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS – DOSSIÊ

ARTIGOS – LIVRES

RESENHAS

Publicado: 2017-03-17

História da Enfermagem. Brasília, v.7, n.2, 2016.

POSTED BY: HERE 15 DE MARÇO DE 2017

EDITORIAL

ARTIGOS ORIGINAIS

FAC-SÍMILE

 

História da Enfermagem. Brasília, v.7, n.1, 2016.

POSTED BY: HERE 2 DE MARÇO DE 2017

EDITORIAL

ARTIGOS ORIGINAIS

REFLEXÃO

FAC SÍMILE

 

Arquivos privados de interesse público / Revista do Arquivo / 2017

Todo arquivo é fragmento: de fatos, atividades e vidas. Todo arquivo é substrato de seleções e circunstâncias imponderáveis. Os arquivos privados de personalidades públicas impõem desafios a quem pretende organizá-los. No princípio, o caos. Amontoado de registros distantes dos seus contextos de produção, documentos sem vínculos explícitos, destituídos de sentidos: cartas românticas, um despacho burocrático, processo judicial, livros técnicos e de arte, poemas, rascunhos de discursos, recortes de jornais, referência a uma Maria… uma mecha de cabelos! Não há um político, um advogado, um fazendeiro, um esposo, ou um poeta. Há uma pessoa e muitas profundezas de vidas. Aos profissionais de arquivo cabe a missão de “colar” esses fragmentos documentais para que, por fim, se vislumbre um “rosto” inteligível, não de um homem, mas de um tempo.

Este inspirado texto de abertura da exposição “Júlio Prestes, o último presidente da República Velha: o arquivo privado de um homem público”[1], expressa em poucas palavras alguns dos desafios enfrentados pelos profissionais de arquivo diante da tarefa de dar sentido aos fragmentos documentais dos arquivos privados nas instituições de custódia.

Ao escolher o tema ARQUIVOS PRIVADOS DE INTERESSE PÚBLICO para esta edição da Revista do Arquivo, os editores chamam a atenção para a necessidade de elaboração de políticas de preservação de acervos dessa natureza no Brasil e de definições legais mais claras que regulamentem com maior eficácia as questões situadas nos interstícios das esferas do público e do privado. De acordo com Lopes & Rodrigues, as definições legais no Brasil são “pouco satisfatórias”[2]. Citando Manuel Vásquez, Sônia Troitiño sugere que “a adoção de uma política arquivística não é uma prerrogativa exclusiva do Estado, sendo igualmente passível de ser formulada por entidades de qualquer natureza ou origem”[3].

Afinal, os arquivos privados são componentes importantes para as pesquisas científicas e para a cultura em geral. Ou, nos dizeres de Oliveira, Macêdo & Sobral[4], são “produtos socioculturais que constituem referenciais para a memória coletiva e para a pesquisa histórica”. Exemplos confirmadores dessa assertiva podem ser facilmente acessados em portais eletrônicos como o do Museu de Astronomia ou o da Casa Rui Barbosa, ambos no Rio de Janeiro.

Sabemos que se trata de luta difícil se atentarmos para a dramática situação em que se encontram até mesmo arquivos públicos de todo país. Mas, há motivos para renovarmos a esperança por tempos melhores, afinal, alguns dos artigos aqui publicados situam a década de 1970 como o período em que importantes iniciativas acontecem no Brasil em relação à preservação de arquivos privados. De lá para cá já não são poucas as experiências de sucesso que viraram referências para nós: podemos citar o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB / USP); o Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM / UNESP), a Fundação Casa de Ruy Barbosa, o Museu de Astronomia, a Fundação Fernando Henrique Cardoso e o próprio acervo do APESP, que cresceu nos últimos 20 anos, fato corroborado pelo artigo de Márcia Pazin[5]. Isso só para citarmos as instituições que nesta edição da Revista se fazem representar por meio de seus articulistas.

Além do mais, também nos alentam os impulsos às políticas de arquivos com os visíveis impactos positivos para esta causa a partir da implementação de dispositivos decorrentes da Lei 12.527 / 2011, que tem acionado instâncias do judiciário e de órgãos de controle, além de tribunais de conta.[6] Assim, esperamos que essa boa onda que estimula a criação e organização dos arquivos públicos, em várias esferas, também sensibilizem gestores públicos e privados para a importância dos arquivos privados de interesse público. Para o bem da ciência e da construção da nossa história.

Notas

1. Essa exposição esteve em cartaz no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no período de 05 de abril a 17 de junho de 2016. Edição virtual dessa exposição pode ser acessada no site do APESP: http: / / www.arquivoestado.sp.gov.br / exposicao_julioprestes

2. Ver artigo Os arquivos privados na legislação brasileira: do anteprojeto da Lei de Arquivos às regulamentações nesta edição

3. Ver artigo De interesse público: política de aquisição de acervos como instrumento de preservação de documentos nesta edição

4. Ver artigo Arquivos pessoais e intimidade: da aquisição ao acesso nesta edição

5. Ver artigo Acervos Privados no Arquivo Público do Estado de São Paulo: uma visão sobre os fundos institucionais nesta edição

6. O Departamento de Gestão do Sistema de Arquivos do Estado de São Paulo (DGSAESP) acumula muitas experiências que confirmam essa expectativa. Consultar: http: / / www.arquivoestado.sp.gov.br / site / gestao

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano II, n.4, março, 2017. Acessar publicação original [DR]

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100 anos da Revolução Russa / História e Cultura / 2017

É com grande satisfação que trazemos ao público o dossiê temático 100 anos da Revolução Russa. A efeméride desse importante processo histórico do século XX no ano de 2017 é uma bela oportunidade para a elaboração deste e de tantos outros dossiês, e eventos, que possam contribuir não apenas para trazer à luz um balanço dos estudos que pesquisadores profissionais vêm fazendo nos últimos anos sobre o tema, mas, também para apontar reflexões acerca da vida política contemporânea que, de alguma forma, possam remeter à tradição inaugurada no contexto da Revolução Russa. Na base deste interesse está o fato de que, ainda que o ano de 1917 continue a representar um incontornável marco para os estudos históricos da contemporaneidade, o evento sofreu uma relevante queda na atenção dos pesquisadores em geral. Esse fenômeno pode ser associado tanto à queda do bloco soviético; quanto à expressiva mudança nos horizontes historiográficos na academia, reflexo de uma cultura política também distante daquela do mundo bipolarizado.

Apesar da pouca tradição historiográfica no Brasil em tratar o tema, o que poderia ser explicado pela distância dos pesquisadores em relação aos documentos concernentes à revolução – eles mesmos colocados à disposição do público geral de maneira mais ampla apenas a partir da década de 1990 – e pela longa tradição nacionalista da historiografia em geral, propomos com este dossiê reunir trabalhos que se encontram dispersos, com a intenção de trazer ao leitor brasileiro estudos de autores brasileiros e estrangeiros que possam corresponder a esse interesse em debater a história a partir de uma reflexão de cultura política.

De maneira geral, a proposta foi a de reunir artigos que correspondessem a pesquisas finalizadas, ou em curso, que tivessem como eixo temático os impasses, os processos de constituição e perpetuação da Revolução de 1917 e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assim como suas representações e experiências de oposição política, econômica e bélica realizadas pelo chamado “bloco capitalista”.

De maneira geral, a vitória do partido bolchevique após o golpe de outubro de 1917 foi apresentada como a primeira revolução vitoriosa conduzida pelos trabalhadores, influenciando o movimento operário mundial nas décadas subsequentes. A imagem que ilustra a capa deste número da Revista História e Cultura remete a essa revolução vitoriosa e à criação de uma nova sociedade e de um novo homem que deveriam se desenvolver a partir dela. A forma organizativa do partido bolchevique passou a ser o modelo adotado pelos demais partidos comunistas mundo afora. Da mesma forma, as medidas adotadas para a construção da União Soviética tornou-se o programa político hegemônico do movimento operário mundial, e um dos polos do binômio societário que marcou o mundo após a segunda metade do século XX.

Essa narrativa que sustenta o processo histórico que culminou na Revolução com uma direção única e inconfundível, desprovida de contradições, por exemplo, é questionada pelo artigo do historiador português João Valente Aguiar, Do céu ao inferno da criatividade coletiva: acção autónoma, ambiguidades e a reconstrução das hierarquias na Revolução Russa de 1917-18, que abre o dossiê propondo uma interessante discussão a partir de bibliografia pouco consagrada sobre os momentos iniciais da Revolução. Trata-se de uma forma de narrar a deflagração do processo revolucionário e de sua consagração enquanto força política dominante que problematiza o engessamento do discurso, sempre contraditório, construído a partir da naturalização da construção do estado bolchevique. Aguiar aponta que a Revolução Russa de 1917-18 foi atravessada por um processo díspar e antagônico, tendo numa primeira fase massas de trabalhadores urbanos que desenvolveram formas sociais de organização coletiva inovadoras e criativas, os Comitês de Fábrica; para apenas numa segunda fase esse processo ter sido revertido brutalmente por via da passagem do controle do processo econômico de base (e protagonizado pelas bases de trabalhadores) para as mãos dos bolcheviques, neogestores estatais em formação. Este debate, nos parece, é central para a percepção das contradições e desafios inerentes à Revolução, e que redundaram na vitória e perpetuação da hetero-organização bolchevique, em detrimento da auto-organização dos trabalhadores que estava presente de maneira vital e determinante desde fevereiro de 1917.

O dossiê segue apresentando mais duas narrativas, ou formas de narrar o processo revolucionário. Uma delas, crucial na forma com que a população mundial viria a encarar a Revolução, é a narrativa da imprensa à época. Nesse sentido, Emmanuel dos Santos, no artigo Aqueles perigosos radicais socialistas: os Bolcheviques e a Revolução Russa na cobertura e nos discursos do The New York Times, reconstitui com esmero e de forma bastante instigante a narrativa do jornal norte-americano para a Revolução durante todo o ano de 1917, perfazendo os editoriais e colunas publicadas diariamente com uma importante tradução dessas fontes para a língua portuguesa. O mesmo trabalho é empreendido por Iamara Silva Andrade, que desenvolve pesquisa sobre os Ecos da Revolução Russa na imprensa brasileira.

Ainda sobre os impactos da Revolução Russa no Brasil, temos o artigo A Teoria da Revolução do P.C.B.: Octávio Brandão, a aliança de classes e o feudalismo (1922- 1935), de Danilo Mendes de Oliveira, no qual o autor apresenta a visão de um dos principais teóricos da origem do PCB sobre a revolução social no país e como o partido e a classe operária deveria atuar com outras classes sociais na condução do processo revolucionário brasileiro. O autor ainda apresenta a perspectiva histórica do autor analisado sobre a formação do Brasil à luz da teoria da História.

Na sequência, abrimos um bloco que propõe reunir artigos que orbitam o tema da revolução na cultura a partir da Revolução Russa. Retornamos a Rússia por uma escala de análise mais reduzida, e crucial para percebermos o processo de afirmação do poder estatal bolchevique, com o artigo de Thaiz Senna sobre A questão da representação feminina nos cartazes soviéticos. Senna apresenta o processo revolucionário pela afirmação de um ponto de vista de construção da chamada Nova Mulher, que deveria se identificar com uma perspectiva moderna sobre a mulher, emancipada e de alguma forma igual ao homem. A autora parte do pressuposto que as representações são sempre um ideal, e que as representações da mulher na União Soviética podem ser entendidas como ideais do que deveriam ser as mulheres, e não o que a mulher era na sociedade. Nesse sentido, busca perceber padrões e deslizes que sinalizam escolhas menos conscientes e carregadas de valores e juízos, o que permite a autora afirmar que, embora a representação buscasse criar a Nova Mulher, ao mesmo tempo os cartazes serviam como propaganda à afirmação do estado bolchevique, e eram perpassadas por uma visão ainda tradicional da mulher, além de nunca as colocar em posição política ou social central nas imagens, o que corroborava com a ausência delas em cargos centrais na burocracia estatal.

Ainda no campo cultural, e ao mesmo tempo em que nas artes plásticas, é sabido que a Revolução abriu caminho para a expansão das vanguardas artísticas, num primeiro momento, e posteriormente culminou no chamado realismo socialista. O dossiê propõe, na sequência, um breve e preciso compêndio dessas contribuições no campo do cinema, com dois artigos, Eisenstein, o cineasta da Revolução, de João Barreto Da Fonseca; e O Cinema Soviético e as representações da Revolução de outubro e da Guerra Civil, de Moisés Wagner Franciscon e Dennison de Oliveira. No campo da crítica dos movimentos culturais contemporâneos à revolução, com o artigo Leon Trotsky e a Arte na Revolução Russa, de Alex Alves Fogal. E por fim uma análise da literatura russa após a queda da URSS na década de 1990, com o texto De Chapaev Ao Vazio: Entre a Revolução Russa e seus Efeitos na Literatura Pós-Soviética, de Luciano Augusto Meyer.

Da mesma forma, o campo intelectual e científico nunca mais seria o mesmo após a Revolução Russa, tanto pelo impacto direto das reflexões filosóficas e pela produção de novas técnicas de pesquisa nas mais diversas ciências, quanto pela influência ideológica nos diversos institutos de ensino e pesquisa em todo o mundo. No campo educacional, por exemplo, foram várias as contribuições de pensadores soviéticos, como Lev Vigotsky, Moisey Pistrak, Anton Makarenko, dentre outros. Tendo esses campos de impacto na história contemporânea em mente, e seguindo essa divisão que leva em conta as narrativas sobre a Revolução como formas de debater a cultura política, é que fechamos o dossiê com o artigo de Ricardo Vidal Golovaty, A Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak no centenário da Revolução Russa: contribuição pelo olhar da História e da Sociologia da Educação.

Nesse interessante artigo, feito a partir de uma investigação coletiva no Instituto Federal de Goiás dedicada às questões históricas envolvendo a politécnica e o centenário da revolução, Golovaty propõe uma reflexão crítica sobre a Pedagogia Socialista de Moisey Pistrak, preocupado em lançar questões para os impasses políticos da militância estudantil contemporânea. O autor faz um importante exercício de articulação entre a conjuntura política e econômica na qual Pistrak produziu as obras Fundamentos da Escola do Trabalho (1924) e Ensaios sobre a escola politécnica (1929), com o olhar sociológico, sobre as relações entre educação e estrutura social, escolarização e Revolução Russa. Esse exercício proporciona ao leitor, tal como João Valente Aguiar propõe no artigo que abre o dossiê, uma narrativa sobre a Revolução que se distancia da tradicional, ao mesmo tempo em que retoma a proposta de pedagogia socialista como cultura socialista, e não como uma mera prática naturalizada pelos agentes que renegue a difícil realidade da comunidade escolar nos dias atuais.

A todos (as), uma boa leitura!

Luiz Felipe Cezar Mundim – Professor temporário do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e pela Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. E-mail: luizmundim@gmail.com

Tales dos Santos Pinto – Doutorando e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista CAPES. E-mail: talessantospinto@gmail.com


MUNDIM, Luiz Felipe Cezar; PINTO, Tales dos Santos. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 1, mar., 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

História & Luta de Classes. [?], v.13, n.23, mar. 2017.

100 anos da revolução russa

Apresentação

Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 17, n.4, 2016.

Artigos

Publicado: 2017-02-17

Revista do Historiador. Porto Alegre, n.9, 2017.

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Editorial

Artigos

Publicado: 2017-02-17

Rumos da História. Vitória, v.1, n.4, fev./jul. 2017.

Expediente

Artigos

 

Base Nacional Curricular Comum – Caminhos percorridos, desafios a enfrentar [Excertos] | Margarida Oliveira e Itamar Freitas

Claudia Ricci Imagem Pensando a Educacao
Claudia Ricci | Imagem: Pensando a Educação
[…] Em julho de 2015, no Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em Florianópolis, a comunidade de historiadores foi impactada pela notícia da confecção de duas bases nacionais curriculares, na sua parte comum. Uma era efetivada pelo MEC e, outra, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. Em ambas, atuavam filiados e militantes da Associação Nacional de História ANPUH-BR. A iniciativa da SAE, no que diz respeito à área de história, era coordenada pela professora Circe Bittencourt (PUC-SP). A BNCC do MEC estava sob a liderança da professora Claudia Ricci (UFMG). Havia, agora, dois partidos da história para o mesmo trabalho, envolvendo interesses de Minas Gerais e de São Paulo.

A inusitada notícia da participação de historiadores da ANPUH na construção de duas prescrições nacionais dentro do mesmo governo foi debatida em mesa redonda, intitulada “Ensino de História e currículos escolares: perspectivas e desafios contemporâneos”[1] e causou ainda mais perplexidade na plateia, porque a direção da ANPUH até então não havia se pronunciado sobre o tema. Nem mesmo a grande maioria dos membros do Grupo de Trabalho “Ensino de História” da ANPUH nacional, tinha clareza sobre a presença de historiadores nas iniciativas da SAE e do MEC.

Da primeira proposta de BNCC pouco se sabe, além do fato de ter gerado um documento, hoje, em mãos da própria Circe Bittencourt e do seu parceiro na empreitada, o professor Paulo Melo (UFPR), o partido que sucumbiu junto à extinção da SAE. Da proposta do MEC – do partido que ganhou “mas não levou” –, existem centenas de comentários formais, gerados em diversos fóruns de diferentes áreas da história e fora dela. É provável que, entre os mais densos inventários, estão o sitio do Laboratório do Ensino de História do Recôncavo da Bahia (https://www3.ufrb.edu.br/lehrb) e os portais da ANPUH (http://site.anpuh.org/) e da BNCC (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/) – que registrou passo a passo as operações do MEC, desde agosto de 2015[2]. Neste mês, em Belo Horizonte, foram discutidos, entre outros temas, os modelos produzidos por centenas de propostas curriculares municipais e estaduais, sob a coordenação dos professores (Minas Gerais, 2015).

Minas, portanto, estava no comando da organização da BNCC não apenas para o componente história. Detinha os postos de Secretário de Educação Básica do MEC, professor Manuel Palacios e da Coordenadora dos trabalhos de redação da BNCC – professora Hilda Micarello. A equipe da área de história, como as demais, foi constituída por indicações do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Sob o critério de reunir professores de história e também gestores de secretarias estaduais e municipais da educação, foram convidados os docentes Tatiana Garíglio Clark Xavier (MG/Consed), Maria da Guia de Oliveira Medeiros (RN/Undime), Leila Soares de Souza Perussolo (RR/Undime), Marinelma Costa Meireles (MA/Consed), Rilma Suely de Souza Melo (PB/Undime), Reginaldo Gomes da Silva (AP/Consed) Antônio Daniel Marinho Ribeiro (AL/Consed). Quanto aos professores formadores, a própria Claudia Ricci (2015, p.289-90) detalha os procedimentos de escolha:

[…] Na equipe de História, já estavam os especialistas, professores de universidade, professor Giovani Jose da Silva da Universidade Federal do Amapá e o professor Leandro Mendes Rocha da Universidade Federal de Goiás. Como assessora, tive a prerrogativa de compor a equipe convidando professores universitários, pesquisadores da área. Fiz vários convites – alguns aceitos, outros não. Convidei os professores Marcos Silva, da USP, pesquisador de Ensino de História e assessor da Proposta Curricular da CENP/SP na década de oitenta, e a professora Sandra Oliveira, da Universidade Estadual de Londrina, pesquisadora do campo Ensino de História, especialmente dos anos iniciais do ensino fundamental […]. A professora Sandra, depois, decidiu não permanecer. Na época, eu estava conversando muito com o professor Paulo Melo da Universidade Estadual de Ponta Grossa, porque a gente tinha acabado de organizar o dossiê sobre formação de professores de História e pedi ajuda na indicação de pesquisadores. Foi quando ele me disse que estava, junto com a professora Circe Bittencourt (USP), escrevendo a Base Curricular para o secretário Mangabeira Unger da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE).

Entre os finais dos meses de julho e setembro de 2015, essa equipe trabalhou guiada por alguns objetivos defendidos pela maioria e, como ressaltamos na introdução, em alguma medida, contraditórios. O grupo pensava a BNCC como prescrição da LDB (não apenas do PNE) que poderia estabelecer direitos básicos de aprendizagem para todos, em uma sociedade há muito excludente. Ela viria somar-se às recentes iniciativas de acesso ao livro, merenda, fardamento, transporte.

A equipe também defendia a prescrição de conteúdos reconhecíveis pelo aluno como úteis em sua vida prática, fundamentados na produção científica, mas a ela não redutível, posto que a comunidade escolar também produzia saberes. A parte comum da Base deveria ser suficientemente ampla para contemplar a diversidade nacional e, simultaneamente, garantir a equidade de direitos. Essa mesma parte deveria pôr um freio à expansão ilimitada de conteúdo substantivo e problematizar a consolidada mística colonizadora no currículo – daremos exemplos adiante. Esses princípios identificavam os membros de um partido. Mas, no interior da equipe, havia várias divisões, em grande parte marcadas por preferências em termos de conteúdo substantivo – maior ou menor inserção da experiência da Oceania, das questões indígenas na América Latina, do tempo presente etc. – e, em menor grau, a respeito de ideias de progressão, que implicavam noções divergentes sobre as finalidades dos ensinos fundamental e médio.

A composição plural, em termos de experiências, a natureza contraditória dos objetivos para o ensino de história e o exercício de construção coletiva – exposição de ideias, debate e voto – não oferecia nenhuma garantia de que o processo seria harmonioso. E não foi. A primeira versão estava impregnada de incongruências, como ocorre, em geral, em processos desse tipo. Além disso, a ausência de um projeto-piloto – uma tarefa executável pela comissão central –, estabelecendo um conjunto mínimo de categorias demonstrou-se um obstáculo desnecessário. É possível que a comissão central tenha pensado – como a equipe de história pensou – em valorizar o processo de construção coletiva e deixar surgir, do debate, as definições sobre os sentidos de “base curricular” (prescritiva ou sugestiva), a sintaxe e a quantidade dos objetos de aprendizagem, a ideia de progressão da aprendizagem e as conexões entre as áreas do saber, por exemplo.

Se foi essa a intenção, tal iniciativa revelou-se desastrosa, pois esse tipo de decisão é praticamente impossível de ser concebida em reuniões com mais de 100 especialistas. A própria equipe de história achou por bem elencar essas e outras categorias em um projeto estruturante de BNCC para depois atuar na sua especialidade. Assim mesmo, o documento foi a público com muitas imperfeições, algumas delas, inclusive, de autoria não reconhecida pelo grupo – a integração da “economia por ciclos”, por exemplo. Contudo, importava o processo e a consequente resposta dos professores, alunos e pais de alunos, principalmente, que forneceriam à equipe os limites de eventuais mudanças promovidas pela segunda versão da BNCC, fundamentadas em pesquisas recentes sobre ensino de história.

Surpreendentemente, a primeira versão de história foi censurada de imediato, não pelos principais futuros usuários, mas pelo Ministro da Educação, professor Renato Janine Ribeiro (USP). Ele estranhou “a ausência de conteúdos canônicos”. Dialogando com a história que ele e todos nós aprendemos na escola, faltavam as nossas chamadas origens greco-romanas e a conformação do nosso modo de pensar com a sociedade medieval e o cristianismo (Ribeiro, 2015). A proposta estaria muito “vermelha” naquele momento em que o Congresso ameaçava a Presidente Dilma Roussef com a possibilidade de abertura do pedido de impeachment. Por isso, a história foi a única ausente na primeira versão da BNCC (15/09/2015), gerando uma série de boatos, como: “vão extinguir a história dos currículos no Brasil”.

O ministro estava equivocado. Esses temas estavam presentes na proposta, somente não obedeciam à sequência linear que a escola brasileira popularizou. A Alemanha, Itália, Espanha, França e Inglaterra, por exemplo, tiveram, e ainda têm, motivos de sobra para ampliar retroativamente o seu estoque de passado e buscar seus mitos fundadores na língua, direito, religião, por exemplo, dos povos gregos, romanos, celtas, germanos, francos entre outros. Essa é uma posição fundamentada em pesquisa acadêmica. O Brasil não. A sequência mantida desde o início do século XIX, nos cursos secundários, e consolidada com a nacionalização do ensino primário deveria ser repensada naquele momento. Em síntese, a equipe desautorizava a abordagem da história do Brasil como resultado – exclusivo – dessa sequência porque reconhecia a diversidade brasileira como resultante da inter-relação de culturas e também como dominação de umas sobre as outras. Seus agentes eram sujeitos criadores de passado, daí a opção de partir sempre da sociedade brasileira, como ela se vê e se relaciona com outras sociedades, ampliando a problematização dessas relações na medida em que os alunos avançassem para o ensino fundamental II e ensino médio. Essa estratégia poderia auxiliar na formação de pessoas que conhecessem os interesses e as contradições que constituem esses sistemas de vida chamados de “sociedade brasileira” e “mundo globalizado”.

As explicações foram fornecidas ao ministro que, ainda assim, solicitou mudanças na proposta. A equipe de História, por sua vez, entendeu que deveria respeitar o processo democrático, os vários estudos que resultaram da versão, as discussões e as negociações efetivados e nada modificar na primeira versão do documento. Ao sair do ministério, o professor Janine Ribeiro tornou públicas as suas posições e também os conhecimentos sobre o que deveria ser uma proposta curricular para o ensino de história:

[…] O que eu pensava para a base comum em História era que ela tratasse da história do Brasil e do mundo sendo que esta não se deveria limitar ao Ocidente e seus precursores, mas incluir, desde a Antiguidade – a Ásia, bem como a África e a América pré-colombiana. Primeiro de tudo, uma história não eurocêntrica. […] Não havia, na proposta, uma história do mundo. Quando muito, no ensino médio, uma visão brasilcêntrico das relações com outros continentes.

Mesmo assim, disse, acabei aceitando que fosse publicada. Mas determinei que alguns dos melhores historiadores brasileiros fossem chamados para discuti-la. Um dos convidados só para se ter uma ideia da grandeza dos seus nomes, é Boris Fausto. E as discussões que estão surgindo, algumas delas com críticas duras, deverão ser levadas em devida conta. […] (Ribeiro, 2015).

Em 23/10/2015, a primeira versão da BNCC de História foi publicada. Aproximadamente trinta mil sugestões chegaram ao MEC. Todas foram lidas, analisadas e justificadas a sua inserção ou o seu descarte – em parte ou no todo. Além da audiência pública pela internet, reuniões com entidades, sindicatos, instituições acadêmicas foram promovidas com a participação dos membros da equipe em vários estados. O MEC também solicitou pareceres a professores universitários, pesquisadores do ensino de História e em outras áreas, inclusive, História Antiga e Medieval. Ao mesmo tempo, dezenas de cartas, manifestos, moções foram redigidas por associações, fóruns e também por iniciativa individual de historiadores, sociólogos, jornalistas, entre outros. Uma nota resumida – mas que dá ideia dos diferentes pontos de vista sobre o documento – foi publicada pelo Portal G1, destacando as divergências entre os historiadores e a posição da ANPUH-SP:

[…] De acordo com a professora Circe Maria Fernandes Bittencourt, presidente da Associação Nacional de História – Seção São Paulo (ANPUH-SP), grupos regionais da entidade tem se reunido para analisar a BNCC e devem fechar propostas em um segundo Circe, o grupo está focado em contribuir com a sua reestruturação e não propriamente com seus eixos. “A gente entende que ela está mal estruturada. Não estamos combatendo os princípios”, afirma Circe Bittencourt.

Apesar das polêmicas, o momento é de otimismo. “É um momento oportuno, queremos que o ensino de história tenha uma mudança”, afirma Circe.

Segundo ela, o diálogo com o MEC tem sido produtivo e recentemente a pasta aceitou a inclusão de representantes da ANPUH na equipe responsável por redigir a proposta de história para a BNCC. “Esperamos que haja uma aceitação”, afirma Circe. (G1, 2016).

Diante da mobilização em torno da BNCC, a ANPUH-BR anunciou em nota que a “entidade não foi convidada formalmente pelo MEC para integrar os debates em andamento, nem instada a se manifestar sobre o texto proposto para o ensino de História”. No documento, solicitou que o secretário de Educação Básica, Manoel Palacios, ampliasse “o prazo” para a discussão da primeira versão e o grupo de “especialistas visando incluir as diferentes subáreas da História.” (ANPUH, 04/12/2015).

A ampliação do prazo foi negada pelo secretário em 17/02/2016, mas a ampliação do número de especialistas, indicados pela ANPUH foi aceita sem reservas. Ocorre que os professores indicados não quiseram se incorporar à equipe. Alegaram prazo exíguo – uma vez que deveriam iniciar naquele mesmo dia –, desconhecimento de teoria pedagógica, discordâncias conceituais e, o mais irônico, ilegitimidade como representantes da ANPUH.

Em dois dias de reuniões com a equipe da BNCC, os indicados pela AHPUH tomaram ciência das intenções, obstáculos e procedimentos futuros –as respostas às milhares de sugestões colhidas no portal, inclusive – e as ideias gerais do que seria a segunda versão. Os professores também redigiram (com a equipe da BNCC) uma “carta de intensões” na qual o MEC se comprometia com metas inerentemente contraditórias e substantivamente lacunares: 1) não reforçar “as dicotomias tradicionais entre pesquisadores de Ensino de História e de outras áreas da historiografia”; 2) ressaltar “a temporalidade como eixo central do conhecimento histórico, não se resumindo à cronologia, periodização e linearidade”; 3) manter “a ênfase em História do Brasil”, mas evitar “que outras experiências e temporalidades [fossem] estudadas somente pela perspectiva nacional brasileira”; 4) afirmar “a necessidade dos estudos da História Europeia, inclusive quando [fossem] necessárias as conexões para o entendimento da História do Brasil, assegurando a manutenção da crítica ao eurocentrismo”; 5) contemplar “os conteúdos de História Antiga e Medieval”; 6) contemplar “as conexões e ou confrontos inter/entre os espaços europeus e americanos”; 7) contemplar os “elementos formadores da contemporaneidade”; e 8) expressar “uma revisão do tema da cidadania com base nas críticas e sugestões recebidas”.

Infelizmente, nesse documento estava sintetizada a participação direta da maior e mais representativa entidade de profissionais de História do Brasil. Listadas as ações de cada membro da equipe que assinou a primeira versão da base comum de história, bem como as ações junto à entidade, é fácil constatar a intimidade com o tema da prescrição curricular e o nível de engajamento político junto à referida instituição. Contudo, esses elementos não foram suficientes para que a diretoria da ANPUH-BR ou o GT de Ensino de História considerassem que assim estavam representados – indicando, por sua vez, representantes de áreas específicas (Antiga, América, Brasil) que representaram a instituição recusando a legitimidade reivindicada pela ANPUH-BR e considerada pelo MEC. Ambos os partidos sentiram-se vitoriosos: o da SEB, que concedeu espaço à ANPUH-BR, e a ANPUH-BR que emparedou o MEC, mas não se envolveu na construção da nova versão da BNCC.

O prazo final estabelecido para a divulgação da segunda versão da parte comum da Base era junho de 2016. A equipe de história respondeu às tarefas solicitadas pela comissão central. Os ataques ao texto escrito como primeira proposta continuaram, mas as respostas eram fornecidas pela professora Claudia Ricci. Essa foi a maneira que a equipe encontrou para não polarizar a discussão e receber o maior número de contribuições possíveis.

As críticas radicais e de conteúdo conservador, embora fossem grosseiras, não afligiam a equipe que reconhecia os posicionamentos autoritários. O que os incomodava eram os ataques do campo das forças ditas progressistas e de acadêmicos que, a despeito de tratarem de modo preconceituoso os sujeitos atuantes nas escolas da educação básica, arregimentaram todas as forças da forma que acharam conveniente para uma defesa corporativista – dos domínios de pesquisa histórica, não necessariamente ocupadas com a lógica e responsável função social da história na universidade pública que é formar os professores que trabalharão no ensino de história da escolarização básica.

Um possível fim desse capítulo da BNCC foi a demissão de parte da equipe. Pressionada, principalmente, pela ANPUH-BR e demais instituições satélites, por ela não dominadas, a Secretaria da Educação Básica encomendou outro projeto de prescrição para a história a duas renomadas professoras da USP, protegidas pelo sigilo do Secretário de Educação Básica e a Coordenadora dos trabalhos da BNCC. A equipe não aceitou referendar a proposta. A SEB, então, solicitou a dois professores de Minas Gerais a confecção de outro projeto de BNCC para história e o apresentou à equipe de história, para que a mesma a avaliasse. A equipe concluiu que a proposta retroagia às prescrições do ensino de história do início dos anos 1990 e estruturava-se a partir de livros didáticos, invertendo a lógica do processo.

Como última tentativa de produzir uma proposta de base (em segunda versão) alinhada aos resultados mais consensuais da pesquisa sobre ensino de história (inclusão, ampliação de direitos, balizada pelas possibilidades de ruptura fornecidas pelas contribuições ao portal), a coordenadora da equipe reuniu pesquisadores do ensino de história e representante da SEB para relatar o estado da segunda versão. Na mesma reunião, informou sobre as posições da ANPUH-BR e da SEB: não demitir a equipe de história e convencê-la a assinar outros dois projetos. Horas depois da reunião, os pesquisadores convidados remeteram o seguinte comunicado à SEB sem qualquer referência aos jogos internos que demonstravam a intervenção da direção nacional da ANPUH e os mais altos escalões da SEB.

Prezados,

Em função de nossa participação na reunião do dia 12 de abril último, em Brasília, para apresentação da segunda versão da BNCC, componente curricular História, e atendendo à necessidade de nosso parecer sobre o documento então apresentado, consideramos, em conjunto, que:

 – o documento, mesmo que entendido como uma versão preliminar, continua com uma série de problemas, a maior parte deles já exposta anteriormente em nossos pareceres.

 – a manutenção das linhas centrais do documento anterior não foram considerados na produção do novo documento.

 – essa segunda versão apresentada, ou mesmo sua versão preliminar – incluindo as mudanças vistas como inaceitáveis para o ensino médio –foi considerada ainda não adequada à proposta curricular para uma base nacional curricular de História.

Atenciosamente,

Helenice Rocha  profa. Adjunta da UERJ/UFP

Marcelo Magalhães -Prof. Associado da UNIRIO

Martha Abreu – profa. Titular da UFF.

Em 03/05/2016, a segunda versão da BNCC-História foi publicada sem as assinaturas de parte da equipe – incluindo a sua coordenadora. No anúncio oficial, coberto pela TVNBR (2016), entre as três características destacadas do documento pelo novo ministro da Educação, Aloísio Mercadante, uma tratava de história, denunciando, outra vez, a iniciativa de harmonizar Estado e corporações de historiadores: “valorizar a história clássica, considerando as contribuições dos povos indígenas e africanos”. […]

[1] Sob a coordenação do professor Mauro Coelho (UFPA), palestraram: Ana Maria Monteiro (UFRJ), Circe Bitencourt (USP/PUC/SP) e Giovani José da Silva (UNIFAP).

[2] Ressaltamos que, desde janeiro de 2015, uma equipe já trabalhava na estrutura da BNCC do MEC cujo representante da área de história era o professor Carlos Augusto Lima Ferreira (UEFS) (Santos e Costa, 2006, p.288-9).

Referências

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de ; FREITAS, Itamar. Base Nacional Curricular Comum: caminhos percorridos, desafios a enfrentar. In: CAVALCANTI, E.; ARAÚJO, R. I. S.; CABRAL, G. G.; OLIVEIRA, M. M. D.. (Org.). História: demandas e desafios do tempo presente. Produção acadêmica, ensino de História e formação docente. 1ed.São Luís: Editora da UFPE; Editora da UFMA, 2018, v. 1, p. 49-63.

Revista de História. São Paulo, n.176, 2017.

ARTIGOS

RESENHAS

PUBLICADO: 2017-01-27

EmRede – Revista de Educação a Distância. Porto Alegre, v. 3, n. 2, 2016.

Humanismo, Tecnologias e Políticas em EaD

Editorial

Artigos convidados

Artigos

Publicado: 2017-01-26

Língu@ Nostr@. Vitória da Conquista, v.4, n.2, 2016.

Apresentação

Resenhas

Entrevista

Publicado: 2017-01-21

Becoming Black Political Subjects (T. S. Paschel)

01PASCHEL, Tianna S. Becoming Black Political Subjects: Movements an Ethno-Racial Rights in Colombia and Brazil. New Jersey: Princeton University Press, 2016. 311p. Resenha de GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. História v.36  Franca  2017.

O estudo das relações raciais e do movimento social negro tem se alargado nas últimas duas décadas1. Em grande medida, pelo sucesso dos ativistas em pressionar governos, transformando demandas em legislações. No Brasil, é o caso da aprovação da Lei 10.639 de 2003, que determina a introdução da História e Cultura da África e dos afro-brasileiros nos currículos escolares. Aquela foi a segunda lei decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uma antiga reivindicação do movimento negro – o Movimento Negro Unificado, por exemplo, já trazia a questão no Ato Público de 7 de julho de 1978.

Becoming Black Political Subjects insere-se na compreensão do movimento negro contemporâneo pelo viés transnacional. Ou seja, rompe com a concepção que ativistas negros, por influência do imperialismo estadunidense, agem em seus países locais2, observando como válida a noção de que existe – dado o caráter globalizado do contexto atual – uma circularidade de informações sobre diferentes realidades e lutas contra o racismo e suas consequências, sendo essas (re)interpretadas de acordo com as realidades e referências locais, bem como colocadas em termos de atuação política por esses ativistas. Para tanto, a autora toma como exemplo o processo de organização da militância na Colômbia e no Brasil e o desenvolvimento da atuação dessas entidades negras, fenômenos que ocorreram ao longo das décadas de 1970 a 2010. O uso da abordagem comparativa é um elemento que reforça a impossibilidade de se pensar movimentos sociais como cópias de modelos, uma vez que demonstra as especificidades desses movimentos em dois contextos distintos – Brasil e Colômbia -, ao mesmo tempo em que aponta as similaridades possíveis.

Ademais, o objetivo da autora é demonstrar o processo no qual a negritude (blackness) se torna legítima como categoria de contestação frente ao Estado, tornando esses militantes poderosos atores políticos. Destaca-se para a escolha dos países a serem analisados o fato de ambos terem, nos anos 1990, legitimado as demandas do movimento negro em suas legislações, muito embora a constituição e o imaginário de raça para ambos se configurem de forma distinta. No Brasil, um projeto bem-implementado de “brasilidade” resultou na negação do racismo e a concepção de pertencimento dos diferentes a uma raça específica; na Colômbia, houve a negação da existência do próprio negro, tendo a sociedade colombiana edificado sua hereditariedade racial da mistura entre indígenas e europeus. Somado a isso, a pesquisadora identifica o caráter mais regional e rural para o movimento colombiano, enquanto no Brasil ele teria se formado, em grande medida, nos centros urbanos e disseminado em diferentes regiões do país.

O livro é composto por oito capítulos. A construção do texto é elaborada de forma cronológica, permitindo que o leitor tenha a oportunidade de compreender como se constituiu o movimento negro e as diferentes fases que o levaram a se tornar agente político importante dentro do Estado. A autora demonstra domínio da bibliografia sobre raça e movimento social, tendo entre suas referências pesquisadores dos dois países, além dos brasilianistas que se debruçaram sobre o tema. Além disso, ressalta-se o esforço de Tianna Paschel que, ao longo de dez anos de pesquisa, realizou inúmeras viagens para Brasil e Colômbia e entrevistou ativistas de diversas entidades e políticos ligados a eles, como Benedita da Silva (atualmente deputada federal pelo PT-RJ, e ex-vereadora, governadora, deputada e senadora, cuja assessoria do primeiro mandato contava com a experiência da militante e acadêmica Lélia Gonzalez).

O primeiro capítulo, “Political field alignments”, toma o corpo de uma introdução à obra. Dessa forma, a autora busca explicar o objetivo geral de seu esforço, compreender como a negritude tornou-se legítima como categoria de contestação frente ao Estado, por conseguinte ator político. Ao mesmo tempo, busca definir elementos gerais que teriam tangenciado esse fenômeno. A autora é enfática na recusa da visão imperialista sobre a ação da militância, mas indica a importância do contexto internacional de garantia de direitos e a estratégia de ativistas colombianos em utilizar-se das discussões acadêmicas internacionais e legislações existentes em âmbito internacional, como legitimadoras de suas próprias demandas.

Em “Making mestizages”, a autora, que escreve para o público estadunidense, explica como o conceito de raça se construiu nos dois países alvo de sua análise. No caso brasileiro, a pesquisadora aponta os caminhos que levaram à interpretação da degeneração da sociedade (Oliveira Vianna e Nina Rodrigues) e à construção de uma teoria na qual as relações raciais no país, desde a colonização, se deram de maneira mais harmoniosa, formando o que conhecemos por “democracia racial”. Cientificamente identificada como criação de Gilberto Freyre, mas amplamente divulgada pelo governo varguista, para o qual interessava retirar o estigma da mão de obra. O caso da Colômbia é menos familiar para pesquisadores das relações raciais no Brasil, mas a autora auxilia com propriedade na sua compreensão. Assim como em outros países, houve movimentos eugênicos por parte dos intelectuais e leis de restrição de imigração. Contudo, nunca houve um “pai”, termo por ela usado, da teoria do “mestiço”, como no caso brasileiro. Mesmo assim, no discurso oficial e no imaginário coletivo, definiu-se a exclusão dos negros na constituição da concepção de nação, e ser colombiano passou a significar ter sangue europeu e indígena. Em tradução livre, a autora define: “Se o Brasil fosse um caldeirão de culturas, a Colômbia seria uma colcha de retalhos” (PASCHEL, 2016, p. 46).

O terceiro capítulo explora a formação do movimento negro em um “campo sem cor” (colorblind field). Paschel busca reconstruir o meio pelo qual ativistas passam a se organizar em um campo no qual suas demandas são vistas com descrédito; afinal, não haveria um problema racial nos dois países. Ao mesmo tempo, a socióloga identifica que em ambos os países o envolvimento dos militantes se inicia por outros meios, que não envolvem a questão racial, ou seja, esses indivíduos começam a mobilizar-se em entidades religiosas, políticas, cujas demandas muitas vezes envolvem a questão de classe. Somente com a experiência adquirida, esses homens e mulheres começam a vislumbrar a possibilidade de organizações eminentemente raciais, cujas bandeiras giram em torno da luta contra o preterimento racial negro. As principais entidades negras do Brasil (MNU, UNEGRO, CONEM, Geledés, Ceert) e colombianas (Cordobismo, Hola Negro, Cimarrón) são abordadas na sua constituição e demandas apresentadas. O capítulo ainda ressalta que as referências desses ativistas circunscreviam as lutas africanas pela independência, o Movimento por Direitos Civis dos Estados Unidos, o Partido dos Panteras Negras, bem como leituras que se realizavam em diferentes continentes, como Franz Fanon e Aimé Césaire.

O capítulo seguinte, “The multicultural alignment”, indica o papel que a discussão sobre o multiculturalismo, de uma forma global, teve na aprovação de demandas locais nos dois países. A observação recai sobre a organização de ativistas na construção das Constituições de seus países (1988, Brasil e 1991, Colômbia), indicando como salto qualitativo o reconhecimento do direito de posse e exploração dos recursos das terras quilombolas. Para a pesquisadora, sua análise indica que os congressistas não tinham dimensão do território a ser “cedido” e, em grande parte, isso explica a dificuldade de efetivar essa regularização, assunto que será tratado novamente em capítulos subsequentes. No caso colombiano, somam-se as dificuldades enfrentadas pelo Estado com a guerrilha e os cartéis do narcotráfico.

No quinto capítulo, denominado “The racial equality alignment”, ressalta-se que a situação e as demandas que envolviam os negros urbanos ainda estavam por ser melhor compreendidas e absorvidas pela legislação. Para a autora e boa parte dos estudos que envolvem ganhos do movimento negro, a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, ocorrida em 2001, representou uma melhora substancial na forma que ativistas, entidades e demandas passaram a ser interpretadas. Dito de outra maneira, a atuação e ratificação das reivindicações militantes na Conferência Internacional trouxeram maior credibilidade ao discurso do movimento negro e, ao mesmo tempo, permitiram-lhe maior representatividade junto aos Estados.

Em “Navigating the ethno-racial State”, Tianna Paschel argumenta que à medida que a pesquisa se aproxima temporalmente dos anos 2010, o movimento negro, em ambos os casos, se aproxima do Estado. Inclusive, fisicamente com suas instituições ou ocupando cargos em Ministérios, caso da ativista e socióloga Luiza Barros (1953-2016), na época da entrevista Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Ao longo do capítulo, delineiam-se as disputas ideológicas das entidades negras, tal como a aceitação ou não do financiamento de agências financeiras para manutenção do movimento negro e suas atividades. Ao mesmo tempo, o período presencia a formação de organizações não governamentais cuja proximidade com essas entidades internacionais permitiu a manutenção dessas entidades (desde o aluguel até as atividades desenvolvidas para promoção de suas demandas) e a profissionalização dos ativistas (parte deles, inclusive, passa a participar do meio acadêmico por intermédio da formação facilitada). O caso colombiano seria um pouco mais conflituoso na medida em que o Estado ainda tinha que lidar com a violência interna, bem como uma não definição clara na eleição de militantes negros na participação de Conselhos de Comunidade, que lhes garantia assentos no Congresso. Mas a despeito dos conflitos e dificuldades, principalmente nos anos 2000 ocorreu larga aproximação dos ativistas com o corpo burocrático do Estado.

O capítulo sete, “Unmaking black political subjects”, objetiva apreender a extensão das leis destinadas à comunidade negra e as possibilidades de mudança nessas sociedades a partir da implementação daquelas leis. Para a autora, no conjunto de demandas e promessas, ainda que com limitações, duas áreas parecem realmente institucionalizadas: a construção de uma educação étnica e a demarcação do território de quilombos. As limitações, em grande medida, correspondem às dificuldades que essas áreas possuem de enfrentar os interesses econômicos de grupos sociais mais bem privilegiados, seja no acesso à universidade pública no Brasil ou no direito de extração de minérios, na Colômbia. Conjuntamente, a autora indica a forte reação da classe média, que se posicionou contra os ganhos das militâncias negras. Para exemplificar, ela cita a carta “Todos temos direitos iguais na República Democrática”, de 29 de junho de 2006, direcionada ao Congresso, e a reação dentro do espaço acadêmico, no qual alguns pesquisadores emprestam seu prestígio e empenho argumentando contra as políticas afirmativas.

O último capítulo, “Rethinking race, rethinking movements”, oferece uma reflexão a título de considerações finais. Ao abordar os famosos rolezinhos – encontros de jovens da periferia, marcados pelas redes sociais, geralmente em shoppings e contra os quais houve forte reação das administrações desses espaços e da polícia militar -, ocorridos em sua maioria em 2014, a autora visualiza nessas manifestações, em especial na reação contra sua repressão, um alargamento das discussões sobre o preterimento racial, fenômeno que credita aos anos de articulação e funcionamento do movimento negro. Fato é que sensivelmente os mitos da democracia racial ou da inexistência do elemento negro na formação da sociedade colombiana caíram por terra. A questão que Tianna levanta é interessante: como entidades que não possuíam estruturas organizadas, não contavam com apoio da elite ou da opinião pública, nem mesmo tinham habilidade de mobilizar grandes massas (à exceção de momentos esporádicos, como a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995), conseguiram que o Estado as ouvisse? A resposta da pesquisadora envolve o conceito de transnacionalidade, já abordado neste texto. Portanto, discursos internacionais em defesa dos direitos humanos, somados à possibilidade de financiamento internacional, teriam auxiliado a articulação do movimento negro em diferentes países. Ainda assim, Brasil e Colômbia configuram exemplos dentro da América Latina de legislações e ações governamentais mais bem definidas em relação à reversão do preterimento histórico das comunidades negras, apesar das limitações apontadas ao longo do livro, tais como conflitos nacionais, embate com narcotráfico, reação das elites etc.

Tianna Paschel doutorou-se em Sociologia pela Berkeley (2011), Universidade da Califórnia, instituição à qual está vinculada no Departamento de Estudos Afro-Americanos. Pela atualidade de seu texto e densidade de sua pesquisa, o livro de Paschel necessita em breve de uma tradução para o português, o que possibilitará o maior acesso ao texto que, acredito, em breve se tornará referência indispensável aos que desejam entender o movimento social negro como ator político na contemporaneidade.

Referências

ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas, CPDOC-FGV, 2007. [ Links ]

ANDREWS, George Reid. América afro-latina 1800-2000. São Paulo: EDUFSCar, 2014. [ Links ]

ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). São Paulo: EDUSC, 1998. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. The Cunning of Cultural Imperialism. Theory, Culture and Society, v. 16, n. 1, p. 41-58, 1999. [ Links ]

HANCHARD, Michael George. Orfeu e o poder: movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo. (1945-1988). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001 [1994]. [ Links ]

HASENBALG, Carlos. Discriminações e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]

HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do Valle. Estrutura social, mobilidade e raça. São Paulo: Vértice/IUPERJ, 1988. [ Links ]

HOFBAUER, Andreas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. [ Links ]

PEREIRA, Amilcar. O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, Faperj, 2013. [ Links ]

1Destaco aqui: ANDREWS (1998; 2014); HANCHARD (1994); HASENBALG (1979); HASENBALG; SILVA (1998); HOFBAUER (2006); PEREIRA (2013); PEREIRA; ALBERTI (2007).

2Viés defendido por BOURDIEU; WACQUANT (1999).

Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, campus Assis. Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP, 19.806-900. E-mail: miriancristinagarrido@gmail.com.

Parodie et analyse du discours (I. L. Machado)

MACHADO, Ida Lúcia. Parodie et analyse du discours. Paris: L’Harmattan, 2013. 134 p. Resenha de PESSOA, Sônia Caldas. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2017.

O livro Parodie et analyse du discours [Paródia e análise do discurso] de Ida Lucia Machado, publicado pela editora francesa L’Harmattan, convida o leitor para um passeio teórico-metodológico a respeito da paródia. Com um roteiro leve e reflexivo, a leitura nos propõe alguns questionamentos importantes acerca da problemática do tema, sob a ótica da Análise do Discurso.

Ida Lucia Machado é uma das precursoras da Análise do Discurso no Brasil e uma das principais interlocutoras brasileiras nas relações entre o Brasil e a França em pesquisas fundamentadas na Teoria Semiolinguística desenvolvida por Patrick Charaudeau, parceiro teórico da autora em diversos eventos acadêmicos, pesquisas e publicações.

O prefácio de Parodie et analyse du discours é assinado por Charaudeau, que aborda dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à temática do livro, ou seja, a paródia propriamente dita. E o segundo à importância teórica da obra de Ida Lucia Machado, uma vez que a autora revela como os instrumentos da Análise do Discurso podem contribuir para definições e categorizações da paródia. Ele ressalta o fato de a autora reunir um conjunto de teorias do discurso e apresentar, de maneira original, o seu próprio instrumental teórico.

Parodie et analyse du discours é dividido em cinco capítulos, brevemente apresentados aqui, e uma conclusão. No primeiro, La Parodie: premières approches [A paródia: os primeiros enfoques], a autora apresenta um percurso das principais teorias que trataram a paródia como objeto, dialogando com Quintiliano, Cícero, Tynianov, Genette, Barthes e Bakhtin, além de outros autores brasileiros e franceses, com o objetivo de contextualizar o quadro teórico traçado por ela.

No segundo capítulo, Parodie et semiolinguistique [Paródia e semiolinguística], a autora enfoca a Teoria Semiolinguística, concebida por Patrick Charaudeau, afirmando que garante liberdade ao pesquisador para se dedicar à análise e interpretação de diferentes conjuntos de textos. Machado ressalta a importância das inúmeras possibilidades de realizar a análise de interpretações eventuais de discursos sociais, independentemente de suas origens.

Com o título La Parodie: essai de classification [A paródia: tentativa de classificação], o terceiro capítulo, possivelmente o mais importante da obra, se propõe a classificar a paródia. Essa é uma das principais contribuições da pesquisadora sobre a temática. Aqui é detalhada uma das problemáticas centrais do livro: a paródia é um gênero ou os efeitos de gênero a incluem em um gênero maior? Afinal, o que é a paródia, esse objeto tão delicado? Em um trabalho de pesquisa minucioso, Machado discute a noção de gênero do discurso, retomando conceitos de pensadores como Jean Peytard, que foi seu diretor de tese de doutorado em Bensançon, na França, e de Bakhtin. A partir da noção de gênero, a autora analisa a construção da transgressão na paródia em duas dimensões.

É nesse momento que Machado retoma a definição de gênero transgressivo, que integra há anos os seus trabalhos. Para a autora, um gênero é transgressivo quando ‘ousa’ combinar em si diferentes tipos de discurso que tinham objetivos diferenciados, em suas origens, daqueles que adquirem quando se tornam um amálgama. Essa reunião pode se tornar insólita, para usar as palavras de Machado, sendo necessário considerar que a aliança que consolida esse encontro de gêneros será representada pela intenção de ironizar alguém ou alguma coisa. A paródia torna possível rir do que é sério, zombar do preconcebido; em suma, ela contém o mesmo movimento que gera a sua criação, a origem da transgressão genérica.

Machado se apoia em Bakhtin ao concluir que a paródia é um discurso carnavalizado, um fenômeno sócio-ritualizado no qual a essência pode ser transposta em um discurso oral ou escrito. A problemática da recepção da paródia e suas duas faces possíveis – mais evidente e mais sutil – são tratadas no quarto capítulo do livro intitulado Parodie: mise en forme et reception [Paródia: forma e recepção]. Já o último capítulo Parodie & Argumentation [Paródia & argumentação], ela apresenta uma rápida visão da paródia como fenômeno argumentativo, explorando a perspectiva de visadas e dimensões argumentativas.

A originalidade da pesquisa de Machado sobre a paródia é reconhecida há alguns anos na França. Em 2002 o professor e teórico francês Dominique Maingueneau chamava a atenção para o trabalho da autora no verbete “captation”, do Dictionnaire D’Analyse du Discours, ao mencionar a importância de pensar a captação do leitor sob o viés da paródia. O autor chama a atenção para uma reflexão de Machado sobre a posição ambígua do sujeito parodiador em relação ao sujeito parodiado, que estaria entre a fidelidade e a infidelidade, a proximidade e o afastamento.

Essa ambiguidade entre os sujeitos parodiador e parodiado, que Maingueneau discutiu baseado em Machado, está presente em grande parte da obra da autora, que considera a paródia um fenômeno linguageiro, um gênero transgressivo, que teria aparecido para transgredir uma ordem estável, como a desarrumar algo que já tivesse sido dito, escrito ou mostrado e mais ou menos aceito por uma comunidade de ouvintes, leitores ou espectadores.

Ouso dizer que a publicação, que tem 134 páginas em francês e ainda não tem tradução para o português, é uma síntese comprovação de parte da pesquisa e do conteúdo de disciplinas lecionadas pela autora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de seus inúmeros trabalhos no Brasil e na França.

O livro integra a coleção Langue et Parole: Recherches en Sciences du langage, dirigida por Henri Boyer, da Université de Montpellier 3. Entre os objetivos da coleção está a publicação de trabalhos coletivos e individuais realizados no campo teórico e metodológico das Ciências da Linguagem, especialmente aqueles que fomentam debate e polêmica.

Concordamos, enfim, com Charaudeau, para quem Ida Lucia Machado fez uma obra criativa que aponta um primeiro elemento, importante, que nos instiga a buscar respostas para a questão elaborada pela própria autora: vivemos em um universo cultural que tende a se parodiar ao infinito? E, se isso é verdade, por que precisamos da paródia? A leitura pode ser uma pista interessante para responder essa questão. E se a autora afirma que não se trata de uma questão fechada, espera-se um segundo livro dela sobre a temática.

Sônia Caldas Pessoa – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; soniapessoa@ufmg.br.

Mythos – Revista de História Antiga e Medieval. Imperatriz, n.1 2017.

Edição I

Editorial

  • Drª Ana Livia Bomfim Vieira, 7

Artigos

  • PHÝSIS E KHÔRA: HESÍODO E A SISTEMATIZAÇÃO DE UM SABER CAMPONÊS.
  • Drª Ana Livia Bomfim Vieira,9
  • RITUAIS FÚNEBRES DEDICADOS AOS HERÓIS: CONCEPÇÕES ACERCA DA RELIGIOSIDADE GREGA NO PERÍODO HOMÉRICO
  • Lennyse Teixeira Bandeira, 25
  • LA PRATICA DELA MERCATURA E OS CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO MERCADOR NA BAIXA IDADE MÉDIA (SÉC. XIV)
  • Raimundo Carvalho Moura Filho,34
  • O MOVIMENTO REFORMISTA DOS VALDENSES: CRÍTICAS AOS PRIVILÉGIOS E DIREITOS DO CLERO
  • Luana Maia da Silva, 43
  • “À MAIS VALENTE!”: A FUNÇÃO MÁGICO-SOCIAL DA MULHER CELTA NA GÁLIA PRÉ-ROMANA
  • Andréia Pereira do Nascimento, 63
  • A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE CAVALEIRESCA NO OCIDENTE MEDIEVAL: UM ESTUDO BIBLIOGRÁFICO
  • Arthur Emânuell Coutinho de Carvalho,73
  • A MULHER E A VIOLÊNCIA: AS RELAÇÕES DAS MULHERES COM A VIOLÊNCIA N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL.
  • Claudienne da Cruz Ferreira,82
  • O MATRIMÔNIO NO SÉCULO XVI: AS REPRESENTAÇÕES DO SACRAMENTO PELAS PERSONAGENS VICENTINAS CONSTANÇA, CASSANDRA E INÊS PEREIRA.
  • Renata de Jesus Aragão Mendes,95
  • GÊNERO E TEOLOGIA: TRAÇOS HISTÓRICOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NO CRISTIANISMO
  • Elizânia Sousa do Nascimento,108

Resenha

  • MANUEL D’ARCHÉOLOGIE MÉDIÉVALE ET MODERNE DE BURNOUF ET AL
  • Filipe Botelho Soares Dutra Fernandes, João Victor Gobbi Cassol e Chayenne Ferreira da Costa,119

Publicado: 14.12.2021

História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n.17, 2017. / v.10, n.20, 2018.

História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.10, n.20, 2018.

Protagonismos indígenas: diálogos entre História & Ciências Sociais em diferentes tempos e espaços contemporâneos (Jul-Dez/2018)

Publicado: 2018-12-14

História & Ciências Sociais. Rio Grande, v. 10, n.19, 2018.

Protagonismos indígenas em diferentes tempos e espaços: diálogos entre História & Ciências Sociais/Protagonismos indígenas en diferentes tiempos y espacios: diálogos entre Historia y Ciencias Sociales (Jan-Jun/2018)

Publicado: 2018-07-31

História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n.18, 2017.

História dos Serviços Públicos/Historia de los Servicios Públicos (Jul-Dez/2017)

Publicado: 2017-12-25

História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n.17, 2017.

A alma e o corpo por escrito: literatura religiosa e médica, séculos XVI-XIX (Jan-Jun/2017)

Publicado: 2017-08-20

Apresentação

Modos. Campinas, v.1, n.1, 2017 / v.2, n.3, 2018.

Modos. Campinas, v.2, n.3, 2018.

PUBLICADO: 2018-09-11

EDITORIAL

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

DOSSIÊ – ARTE, IMAGEM, POLÍTICA: CURADORIA, CIRCUITOS E INSTITUIÇÕES

MONTAGEM: A CONDIÇÃO EXPOSITIVA

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

ENTREVISTA

Modos. Campinas, v.2, n.2, 2018.

PUBLICADO: 2018-05-16

EDITORIAL

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

DOSSIÊ – OBJETOS INQUIETOS

MONTAGEM: A CONDIÇÃO EXPOSITIVA

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

Modos. Campinas, v.2, n.1, 2018.

PUBLICADO: 2018-01-15

EDITORIAL

MONTAGEM: A CONDIÇÃO EXPOSITIVA

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

Modos. Campinas, v.1, n.3, 2017.

PUBLICADO: 2017-09-03

EDITORIAL

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

DOSSIÊ – DA ADVERSIDADE VIVEMOS!

Modos. Campinas, v.1, n.2, 2017.

PUBLICADO: 2017-04-30

EDITORIAL

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

DOSSIÊ – GENEALOGIAS POSSÍVEIS: ARQUIVO, EXIBIÇÃO E CIRCULAÇÃO

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

Modos. Campinas, v.1, n.1, 2017.

PUBLICADO: 2017-02-11

EDITORIAL

ARTIGOS – COLABORAÇÕES

EX-POSIÇÕES / RESENHAS

 

Revista de Ensino de Geografia. Uberlândia, v. 8, n. 14, jan./jun. 2017.

APRESENTAÇÃO

Editoria

ARTIGOS

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS

RESENHAS

Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.1, n.1, 2017.

Editorial

Entrevista

Artigos

Documentos

Resenhas

Reportagens

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.1, n.1 , 2017. / v.7, n.1, 2018.

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.7, n.1, 2018.

Gênero e Diversidade

Chamada de Artigos

Comissão Editorial

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.6, n.1, 2017.

História, África & Africanidades

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.5, n.1 2017.

História dos Esportes

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.4, n.1, 2017.

Trabalho e movimentos sociais no Brasil

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.3, n.1, 2017.

Intelectuais, Literatura e Historiografia

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.2, n.1, 2017.

História da Saúde e das Doenças

Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.1, n.1 , 2017.

Escritos sobre a história do Piauí – pesquisas e abordagens contemporâneas

Negros no Espirito Santo | Cleber Maciel

A Segunda edição da obra de Cleber Maciel, organizada por Osvaldo Martins e Oliveira publicada no ano de 2016, com apoio do Governo do Estado do Espírito Santo por intermédio da Secretaria de Estado da Cultura e Arquivo Público do Estado, traz uma organização diferenciada da primeira, aparentando ter como objetivo apresentar o desenrolar da influência do historiador nas pesquisas e na formação sociopolítica no Estado. Dividido em “Prefácio” e “Posfácio”, nela encontraremos não somente a obra do Professor Cleber como também, em seu posfácio, estão localizados trabalhos de seus intitulados seguidores que por meio do mundo acadêmico aprimoram suas pesquisas e (re)visitam objetos por ele estudados com um olhar contemporâneo sobre o negro.

O Professor Cleber Maciel, como era conhecido dentro do movimento negro, desde a sua graduação na UFES sempre esteve envolvido em movimentos que lutavam pela afirmação da identidade negra, conforme fez questão de ressaltar Sandro José da Silva [1] , e obteve grau de Mestre pela Universidade de Campinas com a dissertação “Discriminações Raciais: negros em Campinas” (1988), sendo esta publicada pela editora da referida Universidade; é autor também da obra “Candomblé e umbanda no Espírito Santo” (1992) obra de referência para pesquisas direcionadas as questões quanto as religiões afrodescendentes. Leia Mais

Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil / Claudemir de Quadros

A obra intitulada Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil, organizada pelo professor Claudemir de Quadros, é um convite à leitura para os pesquisadores interessados na temática da nacionalização do ensino no Brasil. Publicado em 2014, o livro é composto por onze capítulos que apresentam como recorte temporal o período que vai da Primeira República até a consolidação do Estado Novo, utilizando como cenário os estados do Rio Grande do Sul, do Paraná e de São Paulo.

A partir de diferentes olhares de pesquisadores consagrados no campo da História da Educação no Brasil, a obra apresenta as marcas e as representações construídas na história da escola, por meio da campanha de nacionalização implantada pelo Presidente Getúlio Vargas, em época em que a escola foi vista como um espaço privilegiado de disseminação da cultura nacional, com o intuito de se forjar uma nova identidade brasileira.

No primeiro capítulo, Etnias e nacionalização no Sul do Brasil, o historiador René Ernaini Gertz discute as relações existentes entre as con-cepções de Estado e de Nação no Brasil, especialmente em relação à cam-panha de nacionalização implantada nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O texto chama a atenção para as medidas nacionalizadoras que atingiram de diferentes formas e em diferentes momentos o meio educacional dessas Regiões.

O segundo capítulo, organizado por Dorval do Nascimento, intitulado Brasilidades, Lusitanidades, Germanidades: a política de nacionalização do ensino primário e as disputas em torno da Nação (1934-1945), reflete sobre as medidas de nacionalização do ensino que foram implanta-das durante o Ministério de Gustavo Capanema. Medidas que visavam, entre outras questões, instaurar o sentimento de brasilidade nas novas gerações, motivo que levou a escola primária a ter “um papel fundamental em todo o processo” (NASCIMENTO, 2014, p. 65).

A nacionalização do ensino e a renovação educacional no Rio Grande do Sul é o título do terceiro capítulo, escrito por Maria Helena Camara Bastos e Elomar Callegaro Tambara. No texto, são abordadas questões referentes ao processo de nacionalização e renovação pedagógica no estado na primeira metade do século XX, que produziram modificações no trabalho docente, na legislação escolar, nos métodos de ensino, no currículo, nas finalidades da educação, entre outras transformações atravessadas também pelo discurso da Escola Nova.

Claudemir de Quadros é o autor do quarto capítulo, intitulado O discurso que produz a reforma: nacionalização do ensino, aparelhamento do Estado e reforma educacional no Rio Grande do Sul (1937-1945). José Pereira Coelho de Souza, quando assume a Secretaria de Educação e Saúde Pública do Rio Grande do Sul, dá início a um intenso processo de reformas educativas no estado, visando, entre outras questões, ampliar a rede de ensino, orientar, supervisionar e inspecionar o trabalho desenvolvido nas escolas estaduais, objetivando contribuir para a campanha de nacionalização implantada por Vargas em todo o território nacional.

Além de discorrer acerca das escolas estrangeiras, representadas como um perigo no período em questão, Claudemir de Quadros apresenta ao leitor que o processo de reforma educacional, ocorrido no estado, favorecido pela campanha de nacionalização do ensino, alterou intensamente as formas de gestão do sistema escolar no Rio Grande do Sul, especialmente a partir da organização do Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais – CPOE/RS.

Ao analisar as políticas públicas de nacionalização das escolas étnicas no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1900 a 1940, o professor Lúcio Kreutz, autor do quinto capítulo, intitulado A nacionalização do ensino no Rio Grande do Sul, medidas preventivas e repreensivas, aponta as características e a constituição dos primeiros cem anos das escolas étnicas no estado, bem como escreve sobre a nacionalização progressiva dessas instituições apontando as medidas preventivas e repressivas implantadas pelo governo gaúcho, com o intuito de formar uma identidade nacional desejada.

O texto Abrasileirar os coloninhos: histórias e memórias escolares na região colonial italiana do Rio Grande do Sul (1937-1945), de autoria da professora Terciane Ângela Luchese, compõe o sexto capítulo do livro apresentado. O trabalho de Luchese permite compreender os discursos e as práticas de nacionalização que estiveram representadas na história da educação da região colonial italiana a partir de três enfoques abordados pela autora: as políticas públicas para a educação, o ensino e o uso da língua portuguesa e as práticas de nacionalização efetivadas no cotidiano escolar.

Dóris Bittencourt Almeida, ao narrar à história do Colégio Farroupilha, fundado por imigrantes alemães, na cidade de Porto Alegre/RS, escreve o sétimo capítulo, que intitula como As marcas do novo: do Colégio Alemão ao Colégio Farroupilha. Nesse capítulo, Almeida apresenta as relações entre a campanha de nacionalização e as transformações ocorridas na história institucional do Colégio a partir do olhar de ex-alunos e dos periódicos escolares analisados por ela. Compreende também que, embora o Estado Novo tenha deixado marcas na trajetória da instituição, ele não fez com que a cultura alemã desparecesse completamente daquele espaço educativo.

O oitavo capítulo, escrito por Elaine Cátia Falcade Maschio, intitu-lado Os imigrantes italianos, seus descendentes e suas escolas frente às campanhas de nacionalização do ensino em Curitiba/Paraná (1900-1930), atenta para a história da colonização italiana em Curitiba e o pro-cesso de escolarização das colônias, bem como reflete sobre as medidas de nacionalização ocorridas no estado do Paraná, com ênfase nas escolas ita-lianas.

Versando sobre a imigração de poloneses e ucranianos no no Paraná, Valquíria Elita Renk é a autora do nono capítulo, O processo de naciona-lização das escolas étnicas polonesas e ucranianas no Paraná. Valquíria objetiva analisar “como as escolas e as comunidades étnicas garantiram a manutenção da identidade étnica e quais foram as formas de resistência ante a nacionalização simbólica” (RENK, 2014, p. 292).

O décimo capítulo, intitulado História com muitos poréns: a nacio-nalização das escolas criadas por imigrantes alemães em São Paulo, de Maria Cristina dos Santos Bezerra, reflete acerca do impacto causado pelas políticas de nacionalização na organização das escolas germânicas do es-tado paulista.

Encerrando a obra, o décimo primeiro capítulo, produzido por Eli-ane Mimesse Prado, intitulado Vislumbre acerca da nacionalização do ensino: o enigma das escolas que italianizaram a cidade de São Paulo, investiga a constituição das escolas italianas paulistas, nas primeiras dé-cadas do século XX, e aponta as medidas criadas pelo governo para nacio-nalizar a infância.

Ao finalizar a leitura desta obra, depois de entrar em contato com as pesquisas desenvolvidas ao longo dos últimos anos por cada um dos auto-res acima, é inegável a importante contribuição do livro para a história da escolarização no Brasil, especialmente no que tange o período da naciona-lização do ensino. Um momento que marcou profundamente o cotidiano e as culturas escolares de muitas escolas brasileiras, especialmente aque-las localizadas nas zonas rurais dos estados, organizadas pelas comunida-des de imigrantes e seus descendentes.

Destaco a relevância da temática abordada para as investigações no campo da história da educação, sobretudo para a área da história das ins-tituições escolares, por oferecer um embasamento teórico consistente acerca dos motivos, dos reflexos e das transformações ocasionadas pela campanha de nacionalização do ensino, principalmente entre os anos de 1937 a 1945, quando se torna compulsória.

Cumpre ressaltar a riqueza do estudo para se pensar as dinâmicas de vida dos sujeitos escolares, sobretudo, de alunos e de professores, atraves-sadas pela imposição do uso do português, pela comemoração das festas e celebrações cívicas, pelo silenciamento de suas identidades e culturas, pelo culto aos heróis nacionais, entre outras práticas, repletas de traumas e in-seguranças para os imigrantes e descentes, uma vez que a gota amarga derramada por muitos, fez parte do processo escolar e da história de mui-tas famílias das Regiões colonizadas por estrangeiros.

Como apresento no início do texto, a obra organizada por Quadros é um convite à leitura para a compreensão da dimensão do projeto de naci-onalização do ensino no Brasil.

Cassiane Curtarelli Fernandes – Mestre em Educação pela Universidade de Caxias do Sul (Brasil). E-mail:  cassianecfernandes@gmail.com.


QUADROS, Claudemir de (org.). Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil. Santa Maria: Editora UFSM, 2014. Uma gota   Resenha de: FERNANDES, Cassiane Curtarelli. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 257-261, janeiro/abril de 2017. Acessar publicação original.

Rural e Urbano. Recife, v.2, n.1, 2017.

EDITORIAL

  • Maria Rita Ivo de Melo Machado, Mariana Zerbone Alves de Albuquerque, Edvânia Torres Aguiar Gomes
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Artigos

História, Migração e Meios de Comunicação / História & Perspectivas / 2017

É com grande satisfação que apresentamos o número 56 da Revista História & Perspectivas, com o Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação, além de um artigo que aborda a imprensa de fábrica e outros cinco artigos com temáticas diversificadas.

Estudos sobre migrações têm-se multiplicado em várias direções, das universidades às organizações internacionais. O presente Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação constitui-se de pesquisas que giram em torno da análise da mobilidade humana e sua articulação com os meios de comunicação, provenientes de pesquisas em Ciências Humanas, em diversos espaços e temporalidades. A migração é um fenômeno histórico e seus volumes crescem com o passar dos anos, apresentando fluxos internacionais, nacionais e regionais. O artigo de abertura do Dossiê, realizado por Marcelo Garabedian, é sobre a construção identitária e o nacionalismo espanhol na Argentina por meio do jornal El Correo Español, de Buenos Aires, no final do século XIX. O segundo artigo é de Lydia Elizalde, que apresenta um estudo do jornal El Correo Español, publicado na Cidade do México também no final do século XIX. Esse artigo enfatiza a fundação e consolidação do jornal El Correo Español durante os primeiros dez anos de sua fundação (1889-1898), destacando o trabalho de seus editores e escritores como empreendedores culturais.

Após esses estudos migratórios espanhóis na América, o foco recai para os estudos no Brasil e suas migrações. Luiz Otávio Costa e Marili Peres Junqueira fazem uma reflexão sobre diferenças e semelhanças dos processos migratórios dos italianos no Brasil e dos nipo-descendentes (Brasil-Japão) por meio da cultura e dos meios de comunicação desses grupos étnicos distintos e em diferentes momentos históricos – final do século XIX, final do século XX e início do século XXI. Tais grupos étnicos aparentemente não teriam características comuns, mas apresentam iterações e processos semelhantes como demonstrado na abordagem que parte da teoria de Bourdieu. Endrica Geraldo, por seu turno, discute como periódicos operários paulistanos, com forte presença de imigrantes italianos, evidenciam, em suas palavras, as relações tensas entre identidade nacional e identidade de classe no interior das lutas por direitos e melhores condições de trabalho. Esse estudo está centrado nas décadas de 1920 e 1930 por sua particularidade dentro das organizações operárias. Jorge Pagliarini Junior apresenta uma reflexão sobre a memória e a trajetória de migrantes retornados da Amazônia Legal para o Paraná entre os anos de 1990 e 2014, apoiando seus estudos em várias fontes, primeiramente com fontes orais, depois em sites e artigos do Jornal Nosso Tempo, publicado no Oeste do estado do Paraná. O encerramento do Dossiê traz uma problematização do conceito de migração, particularizado e exemplificado em Rondônia. Uma grata contribuição de Cátia Franciele Sanfelice de Paula e Célia Rocha Calvo.

Para além do Dossiê, a revista apresenta uma tradução relevante revisitando estudos e a própria trajetória de Stuart Hall e artigos avulsos.

O primeiro artigo traz uma investigação baseada nas revistas A Águia e a Nação Portuguesa para identificar as relações Portugal-Brasil entre os anos de 1910 e 1926, de autoria de Luciana Lilian de Miranda. Cristina Ferreira, em diálogo com os meios de comunicação, analisa como os jornais de fábrica das indústrias têxteis de Blumenau, no período 1963-1968, elaboram suas relações com os trabalhadores, as relações de poder e políticas, além de assuntos internos, de trabalho e outras temáticas. Assim, problematiza, como apontado por ela, os usos da imprensa fabril como fonte de pesquisa para análise das culturas de classe dos trabalhadores na historiografia social do trabalho no Brasil.

Na interface da memória com o mundo dos trabalhadores, Paulo Cesar Inácio explora as contradições internas do processo do golpe civil / militar de 1964 no Brasil, aponta o desafio de abrir outras memórias possíveis no mundo dos trabalhadores, para além de alguns protagonistas e intuições há muito debatidas, passando de uma memória sustentada em processos hegemônicos para memórias alternativas, e dessas para outras mais. João Guilherme de Souza Corrêa nos presenteia com uma análise a partir da influência de Paul Singer para conhecermos o socialismo e a economia solidária no sindicalismo da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Desta forma, mostra os limites da estratégia política guiada por essa noção de socialismo para a CUT à tão anunciada transformação social.

A finalização desse número cabe a dois artigos cujo foco recai sobre a Educação. Norma Lucia da Silva e Marieta de Moraes Ferreira buscam analisar o processo de profissionalização dos professores de História no antigo norte de Goiás, com o estudo de caso da cidade de Araguaína (Tocantins). Com base no estudo do perfil dos licenciandos do curso de História da Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Araguaína e documentos de professores de escolas da rede estadual de ensino, por exemplo, apresentam os dilemas, as dificuldades e a realidade formativa dos docentes na área de História dessa cidade. Astrogildo Fernandes da Silva Jr. e José Josberto Montenegro Sousa analisam o potencial das diferentes fontes e das diferentes linguagens da cultura contemporânea no processo de ensinar e aprender História, na perspectiva de contribuir para a formação cidadã de jovens estudantes do Ensino Médio, creditando que os usos de diferentes fontes e linguagens nas aulas de História do Ensino Médio podem constituir iniciativas, para promover articulação entre os saberes escolares e a vida prática dos jovens estudantes.

Por fim, com o Dossiê História, Migração e Meios de Comunicação, a tradução e esses artigos conclui-se a jornada investigativa desse número 56 da Revista História & Perspectivas. Desejo a todas e todos uma excelente leitura dos artigos na íntegra e que esses possam fomentar outras boas pesquisas no campo da migração e das demais temáticas apresentadas.

Bons Estudos!

Marili Peres Junqueira


JUNQUEIRA, Marili Peres. História, Migração e Meios de Comunicação. História & Perspectivas, Uberlândia, v.30, n.56, 2017. Acessar publicação original [DR].

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Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil / História & Perspectivas / 2017

Para este Número 57, da Revista História & Perspectivas, temos a composição do Dossiê Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil e uma seção de artigos com diferentes temáticas.

Ao definir a temática para a chamada deste dossiê, o Conselho Editorial da Revista teve como objetivo construir um panorama sobre estudos com diferentes abordagens, que enfocassem diversos aspectos envolvidos na constituição da condição de trabalhadora ou trabalhador e de seus modos de vida no Brasil. O propósito era de que a delimitação dessa temática abrangesse estudos sobre questões relacionadas a formação de identidades, construção de ofícios, relações de gênero e etnicorraciais, movimentos sociais, organizações sindicais, memórias, lutas, embates e disputas de trabalhadoras e trabalhadores, implicadas na própria constituição do ser trabalhadora ou trabalhador e de suas vidas em diferentes temporalidades e espacialidades do Brasil.

Apresentamos seis artigos originados de pesquisas em torno de trabalhadores e de trabalhadoras no Brasil, sua experiência de atuação profissional, seus movimentos de organização e luta, relações com imprensa, transformações nas relações de produção e de poder nos espaços de vida, em diferentes temporalidades e conjunturas entre os séculos XIX e XXI.

O primeiro artigo, de Luiz Antonio Dias, analisa como o jornal O Estado de S. Paulo retratou os movimentos de trabalhadores, tanto rurais como urbanos, no período que antecedeu o Golpe de 1964, e como justificou o golpe e a violência que se seguiu sobre os trabalhadores. O segundo, de Maristela Novaes e Noé Freire Sandes, discute a presença de profissionais do vestuário (fiandeiras, tecelãs, costureiras, alfaiates, comerciantes) no contexto cultural de Villa Platina, região do Triângulo Mineiro, no início do século XX, a relação dessa sociedade com seu sistema de vestuário e com o comércio direcionado a esse ramo nos termos da redefinição da tradição da manufatura de roupas. O terceiro, de Rosane Marçal da Silva, problematiza elementos e dimensões do processo de intensificação da produção industrial e as mudanças que o trabalho industrial ocasionou na vida dos trabalhadores das indústrias de confecções do vestuário, em Santa Helena, no Paraná, durante os anos 1980-2000. Valéria de Jesus Leite se debruça sobre a organização dos trabalhadores em Montes Claros e Norte de Minas Gerais, suas demandas e suas lutas, entre as décadas de 1970 e 1980, problematizando o processo de modernização econômica. Cleber Augusto Gonçalves Dias e Marina Fernandes Braga Nakayama apresentam reflexões sobre práticas e espaços de sociabilidade de trabalhadores durante o tempo livre e o lazer em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, com base em relatos presentes nos processos crime de homicídio produzidos do período de 1900 a 1924. Escravos que se tornam senhores de escravos é o objeto de discussão de Robson Pedrosa Costa, que investigou um modelo de gestão implementado pela Ordem Beneditina do Brasil em Pernambuco, durante os séculos XVIII E XIX, a partir do estímulo dado a escravos a possuírem os próprios escravos para o trabalho em suas roças.

Na segunda seção deste número consta um conjunto de nove textos.

Luis Fernando Cerri e Caroline Pacievitch cotejando obras de Jörn Rüsen e de Agnes Heller para discutir suas posições sobre consciência histórica e suas possíveis implicações para a Didática da História, face à importância da defesa de valores como a razão, a verdade e a democracia para a formação de historiadores e professores de história. João Paulo Pereira Coelho e José Joaquim Pereira Melo desenvolvem reflexão sobre o conceito de passado em suas dimensões sociais e históricas, considerando as relações entre enfrentamentos sociais e diferentes formas de apropriação do passado.

Rosana Areal de Carvalho se dedica a compreender a publicação da obra de Primitivo Moacyr e discutir o modo como a questão da instrução enquanto responsabilidade do Estado se fez presente no cenário político e cultural brasileiro entre anos 1930 e 1940. Maria Aparecida Leopoldino desenvolveu pesquisa no campo da História da Disciplina Escolar, tomando como objeto de estudo e fonte de pesquisa o manual O Brasil e o Paraná para uso nas escolas primárias, de 1903, no contexto dos ideais republicanos e da construção de uma “história regional”. Ao mesmo tempo, a relação entre intelectuais educação e imprensa durante o debate brasileiro em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 é o objeto de estudo de Maria Cristina Gomes Machado e Mário Borges Netto, que problematizaram o modo como os intelectuais lidaram com a imprensa para divulgar distintos projetos educacionais no conflituoso processo de constituição e consolidação da escola pública estatal.

Kalina Vanderlei Silva dedica-se à análise crítica e paleográfica de três manuscritos setecentistas, da Capitania de Pernambuco, sobre festas públicas, discutindo possibilidades de estudo de documentos camarários e de interpretação das festas como espaços de demarcação de status para a elite açucareira colonial. André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis Richter Gomes discutem práticas terapêuticas em uma região da Província de São Paulo, nos anos de 1848 a 1851, a partir do estudo de registros de tratamentos de doenças em memórias de famílias. Também tratando de festas como temática de estudo, Maria Clara Tomaz Machado e Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira analisam práticas e saberes rurais do interior goiano a partir das festividades religiosas em homenagem a São Sebastião.

Adriana Vaz e Rossano Silva estudaram a forma como as disciplinas de desenho foram formatadas na primeira década da Reforma Universitária na Universidade Federal do Paraná para compreender a matriz do ensino de desenho no início dos anos 1970 e suas relações com outras áreas de conhecimento.

Conselho Editorial


Memórias, ofícios e lutas de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. História & Perspectivas, Uberlândia, n.57, 2017. Acessar publicação original [DR].

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Ubuntu: Educação, Alteridade e Relações Étnicos-Raciais / Ariosvalber S. Oliveira

Com a aprovação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que tornou obrigatório nas escolas de todo o Brasil o ensino de História da África e cultura afro-brasileira como, a inclusão dos conteúdos de História e Cultura dos Povos Indígenas, além de atender a uma antiga e justa reivindicação; trouxe uma série de consequências para o Ensino de História em sua totalidade. As mudanças ocasionadas pelas respectivas leis ainda estão em processo e não influenciarão apenas educadores. Crianças, adolescentes, jovens, adultos entrarão e estão entrando em contato com o tema. O alcance das transformações pode ser grande – e muito positivo, devendo ser aceleradas ou adquirirem um ritmo mais lento, conforme a capacidade dos setores interessados em intervir no processo (LIMA, 2009, p. 149).

Contudo, vale salientar que o trabalho com História da África e Indígena como conteúdos curriculares dos cursos de graduação, pós-graduação lato sensu e stricto sensu e mesmo na educação básica não nasce no Brasil como resultado da imposição das leis mencionadas anteriormente, havendo histórias de mais longa duração que se relacionam diretamente com o cenário que hoje vislumbramos 1. Leia Mais

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID – línguas materna e estrangeiras e suas respectivas literaturas | Revista Práticas de Linguagem | 2017

Nesta edição especial, a Revista Práticas de Linguagem elege o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID – línguas materna e estrangeiras e suas respectivas literaturas. Dessa forma, reúne um vasto registro de trabalhos desenvolvidos por bolsistas, supervisores e coordenadores de área de subprojetos vinculados a diversas universidades brasileiras e a escolas públicas. Reforçando os objetivos traçados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – para o programa, o grande intento deste volume é dar visibilidade às ações de formação inicial de professores para a educação básica, além de reconhecer e valorizar o esforço despendido por todos os proponentes para refletir sobre questões específicas de ensino e aprendizagem de linguagem, de modo amplo.

Os relatos de experiência, os artigos científicos, as resenhas e a entrevista que compõem esta edição são oriundos de reflexões sobre a prática educativa e estão organizados em quatro seções temáticas, a saber: 1) a formação inicial e continuada de professor da educação básica; 2) metodologias de ensino da língua portuguesa e de suas literaturas; 3) elaboração de material didático; e 4) letramentos, multimodalidade e tecnologias no ensino de língua e literatura. Em todas elas, a discussão empreendida privilegia a presença, a participação e o engajamento dos bolsistas e supervisores pibidianos na rotina escolar, particularmente, em escolas da rede pública de ensino brasileira. Leia Mais

Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC | Revista Práticas de Linguagem | 2017

O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa é o tema deste número da Revista Práticas de Linguagem. Sem dúvidas, a relevância das discussões em torno desse Programa não pode ser minimizada. Foi a primeira vez no Brasil que o Ministério da Educação, Redes de Ensino e Universidades públicas se articularam institucionalmente com um objetivo comum: melhorar o atendimento das crianças nas escolas e garantir o direito à alfabetização. Juntos, gestores, pesquisadores e professores puderam dialogar e construir estratégias coletivas para enfrentar as dificuldades do cotidiano do alfabetizador.

Juntos, puderam explicitar dificuldades, angústias, modos de pensar. Em meio às diferenças, puderam construir coletividades e singularidades em um programa que não buscou unificar práticas docentes, mas sim problematiza-las. Leia Mais

Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.17, n.1[44], 2017.

Janeiro/Março

Editorial

Artigos

Resenha

Consultores para este volume

Publicado em Janeiro de 2017.

Cidades e Culturas Urbanas / Projeto História / 2017

Cidades e culturas urbanas em memórias, linguagens e perspectivas de presente

A proposta temática sobre cidades e culturas urbanas, apresentada pela Revista Projeto História, surgiu do nosso interesse e da avaliação sobre a importância dos estudos que buscam dar visibilidade aos modos culturais de viver, considerados na multiplicidade de práticas, valores e sentimentos que caracterizam as diversas experiências sociais, lutas e resistências dos sujeitos históricos.

Ao priorizar o tema Cidades, volta-se o presente dossiê para a discussão sobre os processos de constituição das culturas urbanas. Trata-se de promover o debate sobre viveres e fazeres dos trabalhadores e grupos populares, sua vida material e simbólica, seus territórios de memória, seus projetos, dissidências, práticas, tradições e relações com o meio ambiente, além de articulações com outros grupos sociais. Isto implicou em não perder de vista os desafios teóricos e metodológicos propostos por diferentes registros (em suportes materiais diversificados) que se apresentam à pesquisa histórica na atualidade, como expressões de experiências de sujeitos sociais nas cidades, surpreendidos em sua diversidade profissional, étnica, etária e de gênero no confronto entre culturas e modos de viver e trabalhar.

Assim, também as pesquisas aqui apresentadas refletem sobre a cidade como uma categoria da prática social, como elemento constitutivo dos processos históricos e da construção de seus moradores, tendo explorado as várias articulações entre a concretude mais visível das cidades e sua dimensão imaginária, quer a reflexão se centre mais em uma ou em outra dimensão.

Das análises históricas desses artigos, observamos a noção de território como espaço vivido e inventado por sujeitos sociais, em processos por meio dos quais heranças e tradições rurais se reinventam na cidade, tornando-se dimensões importantes de sua constituição. Do mesmo modo, hábitos, costumes, tradições engendrados na cidade penetram as vivências rurais. Logo, processos de territorialização e desterritorialização (movimentos migratórios, lutas por posse de terra, lutas por habitação, trabalho) inscrevem a luta de classes na espacialidade. Nessa perspectiva, a noção de território, ao questionar a ideia de cidade e de campo como meros cenários de práticas e experiências, possibilita-nos a percepção de que as temáticas do urbano e do rural se entrelaçam com as do trabalho.

Nessa linha, Agenor Sarraf Pacheco, no atual número da Projeto História, apresenta artigo em que “acompanha o fazer-se do urbano e do rural em contínuas simbioses”, problematizando questões acerca dos viveres sociais pelo tema da cultura e suas festas na Amazônia marajoara de 1930 a 2000. Leonara Lacerda Delfino analisa experiências e articulação de fazeres sociais urbanos em “rituais de separação e de incorporação no além-túmulo” na Irmandade do Rosário de São João del-Rei, de 1782 a 1828. Rodrigo Otávio dos Santos apresenta análise dos quadrinhos de Chiclete com Banana, por perspectivas da formação política da juventude urbana brasileira de 1985 a 1990, destacados amplos diálogos sociais naquelas páginas. O autor Magno Santos aborda a “escrita da história das espacialidades e da cultura urbana da Cidade de Alagoas no oitocentos”, destacados os caminhos interpretativos sobre manifestações religiosas da época em relatos de viajantes e cronistas vinculados ao Instituto Arqueológico e Geográfico alagoano. A pesquisa de Verônica Sales Pereira apresentada neste volume traça paralelos temáticos entre a produção social da memória, movimentos migratórios em São Paulo e a questão da forte especulação imobiliária no bairro da Mooca, São Paulo, no início do século XXI. José Otávio Aguiar revaloriza em seu artigo dimensões de resistências de grupos sociais por reformas urbanas na cidade de Campina Grande, e possibilidades interpretativas no campo da história ambiental. Fechando o atual dossiê temático, Henry Marcelo Martins Silva problematiza “modernidade e exclusão na belle époque sertaneja”, e o papel de elites dirigentes no processo de formação do meio social urbano na cidade de São José do Rio Preto durante a chamada “primeira república” brasileira.

Na seção artigos livres, traz a revista importantes reflexões. Marcos Silva problematiza temas e amplas interfaces da literatura de Jorge Amado com a formação de um mundo histórico de paz social e econômica, e esperança política, na passagem dos anos 50 para a década seguinte do século XX. A partir da análise de difícil momento de desvalorização integral de conquistas de direitos das sociedades socialistas, em face das graves violências do totalitarismo estalinista, amplamente divulgadas naquelas décadas, o autor pensa problemas em torno do controle autobiográfico de Jorge Amado sobre sua própria obra, bem como a relevância do trabalho do escritor baiano para o ensino de história. Laura Antunes Maciel, a partir de documentação produzida pela “Comissão Rondon”, ressalta a presença de outros sujeitos e suas memórias, histórias não expurgadas de contradições, forjadas em meio ao ocultamento de experiências sociais de excluídos da sociedade. A autora pensa a produção da memória em torno do controle de projetos de formação de patrimônio, observadas perspectivas de disputas entre concepções de nação e de estado como lugares sociais recobertos pela ideologia do planejamento. Nessa mesma seção, Nelson Tomelin Jr. e Maria do Rosário da Cunha Peixoto apresentam experiências de resistência de trabalhadores e trabalhadoras na Amazônia brasileira a partir de processos trabalhistas travados na Junta de Conciliação e Julgamento da cidade Itacoatiara durante a ditadura, e no seu período posterior. Tomados tais processos como fontes, os autores problematizam as experiências de homens, mulheres, inclusive crianças, em difíceis disputas trabalhistas vivenciadas naquele momento social de acirrada luta de classes.

Na seção notícias de pesquisa, o atual número traz a contribuição de significativos relatos. Marilu Santos Cardoso nos fala de investigação no campo da criação musical nos anos de 1960 a 1990, e as implicações acerca da produção do esquecimento e da minimização da importância de artistas na sociedade autoritária brasileira daquele período. Matheus da Silva analisa resistências urbanas de trabalhadores na ditadura civil-militar em motins de 1983 contra a fome e o desemprego na cidade de São Paulo. Também nessa seção, Vanessa Miranda apresenta a trajetória de criação da AMISM – Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé, em Manaus, no período de 1995 a 2014. A autora, ao revalorizar a organização social de indígenas no estado do Amazonas, suas reivindicações por saúde e amplos direitos, como a participação política, evidencia perspectivas históricas da construção da democracia naquela cidade.

Destacamos ainda a colaboração de Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira e Marinalva Vilar de Lima em resenha do livro “Ditaduras do cinema: Brasil, 1964 / 1985-1965 / 2006”, coletânea de textos organizada por Marcos Silva.

Finalmente, apontamos aqui o esforço de dar publicidade para relevantes trabalhos de pesquisa que enfatizam o espaço urbano como constitutivo de práticas sociais, tradições e hábitos conflitantes. Tais trabalhos desenvolvem reflexões sobre o exercício da escrita e da leitura, a respeito da produção musical e iconográfica, festas e rituais, comemorações e memórias, assim como outras formas de expressão e comunicação, dimensões importantes da construção das cidades e seus modos de vida.

O presente número reúne trabalhos que assumem as perspectivas de presente como campo de reflexão historiográfica e prática profissional. Afirmam esses pesquisadores a cultura como campo de construção de hegemonias e de projetos alternativos, articulando, em suas temáticas, modos de viver e trabalhar em diferentes espaços urbanos e temporalidades.

Maria do Rosário da Cunha Peixoto

Nelson Tomelin Junior.


PEIXOTO, MARIA do Rosário da Cunha; TOMELIN JUNIOR, Nelson. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.58, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, Linguagens e Movimentos / Projeto História / 2017

A Revista Projeto História, do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC / SP tem, historicamente, apostado na pluralidade teórica, temática e historiográfica, com particular ênfase na recuperação da historicidade e das vozes silenciadas. A revista também busca se afastar da endogenia, que muitas vezes marca a vida universitária. Nosso propósito é o de dar voz e vez a pesquisadores de outros estados do país e mesmo de outros países, em particular da América Latina. Nosso compromisso com uma sociedade aberta, democrática e includente não se dissocia do projeto de editorial, marcado pelo pluralismo, diversidade e diálogo com a produção intelectual em curso.

Esse volume da Revista Projeto História, intitulado História, Linguagens e Movimentos, buscou captar um traço decisivo da historiografia contemporânea: a multiplicidades de objetos de estudo. Dois elementos foram priorizados, por um lado as “Linguagens”, com ênfase nos estudos envolvendo as relações entre música, cinema, teatro, literatura e o periodismo. Conectado a isso, o dossiê da presente edição buscou valorizar os movimentos coletivos nos campos cultural, social, político e econômico. Conscientes dos riscos da “história em migalhas”, da hiperespecialização e do academicismo, buscamos aproximar as diferentes esferas da existência a fim de oferecer aos nossos leitores artigos que discutam assuntos diversos, que vão do debate econômico no Brasil do século XIX ao imperialismo norte-americano no Pós-Guerra. Da Igreja no medievo às relações culturais entre o Brasil e Portugal no século XX. Da imigração europeia às sensibilidades literárias em torno da experiência traumática da Segunda Guerra Mundial. Outra ênfase deste número está dedicada às conexões latino-americanas, dos embates entre bandeirantes e indígenas no interior dos impérios ibéricos às conexões entre Brasil e México ou ainda Cuba e Uruguai. Os artigos publicados possuem caráter interdisciplinar, capazes de colocar em diálogo diferentes temporalidades, saberes e tradições. Com esse dossiê, buscamos manter nossa tradição de promover um amplo debate sobre a diversidade historiográfica e a renovação da historiografia.

O artigo do professor Everaldo Andrade, intitulado “Mário Pedrosa e a construção do espaço imperial dos EUA sob o capitalismo monopolista” tematiza a trajetória intelectual empreendida pelo importante pensador brasileiro. O artigo analisa as linhas de força que levaram o país à uma ditadura militar em 1964, num contexto em que o capitalismo norte-americano desempenhou um papel decisivo na implantação de ditaduras no Brasil, bem como em outros países da América Latina, durante a Guerra Fria.

O artigo de Adailson José Rui, “O Caminho de Santiago no século XII: espaço de propagação dos ideais reformistas da Igreja”, discute o uso de fontes do século XII, principalmente do Liber Sancti Iacobi e da História Compostelana como espaço de propagação de ideias que visavam afirmar, entre os peregrinos, o poder do Papa e a centralização da Igreja em Roma. Estas discussões, inclusive o debate sobre o celibato, ensejaram um processo que acabaria por conduzir à reformas na vida da Igreja.

Leandro Mendanha e Silva e Paula Guerra aportam aos leitores da Projeto História o artigo “Encruzilhadas atlânticas: representações sobre Ângela Maria em Portugal, Angola e Moçambique”. No texto, os autores tematizam a maneira como a imprensa portuguesa tratou a passagem de Ângela Maria por Portugal e pelas chamadas “províncias ultramarinas”. As trocas artísticas e musicais nos jornais e revistas portuguesas sobre a relação Brasil-Portugal são importantes contribuições dos autores.

O artigo “A reforma da natureza e da agricultura: o exemplo dos inquéritos e dos congressos agrícolas no último quartel do Império”, de Roberta Barros Meira, investiga o inquérito realizado em 1874 pelos diferentes ministérios (Fazenda, Justiça e Agricultura), bem como os dois congressos agrícolas realizados em 1878. Essa documentação permite acessar o pensamento agrário brasileiro do último quartel do Império. Nesses discursos aparecem demandas nacionais ou regionais relacionadas a diferentes ângulos, como o ambiental, o político e o econômico.

O artigo intitulado “Indígenas, bandeirantes y fronteras coloniales ibéricas en América”, dos professores Hernán Maximiliano Venegas Delgado e Hernan Venegas Marcelo, representa uma contribuição internacional desse volume, pois promove uma análise da ação dos bandeirantes e resistências indígenas, apresentando um balanço da produção historiográfica sobre o tema, tanto em língua portuguesa quanto espanhola.

O texto do professor Ival de Assis Cripa, estudioso da história e cultura mexicana, “Quando a Ficção Se Confunde Com a História, Quando a Vida Parece Ficção: Manuel Benício, Heriberto Frías e suas estratégias originais de sobrevivência Intelectual”, tem como elemento central a análise da produção de dois intelectuais e periodistas – um brasileiro, Manuel Benício e, um mexicano, Heriberto Frías – que cobriram, respectivamente, a Guerra de Canudos e a Guerra de Tomóchic, ocorrida no México em 1892. Nesse artigo, o autor analisa artigos de jornal e obras literárias desses dois jornalistas, buscando refletir, dentro do espirito desse volume e de forma interdisciplinar, o que o autor intitula de “o embaralhamento entre o jornalismo e a literatura”, onde podemos acrescentar, também, a história.

Nessa mesma linha interdisciplinar vinculando história e literatura, temos o artigo “Entre enigmas e traumas: memória, história e literatura em três contos de Bernhard Schlink”, dos professores César Martins Souza e Luis Junior Costa Saraiva, que analisa três contos do escritor alemão Bernhard Schlink – A Menina com a Lagartixa, A Circuncisão e Johann Sebastian Bach em Rügen – vinculados à episódios traumáticos da Segunda Guerra Mundial, o texto apresenta uma discussão importante e atual sobre memória e silenciamento de episódios perturbadores e incômodos.

Finalizando os artigos diretamente vinculados ao tema do dossiê, temos “Quando sahir de caza, arme-te com o signal da Cruz”: instruções para a rotina de um menino cristão em um manual pedagógico português do século XVII”, da professora Giana Lange do Amaral e do professor Fernando Cezar Ripe que promove uma análise interdisciplinar, de um manual pedagógico português do século XVII, articulando uma discussão com a Educação, a Literatura de Comportamento Social, o discurso religioso.

Entre os artigos livres optamos por publicador o texto de Victor Andrade de Melo, Vivian Luiz Fonseca e Fabia Faria Peres, intitulado “Patrimônio esportivo: um tema de investigação”, por tratar de um debate entre o patrimônio esportivo e o processo de patrimonialização no Rio de Janeiro. Para os autores, essas ações contribuem para lançar novos olhares para o passado por meio do esporte impactando a maneira de se conceber a cidade através do estimulo às reflexões sobre o espaço público.

O texto de Almir Félix Batista de Oliveira, chamado “E o patrimônio no livro didático de História?” discute a temática do patrimônio cultural inserida no livro didático de História, em torno dos universos escolar e da sociedade. Para o autor, o papel educativo define a identidade e o caráter das relações passado-presente-futuro. Sendo necessário lembrar que a universidade precisa, cada vez mais, discutir o ensino de história, pois é uma das razões de ser da universidade.

O texto de Mariana Martins Villaça, “Cuba e a esquerda uruguaia: o Encontro da OLAS (Organización Latinoamericana de Solidaridad, 1967) nas páginas de Marcha”, apesar de incluído na seção de artigos livres, também dialoga com o tema do dossiê, ao apresentar uma análise do periódico uruguaio de esquerda Marcha, buscando mostrar “[…] os embates entre as organizações políticas a respeito de quais delas integrariam o Comitê uruguaio para participar do Encontro da Olas (Organización Latinoamericana de Solidaridad) em Havana, em 1967, representando, assim, a “vanguarda” da esquerda uruguaia naquele momento”. Nesse trabalho verificamos uma interessante discussão sobre imprensa, cultura e movimentos.

O último artigo desse volume, de Silvana Seabra Hooper, intitulado Geração e Juventude: O debate sobre a geração AI-5, apresenta uma análise do conceito de “geração” e promove uma discussão sobre as características dos jovens que viveram a violência do Ato Institucional nº 5, em 1968.

O volume conta também com uma excelente entrevista, realizada pela professora Jussaramar da Silva, em junho de 2016, com a jornalista Leneide Duarte-Plon, autora da obra “A tortura como Arma de Guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado”. Essa entrevista gira em torno de outra entrevista, que a jornalista fez com o general francês Paul Aussarresses. Esse militar atuou no Brasil como adido militar e foi um dos responsáveis pela disseminação, em território brasileiro, da Doutrina da Guerra Revolucionária ou Doutrina de Guerra Suja.

No fechamento do volume, temos a Notícia de Pesquisa, “Boas maneiras para crianças e jovens: O controle dos corpos na civilidade erasmiana no século XVI” de Ana Luísa Pisani com tema diretamente vinculado à proposta desse dossiê temático, através do pioneiro trabalho literário do humanista do século XVI, Erasmo de Rotterdam, em especial o livro de etiqueta direcionado para jovens.

Esperamos que as páginas dessa revista possam contribuir, mais uma vez, para o debate historiográfico através de uma leitura agradável e instigante. A pluralidade e a diversidade deste volume é nossa aposta no debate, na abertura e no diálogo historiográfico, teórico e temático.

Luiz Antonio Dias

Alberto Luiz Schneider

Os editores


DIAS, Luiz Antonio; SCHNEIDER, Alberto Luiz. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.59, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Revoluções, Revoltas, Resistências / Projeto História / 2017

Cem anos após o acontecimento mais marcante na história social do trabalho, a Revolução Russa, a Projeto História assume o compromisso de levar ao leitor um volume inteiramente dedicado à temática Revoluções, revoltas e resistências. Este é, acima de tudo, um compromisso com a totalidade objetiva da história neste momento decisivo das lutas sociais diante da mais aviltante ofensiva do capital contra o trabalho. Revoluções, revoltas e resistências alude à temática do trabalho e ao seu filósofo mais substantivo, Marx, nas vésperas de se completar duzentos anos de seu nascimento. Vale notar todas as séries de adulterações do pensamento marxiano que desde a época contemporânea ao próprio filósofo já ocorriam. Marx era e continua a ser objeto de um conjunto de interpretações e leituras sumariamente equivocadas, cujo âmbito de gradações tem a envergadura do mais baixo reducionismo stalinista ao mais complexo debate gnosiológico, sem deixar de passar pela detração consciente originada na apologética do capital. Desfigurações desta monta são notadas especialmente nos momentos de crise estrutural do capital, transformando o filósofo do trabalho num monstro quasimodesco, uma foz delta na qual todos os ódios deságuam.

István Mészáros, o mais importante filósofo marxista desde György Lukács, teve protagonismo na análise da ordem sociometabólica do capital, nas questões da ideologia e, especialmente, na definição da particularidade do mundo pós-capitalista que se ergueu na União Soviética e que, agora, urge à problemática da emancipação a remoção deste pesado entulho. Mészáros morreu no outubro em que se completou o centenário da Revolução Russa e deixou uma obra inacabada, o que desnuda o seu vigor: aos 86 anos, Mészáros escrevia Para além do Leviatã, que, segundo ele próprio, tratava-se do seu mais ambicioso projeto intelectual, uma monumental crítica do estado que seria composta em três partes: o desafio histórico; a dura realidade; e a alternativa necessária. Por seus materiais preparatórios, sabemos que o desafio histórico de superar o capital é uma montanha do tamanho do Everest, que a dura realidade é tentativa de elaborar uma alternativa sociometabólica viável cuja tônica é a criação de um modo de produção inteiramente novo, com instrumental produtivo igualmente inédito e superior ao do capital, evitando, deste modo, sua recalcitrância e transcendendo radicalmente em sua essência a hierárquica divisão social do trabalho1.

Um dos méritos de Mészáros é apresentar a alternativa sociometabólica viável não como um postulado ético abstrato ou uma utopia revolucionária idílica, mas como uma possibilidade concreta. Muita vez reduzido a sonho bucólico ou comunismo primitivo, o desenvolvimento técnico-produtivo potencializa o próximo salto da humanidade em seus complexos organizativos. Esta é a verve que anima o artigo inicial do dossiê deste volume da Projeto História, composto pelo pesquisador Claudinei Cássio de Rezende. Neste artigo, intitulado A regência do capital sem capitalismo nas sociedades pós-capitalistas, o debate é em torno de István Mészáros e sobre o ineditismo da experiência socialista, verificado na análise do conjunto das sociedades pós-capitalistas, e apresentando a teorização de José Chasin sobre a barbárie do socialismo de acumulação. Luiz Antonio Dias, por sua vez, traz Notícias do outubro vermelho, de co-autoria de Rafael Lopes de Sousa, apresentando-nos os limites da imprensa brasileira – ainda muito dependente de agências internacionais – a partir da cobertura do Jornal Estado de S. Paulo logo após a sucessão revolucionária de 1917. Nesta ponte entre a revolução internacional e a questão nacional temos a análise de Yuri Martins Fontes sobre A Revolução Russa e a revolução latino-americana, tratando com especial atenção da recepção teórica no nosso continente da ideia de revolução a partir dos anos 1920. Recomposição importante que acentua a necessidade de se entender as estratégias revolucionárias dos processos de 1905 e de 1917, matéria tratada por Alessandro de Moura em O movimento operário russo e suas revoluções: as estratégias de 1905 e 1917. Marly Vianna, autora que é referência nacional sobre a Insurreição de 19352, trata da Importância da revolução socialista de outubro para o PCB. José Arbex Jr., autor premiado com um Jabuti3, junto a Danilo Nakamura escrevem sobre Os camponeses russos sob o olhar da intelligentsia revolucionária dos séculos XIX e XX. Neste artigo, os autores traçam o itinerário da organização populista (narodniki). O último artigo do dossiê trata das Cidades e tensões: movimentos sociais urbanos em São Paulo e a retomada dos territórios de luta em tempos de mundialização do capital, de Fabiana Scoleso.

Na seção de artigos livres, temos Denise Simões Rodrigues abordando Política, memória e educação na Amazônia paraense nos períodos colonial e imperial à luz da teoria de Cornelius Castoriadis, que é seguido por Damián Andrés Bil que aborda, em espanhol, A crise mundial do setor automotivo (1978-1982) e os efeitos sobre o complexo na Argentina. Elizangela Barbosa Cardoso escreve sobre Infância, Médicos e Mulheres em Teresina nas Décadas de 1930 e 1940, encerrando esta parte. As resenhas de Iago Augusto Martinez de Toledo e de Paulo Fernando Souza Campos apresentam novidades editoriais sobre o revisionismo histórico e a liquidação do pensamento revolucionário – perspicaz análise deste jovem pesquisador em tom de ensaio –, no primeiro, e sobre feminismo, etnia e classe, no segundo.

Em outubro realizamos na PUC-SP, coordenado por Antonio Rago Filho e seu núcleo, um grandioso seminário internacional sobre os 100 anos da Revolução Russa, contando com a presença de Michael Löwy, Tariq Ali, Tamás Krausz4, Miguel Vedda, Alan Woods, Sean Purdy, Osvaldo Coggiola e dezenas de outros estudiosos mundialmente reconhecidos por esta área de atuação intelectual.

Notas

1 Cf. o prefácio de Claudinei Cássio de Rezende na obra SANTOS, Antonio Carlos dos. Eric Hobsbawm e a Revolução Russa. Curitiba: Editora Prismas, 2017

2 VIANNA, Marly. Revolucionários de 1935. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

3 Prêmio Jabuti de melhor livro de reportagem por ARBEX, José. O século do Crime. São Paulo: Boitempo, 1998.

4 Destacamos a publicação da biografia de Lenin por Tamás Krausz pela Boitempo Editorial, intitulada Reconstruindo Lenin, fruto de mais de quatro décadas de trabalho deste historiador húngaro.

Antonio Rago Filho

Carlos Gustavo Nobrega de Jesus


RAGO FILHO, Antonio; JESUS, Carlos Gustavo Nobrega de. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.60, 2017. Acessar publicação original [DR]

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A medicina financeira. A ética estilhaçada – VIANNA SOBRINHO (TES)

VIANNA SOBRINHO, Luiz. A medicina financeira. A ética estilhaçada. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. 336p. Resenha de: CASTIEL, Luis David. A dimensão financeira da medicina em questão. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.1 , jan./abr. 2017.

A revista Piauí de setembro de 2015 apresenta como matéria de capa a reportagem “O lobby dos remédios”, intitulada “Intoxicado de ofertas”. Um médico pesquisador participa de um congresso de psiquiatria com o firme propósito de se oferecer como ‘prescritor’ aos desígnios do bric-a-brac do marketing da indústria farmacêutica de psicofármacos. E faz fila para receber lanches, ganha brindes de qualidade, serventia e gosto duvidosos, joga videogames – num deles sua missão é salvar uma jovem da depressão munido de um antidepressivo virtual. Ao final da jornada, sai com seis sacolas com quase nove quilos de bugigangas e ainda conclui que, de certa forma, esta promiscuidade pode ser tratada alegoricamente com uma dose de benevolência, como um polvo, do qual os braços ‘somos todos nós’, assim como o alimento. Mas de quem é a cabeça do polvo?

Apesar de inegáveis benefícios farmacológicos dos medicamentos, é difícil sustentar uma postura de atenuar e relativizar a atuação poderosa e notadamente abusiva da indústria farmacêutica – no contexto do neoliberalismo sustentável em suas estratégias mercadológicas. Estas são identificadas por estudiosos do campo por visarem a proliferação contínua do consumo de medicamentos por meio de recursos eticamente discutíveis (Elliott, 2010), algo como o lado escuro da força da Big Pharma. Por exemplo: a minimização/omissão de efeitos farmacológicos adversos; a aquisição do uso de nomes de pesquisadores (com anuência destes) como autores de artigos favoráveis ao uso seguro da droga escritos por ghostwriters da própria indústria; a realização de dispendiosos ensaios clínicos com resultados que legitimam a inclusão de resultados favoráveis enviesando metanálises ao evitar a publicação de resultados desfavoráveis; o reforço à utilização abusiva de órteses e próteses, práticas de oferecer viagens, refeições, financiamento para eventos, brindes vários, entre outros agrados e lembranças que seduzem médicos, farmacêuticos e inclusive bioeticistas.

Inclusive, está documentado que pesquisadores da indústria farmacêutica elaboram uma nova droga e, conforme seu espectro de efeitos farmacológicos, profissionais do marketing da empresa devem vinculá-la ao tratamento de determinadas afecções e promover seu uso junto aos médicos como o tratamento ‘mais indicado’. Isto pode até implicar em encontrar uma doença incomum cujas respectivas fronteiras possam ser expandidas para incluir mais pacientes ou redefinir aspectos desagradáveis da vida cotidiana como patologia médica (por exemplo: a distimia, que tem o mau humor como sintoma). Este fenômeno costuma fazer parte destacada do que pode também ser designado por ‘medicalização’. Elliott (2010) enfatiza que a medicina já foi encarada como uma profissão, não como um negócio. Hoje os empreendimentos médicos são enormes e é duro admitir que o código de confiança implícito entre médicos, pacientes, pesquisadores e sujeitos de pesquisa não está mais assegurado.

Em uma matéria publicada no Le Monde DiplomatiqueQuentin Ravelli (2015) descreve as estratégias de ‘marketing’ da Big Pharma, representada pela gigante Sanofi-Aventis. Os médicos que mais interessam são aqueles com alto ‘potencial de prescrição’. Para localizá-los, há um bom tempo existem programas computacionais que os mapeiam por intermédio de dados coletados junto a distribuidores e com base nas vendas diretas em farmácias que exigem a apresentação e retenção de receitas. Além disto, são agregadas outras informações veiculadas por enquetes ad hoc de médicos.

Em busca de maior efetividade em suas ações, os setores de marketing elaboram uma tipologia de perfis de médicos: aqueles vinculados a movimentos sindicais, os afáveis e potencialmente receptivos, os acadêmicos, os ansiosos, os resistentes às investidas. Em síntese, o que interessa é sobrepujar qualquer enfrentamento retórico com argumentos e práticas que obtenham a fidelização dos prescritores aos medicamentos produzidos pela empresa. Isto se dá mediante treinamentos/workshops com vistas à formação de representantes hábeis em chegar aos resultados comercialmente desejáveis: o consumo dos produtos pelos pacientes. Para tanto, deve-se obter a aquiescência aos argumentos convenientes enunciados pela indústria farmacêutica.

Para resenhar e comentar este livro que aborda a dimensão financeira das práticas atuais da medicina, é preciso falar do seu autor. Talvez assim seja possível esclarecer não apenas seu conteúdo, mas algo que se sobressai da leitura, a inevitável ironia crítica que atravessa seus argumentos.

O autor é um médico cardiologista que também teve uma experiência na gestão técnica de um sistema de seguro de saúde de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde. A origem desta importante obra se localiza numa dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas que foi retomada, ampliada, atualizada e desenvolvida por iniciativa persistente do autor durante quase uma década.

Desde logo, percebe-se a estrutura acadêmica do livro. Impressiona a extensão do texto, a grande quantidade de referências e notas de rodapé. Mas esse formato é amenizado pela apresentação de exemplos provenientes da literatura e do cinema, e também de narrativas de eventos pessoais, muitas vezes, exibindo uma coragem admirável.

Vale repetir que o estilo empregado incide numa mordacidade que se harmoniza com a perspectiva de crítica necessariamente indignada diante das contradições precarizantes dos modos como se configuram atualmente as muitas engrenagens das cadeias de produção e consumo de sistemas e práticas de saúde. O livro também tem a ousadia de descrever aspectos que transitam pela hipocrisia por parte dos agentes que participam de situações que transitam por uma banalização do mal.

Assim, somos postos diante de médicos cujas práticas são configuradas por uma perspectiva de um neoliberalismo sustentável, abandonando o papel de cuidador e assumindo o lugar de gestor de condições de saúde, em função de critérios que ajustam meios e fins gerencialmente definidos. Tais médicos implodem a relação médico-paciente e diante do cliente (não mais um paciente, alguém que padece de algo), e tendem a se tornar profissionais impessoais que prestam serviços padronizados de qualidade variável, cuja efetividade em termos de resolução dos problemas dos pacientes é discutível.

Há uma atuação abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos que chega praticamente a uma forma mal disfarçada de suborno de médicos. São oferecidos presentes que participam, como indica o subtítulo, do estilhaçamento da ética, pois, por mais que os médicos achem que isto não influi no ato médico em si, há estudos que mostram como existem efeitos destas práticas na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes.

São descritas as práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que não conseguem camuflar os interesses mercantis na determinação dos níveis de capacidade de consumo de saúde dos clientes. Desta forma, assistimos à metamorfose precarizante daqueles que eram designados como ‘pacientes’ em ‘consumidores’.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de ‘realidade’ em questão, nem aspectos que são incluídos, não-incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Além disto, importa mencionar que há evidências suficientes acerca dos enviesamentos que as corporações farmacêuticas geram nos resultados de ensaios clínicos que escamoteiam a real efetividade e os efeitos adversos dos novos fármacos postos no mercado. Da mesma maneira, não se apresentam sob a forma de publicação os resultados de estudos que apontam para achados desfavoráveis em relação aos medicamentos experimentados.

Este quadro inevitavelmente contamina a cadeia de produção de ‘guidelines’ que sustentam o gerencialismo baseado na lógica de adequação de custos em termos de insumos e produtos/serviços. Isto cinicamente termina por prover na extremidade do paciente a provisão de ‘cuidados’ de saúde já definidos, na sua origem, por um selo imaginário de qualidade precária. Por mais duro que possa parecer, é impossível se conter e não enfatizar a dimensão de cinismo que se manifesta nas práticas cotidianas de (des)atenção à saúde.

Os leitores do livro irão perceber configurações que muitos irão vincular a penosos eventos como pacientes ou como pessoas de sua família. A origem da palavra ‘paciente’ indica sua posição como alguém que está afetado por algo que o ameaça ou o faz sofrer ou o deixa enfraquecido diante das demandas da sua vida (enfermo é aquele que está num estado de debilidade; doente é originalmente aquele que sente dor). Não se trata do sentido de quem é obrigado a ter paciência, que aguenta com resignação não só a manifestação de sinais e sintomas, mas, também, ao alto risco de ser maltratado durante seus encontros com as incômodas facetas do atual Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

Referências

AMARAL, Olavo. Intoxicado de ofertas. Revista Piauí, Rio de Janeiro, n. 108, p. 20-28, set. 2015. [ Links ]

ELLIOTT, Carl. White coat, black hat. Adventures on the dark side of medicine. Boston: Beacon Press, 2010. [ Links ]

RAVELLI, Quentin. Nos subterrâneos da indústria farmacêutica. Le Monde Diplomatique. Disponível em: <http://outraspalavras.net/destaques/nos-subterraneos-da-industria-farmaceutica>. Acesso em: 25 dez. 2015. [ Links ]

Luis David CastielEscola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil <luis.castiel@ensp.fiocruz.br>

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Medicalização em psiquiatria – FREITAS; AMARANRE (TES)

FREITAS, Fernando; AMARANRE, Paulo. Medicalização em psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015. 148p. Resenha de: WHITAKER, Robert. Uma leitura crítica da medicalização em psiquiatria. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15, n.1,  jan./abr. 2017 .

A psiquiatria moderna tem nos proporcionado uma nova forma de pensar sobre nós mesmos, e nesse curto e fascinante livro, Medicalização em psiquiatria, Fernando Freitas e Paulo Amarante apresentam um conjunto de evidências e argumentos da percepção empobrecida feita sobre nós humanos. Os dois autores também detalham como o atual paradigma de cuidado da psiquiatria é construído sobre ‘ficções’. O livro é concluído com um olhar sobre terapias alternativas promissoras e, como tal, advoga fortemente a necessidade de se repensar os fundamentos do cuidado psiquiátrico.

Se o livro Medicalização em psiquiatria pode ser descrito como uma nova adição à crescente biblioteca internacional de livros de ‘psiquiatria crítica’, é notável que, nesse âmbito, ambos os autores têm posições de liderança dentro do establishment em Saúde Mental.

Paulo Amarante, psiquiatra, é reconhecido por décadas de trabalho e de luta pela reforma da atenção psiquiátrica no Brasil. No final da década de 1980, após ter estudado com Franco Basaglia e outros psiquiatras italianos que desenvolveram o cuidado comunitário em seu país de origem, Amarante militou e colaborou na redação da legislação de saúde mental que tem levado à desinstitucionalização no Brasil. Hoje, ele é o presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), e professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, unidade científica da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), instituição vinculada ao Ministério da Saúde. Fernando Freitas, psicólogo, é ex-diretor da Abrasme e, como Amarante, é professor e pesquisador da Ensp/Fiocruz.

A beleza do livro começa a se tornar evidente no primeiro capítulo, onde ambos proporcionam um contexto filosófico amplo para se entender o que a psiquiatria biológica moderna tem feito. Escrevem sobre a ‘medicalização’ da vida moderna e as consequências que ela tem para nós como indivíduos. É um fenômeno que surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial; e enquanto avanços médicos – como o descobrimento de antibióticos – ajudaram a pôr controle sobre muitas doenças, o crescimento da indústria médica encorajou o cidadão moderno a ver a si próprio através das lentes médicas de ‘o que há de errado comigo’. Isso é particularmente verdadeiro na psiquiatria.

Dessa forma, Freitas e Amarante lembram aos leitores o que está em jogo. Medicalização pode se tornar um meio de controle social, com o indivíduo encorajado a adotar o ‘papel de doente’, o que leva à perda da autonomia individual. Nós somos encorajados a pensar que é ‘anormal’ sofrer, ou experimentar dor em nossas vidas, quando, claro é que, como qualquer busca na literatura irá nos lembrar, o sofrimento é inerente ao ser humano.

No que diz respeito à medicalização de nossas vidas emocionais, ela tem sido alimentada por uma ‘aliança profana’ que foi formada – como os autores apontam – entre a psiquiatria acadêmica e a indústria farmacêutica nos Estados Unidos na década de 1980. As empresas farmacêuticas passaram a contratar psiquiatras de escolas médicas prestigiadas daquele país para servirem como seus consultores, conselheiros e porta-vozes. Tal aliança passou a contar ao público uma narrativa sobre grandes avanços científicos. Pesquisadores haviam descoberto que os transtornos mentais eram ‘doenças cerebrais’ causadas por ‘desequilíbrios químicos’ no cérebro, e que poderiam ser então corrigidas por uma nova geração de drogas psiquiátricas. Com a difusão dessa narrativa para o público, o consumo de drogas psiquiátricas nos Estados Unidos explodiu, e, rapidamente, essa ‘aliança profana’ conseguiu exportá-la para o Brasil e outros países desenvolvidos em todo o mundo.

Freitas e Amarante proporcionam uma desconstrução sucinta dessa narrativa, começando com a crise existencial que por fim levou a Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês) a adotar sua narrativa de ‘modelo baseado na doença’. Nos Estados Unidos, assim como igualmente se passava em muitos outros países, os psiquiatras nos anos 1960 geralmente não eram vistos como ‘médicos de verdade’. Então, no início dos anos 1970, o psicólogo David Rosenhan, da Universidade de Standford, publicou um estudo que publicamente humilhou a profissão.

Rosenhan e outros sete voluntários ‘normais’ se apresentaram em hospitais psiquiátricos, afirmando que ouviam uma voz que dizia ‘vazio’ ou alguma outra palavra simples. Todos foram admitidos e diagnosticados como ‘esquizofrênicos’, e ainda que eles se comportassem normalmente dentro do hospital, nenhum membro da equipe hospitalar – incluindo psiquiatras – identificou-os como impostores. Em contraste, os outros pacientes no hospital os reconheceram. Os ‘loucos‘ no hospital manifestaram muito mais discernimento que os profissionais.

Essa humilhação – e outros desafios sociais para a sua legitimidade – forçou a APA a refazer o seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM). A corporação profissional precisava apresentar os psiquiatras ao público como ‘médicos de verdade‘, e, em 1980, foi publicado o DSM III, que passou a ser propagandeado como um grande avanço científico, por passar a ser um manual de ‘doenças’ e de ‘transtornos’ reais que poderiam ser confiavelmente diagnosticados. Mas, como Freitas e Amarante escrevem, o DSM – que se tornou a ‘bíblia’ mundial da psiquiatria – não é baseado na ciência. Os diagnósticos são ‘constructos’ com critérios de sintomas arbitrariamente definidos; 35 anos de pesquisa têm fracassado em validar qualquer um dos transtornos mentais como doenças distintas.

Com o DSM III em mãos, a psiquiatria americana passou a nos persuadir a acreditar na noção de que depressão, ansiedade, psicose e outros transtornos mentais são causados por desequilíbrios químicos no cérebro. Essa narrativa é a de que as doenças cerebrais podem ser tratadas com sucesso por meio de medicamentos. Mas, como os autores explicam, pode-se considerar que a hipótese química tenha sido derrubada em 1996, quando Stephen Hyman, à época diretor do Nacional Instituto de Saúde Mental (NIMH) nos Estados Unidos, escreveu um artigo sobre como as drogas psiquiátricas ‘perturbam’ a função normal do cérebro em vez de corrigir um desequilíbrio químico. Remédios psiquiátricos, conforme os autores corretamente explicam, fazem o seu ‘cérebro funcionar anormalmente’.

Dessa forma, Freitas e Amarante desconstroem o ‘mito’ da psiquiatria moderna passo a passo. Em seguida, revisam a literatura de resultados sobre antipsicóticos e antidepressivos. Essa sessão talvez pareça particularmente surpreendente para leitores leigos. Um olhar atento à pesquisa revela que as drogas não proporcionam particularmente um benefício maior em relação ao placebo, nem mesmo em curto prazo, e que, a longo prazo, pacientes sem medicação – e isso é verdade até para aqueles diagnosticados com esquizofrenia – têm melhores resultados.

Então, o que há para ser feito? Se o Brasil e outras sociedades têm organizado o seu cuidado em torno de uma falsa narrativa, quais novos caminhos podem ser achados para ajudar aqueles que sofrem com suas mentes? No seu capítulo de encerramento, Freitas e Amarante descrevem um caminho à frente. Eles discutem vários programas terapêuticos, no passado e no presente, que têm focado em proporcionar um cuidado psicossocial e fazendo uso limitado – ou não – de medicações, que têm provado ser bastante bem-sucedidos. Em particular, falam da abordagem do ‘Diálogo aberto’ (Open dialogue) empregada no norte da Finlândia, que tem produzido notáveis resultados a longo prazo para as pessoas diagnosticadas com transtornos psicóticos.

Em suma, os dois autores visam um novo paradigma de cuidados que possa ‘oferecer uma atenção psiquiátrica’ fora dos manicômios e que não crie pacientes crônicos. Em outras palavras, Freitas e Amarante visam um paradigma de cuidado que ajude as pessoas que lutam com as suas mentes a verdadeiramente se recuperarem e poderem levar as suas vidas da melhor forma possível.

*Tradução de Flávio Sagnori Mota e Nina Isabel Soalheiro, integrantes da equipe do Grupo de Pesquisa Desinstitucionalização, Políticas Públicas e Cuidado da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Robert WhitakerJornalista especializado em Medicina e Ciência, presidente da Mad in America Foundation, Cambridge, MA, EUA <rwhitaker@madinamerica.com>

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Fronteiras e Migrações / História e Diversidade / 2017

O Dossiê Fronteiras e Migrações reúne abordagens a partir de resultados de pesquisas que discutem essas temáticas, em especial, a relação entre concepções sobre fronteira e o fenômeno das migrações. A migração como fenômeno humano é um debate recorrente na História, sobretudo, se considerarmos os deslocamentos como estratégias de sobrevivência, de realizações e aspirações diversas e outras perspectivas de vida. Essas discussões se tornam emergentes quando dirigimos nossa atenção para situações pontuadas por crises financeiras, em maior ou menor grau, estado de guerra com várias conotações político-ideológicas ou étnicas, catástrofes e perseguições de diferentes naturezas e todas as formas de refúgios e exílios. Com a mesma densidade a temática “fronteiras” tem um formato caleidoscópico e, portanto, permite discussões abrangentes que, do ponto de vista epistemológico, abarca todos os campos do conhecimento em várias temporalidades.

As discussões e concepções sobre fronteira estão dispostas em um campo polissêmico de situações que abrange conceitos, vivências e experiências dos que habitam e dos que estudam os diversos espaços fronteiriços em várias dimensões. Tomando por base a escrita do historiador Arno Alvarez Kern (2016, p. 11) “o conceito de fronteira é utilizado a partir de uma escolha deliberada e racional, buscando respostas para os questionários científicos que estabelecemos sobre as situações limites, nos territórios onde sociedades e culturas diferentes se encontram e se confrontam”. Das vivências dos territórios (trans) fronteiriços ressaltam o caldo de culturas, as formas de sobrevivência, o pertencimento ao lugar e a constituição de múltiplas identidades.

Como acontecimento demarcador da existência humana e, em especial na atualidade, os fluxos migratórios são complexos e alguns deles se assemelham à calamidades demarcadas por dramas familiares, condições econômico-sociais adversas alocadas nos desdobramentos de uma economia global pontuada por uma distribuição desigual de rendimentos e de riquezas. Esse quadro produz cada vez mais restrições de acesso aos bens indispensáveis às vivências humanas como, por exemplo, a falta de oportunidades de trabalho ou mesmo o subemprego e a sub-vivência. Os conflitos armados, a depuração étnica, a violação de direitos universais, perseguições e a ineficiência de governos e / ou a falta de políticas públicas capazes de acolher as populações mais vulneráveis também são razões para que contingentes populacionais se desloquem de um lugar para outro e para outros mais.

Nessa perspectiva, o mencionado dossiê apresenta seis textos. Em “Imigrantes e migradores: a fronteira em movimento” a historiadora Márcia Solange Volkmer analisa a densidade populacional na fronteira Brasil / Argentina a partir de correntes migratórias oriundas das províncias da Confederação Argentina e da Europa, além dos imigrantes brasileiros. As formas em que se estabelecem as relações transfronteiriças no espaço platino também são tratadas pela autora. Com o texto “Deslocamentos de ontem e de hoje na fronteira Brasil-Guiana: quem são os novos personagens (e as causas) da história atual?”, a antropóloga Mariana Cunha Pereira discute os deslocamentos contínuos e temporários que instituem vivências na fronteira do Brasil com a Guiana, tendo como fundamento os processos de colonização dos espaços fronteiriços desde o século XIX. O trabalho explora os sentidos das relações interétnicas situando-os nos panoramas socioeconômico e cultural para dar visibilidade às complexas questões de nacionalidade de ambos os lados da fronteira.

Em seguida, com o texto “Movilidad pendular transfronteriza de trabajadoras paraguayas entre Ciudad del Este (Paraguay) y Foz do Iguaçu (Brasil)”, os autores Arnaldo González Aguilera e Pedro M. Staevie recorrem às fontes orais para abordar a costumeira travessia dos territórios fronteiriços entre Brasil e Paraguai – Ponte da Amizade –, privilegiando as atividades laborais femininas e as estratégias de sobrevivência familiar. No quarto texto intitulado “Deslocamentos humanos: brasileiros e bolivianos no painel da globalização e da imigração transfronteiriça” a historiadora Maria do Socorro S. Araújo traz uma discussão sobre os arranjos econômicos globais, ou seja, o processo de globalização e as contradições / desigualdades derivadas do mesmo, incluindo a divisão internacional do trabalho. Nesse contexto, a autora situa e aborda os deslocamentos humanos na fronteira oeste Brasil-Bolívia destacando o fluxo de bolivianos que buscam a sobrevivência em territórios brasileiros. Da mesma forma, o texto apresenta a imigração do tipo pendular que habitualmente acontece no mesmo espaço transfronteiriço, onde brasileiros e bolivianos constroem um cotidiano para além das nacionalidades.

O texto do professor e historiador Carlos Edinei de Oliveira destaca os processos de colonização recente em Mato Grosso, na segunda metade do século XX, nos municípios de Tangará da Serra, Campo Novo dos Parecis e Sapezal, territórios tradicionalmente ocupado por diferentes povos indígenas. Esses espaços são ocupados por populações oriundas de diferentes lugares do Brasil, provenientes dos fluxos migratórios que compuseram a nova fronteira agrícola do centro oeste. O autor rastreia o movimento de colonização que iniciou na Era Vargas, passando pela política desenvolvimentista do governo Kubitschek e se efetivando durante e pós-ditadura civilmilitar brasileira. Como fontes documentais, as abordagens se remetem às mensagens dos governadores de Mato Grosso, às propagandas imobiliárias publicadas em jornais e revistas e panfletos de prefeituras municipais.

Nessa perspectiva de discussões, por último, apresentamos o texto intitulado “Reflexões acerca da História de Sinop / MT: imigração e fronteira agrícola”, do professor e historiador Edison Antonio de Souza. Nesse trabalho, o autor faz uma leitura sobre a constituição da cidade enquanto espaço urbano decorrente da expansão da fronteira agrícola no Estado, durante a década de 1970, viabilizada como projeto originário de colonização. As abordagens versam sobre as condições políticas e econômicas com as quais as “cidades novas” se estabelecem no estado de Mato Grosso, destacando a relação direta com a economia do agronegócio.

Além do Dossiê, este número apresenta seis Textos Extras de autores de diferentes regiões e instituições brasileiras, contemplando estudos e debates acerca de questões como: revolução francesa, surdez e ensino de história, leprosários na Era Vargas, relatos orais de pracinhas e ensino de história, escravismo no sul do Brasil e pena de morte no Brasil Imperial.

O primeiro texto de autoria de Bruno Mesquita Falcetti com o título “A revolução francesa: panorama histórico e os efeitos que moldaram a sociedade contemporânea”, apresenta uma análise a respeito das consequências da Revolução Francesa para a sociedade contemporânea, tendo como referência de análise as seguintes questões: processo histórico de construção; aspectos sociais, relações de poder e estrutura dos Estados europeus na década de 1780; narrativa histórica; fatores que levam Napoleão Bonaparte a tornar-se o principal ator no pós-revolução e nas guerras e nova república, assim como os efeitos e influências da revolução francesa no ambiente internacional do século XIX.

O segundo texto, de autoria de Ernesto Padovani Netto, aborda uma questão crucial e pouco discutida na área da História. Com o título “À margem da historiografia e sem acesso às aulas de História: cultura e identidade surda na luta pelas conquistas de direitos”, o artigo apresenta um debate sobre a comunidade surda como um grupo de sujeitos históricos, vinculados por uma noção de identidade, mas não inclusos na historiografia e “excluídos” das aulas de história, em virtude da condição de surdos.

Já o terceiro artigo, de autoria de Ivan Ducatti e Terezinha Martins dos Santos Souza, apresenta um estudo acerca do tratamento dispensado aos leprosos no Brasil de Vargas. Com o título “A prisão em nome da saúde: o isolamento compulsório em leprosários no Brasil de Vargas”, os autores analisam o isolamento compulsório de portadores de hanseníase no Brasil a partir da década de 1930, destacando-a como um período marcado por fortes questões totalitárias, como o nazifascismo, influenciando o pensamento brasileiro e legitimando ações governamentais.

O quarto artigo“O relato vivo como evidência para a aprendizagem de história, a partir de experiências com Pracinhas”, de Jucilmara Luiza Loos Vieira, apresenta o resultado de um estudo desenvolvido com alunos do terceiro ano do ensino médio, sobre os pracinhas na segunda guerra mundial. Por meio de relatos orais de pracinhas, o estudo evidenciou a importância dos relatos para a formação da consciência histórica na relação entre passado, presente e futuro.

Por sua vez, o quinto artigo intitulado “O negro na sociedade escravista do Alegrete oitocentista: trajetórias e lutas pela liberdade”, de autoria de Márcio Jesus Ferreira Sônego, apresenta um estudo sobre as relações estabelecidas entre senhores e escravos em Alegrete no século XIX, com o objetivo de compreender as lutas empreendidas pelos escravizados em busca da liberdade. Por último, o sexto artigo de autoria de Oseas Batista Figueira Junior, com o título “Crime e castigo: pena de morte e a manutenção da ordem no Império Brasileiro (1830-1876)”, apresenta um estudo sobre como a elite imperial atuou para enfrentar e conter as agitações populares que ocorreram no Brasil do séc. XIX, examinando as formas de controle social criadas e a eficácia de tais instrumentos de controle.

Desejamos à todos bons momentos de leitura e aprendizado!

Cáceres / MT, dezembro de 2017

Maria do Socorro de Sousa Araújo (UNEMAT)

Osvaldo Mariotto Cerezer (Editor)


ARAÚJO, Maria do Socorro de Sousa; CEREZER, Osvaldo Mariotto. Apresentação. História e Diversidade. Cáceres, v.9, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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La frontera sur de Buenos Aires en la larga duración – Victoria Pedrotta e Sol Lantieri

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Victoria Pedrotta /norbertomollo.blogspot /

PEDROTTA V La fronrera sur de Buenos Aires en larga duracionDesde la perspectiva de los estudios de frontera, este libro tiene la particularidad de integrar un diverso conjunto de miradas, que de forma separada e independiente, se han venido desarrollando en relación al estudio de los distintos procesos que tuvieron lugar en la frontera sur de la Provincia de Buenos Aires, particularmente en la zona comprendida por los actuales partidos de Azul, Tapalqué y Olavarría. Gracias a la iniciativa allá por el 2013 de las directoras del libro, Victoria Pedrotta y Sol Lanteri, la obra es fruto de un estrecho trabajo de colaboración entre especialistas provenientes de la antropología social, la arqueología y la historia.

El libro se compone de siete capítulos, para cuya articulación las directoras pensaron en dos ejes temáticos, espacio y territorio, abordados desde una perspectiva multidisciplinar y de larga duración. De este modo, se fijó como propósito general del texto la puesta al día de las investigaciones sobre los procesos de construcción del espacio y el territorio de la frontera sur bonaerense desde tiempos prehispánicos hasta la actualidad. Como veremos a continuación, a través de los sucesivos capítulos el lector podrá interiorizarse en los cambios, las continuidades, los actores sociales, sus prácticas y en la multiplicidad de representaciones de dichos procesos.

El Capítulo 1 “El uso del espacio, la movilidad y los territorios en grupos cazadores-recolectores pre-hispánicos del centro de los pastizales pampeanos” escrito por Pablo G. Messineo, inaugura la obra con un exhaustivo análisis y discusión crítica de la información arqueológica relativa al uso del espacio, la movilidad y los territorios a lo largo del tiempo, por parte de las poblaciones cazadoras-recolectoras en el centro de los pastizales pampeanos. Uno de los aportes más importantes que ofrece este capítulo es, precisamente, la perspectiva espacialmente amplia y de larga duración con la que el autor presenta y discute la evidencia arqueológica.

De este modo, Messineo evalúa las estrategias de los grupos humanos en función de los tres ejes de discusión propuestos al comienzo del capítulo. Para ello considera distintos modelos –económicos, sociales e ideológicos- para dar cuenta de la territorialidad, abarcando desde el Holoceno temprano hasta el período post-contacto y sin perder nunca de vista los cambios resultantes de la dinámica paleoambiental. El enfoque del autor contempla así las tres etapas cronológicas en las que se segmenta el Holoceno, empleando múltiples líneas de evidencia recuperadas a lo largo del tiempo mediante investigaciones arqueológicas en los partidos de Olavarría, Azul y Tapalqué, sumando a esto los contextos de áreas adyacentes.

Victoria Pedrotta en el Capítulo 2 “Recursos, espacio y territorio en las sierras del Cayrú (siglos XVI-XIX, región pampeana argentina)” examina y discute en profundidad la territorialidad y las formas en que ocuparon el espacio las poblaciones indígenas e hispano-criollas de la región pampeana.

Desde un enfoque holístico, la autora presta especial atención a los cambios ecológicos, económicos, sociales y simbólicos resultantes de la introducción de los recursos faunísticos y vegetales por parte de los europeos desde el siglo XVI en adelante. Su área de estudio comprende las denominadas sierras del Cayrú -topónimo que se remonta a mediados del siglo XVIII- y cuya ubicación corresponde al extremo occidental del Sistema serrano de Tandilia (Provincia de Buenos Aires). Es significativo señalar la importancia estratégica que esta área tuvo en las rutas de circulación y en las redes de intercambio y comercio interétnico a lo largo del tiempo. Subrayamos asimismo, la elección de la perspectiva geográfica para definir y abordar los conceptos de territorio y territorialidad, enfatizando el carácter complejo, dinámico y relacional de los mismos. Desde un punto de vista metodológico, es destacable la multiplicidad de fuentes de evidencia de las que se vale la autora para abordar su problemática de investigación. En este sentido, a través de un riguroso y exhaustivo análisis, Pedrotta confronta críticamente variados registros documentales, que incluyen distintos tipos de fuentes escritas así como cartográficas.

Este abordaje se completa a partir del análisis de la diversa evidencia arqueológica disponible para el área de estudio. La articulación entre el enfoque teórico y la perspectiva metodológica seleccionados, imprimen una complejidad y una riqueza indispensables al análisis realizado por la autora y permiten comprender los procesos experimentados y representados por las sociedades indígenas e hispano-criollas en el centro de la Provincia de Buenos Aires.

En el Capítulo 3 “Colonización oficial en la frontera. Azul en el siglo XIX”, Sol Lanteri analiza en detalle las condiciones y los mecanismos implementados, en principio por el gobierno rosista, para poner en práctica la colonización, poblamiento y defensa del actual partido de Azul, sin dejar de discutir los cambios y continuidades de dichas políticas hasta fines del siglo XIX. Como bien señala la autora la expansión hacia el sur de la campaña bonaerense tuvo por finalidad consolidar el dominio del Estado provincial y articular las tierras en un modelo productivo de carácter predominantemente ganadero.

Para llevar adelante su análisis, Lanteri considera de forma conjunta las primeras trazas del pueblo y ejido, el área rural y la política de relaciones interétnicas en el marco del “Negocio Pacífico” con los indígenas. En el caso particular de Azul, como en otras áreas, implicó negociaciones para reubicar las tolderías de los “Indios Amigos” en otras zonas y fomentar la colonización criolla, aunque especialmente allí los grupos catrieleros tuvieron un largo arraigo territorial. Se destaca la claridad de la autora para analizar cómo fue este complejo proceso de territorialización y colonización interna.

Así, Lanteri describe la peculiar modalidad de distribución de la tierras fiscales mediante las denominadas “donaciones condicionadas” de suertes de estancias, sin perder de vista el marco normativo, la praxis social y los derechos de propiedad en la mediana duración.

Laura Carolina Belloni en el Capítulo 4 “La política indígena del Estado de Buenos Aires en la frontera sur. Azul y Tapalqué entre 1852 y 1862”, ofrece, a partir de un acercamiento micro-regional, un análisis de las políticas de fronteras e indígenas desarrolladas en la dinámica y conflictiva década que va desde la caída de Juan Manuel Rosas (1852) hasta la asunción al poder nacional de Bartolomé Mitre (1862). A través de la aguda mirada de la autora es posible entrever los vaivenes de las políticas y las relaciones entre el Estado de Buenos Aires y los grupos indígenas en las áreas de Azul y Tapalqué. De este modo, con gran precisión, Belloni expone las marchas y las contramarchas asociadas al manejo de las fronteras, expresadas en la oscilación entre el fracaso de políticas militares ofensivas y la concertación a regañadientes de tratados pacíficos con los indígenas y sus caciques principales, como Catriel, Cachul, Calfucurá y Yanquetruz, entre otros. Si una cosa queda clara a partir del análisis, es la incompetencia del Estado de Buenos Aires, luego de la caída de Rosas, para manejar las relaciones de poder con las parcialidades indígenas. En ello no solo tuvo que ver la subestimación del poder de choque de los indígenas, sino también la inexperiencia de los funcionarios para el trato con éstos y la escasez de fuerzas militares, así como de suministros y armamento para las mismas.

El Capítulo 5 “La Pampa del Siglo XIX vista desde el camino de los chilenos” elaborado por Julio Merlo y María del Carmen Langiano, viene a ser un complemento perfecto del capítulo anterior, por cuanto los autores ofrecen al lector una detallada síntesis de las investigaciones arqueológicas en una serie de fuertes y fortines en la Provincia de Buenos Aires. Creados durante las variables condiciones políticas en el siglo XIX, una de las particularidades de estos asentamientos de carácter predominantemente militar, es que se encontraban situados en el “Camino de los indios a las salinas” o “Camino de los chilenos”, entre otras denominaciones dadas al camino que unía las tierras al sur del río Salado con los pasos bajos de Chile. De este modo, los sitios arqueológicos analizados corresponden a: Fuerte Blanca Grande, Localidad El Perdido, Fortín Arroyo Corto, Fuerte Lavalle Sur, Fortín La Parva, Fortín Fe y Fuerte San Martín.

Dado que todos ellos se situaron en sectores del espacio previamente ocupados por pueblos originarios, los autores evalúan, a partir del registro histórico y arqueológico, los cambios –ambientales, sociales y materiales- producidos en el paisaje fronterizo pampeano bonaerense, así como en las relaciones interétnicas a medida que el estado argentino iba avanzando y apropiándose del territorio indígena. En todos los casos de estudio, Merlo y Langiano dan cuenta del abordaje metodológico y los resultados principales del análisis de múltiples líneas de evidencia arqueológica.

Carlos A. Paz, Ludmila D. Adad y Alicia G. Villafañe presentan un giro temático en el Capítulo 6 en relación a los apartados anteriores. Dicho capítulo se titula “Culturas del trabajo y cambios territoriales. El rescate de la memoria histórica como estrategia de recuperación de las formas de vida, oficios y tradiciones técnicas de la minería del Partido de Olavarría”, tiene como propósito general describir y contextualizar el desarrollo de la producción minera –cal y cemento principalmente- en las Sierras de Olavarría. Para ello, los autores adoptan un enfoque multidisciplinario donde se integran las miradas de la antropología, la historia y el patrimonio con el objeto de comprender los cambios paisajísticos, productivos y sociales en el área de estudio a lo largo de 140 años. Es destacable el desarrollo del abordaje teórico y los conceptos de territorio y paisaje cultural, empleados para aprehender desde lo social, lo económico y lo simbólico las particularidades asociadas al desarrollo de la actividad minera en Olavarría desde 1870 hasta el presente, actividad que habría sido introducida de la mano de inmigrantes europeos, italianos principalmente. Como bien lo establecen los autores, el paisaje minero fue fundamental en el proceso de construcción identitaria de la localidad.

Finalmente, la obra concluye con el Capítulo 7 “Des-historias del centro bonaerense” de Ariel Gravano, quien desde una perspectiva histórica-antropológica pone en evidencia las maneras en las que el pasado, el presente y el futuro se imbrican en la construcción de los imaginarios identitarios propios de los actuales centros urbanos de la región central de la Provincia de Buenos Aires. El autor pone el eje de discusión en “lo regional” y reflexiona acerca de la funcionalidad de las idealizaciones hegemónicas sobre el pasado y el futuro en el presente, donde la homogeneidad y la integración prevalecen por encima de la heterogeneidad y las contradicciones históricas, culturales, económicas y políticas. Con una profunda agudeza analítica y de la mano de Canal-Feijóo, Gravano pone al descubierto, entre otras cosas, los dispositivos discursivos y representacionales empleados para distorsionar, desplazar y negar del pasado regional a los actores indígenas y sus prácticas, en pos de anclar los orígenes de la región central bonaerense en la “civilización urbana”. En este proceso de des-historización y de re-invención del pasado, es donde la épica de frontera adquiere mayor fuerza, asentando sus cimientos en un imaginario que naturaliza y legitima la avanzada eurocriolla en un “desierto” imaginado, fundamento medular de la construcción del moderno Estado-Nación argentino.

Para finalizar esta Reseña, creo importante señalar que si uno es un lector –ya sea especialista o no- ávido de conocimientos sobre los procesos ocurridos en la frontera sur de la Provincia de Buenos Aires, entonces la lectura de esta obra resulta indispensable en tanto fuente de consulta sobre el pasado regional de un área clave a lo largo del tiempo, tanto para las poblaciones indígenas como para las europeas y criollas de nuestro país. Sin temor a equivocarme, me atrevo a asegurar que este libro habría sido motivo de orgullo para el querido maestro Raúl Mandrini (1943-2015).

Silvana Buscaglia – Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciencias Humanas (IMHICIHU), CONICET. Saavedra 15, 5° piso (1083) Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. E-mail: silvana_buscaglia@yahoo.com.ar

PEDROTTA, Victoria; LANTERI, Sol (Dir.). La frontera sur de Buenos Aires en la larga duración. Una perspectiva multidisciplinar. La Plata: Asociación Amigos del Archivo Histórico de la Provincia de Buenos Aires, 2015. 315p. Resenha de: BUSCAGLIA, Silvana. Arqueología, Buenos Aires, v.23, n.1, p.141-143, enero-abril, 2017. Acessar publicação original

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Fundamentos da Paleoparasitologia – FERREIRA et al (CA)

FERREIRA, Luiz Fernando; REINHARD, Karl Jan; ARAÚJO, Adauto (Orgs.). Fundamentos da Paleoparasitologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 483 páginas, 2011. Resenha de: MARTIN, Gabriela. Clio Arqueológica, Recife, v. 32, n. 1, p. 189-191, 2017.

A Paleoparasitologia tem-se desenvolvido amplamente no Brasil nas últimas décadas, e esse avanço deve-se em grande parte aos trabalhos dos pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, sediada no Rio de Janeiro.

Desde o edifício de arquitetura eclética, conhecido como Castelo Mourisco e que se destaca na paisagem de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, os pesquisadores que organizaram a obra que aqui resenhamos foram pioneiros no Brasil ao tratar de uma ciência que hoje representa um pilar inamovível no estudo da Pré-história. Das ciências propedêuticas da Arqueologia, é a Paleoparasitologia a disciplina que, junto à Antropologia Física, mais auxilia no estudo e no conhecimento do homem antigo.

Trinta e um autores participam de Fundamentos da Paleoparasitologia, que, com 28 trabalhos de síntese, compõe a coletânea mais completa já publicada sobre o tema no Brasil e extrapola o conhecimento puramente parasitológico para adentrar nas origens e nos caminhos seguidos pelo Homo sapiens no povoamento das Américas.

O livro está dividido em quatro partes claramente diferenciadas. Na primeira, os oito artigos incluídos no item Os Parasitos, Hospedeiros Humanos e o Ambiente apresentam um viés histórico, que se completa com o artigo Parasitos como Marcadores de Migrações Pré-históricas, de autoria de Adauto Araújo, Karl Jan Reinhard, Scott Gardner e Luiz Fernando Ferreira, trabalho especialmente importante para os arqueólogos.

A Parte II versa sobre Vestígios de Parasitos Preservados em Diversos Materiais, Técnicas de Microscopia e Diagnóstico Molecular, com 11 artigos que nos informam sobre os diversos materiais onde os parasitos são detectados, âmbar incluído. A Parte III, denominada O Encontro de Parasitos em Material Antigo: Uma Visão Paleogeográfica, relaciona os mais importantes achados arqueológicos nos cinco continentes. Finalmente, essa importante obra encerra-se na Parte IV, intitulada Estudos Especiais e Perspectivas, com trabalhos sobre documentação histórica e métodos em Paleoepidemiologia.

Fundamentos da Paleoparasitologia é sem dúvida um dos grandes logros da Fiocruz e uma obra que não deve faltar na biblioteca de pré-historiadores e arqueólogos em geral.

Gabriela Martin – Programa de Pós-graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial, UFPE. E-mail: gabrielamartinavila@gmail.com

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Côa e Seridó, dois rios na Pré-História – MARTINHO et al (CA)

MARTINHO, António; MARTIN, Gabriela; PESSIS, Anne-Marie. Côa e Seridó, dois rios na Pré-História. Recife: Editora da UFPE, 2017. Disponível em:  https://www3.ufpe.br/editora/ufpebooks/serie_extensao/coa_serid/html5forwebkit.html?page=0 . Resenha de: CISNEIROS, Daniela. Clio Arqueológica, Recife, v.2, n.2, p.247-252, 2017.

Este livro é uma idéia original que liga Portugal ao Brasil de uma maneira nova e que tem um alcance que ultrapassa o seu conteúdo. Forma parte de uma série de publicações realizadas sob o lema Movimento Recife Porto na Arte, criado em 1992 e caracterizado como um espaço de articulação entre artistas e pesquisadores brasileiros e portugueses procedentes de várias universidades e centros culturais de Portugal e Brasil no intuito de constituir uma rede de relações culturais de amplo espectro. Nesse âmbito, já foram publicados vários livros de conteudo diverso, embora no denominador comúm da cultura luso-brasileira sob a coordenação de Maria Betânia Borges Barros.

O livro Côa e Seridó, Dois Rios na Pré-História é dedicado à arte rupestre préhistórica do Brasil e de Portugal, centrado na apresentação de dois rios e duas culturas num futuro comum. Seguindo-se o roteiro da ocupação humana préhistórica nos vales de dois rios: Côa, em Portugal, e Seridó, no Brasil, apresentam-se as raizes de dois povos que, milênios depois, o destino uniria numa cultura semelhante: as dos caçadores-coletores pré-históricos.

Descrevem-se e analisam as gravuras rupestres existentes no vale do rio Côa, afluente do rio Douro, e as gravuras e pinturas rupestres do vale do Rio Seridó no Rio Grande do Norte. Duas regiões muito distantes, sem contacto possível numa época longinqua. O contexto arqueológico e ecológico das respectivas áreas tem em comum os vales de dois rios nos quais assentaram-se grupos humanos que deixaram as marcas do seu passo, representadas nas gravuras e pinturas rupestres.

A sobriedade das representações rupestres paleolíticas de Foz Côa, contrastam com a riqueza das informações antropológicas e as manifestações da vida cotidiana das pinturas do Seridó.

A primeira parte do livro é da autoria de António Martinho Baptista que há décadas estuda as gravuras rupestres do vale do Côa e que, como diretor do Parque Arqueológico do Côa, criado em 1996, empenhou-se no reconhecimento do mesmo como Patrimônio Mundial (1998).

Além do enorme valor intrínseco das gravuras do Côa, a sua descoberta modificou o conceito de que a “arte das grutas” seria a manifestação artística quase exclusiva dos tempos paleolíticos. Mais, a partir de 1994, com a revelação das primeiras gravuras paleolíticas na Canada do Inferno, na margem esquerda do Côa, perto do local onde se pretendia construir uma grande barragem, mudou a forma de entender a arte do homem fóssil. Foram identificados 26 sítios com arte paleolítica num total de 234 rochas gravadas ao ar livre, embora algumas estejam permanentemente submersas pela construção de uma barragem da década de 1980. Os sítios estão integrados na área do Parque Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), criado em 10 de Agosto de 1996, com sede em Vila Nova de Foz Côa.

Gabriela Martin e Anne-Marie Pessis assinam em parceria a segunda parte da obra dedicada às pinturas e gravuras localizadas no vale do Seridó e de seus afluentes, no Rio Grande do Norte. As duas autoras, professoras da Universidade Federal de Pernambuco e membros da Fundação Museu do Homem Americano e da Fundação Seridó, pesquisam há décadas a Arte Rupestre nas diferentes regiões do Nordeste Brasileiro, onde está situado o Parque Nacional Serra da Capivara, Patrimônio Mundial desde 1991.

As pesquisas arqueológicas iniciadas na região do Seridó a partir da década de 1980 demonstraram a semelhança das pinturas rupestres de mais de um centenar de sítios daquela região, com as registradas na Serra da Capivara. A diversidade das figuras, as características técnicas e a existência de figuras emblemáticas permitiram identificar o padrão gráfico de um tronco cultural, conhecido como Tradição Nordeste. Há cerca de 9.000 anos começou o processo de mudança climática que vai radicalizar as condições de existência na região. Ocorre uma diminuição das chuvas, iniciando-se uma gradativa transformação do clima tropical-úmido em semiárido, época em que se inicia a diáspora das comunidades humanas pertencentes à Tradição Nordeste a partir de um epicentro localizado no SE do Piauí. Pelos dados disponíveis podemos estabelecer que, em torno do nono milênio BP, grupos originários da área do atual Parque Nacional Serra da Capivara, dispersaram-se por outras regiões do Nordeste brasileiro, abandonando seu primitivo habitat. Uma das levas da diáspora se instala na região de Seridó.

Os grupos étnicos que pintaram os abrigos do Seridó, enriquecerem a sua arte originaria com elementos novos, entre os quais destacam maior riqueza nos ornamentos, na pintura corporal e nos objetos que as figuras humanas carregam.

Cenas violentas de luta e de atividade sexual estão também presentes. A escolha da região do Seridó deve-se primeiramente à existência de numerosos pontos d’água e ao fato de constituir uma área de Brejo, que teria características climáticas mais favoráveis e melhores condições de sobrevivência.

Niède Guidon, Presidente da Fundação Museu do Homem Americano, instituição que cela pelo acervo cultural do Parque Nacional Serra da Capivara, tece no Prefácio uma série de comentários oportunos e que merecem uma reflexão no dizer da própria autora ao refletir sobre a Arte Rupestre de dois mundos tão diversos e distantes, tanto no clima como nos biomas e nas representações rupestres das figuras humanas e animais. Mas, como pano de fundo dessa diversidade existe, também, um bloco cerrado de semelhanças. As populações autoras dessa arte tinham um mesmo estilo de vida de caçadores e coletores.

O Parque Nacional Serra da Capivara e a área arqueológica do Seridó na região Nordeste do Brasil abrigam centenas de sítios com pinturas rupestres notáveis por seu caráter narrativo, realizados no decorrer de milênios. É fonte inesgotável de dados para a reconstituição da vida das populações que habitaram o Nordeste do Brasil na Pré-história.

Como em Foz Côa, as gravuras do Nordeste brasileiro são sempre ligadas à presença da água, geralmente foram realizadas nas vizinhanças de corredeiras, quedas de água, ou poços profundos nos leitos dos rios. Hoje, em Foz Côa, o rio corre no fundo de um canyon estreito e profundo, na Serra da Capivara os rios secaram faz cerca de 8.000 anos e no Seridó, o rio é um fio de água.

Praticamente em todo o mundo, no mesmo momento o Homem iniciou a prática rupestre, e, na aparente diversidade de suas manifestações, encontramos sempre o mesmo fundo espiritual, a forte ligação entre essas representações e o universo mítico e estético dos homens do paleolítico que externa suas ligações com os ecossistemas no qual viviam.

Outro ponto de convergência entre as duas provincias rupestres, neste caso relativo ao mundo das relações humanas, os intereses políticos e economicos e do reconhcimento científico é que a descoberta da Arte do Côa nasceu envolta em polémica, da mesma maneira que mais de um século antes acontecera com a revelação de Altamira, embora na atualidade o Vale do Côa é hoje reconhecido como um dos primeiros e mais notáveis centros da arte paleolítica da Europa.

Da mesma forma, encontramos também que a resistencia ao cambio e ao reconhecimento do que poderia ser mais antigo e impactante do ponto de vista estético, criou polêmicas sobra a importância e a antiguidade dos registros rupestres do Nordeste do Brasil, com é também o caso do Seridó em franca fase de destruição pelos interesses das mineiradoras e da ocupação das terras.

Este livro mostra que a globalização não é um fenômeno novo. O Homem moderno vem de uma só raiz pré-histórica e sua evolução seguiu um mesmo caminho em todo o mundo, embora as manifestações do fenomeno gráfico sejam tão diferentes. O livro apresenta, também, numerosas fotografias de ambas regiões que ilustram os respectivos textos dos autores.

Daniela Cisneiros – Departamento de Arqueologia, UFPE. E-mail: danielacisneiros@yahoo.com.br

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História, Politica, Direitos Humanos na Contemporaneidade (Parte 1) / Tempo Amazônico / 2017

É com muita alegria que temos a publicação de mais um número da Revista Tempo Amazônico ligada a Associação Nacional de História Regional do Amapá. Com o intuito da divulgação de textos de cunho historiográficos e de outras áreas do conhecimento que ofereçam subsídios teóricos e metodológicos dos assuntos ligados as humanidades. Este número conta com textos dos mais variados assuntos. A presente edição da revista tem como dossiê intitulado “História, Politica, Direitos Humanos na Contemporaneidade (Parte 1)”. Foi organizado pelo Prof. Dr. Marcos Vinicius de Freitas Reis, vinculado a Universidade Federal do Amapá e o Prof. Dr. Marco Antônio Domingos Teixeira, vinculado a Universidade Federal de Rondônia.

O primeiro texto desta edição foi escrito pelo pesquisador Aldeci da Silva Dias com o texto chamado “O Credo na Escola: A Negação dos Direitos Humanos na Prática Pedagógica dos Professores de Ensino Religioso nas Escolas Estaduais José de Alencar e Deuzuite Cavalcante Macapá –AP”. A discussão feita é a respeito das razões pelas quais o debate acerca dos direitos humanos não tem sido feito nas aulas de ensino religioso em duas escolas da cidade de Macapá do Estado do Amapá. O autor chama atenção para a questão da intolerância religiosa, racismo religioso e proselitismo religioso como fatores que dificultam que as aulas de ensino religioso não estejam conectadas com uma proposta de educação para os direitos humanos.

Os pesquisadores Ângela do Céu Ubaiara Brito, Izaias Loureiro Tavares e a Eliana do Socorro de Brito Paixão com o artigo denominado “Acesso de Indígenas ao Ensino Superior da Universidade do Estado do Amapá: Estudos e Notas sobre o uso da Internet e suas Tecnologias”. O tema trabalhado é muito interessante e muito atual. A problematização feita é pensar como está sendo o acesso dos indígenas do Amapá e de outras regiões ao ensino superior na universidade estadual do Amapá. A tecnologia tem sido um instrumento para poder pensar esta questão.

O mestre em ensino de História pela Universidade Federa do Amapá, o docente Danilo Sorato Oliveira Moreira contribui com esta edição com o título “As Perspectivas da Política Externa de Bolsonaro: A Continuidade com a Nova Política Externa Brasileira”. Debate muito instigante e atual. Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro houveram modificações sensíveis as diretrizes da atuação da política externa brasileira. O referido autor pontua estas mudanças e a repercussão internamente no Brasil e em relação a outros países e atores internacionais.

Os autores Diego Saimon de Souza Abrantes e Hillary Patrizya Maciel Rodrigues tentam compreender os fatores que levam algumas mulheres não adotarem a plataforma feminista na sua atuação política. O texto rotulado “A Concepção de Mulheres Acerca do Feminismo: Fatores que Influenciam na não Participação deste movimento”. Tema contemporâneo e que levanta o debate da necessidade de maior participação das mulheres nas decisões políticas do Brasil.

O pesquisador Humberto Silvano Herrera Contreras com o trabalho “Mídias e Tecnologias na Formação Humana: Reflexões de Zygmunt Bayman sobre a Educação” em termos de ampliação dos usos das redes sociais as questões digitais afetam as relações interpessoais. A partir das reflexões de Bayman o autor discute como tem se dado as relações entre as pessoas nas plataformas digitais.

As questões sobre religião e política também se fazem representadas nesta edição. A cada ano que passa as religiões interferem cada vez mais no espaço público. Poucos são os trabalhos que discutem esta relação nos estados do Acre e do Amapá. O texto intitulado “Religião, Política e Fronteira: Revisão Histórica da Presença do Catolicismo nos Estados do Acre e do Amapá” escrito pelos pesquisadores Marcos Vinicius de Freitas Reis, Geórgia Pereira Lima e Kássio Vilhena oferecem informações históricas e da atualidade sobre a presença dos grupos religiosos na política em seus respectivos estados.

O professor do curso de Direito da Universidade Federal do Amapá Roberto José Nery Moraes escreve o trabalho “Paradigmas do Racismo Religioso: Aprendizagem, Reprodução e Prática do Racismo Religioso”. Conceitua o que seria racismo religioso e sua tipologia.

A discussão sobre a relação entre mídia e religião está presente neste número. Paulo Vitor Giraldi Pires com o trabalho “O Jornalista da Religião: Rompendo paradigmas da comunicação eclesial midiática” vem detalhando como as instituições religiosas tem construído suas próprias mídias para difusão de seus valores religiosos.

As doutoras Maria da Conceição da Silva Cordeiro e Silvia Carla Marques Costa com o texto “O Vivido Etnográfico: Combinação de Sentidos e Significados entre a Observação Participante e a Captura de Imagens”. Dissertam como a partir do método científico da etnografia conseguem apreender informações das comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombola, terreiros e outros agrupamento de pessoas.

E por fim, Adriel Gonçalves Sousa das Neves, Bruno Borges Moura, Wanildo Figueiredo de Sousa contribuem com o trabalho “Educação Falaciosa: Uma Análise Crítica ao Dualismo Educacional Desde a Antiguidade até a Contemporaneidade” discutem o papel da educação no curso da História.

Boa leitura!

Marcos Vinicius de Freitas Reis (UNIFAP)

Marco Antônio Domingos Teixeira (UNIR)


REIS, Marcos Vinicius de Freitas; TEIXEIRA, Marco Antônio Domingos. Apresentação. Tempo Amazônico, Macapá, v.4, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, Politica, Direitos Humanos na Contemporaneidade (Parte 2) / Tempo Amazônico / 2017

É com muita alegria que temos a publicação de mais um número da Revista Tempo Amazônico ligada a Associação Nacional de História Regional do Amapá. Com o intuito da divulgação de textos de cunho historiográficos e de outras áreas do conhecimento que ofereçam subsídios teóricos e metodológicos dos assuntos ligados as humanidades. Este número conta com textos dos mais variados assuntos. A presente edição da revista tem como dossiê intitulado “História, Politica, Direitos Humanos na Contemporaneidade (Parte 2)”. Foi organizado pelo Prof. Dr. Marcos Vinicius de Freitas Reis, vinculado a Universidade Federal do Amapá e o Prof. Dr. Marco Antônio Domingos Teixeira, vinculado a Universidade Federal de Rondônia.

Começamos o nosso dossiê como texto “Fatores Causadores das Dificuldades da Vida Acadêmica dos Indígenas do Parque do Tumucumaque: Impactos, Costumes e Convívio Social”, escritos por Fábio Richard Pereira da Silva e Wanildo Figueiredo de Sousa. A ideia é pensar as dificuldade que os alunos indigenas do Amapá possuem para ter acesso a algum curso nas insituições de ensino superior no Estado do Amapá.

A docente Tatiana Pantoja Oliveira com o texto “De Ponto em Ponto no Tracejado da Cultura Escolar da Escola Doméstica de Macapá (1951-964)”, traz dados históricos e levantamento bibliográfico para pensar como se deu a educação doméstica no município de Macapá na Escola Estadual Santina Rioli.

O próximo texto escrito pelos pesquisadores César Alessandro Sagrillo Figueiredo e Samuel Correa Duarte com o trabalho “O Modelo da Gênese Formativa da União das Repúblicas Socialista Soviética (URSS): Estudos Teóricos e Legado Político”. O trabalho tem por objetivo a partir deste enfoque histórico analisar as causas formativas da URSS e seus desdobramentos.

O debate em torno do racismo religioso e da intolerância religiosa é contemplado pelo artigo “Paradigmas do Racismo Religioso: Aprendizagem, Reprodução e Prática do Racismo Religioso”, escrito pelo docente do curso de Direito da Universidade Federal do Amapá Roberto José Nery Moraes.

Humberto Silvano Herrera Contreras com o artigo intitulado “A Responsabilidade Social em Paulo Freire”, discute como o exímio autor Paulo Freire entende a questão social aplicado a educação. Sabemos que o social parte do pressuposto de colocar indivíduo que é marginalizado pelas práticas capitalistas como centro do debate em torno das políticas públicas.

Os Pesquisadores Eronilson Mendes de Sousa, Osiane Fernandes Do Vale De Sousa e Larissa da Silva Barbosa Raiol com o trabalho rotulado “A influência das redes sociais e dos jogos eletrônicos no comportamento e aprendizagem dos alunos da shb e a inserção de novas metodologias”, discutem como que os jogos eletrônicos e as redes sociais podem ajudar como metodologia ativa no ensino e na aprendizado nas escolas públicas e privadas do Brasil.

A questão da saúde metal tema atual e importante de ser trabalhado. Os autores Daniela dos Santos Azevedo, Diego Saimon de Souza Abrantes e a Beatriz Maciel Santos com o trabalho denominado “Transtornos Mentais em Policiais Militares: Um Estudo Documental” mostram como que as questões psicológicas tem afetado o cotidiano da classe trabalhadora dos policiais militares.

O debate em torno da conversão pentecostal, o sentimento de pertencimento a um grupo religioso vinculado a teologia evangélica e como estes jovens permanecem com esta experiência religiosa, são trabalhados no artigo “Narrativa do Testemunho Pentecostal: Quem tem Autoridade de Testemunhar?”, escrito pelos alunos Cleiton de Jesus Rocha e Arielson Teixeira do Carmo.

A problemática do ensino religioso tem espaço nesta edição. As pesquisadoras Nancy Pereira da Silva e Mônica de Oliveira Costa com o texto “A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias: Um Espaço Sagrado a ser Compreendido na Cidade de Manaus”. Pensar como os espaço sagrados podem gerar conteúdos e metodologias para que o professor possa trabalhar em sala de aula.

O docente Alysson Brabo Antero com o texto “Catolicismo Negro na Amazônia: O Festejo â Santíssima Trindade Durante o Ciclo do Marabaixo em Macapá – AP”. O texto mostrar histórico e os aspectos ritualísticos e litúrgicos do ciclo do Marabaixo no Amapá.

E para finalizar esta edição o Prof. Marcos Vinicius de Freitas Reis, os decentes: Nelson Mateus Machado dos Santos e Jordan Silva da Costa entrevistaram o padre Sisto da Diocese de Macapá, militante da Pastoral da Terra. A entrevista Intitulada “ Pastoral da Terra: a religião como meio da proteção da terra”.

Boa leitura!

Marcos Vinicius de Freitas Reis (UNIFAP)

Marco Antônio Domingos Teixeira (UNIR)


REIS, Marcos Vinicius de Freitas; TEIXEIRA, Marco Antônio Domingos. Apresentação. Tempo Amazônico, Macapá, v.5, n.1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História e profissionalização do professor / historiador no Brasil / História Unisinos / 2017

Qual será o lugar da História na vida dos humanos? Este era um dos questionamentos levantados por Marc Bloch na abertura do seu livro A sociedade feudal. Hoje talvez devêssemos pluralizar a questão, não apenas no sentido de incluir os lugares ocupados pela História na vida dos diferentes humanos, mas de considerar as múltiplas narrativas históricas produzidas por diversos sujeitos sociais no presente. Sem deixar de reconhecer essa difusão de pluralidades de sentidos atribuídos ao passado – chamado por Le Goff já nos anos 1970 de “cultura histórica” – e do papel reflexivo colocado ao historiador e ao professor de História sobre a dinâmica dos usos e das utilizações políticas desse passado, cabe destacar que a profissionalização está longe de pretender consolidar discursos de verdade por parte dos historiadores – aliás, há muito superado – mas de possibilitar que tais profissionais atuem, com o devido reconhecimento da especificidade do seu saber, em diferentes espaços.

Reflexões que conjugam escrita da História, ensino de História, Educação e o papel do professor de História com profissionalização do historiador e do professor de História têm sido bastante discutidas nos últimos anos, especialmente em função do Projeto de Regulamentação da Profissão de Historiador, cuja última versão foi aprovada na Câmara dos Deputados em 2015, ainda aguardando tramitação no Senado Federal. Todavia, a crise política que vigora atualmente, demonstra que, talvez, faltem interesses políticos na regulamentação. Mas, na roda viva tudo pode mudar, embora o foco dos próprios historiadores nos parece estar mais voltado para outras discussões atuais em função dos diferentes projetos conservadores para a Educação, que afetam diretamente o Ensino de História no Brasil, como o “Escola sem Partido” e a Reforma do Ensino Médio.

Em geral, historiadores e professores de História têm estado atentos às reflexões sobrea função social da História e do ensino de História, mas também sobre os usos do passado e da História verificados na academia, na escola e nas mais diversas instâncias sociais – com aproximações e distanciamentos entre eles – que são marcados, queira-se ou não, por posturas teóricas e políticas determinadas, acionadas por aqueles que fazem, dizem, escrevem e ensinam História.

Diversos estudos apontam para as dúvidas, especialmente de alguns segmentos sociais e políticos, que pairam sobre a História e sobre o ensino de História, ora reafirmando o valor, a função e o significado do conhecimento histórico (e histórico escolar), ora oferecendo explicações para o suposto paradoxo entre o descaso com a História e a atração pelo passado na contemporaneidade.

O dossiê Ensino de História e profissionalização do professor / historiador no Brasil buscou reunir textos que abordassem esses temas, destacando a relação entre a formação profissional do professor de História e do historiador, as considerações sobre suas atribuições e as possíveis implicações para o ensino de História. Os textos que compõem este dossiê trazem, em seu conjunto, um panorama possível sobre o lugar ocupado pela disciplina História, pelo ensino de História, pelo professor de História e pela formação desse profissional, nas discussões acadêmicas, sociais e políticas, com suas distintas valorizações e atribuições de sentidos. São relevantes contribuições – não apenas pelas especificidades temáticas – as quais refletem muito bem a dimensão política da profissionalização e formação do historiador / professor de História e que contemplam temas como projetos estatais de educação e de formação de professores, produção de bibliografia especializada, organizações curriculares, práticas pedagógicas dos docentes, escolhas pessoais e (auto)reflexão sobre a formação.

Os artigos aqui reunidos discutem como a academia tem contribuído e / ou pode / deve contribuir para a formação do historiador / professor de História, com domínio das atribuições esperadas (e questionadas) para atuação docente na Educação básica ou em outras instâncias profissionais.

A reflexão proposta pelo dossiê, evidentemente cara à grande parte dos historiadores e professores de História brasileiros, proporcionou uma necessária e relevante reflexão por parte dos colaboradores – de acordo, é claro, com os objetivos dos seus artigos –, que além de demonstrarem as análises resultantes de suas pesquisas, assumiram claramente, e com ênfase, o seu lugar acadêmico, social e político.

Nesse sentido, abrimos o dossiê com o texto de Durval Muniz Albuquerque Júnior, que busca compreender o significado do “espaço escolar” e dos motivos pelos quais a História permanece nos currículos escolares. Albuquerque Jr aponta para a desconfiança e desprestígio que a História enquanto disciplina suporta atualmente, elemento que, de algum modo, faz compreender a ausência da regulamentação da profissão no país. Além disso, considera que a luta pela regulamentação é uma luta política e as resistências dos conservadores demonstram o medo das elites em relação à disciplina História, pois “a grande ilusão vivida, por todo conservador, é que ele será capaz de evitar as inevitáveis mudanças, conjurar as surpresas da vida e da história”. Mas alerta: “nenhum conservador será capaz de evitar que as mudanças ocorram no e com o tempo […], de controlar e prever, completamente, as consequências do ensino escolar para seus filhos ou descendentes”.

O trabalho de Mara Cristina de Matos Rodrigues e Benito Bisso Schmidt discute o ensino de História no ensino superior a partir de análises de suas próprias experiências enquanto professores de Teoria e Metodologia da História e Historiografia. Os autores buscam destacar a importância da mudança nas práticas pedagógicas dos docentes formadores de professores de História, especialmente no sentido de considerar “experiências do tempo não europeias ou não ‘ocidentalizadas’”. Para Rodrigues e Schmidt, “a mutação significativa que a composição social, étnica e de identidades de gênero” atualmente verificadas nas turmas e as diferentes experiências de tempo, devem ser consideradas quando se pensa os programas das disciplinas e as práticas pedagógicas adotadas. Tais programas, para os autores, devem fazer sentido nas vidas práticas dos graduandos. Assim, apresentam propostas instigantes para uma outra / nova formação dos / as profissionais de História, como por exemplo, docência compartilhada, para repensar a linguagem e as estratégias em sala de aula, e o repensar da nomenclatura de algumas disciplinas, como “Teorias e Metodologias Ocidentais da História”.

O texto de João Ernani Furtado Filho se propõe a analisar a finalidade da História em livros destinados à formação do historiador, notadamente em obras de “introdução aos estudos históricos” utilizados – no Brasil – entre os anos 1940 e 1990. O autor está interessado na historicidade dos estudos históricos, considerando suas variações filosóficas e políticas. Para tanto, suas fontes são obras de Ernst Bernheim, Wilhelm Bauer, Charles Langlois e Charles Seignobos, Marc Bloch, Louis Halphen, Joseph Hours, Henri-Irénée Marrou, Henri Steele Commager, Vavy Pacheco Borges e Ciro Flamarion Cardoso. Para Furtado Filho os “manuais de “Introdução aos Estudos Históricos” são testemunhos da historicidade da disciplina (e das táticas e tentativas de legitimação de sua cientificidade)”. Mas os argumentos utilizados pelos livros pesquisados para explicar as funções da História são plurais, diferenças estas pontuadas pelo autor, que também localiza semelhanças: “todos os manuais apresentam capítulo de ‘crítica do documento’ […] problematizando a constituição de acervos, as comemorações e mesmo visões ou produtos da prática historiadora”.

Fernando Perli analisa narrativas de graduandos em Licenciatura em História, a partir de memoriais descritivos realizados em relatórios de Estágio Supervisionado, com objetivos de compreender as representações e os usos do passado que perpassam a formação dos professores de História. Perli está preocupado em compreender “o que dizem os estudantes de História”, identificando “elementos que permitiram apropriações do conhecimento histórico” e diferentes leituras do tempo através da cultura histórica. Identifica a escola, o ambiente escolar e as aulas dos professores da Educação básica como fatores a partir dos quais “emergiram interesses pelo curso de Licenciatura em História” e apreenderam possibilidades para o “fazer e ensinar” História.

O texto que encerra o dossiê, de Claudia Cristina da Silva Fontineles e Marcelo de Sousa Neto, analisa os novos significados do lugar da docência durante a formação inicial a partir da implantação do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no Piauí. Para a autora e o autor, este Programa configura- -se como “‘variação no enredo’ da história do ensino de História no Brasil”, aproximando academia e cotidiano escolar ao “acionar os saberes necessários à docência” e rompendo com a dicotomia pesquisa e ensino. Fontineles e Sousa Neto destacam que o PIBID foi fundamentalmente importante tanto para atenuar a distância entre conhecimento científico e saber escolar, sobretudo o saber construído pela disciplina História, quanto para às mudanças nos modos pelos quais as graduações passaram a encarar a docência durante a formação inicial.

Esperamos que os textos que integram este dossiê contribuam para discussões e reflexões acerca dos temas apresentados, uma vez que os artigos apontam para perspectivas sobre o que faz o professor / historiador, condição básica para a profissionalização. Cremos que o dossiê nos instiga a seguir pensando criticamente na condição e no lugar ocupado, hoje, pela História, pelo ensino de História e pelo historiador.

Mauro Dillmann

Francisco de Assis de Sousa Nascimento

Organizadores do Dossiê


DILLMANN, Mauro; NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.2., maio / agosto, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Estudos Históricos Latino-Americanos: uma avaliação dos últimos 30 anos (1987-2017) / História Unisinos / 2017

Este dossiê integra as comemorações das três décadas de criação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Ele foi concebido, ainda em 2016, tendo em vista marcar, no âmbito da revista História Unisinos, o esforço coletivo de constituição de um Programa voltado aos Estudos Históricos Latino-Americanos como área de concentração.

Da mesma forma como o conjunto dos Programas de Pós-Graduação em História no país, ao longo destes 30 anos, desde 1987, o lugar da América Latina nos estudos históricos brasileiros não pode ser visto como uniforme. Em uma combinação delicada entre inflexões políticas lato senso, políticas acadêmicas e os avanços da disciplina, a América Latina se realiza ao mesmo tempo como uma parcialidade e como uma especialidade. Movimentos oscilatórios que promovem sua integração ou sua dissociação de outros lugares e saberes são reveladores das concepções que crítica ou intuitivamente são estabelecidas acerca dela.

Talvez seja necessário levar em conta, para além das condições nacionais – tanto históricas quanto historiográficas de maneira estrita – alguns eventos, de mais longe alcance, como a reunificação da Alemanha (em 1989) e a dissolução da União Soviética (em 1991), e seus efeitos simbólicos transnacionais para se pensar o lugar da América Latina, inclusive como conceito, em sua apropriação historiográfica mais recente. O peso relativo disso certamente é merecedor de avaliações mais ponderadas do que esta apresentação é capaz de fazer dentro de seus limites.

Ao lado disso, as tensões entre as dimensões específicas e aquelas outras que articulam a detecção do comum nas experiências diversas estão sempre rondando os historiadores em seu labor. A América Latina, neste sentido, pode ser vista, ora como campo de realização da experiência compartilhada, em detrimento do olhar sobre o particular, ora como o lugar interno de um diálogo e de um contato inexistentes. Na segunda opção, no limite, como uma utopia.

Se estas questões já foram pensadas muito tempo antes da curta duração eleita para este dossiê, acreditamos que ela possa ganhar densidade analítica mais recentemente, tendo em vista as diversas contribuições advindas de uma maior abertura de nosso campo disciplinar a outras perspectivas.

Nas últimas décadas, é possível perceber, por exemplo, o abandono de posturas (políticas) sectárias frente às produções historiográficas realizadas por pesquisadores estrangeiros, notadamente ligados a instituições dos Estados Unidos, acerca da realidade histórica latino-americana. Aprendemos, neste caso, que um certo “nacionalismo historiográfico”, se assim podemos denominar, acabou por produzir compreensões menos ricas e complexas da história, tendo em vista limites autoimpostos de apropriação do conhecimento que passam longe de critérios acadêmicos ou epistemológicos. Em uma leitura reducionista, pesquisadores estrangeiros foram vistos como “agentes do imperialismo norte-americano”.

Ao lado dessa abertura, nosso campo de estudos beneficiou-se – e ainda pode colher bons frutos – de uma disposição para dialogar com outros campos disciplinares de maneira mais efetiva e menos retórica. Isso implica, sem dúvida, estar disposto a operar abordagens interdisciplinares ou transdisciplinares quando for o caso. Ou seja, quando a questão de investigação proposta exigir tal aproximação. É sabido que alguns dos temas que hoje fazem parte da pauta do trabalho de pesquisa dos historiadores foram frequentados anteriormente e com proficiência por investigadores de outros campos disciplinares. Desde a história, é preciso que nos perguntemos o que temos a ganhar com isso. Ou melhor, o que o conhecimento histórico pode obter dessa aproximação, tanto em termos teóricos quanto metodológicos. A história indígena em largo espectro e a história das ditaduras recentes, por exemplo, são duas especialidades que certamente podem se beneficiar com esse encontro.

Ainda que os impérios coloniais e as nações não sejam ficções historiográficas, forjar os diversos regionais que se configuram nesses espaços descontínuos e, ainda, no intranacional ou no transnacional, pode se configurar em estratégia metodológica útil para melhor nos acercarmos daquilo que é a particularidade de nosso objeto de estudo. As histórias comparadas e as histórias interconectadas que podem eventualmente emergir desta percepção no trato com as fontes, não é exatamente um caminho usual na historiografia da América Latina, mas que pode ser bastante promissor.

Este não é exatamente um programa de pesquisa, mas essas breves considerações encerram algumas das questões que têm comparecido no debate historiográfico contemporâneo, entre tantas outras que ficaram de fora, e que merecem o empenho de nossa reflexão. Passamos, a seguir, a apresentar os artigos que foram submetidos ao dossiê e que tiveram aprovação dos avaliadores do periódico.

Nosso dossiê inicia com o artigo de Tiago Silva intitulado Comércio e conquista na História das duas Índias do abade Raynal, trabalho em que o autor analisa a Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes, publicada no ano de 1780, a fim de estabelecer uma reflexão sobre a expansão colonial europeia. Nesse texto famoso, o francês Guillaume-Thomas Raynal (1713-1796) sustentou o que compreendia ser o “papel civilizador” do comércio em contraste com as consequências perniciosas suscitadas por políticas coloniais assentadas na “conquista”, as quais haviam sido criticadas por várias vozes, entre as quais a mais conhecida é a do dominicano Bartolomeu de Las Casas.

O artigo inicia com uma análise dos argumentos por meio dos quais alguns dos mais conhecidos pensadores “ilustrados” no século XVIII elogiaram o papel civilizador e humanístico das trocas comerciais, em contraposição à violência que estava associada às práticas dos impérios de além-mar. Vários percebiam, assim, no comércio, uma via alternativa para o estabelecimento de relações pacíficas (e mais proveitosas economicamente) entre europeus e nativos americanos. Além do mais, as riquezas geradas pela conquista através das armas, desde os impérios antigos, acabavam sendo rapidamente dilapidadas por meio do “fausto bárbaro” e em desfavor da valorização do trabalho e das “artes úteis”. Raynal esposava, como esclarece o artigo, uma visão ampliada do termo “comércio”. Assim, entre os benefícios das trocas comerciais, estaria a ampliação do “conhecimento a respeito da diversidade humana”.

A análise de Tiago Silva, rastreia os argumentos pelos quais o pensador francês acompanhava as concepções de vários pensadores ilustrados sobre este tema, como, por exemplo, os do autor do Espírito das leis, que entendia que o comércio trazia a paz por colocar as nações envolvidas em uma situação de reciprocidade. Raynal defendia, de acordo com o autor do artigo, que quando uma nação usufrui de vantagens comerciais, a guerra não lhe é vantajosa. Assim, segundo Silva, a História das duas Índias foi uma das primeiras obras a operar com a versão moderna do conceito de “civilização” formulado na França na segunda metade do século XVIII.

Desta forma, o artigo realiza uma ótima análise do diálogo de Raynal com outros expoentes do círculo das Luzes, contribuindo para refletirmos, entre outros aspectos, sobre leituras que o colonialismo europeu mereceu por parte dos contemporâneos.

No artigo seguinte, intitulado Para uma nova epistéme do luso-tropicalismo: análise comparativa da luxúria clerical no Atlântico Português (1640-1750), Jaime Ricardo Gouveia reflete criticamente sobre alguns paradigmas que tiveram grande influência na historiografia sobre o Brasil. O autor se refere, em especial, ao luso-tropicalismo e às noções de um “catolicismo à brasileira” e de uma “democracia étnica numa civilização luso-tropical”, cujas matrizes encontra na obra de Gilberto Freyre. Ele propõe que uma abordagem de tipo comparativo1 (considerando outros territórios do império português, como também a metrópole, e as colônias de outros impérios), e uma atenção maior às fontes, permitem a revisão deste corpo de ideias.

A partir de uma pesquisa em arquivos do Brasil e de Portugal, o autor coloca em debate a “especificidade” do caso da colônia brasileira2, e evidencia que a “luxúria clerical” fazia parte da realidade das “duas margens do Atlântico Português”. Com isto, compreende que se deve recusar alguns dados fortemente representados na historiografia brasileira – em teorias que ele chama de luso-tropicalistas –, segundo os quais a lascívia presente na sociedade colonial seria o resultado da natureza e do meio ambiente, constituindo-se, por consequência, em uma realidade exclusivamente colonial. O autor refuta, de fato, a própria ideia de uma especificidade da colonização portuguesa (que ele denomina de alteridade lusotópica) baseada na questão do relacionamento interétnico.

Outro elemento desta interpretação, também revisado pelo texto, é o de que o relaxamento nas condutas do clero colonial se via favorecido pela inoperância intencional das estruturas de vigilância e disciplinamento. Segundo esta interpretação, recusada pelo autor do artigo, a não aplicação dos decretos tridentinos no Brasil seria parte de uma estratégia política imperial destinada a estimular, junto com a prática do “desterro”, o incremento populacional.

Sob este aspecto, o trabalho discute com autores como o celebrado estudioso dos impérios ultramarinos modernos, Charles Boxer. Segundo Gouveia, ainda que Boxer tenha dedicado pouca atenção à questão religiosa nas sociedades coloniais portuguesas em suas obras, ele sugeriu que as autoridades metropolitanas teriam preferido, no Brasil e África coloniais, um clero inferior e imoral a sua inexistência. Outro estudo que merece sua atenção é o de Stuart Schwartz que, embora reconheça a existência de dispositivos de controle sobre os religiosos desde o início da colonização da América portuguesa, conclui que as Índias ofereciam oportunidades de “um apetite sexual desenfreado de laicos e padres”, ancoradas na existência de grandes populações mistas, nas distâncias e menor capacidade de controle das instâncias inquisitoriais, entre outros elementos.

Segundo o artigo, estudos atuais no Brasil e em Portugal têm chegado a novas conclusões, valendo-se do trabalho com fontes eclesiásticas originais, às quais, como sugerido pelo autor, devem ser submetidas a análises “contrastivas” e “comparativas” com a realidade da metrópole e de outros territórios do império ultramarino português. Para o caso brasileiro, a pesquisa de Gouveia encontrou uma teia de agentes da justiça episcopal – como párocos, confessores, pregadores, visitadores e missionários -cooperando com a Inquisição para promover a catequese e manter vigilância sobre as condutas morais da sociedade.

Assim sendo, a análise “poliédrica” dos casos estudados pelo pesquisador, e que convidamos os leitores a apreciar, permite que ele conclua não apenas que na colônia brasileira existiam mecanismos e agentes judiciais eclesiásticos de vigilância e disciplinamento. E, ainda, que esta não era uma realidade exclusiva do Brasil, pois se verificava, também, na metrópole, onde os índices de luxúria eram igualmente altos, o que o leva a refutar amplamente o “luso-tropicalismo”.

Os próximos artigos deste dossiê se voltam à análise da historiografia relativa aos povos nativos americanos, trazendo para o debate, entre outras coisas, o processo de invisibilização e silenciamento que costumou acompanhá-los, bem como o que se escreve sobre os indígenas e o que é escrito por indígenas.

História, historiografia e historiadores mapuche: colonialismo e anticolonialismo em Wallmapu é a contribuição de Sebastião Vargas para este objetivo, em artigo que, podemos dizer, apresenta dois momentos. No primeiro, o autor analisa a produção de intelectuais indígenas no panorama acadêmico latino-americano; no seguinte, avalia a contribuição aportada, neste âmbito, por historiadores mapuche. O objetivo da reflexão proposta é, esclarece o autor, difundir os trabalhos da corrente da história indígena latino-americana “que emerge da ‘periferia da periferia’”.

De fato, não é difícil reconhecer o protagonismo político e cultural de vários movimentos étnicos recentes de protesto social na América Latina, os quais são acompanhados, de acordo com Vargas, de “uma discursividade própria, que tenta colocar um fim na tutela e mediação externa”. Tal “discursividade própria” resulta do trabalho de “intelectuais indígenas”, definidos como “sujeitos relativamente novos”, especificados pela sua formação acadêmica. Para Sebastião Vargas, as elaborações discursivas resultantes aparecem marcadas por uma “evidente centralidade” da História “quaisquer que sejam as disciplinas onde os distintos autores se domiciliam”, qualidade que percebe como tributária de um conteúdo encontrável no discurso de todos eles, qual seja, “a afirmação de um vínculo colonial entre as sociedades indígenas e os Estados nacionais latino-americanos”, levando-os a refletir sobre as continuidades e mutações do colonialismo, assim como sobre as estratégias para sua superação.

A partir de tais definições, o autor se debruça sobre um conjunto de historiadores articulados em torno da autodenominada Comunidad de Historia Mapuche (CHM), refletindo sobre suas temáticas de maior interesse, principais referenciais teórico-metodológicos e propostas epistemológicas. Como demonstrado por Vargas, os trabalhos destes historiadores buscam contribuir para a reinterpretação da história mapuche, e para a “reconstrução identitária” da sua nação, explorando possibilidades epistemológicas abertas pelo diálogo entre o pensamento acadêmico e a sabedoria étnica. Tais historiadores questionam a neutralidade das historiografias oficiais latino-americanas e propõem um debate crítico sobre as condições do ensino de História e do trabalho do historiador nas mais variadas instâncias.

Entre muitas outras importantes contribuições, o artigo ainda informa sobre os diálogos deste grupo com pensadores da africanidade (e seu conceito de colonialismo internalizado), com historiadores como o maia kakchikel Edgar Esquit (e seu conceito de contrahistorias), com o mexicano Pablo González Casanova (por suas teorizações sobre as dimensões do colonialismo interno), e com autores ligados a correntes marxistas como, por exemplo, Eric Wolf (e sua concepção de “povos sem história”), entre outros.

Assim, para Sebastião Vargas, estes pensadores indígenas atuam no sentido de denunciar “o caráter monolítico do cânone epistemológico ocidental”, de reclamar contra o “colonialismo inerente às ciências humanas praticadas na América Latina”, ao mesmo tempo em que demandam o reconhecimento da validade de outros modos de conhecimento, e das potencialidades do “pensamento indígena”.

Por sua vez, o artigo de Maria Cristina dos Santos analisa os percursos da produção acadêmica dos últimos trinta anos em torno do tema dos “indígenas na História”. Caminhos historiográficos na construção da História Indígena articula, para isto, o exame da produção, na área, sobre o continente em geral, e a observação mais próxima do Paraguai colonial, área de especialidade da autora3.

De acordo com a pesquisadora, uma série de situações vividas pelos países latino-americanos neste período – “a redemocratização, a promulgação de novas Constituições, as comemorações dos 500 anos dos descobrimentos, dos centenários das Independências, ou ainda, as possibilidades de acesso dos indígenas ao Ensino Superior, com a consequente produção de conhecimento sobre suas culturas” – impactaram as ‘histórias indígenas’ produzidas no âmbito americano, recomendando a necessidade de análises do tipo que o artigo se propõe a fazer.

Segundo Santos, a construção da historiografia recente em torno da questão indígena deu-se a partir das contribuições da Arqueologia, da Etnologia e da História, encontrando seu ponto de articulação na Antropologia. Por isso, ela procurou centrar a reflexão “na forma como foram incorporados os estudos, temas e conceitos antropológicos na análise histórica, gerando caminhos paralelos no desenvolvimento historiográfico da História Indígena”. Tal exame foi elaborado em torno de três blocos, em que o artigo buscou dissecar as intersecções de perspectivas teóricas e metodológicas, bem como as ênfases temáticas estabelecidas a partir das diferentes vinculações entre Antropologia e História.

O primeiro deles, “História dos Índios”, reuniu publicações realizadas a partir de uma relação transdisciplinar entre Antropologia e História, a qual, compreende a autora, se pautaria em contribuições do estruturalismo “como ferramenta problematizadora das questões apresentadas na documentação histórica com indígenas”. Santos rastreou, nesta parte do trabalho, as origens dos estudos chamados “etno-históricos”, bem como as condições em que eles fizeram seu ingresso, na década de 1980, entre importantes autores no Paraguai e Argentina. Refletindo sobre o reconhecimento institucional conferido aos estudos abrigados sob esta denominação na Argentina, o texto destaca o surgimento da Sección de Etnohistoria (1984) na UBA, e a criação da revista Memoria Americana – Cuadernos de Etnohistória, em 1991, contrariamente ao ocorrido no Brasil, em que a Etno-história não obteve, na mesma época, igual consideração.

Ainda neste segmento do texto, que merece atenção substancialmente maior que os outros dois blocos, Santos localiza uma “virada epistemológica” ocorrida depois de 1992 e que, em nosso país, foi fortemente marcada pela coletânea “História dos índios no Brasil”, organizada por Manuela Carneiro da Cunha. Neste trabalho, recorda, a expressão Etno-história foi substituída por “História dos Índios”.

Merece especial consideração, ainda, o trabalho de Viveiros de Castro em que este autor evidencia a importância da percepção dos “condicionantes da ação da estrutura desde o passado até o presente”, sem que isto signifique tomá-la como uma “história inconsciente que condenaria os indígenas a marionetes no mundo colonial”. Ao contrário, a articulação entre estrutura e evento, se bem ponderada, revelaria, para Santos, que eles vêm a ser “os verdadeiros sujeitos naquelas circunstâncias, na medida que põem em funcionamento suas perspectivas relacionais durante o contato”. Para que isto seja possível, a autora advoga abrirmos “mão de conveniências metodológicas que buscam amenizar as divergências teóricas: buscar outras fontes além dos tradicionais documentos escritos – mesmo que escritos por indígenas – produzidos pela história ocidental”.

O bloco seguinte, “Uma História para os Índios”, dissecou um grupo de publicações produzidas por meio de novos objetos da pesquisa que mostram, ainda nos anos 80, o impacto da renovação introduzida pelos Annales na historiografia. Seria sob a inspiração desta Escola que vários trabalhos procuraram trazer os indígenas para o centro das análises históricas. Isto teria ocorrido em estudos que buscam “a identificação da ‘longa duração’ através de diversas tramas presentes nos contextos coloniais que contavam com indígenas e europeus”. Os trabalhos que estão reunidos neste bloco apresentariam outra característica comum importante, ao não comungar com as análises que colocam os indígenas como “resistentes” ao processo colonial, ou como vítimas inermes do mesmo. Santos recorda que a “história das mentalidades” e a “história cultural” trouxeram os indígenas para a cena histórica por meio de um conjunto de objetos de estudo “até então só utilizados nas análises da sociedade ocidental”, tais como o cotidiano, a religiosidade, o medo, a festa, entre outros.

Em “Os Índios na História” a atenção da autora se volta às publicações cuja pesquisa documental está em consonância com a Antropologia, buscando situar os indígenas como sujeitos conscientes da história vivida no mundo colonial tanto quanto descolados da análise estruturalista. A autora discute, neste momento, a crítica que a Etno-história começou a receber, sobretudo na Argentina, como campo de conhecimento dedicado exclusivamente aos grupos indígenas. De acordo com a autora, este fato está associado à emergência de novas identidades étnicas europeias. Paralelamente, afirma, conceitos como “mestiçagem e etnogênese”4 adquiriram um significado para além das fronteiras das comunidades indígenas latino-americanas, comprovando “iniciativas de reafirmação de autorreconhecimento étnico”. Tal historiografia, “que busca uma determinada aliança com a Antropologia, evidencia que os indígenas fizeram parte da História, sob determinadas condições. Neste caminho, encontrar-se-ão documentos históricos que comprovarão a presença e a participação de indígenas em diferentes contextos”. Entretanto, ela lamenta que, se com isto os indígenas puderam chegar ao centro das atenções dos historiadores, tenha sido necessário que fossem “‘desconectados’ de uma possível estrutura ordenadora das vidas e reações”.

Os dois artigos seguintes se voltam para a região platina. O primeiro deles, “Levantamiento bajo Cárdenas”: novas abordagens em torno do conflito antijesuítico no cabildo de Assunção em 1649, de Fernando V. Aguiar Ribeiro, trata de um tema clássico da historiografia colonial do Paraguai. O tema interessa também particularmente aos especialistas em questões ligadas à ação da Companhia de Jesus na América, em especial, à expulsão dos inacianos de Asunción em 1649, depois que seu desafeto, o bispo Bernardino de Cárdenas, foi escolhido governador do Paraguai em um “cabildo abierto”. No artigo seguinte, Vitor Isecksohn explora a relação entre a Guerra do Paraguai (1864-1870) e o processo de construção do Estado e centralização do poder na Argentina, refletindo sobre como, entre os efeitos imprevistos do conflito, esteve o reforço da autoridade central naquele país.

Em “Levantamiento bajo Cárdenas”, Aguiar Ribeiro inicia seu trabalho recordando o quanto as interpretações tradicionais do movimento conhecido como Rebelión Comunera marcaram a reflexão sobre “a identidade e a construção histórica do Paraguai”. Efetivamente, pode-se dizer, de forma simplificada, que as explicações sobre este acontecimento costumam girar em torno de dois polos. Um deles centra sua atenção nas motivações pessoais de Cárdenas (que seria opositor acérrimo dos inacianos, nutrindo ressentimentos contra eles, “ajustados” em 1649), e em sua liderança na condução dos acontecimentos; o outro destaca o “caráter popular” do levante, inclusive assinalando sua condição de “precursor” das revoluções independentistas.

Este último conjunto de trabalhos associou o “ideal comunero” a um princípio de “defesa da liberdade” e “autonomismo” dos paraguaios, enquanto que a primeira perspectiva, correspondendo a uma “visão revisionista do passado”, destacou-se pela exaltação da figura de Cárdenas e do caráter heroico dos comuneros, em sintonia com o destaque conferido aos “líderes fortes” na formação histórica do Paraguai. Para o autor do artigo, tal debate, que esteve na origem da historiografia paraguaia (marcada, segundo o autor, pelo “ensaísmo” e “debilidade heurística”), veio a se constitutir em um entrave ao desenvolvimento de novas problemáticas de análise.

Outra perspectiva, formada mais contemporaneamente, envolveu uma interpretação ligada ao processo econômico paraguaio. Como sabemos, frustrados os sonhos de que ela abrigasse riquezas minerais, a Província desenvolveu sua economia em torno de elementos pouco atrativos para a comércio colonial, apresentando uma realidade marcada pela estagnação e isolamento. Relativamente a isto, o autor debate com algumas obras que associaram a rebelião comunera ao descontentamento com o fato de os jesuítas controlarem, por meio de suas reduções, boa parte da força de trabalho representada pelos guaranis. A esta fonte de fricção se somava o fato de que a graúda exportação de erva-mate pelos pueblos jesuítico-guaranis era percebida pelos colonos como causa da deterioração dos seus preços. Além do mais, os religiosos seriam favorecidos neste negócio pelas redes de relacionamentos que manejavam, em detrimento dos hispanocriollos.

Aguiar Ribeiro discorda da relação comumente apresentada entre a disputa pela mão de obra guarani e a revolta comunera. Analisando a Relación de las encomiendas del Paraguay (1674), ele conclui que foi pequeno o número de encomenderos que participaram da escolha do bispo Cárdenas para assumir o governo, razão pela qual sustenta ser preciso encontrar outra explicação para a crise aberta com esta eleição. Como o leitor poderá ver no trabalho, o autor discute as interpretações mais frequentes sobre o conflito, que costumam localizar na questão do acesso à mão de obra indígena o cerne do conflito. Não muitos encomenderos, afirma, “atuaram na eleição de Cárdenas […] e pouco contribuíram para a sustentação de suas políticas, com destaque à expulsão dos padres jesuítas em 1649”. Para o autor, foi especialmente a “ação política” do bispo, buscando uma maior ingerência frente aos povoados missioneiros e, inclusive, a secularização das paróquias, a fonte de desacordo com os jesuítas5. Por sua vez, os vecinos teriam visto em Cárdenas um poderoso aliado na luta contra a consolidação do sistema de reduções.

Buscando uma outra interpretação destes fatos, Aguiar Ribeiro sustenta que a partir do início do século XVII, através das rotas fluviais, ligando os ervais, Assunção, Córdoba e Buenos Aires, e das rotas terrestres, com destaque para o caminho de Tucumán, que ligava Potosí ao porto bonaerense, a região paraguaia integrou-se a um circuito econômico regional que possibilitou que os vecinos da capital tomassem consciência de sua situação de pobreza frente a outras regiões. Para ele, isto difere da interpretação corrente sobre a pobreza e isolamento da província, “pois não trata da quantificação da produção econômica, mas sim da percepção da população em comparação a outras regiões”, sendo que eles atribuíam aos jesuítas esta suposta condição.

A interpretação do autor para o movimento comunero, desenvolvida no artigo que compõe o presente dossiê, é a de que Cárdenas teria contribuído para galvanizar um “sentimento antijesuítico”, que, para além de interesses econômicos imediatos, como aponta a historiografia recente, se relaciona com um sentimento que conferia à Companhia de Jesus as causas da “pobreza do Paraguai”.

A importância da Guerra do Paraguai (1864- 1870) para o processo de centralização do Estado nacional argentino é o tema do artigo seguinte, uma contribuição de Vitor Isecksohn para este número da História Unisinos. No artigo que aqui apresentamos aos leitores, Isecksohn discute a possibilidade de compreender-se este conflito como o complemento da longa guerra civil argentina6, tanto quanto como uma guerra externa. Como lembra o autor de A Guerra do Paraguai e a unificação argentina: uma reavaliação, ainda que o regime rosista e a Confederação que o sucedeu tenham proporcionado “experimentos úteis de convivência” entre Buenos Aires e as províncias, a ideia de um Estado unitário enfrentava forte oposição dos partidários do federalismo, pelo que “os arranjos estabelecidos até a década de 1860 falharam na tentativa de estabelecer um consenso mínimo sobre uma união estável entre as províncias e grupos regionais”.

Assim sendo, o processo de construção do poder público enfrentava a necessidade de desarticular as forças federalistas que, por várias razões, resistiam à nova ordem que se fundava na Argentina republicana. A coleta de impostos e o recrutamento militar eram problemas evidentes e que, como analisa Isecksohn, incidiam diretamente no esforço de guerra. O artigo se apresenta, desta maneira, como uma excelente contribuição historiográfica, justamente no sentido de evidenciar como a Guerra da Tríplice Aliança contribuiu para a atração e submissão à esfera centralizadora, das lideranças provinciais. Tal subordinação teria se dado especialmente através do recrutamento militar e da repressão às oligarquias dissidentes.

A proposta de Vitor Isecksohn, portanto, se afasta da concepção tradicional de que a mobilização militar contribui para a desagregação dos Estados beligerantes, para desenvolver uma ideia contrária a esta. Isto é, de que a atividade guerreira contribui para acelerar o processo da construção do Estado. Para ele, o caso da Guerra do Paraguai se mostra especialmente fecundo para uma reflexão desta natureza, na medida em que comportou a presença de forças brasileiras na província de Corrientes, base de operações para a invasão do Paraguai7. O conflito trouxe, também, “uma mudança na escala do uso da força, produzindo transformações que afetariam o frágil equilíbrio entre Buenos Aires e as províncias, redefinindo o mapa institucional da Argentina”.

Entre outras conclusões do trabalho, está a ideia de que as circunstâncias da campanha forçaram o governo imperial brasileiro a reforçar a autoridade central argentina na região. Desta maneira, ocorreu uma colaboração das forças brasileiras para o reforço da autoridade de um adversário tradicional, o que veio a ser “um efeito não antecipado do esforço de guerra”.

Finaliza o dossiê o artigo de Hernán Ramiro Ramirez, intitulado Develando las dictaduras del Cono Sur: reflexiones en torno a sus abordajes. Neste texto, o autor empreende um esforço de interpretação das diferentes perspectivas de análise das ditaduras do cone sul, contemplando, neste debate, autores associados a distintos campos disciplinares e filiações teórico-metodológicas, e cujas obras foram produzidas em temporalidades também bastante variadas, a partir da década de 1960 até os dias de hoje. Assumindo o ensaio como forma, Ramirez se dedica a discutir, entre outras questões polêmicas acerca da historiografia das ditaduras na América Latina, a natureza ou o caráter dos governos implantados por golpes de Estado, bem como a duração que os mesmos tiveram em seus respectivos países. Traz exemplos, em especial, da historiografia sobre as ditaduras da Argentina, do Brasil, do Chile e do Uruguai, destacando tanto autores nacionais quanto estrangeiros. Propõe um conceito amplo de historiografia, no qual cabem não apenas a produção acadêmica estrita, mas escritos advindos de outros lugares de produção e que contribuem, a sua maneira, para o estudo da temática. Ramirez traz ainda ponderações acerca do uso da expressão “Terrorismo de Estado” e “Estado de Segurança Nacional”, apontando para as insuficiências destes termos no intuito de dar conta da experiência ditatorial como um todo. Em contraponto, sinaliza para a importância de se buscar perceber a dimensão cotidiana vigente nesses países, apesar (e no interior mesmo) destes regimes. Finaliza o texto chamando a atenção para a escassez de estudos comparativos sobre as ditaduras, “disponiéndose así análisis que terminan obedeciendo mucho más a las lógicas de las academias nacionales de lo que aquellas que dicen al curso del proceso”. Ao lado de outras avaliações críticas realizadas recentemente, o artigo de Ramirez oferece uma importante contribuição para se (re)pensar um tema tão urgente e sensível para a historiografia do continente.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Notas

1, O artigo se detem na análise das ações de controle e disciplinamento da luxúria clerical na colônia brasileira, efetuando comparações pontuais com a situação metropolitana. Para tanto observou especialmente as situações envolvendo o delito de “solicitação” ao longo de um período de pouco mais de um século (1640 e 1750).

2. Segundo ele, estudos sobre outros espaços coloniais, como os impérios britânico e espanho, também encontram na sexualidade desregrada elementos de uma política imperial de incremento da colonização e aculturação. A partir de argumentos do mesmo naipe do “luso-tropicalismo”, portanto, tais estudos representariam posições próximas de um “anglo-tropicalismo” ou de um “hispano-tropicalismo”, apenas sem supô-lo como uma realidade exclusiva das respectivas colônias. Assim sendo, embora sejam importantes para ajudar a demarcar o equívoco da noção de especificidade da colonização portuguesa neste âmbito, tais estudos também se enganam, esclarece ele, ao não reconhecer a existência e importância da ação de estruturas judiciais eclesiásticas de vigilância e disciplinamento da sociedade

3. É importante esclarecer que o esforço da autora se volta especificamente para a análise de obras e artigos publicados, asbtendo-se de avaliar dissertações e teses. Ela também elucida que sua análise desta produção não obedece recortes cronológicos ou disciplinares.

4. Estes conceitos tiveram particular reconhecimento a partir dos estudos de Guillaume Boccara para explicar como os indígenas Reche do período colonial, se transmutaram nos atuais Mapuches, contribuindo para “superar problemas oriundos da confusão entre os conceitos de estrutura e identidade étnica”.

5. Em 1639, o bispo Bernardino de Cárdenas iniciou uma série de visitas pastorais às missões do Paraguai com o objetivo de aplicar nelas a delegação que lhe era concedida pelo Patronato Régio, de nomear párocos, tanto em paróquias urbanas como em missões religiosas. Como resposta a isto, os inacianos, com apoio do governador Gregorio Hinestrosa, expulsam-no em 1644. A partir daí torna-se aberta a oposição entre os jesuítas e Cárdenas, que regressa para Assunção em 1648, depois de ter sido anulada a medida de sua expulsão da província.

6. Como sabemos, a unidade territorial argentina permaneceu sendo muito precária ao longo de boa parte do século XIX, com as forças provinciais manifestando forte capacidade de resistir à interferência do poder central.

7. Outra questão instigante levantada pelo autor diz respeito à clara aproximação cultural entre as províncias de Corrientes e Misiones, e o Paraguai. Boa parte da população tendia a perceber a guerra como uma questão entre o Paraguai e o Brasil. Com exceção de Corrientes, que sofreu as consequências da ocupação, onde houve pouca revolta contra as ações guaranis, geralmente identificadas como hostis aos brasileiros. Nesta Província, além disso, as forças brasileiras, desempenharam papel de “aliado interno” do governo de Bartolomeu Mitre, uma vez que tiveram que desarticular uma possível revolta. Neste intricado panorama que refletia dificuldades internas e relações externas da república argentina, há que se considerar, ainda, que províncias como La Rioja e Catamarca se constituíam em outra fonte de dificuldades, pois contavam com apoio chileno, “numa aliança informal que apontava para a forte conexão entre as revoltas internas e as relações transandinas”.

Barbara Weinstein – New York University

Cláudio Pereira Elmir – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina.

Maria Cristina Bohn Martins – Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Maria Lígia Coelho Prado – Universidade de São Paulo

Organizadores do Dossiê


WEINSTEIN, Barbara; ELMIR, Cláudio Pereira; MARTINS, Maria Cristina Bohn; PRADO, Maria Lígia Coelho. Apresentação. História Unisinos, São Leopoldo, v.21, n.3., setembro / dezembro, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Jamaxi | UFAC/ANPUH-AC | 2017

JAMAXI

Jamaxi: Revista de História e Humanidades ([Rio Branco], 2017-) é um periódico eletrônico, semestral, editado sob a responsabilidade da área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre e da Associação Nacional de História – ANPUH/Seção Acre, sem fins lucrativos, com o objetivo de propiciar o intercâmbio, circulação e difusão de estudos e pesquisas nas áreas de História e Ciências Humanas e Sociais.

Tem como objetivo mobilizar e envolver pesquisadores, professores e estudantes de pós-graduação de universidades dessa macro região, bem como manter relações com as experiências de professores da educação básica e de movimentos sociais das florestas e cidades amazônico-andinas.

As contribuições, na forma de artigos, entrevistas, ensaios e resenhas, poderão ser livres ou vinculadas a dossiês temáticos organizados por profissionais dos cursos de História e outras instituições.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre.

ISSN 2675-0724

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Uma breve história do mundo – BLAINEY (MB-P)

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Editora Fundamento Educacional, 2009. 342 p. Resenha de: SURCIN, Gisele. Resenha de ALVES, Igor da Silva. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Das cavernas até a chegada à Lua, da invenção da escrita até a descoberta do átomo, do nascimento da humanidade na África até a colonização da América. Resumir a história da humanidade em um livro não deve ter sido tarefa fácil, mas, para Geoffrey Blainey, isso se concretizou em seu bestseller Uma Breve História do Mundo.

Para amantes da história e acadêmicos da área, o autor, talvez, não traga tanta novidade quanto a informações e passe “correndo” por assuntos tão importantes para a humanidade, como a formação da União Soviética e a divisão da Alemanha. Porém, para curiosos que desejam entender como se procedeu a evolução das civilizações, o bestseller trouxe uma interessante abordagem: fazer com que o leitor sinta-se em um filme, em que cada cena ou quadro mostra um capítulo da história do mundo. E é exatamente isso a que o livro se propõe: ser breve, em 342 páginas, em cada episódio histórico apresentado.

Uma Breve História do Mundo começa mostrando como o ser humano chegou a continentes tão distantes, habitando locais, por vezes, inabitáveis. O leitor passa a entender como o clima, o aumento do nível dos mares e a busca por alimentos facilitaram a emigração de diversos grupos. Percebe-se que a conquista sempre foi inata ao ser humano, e essa vontade de conquistar espaços e povos fez com que o homem buscasse construir meios de favorecer as longas viagens. Foi assim que as embarcações começaram a surgir, auxiliando a raça humana a percorrer os mares, como nos mostra o capítulo Maravilhoso Mar, o qual enfoca a importância das embarcações, como as galeras, as quais eram navios de guerra, usados na Antiguidade, movidos a remo e, geralmente, com auxílio de mão de obra escrava.

Esse fato, para os leitores com um conhecimento de mundo maior, inevitavelmente, trará à lembrança o filme Ben-Hur, cujo personagem principal, um mercador judeu, é escravizado e forçado a remar em uma galera romana, e a canção Cisne Branco, que cita a embarcação em dois trechos: “Linda galera que em noite apagada / Vai navegando num mar imenso” e “Sob um céu de anil / Minha galera / Também vai cruzando os mares”. Para o leitor mais informado, a leitura da primeira à última página trará várias conexões com as aulas de História da escola, com os livros já lidos e com a própria vivência de mundo.

Nessa obra, também há especial enfoque ao surgimento de cinco religiões ou povos: judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo. Num primeiro momento, o leitor pode questionar a atenção dada a essas religiões, que não se resume a um único capítulo, no entanto, posteriormente, o leitor entenderá que o surgimento de cada uma mudou radicalmente os rumos da sociedade. De forma rara na literatura mundial, o autor consegue mostrar o líder cristão por um olhar humano, evitando focar no Jesus sobrenatural: Cristo é descrito como um personagem histórico, de grande influência sobre seus seguidores, um verdadeiro líder carismático, o qual deixou um legado que influenciou a construção de um império: o Império Romano. Mesmo sendo de conhecimento de todos aqueles que frequentaram o ensino escolar mais básico, Blainey não poderia deixar de nos presentear com um capítulo sobre uma das civilizações mais importantes da história, trazendo alguns fatos básicos de conhecimento geral, mas também fatos não tão conhecidos assim. No capítulo A Ascenção de Roma, o livro nos mostra como essa sociedade lidava, por exemplo, com as questões políticas e com seu próprio exército.

A fim de facilitar o entendimento, a obra de Geoffrey Blainey utiliza desenhos de mapas como o apresentado no capítulo A Queda das Cartas do Baralho, que faz os leitores visualizarem as colônias europeias no Caribe e na América do Norte em meados do século XVIII. Essa inteligente estratégia torna a leitura mais agradável e transporta o leitor à época do acontecimento.

Por conseguinte, ao virar a última página de Uma Breve História do Mundo, a sensação é a de querer conhecer mais sobre cada fato narrado, e isso não é uma falha da obra, visto que a proposta é justamente a brevidade, sem ser superficial, e a análise feita de forma didática, podendo agradar aos leitores leigos e, até mesmo, aos catedráticos no assunto.

Gisele Surcin – Primeiro-Tenente da Marinha do Brasil

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O Príncipe – MAQUIAVEL (MB-P)

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 4ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Resenha de: OLIVEIRA JÚNIOR, Airton Antônio de. Um Príncipe não tão maquiavélico. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Entre as diversas traduções e edições deste livro, o escolhido para este trabalho foi o da Editora WMF Martins Fontes, 4ª edição, de 2010, São Paulo, contém 197 páginas, traduzido por Maria Júlia Goldwasser, inclui Vida e Obra do autor, apêndice com paralelo entre Maquiavel e Marx, Notas Explicativas e Vocabulário de termos-chave de Maquiavel.  Um dos maiores livros da literatura política mundial, “O Príncipe” foi escrito em 1513 e publicado, pela primeira vez, em 1527. Maquiavel compreendia a tendência das coisas humanas, a inconstância das massas e a fragilidade das nações. Sem se prender a conceitos estabelecidos, estuda os diversos tipos de Estados, classifica-os por gêneros e estabelece leis, segundo as quais cada principado deve ser conquistado ou governado. Descreve, de maneira genérica, como o governante deve portar-se, de acordo com o cenário estabelecido.

Nos primeiros quatorze capítulos, Maquiavel classifica os principados em gêneros bem definidos, dividindo-os em hereditários e novos, explicitando como se dá a conquista em cada um: com exército próprio ou de outros, pelo fluxo de acontecimentos ou pelo conjunto de qualidades do governante. O autor procura não construir um Estado ideal, e sim ver os problemas reais, a realidade concreta das coisas. O livro é repleto de exemplos da Antiguidade e Idade Média, por exemplo, Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu, Aníbal, porém, a maioria deles é contemporânea, como César Bórgia, Francesco Sforza e o Papa Júlio II. Tudo para comprovar seu ponto de vista.

Nos capítulos posteriores, o autor discorre sobre diversos aspectos relacionados a um príncipe. Comenta sobre as qualidades que um governante precisa ter e outras a evitar, o cuidado devido às finanças, à cobrança de impostos e à utilização desses recursos. Trata, também, da dicotomia “se é melhor ser amado  que temido ou melhor ser temido que amado”, afirmando que “os homens têm menos receio de ofender quem se faz amar, do que a quem se faz temer”. Para Maquiavel, é mais importante aparentar ser piedoso, fiel, humano, íntegro e religioso, a de fato possuir tais qualidades. Sua teoria é baseada no fato de que “… todos veem o que se aparenta, poucos sentem aquilo que realmente é; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos muitos.” Um príncipe deve evitar o desprezo e o ódio dos homens, manter o povo feliz, afastar-se de bajuladores e controlar seus secretários.

Nos três últimos capítulos, Maquiavel aborda a invasão da França na Itália, os motivos que levaram a perda de alguns estados. Defende a tese de que um governo novo tem suas ações mais observadas que um hereditário, e que os homens se interessam mais pelas coisas do presente do que pelas do passado. Para o autor, o fluxo dos acontecimentos não está predefinido, devendo-se preparar para tempos difíceis nos momentos calmos que os antecedem e coloca que é melhor ser impetuoso do que cauteloso. Tenta persuadir a retomada da Itália dos franceses apelando para o sentimento nacionalista e religioso.

Em “O Príncipe”, portanto, Maquiavel demostra que o fato de a Itália estar dividida em diversos governos tornou-a suscetível a constantes batalhas e que poderiam ser evitadas com sua unificação, sob um único soberano, naquele momento por Lorenzo II de Medici, neto de Lorenzo, o Magnífico. Para o autor, um príncipe que tenha uma visão que se afaste de um realismo estrito, que deixe de buscar a verdade efetiva das coisas, está fadado a conceber conclusões equivocadas, perigosas para sua nação. Em seu livro, ele cita que “sendo meu interesse escrever uma coisa útil para quem a escuta, parece-me conveniente seguir a verdade efetiva da coisa do que a imaginação sobre ela.” Quando um príncipe age, assim o faz para conservar o Estado. Se, ao analisarmos as ações dos governantes, entendermos que estamos diante de uma ação praticada não por escolha, mas por necessidade, fica sem sentido qualquer tentativa de impor limites éticos ou morais a tal conduta.

Airton Antônio de Oliveira Júnior – 2º Tenente da Marinha Brasileira.

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A incrível viagem de Shackleton, a saga do Endurance – LANSING (MB-P)

LANSING, Alfred. A incrível viagem de Shackleton, a saga do Endurance. 7° Edição. José Olimpo Editora. 1999. SP. 286p. Resenha de: SILVA, Ivan Castro da. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Fortitudine vincimus – “Vencemos pela Resistência”

Alfred Lansing foi um escritor americano nascido em Chicago, Illinois. O livro que se tornou um best-seller em 1959, narra à história real, mas que por diversas vezes nos remete a sensação da leitura de um roteiro de filme de ação/aventura, sobre a tentativa de cruzar o Pólo Sul por terra, pela Expedição Imperial Transantártica, liderada por Sir Ernest Shackleton e seus 27 tripulantes a bordo do navio Endurance, tal sentimento é possível pela riqueza de detalhes obtidos por meio de fotos, desenhos e, principalmente, pela transcrição das anotações contidas nos diários dos tripulantes e de seu Comandante.

Para contextualizarmo-nos no tempo, a história da tripulação do intrépido navio de madeira inglês, que conjugava propulsão a vela e motor, passa-se na segunda década do século XX, após a recente eclosão da Primeira Guerra Mundial. Em uma época onde a aventura e o ideal de conquista para alcançar a surpreendente marca da travessia, no mais inóspito e longínquo território do planeta, imperava mesmo sobre o conflito entre as nações europeias que se iniciava. Considerando os recursos tecnológicos tanto para navegação quanto para sobrevivência no frio extremo e conhecimento da região antártica, podemos potencializar ainda mais a dificuldade e importância da expedição.

O plano para a travessia contava com dois navios, o de apoio que atracaria em um extremo do continente, onde seriam distribuídas provisões ao longo do caminho a ser percorrido por terra, garantindo assim o retorno com segurança após o alcance do Pólo Sul, com isso o Endurance aportaria, pelo mar de Weddel, na baía de Vessel, onde Shackleton iniciaria sua caminhada por trenós cruzando o Pólo até chegar ao lado oposto, no estreito de MacMurdo. O Endurance ficou preso antes de atingir seu objetivo nas banquisas de gelo, sendo esmagado pela pressão exercida em seu casco, naufragando e levando a emblemática Union Jack para o fundo do mar de Weddel.

Longe de parecer uma nova história de fracasso do chefe da expedição, pois já tinha participado, sem sucesso, em duas expedições anteriores, a leitura nos mostra os atributos de líder de Sir Shackleton e uma notável obstinação em manter seus homens unidos e sem perder o foco principal, que naquele momento passou a ser a sobrevivência. Atributos que foram fundamentais para meses de resistência física e mental, que contariam ainda com uma incrível travessia, em um escaler a remo, por uma das regiões marítimas mais perigosas do globo, situada próxima a Passagem de Drake.

De forma sutil, sem colocar a narrativa da aventura em segundo plano, o autor nos mostra segundo as ações dos membros da expedição durante toda a saga, o quanto as características profissionais e pessoais influenciam uma equipe, não importando o -1- objetivo ou o momento em que se encontram. Apesar de não possuir este objetivo principal, vários trechos da leitura podem ser aproveitados para debates e discussões sobre alguns temas como liderança, formação de equipes e a maneira que os liderados observam seu líder em situações adversas.

Ivan Castro da Silva – 1º. Tenente da Marinha do Brasil

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O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente – JUDT (MB-P)

JUDT, Tony. O mal ronda a Terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 212 p. Resenha de: SANTOS, Pedro Hélio dos. O antagonismo do papel do governo – a sensação de mal-estar coletivo. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

O mal que ronda a terra foi a última obra do autor, escrita durante a doença que o levaria à morte. No título identifica que algo profundamente errado no modo como pensamos e vivemos hoje em dia. O autor realiza uma crítica ao individualismo contemporâneo e suas influências no campo da política econômica através das desregulamentações e do contínuo esvaziamento do espaço público promovido pela classe política nos últimos anos. Esse mal tem como pano de fundo um rompimento do contrato social que definiu a vida em sociedade tanto na Europa quanto na América, principalmente no pós-guerra. Os temas que permeiam os diversos capítulos de sua obra são: a escalada das desigualdades, tanto entre indivíduos quanto entre regiões; a redução da participação cívica; e a subordinação consentida da política e de outras dimensões da vida à economia.

Com o “culto do privado” a febre do novo liberalismo contaminou o mundo com grande velocidade e muitos fatores foram discutidos nesses momentos de crise. Esta visão politica demostrava vantagem na implantação, de forma sistemática, das privatizações, acrescentando a hipótese de ganho da iniciativa privada com a eficiência do serviço. Desta forma, o controle das empresas, sem dúvida, seriam conduzidas com uma visão de investimentos a longo prazo e preços eficientes, contudo na pratica tem sido bem diferente. “Ironicamente nas Parcerias Público- Privadas (PPP) inglesas de gestão de hospitais existia uma cláusula de resguardo que obrigava o governo a bancar prejuízos para evitar a descontinuidade dos serviços”.

O profundo sentimento de apreensão, ocorrida nas últimas três décadas do século passado e que se prorroga até os dias atuais em todos os países, em especial nos Estados Unidos e no Reino Unido, foi influenciado pelo aumento da desigualdade social. Sendo aqueles anos caracterizado por avanços sociais que haviam reduzido a desigualdade nos países abastados. Ela é nociva à confiança das pessoas, bem como gera um nível menor de bem-estar, inclusive para os mais ricos. O livro apresenta uma série de estatísticas que demonstram: quanto maior é a desigualdade menor é a mobilidade social e maiores são os problemas sociais, tais como: os homicídios e as incidências de doenças mentais. As incertezas, em torno da economia ou da governança, resultaram em surtos de pavor coletivo, que é outro fator responsável pela corrosão da confiança e das instituições, pois todos e quaisquer empreendimentos exigem confiança entre as partes.

A questão do sistema previdenciário é outro fato interessante tratado neste livro, que já a algum tempo, é objeto de grande preocupação dos países da Europa. A redução na quantidade de contribuintes e o elevado número de beneficiários, causado pelo aumento da faixa etária, que é um instrumento catalizador da inversão da pirâmide etária desses países, provocaram um grande desequilíbrio desse sistema. Ele cita o exemplo dos maquinistas na França, que devido as condições de vida precária e uma baixa perspectiva de vida no início do século XIX, possuíam altos salários e grandes benefícios para compensarem a situação daqueles profissionais. Com o avanço das questões sociais e trabalhistas, logo vieram as melhores condições de vida e a longevidade desses trabalhadores, estimulando o desequilíbrio no sistema previdenciário da rede ferroviária.

As crises econômicas dos anos 1980 e de 2008 apresentaram causas diferentes entre si e alteraram, de maneira significativa, o modo de vida contemporâneo. No fim dos anos 80, com a queda do Muro de Berlim, destacou-se o discurso hegemônico dado pelo Consenso de Washington, com as seguintes caracteristicas: estado mínimo com privatização de empresas estatais, monetarismo, redução de impostos, desregulamentação de atividades com incentivo à livre iniciativa, focalização de políticas sociais, etc. Por outro lado, defender a regulamentação de mercados e universalização de políticas sociais era algo classificado como “socializante”. Já a crise de 2008 mostrou o quanto o capitalismo pode ser perverso, segundo Judt, essa crise rompeu com o paradigma entre Estado e Mercado, pois exigiu Estados fortes e governos “intervencionistas” para evitar uma “quebradeira” geral como a ocorrida em 1929.

Na proporção que se avança na leitura dos capítulos, percebe-se que os contextos pesquisados pelo autor, nos países da Europa e dos Estados Unidos, revelavam-se como problemas universais, de um mundo cada vez mais globalizado e integrado nos modos políticos e econômicos, como o movimento de integração que surgiu na época da independência colonial. Portanto, os fatos vividos no Brasil, nas últimas décadas, foram reflexos das decisões emanadas dos países centrais. Além disso, ficou a tentativa de resgatar uma visão de mundo e dos valores da Social-Democracia (a liberdade, a igualdade, a justiça social e a solidariedade), a luta e a primazia do julgamento individual. Contudo, os governantes deveriam ser menos preocupados com a defesa do prestígio e do enriquecimento individual e mais engajados civicamente.

Tony Judt, nasceu em janeiro de 1948 em Londres, e faleceu, em 2010, em Nova York, nos últimos anos lecionava na Universidade dessa Cidade. Dentre suas principais obras constam os seguintes títulos: Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos; Reflexões sobre um Século Esquecido – 1901-2000; Passado Imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa; Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945.

Pedro Hélio dos Santos – 2º. Tenente da Marinha do Brasil

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