Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850 | Roberto Guedes

Analisar as vivências de libertos e seus descendentes através de um conjunto variado de fontes, e conseguir reconstituir trajetórias de famílias com ascendência escrava numa área de produção agrícola para o mercado interno – e, por isso mesmo, representativa de regiões agrárias do Brasil escravista do século XIX – foi o que propôs Roberto Guedes em seu livro.

Este trabalho é resultado de sua tese de doutorado defendida na UFRJ em 2005, e tem como recorte espacial a vila de Porto Feliz, na capitania/província de São Paulo, no período de fins do século XVIII e início do XIX (especificamente a primeira metade do século XIX), e como tema central a mobilidade social. O autor procurou analisar as estratégias de ascensão social empreendidas por libertos e seus descendentes, tais como o trabalho, a estabilidade familiar, a inserção em redes de socialização, dentre outros. Para isso, utilizou como método de abordagem o proposto pela micro-história, realizando um trabalho intenso com diversos tipos de fontes, onde utilizou a técnica do cruzamento onomástico: listas nominativas de habitantes, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem, testamentos e prestação de contas de testamentos, notas cartoriais, licenças expedidas pela Câmara Municipal, processos crimes, etc. Assim, foi possível ao autor acompanhar por mais de quatro gerações as trajetórias de libertos e descendentes como, por exemplo, o caso da família Rocha.

Além do trabalho com as fontes, vale ressaltar o cuidado do autor em dialogar com a historiografia no decorrer do livro – como os trabalhos e pressupostos da historiadora Hebe Mattos (1995; 2000), referência nos debates propostos – importante não só para situar sua abordagem, apontar questões que está de acordo ou não, como também para comparar os dados levantados para Porto Feliz com os de outras localidades. Algumas questões importantes para a compreensão de seu livro são o fato do autor entender a sociedade de Porto Feliz como uma sociedade com traços de Antigo Regime e a escravidão como sendo parte integrante dela, ou seja, uma sociedade com traços estamentais e escravista, onde a mobilidade social é entendida não só pela mudança de posição na hierarquia social estamental, mas também pelo viés intragrupal e ainda “não deve ser confundida apenas com enriquecimento” (Guedes, 2008, p. 87). Antes, o mais importante era a manutenção e/ou a redefinição do lugar ocupado na hierarquia social, para o que a riqueza podia colaborar ou não. Desta maneira, Guedes procurou entender como se deu a trajetória de forros e descendentes, apresentando seu livro dividido em cinco capítulos, que se destacam pela riqueza de detalhes não só na forma de escrever, bem como através de quadros, gráficos, diagramas, que nos permitem perceber de forma ampla e precisa a vila de Porto Feliz e sua população.

Primeiramente, é apresentada a paisagem agrária da pequena Porto Feliz, que até 1797 era a freguesia de Araritaguaba, quando foi elevada a vila. Durante todo o século XVIII, este lugarejo foi fundamental na rota fluvial das monções quando se descobriu minas de ouro em Coxipó-Mirim e Cuiabá. Já nos primeiros anos do século XIX, o comércio das monções teve sua importância diminuída devido ao surgimento de outras rotas, o que coincidiu com o desenvolvimento da economia canavieira no oeste paulista, desenvolvimento que Porto Feliz acompanhou, se inserindo entre os municípios situados no “Quadrilátero do Açúcar”, área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçú e Jundiaí.

Guedes mostra como o cultivo da cana-de-açúcar, voltado para o mercado externo à vila, estimulou o desenvolvimento de Porto Feliz, possibilitando o crescimento do “miolo urbano” com construção de algumas casas, instalação de vendas; influenciou também o aumento da população, principalmente da população escrava em função do tráfico de cativos para trabalhar nas lavouras; estimulou o mercado de animais e a criação de gado para alimentação e para moverem os engenhos, e também a produção de alimentos como milho, feijão, arroz, entre outros, destinados ao consumo próprio e comercializados na vila. Inicialmente, foram os pequenos escravistas que participaram plenamente da atividade açucareira, mas a partir de 1820-1824 os grandes produtores aumentaram sua participação e intensificaram a concentração da propriedade escrava. Para a montagem de um engenho era preciso cabedais, e o crédito foi fundamental para o financiamento, assim como o fato dos senhores de engenho se dedicarem a outras atividades como negócio de fazendas secas, lavouras, o comércio das monções, etc.

Ao verificar em seus dados levantados para Porto Feliz o exercício de outras atividades pelos principais da terra, Roberto Guedes estabelece um intenso diálogo com a historiografia, tendo o „trabalho‟ como questão importante. Assim, a partir do conceito de trabalho de Caio Prado Jr. no passado colonial/imperial no Brasil e da análise de outros estudos que seguem a mesma perspectiva, o autor matiza a idéia de que o defeito mecânico e a escravidão inviabilizaram o trabalho livre não só no sentido de ocupação de espaços nas esferas produtivas, mas também no de imputar estigma social a trabalhadores, em especial a forros e descendentes. Tendo como base estudos como os do historiador João Fragoso, comparando os dados levantados para outras localidades com Porto Feliz, Guedes constatou que as elites locais dedicavam-se a outras atividades como comércio e que não deixaram de ser estimados socialmente. Desta forma, podiam não ter uma ideologia negativa do trabalho e, por isso, afirma a importância de se analisar cada realidade local e temporal e “ressaltar as nuances que as noções de trabalho tiveram na colônia/império e entre distintos segmentos sociais” (Guedes, 2008, p. 76). Desta maneira, o autor concentra sua análise nos indivíduos que não eram membros da elite, especificamente forros e descendentes, analisando o trabalho como uma das estratégias, uma das várias formas de mobilidade social.

Para abordar este grupo, Guedes se baseou em concepções de Stuart Schwartz (1988) e Hebe Mattos, se fundamentando nas questões de que a escravidão impunha referenciais de hierarquia distinguindo social e juridicamente escravos, livres, forros e descendentes de escravos e que a transposição de uma categoria jurídica a outra e o posterior afastamento de um antepassado escravo pressupõem passos na hierarquia social, para o qual a cor da pele podia estar relacionada. Assim, o autor analisa através de listas nominativas e mapas de habitantes, o trabalho relacionado a cor/condição social, e verifica como a ocupação diferenciou forros e descendentes de escravos e ambos entre si, corroborando com evidências de que o trabalho propiciava mobilidade social expressas na cor.

É válido ressaltar a preocupação do autor em relação ao cuidado que se deve ter durante a análise desses documentos, no que diz respeito à questão de quem atribuiu ou auto- atribuiu a cor e de quem faz o registro, além da variação nas fontes, etc, pois nem sempre há consonância entre os termos utilizados por autoridades que elaboraram os mapas e os utilizados por recenseadores que fizeram as listas, mesmo que ambos se referissem a uma mesma cor/condição social. No geral, Guedes constatou, por exemplo, que a escravidão influenciou nas cores das pessoas em Porto Feliz e que o trabalho influenciou na oscilação da cor, o que era frequente. Em relação ao registro da cor, percebeu que o termo mulato pode ter tido um sentido pejorativo, e que ser caracterizado como branco marcava uma diferenciação fundamental em relação aos escravos e um distanciamento maior da escravidão em relação aos pardos. Enfim, na análise proposta pelo autor, a hierarquia e a posição social manifestas na cor eram fluidas e dependiam de circunstâncias sociais.

Vista pelo autor como o primeiro passo na hierarquia social, a alforria era onde os forros se diferenciavam dos escravos, por isso Guedes também procurou analisar como se dava essa passagem da escravidão para a liberdade, bem como alguns caminhos que conduziam à liberdade e seus momentos posteriores. O autor compreende a alforria como uma troca equitativa entre senhores e escravos, mas obviamente baseada na desigualdade, ou seja, uma relação de troca assentada na reciprocidade, sem esquecer que reciprocidade não é sinônimo de equivalência. Assim, nesta relação, do ponto de vista do escravo, o autor destaca a questão da submissão, que implica reconhecimento do poder senhorial, que juntamente com a obediência e os bons serviços prestados, podem ser vistos como estratégias de mobilidade social, uma vez que submissão não deve ser entendida apenas de forma unilateral, sendo necessário atentar para o interesse do submisso pela submissão, através das quais se podiam alcançar vantagens.

Outras formas de alforrias, de estratégias, destacadas pelo autor foram casos que, segundo ele, não eram frequentes, de ascensão social de cativas e/ou de seus filhos derivada de relações sexuais/afetivas com seus senhores, onde as ex-escravas e/ou seus filhos, além da liberdade, também herdaram alguns bens dos senhores. O matrimônio foi outro exemplo de forma de alforria, pois existiram casos de casamento de libertos(as) com escravas(os), onde a última foi alforriada. E uma vez inseridos na nova condição jurídico social, foi importante estabelecer relações sociais, as quais tinham sempre que ser reatualizadas para manutenção da nova posição, seja pelos forros ou seus descendentes.

É no último capítulo que percebemos a análise do autor por completo, pois através das trajetórias de algumas famílias ele comprova todas as suas hipóteses: a mobilidade social, seu tema central, relacionada conjuntamente ao trabalho, estabilidade familiar, mostrando a solidariedade intragrupal e a inserção em redes de sociabilidade, como as alianças com potentados locais, tudo isso associado à mudança no registro da cor da pele. Foram nessas trajetórias que o autor propôs aplicar o método da micro-história, e realizou o cruzamento de diversos tipos de fontes, analisando a mobilidade social dos egressos da escravidão, onde as trajetórias foram descritas passo a passo a fim de apreender tais estratégias.

Encontrando pontos em comum nessas trajetórias, o autor mostrou que o trabalho podia ser percebido de forma positiva e ainda poderia propiciar margens de autonomia e ascensão social para forros e descendentes, não só em termos materiais, mas também no que diz respeito à reputação, às questões de reconhecimento e atuação social. Sobre a família e a inserção em redes de sociabilidade, os vínculos se percebem, por exemplo, nas relações de compadrio, e mesmo os que conseguiram ascender à condição de escravistas, não implicava o afastamento em relação aos seus iguais. Estes mantinham as relações horizontais, já que não havia porque fechar portas em um mundo instável, apadrinhavam filhos ou eram testemunhas de casamentos de escravos ou forros, mas para apadrinhar seus filhos preferiam pessoas com títulos como donas, tenentes, capitães, etc. Assim, Guedes nos fala da “transformação” de alguns pardos em brancos, como alguns pardos conseguiram se inserir no mundo senhorial, mostrando os fatores associados à mobilidade social também como um processo geracional.

O livro de Roberto Guedes, portanto, mostra como a mobilidade social contribuía para a manutenção de hierarquias sociais, não estando acessível a todos, mas tornando possível a forros e seus descendentes atuarem numa sociedade caracterizada pela desigualdade. O trabalho de Guedes contribui para estudos sobre a escravidão que se voltam para substituir a ideia de “vítima” pela de “agente social”, ou seja, o escravo como um ser ativo na dinâmica da sociedade. Também é importante para estudos que buscam entender a participação social de libertos e seus descendentes, deixando de lado a visão de uma sociedade bipolarizada entre senhores e escravos, com aquele grupo incluído entre os vadios, os desclassificados sociais, com poucas chances de ascensão social; estudos que se voltam para a análise dos usos e significados sociais dos designativos de cor, bem como os que abordam a alforria, principalmente com enfoque para áreas rurais, o que pode servir também para estudos comparativos entre regiões urbanas e rurais.

Referências

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

______. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550- 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Iara de Oliveira Maia – Mestre, licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: iaramaia_ufop@yahoo.com.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4762-4836


GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ, 2008. Resenha de: MAIA, Iara de Oliveira. Os significados da mobilidade social para forros e seus descendentes. Caminhos da História. Montes Claros, v.22, n.2, p.121-125, jul./dez.,2017. Acessar publicação original [DR]

Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.10, n.2. 2017.

ARTIGO

HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO

RESENHA

(Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História – MAIA et. al (HE)

MAIA, Tatyana de Amaral; ALVES, Luís Alberto Marques; HERMETO, Miriam; RIBEIRO, Cláudia Sofia Pinto (Org.). (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História. Porto Alegre: EdiPUCRS; Porto: CITCEM, 2016. 286 p. Resenha de: CARMO, Maria Andréa Angelotti. A responsabilidade social do ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 231-237, jul./dez. 2017.

Historicamente, uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades está no controle sobre a memória, o esquecimento e os silêncios na História, conforme argumenta Le Goff (2003). Nessa perspectiva, as batalhas entre os registros e a hegemonia sobre determinada memória são marcadas pelos silêncios, esquecimentos e confrontos que compõem a história das sociedades humanas e, em especial, das democracias atuais. As sociedades, cujas histórias encontram-se inseridas em processos ditatoriais, têm enfrentado seus passados recentes a partir de temas e conteúdos compreendidos como sensíveis, dolorosos e de difícil consenso.

É o caso das sociedades ibéricas e sul-americanas. Qual, então, o papel do ensino de História no processo de construção, reelaboração, manutenção, mediação, e outros tratamentos da memória, nessas sociedades? Um olhar atento sobre esses passados, e seu ensino, nas sociedades ibéricas e sul-americanas, constitui a feliz contribuição que se apresenta na coletânea (Re)Construindo o Passado: o papel insubstituível do ensino de História, publicada pela Editora da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul em parceria com o Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória (CITCEM) da Universidade do Porto, Portugal.

A obra é organizada pelas professoras brasileiras Tatyana de Amaral Maia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Miriam Hermeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e pelos professores portugueses Luís Alberto Marques Alves e Cláudia Sofia Pinto Ribeiro, ambos da Universidade do Porto. A coletânea conta com análises e pesquisas da temática no Brasil e em Portugal e traz, ainda, a participação de pesquisadores espanhóis e argentinos num exercício em que compreendem a necessidade contínua de reflexão sobre os usos do passado, e de como eles se apresentam, e são tratados, no ensino. Os artigos resultam de distintas pesquisas que envolvem perspectivas de alunos, professores, propostas curriculares e manuais didáticos de ensino de História. Ainda, abordam a forma como memórias, narrativas, percepções do passado são eleitas para comporem, ou não, o quadro dos conteúdos, formas de apresentação e abordagens históricas.

A coletânea está dividida em duas partes, de modo a contemplar os estudos sobre as sociedades ibéricas e sul-americanas em suas peculiaridades e particularidades: Os passados dolorosos na Europa e Os passados dolorosos na América Latina são compostas por quatro artigos cada uma, o que disponibiliza, ao leitor, um amplo panorama da temática nos diferentes países e contextos, a partir de análises de um rico e diverso leque de fontes e do emprego das mais diversas metodologias.

Na primeira parte, Luís Alberto Alves e Cláudia Ribeiro refletem sobre o que temos feito dos “nossos passados históricos”, dos quais não queremos lembrar. Ensinar passados dolorosos, aprender com o uso pedagógico da história apresenta os resultados e análises de uma longa pesquisa realizada com estudantes do 9º. e do 12º. anos da Educação Básica, e professores de História, em Portugal. Os autores compreendem que o passado, por mais doloroso que seja, deve transformar-se “num conhecimento inteligível e, a partir daí, acreditar num devir de melhoria (esperança) que seja suportado na inteligibilidade” (p. 28). Os passados dolorosos precisariam ser trabalhados por docentes “preparados cientificamente e intelectualmente honestos”, a fim de fornecer “recursos variados, perspectivas heterogêneas, sínteses consensuais englobando contributos dos seus interlocutores” (p. 27). Por meio das análises de entrevistas com professores e alunos, os autores tratam as “questões socialmente vivas” e remanescentes da Guerra Colonial, consideradas, pela maioria dos entrevistados, como o ápice do passado doloroso da sociedade portuguesa.

Na análise de Aprendizagem histórica dos passados dolorosos: as “guerras coloniais” nas narrativas de jovens portugueses, Marçal de Menezes Paredes e Tatyana de Amaral Maia refletem acerca da aprendizagem e educação histórica como campo de pesquisa em que se busca “investigar os processos pelos quais alunos constroem o seu conhecimento histórico e como aprendem os conceitos estruturantes da disciplina” (p. 51). Em um segundo momento, os autores analisam as maneiras de compreender a história da Guerra Colonial dos alunos portugueses, considerando os passados dolorosos circunscritos às experiências traumáticas e “passados que ameaçaram romper com a cultura histórica moderna que inclui a defesa de valores considerados universais e intrínsecos aos indivíduos” (p. 63). Nessa pesquisa, a apreciação das narrativas de estudantes leva os autores a entenderem que a História ensinada ainda exerce um papel tido por essencial na compreensão da experiência vivida. No entanto, revelam, também, os desejos de esquecimento, o silêncio sobre esse passado ou mesmo o tratamento superficial das questões na forma como são abordadas no ensino ou pela opinião pública.

Beatriz de Las Heras, no artigo (Re)construindo a história a partir da (re)presentação visual: memória da Guerra Civil espanhola em Madrid por meio da fotografia, argumenta que a fotografia não mostra a realidade, mas mostra realidades (p. 82). A autora trabalha quatro conceitos chaves considerados relevantes para a compreensão do processo de (re)construção da história a partir das imagens: memória, fragmento, saber lateral e (re)presentação.

As formas como trabalharam os fotógrafos na cidade de Madrid, bem como as estratégias de propaganda mais utilizadas durante a guerra, também são consideradas ao longo do texto. Apresentando um conjunto de fotografias e tecendo profundas análises, Las Heras aponta as estratégias de mostrar, ocultar, reter e reconduzir, utilizadas pelas autoridades durante a guerra civil espanhola. Neste texto, a fotografia e todo seu processo de “fabricação” são compreendidos como um processo de criação de um discurso que finda por se converter na memória do acontecimento. A leitura nos apresenta a inquietação e preocupação quanto aos usos, produção e emprego das imagens, especialmente na sociedade contemporânea, em que a chegada da tecnologia se converteu em um grande programador de olhares, e registros, de memórias.

No artigo Abordagem ao ensino da Guerra Civil e da ditadura de Franco na Espanha contemporânea, Claire Magill observa as “diferenças nas abordagens dos professores no que respeita à relação explícita entre o passado e o presente” (p. 116), e analisa as metodologias adotadas pelos profissionais do ensino ao ministrarem os temas da Guerra Civil e da Ditadura de Franco. As investigações da autora levam-na a deparar-se com cinco grupos/categorias de professores, assim descritos: aqueles que não se privaram de ensinar o tema potencialmente polêmico, mas também não criaram oportunidades para abordar tais questões (p. 120); aqueles que enfrentam verdades desconfortáveis, mitos e preconceitos, e procuram sensibilizar seus alunos para os perigos de reduzir questões históricas e complexas a explicações simplistas e maniqueístas da História (p. 122); aqueles que em vez de apresentar múltiplas perspectivas e incentivar seus alunos a fazerem suas próprias escolhas, tendem a apresentar suas próprias opiniões, sem incentivar o debate ou a discussão (p. 126); aqueles que mostram clara preferência por manterem-se afastados de questões polêmicas ou controversas; aqueles que relutam em abordar o tema ou relacionar o passado e o presente; aqueles que tratam a questão, mas não conseguem explorar o tema em profundidade.

Não se trata apenas de nomear uma ou outra atuação docente, tampouco culpar os docentes e sua atuação, mas busca-se refletir acerca das dificuldades encontradas para trabalhar questões não amplamente consensuais e conflituosas na sociedade contemporânea. Ressalta-se a necessidade de desenvolver programas de formação profissional, adequados e pertinentes, no contexto espanhol e em outros contextos.

Na segunda parte da obra temos O ensino de história e os “passados dolorosos”: a questão das ditaduras na América Latina, texto no qual Marcos Napolitano e Mariana Villaça apresentam o debate historiográfico sobre a temática, propondo oferecer alguns subsídios para que o professor possa abordar o tema, instigando os alunos a compreendê-lo historicamente (p. 155). Após apresentar um panorama das ditaduras na América Latina e suas principais questões, os autores indicam um conjunto de temas, conteúdos, materiais, e atividades didáticas, que podem auxiliar os professores no tratamento dessas questões, além de indicarem bibliografias sobre os golpes e regimes militares.

Por sua vez, Maria Paula Gonzáles debruça-se sobre a última ditadura na Argentina e a observa como “um passado que não passa” perpetua-se em um grande desafio para a escola habituada e convencida de seu caráter neutro. O Ensino da História e passados sensíveis: olhares sobre o caso argentino provoca-nos ao trazer uma abordagem acerca das narrativas, dos regulamentos educativos e, principalmente, das práticas e desafios que se apresentam aos professores de história no ensino de uma temática histórica do tempo presente. Após mergulhar na documentação, e analisar as práticas de ensino como estratégias e táticas construídas no tempo e no contexto, a autora aponta que o tratamento da história nas escolas está “tensionado pela natureza recente e polêmica, a condição aberta e inacabada, o caráter traumático, as questões éticas e políticas, o privilégio da memória sobre a história” (p. 219). A autora destaca, ainda, a relevância de se reconhecer os problemas acarretados pelo tratamento dado ao passado, oportuniza a revisão das maneiras pelas quais pensamos a história como reelaboração do passado, e os significados que damos ao seu ensino.

Com o título de Justa memória, dívida ética e passados-presentes dolorosos: questões a partir da análise de interpretações sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) em livros didáticos de História, o penúltimo artigo da obra apresenta a reflexão de Mateus Henrique de Faria Pereira e Miriam Hermeto, que versa sobre a “tensão entre as práticas do dever de memória e do trabalho de memória” (p. 228). Os autores discorrem sobre os temas da arte engajada e do Golpe de 1964, e de como eles são abordados e dispostos nos 46 manuais didáticos analisados. Os livros didáticos são compreendidos como produtos culturais e instrumentos pedagógicos que se tornaram guardiões e construtores da memória e do saber escolar (p. 243), e o ensino de história pode contribuir para o exercício de superação de uma história “puramente traumática” em direção à transformações no e do presente. O texto encoraja a discussão de maneira crítica e sistemática da escrita da produção didática e a reflexão sobre o dever e o trabalho de memória, cuja incumbência parece incidir sobre ensino de História, de modo a contribuir para que processos históricos não voltem a ocorrer.

O empenho contido no último artigo da obra, Os passados dolorosos no ensino de História: trauma, memória e direitos humanos, de Tatyana de Amaral Maia, é compreender como a legislação e os documentos curriculares que orientam o ensino de História tratam do tema e expõem a ação oblíqua do Estado brasileiro, quanto ao dever de memória e à ampliação da justiça de transição (p. 264). Após profundas análises acerca da instituição e atuação da Comissão Nacional da Verdade e seus contextos, bem como dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a autora provoca quanto à naturalização da seleção de determinados conteúdos históricos, e sobre o discurso meramente retórico de defesa dos direitos humanos, apontando que é preciso integrar os currículos dedicados ao ensino de História e à Educação em Direitos Humanos, de modo a favorecer a superação dos legados autoritários na sociedade. Para a autora, o ensino de História pode ser um espaço privilegiado para a reflexão sobre a ditadura militar e seus legados, e pode romper com a “política do esquecimento” que teria sido implantada junto com a “transição negociada” experimentada pela sociedade brasileira (p. 263).

A obra (Re)Construindo o passado: o papel insubstituível do ensino da História instaura a oportunidade de olhar para os passados dolorosos sob a perspectiva do ensino, mas também possibilita ampliar o olhar para além de materiais didáticos e conteúdos curriculares, apresentando diferentes fontes, linguagens, e contextos, em que se pesam elementos como o compromisso e a honestidade intelectual para com a sociedade e seus enfrentamentos sociais e históricos, bem como para com as populações, e grupos, diretamente marcados pela violência, cujas memórias parecem manter-se sob a “sombra” dos registros e discursos hegemônicos.

A coletânea oportuniza rememorar o privilégio e o dever do ensino de História no processo de (re)construção de passados recentes, reconhecimentos e esclarecimentos de usos e abusos. (Re)construção de sua força no combate aos “esquecimentos” e de sua possibilidade de contribuição na formação de uma sociedade nas quais suas histórias não repitam os processos cingidos pela dor.

Maria Andréa Angelotti Carmo –  Professora Adjunta no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-doutoranda em História pela Universidade do Porto, Portugal.

rajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo – VAROLO (HE)

VAROLO, Flávia Renata da Silva; RIBEIRO, Arilda Ines Miranda; FELIX, José Luís. Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo. Uma escola alemã na colônia Riograndense: 1922-1938 (Maracaí/Cruzália-SP). Jundiaí: Paco Editorial, 2015. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Terra, educação e imigração: uma escola na colônia de alemães no interior do Estado de São Paulo. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 243-247, jul./dez. 2017.

VAROLO Flávia Renata da Silva (Aut), RIBEIRO Arilda Ines Miranda ([Apres]), FELIX José Luís (Apres), Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo (T), Imigrantes alemães, SAMPAIO Thiago Henrique (Res), Colônia alemã riograndense, Escola alemã, Paco Editorial (E)

Quando estudamos movimentos migratórios, temos que entender as tentativas de implantação de uma cultura de imigrantes, em seus novos espaços de convívio, como uma forma de continuação das experiências de sua terra de origem. Dentro dessa perspectiva, a obra Trajetória educacional dos imigrantes alemães no interior do Estado de São Paulo apresentou um panorama da colônia Riograndense e sua escola alemã.

Na apresentação José Luís Felix, professor da Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis), salientou a importância do papel de um sistema escolar dentro da comunidade de imigrantes alemães no Brasil. Dessa forma, a história da escola da colônia Riograndense confunde-se com a trajetória da própria localidade. O recorte temporal apresentado na obra é de 1922 a 1938, na região dos municípios de Cruzália e Maracaí. O ano final da escolha da pesquisa deve-se à deterioração da Escola Alemã, durante o Estado Novo com suas medidas educacionais.

Na introdução, Flavia Renata da Silva Varolo, apresentou suas motivações ao escrever a obra e seu contato com a cultura e língua alemã durante sua trajetória de formação. Seu livro usou como metodologia a História Oral, articulando-se com a História Cultural, durante toda a obra. Suas fontes são fotografias, textos, e narrativas, dos moradores da colônia e pessoas que passaram pela Escola Alemã.

O livro é resultado de sua dissertação de Mestrado em Educação, A educação alemã na colônia Riograndense: 1922-1938 (Maracaí/Cruzália-SP) defendida, em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente (UNESP/Presidente Prudente).

No primeiro capítulo, O imigrante alemão no solo brasileiro, a autora mostrou o início da vinda dos alemães em território nacional. Isso era desencadeado por motivos como má distribuição de terras, problemas econômicos, e altos impostos, em suas localidades. Para a pesquisadora, o início do movimento migratório alemão para o Brasil começou com a vinda da família real portuguesa, em 1808, que trouxe alguns alemães em sua comitiva.

O aumento do fluxo da população alemã ao Brasil iniciou-se em 1820, com um decreto de D. João VI para incentivar a entrada de indivíduos europeus, com a finalidade de gerar o branqueamento da população do território. Entre 1822 a 1826, a vinda de alemães ganhou força com a Imperatriz Leopoldina, filha do imperador da Áustria, Francisco I.

No caso do Estado de São Paulo, a imigração alemã pode ser dividida em quatro fases: a primeira, de 1827 a 1849, devido a políticas imperiais adotadas no país; a segunda, de 1850 a 1870, acarretado às agitações sociais nos territórios alemães; a terceira, de 1870 a 1945, motivada por parcerias entre as administrações do estado com companhias; e a quarta, de 1945 aos dias de hoje. Na década de 1930, o fluxo de alemães se intensificou para o Estado devido a política de branqueamento adotado durante o Estado Novo.

Nas décadas de 1920 a 1930, a educação brasileira não penetrava nas grandes camadas populares, isso incluiu os imigrantes em território nacional. A educação pública era essencialmente aristocrática e patriarcal. Com o movimento da Escola Nova, buscou-se uma renovação escolar através do discurso progressista e liberal.

Durante a Era Vargas, aconteceram mudanças formais e substanciais na educação através de algumas medidas como a criação do Ministério da Educação e Saúde (1930), a Reforma Francisco Campos (1931), e a Reforma Gustavo Capanema (1942). Com uma pasta própria para assuntos educacionais, ocorreram a formação do Conselho Nacional de Educação, que buscou a organização do ensino superior, secundário e comercial; a organização da Universidade do Rio de Janeiro, e a adoção de medidas no regime universitário.

No capítulo seguinte, Uma colônia de alemães no interior do Estado de São Paulo, a autora tratou da formação da Colônia Riograndense, em 1922. A população da localidade era originária da Alemanha, Áustria, Suíça e de alemães que já estavam no Brasil e se mudaram para a região. Para escrever sobre a história da colônia foi utilizada documentação oficial, depoimentos e diários de habitantes. O nome da região origina-se da influência de colonos do Rio Grande do Sul.

Durante o início da colônia aconteceu propaganda para a vinda de alemães a área. Esse marketing era enganoso, pois divulgava terras planas e próprias para a agricultura. Ao chegarem na localidade, os colonos deveriam abrir matas para a construção de casas e cultivos. Além disso, a viagem da Alemanha para o Brasil era extremamente cansativa e penosa, principalmente para crianças e idosos. Muitos, que tentaram vir, morreram devido a problemas na viagem e causadas por tifo.

A colônia Riograndense passou por três núcleos de colonização: em 1922, na região central da localidade; em 1924, começou um segundo núcleo, formado por habitantes de maioria católica e com grandes propriedades; e em 1929, uma região de população majoritária de gaúchos em torno da Fazenda Galvão.

As mulheres e crianças ajudavam na derrubada de matas para a criação de áreas cultiváveis e habitacionais na colônia. A agricultura era de produtos de subsistência: mandioca, milho e feijão. Entretanto, a economia da colônia ganhou força com a comercialização de alfafa, produto ficou em alta até a década de 1950. Na década de 1960, a alfafa foi substituída pelo cultivo de trigo e soja. A localização da área colonial era de fácil acesso à estrada de ferro (Sorocabana), possibilitando um rápido escoamento de sua produção.

Católicos e luteranos conviviam na localidade. Desde o início do processo de colonização as igrejas eram construídas. Desta forma, fé e religião eram uma força para os colonos superarem as dificuldades das mudanças.

No último capítulo, A educação alemã na colônia rio-grandense: escolas, clubes e práticas culturais, a autora buscou demonstrar o papel primordial desempenhado pela educação no processo de inserção dos imigrantes alemães. A educação nas colônias, na maioria das vezes, era responsabilidade dos seus próprios moradores, que construíram escolas e contratavam professores devido à ausência de investimentos do Estado nas localidades. Na colônia Riograndense não foi diferente.

A Escola Alemã da colônia Riograndense era no meio rural e mista (meninos e meninas frequentavam). A primeira escola foi construída em madeira e após um incêndio, em 1926, uma nova escola foi inaugurada. No currículo escolar estavam presentes o catecismo, a bíblia, a escrita e a aritmética. O material didático era de língua alemã adaptada à realidade brasileira. Seu programa curricular era flexível e diversificado para o momento.

O professor possuía responsabilidades além da escola, como o desenvolvimento de atividades culturais e religiosas, além da importância econômica para a localidade. A manutenção do colégio ficou a cargo dos colonos (prédio e salário de professor).

Os espaços educacionais não se restringiram apenas à escola, pois os autores do livro demonstram que outros espaços sociais, como os clubes e igrejas, tinham importância na formação educacional das crianças e jovens, principalmente após a perseguição e preconceito a alemães, desencadeados após a Segunda Guerra Mundial.

Com a Reforma de Gustavo Capanema teve início o fim da escola, pois houve a implementação de escolas públicas na colônia Riograndense. Esta reforma colocou como obrigatória o ensino do português nas escolas públicas. O número de alunos da Escola Alemã diminuiu com o início das reformas educacionais do período do Estado Novo

Durante a Segunda Guerra Mundial, os habitantes da colônia sofreram com associação ao nazismo. Muitos imigrantes alemães foram perseguidos pela polícia, tiveram suas casas invadidas e alguns bens confiscados.

Com o passar do tempo, aprender alemão perdeu importância entre os colonos, pois começaram a se considerar integrados à sociedade brasileira. Este processo de aculturação da colônia foi movido por vários fatores, entre eles a Segunda Guerra Mundial, nacionalização do ensino e casamento de seus habitantes com pessoas de fora da colônia. Entretanto, micro-resistências dos habitantes se mantinham, como a preservação da língua dentro dos espaços do lar.

Em suas considerações finais, a autora salientou a relação construída dos imigrantes com a sociedade brasileira, como eram vistos por nós e como entendiam o Brasil. A colônia alicerceava-se na escola e na igreja, sendo o colégio um lugar de construção da cultura, da língua e cidadania.

Com a mudança de hábitos na colônia, ocorreram alterações também na Escola Alemã. Ela ficou responsável pela formação dos filhos dos colonos para a obtenção de postos de trabalho melhores que de seus pais. Entretanto, na medida em que se exportou mão de obra qualificada, se impôs um fim lento e gradual da colônia e, com isso, de sua escola.

A obra Trajetória educacional dos imigrantes alemães no Estado de São Paulo é ímpar ao mostrar o papel da educação como sinônimo de oportunidades a imigrantes em uma localidade nova. O livro aborda a coesão de um povo para a manutenção da sua cultura e de suas práticas sociais, distantes de sua pátria mãe. Com uma escrita agradável e esclarecedora, a autora faz o leitor analisar o papel da educação como algo fortalecedor de uma comunidade em prol da prosperidade coletiva e manutenção de suas raízes histórico-culturais.

Thiago Henrique Sampaio – Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis).

Professores de história: entre saberes e prática | Ana Maria Monteiro

Entre diversos livros que abordam a temática do ensino de História, por que o livro da professora Ana Maria Monteiro continua tendo muito a nos dizer mesmo dez anos depois de sua publicação? Esta é a pergunta que move o desafio de escrever sobre este trabalho que foi apresentado inicialmente como tese de doutoramento em 2002 e publicado em forma de livro em 2007.

Dentre os seus interesses de pesquisa estão os temas do currículo, conhecimento escolar e disciplinas escolares, identidade profissional, saberes ensinados. Leia Mais

Patrimônio cultural e ensino de história – GIL; TRINDADE (HE)

GIL, Carmen Zeli de Vargas; TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski (Org.). Patrimônio cultural e ensino de história. Porto Alegre: Edelbra, 2014. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Maria Nogueira. História & Ensino, Londrina, v. 23, n. 2, p. 239-241, jul./dez. 2017.

A obra é resultado de estudos e pesquisas de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal de Santa Catarina, todos envolvidos com a Educação Patrimonial. Em outra parte, são professores da Educação Básica e os licenciandos em História da UFRGS que compartilham suas experiências, as quais foram adquiridas nas atividades da disciplina de estágio de Docência em História III- Educação Patrimonial, que aconteceram de 2010 a 2012 em museus, arquivos, praças e escolas do Rio Grande do Sul.

Professores e estudantes relatam suas experiências e fazem reflexões acerca do espaço do tema do patrimônio no ensino de História, numa perspectiva atual. Ao relatarem suas ações educativas em escolas, museus e outros espaços de cultura, os licenciandos em História e professores, apresentam novas estratégias e perspectivas para a educação patrimonial. Chamam a atenção não somente para o papel do patrimônio de monumentos, mas também para o patrimônio local e imaterial, os saberes e fazeres populares que por muito tempo ficaram esquecidos, no ensino de História.

Segundo Carmem Zeli de Vargas Gil, professora da disciplina Estágio de Docência em História III, a escola, uma instituição fechada, aos poucos se abre para dialogar com outros espaços com potenciais educativos. Neste caso, a prática é uma oportunidade dos futuros professores refletirem, não só em metodologias e teorias, mas também em sua própria formação cultural. Além disso, eles entram em contato com outras formas de aprender e “ampliam suas reflexões a respeito da história”.

A partir dos anos 1980 a educação para o patrimônio ganhou importância, acentuando-se nos últimos anos e despertando grande interesse dos pesquisadores. No entanto, o termo educação em relação ao patrimônio já aparece desde as primeiras políticas de preservação. Mário de Andrade, quando da elaboração do documento de criação do SPHAN, nos anos 30, dizia que a preservação do patrimônio histórico já seria uma forma de educação. Recentemente, foi ampliado quando em 2002, o patrimônio intangível ou imaterial foram incluídos nas políticas oficiais para o patrimônio.

Outro importante aspecto que hoje percebemos na Educação Patrimonial é a visão crítica em relação à constituição do patrimônio. Nas ações educativas, tanto nos museus e centros de cultura quanto nos centros históricos, é importante dar relevância à discussão da constituição desse patrimônio e suas implicações políticas e sociais. Por que determinada produção cultural foi valorizada em detrimento de outra? Quem e em quais circunstâncias essas pessoas fizeram as escolhas do que preservar ou não?

Nos relatos dos docentes e discentes podemos perceber isso. Eles nos apresentam novas abordagens para a Educação Patrimonial no ensino de História. Baseando-se na ampliação do conceito de patrimônio, procurou-se a valorização dos saberes e fazeres populares, além de valorização do patrimônio local.

A experiência na Unochapecó, em que alunos dos cursos de Matemática, História, Artes Visuais e Letras foram incentivados a pesquisar junto às pessoas de seu próprio convívio, é um exemplo. A partir de questões da educação patrimonial, eles pesquisaram os saberes matemáticos, históricos, artísticos e literários. Os alunos se surpreenderam com o conhecimento que encontraram. Com isso perceberam o campo vasto de possibilidades para se trabalhar com patrimônio e memória no ensino de História.

Outro aspecto importante que apareceu em todas as experiências é o questionamento e reflexão em torno do patrimônio constituído. E necessário que conheçamos em qual circunstância e objetivos certos patrimônios foram constituídos. Para isso é necessário contextualizar e aprender mais sobre a história local e nacional nos seus aspectos sociais, políticos e econômicos. Nos museus, por exemplo, sabemos que a exposição é apenas um discurso construído, uma versão de muitas outras possíveis.

A experiência no Museu da Medicina mostrou o discurso dos médicos através da exposição de objetos que lá havia, mas também possibilitou falar dos saberes populares no campo da saúde: uso de plantas medicinais, benzedeiras e parteiras e outros.

As estratégias e recursos utilizados nas práticas merecem ser mencionados: leituras reflexivas da cidade, fotografias com discussão, entrevistas com pessoas do convívio, reflexão sobre o patrimônio do próprio bairro. Essas estratégias foram eficientes porque anteriormente houve a discussão acerca da contextualização histórico e social, local e nacional. Tudo isso possibilitou aos alunos fazerem relações e compreenderem as circunstâncias e escolhas pelas quais o patrimônio e a memória são constituídos. Além disso, é importante mencionar que os graduandos procuraram uma base teórica que desse suporte às suas práticas. Em seus textos percebemos as discussões e diálogos com os teóricos da área. Entre outros, podemos citar Walter Benjamim e seus conceitos de memória e patrimônio e sua relação com as experiências vividas; Mário Chagas também é citado, inclusive pelo seu questionamento do termo “educação patrimonial” que para ele é redundante, pois educação já é patrimonial. Márcia Chuvas, também, aparece em muitos dos textos, além de Chartier, Le Goff e Michel de Certeau.

É pertinente considerar que o estudo apresentou interessantes abordagens e estratégias de educação para o patrimônio. Valorizando não só o patrimônio monumentalizado, mas também os saberes e fazeres da cultura popular. Ademais, valorizou-se a contextualização nas atividades de estudo, possibilitando dessa forma reflexões sobre a forma de constituição do patrimônio e suas implicações políticas e sociais. É necessário discutir tanto aquilo que foi preservado quanto aquilo que foi esquecido. Assim, penso que esse estudo contribuiu para o desenvolvimento do campo da Educação para o patrimônio e de suas possibilidades no ensino de História.

Ana Maria Nogueira Oliveira – Instituto Brasileiro de Museus_ IBRAM/MinC. Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João Del-Rei.

 

 

 

 

 

 

Espaço e tempo na física contemporânea: uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação – SCHLICK (RFMC)

SCHLICK, Moritz. Espaço e tempo na física contemporânea: uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação. São Paulo: Mundaréu,2016. Resenha de: TOSSATO, Claudemir Roque. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.5, p.201-212, n.1, jul., 2017.

O Círculo de Viena surgiu no início da década de 1920. Sua origem ocorreu a partir de encontros informais principalmente entre, principalmente, físicos, filósofos e matemáticos que desejavam discutir fundamentalmente questões científicas e interpretações filosóficas sobre as ciências. As reuniões, que antes eram descompromissadas, conduziram com o tempo à formação de um núcleo de concepções e teses sobre o conhecimento científico e posturas filosóficas acerca do mesmo. Em 1929, três de seus membros, Carnap, Neurath Hans, publicam um pequeno manifesto cujo título é sugestivo, A concepção científica de mundo. Neste pequeno livreto são destacadas as principais orientações e teses do movimento. Digno de nota é o objetivo do Círculo: elaborar uma concepção de conhecimento na qual só é considerado como conhecimento legítimo aquele que for orientado aos moldes da física, de maneira que qualquer área de conhecimento, seja natural, seja social ou humana, deverá ser reduzida aos enunciados básicos da física. Este objetivo, extremamente ambicioso, alicerça-se na concepção científica de mundo defendida pelo Círculo de Viena.

A concepção científica de mundo tem alguns pontos básicos. Em primeiro lugar, os seus representantes não quiseram que o Círculo fosse visto como uma escola filosófica, mas, em vez de algo tão nobre, simplesmente objetivavam que suas proposições expressas sem uma atitude perante o mundo; uma atitude voltada fundamentalmente para encontrar não as coisas Profundas subjacentes aos fenômenos científicos, mas para tatear a superfície: aquilo que é possível para os indivíduos dotados de sensibilidade e racionalidade encontrar. Para tanto, é preciso se afastar de concepções que nada auxiliam na investigação científica e deve-se, sobretudo, restringir-se ao que se pode conhecer, como é dito no manifesto “Pureza e clareza são almejadas, de maneira que as distâncias e profundezas não acessíveis e insondáveis são rejeitadas. Em ciência, não há ‘profundezas’; há superfície por toda parte” (NEURATH, O., CARNAP, R. HAHN, 2016). Ou seja, não se procura na ciência as verdades últimas, mas há uma postura mais humilde, mais acessível ao ser humano: restringir-se ao que está na superfície, que são as experiências e seu trabalho teórico.

Desta maneira, o Círculo de Viena, também conhecido como positivismo lógico, entende que muitos dos problemas tradicionais da filosofia não são legítimos, pois“esclarecimentos dos problemas filosóficos tradicionais conduz-nos, por um lado, a desmascará-los como pseudoproblemas2 e, por outo, a transformá-los em problemas empíricos” (NEURATH, O., CARNAP, R. HAHN, 2016). Em suma, para o positivismo lógico a ciência restringe-se aos seus conteúdos empíricos.

Em milhas gerais, os adeptos do positivismo lógicos almejam, por um lado, apenas falar daquilo que nossas faculdades sensíveis informam: os dados dos sentidos, como os da visão, do tato etc.; e, por outro lado, elaborar teorias sobre os fenômenos científicos. É um casamento simples entre dados sensíveis e elaboração teórica desses dados. Em segundo lugar, os positivistas lógicos negam que seja visto como conhecimento legitimo qualquer tipo de especulação que não possa ser avaliada empiricamente, ou seja, abole-se do âmbito do conhecimento a metafísica, pois as proposições metafísicas são destituídas de significação empírica – pois elas não podem ser testadas.

Moritz Schilick (1882-1936) talvez tenha sido o principal representante do positivismo lógico. Seu trabalho filosófico teve como meta a crítica radial à metafísica e a defesa do critério de aplicação empírica para a determinação do que é um conhecimento legitimamente científico.

A obra de Schlick, Espaço e tempo na física contemporânea – Uma introdução à teoria da relatividade e da gravitação, (…) tem uma dupla intenção: ela quer inicialmente apresentar a teoria da relatividade de Einstein (seja na versão restrita, publicada por Einstein em 1905, seja na geral, de 1915) para o público culto, mas não propriamente conhecedor da difícil matemática que ela envolve; mas a tarefa não para apenas nisto, a intenção de Schlick é mais ambiciosa, pois ele quer tratar filosoficamente a teoria da relatividade de Einstein; e tal tratamento é a defesa das concepções básicas do positivismo lógico: conhecimento alicerçado na experiência e recusa de especulações metafísicas no conhecimento.

O ponto filosófico central da abordagem de Schlick sobre a relatividade centra-se na negação das noções de espaço, tempo e movimentos absolutos de Newton e na de conhecimento a priori de Kant.

Se a teoria da relatividade não necessita de especulações que extrapolam o que é fisicamente detectado, não há necessidade, pois, de tratar o conhecimento a partir de categorias apriorísticas. Isto fica registrado com as palavras de schlick quando inicia sua apresentação da teoria da relatividade de Einstein, diz ele:

A generalidade que o conhecimento físico alcançou no que diz respeitoaseusprincípiosúltimos e a elevação verdadeiramente filosófica que conquistou em nossosdiasfazemcomqueelesupere de longe, em audácia, todos os feitos anteriores do pensamento científico (SCHLICK, 2016: 9)

Dois pontos devem ser destacados pela citação acima: o primeiro, é sobre o papel altamente positivo do conhecimento físico que, por si só, já é algo relevante; mas é o segundo ponto o mais importante, “a elevação verdadeiramente filosófica”;estas palavras de vem ser lidas em seu sentido literal; pode-se entender o conteúdo da frase como a estipulação de que o conhecimento físico ensinou a filosofia como esta deve agir. E é nesta linha que a apresentação da teoria da relatividade vai seguir; em todo o livro, vê-se que a teoria de Einstein expressa, ou ensina, o caminho que a filosofia deve trilhar, um caminho que deve ser idêntico ao feito pela ciência física do início do século XX.

Alguns anos mais tarde, Schlick redige o texto “Positivismo e realismo”, no qual é tratada mais pormenorizadamente a questão da função da filosofia para o conhecimento. Nesse texto é dito que “Ora, pela análise filosófica não logramos decidir se uma coisa é real, mas somente descobrir o que se quer dizer ao afirmar que a coisa é real. Se é este o caso ou não, só podemos descobri-lo através dos métodos habituais da vida diária e da ciência, pela experiência” (SCHLICK, 1988: 43). É uma exigência forte: dizer o que se entende quando é afirmado que algo é “real” e, mais importante, justificá-lo empiricamente.

Schlick trata nos capítulos 1 e 2 da relatividade estrita de Einstein. Ele inicia com uma espécie de tratamento ao leitor contra a resistência que este tem para entender a relatividade, diz Schlick que “Os conceitos de espaço e tempo não são originalmente produtos de complicadas operações do pensamento científico; pelo contrário, nós já temos que lidar incessantemente com eles na vida cotidiana” (SCHLICK, 2016: 13). Extraindo a linguagem matemática subjacente aos fenômenos, qualquer um pode compreender o que é mais importante: os conceitos. Tempo e espaço pertencem à vida comum, diária, de todos nós. Não são entidades desligadas de nossas vivências; se não entendemos a relatividade einsteiniana, é porque estamos acostumados a pensar tempo e espaço como “coisas” separadas e tal prejuízo é dado pela ciência que se guia por especulações desprovidas de conteúdo empírico. Por exemplo, acerca do éter, escreve Schlick que:

Vê-se que, segundo o ponto de vista retratado, realmente há um movimento absoluto no sentido da física (a saber, em relação a um éter substancial). Uma vez, porém, que não há nenhuma maneira de observar esse éter, são criadas hipóteses especiais a fim de explicar porque ele sempre escapa à detecção (SHLICK, 2016: 20-1)

A suposição do éter somente tem sentido se admitirmos o movimento absoluto; mas a experiência nega a detecção do éter. Isto implica que não há movimento absoluto? Não há resposta conclusiva para esta pergunta, pois não sabemos se existe ou não o movimento absoluto (ou espaço e tempo absolutos), é somente uma especulação sem respaldo na experiência. Portanto, segundo o critério de aplicação com a experiência, não sabemos se é verdadeiro ou falso o movimento absoluto. Mas, e é isto o ponto mais importante, podemos saber que:

(…) eis o que a física moderna nos diz, desde Einstein: uma vez que, na experiência, o princípio de relatividade restrito e o princípio de invariância da velocidade da luz valem de fato, ambos devem ser concebidos como leis reais da natureza. Além disso, uma vez que o éter, seja enquanto substância, seja enquanto corpo de referência, insistentemente escapa a todas as nossas investigações, e todos os fenômenos naturais acontecem como se ele não estivesse presente, a palavra éter é aqui destituída de significado físico, e ele, por conseguinte, não existe de fato como algo “material” no sentido tradicional do termo. Se não for possível conciliar o princípio de relatividade e a não existência do éter com nossas reflexões anteriores sobre a propagação da luz, essas reflexões devem ser revisadas. A grande descoberta de Einstein foi a de que tal revisão era possível, isto é, que aquelas reflexões estavam fundadas em pressupostos não testados acerca das medições do espaço e do tempo, e que precisamos apenas descarta-los para afastar a contradição entre o princípio de relatividade e o princípio de invariância da velocidade da luz (SCHLICK, 2016: 21)

Deve-se, portanto, partir das informações das experiências sensíveis para construir a teoria. O mais interessanteé “que a teoria da relatividade elimina de forma suficientemente radical os conceitos tradicionais de espaço e tempo e abole da física o “éter” concebido como substância” (SHLICK, 2016: 29). Na física newtoniana, tem-se o espaço absoluto e o tempo absoluto, um independente do outro. Contudo, a experiência mostra que a velocidade da luz é constante, não sofrendo alteração devida ao meio.

Com isto, não há necessidade empírica de postular o éter; e o problema do movimento pode ser deslocado para a proposta da teoria da relatividade geral, mais abrangente que a teoria restrita.

Schlick dedica três capítulos (35) de sua obra à geometria utilizada pela teoria da relatividade geral de Einstein. O ponto central de sua abordagem é em relação à realidade geométrica do espaço e do tempo. Partindo da visão de que “aquilo que se pode medir é o que existe” (SCHLICK, 2016: 32), o físico newtoniano pode entender que o espeço pode ser medido independentemente do tempo e vice-versa. Parece-nos fácil entender que são separados, que cada um tem sua medida própria. E a geometria euclidiana é satisfatória para essa empresa. Contudo, diz Schlick:

Mas calma lá! Quem está bem informado sobre o assunto sabe que existe muita controvérsia sobre a natureza dos objetos geométricos. E mesmo que não houvesse, não faz muito tempo que aprendemos a rastrear, justamente em meio aos conceitos fundamentais da ciências, pressupostos ocultos não testados, e assim deveremos pesquisar se também a concepção da geometria como doutrina das propriedades do espaço não é influenciada por certas representações ilegítimas, das quais ela deve ser depurada (SCHLICK, 2016: 32)

Novamente, Schlick está apontando a intromissão e utilização de conceitos não autorizados na elaboração do conhecimento físico. E, o mais importante, é que “os corpos na natureza não têm apenas uma forma geométrica, mas também, e sobretudo, propriedades físicas, como, por exemplo, massa” (SCHLICK, 2016: 34). Não é possível, portanto, separar a geometria da física. E essa inseparabilidade vai determinara aplicação de cada geometria às “necessidades”, não à realidade. Por que a geometria euclidiana – e a física newtoniana podem ser utilizadas e, de fato, é utilizada? Porque ela “sempre permanecerá apropriada ao menos para uma representação apropriada” (SCHLICK, 2016: 46). A constituição própria do espaço “não é nem euclidiana nem não euclidiana, assim como não é próprio de uma distância que ela seja medida em quilómetros, e não em milhas” (SCHLICK, 2016: 46). Para aplicar uma geometria específica deve-se fixar pontos de vista. E, como regra geral, Schlick diz que “espaço e tempo só são separáveis das coisas e processos físicos em uma abstração(…) Ao realizar uma abstração, é preciso que sempre se pergunte se ela tem um significado cientifico, isso é, se os elementos que a abstração separa são, também, factualmente, independentes uns dos outros (SCHLICK, 2016: 47).

Os capítulos 6 a 9 formam um bloco destinado a apresentar a teoria da relatividade geral. A tônica da exposição de Schlick é insistir no ponto de que a teoria da relatividade de Einstein elimina considerações de que o espaço e o tempo são entidades que subsistam por si só. É significativa a seguinte passagem:

Da teoria da relatividade geral segue-se, portanto, que é de todo impossível atribuir qualquer propriedade ao espaço sem levar em conta as coisas nele. Agora, também na física a relativização do espaço se realizou de forma completa, por um caminho que as considerações mais gerais que tecemos acima nos fizeram reconhecer como o único natural. O espaço e o tempo nunca são, por si mesmos, objetos de medição. Eles formam juntos um esquema quadridimensional, no qual ordenamos os objetos e processos físicos com o auxílio de nossas observações e medições. Escolhemos o esquema (e podemos fazê-lo, pois se trata de uma estrutura de abstração) de modo que o sistema da física resultante assuma a estrutura mais simples possível (SCHLICK, 2016: 62)

A passagem acima é muito importante; nela estão presentes muitos aspectos da concepção de Schlick sobre a ciência, principalmente do ponto de vista epistemológico. Em primeiro lugar, espaço e tempo não “existem” por si mesmos, mas fazem um conjunto, chamado de espaço-tempo, no qual não há três dimensões, mas quatro. Em segundo lugar, não medimos o espaço ou o tempo isoladamente, mas os dois em conjunto. Em terceiro lugar, é o esquema quadrimensional que permite as medições na teoria geral da relatividade. Em quarto – e acredito que do ponto de vista da teoria do conhecimento isto é o mais relevante – podemos escolher a estrutura abstrata mais simples possível; isto é, de acordo com o que é dado pela observação. E o que a observação apresenta? Diz Schlick que “o fundamento de toda observação exata está em manter em vista precisamente os mesmos pontos físicos em diferentes tempos e em diferentes lugares, e que toda medição se resume à constatação da coincidência, no mesmo lugar e no mesmo tempo, de dois desses pontos que fixamos (SCHLICK, 2016: 62). Assim:

A maneira como a lei fundamental é formulada deixa bem clara a diferença que existe entre as concepções newtoniana e einsteiniana dos efeitos gravitacionais. Segundo Newton, estes representam forças reais, por meio das quais um corpo é desviado de seu trajeto “natural”, o movimento inercial retilíneo e uniforme. Segundo Einstein, ao contrário, é o movimento de um corpo em um campo gravitacional que é “natural” e completamente subtraído à influência de forças (SCHLICK, 2016: 76).

Para Newton, o que é natural são as forças gravitacionais, para Einstein, o movimento de um corpo num campo gravitacional. Ora, não há respaldo na experiência para o conceito de força, mas há para o de movimento num campo gravitacional.

Assim, na visão de Schlick, e também na do positivismo lógico em geral, “A estruturado Todo que a teoria da relatividade geral nos desvela é de surpreendente coerência, de imponente grandeza, além de ser tanto física quanto filosoficamente satisfatória” (SCHLICK, 2016: p. 93). A teoria einsteiniana da relatividade geral não é somente uma excelente teoria; mais do que isto, ela tem ganhos filosóficos, isto é, ela cumpre os critérios epistemológicos dos positivismo lógico de não utilizar conceitos que não têm respaldo no mundo físico, no mundo observacional. Neste sentido, a cooperação entre física, matemática e filosofia torna-se a marca do avanço do conhecimento científico por eliminar conjecturas que nada contribuem para a compreensão do universo físico:

Uma cooperação genial do pensamento físico, matemático e filosófico tornou possível responder com métodos exatos às questões sobre o todo do universo, as quais pareciam estar fadadas a ser sempre apenas objeto de vagas conjecturas. Nós novamente reconhecemos o poder emancipador da teoria da relatividade, que dota o espírito humano de uma liberdade e consciência de suas próprias forças que jamais qualquer outros feito científico foi capaz de oferecer-lhe (SCHLICK, 2016: p. 93).

O capítulo 10 encerra a obra com considerações filosóficas. O ponto central, agora, é a crítica aos conceitos az priori da filosofia de Kant. Para Schlick,

O espaço do físico [e o mesmo se aplica ao tempo físico], por outro lado, que contrapomos àqueles espaços subjetivos designando-os como objetivos, é apenas um e pensado de forma independente de nossas percepções sensíveis (é claro, porém, que não independentemente dos objetos físicos; ao contrário, só é adquirido realidade em conjunção com eles) (…). Os objetos físicos são não intuitivos, o espaço físico não é de forma alguma dado nas percepções, mas é uma construção conceitual (SCHLICK, 2016: p. 97).

O espaço-tempo einsteiniano é uma construção conceitual. A realidade deste conceito só é obtida em conjunto com as percepções, portanto, não é algo isolado. Aqui Schlick está criticando a doutrina kantiana da subjetividade do espaço e do tempo, na qual ambos são formas de nossa intuição. Para Schlick, “É obvio que apenas os espaços e tempos psicológicos nos são dados primitivamente, de modo que temos que nos perguntar como se chega, a partir deles, à construção daquela variedade espaço-tempo objetiva” (SCHLICK, 2016: 99). A variedade é dada por uma coordenação empírica bem determinada; por exemplo, nossas experiências táteis não são totalmente independentes de nossas experiência ópticas (Schlick dá o exemplo de tatear um cubo e ver um cubo, no qual existem coincidências nas percepções de tatear e olhar o formato do cubo), de modo que “o que entra em consideração aqui são experiências de coincidências”(SCHLICK, 2016: 100). Desta maneira, Schlick nega que espaço e tempo ou espaço-tempo sejam categorias a priori, pois não há modo de justificar essas noções como independentes da experiência:

Uma vez, porém, que não se teve sucesso em especificar de uma vez por todas esses axiomas independentes de toda experiência, devemos considerar essa tentativa como fracassada. O apriorismo tenta em vão reclamar para si a teoria da relatividade ou seus resultados; contrariamente, estes recebem imediatamente uma interpretação natural do ponto de vista da filosofia empirista (SCHLICK, 2016: 103).

É a filosofia empírica (o empirismo lógico) que tem primazia na descrição da relação entre o mundo e a construção científica. As categorias apriorísticas de nada servem epistemologicamente para descrever a relação entre mundo e teoria científica. E continua Schlick:

Toda teoria consiste de uma estrutura de conceitos e juízos, e é correta ou verdadeira quando o sistema de juízos designa de forma inequívoca o universo dos fatos. Com efeito, se existe tal coordenação inequívoca entre conceitos e realidade, pode-se, com o auxílio da estrutura de juízos da teoria, derivar o curso dos fenômenos naturais e assim, por exemplo, predizer eventos futuros. Sabemos que a ocorrência de tais predições, ou seja, o acordo entre o que foi calculado e a observação, é a única pedra de toque da verdade de uma teoria (SCHLICK, 2016: 106).

Qualquer teoria que queira ser entendida como científica deve passar pelos testes, isto é, os testes mostram se há acordo entre os conceitos teóricos com a realidade física. Tem que haver acordo entre o que é calculado pelos conceitos teóricos com a realidade do mundo factual. Mas:

Ora, mas é possível descrever os mesmos fatos por meio de diferentes sistemas de juízos, de modo que pode haver diversas teorias às quais o critério de verdade se aplicada mesma maneira e que, todas elas, fazem jus às observações na mesma medida e conduzem às mesmas previsões. São simplesmente sistemas simbólicos diferentes que estão coordenados à mesma realidade objetiva (SHLICK, 2016: 106).

Mas dentre os sistemas simbólicos que tratam diferentemente da realidade objetiva, existem os que são mais simples, isto é, que contêm menos arbitrariedades, menos especulações apriorísticas sem respaldo com o empirismo. Para Schlick, sistemas mais simples e menos arbitrários representam uma economia prática que impede a intromissão de elementos não permitidos pela experiência.

Finalizando, como nosso conhecimento não tem acesso a qual teoria é de fato a verdadeira, temos que nos contentar com o que podemos conhecer. Neste sentido, o critério de simplicidade é um instrumento intelectual que permite eliminarmos conceitos que impedem uma imagem de universo condizente com nossas capacidades de conhecimento:

Nunca será possível demonstrar que só Copérnico tem razão e que Ptolomeu, por outro lado, estava equivocado; não há coerção lógica em virtude da qual devemos opor a teoria da relatividade à do absoluto como a única correta, ou dizer que as determinações métricas euclidianas são absolutamente falas ou absolutamente corretas – mas a única coisa que Se pode sempre mostrar é que, entre essas alternativas, uma concepção é mais simples que a outra e conduz a uma imagem de universo mais coesa e satisfatória (SCHLICK, 2016: 106).

O conhecimento, para Schlick, expresso na obra aqui tratada, é fruto não especificamente da descoberta da teoria concludentemente verdadeira, mas da teoria que as nossas capacidades de conhecimento permitem obter.

É preciso destacar a grande contribuição que a Editora Mundaréu dá para o público, seja acadêmico ou não, interessado em filosofia da ciência com a tradução e publicação dessa importante obra de Schlick. Trata-se da primeira tradução para o português desse trabalho que foi publicado pela primeira vez no final da década de 1910. Acredito que será um texto muito útil tanto como material para aulas como discussões sobre epistemologia e filosofia da ciência.

Notas

2 Um dos principais representantes do positivismo lógico que trata as questões tradicionais da filosofia entendendo-se por esses, principalmente, os problemas metafísicos – como pseudoproblemas é Rudolf Carnap em seu texto “A superação da metafísica traves da analise lógica da linguagem”

Referências

CARNAP, R. A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem. Cognitio, 10, 2, p. 293-309, 2009.

EINSTEIN, A. O significado da relatividade, Arménio Amado Editora, Coimbra, 1984.

GARDNER, M. Relativity simply explained, Dover, New York, 1977.

NEURATH, O. CARNAP, R. HAHN, H. The scientific conception of the world;theVienacircle. In: http://againstpolitics.com/the-scientificconception-of-the-world-the-vienna-circle/. Acesso 25/06/2017.

PATY, M. Einstein, Estação Liberdade, São Paulo, 2008.REVISTA SCIENTIAE STUDIA. 3, 4, 2005.

SCHLICK, M. Positivismo e realismo. In Os pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 1988.

Claudemir Roque Tossato – Professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: c.tossato@unifesp.br

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O governo Vargas e os 80 anos de Estado Novo / Oficina do Historiador / 2017

“O Estado Novo, de novo, e de novo…”

A Revista Oficina do Historiador apresenta ao leitor, neste número, um dos temas seminais da historiografia brasileira contemporânea: o Estado Novo [2] , nome pelo qual ficou conhecida a experiência histórica brasileira entre os anos 1937-1945. Para além da efeméride dos seus 80 anos, o Estado Novo, de um modo geral, é percebido através dos reflexos de disputas políticas, de debates acadêmicos, e de designações que vão sendo sobrepostas no tempo. Por isso um tema sempre atual.

Além da já tradicional ruptura com a chamada República “Velha”, o Estado Novo é concebido como momento do engendramento do dualismo brasileiro, opondo os setores agrário-latifundiários aos setores urbano-industriais.[3] O regime também é interpretado como ditatorial, autoritário, populista, desenvolvimentista, antiliberal, modernizante, industrializante, intervencionista, fascista, corporativista, nacionalista, popular, trabalhista, e etc. Termos e interpretações muitas vezes complementares e tantas outras, antinômicos e conflitantes. Portanto, campo de disputa política e de memória, o Estado Novo é atualizado no presente e diluído na chamada “Era Vargas”, ora como um legado que deve ser abandonado, ora com um legado legítimo de ser mobilizado. [4]

Nessas disputas nada se dá ao acaso. O próprio Estado Novo e seus ideólogos trataram de gerar uma memória e uma interpretação de si. Primeiramente, buscando legitimar-se frente aos seus adversários, os “comunistas”, categoria ampla e difusa, mas eficiente para legitimar o Estado de exceção frente aos “inimigos externos”, e, depois, as oligarquias regionais, ligadas ao federalismo, ao atraso, e a uma tendência centrífuga da Nação. Assim, a Constituição de 1937, no discurso de seus ideólogos, buscava reparar esses erros, fortalecendo o poder do Estado, centralizando o poder no executivo e aumentando a capacidade de intervenção estatal em todos os setores da vida social.[5]

Dessa forma, o discurso estadonovista também buscava legitimação a partir de uma interpretação da realidade histórica que operava uma leitura dos acontecimentos. Nesse sentido, repetiam sistematicamente que o golpe era um desdobramento natural, e mesmo inevitável, da Revolução de 1930, sendo o Estado Novo o garantidor dos objetivos de 1930, corrigindo os desvios de 1932, e da Constituição de 1934, e justificando seu autoritarismo. É claro que esse discurso estava sendo alicerçado há mais tempo, principalmente nas críticas dirigidas à experiência da Primeira República e à Constituição de 1891 e seu arcabouço institucional liberal.

Outro sentido para justificar o Estado Novo era o contexto internacional, a constatação das transformações mundiais no pós-Primeira Guerra mundial alterando as condições do comércio internacional, o equilíbrio de forças entre as nações, e o surgimento de modelos políticos que se apresentavam como mais funcionais para responder a crises, principalmente, a crise liberal, tais como o fascismo e o nazismo. Dessa forma, a emergência de uma sociedade de massas vem pari passu ao crescimento de um discurso autoritário que se opõe ao chamado “ idealismo liberal”. Nesse sentido, o Brasil apenas seguiu a vaga internacional ao implementar o Estado Novo e ao buscar o chamado “idealismo orgânico” buscando reformar as bases do pacto republicano numa nova ordem.[6]

O Estado Novo tem sido amplamente analisado pela historiografia contemporânea como um tema-chave para compreensão da relação entre Estado e sociedade no Brasil. Entretanto, ainda é uma temática de estudos relativamente recente. Em início dos anos 1990, René Gertz, no texto, Estado Novo: um inventário historiográfico [7], ressaltava os poucos estudos sobre o período e a diluição do Estado Novo na Era Vargas. De lá para cá muita coisa mudou, como já ressaltava Maria Helena Capelato, no texto Estado Novo. Novas histórias [8], chamando atenção para uma profusão de estudos sobre o Estado Novo, já em fins dos anos 1990.

Com essas breves observações introdutórias, fica evidente a imensa carga de disputas políticas e memoriais que o Estado Novo contém e que ainda é mobilizada na atualidade. Por isso, mostra-se uma temática seminal da historiografia contemporânea brasileira, sempre revisitada para a compreensão da nossa história.

O Dossiê O governo Vargas e os 80 anos de Estado Novo é composto por cinco artigos de diferentes temáticas que refletem essa produção recente. No artigo de abertura, O declínio do Estado Novo, a Legislação Eleitoral e a atuação Otávio Mangabeira na campanha da UDN baiana (1945), Eliana Evangelista Batista analisa os impactos do Ato de nº 9 e do Decreto-Lei nº 7.856 sobre as eleições de 1945, no contexto de crise estadonovista, e sobre os partidos políticos de oposição a Vargas, sobretudo a UDN baiana. Ainda a respeito da UDN baiana, a autora também analisa a relação do partido com seus eleitores e as estratégias dos seus dirigentes frente à nova legislação eleitoral. Nesse sentido, a autora destaca a atuação oposicionista de Otávio Mangabeira a Vargas, durante os anos 1930 e 1940, e a articulação da UDN baiana frente à reorganização político-partidária de 1945.

O mito da união nacional: a construção das “famílias brasileiras” na ditadura do Estado Novo, de Fábio Roberto Wilke, analisa a construção da mitologia política associada a Getúlio Vargas, o “pai dos pobres” e a construção retórica da política estadonovista em relação à família. Para isso, analisa o modo como o Estado Novo interferiu nela através de uma concepção pública, ou materializada, demonstrando ações efetivas do Estado, notadamente através de políticas públicas que buscaram transformar a força de trabalho. No mesmo sentido, o autor também analisa como o Estado Novo utilizou-se de uma ideia privada de família, para criar uma retórica política de união nacional através do trabalho.

Em Considerações sobre justiça de transição no Estado Novo, Enio Viterbo analisa o processo de redemocratização, em 1945, e a carência de uma justiça transicional, principalmente, para as violações de Direitos Humanos cometidas durante o Estado Novo. Para o autor, o modelo de “transição pactuada” acabou sendo responsável pela impunidade dos agentes estatais durante o período ditatorial. Para tanto, o autor analisa a doutrina internacional sobre justiça de transição empreendendo uma análise de direito e história comparada com a Itália pós Mussolini.

Já Marina Contin Ramos, no artigo Cruzeiro: a renovação monetária no Brasil e o Governo Vargas, analisa a renovação do sistema monetário nacional, através do lançamento de uma nova moeda, o cruzeiro, em 1942, pelo Decreto Lei 4971. Nesse sentido, ressalta as questões inflacionárias e a desvalorização que levaram à mudança monetária, seus estudos técnicos e debates, tendo por objetivo principal mostrar que a renovação no nosso meio circulante não implicava em uma questão apenas econômica, mas também numa questão simbólica que envolvia o fortalecimento do Estado e a formação da nação, questões caras ao projeto varguista.

O artigo que encerra esse dossiê é O “bom imigrante”: as religiosidades católica e protestante luterana como fator de identidade nacional (ou não) durante o Estado Novo. O autor, Sérgio Luiz Marlow, analisa a chamada “Campanha de Nacionalização” durante o Estado Novo, buscando compreender como o processo de nacionalização impactou os protestantes luteranos através da importância que o Catolicismo adquiria como uma espécie de fomentador da identidade nacional. Mais especificamente, o autor busca compreender de que forma um dos sínodos luteranos no Brasil, o Sínodo de Missouri, percebia a possível ligação entre o Estado Brasileiro e o Catolicismo Romano, quanto à perspectiva do nacionalismo que se desejava impor.

Assim, desejo que esse dossiê entre nessa senda de produções relevantes sobre a temática do Estado Novo, ampliando os horizontes de análise dentro do campo da história, e mais particularmente, de uma história recente do Brasil. Entendo que esse dossiê contribui em duas perspectivas: primeiramente, ao trazer novos debates e novas reflexões; e ainda, abrindo possibilidades de pesquisas futuras sobre a experiência histórica do Estado Novo.

Notas

2 Cabe lembrar que o nome oficial do regime implantado em 10 de novembro de 1937 era Estado Nacional, como aparecia na Constituição outorgada por Getúlio Vargas. Estado Novo era o nome do regime implantado em Portugal, 4 anos antes por Salazar. Entretanto, no Brasil, a imprensa e os intelectuais trataram o regime como o Estado Novo brasileiro, em referência ao Salazarismo e como superação da República Velha, e acabou se tornando o nome popular do regime.

3 FAUSTO, Bóris. (1994).

4 Penso aqui nas referências explicitas dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, que situava a necessidade de “acabar com a Era Vargas”, e de Luís Inácio Lula da Silva, de ser um “ continuador do varguismo”.

5 Dentre os principais ideólogos do Estado Novo estão Oliveira Viana, Francisco Campo e Azevedo Amaral.

6 Os termos “idealismo orgânico” e “idealismo constitucional” pertencem a analise de Oliveira Viana. Ver: VIANA, Oliveira. O idealismo da constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939. 2a edição.

7 SILVA, Jorge. L. Werneck. (org.) O feixe e o prisma. Uma revisão do Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

8 FREITAS, Marcos Cézar. (org.) Historiografia em Perspectiva. São Paulo, Contexto, 1998.

Cássio A. A. Albernaz – Doutor em História – PUCRS. Professor colaborador junto ao Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS. Pós- Doutorando em História pela PUCRS / PNPD / Capes. E-mail: cassioalbernaz@hotmail.com


ALBERNAZ, Cássio A. A. Apresentação. Oficina do Historiador. Porto Alegre, v. 10, n. 2, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Béla Guttmann: uma lenda do futebol no século XX | Detlev Claussen

Parte significativa da história do futebol foi construída sobre a trajetória de grandes técnicos: toda uma geração de torcedores brasileiros lembra, nostalgicamente, dos feitos de Telê Santana, que desenvolveu, para muitos, o futebol mais próximo da perfeição estética. 3 Sir Alex Ferguson, por outro lado, preocupado mais com a competitividade de suas equipes do que com a beleza do jogo, é o principal responsável por alçar o cambaleante Manchester United ao posto de marca mais importante do futebol globalizado (TWEEDALE, 2017). No entanto, capaz de produzir nas equipes que treinou um estilo de jogo tão bonito quanto competitivo, a relação entre a trajetória de Béla Guttmann e a história do esporte bretão é muito mais íntima do que a dos técnicos anteriormente citados. O húngaro colocou seu nome entre os grandes do esporte ao desenvolver um estilo ofensivo que influenciou diversos treinadores, mas só pôde se colocar em tal posição por estar em contato com diversas transformações sócio-políticas determinantes para o fenômeno do futebol como o conhecemos. Leia Mais

História Medieval | Ars Historica | 2017

 

Organizadores

Maria Beatriz de Mello e Souza

Gabriel de Carvalho Godoy Castanho


Referências desta apresentação

SOUZA, Maria Beatriz de Mello e; CASTANHO, Gabriel de Carvalho Godoy. Apresentação. Ars Historica. Rio de Janeiro, v.15, jul./dez. 2017.  Sem acesso ao original [DR]

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(Des) Caminhos do Ensino de História no Brasil / Revista Trilhas da História / 2017

Os enfrentamentos para professores e professoras de História dos ensinos fundamental, médio e superior têm se configurado como amplos e polêmicos. Em um panorama em que cada avanço parece trazer consigo retrocessos, este dossiê busca pensar quais são alguns dos “(Des)Caminhos do Ensino de História no Brasil”, passando por reflexões acerca de políticas públicas e manuais didáticos, por temas como o Nazismo e Segunda Guerra Mundial diante do saber escolar, por experiências bem sucedidas de programas governamentais e a formação histórica voltada para a Educação do Campo.

O dossiê inicia-se com o artigo de Osvaldo Rodrigues Júnior sobre a reforma do Ensino Médio a partir da lei n°13.415, texto que busca discutir seus impactos para o ensino de História e aponta para a constituição de uma “nova” (e atual) crise do código disciplinar da História no Brasil.

O segundo artigo, de Giseli Origuela Umbelino, busca pensar os livros didáticos a partir de alguns elementos da coleção Nova História Crítica, de Mario Schmidt. A autora analisa impactos e repercussão da coleção entre docentes, jornalistas e no meio acaêmico.

O terceiro artigo, de autoria de Carlos Eduardo Miranda, traz à tona um importante tema curricular: o nazismo. O autor reflete sobre a representação do tema em livros didáticos, bem como sua relação com o universo acadêmico, indicando, por fim, sua importância para a discussão de temas como xenofobia, racismo, intolerância e participação política no espaço escolar.

O quarto artigo, de Jorge Paglarini e Lincoln D´Avila Ferreira, discute o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) a partir das experiências dos autores como coordenador do programa e supervisor na escola, respectivamente. A discussão se pauta nas experiências das ações desenvolvidas na escola e seus alcances diante do que são objetivos gerais do Pibid.

O quinto artigo, contribuição de Mariana Esteves de Oliveira, adentra o espaço da Educação do Campo para refletir sobre o ensino de História a partir do entendimento, por meio de entrevistas, das perspectivas teóricas e influências historiográficas que professores e professoras de História de onze escolas de assentamentos trazem consigo.

Encerrando o dossiê, a contribuição coletiva de Tânia Zimmermann, Mônica Suminani e Márcia Maria de Medeiros, discute um tema caro à História: a Segunda Guerra Mundial. Tomando como ponto de partida o mangá “Gen Pés Descalços” as autoras problematizam a questão da bomba atômica lançada sobre a cidade de Hiroshima, debatendo os impactos nas práticas e experiências de pessoas que sobreviveram ao episódio da bomba.

Nosso objetivo com esse Dossiê é problematizar alguns dos desafios enfrentados pelo ensino de história no Brasil, desafios que atravessam legislações, instrumentos de ensino, programas voltados para a docência e os próprios temas do ensino de história. Cientes da importância desse debate e das recentes críticas e perseguições por alas conservadoras da sociedade ao ensino de história e outras disciplinas das humanidades, acreditamos que os artigos integrantes do Dossiê buscam trilhar novos caminhos teóricos e políticos para uma disciplina constantemente ameaçada pelos que temem a transformação.

A seção de Artigos Livres conta com as contribuições de Flavio Rafael Mendes Campos e Thaís Fleck Olegário. O primeiro discute o episódio do chamado “Dia D” no contexto da Segunda Guerra Mundial. Já a autora Thaís Olegário debate importantes regimes ditatoriais vigentes no Cone Sul (Brasil, Uruguai, Argentina e Chile) no tocante à Doutrina de Segurança Nacional.

Na seção Ensaios de Graduação Pedro Henrique Duarte da Costa propõe uma breve reflexão em torno do movimento Escola sem Partido e seus desdobramentos a partir da oposição religiosa às discussões de gênero na escola. Janai Harin Lopes problematiza a escola e o Ensino de História, como lugares de reafirmação, mas também de desconstrução de expectativas de gênero.

Thiago Henrique Sampaio resenha o livro “Tenho algo a dizer: memórias da UNESP na ditadura civil militar (1964-1985)” organizado por Maria R. do Valle, Clodoaldo M. Cardoso, Antonio Celso Ferreira e Anna Maria M. Corrêa.

Esta edição da Revista Trilhas da História se encerra com a tradução do artigo de Alessandro Portelli intitulado “Um trabalho de relação: observações sobre a história oral”, feita por Lila Cristina Xavier Luz.

Cintia Lima Crescêncio

Leandro Hecko

Três Lagoas-MS, primavera de 2017.


CRESCÊNCIO, Cintia Lima; HECKO, Leandro. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.7, n.13, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Paris: Capital da Modernidade | David Harvey

Conhecido como um dos grandes intérpretes do Marxismo na atualidade, David Harvey revela-se, também, como um dos maiores expoentes da chamada Critical Geography. Formado pela University of Cambridge, onde obteve seu doutorado em 1961, este geógrafo britânico tem especial afeição pelo estudo e pela análise das transformações econômicas, sociais, históricas e culturais do espaço urbano. Professor emérito de antropologia da City University of New York, Harvey explora em suas pesquisas o domínio dos diferentes circuitos do capital e os processos relacionados à intensificação do sistema de crédito e consumismo ostentatório, focando-se no estudo dos atores da produção do espaço. Essas problemáticas atravessam o caleidoscópio de suas análises: em Social Justice and the City, de 1973, ele já demonstrava um fascínio por temas relacionados ao planejamento urbano, à desigualdade de renda entre bairros ricos e pobres e à formação espacial da cidade. Por meio de uma crítica contundente, ele desenvolveu a ideia de que a formulação de uma teoria contrarrevolucionária em Geografia só seria possível via marxismo. Suas investigações têm contribuído para demonstrar como o capitalismo aniquila o espaço, no intuito de garantir sua própria reprodução, como se pode constatar em Condition of Postmodernity, de 1989. Como um dos mais destacados especialistas desse campo, Harvey também produziu reflexões a respeito das crises econômicas do capitalismo (The enigma of Capital, publicado em 2010) e das características atuais do imperialismo (The New Imperialism, publicado em 2003). Publicado originalmente em 2003, Paris: capital da Modernidade revela a preocupação do autor com questões relacionadas ao denominado “direito à cidade” (Henri Lefebvre), elemento constitutivo de sua trajetória. David Harvey esteve no Brasil em junho de 2015, para lançar a versão traduzida dessa obra no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, momento em que debateu questões relacionadas às atividades econômicas, aos hábitos sociais, às estruturas de poder e à consolidação da expansão do sistema capitalista. Leia Mais

Gênero, mulheres e imagem: diálogos interdisciplinares (II) / Domínios da Imagem / 2017

Os estudos de gênero têm impulsionado pesquisas de múltiplas áreas. Um meio de compreender os sentidos e as relações complexas entre diversas formas de interação humana, gênero se refere, conforme postulado por Joan Scott, às construções históricas, marcadas pela cultura e pelas relações de poder que fundamentam uma hierarquia e uma assimetria social entre homens e mulheres. Percepções, gestos, sentimentos, pensamentos, hábitos e as maneiras de perceber a si e aos demais oferecem suporte para uma compreensão acurada acerca das relações de gênero. Nesse sentido, ganha relevância a aproximação dos estudos de gênero e a cultura visual, uma vez que as imagens desempenham um papel primordial na contemporaneidade por tocar os imaginários sociais e contribuir para a construção das visões de mundo dos indivíduos. As reflexões que possibilitam, permitem problematizar a constituição e distribuição de poder e prestígio nas sociedades.

O Dossiê II que ora apresentamos, mostra a convergência de interesses e preocupações de um conjunto de investigadoras (es), advindos de diferentes campos disciplinares, na tentativa de contemplar uma pluralidade de abordagens tendo como foco gênero, mulheres e imagem. Por isso, uma vez mais, agradecemos a generosa colaboração de todas (os).

Na continuidade das reflexões, esperamos que os resultados das inúmeras perspectivas abertas – criativas e instigantes -, contribuam para desconstruir os papéis, os lugares ocupados, como também por focalizar as funções das mulheres e dos homens ao longo da história e possa favorecer a continuidade dos debates e suas repercussões nas práticas sociais.

Neste segundo volume do dossiê, iniciamos com o artigo de Mariana de Paula Cintra. Tendo como foco o surgimento das crônicas de modas na imprensa do Rio de Janeiro oitocentista e tomando como fonte o jornal Correio das Modas, a autora discute a circulação de periódicos escritos por homens e dedicados às mulheres, no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX. Ao indagar sobre o intento dos editores, as temáticas eleitas e para quais mulheres propunha-se o jornal, em seu artigo O nascimento da moda feminina na imprensa carioca oitocentista, a autora reflete sobre a contribuição desse periódico para o surgimento da imprensa nacional e o universo complexo – e ainda pouco explorado – da produção de jornais femininos no século XIX. Ao tomar como referência a história da imprensa periódica feminina carioca apresenta-nos em que medida os meios de comunicação fizeram parte do cotidiano das mulheres, influenciando seus comportamentos, ditando regras e forjando novos papéis sociais.

A partir de uma coleção costumbrista que tematizou mulheres, produzida na década de 70 do século XIX na Espanha, Edméia Ribeiro problematiza a produção visual e as relações de gênero que caracterizam a coleção Las mujeres españolas, portuguesas y americanas. Argumenta a autora que a simbologia feminina ali presente configura-se em uma construção exclusivamente masculina, uma vez que toda a produção, desde a concepção até a execução final foi feita por homens. Dessa forma, poderemos perceber em Representar mulheres: produção visual e relações de gênero numa coleção costumbrista espanhola no final do século XIX que tanto as litografias como os textos monográficos que formam a coleção, reforçam e reverberam concepções idealizadas de mulheres no oitocentos.

A representação de mulheres no muralismo, nas décadas de 1930 e 40 na capital da Argentina, é o tema que encontraremos no artigo Detrás de escena: mujeres en los murales de Buenos Aires (1933-1946), de Cecilia Belej. Analisando fragmentos de pinturas murais realizadas em edifícios públicos e privados, percebe imagens que naturalizam papeis de gênero, nas quais a mulher figura como ícone de maternidade e complemento do homem, disseminando e/ou referendando valores tradicionais. Partindo do princípio que tais imagens possuem um propósito político, social e cultural, a autora busca compreender o que tais relatos visuais buscavam transmitir naquele momento histórico.

Em Iconografias sarcásticas na imprensa feminista brasileira: Mulherio e Chanacomchana (1981-1985), Júlia Glaciela da Silva Oliveira fez uso, em suas análises, de charges, cartuns e outras formas de humor gráfico publicados em periódicos feministas da segunda metade do século XX, mais especificamente aqueles publicados na década de 1980. Em Mulherio, a autora apresenta-nos como essa categoria de imprensa procurou, a partir da ironia e do humor, desconstruir papéis de gênero e problematizar as desigualdades naturalizadas. Ao analisar Chanacomchana, percebe que o humor ácido foi utilizado nesse periódico como método para empreender críticas direcionadas ao feminismo que, ao negar a homossexualidade, realçava a heterossexualidade reforçando a opressão às mulheres lésbicas.

Maria Júlia Zarpelão Hernandes e Mara Rúbia Sant’Anna, em A disseminação de padrões femininos através dos anúncios da Lugolina e da Juventude Alexandre na “Fon-Fon!- 1910, utilizam para as reflexões que trazem neste artigo dois anúncios de produtos de beleza destinados ao público feminino, veiculados em uma revista carioca do começo do século XX. As análises empreendidas demonstram como a publicidade, baseada no discurso da modernidade, também difundiu, reforçou e relacionou “padrões de beleza, saúde e felicidade” para as mulheres, propondo um novo modelo de feminilidade – jovem, atraente e bela – estimulando nas consumidoras o desejo de uma aparência moderna, sem, contudo, desvincular-se dos papeis de mãe e esposa, socialmente estabelecidos.

Em Representações das mulheres palestinas na perspectiva do jornalista estadunidense Joe Sacco durante a Primeira Intifada (1992-1996), José Rodolfo Vieira analisa personificações imagéticas de mulheres presentes no livro Palestine que trata das “as memórias de palestinos que estiveram direta ou indiretamente em alguma situação de conflito com as Forças de Defesa de Israel” O autor deste artigo apresenta-nos reflexões acerca de mulheres palestinas em viagem aos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza durante a Primeira Intifada Palestina, em 1987, a partir dos estereótipos femininos construídos nesta obra, como o da mulher mutilada e vítima da opressão muçulmana e também aquelas que caminham rumo à modernização, na busca por reinterpretar as relações de poder entre homens e mulheres.

Por fim, esperamos que este segundo volume contribua com estudos e pesquisas que utilizam a imagem como fonte e/ou objeto no campo da História das Mulheres, assim como aquelas que tomam as relações de gênero como categoria de análise.

Edméia Ribeiro – Doutora em História. Pesquisadora na área de História da América, mulheres e gênero. Docente do Curso de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: edmeialondrina@uel.br

Maria Cristina Cavaleiro – Doutora em Educação. Pesquisadora na área de educação, gênero e diversidade sexual. Docente adjunta do Curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) / Campus Cornélio Procópio. E-mail: mariacristina@uenp.edu.br


RIBEIRO, Edméia; CAVALEIRO, Maria Cristina. Apresentação. Domínios da imagem, v. 11, n. 21, jul/dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História | Kátia Abud, André Silva e Ronaldo Alves

Este livro faz parte de uma coleção intitulada “Ideias em Ação”, cuja coordenadora é autora de uma de suas obras, esta, intitulada Formação Continuada de Professores. Logo, sequências didáticas pormenorizadas são uma das coisas que se encontra a cada um de seus capítulos (dez no total). Fundado, portanto, num princípio organizacional de metodologia aplicada, seu leitor pode tanto aproveitá-las na íntegra, aplicando-as com seus educandos, quanto tomá-las como referencial para elaboração de suas próprias. Sendo aplicada, indica-se como meio de aprimoramento do senso didático de docência em História, haja vista que, tendo cada sequência um objeto diferente, cada uma delas é precedida por uma breve exposição teórica acerca de sua construção como documento e fonte de problematização. Destarte, nele, algo como a literatura ficcional tem seus níveis discursivos, enquanto obra, expostos, assim como suas estruturas estruturantes, enquanto mananciais de visões de mundo, operacionalizadas; procedimento análogo feito também para o uso de fotografias, mapas, músicas, filmes, jornais, artefatos museológicos e objetos de cultura material. Por conseguinte, cada introdução teórica é acompanhada da sequência didática de que é objeto, expostas esquematicamente como se parte de um plano de aula fossem. Alicerçado numa proposta prática de exercício de contextualização, se tivermos como finalidade um ensino pelo qual o sujeito possa aprender a problematizar os objetos do mundo, ao mesmo tempo em que torne-se capaz de os situar no interior de temporalidades distintas, seu leitor, caso docente, pode aprimorar-se como sujeito que reflete sua prática por ser instado, por ele, a especular sobre como problematizar sua ação didática tanto quanto como aprimorar sua intervenção pedagógica. Leia Mais

Fontes para a História do Trabalho / Revista de Fontes / 2017

Neste número da Revista de fontes foi dado espaço a historiadores do trabalho que utilizam, em suas pesquisas recentes, fontes até hoje pouco utilizadas, seja pelo ineditismo dado pela dispersão documental e dificuldade de acesso, seja porque começaram a ser exploradas na última década a partir de uma reorientação e diversificação interpretativa da história social do trabalho.

Os estudiosos de história do trabalho no Brasil, a par dos percursos analíticos trilhados pela historiografia internacional sobre o tema, têm privilegiado, sobretudo desde o fim dos anos de 1970 e a década de 1980, as fontes impressas oriundas do movimento operário. A chamada imprensa operária, melhor definível como imprensa produzida pelas organizações, grupos e partidos ligados à militância política e sindical no mundo do trabalho, ainda hoje se constitui como um conjunto documental fundamental para compreensão profunda deste tema, uma vez que, sobretudo para o período da Primeira República, quase não há outras fontes que se originam das comunidades de trabalhadores, apesar de expressar uma visão militante, sendo, portanto, explicitamente caracterizadas de um ponto de vista político.

A grande imprensa da época dava pouca atenção ao mundo do trabalho urbano, a não ser por algumas matérias com uma visão no mínimo paternalista, e na maioria das vezes preconceituosas em relação à classe trabalhadora, suas culturas, costumes, atitudes, vida cotidiana, ações e movimentos. Logo, era, e é necessário ainda hoje para o historiador do mundo do trabalho, tentar penetrar nesse meio através da imprensa anarquista, socialista e sindicalista, ainda sabendo que a classe representada pelos militantes não coincide, obviamente, com o conjunto social heterogêneo dos trabalhadores e trabalhadoras, mas que pode sim ser conhecida e estudada melhor através dos escritos e seções dessa imprensa, onde ao menos aparece seu mundo organizativo, suas críticas, seus anseios e protestos, e suas redes sociais.

Foi somente a partir dos meados década de 1920 e, sobretudo, desde a Era Vargas, que a grande imprensa alargou sua atenção para com o mundo do trabalho urbano na sua totalidade e complexidade de fatos e expressões, ainda que, na maioria das vezes, com um olhar crítico dos movimentos sociais e políticos egressos desse meio.

Outro vasto núcleo documental utilizado nessa área temática remete ao campo da memória, sobretudo considerando as testemunhas orais registradas através das metodologias de história oral, sejam histórias de vida ou entrevistas dialógicas. É um conjunto diversificado de fontes memoriais que foi explorado intensamente desde meados da década de 1970. Evidentemente, a história oral, fundamental na análise das experiências e vivências individuais sociais neste âmbito da história social, encontra claros limites cronológicos ad quem.

Fontes econômicas e estatísticas também foram utilizadas e ainda hoje são frequentadas pelos historiadores do trabalho, embora os recenseamentos e dados recolhidos no Brasil até meados da década de 1930 não ajudem muito para definições mais precisas do universo trabalhista. Baste pensar, por exemplo, nos dados sobre os fluxos migratórios internacionais internos no Estado de São Paulo durante a Primeira República, no período de formação do parque industrial paulistano. Quantos espanhóis e italianos saíram das fazendas e se transferiram na capital, para compor a heterogênea classe operária local, ou voltaram para seus países de origem? Ainda faltam trabalhos em equipe que levantem estes dados, a partir de uma profunda pesquisa nas fontes cartoriais paulistas.

Os documentos policiais e judiciais, as chamadas “fontes da repressão”, começaram a ser utilizadas no Brasil, para a história do trabalho, em tempos recentes, com mais afinco após a abertura dos fundos dos Departamentos de Ordem Política e Social – DOPS regionais e particularmente do de São Paulo, fundado em 1924. Esta documentação, geralmente dividida em prontuários individuais e associativos e em dossiês temáticos, permite o alcance de informações fundamentais, construídas a partir das investigações deste dispositivo de controle social, de outra forma incognoscíveis, sobre o movimento operário, suas organizações e militantes, mas também, não poucas vezes, sobre a vida e condições gerais nos locais de trabalho. Também nesse caso, a documentação se avoluma a partir de meados da década de 1930, com uma intensidade excepcional a partir da década de 1950 até o processo de abertura política dos anos 1979-1984.

Os documentos propriamente judiciais, egressos de fundos dos fóruns de justiça civil e penal (processos-crime) e trabalhista, também começaram a ser usados pelos historiadores deste campo temático, sobretudo a partir da década de 1990. É uma documentação ainda de difícil acesso, sendo em grande parte depositada nos fóruns. Projetos de pesquisa temáticos coletivos, ligados ao levantamento, sistematização e análise de processos judiciais foram bem mais exitosos com a documentação da Justiça do Trabalho, que, porém, só pode ser usada para o estudo da história das relações de trabalho a partir da Era Vargas. Trata-se de um conjunto documental vastíssimo, ainda pouco explorado em relação às suas dimensões, mas que nos últimos anos está no cerne dos estudos mais importantes dos historiadores do trabalho no Brasil, por permitir um mergulho histórico social nos mundos do trabalho para além do estudo das relações e da conflitualidade.

No âmbito das fontes institucionais, relatórios e documentos diversos das instâncias executivas e administrativas da União e dos Estados, quando acessíveis ou publicados (por exemplo, o Boletim do Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo, a partir de 1911) foram importantes para as pesquisas de história social do trabalho desde os primórdios dos anos de 1970, ainda que tenham fornecido um olhar sintético e marcados pelos poderes políticos governamentais. Contudo, as fontes do Ministério e das Secretarias do Trabalho, ainda hoje menos exploradas do que deveriam ou poderiam, sobretudo desde a Era Vargas, proporcionaram uma visão ampla sobre as questões do trabalho, particularmente importante e regionalmente ramificada.

O universo documental que remete ao mundo empresarial, às suas organizações, como a FIESP, ou mais especificamente aos arquivos internos das empresas, ao contrário, é ainda hoje muito pouco explorado, sobretudo pelas implicações políticas que isso significa, mas em parte devido à escolha, por parte das próprias empresas, de não construir uma memória documental sistematizada, preferindo a formação de uma documentação extremamente seletiva, com o objetivo final de proporcionar trabalhos mais laudatórios do que analíticos.

As organizações sindicais e as associações de trabalhadores, por décadas cerceadas pelos aparatos repressivos ou pelo controle estatal, particularmente insidioso no Brasil a partir justamente da consolidação institucional do trabalho sindicalizado durante os anos de 1930, estão em um processo de sistematização de seus acervos, que se intensificou, sobretudo, a partir do começo do século XXI. A documentação mais antiga, desde a segunda metade do século XIX para as associações de socorro mútuo e do começo do século XX para as uniões e ligas sindicais, foi quase totalmente perdida, ou é de acesso difícil, não público, permanecendo nos fundos internos das próprias organizações. Já a documentação de entre os anos 1950 até o golpe de 64 é mais consistente, mas também tem buracos devidos à repressão pós 64, se tornando mais acessível e completa e em via progressiva de sistematização e inventário para os documentos sindicais produzidos desde o fim da década de 1970, com dificuldade de acesso por evidentes questões de privacidade política.

O principal dessas áreas foi abordado com profundidade nos quatro artigos que compõem este número da Revista de fontes.

O artigo de Marcelo Mac Cord remete ao estudo do mutualismo no Brasil, forma associativa de trabalhadores urbanos qualificados que só nos últimos vinte anos começou a ser estudada profundamente para uma história da formação da classe operária brasileira, alargando também o espetro periódico neste campo de estudos, anteriormente focado quase exclusivamente no período republicano. As sociedades de socorro mútuo brasileiras são herdeiras, assim como na Europa e no resto da América urbana, das antigas corporações ou irmandades de ofício e tiveram um desenvolvimento ainda hoje pouco conhecido ao longo do século XIX como as principais agremiações de trabalhadores, adentrando o século XX por várias décadas, algumas ainda hoje existentes como associações hospitalares de beneficência ou absorvidas em sindicatos de ofício ou categoria.

Mac Cord foi um dos primeiros historiadores no Brasil a utilizar os documentos produzidos pelas próprias associações mutualistas, sobretudo os Livros de Atas de Reuniões, se tratando, no caso específico do estudo aqui apresentado, das atas da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, fundada em 1841 “por um grupo de mestre de ofícios pretos e pardos, pernambucanos e livres do Recife”. O autor, além de mostrar as metodologias utilizadas para a análise das Atas desta sociedade durante o período imperial, explora também o uso de outras fontes externas à associação ou da irmandade que a precedeu no tempo, documentação complementar necessária ao entendimento das próprias fontes internas da sociedade e da história dessa sociedade mutualista. Um trabalho metodológico pioneiro que se espera frutifique mais ainda com outros estudos similares no resto do Brasil.

O artigo de Marcelo Chaves faz um histórico da utilização dos arquivos de empresas, uma importante produção documental de organizações privadas para estudos de história econômica e social, infelizmente utilizada de forma esparsa e pontual para a história dos trabalhadores, como já salientado. Chaves é um dos poucos historiadores que conseguiu explorar a fundo este tipo de documentação e, após ter evidenciado as possibilidades inerentes ao uso destas fontes, se concentra finalmente na metodologia por ele utilizada na análise de 1.500 fichas de trabalhadores da Fábrica de Cimento Perus (São Paulo) primeira fábrica de cimento instalada no Brasil, em 1925. Através deste estudo de caso, o autor possibilitou um conhecimento bem mais aprofundado da composição social, demográfica e étnica da classe trabalhadora, pelo menos em São Paulo e reorientou a definição histórica da formação da classe operária nacional a partir da última década da Primeira República até o período do governo Vargas.

A contribuição de Murilo Leal Pereira Neto volta a examinar a canônica documentação conhecida como imprensa operária, neste caso, porém, pertencente ao mesmo tempo à tipologia de fontes produzida pelas organizações sindicais. Assim, o autor, além de debater a própria construção tipológica das fontes impressas periódicas mais próximas da expressão social, cultural e política da classe trabalhadora, joga uma nova luz sobre o uso renovado destes documentos e os seus significados para uma história social “de baixo”. O artigo se concentra na coleção do jornal O Metalúrgico, (editado desde 1942 pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas de São Paulo), durante o período 1950-1954, quadriênio de intensa mobilização organizada no meio operário e de grandes transformações sociais e políticas no país. A metodologia do uso de fontes como essa, como via para tentar definir a relação entre o emissor e o receptor do discurso da classe e sua ação política, é analisada detalhadamente por Murilo Leal, e se torna também de importância fundamental ara inserir o uso e estudo da imprensa sindical na história do trabalho, o que é ainda hoje pouco comum, seja pela raridade deste tipo de fonte no Brasil nos períodos anteriores à segunda metade do século XX, seja pela dificuldade de acesso.

Finalmente, seguindo uma narrativa cronológica, chegamos na última contribuição presente neste número, elaborada por Richard de Oliveira Martins. O autor, na esteira do uso das fontes policiais para a história do trabalho inaugurado no Brasil no fim do século XX, percorre a formação do acervo do DOPS de São Paulo e sua utilização para a história do trabalho, sobretudo nos seus momentos de conflitualidade e luta, para adentrar, depois, a análise metodológica do acervo do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil (DCS), que funcionou entre 1983 e 1999, prolongando, na época democrática pós-golpe o armazenamento e construção de um aparato informativo com fins de controle e repressão, que pode ser utilizado hoje pelos historiadores para estudar os mundos dos trabalhadores, não somente em lutas.

Desejamos a todos uma boa e proveitosa leitura!

Luigi Biondi – Departamento de História, Unifesp, Guarulhos, SP. E-mail: luigi.biondi@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-9723-6727


BIONDI, Luigi. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.4, n.7, 2017. Acessar publicação original [DR]

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As alternativas políticas à Democracia no século XX / Intellèctus / 2017

Apresentamos neste número o dossiê As alternativas políticas à Democracia no século XX, de produção historiográfica de autores de diferentes universidades.

O objetivo deste dossiê se confunde com o objetivo da revista: ele “destina-se a publicar estudos em História Intelectual e dos Intelectuais bem como sobre a produção cultural dos países que compõem o universo cultural da Latinidade“, abordando questões pertinentes à: Política, Economia, Sociedade, Filosofia e Artes.

Além disso, a temática do dossiê é dedicada ao pensamento, às organizações e aos indivíduos que durante a época contemporânea se opuseram à Democracia no Ocidente. Este desafio nasceu a partir da leitura do livro de Jan-Werner Müller “Contesting Democracy. Political Ideas in Tewntieth-Century Europe”, editado pela Universidade de Yale em 2011. Esta obra se tornou uma referência para todos os que se dedicam ao estudo das ideias políticas e ao processo de (des)construção da Democracia no século XX, especialmente no entre guerras. Segundo este autor, a esfera política e os indivíduos nunca terão sido tão influenciados por escritores como neste período. Talvez por isso, o século XX é para muitos historiadores “a era das ideologias”, e, que pelas suas características violentas, fanáticas e irracionais, levaram Eric Hobsbawn a batizar os anos de novecentos como a “Era do Extremos”. Leia Mais

História e Literatura: ficção e verdade (II) / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2017

Nesta edição de Intelligere temos o prazer de apresentar a segunda e última parte do dossiê “História e literatura: ficção e verdade”, dando continuidade aos debates que abrimos no número anterior sobre as múltiplas e instigantes relações entre a história e o universo ficcional.

A segunda parte do dossiê é composta por cinco artigos e um texto da seção “Pesquisa”. Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba parte de autores como Michel Foucault, Jacques Derrida e Silviano Santiago para pensar o problema da colonização brasileira e a questão das identidades nacionais na América latina. Margareth dos Santos propõe uma leitura da poética de Ángel González sobre a Espanha durante a ditadura de Franco, mostrando como essa literatura é um ponto de referência para se compreender a experiência sombria do franquismo. Rogério de Almeida e Fábio Takao Masuda tratam das relações entre ficção e história por meio da literatura de Clarice Lispector, explicitando como aspectos da realidade social brasileira aparecem como partes constitutivas dos dramas íntimos de seus personagens. Camila Rodrigues explora os manuscritos de Guimarães Rosa, nos quais encontra questionamentos acerca do devir histórico, mostrando o quão fecunda é a proposta de Carlo Ginzburg para a análise das obras literárias. Flávia Maria Corradin apresenta um estudo sobre as obras de Vasco Pereira da Costa e Rosa Lobato de Faria, dois autores portugueses contemporâneos, para apontar a força das relações entre história, mito e literatura. Na seção “Pesquisa”, Michelly Cristina da Silva compara dois livros de Ricardo Piglia para explorar o tema do relato policial e sua narrativa.

A segunda parte do dossiê “História e Literatura” aparece apenas poucos dias após o anúncio da morte do escritor argentino Ricardo Piglia, que foi tema de dois artigos aqui publicados. Manifestamos nosso reconhecimento à sua obra e legado.

“A história é o lugar em que se vê que as coisas podem mudar e se transformar. Nos momentos em que parece que nada muda, que tudo está enclausurado e que o pesadelo do presente parece eterno, a história (…) prova que houve outras situações iguais, enclausuradas, nas quais se terminou por encontrar uma saída. Os rastros do futuro estão no passado, o fluir manso da água da história gasta as pedras mais duras.”

Ricardo Piglia, Crítica y ficción

Júlio Pimentel Pinto (USP),

Francine Iegelski (UFF),

Stefania Chiarelli (UFF).

Os coordenadores do dossiê


PINTO, Julio Pimentel; IEGELSKI, Francine; CHIARELLI, Stefania. Apresentação. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, v. 3, n. 1, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Belém, v.4, n.2, 2017.

História e Cidade / Cadernos de História / 2017

É com intensa satisfação que publicamos o Dossiê História e Cidades, a mais recente edição da revista Cadernos de História.

A aproximação da História com outros campos disciplinares, sobretudo com as Ciências Sociais, contribuiu para ampliar os olhares sobre a cidade. Nesse propósito, apresentamos nesse dossiê, artigos que dialogam com várias áreas cujas pesquisas muito contribuem para alargar as maneiras de se pensar o urbano.

Convidados para apresentar nosso editorial, a sociológica Luciana Teixeira de Andrade. A pesquisadora traz importantes contribuições em destacar o atual estágio dos estudos urbanos no meio acadêmico, suas múltiplas conexões interdisciplinares e diversificados campos de possibilidades que permitem amplos e sofisticados debates acerca da leitura sobre as cidades.

Os dois primeiros artigos que abrem esse dossiê, “Uma problemática da Arqueologia e da História: a cidade e seus territórios” e “O papel da ambiência histórica nos processos de tombamento dos sítios urbanos”, escritos, respectivamente por Arno Alvarez Kern e pelos coautores Cíntia Camila Viegas e Rubenilson Brazão Teixeira, entrecruzam os estudos sobre as cidades com a perspectiva arqueológica e patrimonial. A primeira pesquisa apresenta a arqueologia como um campo de possibilidades em considerar os vestígios obtidos por suas escavações como fontes históricas complementares para a interpretação do fenômeno urbano. Já no segundo artigo, os pesquisadores, ao utilizarem o conceito de ambiência histórica e ao analisarem as trajetórias percorridas sobre a noção de patrimônio, discutem os valores materiais e simbólicos atribuídos ao processo de tombamento de sítios urbanos. Cíntia Viegas e Rubenilson bem ilustram essa abordagem teórica através de um estudo de caso do patrimônio urbano potiguar.

O próximo artigo, de autoria da historiadora Maria Alice da Silva Tavares, apresenta o medievo português priorizando analiticamente o modo de vida urbano. Intitulada “Vivências quotidianas na rua: costumes e foros da Idade Média portuguesa”, a pesquisadora utiliza-se de fontes documentais municipais para fornecer dados para se entender a criminalidade urbana, os tratos higienistas e as atividades econômicas de ruas do século XIII, a partir de determinadas regiões lusitanas selecionadas pela autora.

Em seguida, a pesquisa de Gustavo Leandro Gouvea Lopes também se orienta pela análise higienista, porém, voltada ao cenário urbano mineiro de finais do século XIX e início do século XX. Em seu artigo “Vida e morte sujam a urbe moralizada: latidos, mugidos, higienismo e os jornais diamantinenses”, o autor analisa as narrativas da imprensa local, especialmente os jornais impressos, no sentido de identificar discurso civilizatório e moralizador favorável à ação da municipalidade no recolhimento de animais soltos pelas ruas da cidade mineira de Diamantina. De metodologia similar, ao priorizar a leitura de jornais e periódicos, a historiadora Sônia Maria de Meneses Silva, no artigo “A pena e o bacamarte: imprensa e narrativa criminal – um olhar sobre a cidade no século XIX”, também analisa as práticas e discursos higienistas reproduzidos pelas narrativas jornalísticas em relação ao controle da violência e à ordenação dos espaços urbanos da cidade de Fortaleza a partir da segunda metade do século XIX. Ainda tendo o século XIX como recorte temporal, porém estendendo-se ao primeiro quartel do século XX, o artigo “Comerciantes e artesãos toscanos nas ruas de São Paulo (1875-1914)”, do historiador Antonio de Ruggiero, trata da temática da imigração italiana, particularmente da região da Toscana, na cidade de São Paulo. A pesquisa aborda os vínculos engendrados por essa comunidade através do trabalho artesanal e pelas redes de sociabilidade construídas entre imigrantes e país receptor.

O artigo seguinte desse dossiê transpõe-se ao cenário latino-americano das primeiras quatro décadas do século XX. O trabalho “Antes del espacio publico: una historia de los espacios verdes y libres de la ciudad de Rosário (1900-1940)”, de autoria dos pesquisadores argentinos Diego Roldán e Sebastián Godoy, analisa as intervenções urbanísticas, higienistas e paisagísticas realizadas pelo poder público nos parques urbanos da cidade argentina de Rosário, província de Santa Fé, tendo em vista as narrativas construídas e sentidos atribuídos ao espaço público contemporâneo. Logo depois, Alexandre Cotovio Martins, em seu artigo “Fatores ‘genéticos’ da política de habitação operária da Companhia União Fabril em Portugal: uma breve análise” apresenta a realidade urbana lusitana, especialmente sua capital Lisboa, a partir da instalação da indústria têxtil Companhia União Fabril no ano de 1907. A pesquisa analisa as políticas habitacionais empreendidas por este empregador ao operariado e como tais iniciativas afetaram a forma de se pensar o espaço público naquele entorno industrial.

Dando sequência às publicações desse dossiê, o artigo “A cidade do Rio de Janeiro e a construção do Aeroporto Santos Dumont (1933-1938)” retoma os estudos urbanos sobre a realidade nacional. Sua autora, Claúdia Musa Fay, apresenta a conexão entre as construções dos primeiros aeroportos e a história urbana. A historiadora destaca como a criação do Aeroporto Santos Dumont modificou a paisagem estética, provocou significativas alterações urbanística e renovou as formas de representar o espaço público da cidade do Rio de Janeiro a partir da década de 1930. Já a pesquisa de Maria Cristina de Castro Pereira –, intitulada “Mapeando o Pouso Frio: dinâmicas de um bairro na cidade de Toledo / PR” – apresenta o processo de ocupação, ocorrido a partir da década de 1940, por diversificados sujeitos provenientes no norte do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Paraguai, do bairro denominado Pouso Frio, situado na cidade paranaense de Toledo. A autora destaca a omissão da história oficial reproduzida pelo município acerca da apropriação desse bairro por trabalhadores vindos de diversas regiões do país na busca por condições de moradia e por acesso à cidade.

A seguir, apresentamos o artigo “Um futuro alternativo para São Paulo: Anhaia Mello e a tese da limitação do crescimento da metrópole”, elaborado por Bruno de Macedo Zorek. Nesta pesquisa é abordada a conjuntura de modernização urbana experimentada pela cidade de São Paulo no decorrer da década de 1950, tendo em vista seu emergente processo de metropolização. O autor analisa, especialmente, documentos produzidos pelo urbanista Luís de Anhaia Mello acerca de suas perspectivas de pensar a nova configuração e o futuro da cidade paulistana.

Os próximos artigos abordam a temática do patrimônio e suas articulações ao urbano. Felipe Araujo Xavier, na pesquisa “O zé-pereira em Rio Novo: uma emancipação cultural centenária no interior de Minas Gerais (1906-2006)”, analisa as relações constituídas entre as práticas pré-carnavalescas representadas pelo bloco zépereira e os bailes de carnaval realizados pelos clubes sociais no município mineiro de Rio Novo em amplo recorte temporal. Nesse artigo, o autor utiliza-se de diversificadas fontes para interligar a memória e sua relação com o espaço urbano daquela localidade. Já o artigo “O Espelho da História: práticas patrimonialistas e transformações na paisagem urbana de Viçosa (1980-2010)”, dos pesquisadores Leonardo Civale e Walkíria Maria Freitas Martins, discute as relações acirradas e conflituosas que envolvem o patrimônio. Os coautores analisam como as ações patrimoniais reconfiguraram a paisagem urbana da cidade mineira de Viçosa, ao final do século XX e início do século XXI, no sentido de preservar e revitalizar antigas áreas industriais degradadas.

Finalizando a sequência de publicações desse dossiê, apresentamos duas comunicações voltadas à realidade lusitana: “O olhar estrangeiro na Lisboa de oitocentos” e “Shilb (Silves) no período islâmico – a Bagdad do ocidente”, respectivamente escritas por Maria João Castro e Natália Lopes Nunes. Na primeira comunicação, sua autora Maria João Castro utiliza-se do discurso literário no propósito de cartografar a cidade de Lisboa a partir do olhar memorialístico de seus visitantes europeus do século XIX. Já na segunda comunicação, Natália Lopes Nunes, ao coordenar um projeto em andamento, investiga a herança árabe e islâmica em Portugal, especialmente, na cidade de Silves, de antigo domínio muçulmano.

Assim, através dos colaboradores deste dossiê temático, podemos perceber a íntima relação entre História e Cidades. Os objetos abordados permeiam um vasto campo de possibilidades em se pensar a urbe, percorrendo a memória, o poder, as narrativas jornalísticas, a arqueologia, o patrimônio, as ocupações sociais, as manifestações e o planejamento urbano. Desse modo, Cadernos de História ratifica ser um amplo espaço de discussão acadêmica que contribui com o diálogo transdisciplinar ao reunir neste número instigantes pesquisas sobre História e Cidades. Agradecemos mais uma vez a equipe do Setor de Revisão da PUC Minas, especialmente, a professora Daniella Lopes, e aos estagiários Roberto Barcelos, Aline de Oliveira, Julia Magalhães e Thatiane Marques.

Agradecemos também a professora Jacyra Parreiras, chefe do Departamento de História da PUC Minas, e ao diretor da Editora PUC Minas, professor Paulo Agostinho Nogueira Baptista. Agradecemos ainda aos membros do Conselho Editorial dos Cadernos de História, notadamente, aos professores Rafael Pacheco Mourão, Virgínia Valadares e Maria Flor de Maio Benfica. Ressaltamos que todas essas pessoas foram importantíssimas para tornar possível mais uma publicação.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Marcelo de Araújo Rehfeld Cedro – Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professor do Departamento de História da PUC Minas. Editor Gerente dos Cadernos de História.


CEDRO, Marcelo de Araújo Rehfeld. Apresentação. Cadernos de História. Belo Horizonte, v.18, n.28, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Educação a Distância. Batatais, v.7, n.2, jul./dez. 2017.

Dossiê: Concepção e Desenvolvimento de Material Didático

Expediente

  • A autoria na EaD frente aos direitos autorais |
  • Maria Beatriz Nazar Bergamo ABEID
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  • O texto didático na EaD: vantagens da elaboração dedicada
  • Dandara Louise Vieira MATAVELLI
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  • O uso das bibliotecas digitais na EaD |
  • Lidiane Maria MAGALINI
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  • O uso de recursos metacognitivos como facilitadores de aprendizagem no material didático
  • Carolina de Andrade BAVIERA
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  • Hipertexto: uma mudança de paradigma na construção do Material Didático Mediacional
  • Raquel Baptista Meneses FRATA
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  • Produção de material didático on-line para EaD: relato de experiência ? materiais on-line do Claretiano ? Centro Universitário
  • Raphael Fantacini de OLIVEIRA
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  • Teorias pedagógicas aplicadas à Educação a Distância
  • Camila Maria Nardi MATOS
  • Luciana Aparecida Mani ADAMI
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  • Texto didático para EaD: relatos de experiência
  • Filipi Andrade de Deus SILVEIRA
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Estado Novo, 80 anos: arquivos e histórias/Acervo/2017

A revista Acervo apresenta ao leitor, neste número, um dos temas mais importantes da história brasileira: o Estado Novo, nome pelo qual a ditadura de Getúlio Vargas ficou conhecida (1937-1945). Implantado pelo golpe de estado, desferido em 10 de novembro de 1937, esse regime político completou, em 2017, oitenta anos. Seu nome oficial, entretanto, era Estado Nacional, como de fato aparece na Constituição outorgada pelo presidente. Oficialmente, Estado Novo era o nome da ditadura portuguesa de Antônio de Oliveira Salazar, instituída quatro anos antes do golpe, e cujo nome acabou sendo adotado livremente no Brasil. Leia Mais

Antiguidade e Medievo / Fato & Versões / 2017

Neste número da Fato & Versões – Revista de História, os artigos foram articulados no dossiê Antiguidade e Medievo; acompanhando o perfil adotado pelo corpo editorial, as contribuições abarcam uma multiplicidade de enfoques e metodologias sobre esses períodos, privilegiando o aspecto interdisciplinar do saber histórico.

Iniciamos nosso dossiê com o artigo de Fabiano de Souza Coelho intitulado História, Religião e Ecumenismo: o Primado Petrino católico romano e as comunidades eclesiais ortodoxas, iluminados a partir de alguns documentos do Concílio Vaticano II. Suscita-se as vinculações entre a Igreja Católica Romana e as Otodoxas a partir do decreto Unitatis Redintegratio e o Primado do bispo de Roma nas intersecções entre o Ocidente e o Oriente cristão em busca de uma oficialidade, destacando também o decreto Orientalium Ecclesiarum. Nesse ínterim, é evidente as relações de poder inseridas, o que permeia de maneira semelhante o artigo de Carlos Eduardo Schmitt intitulado Valentiniano I e o início de uma nova dinastia, que trabalha o viés da antiguidade tardia, investigando o conhecimento do historiador Amiano Marcelino sobre a relação entre a corte imperial e o Senado no início dessa nova dinastia do Império Romano.

Evidenciando o período medieval, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira apresenta o artigo A cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no século XII: reflexões sobre o Priorado de D. Teotônio, que busca compreender os eventos que cercaram o processo de fundação do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na primeira metade do século XII, bem como o exercício do primeiro priorado por D. Teotônio. Novamente aponta-se as relações de interesses políticos e religiosos dentro do debate e permeando os textos.

Retornando à antiguidade, Luis Filipe Bantim de Assumpção em seu artigo Revisitando os valores sociais espartanos no discurso de Xenofonte concentra-se na análise sociopolítica espartana de Xenofonte a partir da Constituição dos Lacedemônios, situando seu lugar social no século IV a. C. e a maneira como fomenta elogios à Esparta diante das avaliações críticas sobre posicionamentos da democracia ateniense. Relações territoriais e de perspectivas políticas podem, assim, ser ressaltadas, o que, de maneira semelhante é possível destacar nos demais trabalhos apresentados.

Alexandre Cozer propõe um debate de aprofundamento dos quesitos morais na sexualidade romana da antiguidade pelo viés do riso e da comicidade a partir do texto Nolite omnia quae loquor putare: apontamentos sobre a leitura e o humor na Priapeia Romana, levando em consideração a teoria da estética da recepção de Hans Jauss em suas análises. Finalizando esta edição, Gabriel Freitas Reis resenha o livro Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano no Ocidente de Pedro Paulo Funari, discussão que finaliza a proposta do dossiê.

Boa leitura a todos!

Dolores Puga


PUGA, Dolores. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.9, n.18, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Circularidade, identidades e imaginário político no Mundo Ibérico / Dimensões / 2016

Os artigos que compõem o dossiê Circularidade, identidades e imaginário político no Mundo Ibérico procuram apresentar reflexões sobre os ibéricos e suas interações sociais, políticas e culturais da Antiguidade Tardia até a Modernidade. Dialogando com diferentes temporalidades e objetos, as pesquisas aqui apresentadas revelam um pouco da variedade de temáticas, usos de fontes e possibilidades de diálogo com diferentes metodologias para uma compreensão mais rica do mundo ibérico.

O primeiro artigo De la biografia a la hagiografia em época visigoda: Félix Detoledo y la vita sancti Iuliani é de Ariel Guiance, professor titular de História da Idade Média na Universidade Nacional de Córdoba. Seu texto é sobre Félix de Toledo, um bispo no reino visigótico, que escreve uma biografia de seu antecessor Juliano de Toledo, que se transforma numa hagiografia na Hispânia Goda. Leia Mais

Transições políticas no Brasil / Faces de Clio / 2017

Diante do contexto de cortes de financiamento na área de educação e pesquisa que enfrentamos, pelo qual o governo federal é responsável, a Revista Faces de Clio, demonstrando resistência ao dar continuidade à divulgação da ciência, tem o prazer de publicar sua 6ª edição (jul-dez de 2017), cujo tema de dossiê é: “Transições políticas no Brasil”. A proposta é analisar diferentes regimes e sistemas de governo no que se refere ao processo de mudança entre eles. Além do fenômeno político, existe o interesse em pensar o social, refletindo sobre valores, expectativas, ideais de grupo em diferentes conjunturas, analisando suas adaptações. Por fim, convidamos a uma reflexão que relaciona a economia a esses movimentos políticos, bem como fenômenos e acontecimentos internacionais que influenciaram e contribuíram para crises e mudanças de regimes políticos.

Os textos recebidos evidenciam a riqueza de problemáticas que podem ser estudadas. O dossiê é composto por quatro artigos, cujos períodos históricos retratados vão desde a Monarquia até o Tempo Presente, perpassando pela República Oligárquica, ditaduras e democracia. São trabalhadas as tensões, rupturas e conciliações inerentes a contextos de transição política. As metodologias utilizadas para o estudo do político também são destaques nesta edição da Revista Faces de Clio: análise de discursos, de imprensa e de fotografias.

A edição conta, ainda, com seis artigos livres, cujos temas e recortes temporais são variados. É importante considerar que os autores são doutorandos, mestres e mestrandos, de diferentes instituições e estados brasileiros, contribuindo, dessa forma, para a diversidade na promoção do debate historiográfico e de áreas afins.

Principiando o dossiê temático, Andrielly Oliveira, mestre pela Universidade Federal do Mato Grosso e professora da Universidade Estadual de Mato Grosso, problematiza, em seu texto, as disputas de memórias e suas relações com o processo de superação dos eventos vividos durante a Ditadura Militar brasileira a partir da justiça de transição. Para esse estudo, a historiadora analisa discursos memorialísticos das Forças Armadas, especificamente no que diz respeito à lei de anistia, publicados na Revista do Clube Militar entre 1985 e 2010. Outro viés de análise sobre a Ditadura Militar brasileira foi realizado por Aryanny Silva, doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Ao contrário de Oliveira, que compreende o contexto de transição da Ditadura Militar para a Democracia, o trabalho de Silva tem seu recorte temporal entre 1960 e 1980, abrangendo, portanto, as mudanças ocorridas após o golpe de 1964, que encerrou a primeira experiência democrática brasileira e iniciou a Ditadura Militar. A partir de análises de fotografias que retratam a destruição da Igreja do Bom Senhor dos Martírios, realizadas pelo fotógrafo Alcir Lacerda, Silva discute os debates do cenário político ocorridos nessa época. Seu estudo demonstra o fotógrafo como sujeito histórico e testemunha ocular, e discute a fotografia como um exercício de documentar e rememorar.

Distanciando do contexto de democracias e Ditadura Militar, os outros dois artigos que fazem parte do dossiê temático retratam o contexto que encerra a Monarquia e inaugura a República brasileira. A doutoranda Marta Fittipaldi, estudante da Universidade Federal de Juiz de Fora, em seu artigo “‘Adesistas’ e ‘históricos’: as disputas discursivas no processo de legitimação dos vários projetos republicanos”, analisa os termos “adesistas” e “históricos”, utilizados pela imprensa e em pronunciamentos parlamentares, no intuito de compreender como o uso dessas denominações se inseria em concorrências políticas em torno de projetos republicanos distintos. Ademais, relaciona a atuação de Antônio da Silva Jardim às disputas retóricas que se estenderam durante o primeiro decênio da República brasileira. Encerrando o dossiê temático, o trabalho de Bruna Santos, mestranda da Universidade Federal de Sergipe, discute o papel da imprensa sergipana, em especial o Diário Oficial do Estado, na formação da opinião pública da sociedade em favor do Estado Oligárquico, contribuindo, assim, para a consolidação da oligarquia naquela unidade federativa.

Os artigos livres possuem temáticas diversas. Luiz Henrique Giacomo, doutorando em História pela Universidade de São Paulo, desenvolve, por meio de análises de peças numismáticas, um interessante trabalho sobre a preocupação de Otaviano com esses objetos, no intuito de legitimar seu poder através desses artefatos. Giacomo compreende que essas peças serviram para difundir mensagens ao povo, geralmente de cunho cívico e político.

Retornando aos estudos sobre o Brasil, Pedro Henrique Ferreira Oliveira, também doutorando, estuda a História da Psiquiatria na Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz, instituto de excelência em História das Ciências e da Saúde. Seu artigo compreende as moléstias mentais nos periódicos médicos no Brasil a partir da chegada da Corte portuguesa. Ele analisa de que modo a criação de escolas de medicina, bem como da imprensa, contribuíram para a difusão do conhecimento médico e científico e para o monopólio do tratamento e da cura de doenças da população. Encerrando o contexto da monarquia brasileira e inaugurando a República, o trabalho de Bruno Mandelli, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, discute a representação do trabalho no início da industrialização do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, entre 1880 e 1900. A partir de análises de literaturas de viagem, Mandelli compreende que a ideologia do teuto-brasileiro defendia a superioridade do trabalho imigrante alemão em detrimento de outras etnias, buscando, assim, despertar o interesse pela emigração para o sul do Brasil.

Assim como Mandelli, Luis Francisco Abreu Alvarez (mestrando em Política Social pela Universidade Federal Fluminense) também estuda o Mundo do Trabalho, porém, sob outros vieses. Seu artigo é uma análise dos processos de precarização do trabalho no Brasil a partir de três de suas características específicas: contratação, jornada e remuneração. Seu recorte temporal contempla o período da promulgação da Constituição Federal de 1988 até o ano de 2015. Alvarez defende que as relações precárias no Brasil se institucionalizam mediante legislações específicas e contrariam as disposições gerais da Constituição e da Consolidação das Leis do Trabalho. Contudo, as leis que regem o trabalhador continuam sendo normas significativas na defesa de direitos trabalhistas e vínculos empregatícios estáveis.

Pedro Silva, mestre em História pela Universidade Federal Fluminense, em seu trabalho “Construindo um novo espaço urbano no Estado Novo: a participação das empreiteiras cariocas nas obras da gestão de Henrique Dodsworth (1937-1945)” estuda a gestão do prefeito do Rio de Janeiro ‒ Henrique Dodsworth ‒ no que se refere à realização de grandes intervenções urbanísticas como projeto de solução para os problemas urbanos da capital brasileira da época. Dessa forma, estuda as empresas cariocas de construção civil ao longo do Estado Novo, analisando o valor investido no programa municipal de obras públicas em cada ano e a divisão do faturamento total entre as empresas.

Encerrando a 6ª edição, o artigo de Lívia Rezende, doutoranda pela Universidade Federal de Juiz de Fora, pautando-se na metodologia da história oral, discute de que maneira a consulta e o convívio regular com os pretos-velhos por meio da religião e da religiosidade influenciam na construção das perspectivas, valores e expectativas dos consulentes, através da reelaboração da escravidão negra no Brasil.

Nosso muito obrigado aos pesquisadores que confiaram à revista a divulgação de seus trabalhos; aos professores colaboradores, que, através de análise minuciosa, contribuíram com seus pareceres aos artigos recebidos.

Agradecemos também à equipe multidisciplinar da Revista Faces de Clio, que, com dedicação, proporcionou a concretização desta edição.

Por fim, nossos sinceros reconhecimentos à Universidade Federal de Juiz de Fora, em especial ao Programa de Pós-Graduação em História, pelo espaço de atuação na promoção da ciência.

Desejamos uma excelente leitura!

Julho de 2017

Flavia Salles Ferro

Leonardo Bassoli Ângelo


FERRO, Flavia Salles; ÂNGELO, Leonardo Bassoli. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.3, n.6, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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A perspectiva ficcional: representações literárias do passado/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2017

No dossiê desta edição dos Cadernos de Pesquisa do CDDHIS, revista do Centro de Documentação e Pesquisa de História da Universidade Federal de Uberlândia, o leitor terá contato com textos que tratam das fronteiras entre a narrativa histórica e a narrativa literária, partindo do princípio de que essa é questão fundamental para a delimitação da especificidade dos discursos ficcionais e historiográficos. Leia Mais

Recôncavo – Revista de História da UNIABEU. Belford Roxo, v. 7, n.12, 2017.

Editorial

Dossiê: Idade Média – Cotidiano, Religião e Poder

ARA VICTORIAE: A CONSTRUÇÃO DE UMA “PAISAGEM RELIGIOSA” NA RELATIO III DE QUINTO AURÉLIO SÍMACO | Carlos Eduardo Schmitt | PDF

Recôncavo – Revista de História da UNIABEU. Belford Roxo, v.7, n.13, 2017.

Editorial | Marcia Cristina Roma de Vasconcellos | PDF

Artigos

Storia globale. Un’introduzione – CONRAD (BC)

CONRAD, Sebastian. Storia globale. Un’introduzione. Roma: Carocci, 2015. 210p. Resenha de: PERILLO, Ernesto. Il Bollettino di Clio, n.5, p.55-60, giu., 2017.

Non considerata a rigore tra i segnali paratestuali, l’introduzione assolve a diversi compiti importanti: indicare le ragioni della trattazione del tema in oggetto; presentare il tema, esplicitando, se necessario, questioni, genesi, elementi; ricapitolarne riassuntivamente il contenuto.

Posta sulla soglia del testo, l’introduzione ne costituisce, dunque, la necessaria porta di ingresso: una mappa per la comprensione anticipata del territorio che vogliamo esplorare. In questo caso quello della storia globale: il libro di S.Conrad ci consente di averne una visionecomplessiva e articolata, capace di farci conoscereil tema ancora prima di averlo attraversatoconcretamente e utile proprio per esserne unaguida preventivamente efficace.

Un’introduzione, appunto.

Analizziamo la mappa/introduzione alla storia globale: ci mostra sostanzialmente tre luoghi e consente di rispondere a tre domande:  La sua genesi: quando e com’ è nata la storia globale?  Definizione e contenuti: che cosa è e di cosa si occupa la storia globale?  Gli aspetti critici: quali le controversie e le obiezioni più frequenti?  Cominciamo allora l’esplorazione, partendo dalla definizione di storia globale :  “A un primo approccio, ancora molto generale, la storia globale definisce una forma di analisi storica nella quale fenomeni, eventi e processi vengono inquadrati in contesti globali. Con ciò non si intende necessariamente che l’indagine venga estesa all’intero globo terrestre; per molti temi i punti di riferimento saranno più limitati. Ciò significa anche che la maggior parte degli approcci di storia globale non cerca di sostituire l’affermato paradigma storico-nazionale con un’ astratta totalità del “mondo”, cioè di scrivere una storia totale del globo. Spesso si tratta più facilmente della storiografia di aree limitate, quindi non “globali”, ma piuttosto con una consapevolezza delle relazioni globali”.1  La storia globale è dunque innanzi tutto una prospettiva2, che pone in primo piano altre dimensioni, altre domande attraverso le quali traguardare il passato. Ma è al tempo stesso un tema specifico del discorso storico: per una contestualizzazione globale è spesso importante rendere conto del grado e del carattere dei collegamenti delle reti globali.3

La genesi

Quando si chiede a uno storico/a una definizione, (di solito) la riposta è il racconto di una storia: la comprensione di un fatto è custodita nella sua genesi; nei contesti e/o nei processi dentro i quali esso si è manifestato.

S.Conrad dedica i capitoli iniziali della suaintroduzione alla storia della storia globale, a partire dall’antichità, per mostrare come i concetti di “mondo” e globalità siano storicamente mutevoli e diversi a seconda dell’epoca e dei luoghi. E mette a fuoco un elemento decisivo:

“ Come qualsiasi altra forma di storiografia, anche la storia globale è sempre plasmata dalle sue condizioni di nascita e dal contesto sociale concreto nel quale viene scritta. Una prospettiva di storia globale è, a questo riguardo, prima di tutto una specifica lettura delle relazioni globali, e non significa affatto che questa visione debba anche essere capita o addirittura accettata ovunque nel mondo. Così come i testi scolastici tedeschi, francesi o polacchi si possono differenziare (nei loro interessi tematici, in ciò che omettono, ma anche nelle interpretazioni degli eventi che trattano), altrettanto le rappresentazioni della storia mondiale possono variare talvolta in maniera sostanziale.

(…) Singoli temi, ad esempio lo schiavismo, mutano il loro significato sociale in maniera basilare, a seconda se esso venga preso in considerazione dalla prospettiva dell’Angola o della Nigeria, del Brasile o di Cuba, ma anche della Francia o dell’ Inghilterra. E anche il concetto di mondo rispettivamente rilevante non è affatto omogeneo in differenti società e nazioni.

Poiché la storia globale non è un soggetto naturalmente dato ma rappresenta una prospettiva, è tanto più importante considerare da dove essa viene osservata.” (p. 45)

Tre sono gli approcci che dagli anni Novanta del secolo scorso caratterizzano la storia globale:  -l’analisi di connessioni transnazionali(senza un esplicito riferimento al”mondo”): il riferimento è alla storiacomparata (ma non solo) e all’attenzioneprivilegiata alle macroregioni (OceanoIndiano, Oceano Atlantico, il continenteeuropeo nel suo complesso…); -la storia delle civiltà; -la pluralizzazione della storia globale emondiale: “conviene osservare la storia globale in una prospettiva di storia globale, per assicurarsi della relatività e della posizionalità di ogni lettura del passato globale.”(p. 63)

I contenuti

a.Gli ambiti

S.Conrad individua quattro ambiti didiscussione, all’interno dei quali attualmente gli storici riflettono sulla dinamica del mondo moderno:  -la teoria del sistema-mondo: dall’approccioteorico elaborato da I. Wallerstein negli anni Settanta alle critiche successive circa la possibilità del suo utilizzo ancora oggi: superamento della cornice analitica dello Stato nazionale, uso del concetto dell’incorporazione graduale in un contesto dominato dall’Europa, attenzione ai cambiamenti strutturali di natura macrostorica;  -i postcolonial studies per una lettura noneurocentrica del mondo moderno. Dopo aver messo in luce alcuni elementi critici della prospettiva postcoloniale, l’autore ne sottolinea tre aspetti ancora significativi: l’esistenza di spazi di ibridazione, acquisizioni locali, negoziazioni in condizioni coloniali accanto alla diffusione e all’adattamento come processi di transfer culturali di storia mondiale; l’attenzione alle dipendenze, interferenze, connessioni, superando l’idea che nazione e civilizzazione siano da considerare unità “naturali” della storia, contro una storiografia mondiale eurocentrica che legge lo sviluppo europeo/occidentale slegato dal resto del mondo; la considerazione che i processi di integrazione globale si realizzano entro rapporti e strutture di dominio;  -le analisi delle reti: l’epoca degli Statinazionali, basati sul controllo di territori pensati come superfici in relazione tra di loro, è stata sostituita dall’epoca della connessione (merci, informazioni, uomini e donne);  -il concetto di multiple modernities: al centrodell’attenzione la pluralizzazione delle linee di sviluppo della modernità e il ridimensionamento dell’assioma della secolarizzazione che avrebbe accompagnato ovunque i processi di modernizzazione.

Diversi, secondo Conrad, sono gli ambiti storiografici rivisitati in prospettiva di storia globale dalla storia economica a quella sociale, da quella geopolitica alla storia culturale e della vita quotidiana, per citarne alcuni. L’autore indica sei campi nei quali oggi la ricerca è particolarmente attiva: merci globali; storia degli oceani; la migrazione; gli imperi; la nazione; la storia dell’ambiente.

b.Le problematiche di riferimento

Quali le principali questioni della storiaglobale? Conrad le individua a partire dalle seguenti domande:  “Come si può scrivere una storia del mondo e delle sue connessioni che non sia eurocentrica e la cui logica non sia prestrutturata attraverso l’uso di concetti occidentali? Da quando si può propriamente parlare di un contesto globale, e di una storia della globalizzazione? Ha corso la storia del mondo sempre verso l’egemonia dell”’Occidente”, come essa si è manifestata nel XIX e XX secolo, e quali erano le cause di questa divergenza tra Europa e Asia? Infine, c’è stato un potenziale di modernizzazione anche al di fuori dell”’Occidente”, e quale significato hanno avuto le rispettive risorse culturali di società premoderne per la transizione a un mondo moderno globalizzato? “ (p. 95)  Sono questioni importanti: potrebbero (dovrebbero?) essere domande guida anche per la storia generale insegnata. Vediamole nel dettaglio:  Eurocentrismo  Per molto tempo nella storiografia mondiale l’Europa (e la master narrative eurocentrica) era vista come l’unico soggetto attivo.

Nell’assunzione critica dell’eurocentrismo si tratta di trovare un equilibrio tra il superamento di questa impostazione e la non marginalizzazione dell’Europa, distinguendo tra eurocentrismo come dinamica del processo storico (incomprensibile senza il riferimento all’egemonia dell’Europa occidentale e più tardi degli Stati Uniti, in un processo che non fu lineare e che ebbe inizio solo nel XIX secolo) ed eurocentrismo come prospettiva: presunti concetti analitici come nazione, rivoluzione, società o progresso trasformarono un’esperienza parziale, quella europea, in una lingua teorica universalistica, che prestruttura già l’interpretazione dei rispettivi passati locali.

Periodizzazione

Anche qui ha senso distinguere in modo euristico tra globalizzazione come processo e globalizzazione come prospettiva. In merito al primo punto: la maggior parte degli storici pone l’inizio di una connessione globale al principio del XVI secolo. La seconda possibile cesura di questa storia cade nel XIX secolo: fino ad allora il mondo era ancora un mondo delle regioni, strettamente unito da molteplici reti (reti commerciali e correnti migratorie così come comunanze culturali). Ma solo dalla metà del XIX secolo si giunse a una connessione sistematica, all’integrazione globale delle società, in ragione della sovrapposizione di «due macroprocessi reciprocamente dipendenti» (Charles Tilly) del mondo moderno: la formazione e la diffusione del sistema degli Stati nazionali e la creazione di un meccanismo universale di mercati e di accumulazione di capitale.

Si può parlare di una nuova fase della globalizzazione dal 1990? Conrad mette in discussione questa ipotesi, sottolineando come, in generale, una storia della globalizzazione non dovrebbe essere una narrazione lineare della sempre più grande connessione del mondo.

Altro aspetto fondamentale: la globalizzazione come prospettiva. Nel XIX secolo la globalizzazione ha presupposto la diffusione di norme euro-americane, in condizioni di colonialismo e di estensione universale dello Stato nazionale. All’interno di questo paradigma le differenze culturali erano state gerarchizzate e disposte in scala temporale: la connessione del modernizzazione complessiva e di un’omogeneizzazione graduale. Dal tardo XX secolo, sostiene Dirlik, ciò è mutato: la differenza culturale non appariva più come arretratezza, ma era concepita come alternativa a concetti eurocentrici o, meglio, universali. La globalizzazione e l’insistenza sull’ autonomia culturale andavano di pari passo. E ancora: l’aumento d’interazione globale addirittura rafforzava e produceva specificità culturali. Invece di una temporalizzazione della differenza, nel senso della costruzione di diversi gradi di sviluppo, il mondo globale del XXI secolo ha vissuto addirittura uno spatial turn. Progetti di modernità culturalmente diversi e concorrenti potevano dunque essere pensati come esistenti fianco a fianco contemporaneamente.

Asia e Europa

Perché l’Europa? In che cosa consisteva il Sonderweg (“la via speciale”) europeo? È davvero esistito?  Nella lunga discussione su questo tema, si possono distinguere essenzialmente tre posizioni. La prima rimandava a Marx e poneva in primo piano la questione dei modi di produzione. In opposizione a ciò, gli storici che si orientavano all’opera di Weber insistevano sui fattori culturali e istituzionali. Sia l’approccio classicamente marxista che quello weberiano privilegiano, secondo Conrand, modelli esplicativi endogeni e si limitano a una narrativa che spiega l’ascesa dell’Europa da sé stessa, internalisticamente.

A partire dai tardi anni Novanta è stata pubblicata una serie di lavori che hanno spostato il terreno sul quale era stata condotta questa discussione in maniera sostanziale. Conrad passa in rassegna i contributi revisionistici della cosiddetta California School (l’espressione designa storici come Pomeranz, Wong, Frank) che hanno proposto una spiegazione della dinamica dell’economia inglese non più endogena e non basata su lunghe continuità culturali e istituzionali. Al centro di questa lettura la prospettiva comparata, lo sguardo dalla Cina, l’accentuazione di interazioni transregionali, l’attenzione alle origini politiche della rivoluzione industriale e l’enfatizzazione di fattori casualmente coincidenti (conjunctural foctors).

Early modernities

In generale si tratta di capire quale significato possa essere attribuito, nel passaggio al mondo moderno, alle diverse risorse culturali di società non occidentali.

Gli approcci più interessanti della early modernity si riferiscono a un periodo dell’età moderna, che durò all’incirca dal 1450 al 1800, un’epoca durante la quale si costituirono le forze e le strutture che produssero trasformazioni in collegamento tra di loro, ma per nulla identiche, che poi sfociarono nel mondo del XIX secolo: solo nell’ambito dell’integrazione imperialistica e capitalistica del mondo dopo il 1800 esse furono gradualmente incorporate negli ampi processi che plasmarono il mondo moderno.

La più estesa argomentazione della early modernity è stata sinora formulata per la Cina e in generale per altri paesi asiatici (India e Giappone)  Le critiche  I progetti di storia mondiale e globale non sono stati esenti da critiche e obiezioni, anche se le riserve, in fondo, non hanno messo in discussione in modo radicale tale approccio. Nell’illustrare i principali limiti della ricerca di storia globale, l’autore vuole dare un contributo costruttivo per l’approfondimento di questa prospettiva.

La riserva metodologica

Gli storici globali non si basano su fonti primarie ma sono vincolati del tutto alla letteratura secondaria. Del resto questa è anche la situazione delle opere generali di storia nazionale che si basano su una visione d’insieme dei risultati di ricerche “locali”.

La strumentazione concettuale

Le nozioni/concetti con cui si scrive la storia delle connessioni globali sono quelle/i dela  “zavorra” eurocentrica: feudalesimo, nazione, religione…? Non c’è il rischio di omologare concettualmente situazioni diverse, e di appiattire differenze e particolarità? Il concetto di globalizzazione rischia di essere un macroconcetto poco utilizzabile in contesti specifici che presentano dinamiche diverse.

La finalizzazione teleologica  Le prospettive storico-globali corrono il rischio di costruire una genealogia dell’attuale processo di globalizzazione come svolgimento quasi inevitabile e naturale.

La storia e la connessione globale limitate alle sole relazioni con l’Europa

L’esempio è quello della storia dell’India che sarebbe stata liberata dalla stagnazione solo con il colonialismo, mentre già in epoca precoloniale intratteneva rapporti economici e culturali importanti con l’Africa, l’area araba e il Sud-Est asiatico.

La ricerca storica globale secondo Conrad deve affrontare una serie di questioni e evitare alcuni pericoli per poter sviluppare un proficuo dialogo critico al suo interno: il rischio di sostituire l’eurocentrismo con il sinocentrismo (come nel libro ReOrient di Frank); la sopravvalutazione dei fattori esterni, assegnando particolare valore al contesto spaziale nella spiegazione di eventi e processi; la sopravvalutazione delle connessioni, dei punti di contatto trascurando le particolarità; la feticizzazione della mobilità; la marginalizzazione degli approcci che soprattutto negli anni Ottanta hanno messo in evidenza l’importanza delle dimensioni storico-culturali e di storia del genere del passato; la tentazione di dimenticare che la storia globale è pur sempre una prospettiva per gettare un nuovo sguardo sul passato, non semplicemente un oggetto che esiste senza problemi.

Conrand insiste, come abbiamo già detto sulla pluralizzazione della storia globale e la “posizionalità” di ogni lettura del passato globale. E cita lo studioso della letteratura S. Krishan che mette in evidenza i meccanismi linguistici e narrativi attraverso i quali il mondo viene creato come unità connessa e interdipendente:

«Nelle discussioni recenti sulla globalizzazione viene tacitamente accettato che l’aggettivo “globale” si rivolga a un processo empirico, che ha luogo “lì fuori” nel mondo. [ … ] Al contrario io parto dal presupposto che “globale” descriva un modo della tematizzazione, o un modo di occuparsi del mondo». La lingua del globale suggerisce una trasparenza, un accesso diretto a un processo da osservare empiricamente: in effetti, però, si tratta di un modo che riassume diversi fenomeni in un comune discorso e così lo rende controllabile. Esso non rimanda al mondo in sé, ma alle condizioni e alle implicazioni dei modi istituzionalizzati per mezzo dei quali i diversi terreni e popoli di questo mondo vengono resi leggibili all’interno di un’unica cornice» (…). Il globale rappresenta la prospettiva dominante dalla quale il mondo viene prodotto come rappresentabile e controllabile». (p. 79).

[Notas]

1 S. Conrad, Storia globale. Un’introduzione, Roma, Carocci, 2015, p.18.

2 “Per fare un esempio, si può osservare il Kulturkampf in Baviera nel XIX secolo da un punto di vista di storia locale, con una problematizzazione storico-culturale o di storia di genere, o come parte della storia tedesca. Però lo si può anche collocare in maniera storicoglobale e intendere come espressione dei contrasti tra lo Stato liberale e le Chiese, che furono condotti nel XIX secolo in molte parti del mondo: in tutta Europa, ma anche in America Latina o in Giappone”. Ibidem, p. 20.

3 “Il crash della borsa di Vienna nel 1873 ebbe un’ importanza differente dalle crisi economiche del 1929 e 2008, perché il grado di collegamento dell’economia mondiale, ma anche l’intreccio mediatico degli anni intorno al 1870, non aveva ancora raggiunto la stessa densità che in seguito”. Idem.

Ernesto Pirillo

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Introduzione alla World History – VANHAUTE (BC)

VANHAUTE, Eric. Introduzione alla World History. Bologna: Il Mulino, 2015. 268p. Resenha de: GUANCI, Enzo. Il Bollettino di Clio, n.5, p.61-63, giu., 2017.

Per segnalare questo bel libro di storia cominceremo dalla fine, dall’ultima pagina. Qui E. Vanhaute conclude la sua chiara illustrazione della world history, affermando che in buona sostanza, con la sua moltitudine di scale e di paradigmi, essa ha l’ambizione di spiegare, dandole un senso, la presenza umana sul pianeta; e lo fa inquadrando la storia dell’umanità in un “contesto sempre più vasto, coordinato e organico”. La parola-chiave è appunto “contesto”. La storia, infatti, viene compresa quando si riesce a coglierne l’essenza e ciò è possibile quando si riesce a guardare gli umani muoversi nel mondo, nel mondo intero. Per secoli così non è stato. Vanhaute, citando Braudel, ricorda che “avendo inventato il mestiere dello storico, l’Europa se n’è avvalsa a proprio vantaggio”, costruendo una storia eurocentrica.

Ancora oggi che disponiamo di un patrimonio di conoscenze sterminato, molto più vasto che nel passato, la storia della non-Europa stenta a farsi, a causa della disparità a favore della civiltà occidentale nella distribuzione di conoscenza.

L’abbandono del modello eurocentrico non significa, però, la ricerca di un altro “centro”. La wh non adotta un’unica scala di spazio e di tempo, da cui far scaturire tutte le altre. Ogni scala ha una sua autonomia, anche se parziale, in quanto interdipendente da tutte le altre. Le società umane, ricorda Vanhaute, sono sempre collegate tra loro per mezzo di una molteplicità di sistemi: sistemi economici, sistemi migratori, sistemi ecologici, sistemi culturali. Mediante analisi comparate dei sistemi e delle loro interconnessioni in un quadro transnazionale si può riuscire a fornire qualche risposta alle domande basilari della wh, che sono:  

In che modo i gruppi delle popolazioni appartenenti a differenti contesti spazio-temporali conseguono obiettivi simili con mezzi diversi (la riproduzione del sé fisico, del lavoro, delle conoscenze e delle scoperte a cui sono giunti, dei modelli sociali e culturali e, infine, della loro società)? Quali fattori (esterni, ossia ecologici; interni, e dunque sociali) producono risultati simili o dissimili?  In che modo le popolazioni sviluppano le loro società? E in che modo i sistemi sociali cambiano in seguito al contatto, all’interazione o al conflitto con altre società? Fino a che punto determinati sistemi sociali convivono fianco a fianco o prendono il sopravvento su altri sistemi?” (p.29).

Tre sono le dimensioni in cui si articolano le scienze umani e sociali: quella spaziale, quella temporale e quella tematica. Tutte e tre sono sempre frutto di scelte culturali: le scale spaziali, le periodizzazioni temporali, le unità di analisi tematiche. A tale proposito vale la pena di ricordare cosa non è (o non è soltanto) la wh. Essa non è:

“una storia universale o totalizzante: la storia di «tutto»;  una storia internazionale: non è solo la storia dei rapporti tra le «nazioni»;  una storia della civiltà (occidentale): è più di una storia dell’ascesa di una civiltà (occidentale);.

la storia del non-Occidente (in precedenza chiamata storia «coloniale» o «d’oltreoceano»: è più di una storia del mondo al di fuori dell’Occidente);  una storia sociale comparata: è più di una storia comparata delle società;  una storia della globalizzazione: il suo campo d’indagine è ben più vasto rispetto a quello della storia della globalizzazione.” (p. 27)

Vanhaute fa bene a sottolineare che le storie “universali” non costituiscono un’invenzione recente, anzi. Le narrazioni storiche che vanno oltre i confini spaziali del proprio paese hanno una lunga tradizione in Cina, Giappone, Asia sudoccidentale, nel mondo islamico, oltre che nella cultura occidentale. Ma sempre la concezione è teleologica: la propria civiltà costituisce il naturale punto di partenza e di arrivo, a dimostrazione della naturale propria superiorità. Le maggiori religioni monoteiste hanno elaborato un proprio specifico mito della creazione, mescolando predestinazione divina, mito e linguaggio simbolico con eventi realmente accaduti, con l’obiettivo di presentare una “verità generale, universale e spesso eterna”.

Vale la pena di ricordare due tra gli esempi riportati da Vanhaute: il De civitate Dei di sant’Agostino, la cui storia teleologica e senza tempo della città dell’uomo e della città di Dio fonda la tradizione dell’historia universalis del cristianesimo e le Storie nelle quali Erodoto cerca e descrive differenze e somiglianze dei popoli non-greci (barbaroi) con i greci.

Da segnalare, infine, la breve cronologia della storia umana proposta dall’autore all’inizio del volume, dopo aver precisato che il computo del tempo, pur rifacendosi al calendario cristiano, utilizza la dicitura “avanti e dopo era volgare”, «a.e.v.» e «d.e.v.», invece di «a.C.» e «d.C.» in quanto più neutra, così come vengono evitate categorie eurocentriche come «antichità», «Medioevo», «Rinascimento», «età moderna»:

Se questa è la scansione temporale delle principali trasformazioni che segnano i periodi della storia dell’umanità a scala mondiale, i temi presentati e sviluppati sono: la trasformazione demografica (un mondo umano), l’ecologia (un mondo naturale), l’alimentazione (un mondo agrario), le sovranità e i poteri (un mondo politico), le culture e le religioni (un mondo divino), l’Occidente e il resto del mondo (un mondo diviso), globalizzazione o globalizzazioni? (un mondo globale), sviluppo e povertà (un mondo diviso), unità e frammentazione (un mondo frammentato).

Sedici pagine di bibliografia e sitografia forniscono indicazioni di studio generale e tematico per una nuova storia dell’umanità.

Enzo Guanci Acessar publicação original

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AA. alba Magazin lateinamerika lesen

La revista bilingüe ilustrada alba se caracteriza por publicar y traducir al alemán a emergentes autores latinoamericanos. Para ello cuenta con un equipo de académicos, intelectuales de las letras y traductores que se encarga de esta labor; en este número en particular colaboraron en la redacción, Sarah van der Heusen, Jorge Locane, Ingrid Hapke, Diana Grothues, Edna Martínez, Douglas Valeriano Pompeu, Thomas Schlegel, María Ignacia Schulz, Karina Theurer y Christianne Quandt; y en las traducciones, Susanne Lange, Simone Reinhard, Carsten Regling, Johanna Schwering, Rike Bolte, Claudia Sierich, Aron Zynga, Léonce W. Lupette; esta última labor compartida en muchos casos con los primeros. Con su ayuda, todas las contribuciones escritas en español o portugués que aparecen en sus páginas, son íntegramente traducidas al alemán.

alba antologa y publica poesía, cuento, entrevistas, reportajes/notas y críticas literarias sobre escritores de América Latina ‒estas últimas solo en alemán, porque se trata de críticas de obras recientemente publicadas en el mercado germano, para ser más concretos, las que aparecen en el número que ahora reseñamos corresponden al año 2016: como la obra del colombiano Tomás González Was das Meer ihnen vorschlug (Primero estaba el mar, 1983), de la argentina Selva Almada, Sengender Wind (El viento que arrasa, 2012) y del mexicano Juan Pablo Villalobos, Ich verkauf dir einen Hund (Te vendo un perro, 2015)‒. Leia Mais

El cine como recurso didáctico en la enseñanza virtualizada: Estudio y análisis de algunas obras fílmicas – ESCRIBANO (I-DCSGH)

ESCRIBANO, J. (ed.). El cine como recurso didáctico en la enseñanza virtualizada: Estudio y análisis de algunas obras fílmicas. El Ejido. Universidad de Almería, 2016. Resenha de: ILUNDAIN CHAMARRO, Javier. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.88, p.81-82, jul., 2017.

Uno de los grandes retos de la didáctica, al cual se enfrentan diariamente los docentes, es el de ser capaces de transmitir de forma simultáneamente atractiva y eficaz. En este sentido, el mundo actual nos ofrece un abanico casi infi nito de posibilidades de experimentación mediante el uso de las «viejas» y «nuevas» tecnologías. Sin embargo, solo a veces se abordan de forma sistematizada y son contadas las ocasiones en las que dicha experimentación se transmite y transfi ere a la comunidad científi ca.

El libro objeto de esta recensión se nos presenta como una propuesta de trabajo orientada a satisfacer unas necesidades educativas concretas mediante un recurso didáctico plenamente accesible a docentes y discentes: el cine.

La finalidad de esta publicación es pues ofrecer una herramienta de trabajo para docentes de diferentes áreas de las ciencias jurídicas, sociales y humanas. Este recurso puede tener una aplicación inmediata si seguimos de forma directa la propuesta, pero también puede servir de modelo para futuras intervenciones didácticas. Aunque en varias ocasiones se plantea como alumno objetivo a los estudiantes universitarios, lo cierto es que, con unas leves adaptaciones, la propuesta es aplicable también a alumnos de enseñanzas medias. De la misma manera, la idea rebasa las limitaciones de la enseñanza no presencial, pudiendo aplicarse estos modelos a la docencia presencial o semipresencial. El cine como recurso didáctico en la enseñanza virtualizada tiene un especial valor en la actualidad gracias a su accesibilidad a través de Internet. La nómina de películas incluida en esta monografía es muy variada en lo que a épocas, temáticas y géneros se refiere. Ello es una muestra tanto de la vigencia y validez para este propósito de cintas clásicas como de la posibilidad de trabajar con producciones recientes y, en principio, más cercanas al alumno objetivo.

La obra está compuesta de ocho colaboraciones de especialistas en diferentes ramas del saber. Cada uno de los capítulos se estructura de forma similar. Se presenta la obra mediante una fi cha técnica completa y una sinopsis argumental. A continuación, se elabora un comentario de la misma en el que se abordan las claves interpretativas de la película y se avanzan algunas refl exiones. Le sigue una propuesta de trabajo guiado en el que se plantea una serie de preguntas destinadas a orientar el análisis y la refl exión por parte del alumno. Finalmente se incluyen unas breves conclusiones y una fi lmografía complementaria, de gran utilidad para explorar los temas tratados en otras obras cinematográficas.

Rosa María Almansa inaugura la obra con un comentario sobre ¡Qué verde era mi valle! (John Ford, 1941) cuyo fi n es acercar al alumnado los cambios sociales y económicos vinculados a las transformaciones de la sociedad rural británica a principios del siglo xx. También la profesora Almansa se encarga del capítulo centrado en la realidad social, concretamente de las mujeres, en la Rusia soviética de la segunda mitad del siglo xx. En este caso ofrece un excelente modelo de comentario para Moscú no cree en las lágrimas (Vladimir Menshov, 1979). La fi gura del docente es una de las claves en El club de los emperadores (Michael Hoffman, 2002). Su análisis, a cargo de Raquel Gil Fernández, ahonda en el papel jugado por los maestros en la formación integral del alumnado. Juan Escribano, coordinador de la obra, propone Fast Food Nation (Richard Linklater, 2006) como ejemplo de análisis de la realidad laboral de los países enriquecidos, abordándola desde un punto de vista principalmente jurídico, pero con evidentes ramificaciones en los planos económico, político y social. También en el ámbito del derecho del trabajo se encuentra el estudio de María Dolores Santos sobre Pago justo (Nigel Cole, 2010). Aquí el núcleo es el conflicto originado en la discriminación retributiva por razones de sexo. Un clásico del cine alemán (M, el Vampiro de Düsseldorf, Fritz Lang, 1931) ha sido escogido por Federico Fernández-Crehuet para reflexionar sobre las bases de la justicia y el Estado contemporáneo. El profesor Fernández-Crehuet propone, además, un jugoso análisis de la estética del filme como vía para comprender su simbolismo. En la línea de la filosofía del derecho, Daniel J. García López señala Django desencadenado (Quentin Tarantino, 2012) para ofrecer un nuevo elemento de reflexión: los fundamentos del ejercicio de la justicia y la justificación de la esclavitud. Finalmente, el libro concluye con el análisis de Robin Hood (Ridley Scott, 2010) a cargo de Víctor Luque de Haro y Miguel Á. Luque Mateo. En este caso, la película es susceptible de una interpretación fiscal, como ejemplo del devenir histórico del sistema tributario y de su diversificación.

En definitiva, nos encontramos ante un recurso didáctico fundado en un acertado abordaje del cine como herramienta educativa. El modelo de análisis, aunque centrado en ciertas disciplinas sociales (historia contemporánea, didáctica de las ciencias sociales, derecho del trabajo, derecho financiero o filosofía del derecho), puede extenderse y aplicarse a otras áreas del saber, abriendo así un enorme abanico de posibilidades.

Juan Escribano Gutiérrez es doctor en Derecho, especialista en derecho del trabajo y profesor titular de la Universidad de Almería. Ha participado en diferentes proyectos de innovación docente y en proyectos I+D+i sobre áreas del derecho. A este respecto, destaca su papel activo en 2016 en el proyecto titulado: El cine como instrumento de adquisición de habilidades en la docencia impartida en régimen semipresencial.

Javier Ilundain Chamarro – E-mail: javier.ilundain@unir.net

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Metodología de la enseñanza de la historia – RACEDO (I-DCSGH)

RACEDO, G. Metodología de la enseñanza de la historia. Buenos Aires. Biebel, 2013. Resenha de: SABIDO CODINA, Judit. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.88, p.82-84, jul., 2017.

Metodología de la enseñanza de la historia: contenidos, procedimientos y técnicas (Nivel Medio) es un libro de didáctica de la historia. La profesora Graciela Racedo cuenta con más de veintisiete años de experiencia en la enseñanza del ciclo medio en las escuelas de Argentina y con una larga trayectoria en la formación y profesionalización de su enseñanza como docente. En 2005 obtuvo el Premio Especial de Ensayo Eduardo Mallea, otorgado por la Secretaría de Cultura de la Ciudad de Buenos Aires por su trabajo El gaucho: formación, significancia y vigencia de un mito, editado en 2005 y reeditado en 2008 por Universitas Libors (Córdoba).

El libro está compuesto de cuatro bloques: el primero reúne varias reflexiones teóricas relativas a la epistemología y la metodología de la historia; el segundo se centra en el análisis de la metodología de la enseñanza de la historia; en el tercero encontramos una sección prác tica del quehacer del historiador; y finalmente, en el último bloque, se aporta un anexo con diverso material de aprendizaje para el alumno y de enseñanza para el profesorado.

El primer bloque, «Primera sección teórica: epistemología y metodología en historia», se puede considerar un buen manual del devenir conceptual de la disciplina de la historia en Argentina, en el cual encontramos un cierto giño a la teología de la historia.

Racedo inicia este análisis con el positivismo de Leopold von Ranke, sigue con el presentismo de Carr y la filosofía estructuralista de Foucault y cierra el apartado del conocimiento histórico con el debate de mediados del siglo xx entorno a la historia como ciencia.

Seguidamente se introduce en el intuicionismo y el idealismo de la historia, donde expone distintas teorías sobre el saber histórico que se han desarrollado en el transcurso del tiempo, haciendo especial énfasis en las causas y consecuencias de la historia. El tercer capítulo de este mismo bloque tematiza asimismo el pensamiento cristiano de mediados de este siglo, abordándose en él la filosofía y la teología de la historia y la apertura de la Iglesia hacia la ciencia. Finalmente, la autora expone las principales características del materialismo dialéctico y la escuela de los anales, haciendo referencia a sus máximos representante, entre otros Braudel o Le Goff.

Se trata, en definitiva, de una buena conceptualización histórica que abarca desde la segunda mitad del xx hasta final de siglo. No obstante, como apunta Prats (2003), actualmente se está dando una significativa producción de investigaciones y trabajos de innovación que contribuyen a superar viejos tópicos relativos a la enseñanza y aprendizaje de las disciplinas del área. Al respecto, están surgiendo núcleos de reflexión interesantes en diversas universidades europeas y americanas, unas reflexiones que sería bueno que se hubiesen contemplado en el libro, para así constituir una conceptualización completa y actualizada del devenir histórico.

En el segundo bloque se realiza una apreciación similar, dado que se expone una metodología de la enseñanza de la historia poco adecuada a los tiempos «líquidos» actuales.

Sin embargo, cabe destacar la introducción y adecuación de dos conceptos: por un lado el del «triángulo didáctico», en el cual se establece un diálogo entre docente–contenido –alumno y, por otro lado, la concepción procedimental del alumno, el cual primeramente tiene que incorporar a través de técnicas adecuadas la ubicación espacio-temporal de las coyunturas históricas. Como dice la autora propiamente, «todo con tenido procedimental supone uno conceptual que debe ser aprendido, adquiriendo así el alumnado significación histórica» (p. 53).

En el tercer bloque, la profesora Graciela Racedo expone las técnicas tradicionales de la enseñanza de la historia (gráficos conceptuales, frisos temporales, registros de memoria), más algunas actividades de innovación como la realización de «ferias de la historia». Al respecto, una metodología enfocada en una estrategia expositiva de la enseñanza de la historia, bien utilizada esta, puede dar lugar a interesantes y productivos procesos de enseñanzaaprendizaje, sobre todo en cursos de bachillerato (Prats, 2011). En este sentido, como argumenta Quinquer (1997): Para conseguir que los aprendizajes realizados con métodos expositivos no sean memorísticos y se olviden fácilmente, se han de cumplir algunas condiciones: no es suficiente que el profesor presente los nuevos contenidos de forma muy estructurada, clara y bien sistematizada, porque enseñar no implica necesariamente aprender; se requiere que los estudiantes tengan determinados conocimientos ya adquiridos que den sentido a los nuevos aprendizajes y una buena disposición para poner en funcionamiento sus capacidades de aprendizaje.

Por último, en el cuarto bloque encontramos una serie de materiales para el aprendizaje del alumnado, entre otros un glosario de palabras históricas o unas agrupaciones de fuentes primarias, así como diversas herramientas didácticas para el uso del profesorado.

En síntesis, la obra que reseñamos, un trabajo teórico-práctico fruto de los años de experiencia de la autora como docente en la enseñanza media, nos procura una reflexión con respecto al quehacer de los docentes, tanto en el ámbito teórico como en el práctico. Porque, de acuerdo con Prats y Santacana (Prats, 2011), la educación debe entenderse en el marco de una ajustada dialéctica entre lo factual, lo conceptual, lo metodológico y lo técnico, sin olvidar aquellos aspectos de lo que convencionalmente denominamos «conocimientos culturales».

Referencias

PRATS, J. (2003): «Líneas de investigación en didáctica de las ciencias sociales». História & Ensino, núm.9. Disponible en: <http://bit.ly/2sSSqeb>.— (coord.) (2011): Didáctica de la Geografía y la Historia. Barcelona. Graó.

QUINQUER, D. (1997): «Estrategias de enseñanza: los métodos interactivos », en BENEJAM, P; PAGÈS, J.: Enseñar ciencias sociales, geograf e historia en la educación secundaria. Barcelona. ICE Universitat de Barcelona.

Judit Sabido Codina – E-mail: jsabido@ub.edu Acessar publicação original

[IF]

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, v.2, n.47, 2017.

Dossiê Escritas de si

Apresentação Volume 2

Volume 2 – Dossiê Escritas de si

Artigos Volume 2

Resenhas

Discursos

Publicado: 2017-06-30

Vestígios. Belo Horizonte, v. 11 n. 1 (2017)

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS

PUBLICADO: 2017-06-30

Vestígios. Belo Horizonte, v.11, n.1, 2017.

Expediente

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS

PUBLICADO: 2017-06-30

Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, v.1, n.47, 2017.

Dossiê Intelectuais nos(dos) Institutos Históricos

Expediente/Ficha Catalográfica/Sumário

Editorial

Apresentação Volume 1

Volume 1 – Dossiê Intelectuais nos(dos) Institutos Históricos

Artigos Volume 1

Resenhas

Publicado: 2017-06-30

Transversal: International Journal for the Historiography of Science. Belo Horizonte, n.2, 2017.

Dossier Pierre Duhem’s Philosophy and History of Science

From the Editors

Dossiers (Issue-specific topics)

Dossier – Book Reviews

Articles

Interviews

Book Reviews

Published: 2017-06-28

Outros Tempos. São Luís, v.14 n. 23, 2017.

Dossiê: História social da propriedade

Apresentação

Artigos

Dossiê

Entrevista

Resenhas

Publicado: 2017-06-26

Revista de Literatura, História e Memória. Cascavel, v.13 n. 21, 2017.

PÁGINAS INICIAIS

DOSSIÊ PERFORMANCE E LITERATURA

PESQUISA EM LETRAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO E LITERATURA, ENSINO E CULTURA

PUBLICADO: 24-07-2017

História Oral. Rio de Janeiro, v.20, n.1, 2017.

História oral, memória e ciência

APRESENTAÇÃO

DOSSIÊ

ARTIGOS VARIADOS

ENTREVISTAS

RESENHAS

NOTAS

PUBLICADO: 2017-07-20

Revista de Fontes. São Paulo, v.4, n.6, 2017.

Documentos e instrumentos de pesquisa | 

Documentos

Publicado em: 15 – 06 – 2017

Revista de História. Morrinhos, v.6, n.1, 2017.

Tema Livre

Imagem de capa:
Yes We Can (Obama Campaign Poster). Arte de Antar Dayal, 2008;
Fonte: mfa.org.

Editorial

Artigos (Tema Livre)

Resenhas

Publicado: 2017-07-13

Heródoto. Guarulhos, v.2, n.1, 2017.

O MUNDO CLÁSSICO E SUAS CONEXÕES AFRO-ASIÁTICAS

Expediente/Expedient

Editorial / EDITORS NOTE

Artigos / Articles

Traduções / Translations

Resenhas / Reviews

Documentos / Documents

Publicado: 2017-06-10

 

Heródoto. Guarulhos, v. 2, n. 1, 2017

Edição completa

Editorial / EDITORS NOTE

Entrevistas / Interviews

Artigos / Articles

Traduções / Translations

Resenhas / Reviews

Documentos / Documents

Publicado: 2017-06-10

La possession de Loudun – DE CERTEAU (RMA)

CERTEAU, Michel de. La possession de Loudun. Paris: Gallimard ed., 2005. Resenha de: COSTA, Otávio Barsuzzi da. Revista Mundo Antigo, v.6, n.12, jun., 2017.

Biografia

Nascido em Chambéry, em maio de 1925. De uma formação ecleticamente invejável, formou-se em Filosofia, História, Teologia e Letras Clássicas nas universidades de Grenoble, Lyon e Sobornne, em 1950, ele ingressa na companhia de Jesus; em 1956 é ordenado sacerdote e vive como jesuíta onde é formado teólogo pelo seminário jesuíta de Lyon. Se preocupa com estudos de método de e analise de textos ascéticos e místicos da renascença. Erudito e jesuíta, Michel de Certeau é um nome bastante conhecido na academia de ciências humanas. Ocupando cadeiras de universidades americanas de peso tais como Universidade da Califórnia e San Diego, mais tarde ocupará uma cátedra de “Antropologia Histórica das Crenças, na École des hautes études en sciences sociales (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais) se torna um autor fundamental em todas ciências sociais. Leia Mais

O misticismo apocalíptico do apóstolo Paulo. Um novo olhar nas Cartas aos Coríntios na perspectiva da experiência religiosa – MACHADO (RMA)

MACHADO, Jonas. O misticismo apocalíptico do apóstolo Paulo. Um novo olhar nas Cartas aos Coríntios na perspectiva da experiência religiosa. São Paulo, Paulus, 2009, 294 pp., Resenha de: FUNARI, Pedro Paulo A. O misticismo apocalíptico do apóstolo Paulo. Um novo olhar nas Cartas aos Coríntios na perspectiva da experiência religiosa. Revista Mundo Antigo, v. 6, n. 12, jun., 2017.

Paulo de Tarso já foi considerado o grande fundador do Cristianismo, o apóstolo dos gentios, aquele que transformou uma seita judaica numa religião de aspiração universal. Outros discordaram dessa avaliação, mas não há dúvida que Paulo continua a constituir um dos mais importantes personagens históricos, tanto pelo que escreveu e chegou até nós, como por tudo que inspirou nos pósteros. O que seria da Reforma Protestante, sem sua leitura de Paulo? Jonas Machado, mestre em Teologia e doutor em Ciências da Religião, aceitou o desafio de voltar-se, com um olhar original, para esse que pode ser considerado um dos grandes referenciais da História ocidental e mesmo mundial. Leia Mais

Revista de Economia Política e História Econômica. São Paulo, n.38, jun. 2017.

REPHE 38 – junho de 2017

  • Da Crise Internacional de 1981-1983 ao neoliberalismo tardio: o caso do Brasil na década de oitenta do século XX
  • Glaudionor Gomes Barbosa
  • Japanese and Chinese FDI in South Asia: A Comparative Analysis
  • Munim K. Barai
  • Badar Alam Iqbal
  • A Financeirização e o papel do Estado na órbita de Acumulação do Capital
  • Ronie Cléber de Souza
  • O Massacre, o Golpe e a Emancipação: memória e silenciamento no processo de formação territorial de Ipatinga (MG)
  • Patricia Falco Genovez
  • Vagner Bravos Valadares
  • Arrendamento e Parceria: uma abordagem a partir da renda fundiária
  • Patrícia José de Almeida Salinas
  • Linhagens e variantes interpretativas da dependência latino-americana
  • José Elesbão de Almeida
  • Notas sobre o capitalismo dependente: a contribuição de Florestan Fernandes
  • Francisco Luis Corsi
  • A criminologia e o estudo da criminalidade nas ciências econômicas
  • Raul de Sá Durlo
  • Alexandre Sartoris Neto
  • Contribuições da categoria trabalho para estudos organizacionais
  • Rodrigo Bombonati de Souza Moraes
  • Rogério de Souza Silva

RESENHA: EICHENGREEN, Barry. Hall of Mirrors: The Great Depression, the Great Recession, and the uses – and misuses – of History..New York: Oxford University Press, 2015.

Repensar las fronteras/ la integración regional y el território | Willy Acosta

“Yo no quiero un cuchillo en manos de la patria. Ni um cuchillo ni un rifle para nadie: la tierra es para todos, como el aire”. “Creo que los países serán un solo sitio de amor para los hombres, a pesar de los pactos, a pesar de los límites, los cónsules, a pesar de los libres que se dan por esclavos”. (Jorge Debravo, pg. 11 e 16).

A temática das fronteiras se constituiu num dos temais fundamentais das ciências sociais e das relações internacionais e adquire uma relevância crescente no mundo contemporâneo, por envolver uma série de elementos e desafios que compõem a nova ordem mundial como a persistência dos conflitos bélicos, a migração internacional e os refugiados, os efeitos do desenvolvimento desigual e das tensões Norte-Sul, as consequências do aquecimento global, a ocupação forçada de territórios e o aprofundamento dos processos de Integração Regional, dentre outros. Tal processo (e seus desafios) afeta todas as regiões do planeta e, especialmente, a América Latina, pois sua dinâmica e seus efeitos incidem sobre as relações regionais e a persistente dívida econômica e social que afeta os estados latino-americanos. Sendo assim, pode-se constatar a necessidade de produção e divulgação de pesquisas e reflexões sobre a intricada relação entre fronteiras, territórios e integração regional, que se constitui no objetivo fundamental desta obra e a torna extremamente relevante. Leia Mais

Migrações e Fronteiras Amazônicas / Fronteiras – Revista de História / 2017

Nos últimos anos, a região amazônica tem se destacado como um campo de estudo em expansão, fruto do interesse de pesquisadores e pesquisadoras que têm se ocupado com temáticas amazônicas consolidadas e emergentes, bem como com populações originárias ou recém-chegadas à região. O interesse deve-se também às mudanças em curso na região, as quais obviamente estão relacionadas com as outras regiões do Brasil, com os países amazônicos vizinhos e com a comunidade internacional. A região amazônica é a maior área com cobertura vegetal na América do Sul. Nela vive a maior parte da população indígena brasileira e é falada a maioria das línguas indígenas. O Polo Industrial de Manaus consolidouse como um dos principais centros econômicos da América Latina. A Amazônia é, pois, uma verdadeira fronteira interna, cultural, social, econômica e ecologicamente falando. As migrações que se destinam para lá são marcadas, assim, por encontros e desencontros humanos, pois afeta constantemente a vida das comunidades assentadas há mais tempo no local e não poucas vezes ocasiona outras migrações.

Este número especial da Fronteiras – Revista de História do PPGH-UFGD, que ora apresentamos, propôs reunir algumas dessas pesquisas que analisam esses fenômenos sociais nos últimos anos. Este número, portanto, reúne um dossiê interdisciplinar com o objetivo de contribuir para o conhecimento da construção de fronteiras étnicas, culturais, sociais, econômicas e geográficas da Amazônia. Leia Mais

Pierre Duhem’s Philosophy and History of Science | Transversal | 2017

We are pleased to present in this issue a tribute to the thought of Pierre Duhem, on the occasion of the centenary of his death that occurred in 2016. Among articles and book reviews, the dossier contains 14 contributions of scholars from different places across the world, from Europe (Belgium, Greece, Italy, Portugal and Sweden) to the Americas (Brazil, Canada, Mexico and the United States). And this is something that attests to the increasing scope of influence exerted by the French physicist, philosopher and historian.

It is quite true that since his passing, Duhem has been remembered in the writings of many of those who knew him directly. However, with very few exceptions (Manville et al. 1927), the comments devoted to him exhibited clear biographical and hagiographic characteristics of a generalist nature (see Jordan 1917; Picard 1921; Mentré 1922a; 1922b; Humbert 1932; Pierre-Duhem 1936; Ocagne et al. 1937). From the 1950s onwards, when the studies on his philosophical work resumed, the thought of the Professor from Bordeaux acquired an irrevocable importance, so that references to La théorie physique: Son objet et sa structure became a common place in the literature of the area. As we know, this recovery was a consequence of the prominence attributed, firstly, to the notorious Duhem-Quine thesis in the Englishspeaking world, and secondly to the sparse and biased comments made by Popper that generated an avalanche of revaluations of the Popperian “instrumentalist interpretation”. The constant references Duhem received from Philipp Frank, translator of L’évolution de la mécanique into German as early as 1912, certainly cannot be disregarded (see Duhem 1912 [1903]). As it happened, the reception of Duhem’s ideas conditioned the subsequent debate on the prevailing preferences in the English-speaking world, namely, the thesis of underdetermination of theories by data, the merely representative value of theories, the criticism of the inductive method, and, especially, the holism and criticism of the crucial experiment, culminating in the volume edited by Sandra Harding (1976). Leia Mais

Hall of Mirrors: The Great Depression, the Great Recession, and the uses – and misuses – of History

Em seu mais recente livro, Barry Eichengreen, historiador econômico reconhecido por todos, nos transporta aos eventos da crise financeira de 2008 e aos desdobramentos que a mesma teve para suas nações protagonistas. Estudioso da Grande Depressão de 1930, o autor parte em busca das lições que deveriam ter sido aprendidas com essa para evitar aquela que ele chama de Grande Recessão.

Para Eichengreen, as lições de 1930 ajudaram a que não se tivesse uma nova Grande Depressão mas os efeitos das medidas tomadas pelas autoridades no sentido de evitar tal catástrofe ainda não estão claras para todos. Assim, ao evitar uma nova depressão da magnitude dos anos 1930, os pensadores da economia mundial se abstiveram de realmente analisar todas as dimensões do ocorrido em 2008. Leia Mais

Pierre Duhem: Entre física y metafísica | Víctor Manuel Hernandez Márquez

This book is structured by seven chapters written by six researchers from three different Universities: Fábio Rodrigo Leite y João Cortese from the Universidade de São Paulo, Brazil; Ambrosio Velasco Gómez from de Universidad Nacional Autónoma de México and Víctor Manuel Hernández Márquez (coordinator), Roberto Estrada Olguín and Roberto Sánchez Benítez from the Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, Mexico.

Each of the authors develops their own analytical perspectives around the work of Pierre Duhem (1861-1916). Ambrosio Velasco seeks to show that the contemporary philosophy of science began from a fundamental criticism of the modern conception of scientific rationality proposed by Descartes (in his rationalist version) and by Newton (in his empiricist turn). Velasco contends that Duhem’s contribution to this discussion is to have undermined several myths and dogmas, among them, the Cartesian idea that the rationality of knowledge is based exclusively on strict adherence to certain methodological rules and the Newtonian thought that observation, induction and experimentation are the fundamental procedures of the scientific method. Leia Mais

La théorie physique: Son objet, sa structure | Pierre Duhem

It was in 1981– thus during the same year as his dissertation defense, one year prior to doing the same for Σῴζειν τὰ φαινóµενα (1982), and six years before his book Duhem: Science et Providence (1987) – that Paul Brouzeng (1938-2012) finally furnished Francophone readers, after a wait of more than sixty years, with the first complete reprint (and, incidentally, the first anastatic one) of the second edition of La théorie physique (1914). It was enriched by an introduction of eleven pages, a very succinct bibliography and an onomastic index, which must have misled many readers since it, in fact, only covered the text of La théorie physique itself and not that of the two articles added by Duhem in his second edition. Considering the fact that this reprint of La théorie physique is still and ever available at Vrin Bookshop (both in hardcover and paperback formats), it is worth assessing any additional value which may be afforded it by Sophie Roux’s new online edition, other than the fact that, as is the case with all electronic publications, it offers readers the considerable advantage of being able to search the entire text, thereby addressing the aforementioned shortcoming with respect to Brouzeng’s edition. Leia Mais

When historiography met epistemology: Sophisticated histories and philosophies of science in French-speaking countries in the second half of the nineteenth century | Stefano Bordoni

Dedicated to a book which has long been considered a classic, and which, from the Traité de l’enchaînement des idées fondamentales dans les sciences et dans l’histoire (1861) by A.-A. Cournot to L’évolution des théories physiques du XVIIe siècle jusqu’à nos jours (1896) by P. Duhem, takes us on a tour of 35 years of intellectual history, this review offers three objectives. Firstly, to present the author’s broader arguments. Secondly, considering that, on the one hand, its contents are not immediately apparent (at least not from its Table of Contents) and that, on the other hand, the method used consists in providing (while remaining as faithful to the text as possible) a critical interpretation and commentary on the selected publications, to provide a brief introduction to the authors and the themes addressed. Lastly, owing to its publication within a dossier specifically dedicated to P. Duhem, to further explore the main arguments and ideas, which occupy nearly a third of the work, centered around this illustrious scholar.

French historical epistemology can be defined as the conviction whereby a genuine and authentic historical perspective is seen as essential in order to establish a constructive dialogue between science and philosophy, and in order to construct an epistemology which better conforms to the reality of scientific approach. According to the traditional view adopted chiefly by A. Brenner and C. Chimisso, it originated, depending upon the chosen emphasis, either during the last decade of the 19th century with the works of H. Poincaré, P. Duhem and G. Milhaud (A. Brenner), or during the 1930s and 1940s with G. Bachelard as the key figure in this case (C. Chimisso). Leia Mais

A Contribution to the Newtonian Scholarship: The “Jesuit Edition” of Isaac Newton’s Principia | Paolo Bussotti e Raffaele Pisano

The Mathematical Principles of Natural Philosophy (Philosophiae Naturalis Principia Mathematica in Latin), hereafter Principia, a three-volume tour de force written by Isaac Newton, and published in 1687, is the seminal work in the history of modern physics. American theoretical physicist and Nobel laureate, Steven Weinberg, remarked in his 1972 work on cosmology and gravitation that “all that has happened since 1687 is a gloss on the Principia” (apud Pask, 2013, 14).

The second edition of the Principia was published in 1713, and reprinted and corrected in 1714, incorporating a more comprehensive theory of the Moon, the motions of comets, and the precession of the equinoxes, and, at the end of the whole book, the famous general scholium. The third edition of the Principia was published in 1726. Newton made some additions to the third edition, including new explanations for the resistance of fluids in “Book 2” (which resumes “Book 1”, De motu corporum, “On the motions of bodies”), as well as a more detailed explanation for the Moon’s orbit and the role of gravitation, and, in “Book 3” (De mundi systemate, “On the system of the world”), new observations of Jupiter and the comets. The first translation into English was published in 1729, by Andrew Motte, based on the 1726 third edition of the Principia. Leia Mais

Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro | Leandro A. Seawright

Desde 2016 os pesquisadores do protestantismo e dos protestantes no Brasil têm acesso à obra de Leandro Seawright, lançada poucos meses após a defesa de sua Tese no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo – USP. Ritos da Oralidade: a tradição messiânica de protestantes no Regime Militar Brasileiro, publicada pela Paco Editorial, é fruto de vasta pesquisa produzida por um estudioso profundamente envolvido com o campo da temática. Seawright é um historiador dedicado aos estudos sobre a História das Religiões, ao Brasil República e à Teoria da História, bem como é um oralista. Desde as suas graduações se dedicou, portanto, à história do protestantismo brasileiro.

Resultado de trabalho intenso (a tese original tem mais de 800 páginas!), a presente obra se constituiu como fonte de muito aprendizado, principalmente por suas extensas e cuidadosas reflexões metodológicas e teóricas – proporcionando muitas informações sobre as relações entre os setores do protestantismo brasileiro com o Regime Militar. Leia Mais

Concepção e Desenvolvimento de Material Didático | Educação a Distância | 2017

Prezado leitor,

No Claretiano – Rede de Educação, foi constituído o Grupo de Pesquisa em Concepção e Desenvolvimento de Material Didático, o qual teve sua criação motivada por uma Política de Material Didático adotada pela Instituição. Desde então, vem consolidando projetos de melhoria contínua de Material Didático, bem como na linha de capacitação dos profissionais e pesquisadores envolvidos no desenvolvimento de recursos didático/pedagógicos voltados ao processo de ensino e aprendizagem. Desde sua criação, os resultados das reflexões e do trabalho do grupo vêm sendo aplicados no Material Didático produzido pelo Claretiano, obtendo-se significativos avanços nos modelos adotados, prognosticando, gradativamente, a convergência de mídias (texto, imagem, som e movimento) numa estrutura informacional hipertextual alinhada às TICs e aplicável a diversos contextos educacionais.

Em 2017, o grupo de pesquisa foi oficializado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, como resultado do trabalho do grupo, nesta edição da Revista Educação a Distância, apresentamos o Dossiê Concepção e Desenvolvimento de Material Didático, no qual reunimos oito artigos inéditos, elaborados por colaboradores do setor de Editoração do Claretiano – Centro Universitário, sendo sete artigos centrados em revisão da literatura e um, em relato de experiência. Leia Mais

História dos Serviços Públicos / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2017

No final do ano de 2016 a Revista Brasileira de História & Ciências Sociais definiu como tema para o dossiê referente ao segundo semestre de 2017 a História dos Serviços Públicos. No texto usado para divulgar a chamada de trabalhos afirmamos que “temas como a intervenção do governo na economia, a saúde pública, a promoção da educação básica e superior, o funcionamento da justiça e da assistência social são frequentes na agenda de pesquisadores de diferentes áreas”; no entanto, apesar do interesse da História e das Ciências Sociais pela organização e funcionamento das instituições públicas, “os estudos focados especificamente na historicidade dos Serviços Públicos ainda são incipientes no Brasil”.

A publicação do presente Dossiê insere-se neste contexto e pretende fomentar uma reflexão sobre as possibilidades e as dificuldades existentes no estudo dos Serviços Públicos. Acreditamos que uma das dificuldades reside na imprecisão dos limites entre as Políticas Públicas e os Serviços Públicos. A priori, ambos se complementam e são interdependentes, no entanto, a dinâmica das suas relações é complexa. A eficiência das Políticas Públicas implantadas por um determinado governo depende em parte da estrutura organizacional dos Serviços Públicos e da capacidade desta estrutura se reformular e absorver novas demandas. E, no sentido inverso, a qualidade de um Serviço Público pode ser ampliada ou reduzida a partir de prioridades definidas pela agenda das Políticas Públicas.

Outro tipo de dificuldade encontrada pelos que exploram a organização e funcionamento dos Serviços Públicos diz respeito às relações entre a sociedade civil o governo. Para além da tradicional representação política partidária, a sociedade civil desenvolveu um amplo conjunto de práticas através das quais busca influenciar nas decisões e ações do governo. E, as instituições governamentais, por sua vez, se encontram em constante interação com a sociedade civil. Nesta interação, as instituições governamentais podem incorporar ou refutar demandas e críticas procedentes do coletivo social e, ao mesmo tempo, podem modificar o modus operandi sob a influência de alterações na conjuntura econômica e política.

Sem a pretensão de explorar todas as dificuldades existentes no campo das pesquisas sobre os Serviços Públicos, consideramos ser pertinente incluir nesta breve reflexão, o problema do financiamento dos Serviços Públicos – problema relevante no contexto de uma crise sem precedente nas finanças públicas brasileiras. Como sabemos, a crise nas finanças públicas é geralmente dimensionada pelo desequilíbrio entre as receitas públicas e as despesas da União Federal, dos Estados e Municípios. No caso do Brasil, parte deste desequilíbrio pode ser atribuída à corrupção que existe dentro e fora do governo. Outra parte diz respeito à disparidade na distribuição dos recursos entre os entes da federação, aos erros na definição de prioridades para os investimentos públicos, ao constante endividamento dos órgãos públicos, à ineficiência dos gestores públicos e à retração nos índices de consumo. De forma direta ou indireta, estes fatores influenciam na oferta e qualidade dos Serviços Públicos e, consequentemente, também demandam uma atenção especial dos historiadores e Cientistas Sociais.

Cientes das dificuldades existentes na interpretação acadêmica dos Serviços Públicos, a RBHCS apresenta aos seus leitores um conjunto de oito artigos que formam o Dossiê História dos Serviços Públicos. Os três primeiros são procedentes do exterior: Alejandra Laura Salomón contribuiu com um estudo sobre as relações entre a política viária e as condições de vida nas áreas rurais da Província de Buenos Aires, no período de 1940 e 1950. Juan Manuel Mátes-Barco abordou o desenvolvimento do serviço público de abastecimento de água na Espanha dos séculos XIX e XX e explorou a convergência de interesses públicos e privados no respectivo serviço. Gloria Paterna Sánchez e Felipe Morente Mejías participam do Dossiê com um artigo sobre o papel do Terceiro Setor no contexto da crise econômica espanhola. Fácil é perceber que os temas procedentes do exterior são distintos e, ao mesmo tempo, relevantes para os leitores interessados na dinâmica das relações entre a sociedade civil e o governo.

Os autores brasileiros estão representados no Dossiê por cinco artigos: Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes contribuiu com um texto sobre as intervenções urbanísticas que resultaram na criação do Boulevard da República, na cidade de Belém (PA). José Carlos da Silva Cardozo escreveu sobre as transformações ocorridas no Juízo dos Órfãos e destacou a crescente importância que esta instituição recebeu na cidade de Porto Alegre, no final do século XIX. Mario Luis Grangeia mostra o progressivo fortalecimento do Ministério Público Federal a partir da Constituição de 1988, observando empiricamente os Grupos de Trabalho Educação e Saúde para discutir sobre as possibilidades e limites do MP brasileiro, suas continuidades e mudanças na área não penal.

Ana Lucia Britto e Suyá Quintslr colaboraram com um estudo sobre o desenvolvimento das redes de abastecimento de água na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Completando o Dossiê, o artigo escrito por Fabiano Quadros Rückert e Felipe Maropo aborda as experiências de municipalização do abastecimento de água ocorridas nas cidades de Pelotas e Porto Alegre (RS) no período da Primeira República. No conjunto, os autores brasileiros apresentaram importantes contribuições, sobretudo se considerarmos que a História dos Serviços Públicos não pode ser construída sem pesquisas que explorem variáveis como o impacto das obras públicas no espaço urbano, o funcionamento das instituições governamentais, a gradual ampliação de um determinado serviço e as negociações entre o poder público e o setor privado.

Ao final, somente podemos desejar uma ótima leitura e o incentivo para novas pesquisas.

Corumbá / MS; Santa Vitória do Palmar / RS, dezembro de 2017.

Fabiano Quadros Rückert – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS)

José Carlos da Silva Cardozo – Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

Organizadores


RÜCKERT, Fabiano Quadros; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.9, n. 18, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres – MACHADO (EL)

MACHADO, Bruno. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres. Campinas-SP: Editora Phi, 2016. Resenha de: VECCHIA, Ricardo B. Dalla.  Eleuthería, Campo Grande, v. 2, n. 2, p. 125 – 130, jun./nov., 2017.

Bruno Martins Machado apresenta à crítica brasileira o seu primeiro livro: Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres, publicado pela Editora Phi de Campinas-SP. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Jr. ele resulta de sua tese de doutoramento defendida no programa de pós-graduação em filosofia do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da UNICAMP, com estágio de pesquisa na Ernst Möritz Arndt Universität – Greifswald, sob supervisão de Werner Stegmaier.

Já nas primeiras linhas da apresentação Machado delimita o caminho de sua investigação, dividida em três capítulos: i) “Monumento de uma crise”, ii) “A pergunta sobre a origem” e iii) “A psicologia: o caminho para os problemas fundamentais” –, por sua vez subdivididos em seções que favorecem a apresentação das ideias, muito embora não constem no sumário. Trata-se de uma investigação temática sobre o conceito de psicologia no horizonte do período intermediário de produção de Nietzsche (1876-1882), mais especificamente na obra Humano demasiado Humano (1878), doravante HH.

Psicólogo de formação, Machado está atento à reciprocidade existente entre as análises de Nietzsche e a emergência da psicologia como ciência da subjetividade na segunda metade do séc. XIX. Reciprocidade, pois como ele sugere ao aproximar as obras do autor de Ecce Homo a textos do métier da psicologia há alguma razão na posição requerida por ele de “primeiro psicólogo”1, uma vez que a sua obra moldou e foi moldada no próprio movimento de emancipação das ciências humanas deste século.

Em que pese a irônica contradição entre as últimas aspas e aquelas do Crepúsculo dos Ídolos onde Nietzsche outorga a Dostoiévski o título de “único psicólogo, diga-se de passagem, do qual tive algo a aprender”2, Machado discute a originalidade do filósofo e nos revela como ele recorre a inúmeros interlocutores, no momento da redação de HH particularmente ao então filósofo Paul Rée (1849-1901), na tentativa de delinear um método próprio de análise das representações e sentimentos morais, religiosos e estéticos.

A psicologia tal como pensada por Nietzsche – no final da década de 1870 ainda caudatária do pensamento de Rée e também dos psicólogos ingleses (não necessariamente psicólogos nem ingleses) e da moralística francesa com seus mestres na “arte de polir sentenças” (HH 35) – é o objeto de análise do livro em questão.

O que significa “psicologia” para Nietzsche? Qual é a sua relação, no contexto da reestruturação do pensamento nietzschiano no período intermediário, com a filosofia histórica, a ciência natural e a química das representações e sentimentos? Qual é especificamente o ofício do psicólogo? O que somente a psicologia é capaz de revelar? Machado se propõe a investigar essas e outras questões, que mesmo a Nietzsche pareciam obscuras à época de HH, de forma ordenada, gradual e através de uma linguagem clara que resulta num bom guia de leitura sobre HH e uma introdução ao período intermediário da filosofia de Nietzsche.

No aforismo 23 de Além do bem e do mal, obra que aprofunda o esforço crítico de HH, Machado encontra a melhor definição para rotular a sua hipótese. “Rainha das ciências”, diz ali Nietzsche, “a psicologia é o caminho para os problemas fundamentais”. Machado se debruça sobre essa definição para evidenciar a especificidade do registro da psicologia em HH e a sua função no reconhecimento e na dissolução do que ali se denuncia como os erros da razão, “a falência psicológica dos pressupostos metafísicos” (p. 143). De acordo com o autor, além de um erro na produção do conhecimento a metafísica traz um erro psicológico na construção dos seus fundamentos. Uma crítica efetiva da metafisica exige, por isso, a análise da construção psicofisiológica dos seus significados. Como ferramenta crítica, “caminho”, a psicologia erige como a “ciência responsável pela explicação das diferentes formas de se apropriar da efetividade” (p. 131), capaz de responder à “pergunta pelo ilógico, mostrando como as sensações foram organizadas em torno de um sentido” (p. 142).

Uma comparação parece-me possível. De modo análogo ao procedimento que Nietzsche descreve no prefácio póstumo de O nascimento da tragédia – “ver a ciência com a ótica do artista, mas a arte, com a da vida”, uma vez que o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência –, também em HH Nietzsche se vale da estratégia do jogo de óticas para reconhecer e submeter à crítica o âmbito da metafísica. Parafraseando a última citação, se o problema da metafísica não pode ser reconhecido no terreno da própria metafisica é necessário articulá-lo a outro terreno, outra ótica, outra perspectiva, que seja capaz de revelar não apenas os seus significados, mas as motivações, as construções, as apropriações, as intenções que competem para eles. A psicologia é esta ótica. Ela é o caminho para as questões fundamentais dada a sua capacidade de desvelar o sentido do próprio sentido.

Contrastando a ótica da psicologia nietzschiana a alguns dos mais exponenciais sistemas filosóficos, de Platão a Schopenhauer, Machado enfatiza a desrazão (Unvernunft) escondida por trás da razão (Vernunft), os interesses por trás do suposto desinteresse, os erros e crenças por trás da verdade, a necessidade e o egoísmo por trás da liberdade e do altruísmo. Antes, Machado está preocupado em revelar o modo como Nietzsche mobiliza diversos elementos (interlocutores, métodos, estilos etc.) para construir uma nova perspectiva de análise. É o trabalho, diríamos “artesanal” de Nietzsche na construção de sua psicologia o que o autor pretende nos apresentar.

Graças à expansão e aperfeiçoamento da cada vez mais variegada NietzscheForschung Machado é capaz de recompor um híbrido referencial teórico. Fazendo dialogar a melhor crítica internacional, como o célebre comentário de Peter Heller (1979) e a recepção brasileira de intérpretes como Giacoia (2001), ele extrai o melhor de uma interlocução “teuto-brasileira” como destaca Henry Burnett na orelha do livro e ainda transita por uma série de outros títulos como os da consagrada escola italiana com Fazio (2005) e Fornari (2006). Esta diversidade, aliás, é um dos pontos fortes do livro e corrobora para o seu vigor e atualidade.

O modo como Machado articula a sua investigação é ainda mais peculiar. Muito embora não desenvolva o método da interpretação contextual de Stegmaier3, sua obra gira em torno de apenas um aforismo que ele denomina como “ponto gravitacional”, precisamente o primeiro de HH. Intitulado Química dos conceitos e sentimentos esse aforismo pode ser lido como uma propedêutica não apenas ao primeiro volume de HH, mas a todo o período intermediário da obra de Nietzsche. O aforismo 1, como mostrará Machado a partir de uma série de digressões, condensa um vasto manancial de temas, referências e interlocutores que exigem do leitor um árduo exercício de reconhecimento e decifração, generosamente abrandado pelo autor.

A precisão no delineamento do objeto de análise não se estende, porém, ao método de abordagem. A decisiva questão “como ler Nietzsche?”, adensada pelo menos desde a década de 1990 por intérpretes como P. Wotling (1995), não recebe maior atenção. Na medida em que a análise do aforismo central avança e exige o autor realiza uma série de digressões promovendo mais a identificação dos referencias teóricos e a delimitação do horizonte semântico das questões do que o seu aprofundamento. Com isso, a obra de Machado resulta num mapeamento bastante amplo das temáticas que norteiam HH, especialmente os capítulos iniciais. Diferente de Nietzsche que pelo recurso de entimema retoricamente superestima a erudição de seu leitor desobrigando-se de apresentar as premissas básicas de seus argumentos, Machado parece optar por detalhá-los. Também não há um posicionamento muito claro sobre questões como o uso e o valor do Nachlass e do espólio, a necessidade do estudo de fontes ao qual ele eventualmente recorre, tampouco sobre o objetivo exato das frequentes digressões. Na verdade, ao adotar esses expedientes o autor acaba por legitimá-los sem parecer considerar mais cautelosamente a decisiva relação, com a qual o próprio Nietzsche passa a se ocupar de modo mais radical com o desenvolvimento da escrita aforismática em HH, entre forma e conteúdo. Uma vez que se trata de uma obra que já em seu titulo recobre a investigação de dois autores parece-me particularmente onerosa a ausência de uma reflexão sobre o que pode significar uma “influência” no pensamento de Nietzsche, o filósofo que no prefácio da mesma obra analisada por Machado confessa: “onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim”.

Quem é o Paul Rée de Nietzsche? O autor da Ursprung der moralischen Empfindungen que aparece no mosaico formado pela icônica foto que Machado escolhe para a capa de seu livro ou uma falsificação deste, um “valente confrade fantasma” como Nietzsche designa no mesmo prefácio após declarar explicitamente que os “espíritos livres” não existem, nunca existiram? Em que pese a comodidade da crítica na voz passiva, poderia Machado ter se demorado mais sobre os recursos do escritor Nietzsche, que estiliza mesmo os seus interlocutores mais declarados.

Ainda assim, a comparação que inspira o livro revela-se exitosa e, sobretudo, rara. Nietzsche e Rée: psicólogos e espíritos livres passa a ser um dos poucos estudos, particularmente entre nós, a debruçar-se sobre a subestimada relação entre Nietzsche e Rée. A esteira de intérpretes como Assoum (1982), Machado defende a sua relevância filosófica para além de um mero “evento biográfico” como o consideram, por exemplo, Jaspers (1950) e Halévy (1989) no espectro do rompimento com Wagner. Afinal de contas, lembra o autor, não por acaso no prefácio da Genealogia da Moral Nietzsche menciona o “livrinho” de Rée como o primeiro impulso para divulgar as suas hipóteses sobre a procedência da moral. No limite, como tem argumentado D’Iorio (2014), é a importância do período intermediário de Nietzsche o que se coloca em questão em análises como esta, posto que já em sua designação o seu valor é diminuído e com ele o de seus interlocutores.

Não só por resgatar o valor filosófico da interlocução entre os autores de Humano demasiado Humano e A origem dos sentimentos morais, mas por descer aos bastidores do pensamento de Nietzsche para mostrar como ele articulava os seus experimentos filosóficos, como lidava com os temas e personagens que figuravam no horizonte de suas preocupações, como se aproximava e afastava de determinadas referências o livro de Bruno Martins Machado tem a contribuir para os leitores de Nietzsche e será ocasião para novos e bons debates como aqueles da Vila Rubinacci que ainda hoje povoam o nosso imaginário.

Notas

1 “Não existiu antes de mim nenhum psicólogo”. Cf.: Ecce Homo, Por que sou um destino, 6. Todas as citações das obras de Nietzsche reproduzem a tradução de Paulo César de Souza publicada pela editora Companhia das Letras.

2 Cf.: Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um extemporâneo, 45.

3 Sobre o método da interpretação contextual, cf.: STEGMAIER, Werner. Nietzsches Befreiung der Philosophie: Kontextuelle Interpretation des V. Buchs der “Fröhlichen Wissenschaft”. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012.

Referências

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D’IORIO, Paolo. Nietzsche na Itália: a viagem que mudou os rumos da filosofia. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. Rio de Janeiro, Zahar, 2014.

FAZIO, Domenico. Paul Rée: Philosoph, Arzt, Philanthrop. Uberz. Francesca Pedrocchi. München: Martin Meidenbauer, 2005.

FORNARI, M. C. La morale evolutiva del gregge: Nietzsche legge Spencer e Mill. Pisa: Edizioni ETS, 2006.

GIACOIA JR., Oswaldo. Nietzsche como Psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001.

HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia. Trad. Roberto C. Lacerda; Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1989.

HELLER, Peter. Von den ersten und letzten Dingen: Studien und Kommentar zu einer Aphorismenreihe von Friedrich Nietzsche. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1972.

JASPERS, Karl. Nietzsche. Trad. Henri Niel. 8ª ed. Paris: Galimard, 1950.

NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Hg. G. Colli und M. Montinari. Berlin; New York: Walter de Gruyter; DTV. 1999.

WOTLING, P. Nietzsche et le problème de la civilization. Paris: PUF, 1995.

Ricardo B. Dalla Vecchia – Universidade Federal de Goiás (UFG).

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[DR]

 

EaD em Foco. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 2017.

Dossiê: Recursos Educacionais Abertos (REA)

Editorial

Dossiê

Publicado: 2017-05-31

Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 18, n. 1, 2017.

Artigos

Publicado: 2017-05-25

“Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930 – CUNHA (Tempo)

CUNHA, Maria Clementina Pereira. “Não tá sopa”: sambas e sambistas no Rio de Janeiro, de 1890 a 1930. Campinas: Unicamp, 2016. Coleção Históri@ Illustrada, Resenha de BRASIL, Eric. “Muitos caminhos até chegar ao samba”. Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Quantos gêneros musicais podem ser tão identificados a uma nacionalidade quanto o samba no Brasil? O próprio termo samba tem remetido ao país nos mais variados lugares do mundo desde meados do século XX. Samba, Brasil, brasilidade, juntamente com carnaval, futebol e sensualidade, têm comumente andado lado a lado no imaginário global. Meios de comunicação, senso comum, as mais variadas produções artísticas e intelectuais sedimentaram tais associações ao longo do último século. A própria atuação, performance, memória e práticas culturais de sambistas por décadas vêm valorizando e ressignificando as relações entre o gênero musical e a ideia de nação.

Essa construção tornou-se tão forte e eficaz com o avançar do século XX que mesmo a produção acadêmica sobre a história do samba e seus agentes recorrentemente corroborou de forma acrítica seu caráter de símbolo nacional. Outras vezes silenciou seus conflitos e disputas internas, fortalecendo a percepção da história do samba como unívoca e que teria trilhado um caminho linear desde o período da escravidão até os dias atuais. A exceção mais comum dessa leitura harmoniosa dos caminhos do samba esteve nos debates sobre sua origem, local de nascimento “autêntico”: Rio ou Bahia? Morro ou asfalto? Zona portuária ou Estácio?

O novo livro de Maria Clementina Pereira Cunha, “Não está sopa”: samba e sambistas no Rio de janeiro, de 1890 a 1930 busca justamente enfrentar toda essa cultura histórica que tendeu a simplificar e homogeneizar a história do gênero e de seus agentes. Realmente, não é sopa enfrentar um tema tão arraigado no senso comum e nas afetividades populares brasileiras. Mas a autora não foge à briga, e seu livro é um ótimo exemplo da constante necessidade de analisarmos sentidos, possibilidades, aspirações, projetos, rivalidades, tensões, conflitos e alianças costurados na experiência urbana por homens e mulheres que precisaram dialogar e enfrentar sujeitos e grupos que defendiam perspectivas distintas.

Em “‘Não está sopa’”, a autora executa uma verdadeira aula de como realizar uma história social da cultura. Seu objetivo não é simplesmente caracterizar formas culturais, tipos de instrumento, danças ou ritmos, nem mesmo narrar fatos curiosos sobre cada personagem que frequentou rodas de samba. Muito pelo contrário, o objetivo central é compreender os sentidos criados e as escolhas feitas pelos sujeitos sociais que participaram dessas rodas. A análise recai sobre a experiência social de cada um deles, sempre levando em consideração contatos, redes, estratégias e caminhos, não apenas no momento da performance cultural, mas principalmente no restante do ano – nas disputas por emprego e moradia, nas relações familiares e religiosas, no conflituoso convívio com as forças policiais e autoridades republicanas. Nas palavras da autora, o foco está na

[…] vida cotidiana dos participantes e frequentadores dessas rodas [de samba], suas percepções e comportamentos em circunstâncias determinadas. E, naturalmente, nas escolhas, nas disputas, nos valores compartilhados entre os vários grupos, nas relações entre esses indivíduos especiais e a multidão de anônimos que conviviam nos bares e cafés, cortiços, terreiros ou, eventualmente, nas cadeias. (p. 86)

O carnaval, as rodas de samba, as letras, as músicas e os instrumentos são portas de entrada para encontrarmos personagens complexos e historicamente relevantes para nosso entendimento, tanto da história do gênero quanto da própria vida cotidiana dos trabalhadores pobres da cidade do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.

O recorte cronológico em si já demonstra a preocupação da autora com as diferenças mais do que com os consensos, com a diversidade mais do que com a homogeneidade. Esse período foi escolhido justamente por permitir o estudo das variadas possibilidades estéticas, artísticas, musicais que se chocavam nas ruas da capital federal. Estudar o período entre a última década do século XIX e as três primeiras do século XX permite, segundo Cunha, compreender o processo liderado por “indivíduos pobres, em sua maioria negros, sem o glamour que a posteridade lhes atribui” (p. 12), composto por uma musicalidade variada que só depois de algumas décadas levaria ao “samba moderno”.

Para tal, as fontes foram reunidas em mais de 10 anos de pesquisa. A autora explica que seu método principal consistiu em confrontar os processos criminais com os dados biográficos dos sujeitos. Esse método é complementado pela análise de crônicas, literatura, jornais, depoimentos, músicas e imagens (p. 13).

Os dois últimos tipos de fontes citadas, músicas e imagens, são fundamentais no desenvolver do livro, tanto por seu carácter analítico quanto por possibilitar ao leitor um relance vívido da análise histórica que vem sendo construída por Cunha. O livro, por ser em formato digital (Epub-2 ou Epub-3), vem recheado de quase duas centenas de imagens, que podem ser abertas e contempladas pelo leitor, e por mais de 40 gravações originais, muitas delas nas vozes dos próprios personagens cujas trajetórias são analisadas nos quatro capítulos.

Esses recursos audiovisuais transformam a leitura em uma experiência agradável e complexa, ajudando na imersão do leitor na temática estudada. Tais recursos são bem explorados pela autora – cada imagem e música se encaixam no texto, sempre inseridas em momentos que contribuem para a leitura e a compreensão dos argumentos do livro, e não apenas como exemplos ilustrativos. Como fica claro logo na introdução, a autora escolhe reduzir o número de citações e referências bibliográficas, o que torna o texto mais dinâmico – mesmo que dificulte a identificação de alguns debates e críticas presentes no texto.

O livro apresenta quatro capítulos, além da introdução, de fácil leitura. O Capítulo 1, “Uma questão de berço” (p. 18), tem como objetivo principal questionar as “origens” mais comuns atribuídas ao samba. Caracteriza com maestria que os debates sobre a origem do samba são estéreis e pouco, ou nada, têm a oferecer para o entendimento do gênero e de seus agentes; consegue deixar claro para os leitores que os debates acerca do lugar de “nascimento” do samba falam muito das disputas entre grupos coevos, e que é importante pensarmos justamente sobre os motivos que levaram a tais “origens” serem defendidas por determinados grupos. Busca também um debate sobre o termo “Pequena África”, cunhado por Heitor dos Prazeres, e como a história social pode relativizar seu uso. Por meio de fontes policiais, judiciais e de censos, busca caracterizar a região em sua multiplicidade, e não apenas como um espaço negro.

O Capítulo 2, “Gente da lira” (p. 54), analisa as relações entre a atuação policial e a diversidade racial, os padrões demográficos e habitacionais das áreas centrais do Rio de Janeiro, especialmente na freguesia de Santana. Desenvolve mais detalhadamente a análise da região popularmente conhecida como “Pequena África”, comprovando ser um espaço muito mais variado e complexo do que a expressão de Heitor dos Prazeres denotaria. Ao analisar a demografia, os crimes e a ação policial em Santana, a autora é capaz de compreender os padrões e motivos de prisão, os espaços de moradias, convívio e rivalidade. Conclui que, em Santana, a ação policial esteve voltada para o controle social, mais do que para a repressão a crimes, como assassinatos e roubos (p. 59), revelando a preocupação das forças republicanas em manter essas regiões sob o signo da “ordem”.

Os Capítulos 3, “Gente de fora” (p. 94), e 4, “Da gema” (p. 150), apresentam estruturas e estratégias semelhantes e são os melhores do livro. Ambos têm como objetivo analisar experiências de sujeitos ligados ao samba por suas relações com a polícia e a justiça, assim como caracterizar as redes, alianças, rivalidades dos grupos nos quais estão inseridos e com os quais se opõem.

No terceiro, a análise recai sobre os sujeitos ligados aos candomblés da região de Santana, da zona portuária, bastante identificados com migrantes do Nordeste, especificamente da Bahia. A autora realiza importante estudo sobre esse grupo, o impacto de sua presença, seu tamanho e as redes de sociabilidade por ele construídas nas ruas de Santana. Cunha consegue evidenciar que tal grupo não constituía uma comunidade ou elite à parte dos demais trabalhadores da região; que não foi demograficamente superior a outros tantos grupos de migrantes e cariocas. Dedica-se, ademais, ao estudo dos centros religiosos e de sua importância na formação de conexões entre esses indivíduos, assim como do papel das mulheres na formação dos vínculos identitários e na ampliação e preservação de espaços de sociabilidade e proteção.

Na parte final do mesmo capítulo, realiza alguns estudos de caso de membros ilustres da comunidade “baiana” por meio de processos criminais, buscando compreender os caminhos e as estratégias costuradas por esses indivíduos ao se relacionarem com a polícia e as autoridades republicanas. Conclui resumindo os motivos que levaram à constituição de uma ideia quase mítica dessa comunidade baiana como foco irradiador de uma cultura popular carioca nos anos 1900 e 1910.

O quarto capítulo faz movimento bastante semelhante ao anterior, mas altera o espaço e os sujeitos: a área estudada é a região do Estácio, com a zona do Mangue e do meretrício; os casos estudados são protagonizados pelos “malandros” sambistas da região do morro de São Carlos. Busca marcar claramente as diferenças com a região estudada no Capítulo 3: o Estácio seria caracterizado por uma pobreza maior, mais repressão policial, sofreria com o impacto da região do Mangue e sua zona do meretrício com suas mazelas. Logo, conclui Cunha, o samba e o carnaval seriam os únicos espaços identitários aos quais seria possível se agarrar, visto que, nessa área, as casas religiosas, como os candomblés, e as redes de solidariedade, como as costuradas pelos descendentes dos migrantes baianos, não teriam conseguido se consolidar com tanta força como em Santana. Todavia, tais constatações podem ser relativizadas e tornadas complexas com novas pesquisas sobre a região e a influência de outros grupos, especialmente os migrantes e seus descendentes do Vale do Paraíba fluminense, de Minas Gerais e de São Paulo (Abreu e Dantas, s.d.; Abreu, Agostini e Hebe, 2016Barbosa, 2015Costa, 2015).

Com esse breve sumário dos capítulos, fica evidente os muitos acertos ao longo das mais de 200 páginas de seu novo livro. Autora experiente da história social da cultura,2 Cunha defende acertadamente que “o carnaval e as rodas de samba podem ser um prato cheio para perceber, em um plano mais geral, [a] multiplicidade” nessa história. Em seu estudo, podemos aprender “sobre os limites, escolhas e alternativas que se ofereciam àqueles homens e mulheres que cantavam, dançavam ou se divertiam em torno do som de violas, cavaquinhos, pandeiros, tambores […] revelando suas formas de reivindicar e se dar a público, seus projetos e aspirações” (p. 11).

Seu foco está na multiplicidade de agentes; seu esforço é compreender os diferentes sentidos elaborados pelos variados grupos sociais; a importância dada aos contatos entre os trabalhadores urbanos com as forças republicanas – polícia, justiça, políticos -, intelectuais e jornalistas; o estudo de trajetórias individuais e a caracterização dos grupos e de suas rivalidades internas. Elementos que representam uma enorme contribuição, tanto para a história do samba quanto para a história da cidade do Rio como um todo, principalmente para o período da Primeira República, que por muito tempo foi relegado a segundo plano pela historiografia.3

Um ponto nevrálgico do livro é a questão racial. Por um lado, está constantemente presente nas fontes; por outro, o leitor fica com a percepção de que uma análise mais detalhada sobre racismos e racialização poderia ter suscitado novos questionamentos ao longo de “’Não tá sopa’”. Nas palavras de Cunha:

Ainda que a racialização das relações sociais e o racismo explícito das elites republicanas impregnassem o dia a dia dos trabalhadores da cidade, os espaços gestados pelos antigos escravos, especialmente aqueles relacionados ao carnaval ou a outras formas de lazer urbano, já encontravam novos parceiros em sua construção. Análises das formas de sociabilidade dos trabalhadores cariocas nesse período evidenciaram que os grupos que se organizaram para a festa e a folia – onde frequentemente os negros tinham a maioria, mas raramente a exclusividade – tiveram um grande peso nesse processo e figuraram entre aqueles que sofreram maior controle ou foram objeto das mais duras iniciativas no dia a dia da polícia local. (p. 10)

Apesar desse parágrafo indicando a importância da questão racial na configuração das rodas de samba como espaço de autonomia protagonizados por homens e mulheres negros, as escolhas teóricas da autora se voltam mais para as dimensões sociais dos trabalhadores da cidade. Apesar de muitas fontes e personagens colocarem essa questão em evidência, e Cunha apontá-las para o leitor, o peso do racismo na história do samba ainda fica em aberto.

Sobre o tema, após afirmar que a palavra samba estivera associada a sociedades carnavalescas e dançantes de trabalhadores “de várias procedências e cores” desde o século XIX (p. 11), a autora afirma:

Ainda assim, é necessário enfatizar que a absoluta maioria dos sambistas que vamos encontrar nas páginas seguintes, no papel de protagonistas dessa história, é constituída por descendentes de escravos. Impossível ignorar essa marca, inscrita na cor de suas peles e nas memórias aprendidas de seus pais e avós. Isso não significa, entretanto, que o samba possa ser tomado de antemão como uma manifestação exclusiva da “raça” ou de uma cultura própria desses setores – e, muito menos, como prática unívoca e isenta de conflitos. (p. 11)

A autora faz um contraponto, talvez muito rígido, ao deixar subentendido que a única possibilidade de pensar a importância da questão racial na formação do samba é a defesa de uma cultura negra essencializada e unívoca. Critica acertadamente interpretações que, carregadas de viés ideológico e político, fariam uma leitura do samba como exemplo de uma cultura negra imóvel. Contudo, essa não é a única forma de se trabalhar com tal perspectiva. Há uma vasta bibliografia sobre identidade, cultura e questões raciais que vêm, por décadas, criticando essa interpretação essencializada de cultura negra – Paul Gilroy (2000), Stuart Hall (2003), Mintz e Price (2003), Matthias Röhrig Assunção (2005) e Kim Butler (1998), apenas para citar alguns exemplos – e propondo interpretações que levem em consideração as inovações, invenções, ressignificações que não impedem tanto os sujeitos históricos quanto os estudiosos de pensar sobre identidades e culturas negras em contextos como o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.4

Ou seja, a multiplicidade defendida e comprovada pela autora na história do samba não inviabilizaria pensar simultaneamente a racialização, o racismo e o antirracismo a partir das mesmas fontes. Como a análise de Cunha valoriza e comprova as trocas e diversidades na história do samba e a importâncias delas para as experiências cotidianas dos trabalhadores cariocas, debates sobre crioulização, diáspora africana e Atlântico Negro podem suscitar novas perguntas e possibilidades sobre o mesmo tema em novas pesquisas.

Os principais exemplos dessa questão são encontrados nos Capítulos 1 e 2. Em ambos, Cunha se dedica a entender a região da “Pequena África” como um espaço de grande heterogeneidade racial, o que fica evidente com as fontes e análises apresentadas. Entretanto, ela não deixa de notar que há uma “racialização do perigo”: “ainda que os brancos constituíssem a maioria da população, o contingente de presos negro e pardos era proporcionalmente bem maior que sua presença demográfica” (p. 61).

Segundo ela, as diferenças vividas no cotidiano da região obrigaram seus moradores

[…] a engendrar formas de diálogo permanente, produzindo novas identidades, reafirmando laços antigos ou inventando tradições […]. A despeito do racismo que levava descendentes de escravos com mais facilidade que brancos às cadeias das delegacias ou à casa de detenção, o que as evidências policiais revelam é, antes que tudo, a intensa mistura e a convivência entre trabalhadores brancos e negros, de diferentes origens nacionais, no enfrentamento de dificuldades da vida diária. (p. 61; grifo nosso)

Esse último parágrafo tende a minimizar um componente crucial na vida desses homens e mulheres negros que formaram a grande maioria dos sujeitos estudados por Cunha no livro: o racismo diário, que impactava (e ainda impacta) as possibilidades, horizontes de expectativa e mesmo a vida e morte de imensa parcela da população carioca. Pesquisas recentes vêm buscando justamente pensar as tensões raciais na cidade ao longo da Primeira República, e sem dúvida têm bastante a dialogar com os argumentos de Cunha.5

Uma questão delicada está presente na escrita do Capítulo 4, “Da gema” (p. 150). Ao lermos as trajetórias de “malandros” da região do Estácio, especificamente as histórias de Baiaco e Brancura, nos deparamos com casos policiais gravíssimos, envolvendo estupro, lenocínio, entre outras formas de violência desses homens contra mulheres nas ruas da cidade. São casos extremamente graves, como navalhadas no rosto de prostitutas e um evento de possível estupro coletivo. Ao lê-los, me senti um tanto incomodado com uma escrita leve e corriqueira que tratou tais atos de violência como “peripécias” (p. 166) ou acontecimentos “rocambolescos” (p. 171). Obviamente, não cabe ao historiador realizar juízos de valor anacrônicos e pessoais sobre os sujeitos em questão. Contudo, talvez fosse preciso um cuidado maior com a escrita – principalmente pela trajetória da autora em trabalhar questões de gênero ao longo da carreira – para evitar o que pode soar como complacência com as atitudes misóginas desses sujeitos históricos – mesmo que não seja o que a autora gostaria de transmitir.

Ao final, o livro se mostra uma importante contribuição para compreendermos as experiências cotidianas de trabalhadores homens e mulheres, majoritariamente negros, na vida cultural, social e política da então capital federal. Também nos possibilita compreender os caminhos do protagonismo desses sujeitos na consolidação do samba como gênero musical entre as décadas de 1920 e 1930, em um processo iniciado ainda no século XIX. Cunha, pioneira no estudo de práticas culturais pelo arcabouço da história social, desvela a multiplicidade de agentes envolvidos nesses caminhos. Uma heterogeneidade tão intensa que, sem dúvida, suscitará novas perguntas e pesquisas no afã de desvendar novos sentidos dessa história plural.

Referências

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2Autora de obra fundamental sobre o carnaval carioca do mesmo período (Ecos da folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001) e de outros estudos reconhecidamente importantes sobre a temática.

3Sobre as novas pesquisas que buscam analisar novos aspectos durante a Primeira República, ver Abreu e Gomes (s.d.), Dantas (2010) e Brasil (2016b).

4Perspectiva que venho colocando em prática em pesquisas recentes. Ver Brasil (2016a e 2016b).

5Alberto (2011), Silva (2015), Domingues (2014), Hertzman (2013), Brasil (2016b), Abreu, Agostini e Mattos (2016), Barbosa (2015) e Costa (2015).

Eric Brasil – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Campus dos Malês – São Francisco do Conde (Ba) – Brasil. E-mail: profericbrasil@unilab.edu.br.

Cadernos de História. Belo Horizonte, 18, n.28, 2017.

Dossiê História e Cidades

Expediente

Apresentação

Dossiê – Artigos: História e Cidades

Comunicações

Publicado: 13-05-2017

Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.17, n. 1, 2017.

Dossiê: Criatividade, Inovação e as TIC na educação

Expediente Revista EDaPECI

Editorial do Criatividade, Inovação e as TIC na educação

Criatividade, Inovação e as TIC na Educação

Artigos Gerais

Bibliografia Comentada

Publicado: 2017-05-12

História da Educação. São Leopoldo, v. 21, n. 52, maio/ago., 2017.

Apresentação – Introduction

Sessão especial – Special issue

Dossiê “História da educação católica: produção e circulação de saberes pedagógicos”

Artigo / Article / Artículo

Resenha / Digest / Reseña

Documento / Document / Documento

Publicado: 2017-05-08

Passagens – Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. Niterói, v.9, n.2, maio / ago., 2017.

Editorial

Artigos

Resenha

Colaboradores deste Número

Publicado: 2017-05-31

Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas – FEDERICO (RBH)

FEDERICO, Navarrete Linares. Hacia otra historia de América: nuevas miradas sobre el cambio cultural y las relaciones interétnicas. México: Universidad Nacional Autónoma de México (Instituto de Investigaciones Históricas), 2015. 178p. Resenha de: KALIL, Luis Guilherme Assis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Pensemos em um membro de uma comunidade indígena do centro da Nova Espanha no século XVI. Ele poderia ter identidades culturais e de gênero, praticar determinado ofício, ser cristão e, no campo das identidades étnicas, estar associado a seu “barrio” e comunidade além de ser vassalo da Coroa espanhola. Esse exemplo hipotético analisado por Federico Navarrete Linares revela muitos dos temas abordados em sua obra, associados, principalmente, aos conceitos de alteridade e identidade.

Nos dois ensaios que compõem a obra,2 o professor da UNAM apresenta um amplo panorama das reflexões associadas a esses conceitos dentro da história do continente americano, bem como propõe caminhos de interpretação. Com esse intuito, Navarrete amplia os recortes temporal e geográfico em sua análise, adotando uma perspectiva continental ao longo de mais de cinco séculos, sob o argumento de que, a despeito das especificidades, existiriam muitas convergências entre as trajetórias históricas dos países americanos, como o pertencimento a um “sistema comum” centrado no mundo Atlântico.3 Da mesma forma, todos teriam se organizado após a independência dentro do marco das novas ideias liberais, o que o leva a defender a importância de uma perspectiva compartilhada – mais do que comparada – da história da América.

Em seu primeiro ensaio – “El cambio cultural en las sociedades amerindias: una nueva perspectiva” -, Navarrete analisa os diferentes tipos de relações culturais estabelecidas pelos ameríndios a partir dos primeiros contatos com o Velho Mundo, passando pelas múltiplas formas de resistência, alianças e lutas por direitos. O historiador inicia o texto analisando as formas em que os índios foram concebidos como objetos de conhecimento e dominação e os consequentes projetos de transformação cultural desenvolvidos. Entre os séculos XVI e XVII, a dimensão religiosa teria sido o foco principal de atenção dos europeus acerca das culturas ameríndias. Dessa forma, a transformação cultural dos considerados “bárbaros” e “pagãos” passaria, necessariamente, pela conversão. No século XVIII, com a ascensão das ideias ilustradas e do conceito de civilização, a religião teria perdido espaço para a educação como estratégia de incorporação dos indígenas. Uma nova mudança teria ocorrido a partir da segunda metade do século XIX, com a crescente hegemonia do pensamento científico associada ao evolucionismo biológico e cultural e a ideais positivistas. Nesse período de consolidação dos Estados nacionais, teriam surgido dois modelos de atuação diante da “raça” indígena: as políticas de mestiçagem, adotadas em países como Brasil e México, e de segregação estrita, presentes nos Estados Unidos e na Guatemala.

No século XX, Navarrete identifica o surgimento de outro projeto de interpretação e atuação sobre as culturas ameríndias: a teoria da aculturação, que reforça a pluralidade cultural e teria se institucionalizado mediante políticas que buscavam facilitar a integração final das culturas indígenas menos avançadas à cultura nacional. Nas últimas décadas, outras teorias teriam ganhado força, como as abordagens que destacam a resistência indígena diante dos europeus e as continuidades culturais com o período pré-hispânico, as interpretações multiculturais (associadas a diferentes formas de organização indígena que visam reforçar seu papel como atores políticos) e os projetos baseados em conceitos como o de hibridação e mestiçagem, que negam a existência de identidades ou culturas “puras”.4

Navarrete enfatiza que todas essas propostas não se limitaram ao campo intelectual, estabelecendo estreitas relações com as políticas de dominação e transformação cultural estabelecidas nos últimos cinco séculos. Além disso, seriam marcadas por forte conteúdo moral, baseado em concepções universalistas de verdade e sobre o curso da história. Mas o autor também ressalta que todas elas encontraram entraves e limitações, relacionados às divergências existentes entre os missionários, funcionários da Coroa ou dos Estados independentes e às formas de resistência, adaptação e criação por parte dos ameríndios.

Ao final, o autor substitui o caráter descritivo e analítico por uma abordagem propositiva, visando apresentar “un marco alternativo de comprensión de las transformaciones culturales de las sociedades amerindias” (p.15). Com base no conceito de rizoma proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari, Navarrete propõe uma abordagem das trocas culturais que prescinde de premissas como a unidade das culturas e a existência de fronteiras claras entre elas, além de colocar em xeque a ideia de que a “entrada de elementos exógenos debe provocar necesariamente una transformación en el conjunto de la cultura de un grupo y, sobre todo, en sus identidades culturales y étnicas y que el valor identitario de los rasgos externos está determinado por su origen” (p.47). Adotando essa perspectiva, o autor problematiza visões que abordam a conversão ao cristianismo ou a adoção do idioma espanhol como rupturas irreversíveis, apontando o conceito de etnogênese5 como importante ferramenta de interpretação para ressaltar a capacidade de invenção, renovação e redefinição cultural e étnica por parte dos indígenas, bem como superar perspectivas que veem as trocas culturais como um “jogo de soma zero”, onde a adoção de um elemento cultural ou identitário externo significaria necessariamente a perda de outro elemento indígena, gerando uma dissolução de sua identidade étnica (p.81-82).

No segundo ensaio, “Estados-nación y grupos étnicos en la América independiente, una historia compartida”, Navarrete concentra suas atenções no período pós-independência com base nas questões que envolvem a construção de identidades dentro dos Estados nacionais. Com a proposta de ressaltar que as definições das diferenças entre grupos humanos são produto de circunstâncias históricas e sociais de cada sociedade (não o reflexo de uma realidade biológica, racial ou cultural), o autor apresenta um panorama da dinâmica dos “regimes das relações interétnicas”, ressaltando os aspectos comuns a todo o continente bem como algumas especificidades nacionais.

O primeiro regime abordado é o “estamentário”, presente em países que conservaram durante parte de sua história independente a categorização étnica e a exploração do trabalho forçado, como a escravidão africana nos Estados Unidos e no Brasil e a tributação de indígenas bolivianos, peruanos e guatemaltecos. Em seguida, viriam os “regimes liberais discriminatórios”, implantados em quase todo o continente durante o século XIX e caracterizados por assumir a concepção liberal de cidadania universal e igualitária ao mesmo tempo que excluía amplos setores da população, formando o que Navarrete denomina como uma “cidadania étnica”. Os regimes “integradores” teriam surgido no século XX em países como México, Argentina e Brasil com uma perspectiva da nação como unidade racial, muitas vezes baseada na mestiçagem. Por fim, o historiador analisa os “regimes multiculturais”, surgidos na América do Norte a partir da década de 1960 e que teriam se espalhado pelo continente com a premissa da nação como um conjunto de grupos distintos cujos direitos deveriam ser reconhecidos e protegidos. Para o autor, esse novo modelo mantém e institucionaliza as diferenças entre uma maioria hegemônica e as minorias definidas como diferentes, além de conceber as identidades culturais e étnicas dos grupos minoritários como uma realidade quase inamovível.

Em ambos os ensaios, podemos observar que Navarrete se preocupa em ressaltar o caráter fluido, múltiplo e histórico das culturas e identidades, em de­trimento das abordagens que as imobilizam e essencializam. Outro aspecto comum é a busca por definir e sistematizar conceitos, projetos de transformação cultural e regimes de relações interétnicas tendo como premissa um recorte continental (ainda que dedique atenção às especificidades nacionais). Dessa forma, o autor aproxima a proibição do consumo de chicha na Colômbia, a perseguição à capoeira no Brasil e as leis Jim Crow nos Estados Unidos como práticas discriminatórias associadas a regimes liberais (p.134-135). Como apontado por Berenice Alcántar Rojas na introdução do livro, essa característica se revela como uma das principais virtudes, mas, simultaneamente, uma limitação da obra (p.12). Nesse mesmo sentido, a identificação de grandes movimentos, projetos ou regimes ao longo dos séculos sugere uma linearidade combatida pelo próprio autor.

Contudo, ao final, esta obra se apresenta como importante contribuição que aprofunda conceitos e questões fundamentais não só às pesquisas acerca da História das Américas, mas também a debates que ocupam espaços centrais na política e na cultura brasileira e de outros países americanos, como as políticas de ações afirmativas e as demarcações de terras para grupos indígenas e comunidade quilombolas, que ganham novos contornos quando analisadas sob uma abordagem continental.

Notas

2 Disponível gratuitamente em: http://www.historicas.unam.mx/publicaciones/catalogo/ficha?id=633.

3 Navarrete faz referência nesse trecho à abordagem de “sistema-mundo” trabalhada por Immanuel Wallerstein, apontando seu caráter “eurocêntrico”, que impediria maior compreensão das complexidades dos espaços “periféricos” (p.70 e 101).

4 O autor identifica duas vertentes associadas a essa perspectiva. A seguida por autores como Serge Gruzinski e Néstor García Canclini, em que a expansão ocidental é vista como marco do início do processo de hibridização e mestiçagem; e outra, apontada por Navarrete como mais interessante, a qual assume que as culturas têm sido híbridas e mestiças desde sempre (p.37-38).

5 Navarrete remete a origem desse conceito à antropologia russa e afirma que estudiosos como Cynthia Radding e Jonathan Hill o utilizaram para analisar o continente americano: “Aunque estos autores lo utilizan exclusivamente para explicar la adaptación de pueblos indígenas a la dominación europea, me parece que puede ser empleado de manera más amplia para todos los procesos de conformación de identidades étnicas” (p.97).

Luis Guilherme Assis Kalil – 1 Professor adjunto A-1 de História da América Colonial e América Independente no século XIX da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Doutor em História cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: lgkalil@yahoo.com.br.

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Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship – CASTILHO (RBH)

CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship.  Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2016. 264p. Resenha de: SOUZA, Felipe Azevedo. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Eis um livro notável para os interessados nas mais recentes produções da História Política, área que vem sendo revisitada com publicações que trazem novas possibilidades de interpretação ao que, até recentemente, resumia-se às tramas partidárias e de gabinete. No caso do estudo de Celso Castilho, há a intenção de evidenciar como as jornadas abolicionistas foram, pouco a pouco, moldando o campo político institucional em um movimento de fora para dentro. Das ruas e dos teatros para os parlamentos, em dinâmicas que envolviam parcelas da sociedade tradicionalmente alijadas do sistema político formal, mediante um enredo no qual se destacam as vozes e os atos de mulheres, escravizados e libertos em meio ao coro difuso que grassou progressivamente durante as duas décadas de ativismo que antecederam o 13 de maio de 1888. Como o autor enfatiza na conclusão, “o abolicionismo fomentou a ‘política de massas’ em nível nacional”, e o objetivo da obra é justamente orientar a trajetória desse movimento em meio ao que chamou de “longa história da democracia no Brasil” (p.192).

Com a atenção voltada para a apresentação detalhada das táticas e estratégias que remodelaram as formas de manifestação e a pauta contenciosa do debate público mediante uma abordagem processualista, desfilam em suas páginas as diversas fases do movimento em um quadro a quadro que parte dos primeiros debates em torno da Lei do Ventre Livre e se estende até a disputa de memória no pós-1888. O exame desse panorama histórico repleto de manifestações e associações que envolviam milhares de pessoas é o que fundamenta a tese de que o sucesso do movimento só foi possível dado o amplo engajamento popular, granjeado com um variado repertório de mobilização política.

Esses aspectos evidenciam um fluxo de ideias alinhadas ao pensamento democrático que dava lastro conceitual ao movimento, o que de certa maneira rompe com a ideia reducionista de que o sistema político brasileiro da época era operado unicamente por um padrão de práticas que se distendiam em um círculo vicioso, limitado a reproduzir clientelismo e corrupção. Nesse aspecto o livro acabou por adicionar complexidade ao tema, mostrando que iniciativas democráticas podiam florescer mesmo em contextos políticos tradicionalmente compreendidos em torno de práticas autoritárias e arcaicas.

O livro explora o processo de mudança histórica entre o fim da década de 1860, quando os debates sobre abolição ainda encontravam resistência em meio ao establishment imperial, e meados da década de 1880, fase em que o tema se tornou a pauta mais importante dos debates nacionais. A narrativa acompanha a paulatina difusão do movimento abolicionista a partir dos debates na imprensa, da formação de clubes e sociedades, bem como as reações gestadas por essa expansão em meio a setores de proprietários de escravos, que, de maneira análoga, também passaram a se organizar, promovendo eventos e utilizando metodicamente a opinião pública por intermédio de folhas políticas.

Ainda que boa parte da pesquisa gire em torno de eventos ocorridos entre Pernambuco e Ceará, a obra faz uma análise circunstanciada das pautas e debates nacionais, tomando para isso eventuais consultas a fontes primárias do governo e mantendo estreito diálogo com ampla produção historiográfica sobre o tema. O caráter interativo das sociedades abolicionistas e o intercâmbio constante de seus membros expandem ainda mais o recorte espacial. O movimento tinha um grau de articulação complexo e não passa despercebida à análise a capacidade dos abolicionistas em repercutir fatos e estratégias ocorridos nas mais diversas províncias. A seção na qual Castilho discute o 25 de março cearense, trazendo novas perspectivas que colocam em questão a justificativa clássica de que a abolição naquela província derivou meramente de aspectos econômicos decorrentes da seca de 1877-1878, é representativa de como a preocupação do autor está mais voltada à questão da cidadania política do que a particularismos da história local.

No entanto, a escolha por escrever essa história principalmente a partir de Pernambuco não aconteceu em vão. Foi provavelmente naquela província que a luta dos abolicionistas mais fomentou debates em torno da ampliação da cidadania política e da participação popular, questão que se expressava com grande intensidade durante as eleições. Durante a década de 1880, abolicionistas vinculados ao partido liberal fizeram de suas candidaturas plataformas para que o abolicionismo tomasse a política e para que esta ganhasse as ruas, até mesmo em manifestações dirigidas aos operários, artistas, trabalhadores do comércio, caixeiros e trabalhadores do mercado, entre outros. Joaquim Nabuco e José Mariano tornaram-se os porta-vozes da causa e o fizeram com base em estratégias de divulgação que iam desde sarais em clubes, passando por eventos no Teatro Santa Isabel, até os famosos meetings, em eventos que reuniam milhares de espectadores de “todas as camadas da sociedade” (como registraram os jornais da época).

As eleições gerais da década de 1880 são analisadas uma a uma pelo autor, que explorou as disputas para mensurar a intensidade com que a pauta abolicionista se espraiava pelo terreno da política. E de fato, aqueles pleitos não eram percebidos pelos contemporâneos como uma contenda entre liberais e conservadores, mas entre abolicionistas e escravocratas. Eram projetos em disputa e, sendo assim, acabavam por preencher uma lacuna persistente nas eleições oitocentistas: davam sentido social e programático às eleições.

O projeto de política popular dos abolicionistas motivou forte reação por parte dos republicanos, que em conluio com os conservadores passaram a adotar expedientes de criminalização e de racialização como forma de deslegitimar a participação da população pobre e de cor, em um esboço do que viria a se concretizar como o projeto de cidadania política excludente que se tornou uma das dimensões mais marcantes do período pós-abolição.

Em oposição aos discursos que marginalizavam a atuação da população negra e que compreendiam escravizados e libertos em uma esfera de classificação pré-política e reativa, a perspectiva de Celso Castilho os situa como parte fundamental do movimento. Ao longo do livro encadeiam-se casos em que escravizados tomaram a frente do processo para conquistar suas alforrias ou articular suas próprias fugas do cativeiro, ações que eram facilitadas, ou até mesmo instrumentalizadas com fins de propaganda, pelo movimento abolicionista. Essas interações substanciam o argumento do livro ao demonstrar que mesmo em engenhos distantes dos centros urbanos as lutas dos abolicionistas ecoavam e fomentavam os desejos por liberdade, dando a ver o amplo alcance de circulação dos ideais políticos e de cidadania propalados pelo grupo.

Uma das novidades trazidas pelas novas maneiras de organização e manifestação engendradas pelos abolicionistas foi a inclusão das mulheres no mundo predominantemente masculino da política e da opinião pública. O acompanhamento dessa inserção é um dos pontos altos do livro. O envolvimento que começou em fins da década de 1870, com a presença constante de mulheres em atividades públicas do movimento como bazares, passeatas e peças de teatro, ganhou vigor em meados da década seguinte com a criação de sociedades formadas exclusivamente por mulheres. Associadas à premissa de que eram naturalmente caridosas, elas representavam a face filantrópica da causa e portavam-se como senhoras respeitáveis, mães, esposas e “guardiãs do lar”. Ainda que sob uma identidade de gênero tradicional, essas mulheres conseguiram romper as barreiras do mundo político e tiveram atuação bastante enérgica no movimento – estiveram à frente, por exemplo, dos comitês de liberação de bairros em Recife e lograram grande sucesso na popularização do abolicionismo.

A mais famosa dessas associações, a Ave Libertas, foi, por alguns anos, a sociedade que mais conseguiu promover alforrias na cidade. Aliás, o levantamento das muitas sociedades e suas composições é bem explorado no livro, quesito que explicita especialmente a pesquisa pormenorizada desenvolvida por Celso Castilho, que computou estimativas sobre a quantidade de liberdades conquistadas por essas sociedades em comparação com os fundos de emancipação provinciais em uma série de tabelas. Os números levantados pelo autor são certamente uma ótima contribuição para o acompanhamento progressivo da ação do movimento civil em libertar escravos, montante muito superior ao atingido pelos fundos de emancipação organizados pelos governos provinciais.

Ainda assim, com a chegada da abolição, como a última parte do livro ressalta, os líderes (homens) dessas associações acabaram sendo os mais homenageados. Mesmo que nos dias imediatamente posteriores ao 13 de maio alguns jornais tenham comemorado a abolição como uma conquista coletiva e popular, a memória que se perpetuou sobre o abolicionismo foi pouco a pouco resumindo-se a um panegírico de estadistas e figuras proeminentes. Essa memória que se começou a criar já no dia 14 de maio de 1888 ia batizando passeios públicos com nomes de figurões da política e celebrava a vitória abolicionista, ao passo que olvidava cada vez mais o papel que os escravizados e libertos desempenharam no movimento e, mais que isso, acabaram por negligenciar os debates sobre a inserção dos negros na nova ordem social.

Ao seu fim, o livro demarca a distância entre a forma com que o abolicionismo era percebido em sua vigência e a maneira como foi lembrado por muito tempo. Essa perspectiva é alcançada com sucesso ao combinar análises sobre a cultura política com os debates sobre abolicionismo, em uma simbiose onde um tema acabou por iluminar aspectos de outro, revelando nuances de um pensamento democrático em estado embrionário (e que foi vigorosamente combatido) por muito tempo ignorado pela historiografia. Nesse aspecto, o variado elenco de temas presentes em Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship é tanto uma injeção de ânimo para a revisão de temáticas em torno da cidadania política no Império, quanto uma inspiração para que historiadores e historiadoras olhem com mais cuidado para a atuação e o engajamento de setores tradicionalmente alijados dos direitos políticos.

Felipe Azevedo Souza – Doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Fapesp. Campinas, SP, Brasil. E-mail: felipeazv.souza@gmail.com.

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Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador – SILVA (RBH)

SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. 416p. Resenha de: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Quando falamos do trabalho doméstico no Brasil, devemos ter em mente uma instituição sólida, antiga, perene em nossa sociedade. Trabalho pesado, tradicionalmente exercido por mulheres pobres, muitas vezes negras, sujeito a regras incertas e subjetivas que, na intimidade das casas de família, podem proteger da insegurança das ruas e, ao mesmo tempo, oprimir de maneira brutal as trabalhadoras.1 Conviver com a possibilidade onipresente de humilhação, violência e abuso sexual é o cotidiano de milhares de trabalhadoras que vivem nesse universo complexo, escorregadio, avesso à regulamentação. Essa instituição, ainda tão presente no Brasil do século XXI, tem história; uma importante parte dela, situada entre as últimas décadas da escravidão legal no país e a primeira do século XX, é contada pelo historiador Maciel Silva.

Com cuidado e sensibilidade, o autor narra experiências de trabalhadas domésticas em duas grandes capitais brasileiras, Salvador e Recife, com base em pesquisa densa e rigor interpretativo. O autor trata do período compreendido entre as décadas de 1870, quando libertas, escravas e mulheres livres pobres eram recrutadas para as tarefas de “portas a dentro”, como se dizia então, e 1910, escolhido como marco em função da consolidação de diversas reformas urbanas no país, e consequente mudança nos hábitos, ritmos de vida e na dinâmica do trabalho doméstico. Originalmente apresentado como tese de doutorado em História Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro é um estudo importantíssimo para o tema.

Ao marcar o início do seu estudo na década de 1870, o autor vincula a situação das trabalhadoras domésticas à organização do trabalho que viria com o fim da escravidão, inevitável com a promulgação da lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Sem dúvida, como afirma Silva, aquela lei alterou a percepção sobre o trabalho doméstico livre, uma vez que traria, com os contratos, mudanças nas regras de trabalho, nos horários, na moradia das domésticas – não mais necessariamente fixa na casa dos patrões -, nas expectativas, aliás, de ambas as partes. O contexto dos anos 1870 seria, então, um marco para pensar a formação da classe, já que o autor analisa trabalhadoras livres e libertas em ação como domésticas bem antes do marco oficial do fim da escravidão.

Impossível separar as origens do trabalho doméstico do ambiente da escravidão em sociedades onde essa forma de exploração do trabalho grassou por tantos séculos; para Silva, entretanto, se a escravidão marca o trabalho doméstico, e muitas das lutas das trabalhadoras domésticas livres e libertas foram forjadas nas lutas por autonomia dentro da escravidão, ela não define a classe das domésticas, isso é, não se encontra a classe na escrava doméstica. Isso porque Maciel Silva busca – e aqui tratamos de uma parte central de seu livro – explicar a “formação da classe das trabalhadoras domésticas no Brasil”, classe que, para o autor, só teria se formado na experiência da liberdade, ainda que precária, daquelas trabalhadoras. Inspirado em uma leitura perspicaz de E. P. Thompson, Silva enfatiza bem mais a formação aqui, isto é, prefere pensar em processo histórico, conflitos e heterogeneidade para lidar com o conceito de classe, recorrendo à experiência dos sujeitos mais do que à fixidez de uma categoria preestabelecida.

Escravas, portanto, não fariam parte da classe vislumbrada pelo autor. Silva pretende, com essa premissa, fugir dos estereótipos tanto da “mãe-preta”, a generosa escrava que cuidava dos meninos brancos, quanto da “Negra Fulô”, a mucama bela e sedutora, que tantas vezes, na literatura e nas análises de intelectuais, apareceram na caracterização da trabalhadora doméstica, inviabilizando sua análise enquanto protagonistas de suas próprias histórias. Os estereótipos já explicariam e reduziriam suas vidas à condição de passividade, vítimas de um sistema inescapável. Assim, o esforço do autor se dá no sentido de definir as trabalhadoras domésticas como uma classe marcada por lutas contra a exploração, por direitos, e também em tratar dos conflitos no interior da classe.

Se definir essa classe sem incluir as trabalhadoras escravas que viviam dentro das casas resolve o problema de lidar com as diversas especificidades legais das trabalhadoras naquela condição, nem por isso o autor se livra de outro problema teórico: lidar com uma “classe de domésticas” dentro da classe trabalhadora. Esta não parece ser uma preocupação de Maciel Silva, que não entra no debate sobre ofícios e classe, evitando enfrentar a questão. Sua opção para comprovar a tese da formação da classe das trabalhadoras domésticas é partir para a análise, ao invés da discussão teórica sobre classe; para isso, traz uma pesquisa monumental e uma interpretação sofisticada de fontes, revelando as trabalhadoras em movimento. Constrói, dessa maneira, uma história humana, em que mulheres livres e libertas lutam, atuam com solidariedade contra os patrões em alguns momentos e com disputas entre si em outros, sofrem estupros e outras violências, enfrentam acusações de furto, recorrem à fofoca, se ajudam, e também competem entre si. Lidam com noções de honra, fidelidade, gratidão, proteção, bondade, zelo e liberdade, entre outras, específicas daquela sociedade, e, ao fazê-lo, agem como classe, da mesma forma como seus patrões e patroas também o fazem.

Embora a classe seja a noção central a partir da qual o autor quer pensar a experiência das trabalhadoras domésticas, gênero e raça estão contempladas em sua análise. Sem buscar uma solução fácil, Silva busca os momentos em que o gênero se sobrepõe à classe ou mesmo à raça, mostrando que a realidade é bem mais complexa do que as categorias que usamos para tentar entendê-la. Se é verdade que as trabalhadoras eram majoritariamente negras, também havia não negras entre elas. Em alguns momentos, a pobreza e o fato de serem mulheres marcava mais a posição das domésticas do que a própria raça. Novamente, com riqueza de fontes, cuidado analítico e grande capacidade narrativa, vão surgindo Marias, Creuzas, Donatas, Theodoras e tantas outras meninas e mulheres, com suas histórias e maneiras de lidar com os problemas, resistir, viver.

Merece destaque especial o capítulo em que o autor utiliza romances, memórias, contos e outros textos ficcionais como fontes para a história social. Com base na invenção de literatos baianos e pernambucanos sobre quem eram as domésticas, Silva recupera, com maestria na escrita, muito das sensibilidades da época estudada. Em textos que revelam muito mais a visão de mundo dos senhores do que qualquer realidade sobre as trabalhadoras, o historiador captou medos, angústias, violência e sutilezas das relações paternalistas entre criadas e patrões, marcada por conflitos. Porém, é no capítulo em que analisa os processos criminais que esses conflitos aparecem com todas as cores da violência do mundo real. Em acusações de furtos, agressões físicas, ataques à honra, Maciel Silva vai descortinando aos leitores a experiência de defloramentos e estupros, violência física e verbal, humilhações e precariedade que marcaram a vida das trabalhadoras, permeadas também por solidariedades, redes de apoio na vizinhança, fofocas e outras formas de aproximação – e, às vezes, competição – entre elas. Ao longo do texto, o talento de escritor aparece e enriquece a interpretação do historiador. O resultado é um universo doloroso e complexo que surge, tirando da invisibilidade tantas mulheres que viveram essas histórias.

Um grande esforço de comparação entre as duas grandes capitais caracteriza os capítulos iniciais do livro; a falta de documentação equivalente nas duas cidades, porém, faz Salvador aparecer bem mais que o Recife. Para completar o estudo, Silva faz uma análise cuidadosa da legislação desse universo de trabalho e dos contratos que passam a regulá-lo. Acompanha também trajetórias de jovens saídas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia para trabalhar como domésticas em casas de tradicionais famílias baianas – uma rica documentação que nos últimos anos vem sendo utilizada com mais atenção por historiadores. Se na primeira parte do livro o esforço maior é o de situar o leitor nos contextos específicos de Salvador e Recife e nas imagens construídas na literatura sobre as domésticas e seu universo, nessa segunda parte o autor se preocupa em resgatar a experiência das trabalhadoras.

Ao reconstruir trajetórias cheias de conflitos intensos, como nos casos das expostas da Santa Casa e suas experiências infelizes nas casas dos patrões, Silva defende o argumento de que a instabilidade e violência do universo da escravidão e as solidariedades estabelecidas entre as trabalhadores colocaram em xeque, em diversas situações, o paternalismo vigente, construindo possibilidades de vida para as trabalhadoras, ainda que em condições desiguais e precárias. Sem cair em heroísmos ou simplificações binárias, o autor interpreta as relações de poder daquele mundo, mostrando sua complexidade e as dificuldades em regulamentar um trabalho que é tão pautado pela subjetividade das relações que se estabelecem na intimidade das casas.

Um tema tão atual e importante remete, necessariamente, à luta das trabalhadoras domésticas nas últimas décadas da nossa história por cidadania, direitos, respeito, dignidade no trabalho e na vida. São temas recuperados pelo autor no desfecho do livro, embora se afaste de qualquer tentativa de linearidade na interpretação da luta daquelas trabalhadoras. Em tempos sombrios como os que enfrentamos, em que os direitos dos trabalhadores são tão duramente ameaçados, o livro de Maciel Silva é ainda mais necessário, recolocando problemas fundamentais na nossa sociedade que se pretende moderna e é tão barbaramente marcada por valores arcaicos e desumanos. Este livro nos faz pensar na força do trabalho doméstico no Brasil, nesse modo de mandar, de incluir em casa sem incluir de fato, de tratar “bem” sem tratar como igual, de marcar o lugar de classe e a situação de privilégio de um e a de dependência e humilhação de outros. Tantas incongruências e contradições, o ir e vir da constituição da classe, são revelados com primor neste livro imprescindível.

Referências

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]

Notas

1 Refiro-me aqui ao binômio proteção e obediência, conforme o trabalho doméstico foi caracterizado em um livro já clássico sobre o assunto, da historiadora Sandra Graham. As criadas, sendo trabalhadoras obedientes, receberiam proteção de seus senhores, vivendo na intimidade dos lares, longe dos perigos e da imprevisibilidade das ruas. A autora mostra, porém, que esses significados convencionais eram ambíguos: a casa podia ser o lugar da injustiça para os criados, assim como a rua poderia significar liberdade, longe do controle e vigilância dos patrões. Ver GRAHAM, 1992, p.16.

Gabriela dos Reis Sampaio – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: grsampaio@hotmail.com.

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Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura – VALENTE (RBH)

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 518p. Resenha de: ASCENSO, João Gabriel. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura é um trabalho verdadeiramente monumental, publicado em edição impecável pela Companhia das Letras como segundo livro da coleção Arquivos da Repressão no Brasil. Ao longo de 398 páginas de texto e mais de cem de notas, referências e imagens, Rubens Valente monta uma série de painéis que reconstroem paisagens, cenários, trajetórias individuais e eventos que marcaram a atuação de diversas personalidades envolvidas na chamada “questão indígena”, entre os anos 1960 e o início da década de 1980. A pesquisa, que contou com um ano de entrevistas e 14 mil quilômetros atravessados entre dez estados do país, incluindo dez aldeias, é tributária da própria trajetória de Valente, que, desde os anos 1990, realizou diversas reportagens em terras indígenas e, a partir de 2010, escreve para a sucursal de Brasília do jornal Folha de S. Paulo.

Os fuzis e as flechas é, portanto, um texto jornalístico. Seu tom biográfico é fruto do uso de um amplo leque de fontes orais cruzadas com material escrito, como entrevistas de época, relatórios e comunicações oficiais sobre casos ou indivíduos específicos. Trata-se de documentos muitas vezes sigilosos e que apenas puderam vir à tona depois do fim da ditadura – relativos, por exemplo, ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI), à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Ministério do Interior e à Assessoria de Segurança e Informação (ASI) instalada na Funai como braço do Serviço Nacional de Informação (SNI). A própria relação desses documentos, ao fim do livro, constitui referência de riquíssimo material para pesquisadores que resolvam dedicar-se ao estudo desse período.

Entretanto, o livro não tem um problema, uma questão central a ser perseguida dentro do amplo eixo temático “indígenas durante a ditadura militar”. Não há uma linha de investigação definida nessas quase quatrocentas páginas – o que resultaria em uma hipótese a ser comprovada. As ações do Estado, dos indígenas, ou dos indigenistas indicados carecem de contornos mais nítidos e contextuais. Deve-se destacar, de qualquer forma, que, ainda que isso gere um estranhamento imediato por parte dos historiadores, a construção desses contornos não é objetivo do livro, como obra jornalística que é. De todo modo, uma convicção, elaborada empiricamente com base no amplo material analisado, atravessa toda a obra: o genocídio indígena não foi fruto de mero descaso, irresponsabilidade ou falta de preparo, ele foi consentido pelo Estado.

A apresentação biográfica de alguns personagens destacados puxa um fio que leva a outros personagens, contextos e depoimentos. Ocorre que a passagem de um tema específico para o outro não tem uma direção certa: há um eixo mais ou menos cronológico a partir do qual assuntos e eventos se aglutinam, sem que sua escolha seja clara ao leitor. Para que possamos nos movimentar por um conjunto tão pouco coeso de informações, entretanto, contamos com um excelente índice remissivo, que nos socorre muitas vezes. O livro se inicia quando somos apresentados à figura do sertanista do SPI Antonio Cotrim, a partir de quem se desenha o primeiro quadro de uma tônica que se fará presente ao longo de todo o livro: o massacre de índios (neste caso, os Kararaô, do Pará) como resultado do despreparo das chamadas “frentes de atração”, que acabavam levando doenças para as terras nativas.

Daí, passamos pelo tema das remoções forçadas (como a dos Xavante do Mato Grosso) e pelas denúncias de violações de direitos humanos de grupos indígenas contidas no chamado Relatório Figueiredo. Passamos, ainda, pela atuação dúbia das missões religiosas junto aos indígenas: há evidência de uma mentalidade integracionista que desprezava as culturas nativas, ao mesmo tempo que os próprios missionários aparecem, algumas vezes, como defensores da integridade física desses povos. A ação de missionários religiosos num sentido oposto ao da assimilação também é discutida, particularmente a partir da formação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) que, dentro da perspectiva da Teologia da Libertação, articulou as chamadas “assembleias indígenas”, mobilizando diferentes lideranças de todo o país e viabilizando a resistência desses grupos à ditadura.

A mentalidade integracionista do Estado e sua truculência são ainda apresentados pela criação da famigerada Guarda Rural Indígena (Grin) e pelo plano do ministro do Interior Maurício Rangel Reis de “emancipar” os índios, retirando-lhes o direito à terra. Além disso, discute-se o projeto de grandes obras de integração nacional, como a Transamazônica e diversas outras rodovias, que tiveram consequências fatais sobre os Parakanã, Asurini e Waimiri-Atroari, por exemplo, bem como a evidência do favorecimento, por parte do Estado, de grupos de mineradores, fazendeiros e empreiteiras com interesses em terras indígenas.

Em meio a isso tudo, um grande acerto de Valente é mostrar que a conivência de instituições como o SPI e a Funai com a ofensiva da ditadura não significou a concordância dos sertanistas e funcionários, que muitas vezes reagiram de maneira veemente, articulados a antropólogos e membros da sociedade civil e, sobretudo a partir dos anos 1970, com o apoio de boa parte da opinião pública internacional. Além disso, figuras que se tornariam icônicas no indigenismo brasileiro, como os irmãos Villas-Bôas, Francisco Meireles e seu filho José Apoena Meireles, e mesmo Darcy Ribeiro, são representados com a complexidade de figuras humanas. Ainda que nem sempre o autor consiga escapar de certa heroicização, aspectos controversos desses homens são destacados, como o relacionamento claramente abusivo de alguns dos Villas-Bôas com mulheres indígenas, a opinião dos Meireles de que o indígena fatalmente seria integrado à sociedade nacional, ou a recusa de Darcy Ribeiro em reconhecer a existência do povo Ofayé, dando argumentos aos fazendeiros que pretendiam tomar as terras desse grupo. Tanto por parte dos Villas-Bôas quanto dos Meireles, a crítica interna à Funai se alternava com uma defesa da instituição, em momentos nos quais graves denúncias pareciam caminhar para escândalos – levando-os até mesmo a posicionamentos contrários ao Cimi.

Na segunda metade do livro, tomam vulto algumas lideranças indígenas que se tornariam referência da luta dos anos 1970 e 1980. A trajetória do guarani Marçal de Souza (cuja foto serve de capa ao livro) ganha muito destaque: seu engajamento político, seguido de deportação interna, sua fala de denúncia junto ao papa João Paulo II e, finalmente, seu assassinato na aldeia Campestre. Outra liderança, o xavante Juruna, também recebe grande atenção: primeiro (e, até hoje, único) deputado federal indígena, com seu gravador em punho, sua trajetória no livro é retratada em todas as suas contradições, que evidenciam a dificuldade de articulação de um indígena em um modo de fazer política que não lhe é, a princípio, próprio. Além disso, instituições como a União das Nações Indígenas (Unid, posteriormente UNI) e o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), origem do atual Instituto Socioambiental (ISA), são descritas como resultado do processo de mobilização pela causa indígena – ainda que a afirmação de que a UNI “deu errado” seja bastante questionável.

Contudo, outras importantes lideranças, como o cacique Raoni e seu sobrinho Megaron Txucarramãe, Marcos Terena, o kayapó Paulinho Paiakan e o yanomami Davi Kopenawa são mencionados muito brevemente, sem que possamos entender o que levou à escolha de certas lideranças em detrimento de outras. No epílogo do livro, discute-se a rearticulação da Funai após a ditadura, a permanência da visão integracionista da cúpula militar e, chegando aos anos 2010, até mesmo as atuais propostas de emenda à Constituição de 1988, que recuam direitos conquistados. Mas essa Constituição não é analisada, embora seja o primeiro documento do Estado brasileiro a garantir ao indígena o direito de permanecer em sua terra e com a sua cultura, sem a necessidade de uma assimilação, e a articulação em torno da Assembleia Constituinte não é sequer mencionada. Surpreende negativamente a total ausência da figura de Ailton Krenak, que se notabilizou por sua potente fala na Constituinte, e o segundo plano a que são relegados a CPI do Índio, de 1968, e o Estatuto do Índio, de 1973. Mais uma vez, o que fica patente é a falta de clareza quanto às opções do autor a respeito de quais temas priorizar.

Toda obra tem lacunas, e uma com o porte e a ambição de Os fuzis e as flechas não poderia ser exceção. Se essas lacunas saltam aos olhos dos historiadores, de forma alguma desmerecem o esforço tremendo de Valente em reunir um corpo documental volumosíssimo e apresentá-lo em um texto muito bem escrito. Ao fim, em meio aos retrocessos de nossa década em relação aos direitos indígenas, o autor encontra espaço para a esperança, destacando os altos índices de natalidade dos povos indígenas e a resistência de suas culturas. Tanto em aldeias quanto nas cidades, muitos indígenas afirmaram que “preferem viver entre os seus, a despeito do preconceito, da marginalização e da incompreensão geral”, o que nos leva a perceber “um tipo de vitória, entre tantas derrotas”.

João Gabriel Ascenso – Doutorando em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jgascenso@gmail.com.

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As quatro partes do mundo, história de uma mundialização – GRUZINSKI (BMPEG-CH)

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo, história de uma mundialização. Mourão, Cleonice Paes Barreto; Santiago, Consuelo Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, São Paulo: Edusp, 2014. 576p. Resenha de: SÁ, Charles. Os quatro cantos do mundo: história da globalização ibérica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v.12 no.2, mai./ago. 2017.

Historiador francês, especialista no estudo das mentalidades, Serge Gruzinski já é conhecido há algum tempo em relação aos quadros historiográficos brasileiros. Suas obras abordam as múltiplas facetas da colonização espanhola na América, particularmente aquelas ligadas ao estudo da história do México. Ele desenvolve pesquisas que discutem a construção de um mundo novo pelos espanhóis e a intercessão de novos padrões culturais no mundo Ocidental a partir das conexões estabelecidas entre os mais diferentes povos dominados pelo Império Espanhol. Esse fenômeno, fruto do aparecimento de uma nova sociedade por meio da conquista espanhola da América e de outras regiões do globo, emergiu da junção entre pessoas de diferentes paragens do globo, unificadas pela imposição do Império castelhano durante a Idade Moderna.

Com livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras, seu último trabalho, lançado em 2004, na França, ganhou tradução brasileira no ano de 2014 pelas editoras da Universidade Federal de Minas Gerais (Editora UFMG) e da Universidade de São Paulo (Edusp).

A obra “As quatro partes do mundo” apresenta discussão assaz interessante sobre a junção do planeta pela égide espanhola. Ao estudar, de modo particular, o mundo dominado por Felipe II até Felipe IV, dialoga com a colonização ibérica nos quatro cantos do globo. Do México, ponto fulcral dos estudos, para a África, do Brasil para a Ásia, de Goa para o Japão e daí para Lisboa e Madri, muitas são as junções que o autor se propõe a analisar. O livro está dividido em quatro partes: mundialização ibérica; cadeia dos mundos; as coisas do mundo; e a esfera de cristal. Possui gama generosa de ilustrações, mapas e fotografias de objetos dos séculos XVI e XVII.

Seu trabalho realça vozes que sempre ficam esquecidas nos estudos mais clássicos e tradicionais. Ao invés de líderes, generais, vice-reis, governadores, conquistadores, entre tantos outros ‘grandes homens’, vê-se, aqui, povos, pessoas subalternas, mestiços. Ao invés de focar em conceitos, como exploração, colonização, dominantes e dominados, ele aborda o período a partir da ideia de ‘mestiçagem’. Este conceito, segundo Gruzinski, é o elemento que ganha força para que se entenda e se explique o desenvolvimento do mundo ibérico no Novo Mundo e em outras partes do globo. Da união entre povos de culturas distintas, resultante da imposição das leis, da religião, dos modos de vestir, do trabalho e do viver inerentes ao mundo ibérico, surgiu uma sociedade não europeia e nem indígena: mestiça.

Esse conceito é assim definido: “As mestiçagens são, em grande parte, constitutivas da monarquia. Estão aí onipresentes. São fenômenos de ordem social, econômica, religiosa e, sobretudo, política, tanto senão mais que processos culturais” (p. 48). Na América colonial, não há mais um mundo ameríndio, tampouco ibérico, o que ecoa é um universo multiétnico e plural. Essa diversidade aponta para caminhos e fronteiras que serão parte constitutiva do mundo contemporâneo. A Modernidade e os questionamentos do século XXI sobre identidade e direitos dos povos podem olhar para o Império ibérico e perceber nele semelhanças com os debates que aconteciam no mundo dos Felipes. Nesse sentido, o diálogo hoje existente sobre o direito à identidade dos povos tem um de seus prelúdios nos primórdios da colonização ibérica em terras americanas. A necessidade de compreender o outro no período filipino foi feita por funcionários, clérigos e intelectuais, isso, porém, nem sempre significou tolerância ou respeito para com outras culturas.

Outro conceito interessante para aqueles que estudam a colonização ibérica é o de ‘mobilização’. Mais do que uma expansão, cuja ideia eurocêntrica tende a ver este povo como os mais destacados no processo de formação do Novo Mundo, a ideia defendida pelo autor para a colonização é a de uma mobilização em profundidade, a qual “provoca movimentos e entusiasmos imponderados que se precipitam, uns e outros, sobre todo o globo” (p. 53), fenômeno este que não pode ser controlado pelos seres humanos, nem mesmo pelos poderosos. Ele escapa das mãos daqueles que governam, bem como dos governados, da mistura desse processo dialético, que exclui e também agrega, tudo é mesclado e se espalha. Mesmo os micróbios são internacionalizados. Para o autor, “esse movimento não conhece limites” (p. 53).

A mundialização promovida pelo império ibérico disseminou valores, ideias, pensamentos, costumes, trabalho. Artesãos indígenas começaram a fazer uso de técnicas europeias; materiais feitos na América passaram a ser utilizados na África e na Ásia. Em pouco tempo, a habilidade dessas pessoas superava a dos europeus: roupas, alimentos, casas, pinturas, metais, temperos, tudo era assimilado e reproduzido. Mesclavam-se aos saberes ibéricos aqueles provenientes do mundo indígena, assim como valores vindos da África e da Ásia. Novos conhecimentos e produtos eram feitos. No entanto, quando pressentiam que estavam perdendo o saber para os mestiços, os europeus impunham, então, sua força: se não podiam dominar por meio do conhecimento, passavam a ter o controle da fabricação. Artesãos e trabalhadores eram cooptados pelos espanhóis para suas oficinas. O trabalho braçal e o fruto do saber mestiço foram dominados pelos castelhanos.

O mundo ibérico fez circular livros e saberes. O local e o global passaram a dialogar. Um indígena no Novo México falava das lutas e das disputas referentes ao trono espanhol. Um monge português apresentava sua visão sobre a Índia. Povos africanos eram explicados nas cortes europeias por viajantes vindos da América portuguesa, enquanto nas igrejas e em conventos da América meninos oriundos de aldeias ou assentamentos indígenas desenvolviam os saberes e os valores da religião transmitida da Europa.

Nesse cenário de povos e de culturas, as revoltas foram componentes intrínsecos ao sistema imperial. Membros da Igreja e governadores travavam embates pelo domínio dos novos espaços de conquista. Na Europa, a crise econômica da coroa espanhola no século XVII, consequência da guerra contra a França e a Holanda, fez com que as reformas propostas pelo ministro e cardeal Duque de Olivares encontrassem forte oposição na população mestiça no Novo Mundo. O aumento de impostos e a retirada de privilégios desse grupo, que não era composto nem por indígenas nem por espanhóis, fez com que a cidade do México entrasse em convulsão. Conexões envolvendo a mundialização de povos e economias tornaram-se parte do cotidiano da sociedade, a qual, por sua vez, não era harmônica ou subserviente. Desse modo, a contestação às leis e às ordens foi uma constante no mundo colonial ibérico.

Outro elemento que a mundialização erigida pelo Império ibérico estabeleceu foi a relativização do saber antigo. O mundo não mais se concebia como sendo plano ou com seres demoníacos em suas águas. Povos, bem como a fauna e a flora dos quatro continentes, são entendidos como pertencentes a uma mesma natureza. A difusão dos saberes e dos conhecimentos da Antiguidade foi o contraponto à sua relativização. Nas quatro partes do mundo, ouvia-se falar da Grécia e de Roma e, dessa maneira, a história europeia difundia-se entre povos não europeus, com as implicações que esse tipo de visão eurocêntrica trouxe para a compreensão da própria historicidade dos povos dominados pelos ibéricos. Da cidade do México a Goa, bebia-se dos valores da Antiguidade e dos padres da Igreja Católica. Uma sociedade paternalista, patriarcal e culturalmente judaico-cristã foi aí forjada, valores fundamentais para a cultura local foram realocados ou então dizimados, juntamente com os povos que o professavam.

Em um mundo que se globaliza cada vez mais, o pertencimento a um lugar continua sendo um item considerável. Ao se tornarem cidadãos do mundo, os ibéricos nem por isso deixavam de ser habitantes dessa península, pois o conhecimento por eles produzidos tinha em sua formação católica e europeia a base segundo a qual as relações e as novas concepções de mundo eram efetuadas. Os experts eram compostos por indivíduos europeus ou mestiços que pensavam esse novo mundo. Estes, por sua vez, eram oriundos da Igreja ou dos quadros administrativos do Império e dialogavam, por meio de seus livros e de viagens com esse novo universo que se abria para eles. Nesse contexto, emergiam novas elites: soldados, mulatos, comerciantes, fazendeiros, pessoas da pequena nobreza. Por meio do trabalho realizado em diversas partes do Império, efetivavam com suas ações e ideias o amálgama que concede unidade em meio à diversidade e ajudavam a compor as costuras que forjavam o império filipino.

As ideias e concepções vindas da Europa encontravam solo fértil no Novo Mundo, na África e na Ásia. Aristóteles e o tomismo da escolástica eram ensinados, debatidos e reproduzidos nos colégios e espaços acadêmicos do Império. Franciscanos, Jesuítas, Dominicanos, entre outras ordens religiosas, divulgavam e faziam com que se conhecessem as ideias advindas da Antiguidade grecoromana. Quadros, pinturas, poemas, tratados, esculturas e muitos outros objetos de arte reproduziam a concepção cristã e Ocidental de mundo.

Da mesma maneira que as artes e a fé se globalizavam, a língua também seguia o mesmo ritmo. Latim, português e castelhano tornaram-se o meio oficial de comunicação entre povos diversos. No entanto, estas línguas sofriam por um processo de hibridização: ao serem faladas por povos de outras regiões do globo, incorporavam elementos desses novos grupos. No Brasil, a Língua Geral, mescla da língua portuguesa com a língua tupi, foi o veículo pelo qual seus habitantes se comunicavam até a segunda metade do século XVIII.

Fé e linguagem uniram-se nas tentativas que jesuítas e demais ordens religiosas empreenderam para a propagação da Igreja Católica. Ao tentarem ver, nas crenças e nos valores dos povos que buscavam converter, elementos que possibilitassem exemplificar os ensinamentos de Cristo, houve, em muitos momentos, resultados inesperados. A partir do diálogo com crenças e cultos estrangeiros, alguns religiosos terminaram por adentrar em áreas que beiravam à heresia.

Em sua obra, Serge Gruzinski desenvolve a todo o momento uma escrita que direciona o leitor ao diálogo com outra época. Na tentativa de dominar as quatro partes do mundo, a monarquia católica da Espanha quase conseguiu seu intento. O tempo, esse monstro voraz, e as condições políticas e econômicas da Europa, bem como as resistências enfrentadas na África e na Ásia, contribuíram para que esse projeto não se concretizasse. Ainda assim, o contexto e as ideias da mundialização ibérica vicejam ainda hoje em nossa sociedade contemporânea, quer seja em seus filmes, obra de artes, romances, na linguagem e em atitudes que estão presentes em uma parte significativa do planeta.

A abordagem que se pretende na obra peca em um ponto: apesar de escrever sobre as diversas partes que compunham o Império espanhol, nota-se, ao longo de toda a obra, maior desenvolvimento de conceitos e de fatos circunscritos ao universo mexicano. Outras partes da América espanhola são menos abordadas do que a área do antigo império asteca. Nesse sentido, nota-se o olhar do especialista, já que Gruzinski tem como principal área de pesquisa o estudo da sociedade mexicana colonial.

Entender a globalização ibérica nos séculos XVI e XVII pode nos levar a refletir sobre a globalização capitalista em nossos dias. Ao adentrar em um mundo que se foi, percebe-se sua permanência. Discussões que foram aventadas na Espanha dos Felipes seguem ainda presentes nas sociedades da pós-modernidade. Dessa forma, a leitura da obra pode revelar formas de diálogos que devem ser buscadas na sociedade atual, bem como mecanismos de exploração que, ao persistirem, devem ser combatidos e extirpados. Boa leitura!

Charles Sá – Universidade do Estado da Bahia. E-mail: charles.sa75@gmail.com

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O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades – OLIVEIRA FILHO (BMPEG-CH)

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. 384p. Resenha de: ROSA, Marlise. O nascimento do Brasil: releituras a partir da antropologia histórica. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol.12, n.2, mai./ago. 2017.

O livro “O nascimento do Brasil e outros ensaios: ‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades”, organizado pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho, reúne artigos de sua autoria, escritos em diferentes momentos de sua carreira. Professor-titular de Etnologia no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), com mais de quatro décadas de experiência em pesquisas sobre povos indígenas da Amazônia e do Nordeste, nos últimos anos vem desenvolvendo estudos relacionados à antropologia do colonialismo e à antropologia histórica, concentrando-se, principalmente, no processo de formação nacional, na historiografia, em museus e em coleções etnográficas. Nesta obra, resultado destas reflexões, o autor nos apresenta, além de um denso prefácio, outros nove textos, nos quais busca “[…] reexaminar criticamente as interpretações atribuídas à presença indígena, explicitando as múltiplas formas de agência e participação que as populações autóctones tiveram na construção da nação” (p. 7). Por meio deste exercício, João Pacheco de Oliveira Filho chama a atenção para a inexistência de uma história indígena singular e contínua, demonstrando haver uma multiplicidade de histórias, com experiências e temporalidades diversas.

A reflexão introdutória, de certo modo, consiste em um capítulo à parte, no qual o autor não somente problematiza as formas de incorporação dos índios à história e a participação deles à formação do Brasil, mas também critica o próprio fazer antropológico, que negligenciou os modos pelos quais, mesmo em um contexto de dominação, os indígenas resistiram, organizaram-se e continuaram a atualizar sua cultura. Afirma, portanto, que houve uma anistia aos aspectos violentos da colonização por parte de intelectuais não indígenas, ao fazerem do relativismo a ferramenta única de seu horizonte ideológico e inviabilizarem a elaboração de etnografias sobre a tutela. Fala, ainda, sobre os múltiplos regimes de memória e a necessidade de entender a presença indígena em cada um dos contextos históricos em que tais representações foram formuladas. Nestes regimes, os indígenas são relatados como portadores de características variáveis, que podem, inclusive, ser antagônicas em contextos diferentes e sucessivos, pois cada fala corresponde a um regime específico. Por isso, o pesquisador não pode se fixar em apenas um deles, devendo também se beneficiar de pesquisas antropológicas e históricas contemporâneas.

No primeiro capítulo – “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma etnográfico” –, como o título sugere, o autor propõe uma revisão do paradigma historiográfico utilizado, a fim de compreender a presença indígena no Brasil atual, que, segundo ele, é baseado em categorias coloniais e em imagens reificadoras, sem utilidade à pesquisa e ao aumento do protagonismo indígena. Tais narrativas apresentam três grandes equívocos: 1) independentemente do período histórico, de região ou de etnia, os discursos sobre os indígenas passam pela polaridade proteção versus extermínio, legitimando, assim, a tutela; 2) a paz, enquanto objetivo da ação colonial, corresponde a um estado jurídico-administrativo que reflete apenas o ponto de vista dos colonizadores, negligenciando os modos como os indígenas recepcionam e se utilizam destas normas; 3) há o estabelecimento de uma clivagem radical entre índios e não índios, inspirado no modelo religioso de pagão versus cristão, que, diferentemente da questão do negro, não admite misturas, sobreposições ou alternâncias. Estes discursos, portanto, legitimam e naturalizam a ação tutelar, inviabilizando formas de resistência cultural e omitindo situações de incorporação de indígenas a famílias brancas.

Na sequência, com o artigo “As mortes do indígena no Império do Brasil: indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, Oliveira Filho constrói uma reflexão sobre narrativas e imagens de indígenas produzidas no século XIX, sobretudo durante o Segundo Reinado, momento no qual os ‘índios bravos’, por representarem empecilho para a expansão colonial, tornaram-se o centro do regime discursivo. As manifestações artísticas e expressões populares analisadas pelo autor indicam um conjunto de seis eixos geradores de sentido: 1) o nativismo; 2) a nobreza pretérita dos indígenas; 3) a morte gloriosa dos guerreiros; 4) o índio como elemento exterior à fundação do país; 5) a morte como o destino trágico dos indígenas; 6) a morte ‘quase vegetal’ do indígena. Em todas estas narrativas e imagens, a morte como elemento central tem efeitos sociais que implicam o esquecimento da presença indígena na construção da nacionalidade, relegando ao índio um lugar na história anterior ao Brasil.

No capítulo três – “A conquista do Vale Amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidade de trabalho compulsório” –, contrapondo-se ao que denomina como “história geral” da borracha na Amazônia, Oliveira Filho propõe que o seringal seja pensado como uma fronteira, “[…] isto é, como um mecanismo de ocupação de novas terras e de sua incorporação, em condição subordinada, dentro de uma economia de mercado” (p. 118). O pesquisador demonstra que, devido às condições favoráveis do mercado internacional da borracha em meados do século passado, o ‘seringal de caboclo’ transformou-se no ‘seringal do apogeu’, instaurando uma nova modalidade de trabalho compulsório e de usos distintos da terra e dos recursos naturais. Diante disso, defende que a história da Amazônia, ao ser escrita a partir da fronteira, contemplaria não somente a heterogeneidade deste processo histórico, mas também a pluralidade de sentidos assumidos pelos agentes que lhe foram contemporâneos.

A ideia de fronteira continua sendo seu objeto de análise no capítulo seguinte – “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual da fronteira” –, voltado para a análise das representações sobre as populações indígenas amazônicas e sobre a expansão da fronteira nesta região. Para o autor, a singularidade histórica da Amazônia só pode ser entendida quando são analisadas as diferentes formas de fronteiras que ocorreram no Brasil, com características e temporalidades distintas. Sua reflexão é iniciada com a problematização dos dois modelos de colonização vigentes na América portuguesa – a colônia do Brasil e a do Maranhão e Grão-Pará –, abordando, na sequência, as representações sobre o primeiro encontro nas “costas do litoral atlântico e no interior do vale amazônico” até chegar ao cerne do artigo, apresentando “[…] diferentes temporalidades, narrativas e regimes que singularizam essa trajetória histórica das populações autóctones da Amazônia até o momento atual” (p. 185).

No capítulo cinco, Oliveira Filho muda o foco para os povos indígenas do Nordeste, apresentando o artigo “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, trabalho muito conhecido, escrito em 1997 para o concurso ao cargo de professor-titular do MN-UFRJ. Nele, o autor problematiza a ‘emergência’ de novas identidades étnicas no Nordeste, chamando a atenção para o fato de que, embora este fenômeno seja recente, a população se considera originária – são coletividades indígenas convertidas ao cristianismo e que, hoje, vivem como camponeses, parceiros e assalariados. Sua reflexão perpassa questões referentes à formação do objeto de investigação – os ‘índios do Nordeste’ –, discute conceitos-chave para a análise da etnicidade e, por fim, debate a respeito do americanismo, refletindo sobre as perspectivas para o estudo de populações tidas como culturalmente ‘misturadas’.

O capítulo seguinte – “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação de fronteiras étnicas” – consiste na análise, a partir de três aspectos específicos, de materiais quantitativos produzidos sobre os povos indígenas. O primeiro é o aspecto demográfico, apresentado por meio de censos nacionais e outros levantamentos; o segundo é o aspecto econômico, representado por meio de dados sobre terras, recursos naturais e conflitos fundiários; e o terceiro é representado pelas divergências em torno da compreensão da presença indígena nos dias atuais. Conforme o autor, o ato de contar sujeitos e processos sociais traz, implícito, os procedimentos de comparação e de normatização; o primeiro como parte do processo cognitivo e o outro como parte do ordenamento político. O ato de contar, portanto, quando realizado por um sujeito que detém algum tipo de poder ou autoridade sobre aqueles a quem observa, arbitra sobre direitos e, no que toca aos povos indígenas, “atropela as alteridades e engendra os subalternos” (p. 230).

Tais dados, contudo, “[…] sugerem um novo perfil demográfico, em que as unidades societárias e a situação de contato dos índios brasileiros já não mais correspondem às antigas interpretações sobre frágeis microssociedades isoladas na floresta amazônica” (p. 265). Por isso, no capítulo seguinte – “Regime tutelar e globalização: um exercício de sociogênese dos atuais movimentos indígenas no Brasil” –, Oliveira Filho analisa o processo de formação do movimento indígena brasileiro, identificando algumas estratégias, alianças e projetos que compõem o universo político contemporâneo. Sinteticamente, o autor agrupa as estratégias políticas dos indígenas a partir de três rótulos: índios funcionários, lideranças e organizações indígenas. Estas estratégias têm em comum a luta por uma cidadania indígena, construída por meio do território étnico; porém, divergem no que toca ao fortalecimento da sociedade civil e à defesa de interesses corporativos.

No oitavo capítulo – “Sem a tutela, uma nova moldura de nação” –, a reflexão tem como tema os dispositivos jurídicos que tratam das populações indígenas. O autor fala sobre os embates de forças durante o processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, destacando a importância atribuída aos índios, bem como o protagonismo indígena, com presença massiva nas audiências públicas, em subcomissões e no debate diário com os parlamentares. Destaca, ainda, a originalidade da nova Constituição, quando comparada a outros marcos jurídicos voltados à regularização da presença indígena na história do Brasil. Em diálogo com a ciência política e a história, o artigo demonstra que a questão indígena impacta não somente os próprios índios, estendendo-se à estruturação do Estado e ao processo de construção de uma identidade nacional.

Para concluir, Oliveira Filho apresenta o texto “Pacificação e tutela militar na gestão de populações e territórios”, cuja proposta é refletir sobre alguns usos, presentes e passados, da categoria ‘pacificação’. A sua intenção é analisar como esta categoria, por cinco séculos empregada apenas para a população autóctone, foi divulgada e celebrada como intervenção do poder público nas favelas cariocas. Em sua concepção, há uma clara analogia entre as ‘pacificações’ contemporâneas e as coloniais, pois ambas fazem referência à intervenção dos poderes públicos em áreas que antes escapavam ao seu domínio, recuperando “[…] a retórica da missão civilizatória da elite dirigente e dos agentes do Estado” (p. 338). Assim como os índios bravos da época colonial, os moradores das favelas são pensados como uma alteridade totalizadora, situada nos limites da criminalidade, por isso não são tratados como cidadãos comuns, sendo sujeitados a uma tutela de natureza exclusivamente militar e repressiva, implementada por meio das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

A intenção do autor, nesta obra, foi abordar os fenômenos sociais a partir de uma postura etnográfica e dialógica, conjugando o olhar antropológico e a crítica historiográfica. Esse movimento rumo à chamada ‘antropologia histórica’, como ele mesmo destaca, reúne um conjunto de antropólogos, de diferentes países, que convergem no desconforto com relação ao antigo olhar imperial da disciplina e, por isso, propõem novos objetos de investigação e novas abordagens.

A inserção de Oliveira Filho nessa seara não se dá com o intuito de contrapor a história nacional, mas sim de – ao contemplar situações históricas e eventos em que agentes com interesses antagônicos interagem – demonstrar que, conjuntamente, esses sujeitos constroem instituições, significados e estratégias. Em outras palavras, é perceber que os sujeitos imersos nesse encontro colonial estão, apesar das assimetrias do contato, igualmente envolvidos no processo de intercâmbio cultural. Ele chama a atenção, portanto, para a necessidade de revermos, de forma crítica, os modos de construção de uma história nacional e as etnificações produzidas pelo saber colonial.

Por tudo isso, os diferentes eventos, personagens e momentos da história dos indígenas no Brasil analisados nesta obra, bem como as particularidades dos olhares empregados, fazem de “O nascimento do Brasil e outros ensaios” uma leitura fundamental, não somente para os estudiosos do tema, mas também para aqueles que se interessam por uma outra história de nosso país, que reconheça e problematize a dissonância entre os fatos concretos e as grandes interpretações.

Marlise Rosa – Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: marlise.mrosa@gmail.com

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[MLPDB]

 

Revoluções e Revoltas / Estudos Históricos / 2017

As celebrações do centenário da Revolução Russa inspiram Estudos Históricos a lançar este número intitulado Revoluções e revoltas. O assalto ao céu, as esperanças utópicas, as desilusões revolucionárias, bem como as múltiplas reações globais à tomada do poder pelos bolcheviques marcaram fundamentalmente a história do século XX e redefiniram o próprio conceito de revolução e o significado das revoltas sociais. O número inspira-se na Revolução Russa, mas não se resume a ela ou à sua influência. As análises percorrem um longo caminho de estudos sobre rebeliões, revoltas e processos revolucionários em diferentes períodos e lugares, fornecendo um rico e diversificado mosaico de pesquisas sobre essas temáticas.

O número inicia-se com o artigo “Modelos de rebelião rural e as revoltas rurais do Império Romano Tardio”, no qual Uiran Gebara da Silva testa a validade de modelos explicativos elaborados pelas Ciências Sociais para a compreensão de revoltas ocorridas na Gália e na África romanas. No segundo artigo, “As letras de uma Revolução: a implantação da República em Portugal a 5 de outubro de 1910”, Ana Paula Pires estuda o processo que levou à derrubada da monarquia e sua substituição pelo regime republicano naquele país. Em seguida, Denise Rollemberg, em “Revoluções de direita na Europa do entre-guerras: o fascismo e o nazismo”, debruça-se sobre a Alemanha nazista e a Itália fascista para refletir sobre a aplicabilidade do conceito “revolução” para regimes e movimentos liderados pelas direitas.

Os dois artigos subsequentes concentram-se na história do Brasil. José Manuel Flores, em “Sob o credo vermelho: índios, comunistas e revolta no sul de Mato Grosso em meados do século XX”, articula a insurgência dos índios Kaiowá contra a autoridade do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a atuação do Partido Comunista do Brasil (PCB). E Rodrigo Nabuco Araujo, em “A voz da Argélia. A propaganda revolucionária da Frente de Libertação Nacional argelina no Brasil. Independência nacional e revolução socialista (1954-1962)”, examina a recepção da guerra de independência argelina pela intelectualidade brasileira de esquerda nos anos 1950 e 1960.

Já Berthold Unfried e Claudia Martínez, em “El internacionalismo, la solidaridad y el interés mutuo. Encuentros entre cubanos, africanos y alemanes de la RDA”, desenvolvem um estudo comparativo entre as ações de solidariedade de Cuba e da Alemanha Oriental em relação aos movimentos e regimes socialistas e nacionalistas em países recém-independentes na África. Em “A new revolutionary practice: operaisti and the ‘refusal of work’ in 1970s Italy”, Nicola Pizzolato analisa a práxis e a elaboração teórica dos grupos “obreiristas” no contexto de radicalização política da Itália dos anos 1970. Em particular, é analisado o conceito de “recusa do trabalho” e seu impacto nas intensas lutas e mobilizações operárias do período.

Na seção Ensaio bibliográfico, Francisco Palomanes Martinho recenseia a literatura recente sobre a transição portuguesa para a democracia, privilegiando os temas do papel do marcelismo e do caráter da revolução que derrubou o salazarismo em 1974.

Finalmente, a seção Colaborações especiais conta com os artigos “Karl Marx e a Revolução Russa” e “Um ano extraordinário: greves, revoltas e circulação de ideias no Brasil em 1917”. No primeiro, Angelo Segrillo acompanha a reflexão de Marx acerca das possibilidades de eclosão de uma revolução comunista na Rússia. No segundo, Edilene Toledo trata dos movimentos contestatórios que tiveram lugar em várias partes do país no ano de 1917 e destaca a repercussão da Revolução Russa sobre as organizações de trabalhadores.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV).

Os editores.


MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.61, maio / ago. 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino médio: à luz do pensamento de Gramsci – NOSELLA (TES)

NOSELLA, Paolo. Ensino médio: à luz do pensamento de Gramsci. Campinas, São Paulo: Editora Alínea, 2016. 180 pp. Resenha de: CAMPELLO, Ana Margarida de Mello Barreto. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.2, mai./ago. 2017

Ensino Médio: momento decisivo da formação humana

Nosella reúne nesse livro seis ensaios sobre o Ensino Médio. Apresentados primeiramente em forma de palestras e mesas redondas e posteriormente publicados em periódicos, os textos que compõem essa obra, escritos em diferentes momentos e à luz de contextos específicos, estruturam-se a partir de teses de fundo, que se repetem ao longo dos textos apresentados, a saber:

Aos adolescentes (todos) do Ensino Médio de 14 a 18 anos deve ser garantida uma formação de cultura geral, moderna e humanista, de elevada qualidade; sendo o estudo um trabalho muitas vezes mais duro e árduo que muitas outras atividades do mercado, muitos adolescentes as ‘escolhem’ por razões superficiais, imediatistas e utilitárias e não pela razão recôndita em sua consciência; se a desumana necessidade da família os empurra para a profissionalização precoce, cabe ao Estado intervir, remunerando seu trabalho/estudo, garantindo, com isso, a indefinição profissional, direito natural dessa fase etária, sem assistencialismos ou subterfúgios didáticos (p. 9).

O primeiro texto, “O Ensino de 2° Grau”, escrito para servir de base às discussões do Congresso Estadual de Educação da Rede Estadual de Ensino de São Paulo, realizado em abril de 1991, questiona a falta de clareza quanto à função específica desse nível de ensino. Seria ele propedêutico ao ensino superior, profissionalizante ou pré-profissionalizante? Fase terminal ou meramente transitória do sistema educacional?

Nosella entende ter havido um certo avanço quando se afirma ser o trabalho o princípio fundamental do ensino de 2° grau, mas que ainda assim permanecem dúvidas quanto à questão de sua identidade pedagógica. Defende que a autonomia didático-metodológica do ensino de 2° grau deve ser afirmada por um ensino marcadamente histórico e renovador que se define pelo e para o jovem a quem se destina e que ‘reinventa’ e ‘recria’ os instrumentos da ciência e da cultura ao reconhecê-los como histórica e politicamente criados pelos homens (p. 21). Na continuidade do desenvolvimento desse primeiro texto identifica dois princípios fundamentais para o ensino de 2° grau: o primeiro seria o próprio trabalho moderno, sua história, seus valores, suas leis. O segundo princípio, de caráter didático-metodológico, seria o exercício racional da autonomia, da criatividade e da responsabilidade humana.

O autor reconhece que a “catástrofe social” produzida no Brasil obriga os jovens à prematura busca pela sobrevivência, no entanto reafirma já nesse primeiro texto sua tese principal de que o Ensino Médio é fundamentalmente formativo, de caráter humanista, não profissionalizante.

O segundo capítulo é constituído pela conferência “Para além da formação politécnica”, proferida, em 2006, no Primeiro Encontro Internacional de Trabalho e Perspectivas de Formação dos Trabalhadores, promovido pelo Grupo de Pesquisa Labor da Universidade do Ceará. Segundo o autor, esse texto visa explicar por que considera inadequada a expressão ‘educação politécnica’, defendida por vários educadores marxistas, sobretudo nos anos 1990 e que para ele não traduz as necessidades de educação da sociedade atual, também insuficiente para explicitar os germes do futuro da proposta educacional marxiana (p. 50).

O autor esclarece que sua crítica à “bandeira politécnica” não é uma “mera questão de pureza semântica” e entende que os que a empunham defendem “políticas educacionais de outros tempos” como se “aqueles tempos e contextos passados conservassem hoje o mesmo significado cultural de antigamente” (p. 26). Explicita os termos utilizados e as fontes de estudo nas quais se baseia, assim como apresenta as razões que justificam suas críticas de natureza semântica, histórica e política à proposta de educação politécnica para a formação dos trabalhadores.

Apesar de considerar “muita pretensão elaborar uma proposta para a formação dos trabalhadores” (p. 44), retoma Marx e sua “fórmula pedagógico-escolar de instrução intelectual, física e tecnológica para todos (…) pública e gratuita (…) de união do ensino com a produção (…) livre de interferências políticas e ideológicas” e Gramsci e sua proposta de escola unitária para (re)afirmar a “formação omnilateral ou de escola unitária para todos e antes de tudo a superação da dicotomia entre o trabalho produtor de mercadorias e o trabalho intelectual” (p. 46)

No terceiro capítulo, Nosella republica “Ensino Médio: em busca do principio pedagógico”, um texto que, segundo ele, nem sempre é bem considerado pela academia por estar “marcado pela experiência pessoal e pela emoção” (p. 10). Apresentado pela primeira vez em 2009, nesse artigo o autor parte de uma constatação: a intensificação do debate sobre o Ensino Médio que, segundo ele, é decorrente do aumento das matrículas nesse nível de ensino, constatado em pesquisas tais como a PNAD 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) , do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse crescimento de matrículas, segundo o autor, leva a que muitos pretendam “tirar proveito material dessa mão de obra juvenil e por isso pensam em profissionalizá-la rápida e precocemente” (p. 52). Ao defender o princípio pedagógico específico do Ensino Médio, entende que ele “é decorrente do momento vivido pelo jovem em busca de sua autonomia e identidade moral, intelectual e social” (p. 53).

Esse texto faz um resgate histórico bastante interessante dos debates acerca da dualidade do Ensino Médio brasileiro. Aborda as experiências de Anísio Teixeira da escola técnica secundária, ainda nos anos 1930, no então Distrito Federal, a reforma Capanema, o fracasso da profissionalização compulsória da lei n. 5.692/71, tentativa, segundo o autor, dos militares de universalização de seu sonho educacional de uma escola de técnicos submissos, de operadores práticos. A polarização dos debates educacionais quando da promulgação da Constituição de 1988 e da nova Lei de Diretrizes e Bases de 1996, a promulgação do decreto n. 2.208/97 pelo governo Fernando Henrique Cardoso e sua revogação pelo governo Lula. Em poucas páginas, o autor aborda, aprofunda e resgata historicamente as disputas de projeto para o Ensino Médio brasileiro.

O capítulo quatro “Ensino Médio: unitário ou multiforme?” sistematiza o debate com interlocutores do GT9 – Trabalho e Educação da Anped (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação) e se constitui em continuação do capítulo anterior. “Conceitua a noção de escola unitária e de Ensino Médio e defende a reforma profunda dessa fase escolar (…) contra a atual política de sua fragmentação e profissionalização” (p. 69). Nesse texto, o autor aborda a função estratégica do Ensino Médio que, segundo ele, se constitui na pedra angular, “fase estratégica do sistema escolar e do processo de democratização e modernização de uma nação” (p. 71).

Sobre o conceito de escola única ou unitária, nesse capítulo, Nosella contrapõe esse conceito à questão da dualidade escolar, situando a ocorrência dos debates a esse respeito desde o final do século XIX. A existência de dois sistemas escolares, um de cultura geral desinteressada para formação de dirigentes, o outro de preparação profissional para os quadros do trabalho, leva à defesa de um sistema escolar unitário de educação básica, de modo a superar essa dualidade que seria expressão de injustiça social. Explora as diferenças semânticas entre os conceitos ‘único’ e ‘unitário’ para uma análise hermenêutica do conceito gramsciano de escola unitária, estabelecendo o autor em seu contexto histórico e cultural. Ao dialogar com Moura, Lima Filho e Silva (2015) considera que, no atual momento político brasileiro, é “importante propor com mais vigor e integralidade o projeto de escola média unitária” (p. 95), entende que os autores defendem uma visão de ensino médio multiforme e contesta a visão de “travessia” por eles apresentada.

O quinto texto, “Ensino Médio e educação profissionalizante”, constitui-se no prefácio do livro Educação profissional: análise contextualizada, organizado por Antonia de Abreu Sousa e Elenilce Gomes de Oliveira e publicado pela editora da UFC (Universidade Federal do Ceará). Nesse prefácio, Nosella destaca as críticas profundas e contundentes que os autores do livro fazem da educação profissionalizante, enfatiza a necessidade de que, ultrapassando a crítica, proponham as bases de suas propostas de politicas públicas no sentido da construção de um sistema unitário de ensino básico, fundamental e médio e, poeticamente, faz uma analogia entre o canto do rouxinol, representado pelas críticas, e a necessidade de realçar o canto da cotovia que estaria presente na explicitação da proposta de escola unitária.

O sexto e último ensaio, “A Escola de Gramsci: 22 anos depois”, constitui-se em atualização, um quase posfácio ao livro A Escola de Gramsci, publicado pela primeira vez em 1992. Organizado em tópicos, esse texto aborda quatro questões: a ideológica partidária, a linguística, a do historicismo e da dialética e a da escola unitária do trabalho. Ao abordar cada uma dessas questões, Nosella examina afirmações muitas vezes repetidas, redefinindo-as. Destaca Gramsci como um estudioso da linguística. Afirma que a única leitura possível de Gramsci é uma leitura absolutamente historicista, uma vez que é assim que esse pensador se autodefine (p. 127). Ao rever a conceituação de historicismo em Gramsci, reconhece, no livro que atualiza, passagem que “reflete posições teóricas deterministas” (p. 130) e esclarece o equívoco redigindo novas páginas. Finaliza trazendo novas fontes – os arquivos russos de Giulia Schucht, esposa de Gramsci – para o estudo da nomenclatura e da ideia de escola unitária, que representa a antítese política educacional contra a tese liberal da escola dual de ensino básico.

A atualidade e concretude deste livro de Paolo Nosella está exatamente em retomar questões historicamente em debate quando se trata de refletir sobre o Ensino Médio no Brasil. A continuidade histórica do debate desvela sucessivas reformas que, ao longo dos anos, deram quase sempre em nada e que parecem querer afirmar que o fracasso educacional é o objetivo do projeto de educação das classes dominantes no Brasil.

Nesse momento em que pela primeira vez se reforma, por meio de Medida Provisória, o Ensino Médio no Brasil reafirmo, com o autor, que estamos a anos luz da sonhada escola unitária, o que não significa que se deva abandonar a utopia.

Referências

MOURA, Dante H.; LIMA-FILHO, Domingos L.; SILVA, Mônica R. Politecnia e formação integrada: confrontos conceituais, projetos políticos e contradições históricas da educação brasileira. Revista Brasileira de Educação (Impresso), v. 20, p. 1.057–1.080, 2015. [ Links ]

Ana Margarida de Mello Barreto Campello – Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: anamargarida@fiocruz.br>

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As Ciências Sociais na educação médica – BARROS (TES)

BARROS, Nelson Filice de. As Ciências Sociais na educação médica. São Paulo: Hucitec, 1. ed., 2016. 185pp. Resenha de: ÁVILA E SILVA, Lidiane Mara de; FERREIRA, Jaqueline Teresinha. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.15 n.2, mai./ago. 2017

Neste livro, Nelson Filice de Barros faz uma análise das perspectivas e desafios ao ensino das Ciências Sociais na educação médica. Inicialmente, o autor resgata as bases sobre as quais se desenvolveu o campo das Ciências Sociais em Saúde no Brasil. Marcada pelo pensamento marxista, por estudiosos da Escola de Chicago nos Estados Unidos e por escolas francesas, a educação médica teve na década de 1960 a inserção de cientistas sociais nas escolas médicas diante da insuficiência do modelo médico-privatista e do cenário social que posteriormente culminou com a Reforma Sanitária Brasileira.

Os estudos sobre o tema, como o de Sergio Arouca e Cecília Donnângelo, analisaram esse contexto e são ainda hoje referências ao pensamento social em saúde. Para o autor, esse último estudo, ao analisar o trabalho médico em sua trama técnica e política, abriu um campo de estudos sobre a educação médica, medicalização e relação médico-paciente, dando corpo à sociologia na saúde brasileira.

No estudo de Nelson Filice de Barros, as bases conceituais se pautaram em análises macrossociológicas nos anos 1970, com caráter mais político do que científico, corroborando a crítica ao modelo vigente. Já a partir de 1990 e 2000, os estudos se concentraram em compreensões microssociológicas do processo saúde e doença, com a incorporação de estudos na linha do interacionismo simbólico, tendo como representantes Erving Goffman e Howard Becker.

No segundo capítulo, o autor analisa o conceito de tipo ideal em Max Weber e o utiliza para pensar as Ciências Sociais no campo da saúde, mais precisamente em como tem sido a inserção de cientistas sociais como antropólogos e cientistas políticos nos cursos da área de saúde no Brasil, incluindo graduação, pós-graduação e gestão em saúde.

Para ele, quando nos referimos à quantidade e qualidade do conhecimento produzido, há legitimidade mas uma ‘fraca credencial’, acompanhada de críticas que vão sendo adensadas ao longo da discussão. Sua experiência como docente do curso de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) permitiu compreender algumas delas.

Nos estudos revisados, por exemplo, o autor encontra análises sobre a reformulação do ensino médico, que destacam a necessidade de formar profissionais atentos às questões sociais, capazes de “compreender, responsabilizar-se e resolver a maior parte das necessidades e demandas de saúde dos indivíduos e das populações; além de dirigir e organizar equipes de saúde nos diferentes níveis em que se desenvolve o exercício profissional” (p. 50). Assim, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de medicina, o autor organiza um tipo ideal de currículo, dando enfoque às ações no campo da saúde e suas interações; conceito de cultura associado aos símbolos, valores e normas de usuários e profissionais de saúde; relações de poder e políticas de saúde. Essas questões permeiam o aluno como sujeito da aprendizagem e o professor como facilitador, rumo a uma emancipação crítica e à capacidade de atuar com usuários e outros profissionais.

No penúltimo capítulo, o autor analisa percepções de docentes e discentes sobre o ensino das Ciências Sociais na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Por meio de um questionário eletrônico, orientado pelo paradigma construtivista, foi possível colher informações que possibilitaram o adensamento do tema em questão que “pressupõe a forte dialética interacional entre estruturas e agenciamentos cognitivo, afetivo e cultural” (p. 71).

As percepções colocaram em evidência a invisibilidade das Ciências Sociais nesse contexto e a predominância do que ele considera uma contradição: os entrevistados reconhecem a importância das disciplinas na área para a formação, mas pouca valorização dos profissionais de Ciências Sociais e desconhecem a carga horária ou quando as disciplinas são ofertadas. Alguns temas possuem maior visibilidade, como a relação médico-paciente, o processo saúde-doença-cuidado, o desenvolvimento de atividades práticas, o cuidado integral em saúde.

No cerne dessa problemática está certamente a distinção epistemológica entre as disciplinas das Ciências Sociais e aquelas advindas do saber biomédico. O autor questiona como seria possível responder críticas em relação aos temas que partem da necessidade de compreensão do processo saúde e doença, de uma abordagem pautada na integralidade e no entendimento dos determinantes sociais da saúde, diante de uma formação predominantemente biomédica e intervencionista.

Em suas palavras, “trata-se de uma dificuldade paradigmática, pois a estrutura fundadora das Ciências Sociais opera com escolas de pensamento distintas e complementares de forma a não serem excluídas e assim perdurarem. Já o paradigma biomédico, em geral, opera com a lógica exclusiva, onde uma nova técnica, procedimento ou produto deve substituir o anterior” (p. 88).

Não obstante, para os alunos entrevistados no estudo há uma grande dificuldade em articular os conteúdos das disciplinas acima mencionadas com a visão biomédica e a prática. O autor dá ênfase à noção de interdisciplinaridade e complementaridade como via de integração diante das barreiras epistemológicas, ressaltando que precisamos formar profissionais com maior capacidade de interatuar, respeitando as diferenças e atribuindo igual valor aos diferentes saberes.

No ultimo capítulo são apresentados os resultados de uma revisão sistemática da literatura sobre o ensino de Ciências Sociais na medicina entre os anos 2001 e 2011. Trata-se de um capítulo mais denso que analisa o que foi discutido na literatura sobre o tema nesse período.

Para o autor, entre os principais desafios da formação médica para as Ciências Sociais está a falta de compreensão dos processos saúde doença e de sua complexidade, que podem ter resultados negativos como erros médicos e intervenções desnecessárias. Tal fato decorre de um reducionismo inerente ao modelo biomédico que se reflete na assistência e no cuidado, uma vez que valoriza o cuidado individual em um campo que demanda interação. É particularmente relevante no contexto do SUS, onde os princípios, dentre outros, são a integralidade e a universalidade.

Nelson Filice de Barros destaca que os alunos do curso de medicina somente ‘incorporarão’ os conteúdos das Ciências Sociais quando estiverem atuando como profissionais. Não são capazes de articular criticamente saberes em complementaridade com disciplinas de conhecimento biomédico, uma vez que os conceitos de Ciências Sociais põem em conflito as suas próprias identidades culturais.

Contudo, destaca a noção de responsabilidade social e a ética profissional, cada vez mais presente nas escolas médicas, que têm dado maior importância aos contextos sociais, às comunidades locais, estimulando o trabalho em equipe e a desmistificação da profissão como benevolência.

Sem o intuito de fomentar dicotomias entre disciplinas, Nelson Filice de Barros se preocupa em ensinar articulando sempre o saber à prática e buscando formas de desconstruir o ‘preconceito’ em relação ao conteúdo, sem deixar de lado a devida reflexão conceitual sobre a qual foram social e historicamente construídos. Trata-se, para o autor, de um campo fecundo onde se pulverizam conceitos que precisam ser desnaturalizados, reaprendidos e reincorporados à formação médica para que tenhamos profissionais que compreendam que as dimensões biológica e social não se separam.

As Ciências Sociais na educação médica é um estudo que interessa a cientistas sociais e sanitaristas, mas também a médicos, professores e a todos os profissionais da área de saúde. Nas palavras de Barros, “(…) enquanto para a maior parte dos que operam com a lógica médica o trabalho dos futuros médicos será curar doenças, para os que operam na ordem social o trabalho será de cuidar de pessoas, garantindo sua segurança e participação na tomada de decisões” (p. 146).

Ao analisar a inserção do pensamento social na saúde no Brasil, o autor resgata conceitos e ideais como os da fala acima que ainda encontram barreiras para serem absorvidos e incorporados na atenção à saúde no Brasil, diante de um modelo que se percebe cada vez mais insuficiente. Sua intenção não é contrapor esses modelos, mas reforçar sua complementaridade rumo à interdisciplinaridade, ultrapassando fronteiras a fim de que os saberes se interpenetrem.

Lidiane Mara de Ávila e SilvaUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: lidiane_avila@hotmail.com

Jaqueline Teresinha Ferreira – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jaquetf@gmail.com

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Sujeitos em trânsito: viagens e viajantes na historiografia da educação / Revista de História e Historiografia da Educação / 2017

A problemática das viagens e dos viajantes tem sido mote de muitas pesquisas, resultando em teses, dissertações, eventos e publicações diversas sobre a temática, evidenciando a diversidade de olhares, caminhos e abordagens. Assim, todas as viagens são educativas? Como a temática vem sendo trabalhada pela historiografia da educação? Com quais fontes e caminhos metodológicos? Quem são os sujeitos que viajam?

A circulação das ideias, as “novidades” pedagógicas e o intercâmbio podem ser apontados como motivações para as muitas andanças realizadas por sujeitos preocupados com a educação lato sensu. Assim, o livro “Viagens Pedagógicas” (2007), organizado pelos professores Ana Chrystina Mignot e José Gonçalves Gondra reúne uma série de experiências de viagens de educadores e educadoras, num mosaico com diferentes nacionalidades, temporalidades e destinos que ajuda a visualizar os diferentes esforços e pesquisas preocupadas com a historicidade e importância das viagens para se compreender os processos educativos. O livro é composto por trabalhos que ajudam a dimensionar o interesse pela temática no âmbito da história da educação e a diversidade de fontes. No ano de 2015, o livro “Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas”, organizado por Alexandra Lima da Silva, Evelyn de Almeida Orlando e Maria José Dantas, procurou dar visibilidade aos diferentes significados das viagens realizadas por mulheres, com destaque para as viagens de educadoras.

Por sua vez, outra importante publicação na área sobre a temática é o dossiê “Viagens de educadores, circulação e produção de modelos pedagógicos”, que compõe a Revista Brasileira de História da Educação (2010). Os textos do dossiê foram apresentados no VII Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, realizado no ano de 2007. Destaco ainda, o livro “Exílios e viagens: ideários de liberdade e discursos educativos. Portugal e Espanha, séc. XVIII-XX”, organizado por Margarida Felgueiras e Antón Costa Rico.

Dentre a recente produção acadêmica no âmbito da história da educação, destaco a crescente produção de teses e dissertações que exploram a viagem em suas diferentes possibilidades de análise. O trabalho de Jussara Pimenta fez uso de cartas e crônicas publicadas em jornais como fonte de pesquisa para estudar a viagem de Cecília Meireles a Portugal em 1934 (PIMENTA, 2008). Diários e o relatório de viagem foram as fontes privilegiadas por Silmara Cardoso (2011), para analisar o ideário educacional brasileiro do intelectual Anísio Teixeira. A tese de Inára Garcia Pinto (2011) também parte de um relatório para compreender os significados da viagem do professor primário Luiz Augusto dos Reis que, em 1891, a Portugal, Espanha, França e Bélgica. A tese de Alexandra Lima da Silva analisou a viagem de Rocha Pombo aos estados do norte do Brasil como uma estratégia de legitimação do autor no campo intelectual (SILVA, 2012). Já a tese de Sara Raphaela Amorim explorou a viagem como missão em Nestor dos Santos Lima (AMORIM, 2017).

Este dossiê procura dar visibilidade a estudos sobre a temática viagens e viajantes na historiografia da educação, em pesquisadoras e pesquisadores situados em diferentes instituições brasileiras, como também, em países como México, Espanha e Portugal.

Elizabeth Silva explora as viagens de Nísia Floresta pelo Brasil afora, no texto intitulado “As viagens de Nísia Floresta pelo solo brasileiro durante o século XIX”. Por seu turno, Helder Henriques e Amélia de Jesus Marchão discutem a importância da circulação de ideias através das viagens pedagógicas ancorados no exemplo da Universidade de Coimbra, no artigo “Uma perspetiva sobre Alves dos Santos (1866-1924): apropriação e difusão de ideias pedagógicas em Portugal”. A professora Blanca Susava Veja Martínez explora os relatos de viagem de três professoras rurais mexicanas que transitaram dentro do nordeste do país para fundar escolas e levar a diante sua prática de ensino, no artigo “Relatos de viajes: maestras, escuelas y caminos rurales em el México del siglo XX”. Em “Uma viagem, um engenheiro, uma escola: reorganização da escola prática de aprendizes da Estrada de Ferro Central do Brasil (1905)”, Adriana Valentim Beaklini analisa a reorganização do curso profissional da Escola Prática de Aprendizes da Estrada de Ferro Central do Brasil, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, a partir das impressões da viagem aos Estados Unidos, realizada pelo subdiretor da Seção Locomoção, o engenheiro José Joaquim da Silva Freire, em 1905

O artigo “Onde os laços se atam: sociabilidade e política nos relatórios das viagens pedagógicas do intelectual norte-rio-grandense Nestor dos Santos Lima (1913-1923)”, de Sara Raphaela Machado de Amorim, explora as viagens comissionadas de Netos Lima, que se lançou a conhecer o ensino nos centros de maior desenvolvimento educacional do Brasil, Argentina e Uruguai. Já as viagens de Anttonieta de Souza ao Egito, na década de 1950, foram o foco do artigo de Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti, intitulado “Música da terra dos faraós: aprendizagens de Anttonieta de Souza numa viagem ao Egito”. Por fim, as incursões e trabalhos pastorais de Frei Betto nos países do socialismo real especialmente Cuba, Nicarágua, União Soviética e as reflexões que ele faz entre convergências e divergências da teoria marxista e a religião cristã foram analisadas no artigo “Frei Betto em experiências de viagens: o cristão no socialismo real”, de Rhaissa Marques Botelho Lobo.

As viagens e os viajantes permitem diferentes abordagens e olhares. Nesses termos, o presente dossiê procura contribuir para o debate em torno deste importante e intrigante tema.

Referências

AMORIM, S. R. M. Viagem como missão: intercâmbio pedagógico do educador Nestor dos Santos Lima (1913-1923). Tese (Doutorado em Educação), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017.

CARDOSO, S. Viajar é ser autor de muitas histórias? Experiências de formação e narrativas educacionais de professores brasileiros em viagem aos Estados Unidos (1929-1935). São Paulo: Tese (Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 2015.

MIGNOT, A. C.; GONDRA, J. (org.). Viagens pedagógicas. São Paulo: Cortez, 2007.

PIMENTA, J. As duas margens do Atlântico: um projeto de integração entre dois povos na viagem de Cecília Meireles (1934). Tese (Doutorado em Educação), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

PINTO, I. Um professor em dois mundos: a viagem do professor Luiz Augusto dos Reis à Europa (1891). Tese (Doutorado em Educação), Universidade de São Paulo, 2011.

SILVA, A. L.; ORLANDO, E. A.; DANTAS, M. J. (org.). Mulheres em trânsito: intercâmbios, formação docente, circulação de saberes e práticas pedagógicas. Curitiba: CRV, 2015.

Alexandra Lima da Silva – Professora Doutora. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Organizadora do dossiê temático.


SILVA, Alexandra Lima da. Apresentação. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 1, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento – RAMOS (RFA)

RAMOS, C. A. As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento. Curitiba: PUCPRess, 2016. Resenha de: MARÇAL, Jairo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.29, n.47, p.703-708, maio/ago., 2017.

Um dos grandes dilemas da modernidade se expressa no confronto agudo e contraditório que opõe, de um lado, o desejo da liberdade individual, sem interferências, e do outro lado, a necessidade humana da vida em comunidade, que se organiza por normas e leis. Esse conflito fundamental suscita questões filosóficas em torno da ideia de liberdade — a liberdade pode ser compreendida como um atributo essencialmente individual? Se, as relações intersubjetivas, sociais e políticas demandam regras, e se as regras interferem na liberdade individual, como é possível falar em liberdade nesses contextos? É possível conciliar essas dimensões aparentemente tão controversas? Essas questões têm sido equacionadas e enfrentadas por grandes pensadores de diversos matizes, sobretudo a partir do século XVIII e, permanecem francamente abertas e desafiadoras. O livro As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento, de Cesar Augusto Ramos, apresenta aos leitores uma discussão de grande relevância sobre um dos temas mais instigantes da filosofia política contemporânea e se caracteriza pela amplitude e profundidade da pesquisa em torno da questão filosófica da liberdade, nas suas dimensões individual, social e política.

A obra não se limita a uma única perspectiva de análise, ou à leitura endógena de um autor ou de uma corrente e, tampouco opta por discorrer, de forma meramente enciclopédica, sobre as diversas correntes que disputam a melhor interpretação do tema. De forma arrojada, o texto de Ramos coloca frente a frente as múltiplas faces da liberdade e, nesse cenário promove um debate profícuo que culmina com a defesa da tese de que “a liberdade individual necessita ter uma expressão intersubjetiva e institucional para sua efetiva realização”. Esse é o leitmotif do livro, que se expressa também pela força promissora do conceito hegeliano de liberdade — “estar consigo mesmo no seu outro”.

Outro aspecto metodológico que se revela na tessitura do texto é o trabalho cuidadoso do autor na articulação entre os filósofos clássicos, que se dedicaram a pensar o tema da liberdade e na atualização dos seus conceitos por pensadores contemporâneos. Também merece destaque a bibliografia altamente qualificada, que coloca o leitor em contato com as discussões mais atuais sobre o tema, em âmbito internacional.

O livro é estruturado em quatro partes — a primeira parte aborda a face individual da liberdade; a segunda parte trata da face intersubjetiva da liberdade e sua dimensão social; a terceira parte apresenta a face republicana da liberdade; a última parte é dedicada ao reconhecimento na mediação das faces da liberdade.

A primeira parte do livro é dedicada à análise do conceito de liberdade como autonomia moral e pessoal, que emerge na história da filosofia pela via do liberalismo filosófico. O individualismo dos modernos se configura, essencialmente, pela concepção da liberdade como direito subjetivo (natural) vinculada ao indivíduo, que acaba por marcar de maneira decisiva toda a tradição do pensamento liberal clássico.

A discussão em torno da liberdade individual é apresentada por Ramos num percurso que vai do liberalismo moderado de John Stuart Mill, passando pelo perfeccionismo moral de Joseph Raz, pela distinção clássica entre liberdade negativa e liberdade positiva, estabelecida por Isaiah Berlin, pelas vinculações entre a liberdade negativa e os limites legais e constitucionais na teoria de John Rawls, até a ideia de autonomia estritamente pessoal das volições de segunda ordem de Harry Frankfurt.

Ramos demonstra que para Isaiah Berlin a liberdade é observável “na ausência de ações que podem criar impedimentos arbitrários e indevidos à livre atividade dos sujeitos”. Para o liberalismo, a lei não pode ser tomada como elemento intrínseco à liberdade e, tampouco, na condição de sua promotora, como assevera o republicanismo, mas “é apenas um instrumento de proteção da liberdade como direito fundamental”. Já a ideia de liberdade em Rawls, mesmo que discutida na relação com as limitações legais e constitucionais, permanece tal qual em Berlin, fundada no registro da liberdade negativa.

Segundo Ramos, ainda que Berlin e Rawls tenham se destacado pelas apresentações da ideia de liberdade negativa, fortemente vinculadas à defesa das escolhas individuais livres de interferências, suas concepções de liberdade individual valorizam também a liberdade positiva (autonomia pessoal), como na clássica formulação de Kant, vinculada à “autorrealização para a consecução de uma vida boa”.

A concepção liberal da liberdade contribuiu para o desenvolvimento da ideia de autonomia individual, com significativo impacto na forma de vida das sociedades modernas e, subsidiou posicionamentos contrários a tiranias e várias formas de autoritarismo, mas, por outro lado, o seu caráter atomista e disjuntivo revela sua fragilidade e, a face sombria do individualismo exacerbado tem trazido consequências deletérias à vida em sociedade.

A segunda parte do livro apresenta o conceito hegeliano de liberdade e sua reatualização pelo filósofo da Teoria Crítica, Axel Honneth. Aqui, a ideia central consiste na superação do caráter disjuntivo (individualista) caracterizado nas concepções de liberdade individual negativa e positiva, constituindo assim um conceito social de liberdade, que se desenvolve pela relação do eu com o seu outro (alteridade).

A proposta de Hegel é solucionar a equação identidade x alteridade, aparentemente paradoxal, pelo menos à luz da concepção liberal. Ramos argumenta que, na concepção hegeliana, essa díade não é vista como um problema, mas sim como uma possibilidade de interação e de efetivação da liberdade em seus momentos subjetivo e objetivo. Em outras palavras, na filosofia hegeliana, a liberdade somente se efetiva nas relações intersubjetivas e na racionalidade das instituições sociais e políticas.

Honneth assume o conceito hegeliano de liberdade e, portanto, também se volta para a tentativa de conciliação das dimensões individual e social da liberdade, sem subordinar, contudo, a liberdade do indivíduo a qualquer forma de razão ou ética estatal. Na dimensão individual da liberdade, Honneth amplia essa perspectiva considerando os aspectos psicológicos e afetivos. Essa reatualização do conceito hegeliano de liberdade, proposta por Honneth, é importante porque, na medida em que amplia o campo de abordagem, favorece o seu uso na análise das sociedades atuais.

A terceira parte do livro propõe uma abordagem mais ampla que a do individualismo liberal, a partir da conjunção das dimensões subjetiva (individual) e objetiva (institucional). Ramos observa que “o tema mais comum e influente nas diversas formas de apresentação do republicanismo foi a causa do viver livre (vivere libero) em um Estado livre” e, apresenta essa face da liberdade a partir da análise das filosofias de Jean-Jacques Rousseau, Hannah Arendt, Philip Pettit e Charles Taylor.

Rousseau define o sentido público da liberdade política ao assumir que a “interdependência entre os homens foi irrevogavelmente incorporada nas relações sociais” e que, nessa condição, a liberdade de cada um só pode ser assegurada numa ordem civil, resultado da vontade geral e mobilizada pelo exercício do direito político dos indivíduos.

Arendt, cujo pensamento tem matriz aristotélica, se inspira na polis ateniense e, na posição de crítica do individualismo e do egoísmo que marcam de forma indelével a modernidade, sustenta que a razão de ser da política é a liberdade, mas que esta só se realiza na dimensão da vida em comum, por meio da ação deliberativa.

O comunitarismo de Charles Taylor recria o indivíduo, afastando-o da perspectiva sombria e empobrecedora do egoísmo moderno, para fazê- -lo emergir na condição de um individualismo expressivo, que afirma a identidade do sujeito, por meio de valores associados à comunidade.

Pettit, vinculado ao republicanismo neorromano, critica tanto o atomismo liberal, quanto as formas ortodoxas de coletivismo, buscando conciliar a liberdade individual e a liberdade política (individualismo holista) com base na ideia da não dominação, apoiada no consequencialismo. Para Pettit, são as leis não arbitrárias de um Estado republicano que tornam possível e asseguram a liberdade dos indivíduos. Entretanto, para que haja boas leis, que garantam autoridade aos governantes e liberdade aos cidadãos, é fundamental a cidadania ativa e o exercício da democracia contestatória, ancoradas pelo controle discursivo, que articula as dimensões psicológica (individual), social e política.

Na última parte do livro, Cesar Ramos propõe a teoria do reconhecimento como mediadora das faces da liberdade. O argumento central da sua análise se estrutura a partir da questão inevitável de que “a liberdade individual necessita ter uma expressão intersubjetiva e institucional para sua efetiva realização”.

A teoria do reconhecimento demanda que as relações intersubjetivas, com interatividade recíproca, estejam presentes na raiz das teorias da liberdade de cunho social, cujo objetivo é a crítica e a superação das propostas que restringem a liberdade à dimensão individual e autorreferente, restrita ao âmbito normativo das teorias da justiça e ao formalismo jurídico.

A perspectiva da necessidade do reconhecimento pelo outro e, também as consequências da ausência ou mesmo da negação de tal reconhecimento, estão presentes no republicanismo neoateniense de Arendt, no comunitarismo de Taylor e no republicanismo neorromano de Pettit, mas é em Hegel e na reatualização de seu conceito de liberdade, empreendido por Honneth, que o tema assume maior clareza e profundidade, na medida em que a reconstrução normativa, proposta pelo filósofo, passa a “considerar as instituições e práticas sociais, destacando aquelas que permitem considerar a constituição da liberdade como um bem socialmente compartilhado e que possuem valor normativo”. Para Honneth, a luta por reconhecimento perpassa as relações afetivas, as reinvindicações de direitos e a busca pela estima social e, a sua ausência nessas esferas deprecia as identidades individuais, implicando na luta por reconhecimento.

As faces da liberdade e a teoria do reconhecimento, de Cesar Ramos, é um trabalho filosófico estimulante, resultado de uma pesquisa acurada, que se destaca pelo tratamento crítico e refinado do objeto de análise e pela elegância da sua escrita. O livro se apresenta como uma importante referência na filosofia política e merece ser lido e discutido por especialistas, mas também despertará o interesse dos leitores com apreço pelo tema da liberdade.

O livro está disponível na versão impressa e a PUCPRess está providenciando também a versão eletrônica (e-book), revisada pelo autor.

Jairo Marçal – Centro Universitário UniBrasil, Curitiba, PR, Brasil. Mestre (UFPR) e doutorando (PUCPR) em Filosofia Política. E-mail: jairomarcal@gmail.com

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Os gêneros do discurso – BAKHTIN (B-RED)

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. 164p. Resenha de: BRAIT, Beth. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.2 São Paulo May./Aug. 2017.

Por que determinados textos, literários ou não, comportam mais de uma boa tradução, dentro de uma língua, sem que a ordem de aparecimento desqualifique a anterior? E se pensarmos num mesmo tradutor, o que justificaria a (re)tradução? Evidente que as respostas são muitas e vão depender, necessariamente, da maneira como se considera a passagem de um texto de uma língua a outra. Se, por exemplo, compreendermos a tradução como uma relação singular, estabelecida entre um texto de partida e um contexto de chegada, implicando modos de ler/reler uma obra e seu autor, será possível considerar não somente as idiossincrasias do tradutor criterioso que se volta mais de uma vez para um mesmo texto, e que com sua lupa persegue as minúcias estilístico-significativas do diálogo aí estabelecido entre duas línguas, duas consciências produtivas e em tensão, mas também, a possibilidade de reconhecer singularidades do tempo-espaço em que as traduções e (re)traduções acontecem. O novo contexto de recepção envolve, ao mesmo tempo, uma tradição temporal e espacial de estudos a respeito do autor/obra/tradução e a possiblidade de conferir ao novo trabalho do tradutor, ao texto de origem e à (re)tradução um estatuto diferenciado das manifestações anteriores.

Assim deve ser compreendido Mikhail Bakhtin: os gêneros do discurso, livro que chegou ao leitor em 2016, representando ganhos e significados especiais para os estudos bakhtinianos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido por suas importantes traduções literárias e por ser um dos responsáveis pela existência de Mikhail Bakhtin em língua portuguesa, retoma dois textos por ele traduzidos diretamente do russo e publicados em 2003 na coletânea Estética da criação verbal – “Os gêneros do discurso” e “O problema do texto na linguística e nas outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, este último renomeado como “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” – e a eles acrescenta dois inéditos – “Diálogo I. A questão do discurso dialógico e Diálogo II”, publicados pela primeira vez na Rússia em 1997.

Sem dúvida, esse evento tradutório, que interliga versões pontualmente modificadas de dois textos que, juntamente com outros do pensador russo, são centrais para a compreensão dos conceitos de gênero discursivoenunciado, texto, cadeia comunicativa, cadeia da comunicação discursiva, campos da comunicação cultural, cadeia histórica da cultura, deixa os estudiosos entusiasmados por ao menos duas razões. Pela estética das traduções de Paulo Bezerra, produto do reconhecido rigor acadêmico-científico, pautado na ética da pesquisa, sempre atento ao estado da arte de suas traduções e ao estado atual do conhecimento dos escritos do autor de Problemas da poética de Dostoiévski, notadamente na Rússia, onde vai buscar e conferir fontes. E pela chegada de dois novos escritos, voltados para diálogo, outra grandeza essencial na reflexão teórico-filosófica bakhtiniana que, como afirma Bezerra, “mesmo sendo textos preparatórios de ‘Os gêneros do discurso’, discutem questões congêneres não contempladas nessa obra e trazem rascunhos de projetos teóricos que o mestre pretendia desenvolver, revelando sua permanente preocupação com o aprofundamento e uma maior abrangência de sua teoria do discurso em vários campos das humanidades” (p.151).

Portanto, o gesto que implica (re)tradução acrescida de tradução de inéditos acontece a partir de um retorno do tradutor-pesquisador às fontes russas, aí consideradas a edição de Estética da criação verbal (Moscou, Iskusstvo,1979, organização e notas de Serguei Botcharov) e o tomo 5 das Obras reunidas de M. M. Bakhtin, (Moscou, 1997, volume organizado por Botcharov e Liudmila Gogotichvíli). A consequência imediata, altamente positiva para o leitor brasileiro e para o conhecimento do pensamento bakhtiniano, é uma decisão editorial que repensa a natureza dos textos reunidos em Estética da criação verbal, obra publicada na Rússia após a morte do autor.

Bastante conhecida no Brasil, essa coletânea, que teve uma primeira tradução feita a partir da edição francesa (Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 1992), tem desde 2003 tradução feita por Paulo Bezerra, diretamente do russo. E é nela que se encontram os textos “Os gêneros do discurso”, “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, assim como diversos outros trabalhos produzidos em diferentes momentos por Mikhail Bakhtin. Como afirma Paulo Bezerra, “não é um livro tematicamente uniforme; são três livros em um, todos diferentes entre si pelos objetos de análise e reflexão, além de dois textos sobre Dostoiévski e outros quatro sobre diferentes temas de ciências humanas” (p.151). Ou seja, trata-se de um conjunto que, de fato, poderia, por um critério de relação e coerência entre obras, ser desmembrado e, com isso, oferecer ao leitor de hoje um panorama mais esclarecedor da maneira como alguns constructos do pensamento bakhtiniano foram aparecendo, sendo trabalhados e retrabalhados, evidenciando seu papel, função e participação na edificação da arquitetônica que rege e abriga o conjunto desse forte pensamento sobre linguagem.

E é justamente essa perspectiva que, considerando a possibilidade de agrupamentos coerentes dos trabalhos presentes em Estética da criação verbal, apresenta Os gêneros do discurso como o primeiro de quatro volumes previstos. Nesse sentido, o leitor se pergunta: “E qual é a coerência temática que dá conta, nesse primeiro volume, dos dois trabalhos conhecidos somados aos dois inéditos?”.

Os estudiosos interessados em alguns dos fios condutores do pensamento bakhtiniano têm procurado estabelecer, dentre outras coisas, a relação existente entre os conceitos de enunciado (por vezes enunciado concreto ou mesmo enunciação em algumas traduções), textodiscurso, gênero do discurso, cadeia da comunicação discursiva, campos ou esferas da comunicação cultural, sem dúvida pilares da construção reflexiva bakhtiniana, voltada para a linguagem nas artes e nas ciências humanas e, especialmente, a maneira como esses elementos constituem unidades e elos para a compreensão do processo vivo da comunicação humana, das cadeias discursivas.

Essa busca leva, necessariamente, aos dois trabalhos produzidos por Mikhail Bakhtin nas décadas de 50 e início de 60, do século passado, aproximados de forma muito pertinente nesse volume: “Os gêneros do discurso” (1952 – 53) e “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” (1959-61). Neles, os conceitos mencionados são apresentados, tematizados, discutidos e inseridos na construção de uma perspectiva dialógica de concepção e abordagem da linguagem, bem como interligados numa interdependência que evoca outros escritos de Bakhtin, caso de “O discurso no romance” (texto iniciado em 1929 e concluído entre 1934 e 1936, publicado pela primeira vez na União Soviética em 1972).

A tentativa constante de compreensão do significado desses constructos fundamentais para a perspectiva dialógica da linguagem, caso de gênero do discursoenunciado, texto fica facilitada pela organização desse primeiro volume do desmembramento de Estética da criação verbal, justamente pela forma como discurso, gênero e enunciado se articulam em relação a texto e vice-versa.

Em “Os gêneros do discurso” encontra-se um momento da concepção bakhtiniana de linguagem que sistematiza a importância da noção gênero para a compreensão da língua em movimento, plena de vida e de mobilidade, flagrada no diz-que-diz do burburinho da vida e da cultura, da vida na cultura, quer artística ou científica, do enunciado como unidade dialógica de tensão entre um/outro, entre ao menos duas consciências, entre identidades/alteridades, entre a língua/unidade, preservada a duras penas pelas forças centrípetas, e a língua/plural, multifacetada, plenamente realizada pelas forças centrífugas provocadoras do plurilinguismo. E é precisamente por essa dualidade – unidade/unicidade – que em “Os gêneros do discurso” encontra-se a importante discussão sobre as realidades representadas pela oração, enquanto unidade/modelo do conjunto de possiblidades de um sistema, e o enunciado, oral ou escrito, proferido de forma concreta e única, por integrantes das diferentes esferas da atividade humana.

Se gênero do discurso é um tema que acompanha o pensador russo ao longo de toda a sua vida, podendo essa presença ser vivenciada em Problemas da poética de Dostoiévski e em O discurso no romance, por exemplo, a concepção de texto como unidade semiótico ideológica também se reitera ao longo do conjunto da obra, ganhando discussão específica em “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, no qual se pode ler: “[…] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. […]. Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido […]. Esse segundo elemento (polo) é inerente ao próprio texto, mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo)” (p.74-75).

O trecho em destaque indica duas dimensões implicadas, como também se pode observar em Os gêneros do discurso, que são evocadas como condição de existência de um texto: a materialidade sígnica ou dimensão semiótica, que o constitui e o faz participante de um sistema; a singularidade que lhe é conferida a partir de sua participação ativa e efetiva na cadeia da comunicação discursiva da vida em sociedade. Essa combinatória constitutiva de elementos dados (sistema) e elementos criados (linguagem em uso) possibilita a um texto ser reconhecido como pertencente a um sistema (linguístico, pictórico, musical, etc.), e, ao mesmo tempo, como portador de valores, de posições que garantem a produção de sentidos, sempre em confronto com outras posições e valores presentes numa sociedade, numa cultura. De acordo com Bakhtin, “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (p.71).

Os dois inéditos, por sua vez, tem um sabor muito especial. O título evoca uma das peças-chave da teoria bakhtiniana, que é o diálogo, concebido como constitutivo da linguagem humana e não apenas como estrutura de conversa. Escritos antes da versão definitiva de “Os gêneros do discurso”, “Diálogo I” (1950) e “Diálogo II” (1952), publicados em 1997 no volume 5 das Obras de Bakhtin (Editora Rússkie Slovarí), certamente surpreendem, conforme afirma Bezerra:

À primeira vista são rascunhos do que viria a ser o texto final de “Os gêneros do discurso”, porém, uma leitura atenta mostra que Bakhtin vai além do livro projetado. […] Em toda a concepção bakhtiniana a linguagem humana é vista sob um prisma dialógico, mas nesses “diálogos” atribui-se à própria língua uma natureza dialógica, o que, a meu ver, é uma novidade na teoria linguística de Bakhtin (p.111).

A esse coerente conjunto, Paulo Bezerra ainda acrescenta um posfácio, a bem da verdade um substancioso ensaio de quase vinte páginas, sugestivamente intitulado “No limiar de várias ciências”, por meio do qual caracteriza a coerência do quarteto, enquanto composição teórica interligada por uma das unidades temáticas própria do pensamento bakhtiniano, relacionando-a com outros trabalhos do autor, discutindo a importância desse conjunto e auxiliando, neste momento dos estudos bakhtinianos, a compreensão dos complexos meandros de “Os gêneros do discurso”, trabalho nem sempre pensado em suas reais especificidades, em consonância com outros trabalhos de Mikhail Bakhtin. E aí a (re)tradução se justifica, ganhando corpo e lugar na cultura brasileira.

Beth Brait – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, São Paulo, Brasil; CNPq-PQ nº. 303643/2014-5; bbrait@uol.com.br.

História Militar. Rio de Janeiro, Edição 21, Ano VIII, Maio de 2017.

Edição 21 (Ano VIII, Maio de 2017)

  • Viva força ou guerra lenta? As ideias econômicas e estratégicas de Luiz Álvares Barriga de 1634 e 1635 sobre a expulsão dos holandeses de Pernambuco
  • Benjamin Nicolaas Teensma
  • Águas da discórdia: As tensões diplomáticas entre o Brasil e o Paraguai pelo controle dos rios da bacia do Prata (1840-1862)
  • Leonardo da Costa Ferreira
  • A associação entre o vetor militar e a intelectualidade para a construção da identidade nacional brasileira no primeiro quartel do século XX
  • Misael Henrique Silva do Amaral
  • A construção da identidade marinheira: a prática da liderança no ambiente naval
  • Marcello Felipe Duarte
  • O Estado Imperial e a Guerra: reflexões sobre as relações intraestatais e a gestão dos conflitos no Prata durante o Segundo Reinado (1850-1876)
  • Renato Jorge Paranhos Restier Junior
  • Micropolítica da guerra e biopopoder: da formação ao racismo de estado
  • Bruno de Seixas Carvalho
  • Duas visões militares sobre a Campanha de Canudos
  • Matheus Boina Coltro
  • Livro em destaque: “Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654”, de Evaldo Cabral de Mello

O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política – BOMFIM (RETHH)

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte, Puc/Minas, 2013 [1930]. 486 p. Resenha de:  FERREIRA, Clayton José. Epistemologia, Historiografia e História no ensaio “O Brasil na História, de Manoel Bomfim”. Revista Expedições: Teoria da História e Historiografia, Morrinhos, v. 8, n. 2, mai./ago. 2017.

Em sua extensa obra, Manoel Bomfim (1868-1932) produziu quatro ensaios de cunho histórico, respectivamente: A América Latina: males de origem (1905), O Brasil na América: caracterização da formação brasileira (1929), O Brasil na história: deturpação das tradições, degradação política (1930) e o Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1931). Nestes livros procura descrever e compreender grande parte da história brasileira através das mais diversas fontes documentais e da obra de diversos historiadores nacionais e internacionais os quais tiveram a história brasileira como objeto de estudo. Do mesmo modo, elabora uma crítica historiográfica, debatendo questões sobre a escrita da história.#

Educador, historiador, médico e psicólogo, nasceu na cidade de Aracaju, estado de Sergipe, porém, viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde completou sua formação superior em medicina, exerceu cargos públicos, participou da fundação de jornais e revistas e se tornou professor. Escreveu alguns trabalhos dedicados a educação escolar, tal qual o livro de leitura escrito em coautoria com Olavo Bilac, Através do Brasil (1910), utilizado até a década de sessenta em muitas escolas, tendo sua última, das muitas edições, datada do ano de 2000. Sua obra adquiriu, nas ultimas décadas, uma ressignificação diante da relevância em nossa contemporaneidade de temáticas abordadas pelo autor como, por exemplo, a discussão em torno da potencialidade na multiplicidade étnica e a importância da ampliação da educação básica. Os textos de Bomfim anteriores a 1905, tal qual o discurso O progresso pela instrução proferido em 1904 e, posteriormente publicado, o artigo no jornal A República em sete de Janeiro de 1897, intitulado Dos Sistemas de ensino, e o discurso pronunciado em 1906 e intitulado O respeito à criança, também publicado, possuem um extenso material a respeito da sua preocupação com a educação no Brasil. Dada a atualidade de muitos temas trabalhados em sua obra, seu trabalho tem sido revisitado e novas edições de seus textos têm sido publicadas nas ultimas décadas, tal qual a nova edição de 2013 do livro resenhado.#

O ensaio histórico O Brasil na História de Bomfim, possui uma importante erudição teórica sintonizada a muitos dos principais historiadores, filósofos e sociólogos de sua contemporaneidade, além da análise de um grande número de fontes documentais. O livro de Bomfim se inicia com uma importante introdução a qual procura esclarecer sua compreensão epistemológica da história. Neste texto, intitulado “orientação”, é abordada a relação ontológica do ser humano com a história. Tanto em nossa existência individual como social procuramos possíveis estímulos para nossas ações de modo a norteá-las e potencializá-las. Impulsos parcamente constituídos podem resultar em constantes escolhas infrutíferas, na estagnação da ação e na instabilidade. Como a espécie humana e seu sucesso se estabeleceram através da capacidade de se organizar e agir socialmente (perspectiva construída a partir de sua leitura de Darwin), estímulos os quais projetam uma melhor sociabilidade orientam a atuação humana rumo a aquilo o qual se considera progresso em uma determinada temporalidade.#

Portanto, sentimentos socializadores ou, a preocupação ética, são constantemente abordados na busca por estabilidade dos conflitos humanos. Tais estímulos para a busca por orientação da ação são elaborados, individualmente e comunitariamente, através do compartilhamento de determinadas experiências históricas que estão centralizadas na história, na memória, na identidade e na tradição. Apesar da distância moderna entre passado e presente, as experiências humanas, necessariamente são, com maior ou menor intensidade, espaços para a constituição de alguma reflexão e orientação do agir. Dito isto, Bomfim aponta a necessidade de um esforço historiográfico que siga ao encontro desta constituição ontológica do humano para que o conhecimento histórico profissional e científico ofereça possibilidades de reflexão sobre o norteamento da realização humana, enfrentando os aspectos abstratos e subjetivos da experiência, porém, consciente da incapacidade da disciplina em oferecer prognósticos.#

A partir deste argumento, irá produzir uma crítica direcionada a historiografia nacional a qual, segundo Bomfim, possui uma metalinguagem onde se narra a história brasileira como o lugar da decadência, da desordem e da incapacidade para o progresso. Para o autor, o passado brasileiro (ou daqueles os quais viveram no território o qual se tornou o Brasil) evidencia uma profunda competência para o desenvolvimento. Se o saber histórico pode auxiliar na reflexão e orientação, já que necessariamente ou, para o autor, “instintivamente” os indivíduos se relacionam com o passado, a educação está na centralidade de seus argumentos para mediar e capacitar uma relação mais sofisticada no interior das experiências de modo a produzir uma sociabilidade melhor organizada, de ampliar o que Bomfim chama de “consciência” dos motivos para a ação frente a concepções de progresso historicamente constituídas. Uma historiografia centrada em certa hermenêutica a qual desestimula e retira a potencialidade das experiências passadas e desvia dos objetos históricos os quais demonstram outras possibilidades, fundamentava parte da constituição de uma memória e tradição desencorajadoras frente ao ideal de progresso, atribuindo crédito à falácia da incapacidade civilizacional do brasileiro.#

O primeiro capítulo retoma e desenvolve a relação entre a tradição, a memória e a historiografia no interior de uma sociabilidade ativa sob o signo da nacionalidade. Para o autor, a partir da modernidade, a compreensão coletiva a respeito do passado está diretamente associada a capacidade confiante e engajada em se produzir ideais comunitários de progresso. A aptidão para produzir e direcionar a ação coletiva produz uma maior disposição à solidariedade entre os indivíduos e, portanto, situa-se no interior da sedimentação de valores ético-morais. Seria necessária uma historiografia atenta a esta compreensão teórica, já que ai se encontra o registro mais sofisticado e preciso do passado. Após estas reflexões, Bomfim quer deixar claro que sua proposta historiográfica, mesmo enquanto crítica à epistemologia da disciplina, mantem-se atrelada à produção do saber histórico através do método, da representação do passado fundada no maior rigor e exatidão possível, e não em uma hermenêutica a qual apresente uma história irrealista, idealizada.#

Exatamente para tal aproximação do real, entende ser de vital importância que se tematize aspectos subjetivos entre as experiências passadas e sua contemporaneidade já que tais aspectos são partes incontornáveis da existência. Ainda no interior deste argumento, critica severamente a expectativa descabida de objetividade, apontando que, mesmo através de procedimentos criteriosos, ainda assim todo saber será produzido no interior de valores morais e de identidade do pesquisador. Tais vínculos entre a história e a potencialização da sociedade frente a projetos de progresso poderiam ser observados na historiografia realizada naqueles países considerados como os mais avançados. No entanto, Bomfim aponta criticamente esta abordagem quando ela produz a representação imprecisa de um passado, fantasiando e glorificando a história em um esforço de legitimação de uma equivocada superioridade hierárquica, imputando a outros países a subordinação e dependência, calcadas falsamente em argumentos de inferioridade da formação histórica, social e étnica. O que é considerado progresso civilizacional na modernidade diz respeito a uma complexa relação de saberes e técnicas produzidos pelos mais diversos povos no tempo, o que tornava esta noção hierárquica um esforço estratégico para a realização de uma política internacional favorável.#

No segundo capítulo é tematizada parte das abordagens históricas produzidas em outros países a respeito do Brasil como uma causa externa da deturpação da história brasileira, enquanto que a primeira causa interna estaria associada ao que chama de “Estado português bragantino”. Estas reflexões são voltadas, neste capítulo, com uma especial atenção aos historiadores, sociólogos e viajantes franceses os quais produziram trabalhos sobre o Brasil. Para o ensaísta, grande parte destes autores (Jean de Montlaur, Edmund de Goucourt, Renan, Koster, Gilbert Chinard, Villegagnon, Léry, Thevet, Febvre, Chateaubriand, Gauthier, Flaubert, etc.) teriam produzido muitos dos seus trabalhos buscando confirmar preconceitos e conjecturas, se utilizando de noções teóricas deturpadoras da realidade brasileira (para Bomfim, especialmente o positivismo de Comte), buscando o exótico e produzindo excessivas generalizações; escolhas inadequadas para analisar e compreender experiências divergentes do pesquisador. Como a intelectualidade francesa possuía grande prestígio, suas obras acabavam por impactar negativamente na compreensão do Brasil pelos brasileiros, deturpando principalmente a história nacional. Flexionando este argumento frente a alguns escritores, Bomfim traça grande elogio à História do Brasil (1810) do historiador inglês Southey, o qual teria produzido na grande maioria de seu livro uma sofisticada e atenta análise a qual associava as dicotomias da objetividade e subjetividade valorizadas pelo sergipano.#

Quanto à administração bragantina, esta teria estabelecido um regime centralizado que incapacitou a realização do que Bomfim compreende como uma tradição a qual poderia culminar com uma política republicana; tradição desenvolvida devido a anterior frouxidão das capacidades administrativas da metrópole, resultando em uma organização no território brasileiro relativamente autorregulada. As sublevações, realizadas até então e a partir deste momento contra o Estado, teriam sido compreendidas como resultados de uma população desordeira, sem autogoverno, incapaz frente aos ideais civilizacionais modernos, categorizadas sempre como insurgências e inconfidências e desvalorizando os movimentos sociais no registro da historiografia. No entanto, para Bomfim, se tratavam de legitimas manifestações contra o Estado, de grande potencialidade para a politica republicana, demonstrando ampla capacidade para os ideais progressistas de sua contemporaneidade.#

O terceiro capítulo dedica-se a mediação e crítica de parte da historiografia nacional. Aqui, muitos dos historiadores fortemente associados aos Estados monárquicos desde 1808 são apontados como a segunda causa interna da deturpação da história brasileira. Tais autores, especialmente Varnhagen, teriam repetido, no intuito de legitimar a política centralizadora do Estado, os argumentos os quais imputavam a população uma desordem e incapacidade atávica. Em sua crítica a Varnhagen, há uma forte desaprovação de seus procedimentos para o levantamento de fontes e dados, métodos, fundamentos hermenêuticos e teóricos. Como sua contrapartida, aponta Capistrano de Abreu como historiador ideal, de procedimentos científicos, o qual associava simultaneamente em seu trabalho fundamentos objetivos e subjetivos. Há também uma análise elogiosa a respeito do livro História do Brasil (1627) de Frei Vicente do Salvador como o primeiro e mais valoroso esforço de produção de uma história brasileira, procurando realocá-lo como verdadeiro patriarca da história nacional no lugar de Varnhagen.#

A crítica a respeito do argumento que atribui à monarquia Bragança a unidade territorial é a primeira questão a ser debatida no quarto capítulo. Neste ponto, é desenvolvida com maior densidade a compreensão de que havia certa frouxidão do Estado até a transferência do centro governamental para a até então colônia americana, o que gerou certa auto regulação administrativa a qual tendia à constituição de uma tradição republicana. Admitindo as distâncias e diversidades dos povoamentos ralos, critica especialmente o pressuposto a respeito da unificação atribuído a monarquia no livro Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. Bomfim defende a existência de certa solidariedade entre a maior parte dos povoados na colônia, surgindo e se fortalecendo nas transações internas, nos movimentos de defesa territorial contra os holandeses e franceses, na insatisfação contra o Estado e, ainda, durante a mediação entre os interesses da colônia e os holandeses, franceses, ingleses. Segundo o autor, alguns documentos evidenciam tal sentimento ao tratarem suas questões locais apontando, para além da localidade, certo sentimento de unidade.#

O capítulo quinto se inicia através de um debate teórico a respeito dos conceitos de patriotismo e nacionalismo. Dissertando no interior do vínculo entre indivíduo e sociedade, o ensaísta discorre quanto às possibilidades de estabelecimentos de sentimentos socializantes a partir do assentamento das comunidades e seus antagonismos estabelecidos a respeito de outros grupos. A partir deste fundamento, é desenvolvida e tese de que o estabelecimento de certa tradição, de sentimentos de solidariedade e embates entre as comunidades coloniais e os holandeses, franceses, além da defesa de interesses contra os ingleses e certo hábito de se portar contra os portugueses, sedimentaram lentamente certo sentimento de identidade na colônia portuguesa americana. Tais sentimentos seriam observáveis em alguns documentos, na literatura e na divergência encontrada nas manifestações contra o Estado português.#

O capítulo de número seis da continuidade ao argumento onde o autor defende a unidade territorial brasileira como resultado de sentimentos agregadores, surgidos entre as comunidades da colônia. Também da sequência a crítica direcionada a historiografia a qual associa unidade territorial a monarquia, apontando nestes trabalhos uma metodologia pouco criteriosa, altamente associada à política do império. Para o autor, a história do Brasil evidencia, no geral, tipos sociais fortes e ativos, como os sertanejos e bandeirantes, além de uma constante resistência aos abusos do Estado. Há ainda, certo caráter de “tranquila bondade” atávico ao brasileiro, o qual se concretizou desde a experiência colonial. Em poucos momentos surgiram movimentos de separação, e quando houve, estavam associados a uma administração tirânica. Segundo o ensaísta, o processo de independência, segundo historiadores e documentos do período, demonstra a adoção do sistema imperial como uma rápida resposta para evitar o que se considerava uma real possibilidade de rompimento incisivo entre o Brasil e a corte portuguesa: a implantação de uma república. Tal processo tornaria saliente, mais uma vez, certa tradição republicana.#

Bomfim aborda no capítulo sete, parte da história portuguesa do século XVI até a segunda metade do século XVII, principalmente através da obra do historiador Oliveira Martins. Portugal é compreendido como um grande reino, de importante atividade politica, de desenvolvida capacidade mental e nacional o qual teve suas tradições e política degradadas no decorrer de suas crises econômicas. Este processo teria acirrado a maior exploração de seus domínios, produzindo o mesmo declínio nos territórios americanos do reino. O oitavo capítulo da continuidade as questões do anterior. Aqui, o sergipano da foco maior a atividade mercantil de Portugal, partindo do seu auge, e relacionando sua crise aos decaimentos das instituições e do caráter nacional do português, vulgarizando certo comportamento ganancioso e cobiçoso. Em um segundo momento o autor trata dos mesmos problemas na corte da família Bragança e de uma consequente má administração e política internacional.#

O nono capítulo apura o entendimento do autor acerca da deturpação das tradições e da sociabilidade no Brasil a partir do começo do século XVIII como consequência da crise económica e política portuguesa. Neste sentido, o autor narra e expõe seu discernimento quanto as ações da administração e comercialização portuguesa em sua colônia americana. Entre eles estão os governos de Gregório de Castro Morais e Francisco de Castro Morais e as invasões ao Rio de Janeiro realizada pelos corsários franceses Jean François Duclerc e René Duguay-Trouin, a cobiça dos mercadores portugueses apontada em episódios como na expulsão em 1643 de comerciantes em Assunção devido a sua suposta cupidez, nos problemas entre os proprietários de terra e os negociantes reinóis os quais culminaram na “Guerra dos Mascates”, na proibição do cultivo da vinha e do trigo para não prejudicar a agricultura portuguesa, a cobrança dos impostos, entre outros.#

No décimo capítulo o autor procura entender o processo de independência do Brasil a partir do que chama de movimentos nacionalistas. Muitas vezes conhecidos como movimentos nativistas e movimentos emancipacionistas, tratam-se de conflitos locais ocorridos em sua maioria entre os séculos XVII e XVIII, os quais, para Bomfim, poderiam atribuir possibilidades de sentido para o surgimento de algum sentimento socializante, de solidariedade e alguma unidade entre as comunidades espalhadas no território da colônia portuguesa nas américas. Através do apoio de documentos oficiais e de comerciantes, atas, relatos, cartas e outras fontes procura-se apontar o surgimento de alguma afetividade nacionalista, especialmente nos embates ocorridos em Minas Gerais de 1707 a 1709 e em Pernambuco em 1710 a 1711, e em 1917. Estes momentos seriam evidência da capacidade civilizacional do brasileiro, intrinsecamente fundamentada na história, deslegitimando e desmistificando os argumentos europeus os quais diagnosticavam um insucesso atávico as populações da América latina através de argumentos a respeito da mestiçagem, do clima tropical e de uma suposta história inexpressiva.

Tal sociabilidade e tendências a uma civilidade e políticas republicanas além de um maior desenvolvimento civilizacional, aspectos de uma tradição em formação, teriam sido lentamente cerceadas com a administração do Estado português e a posterior monarquia instaurada na independência. Este é o problema central dos capítulos onze e doze, o primeiro se dedicando de 1808 até a independência, e o segundo aos governos de D. Pedro I e D. Pedro II. No processo de independência teriam sido coibidas as potencialidades das experiências constituídas no passado através do pacto entre a corte bragantina e as oligarquias, estabelecendo um regime político de certa incompatibilidade às tradições locais, dando continuidade a centralização política estabelecida desde 1808. Este processo teria introduzido o hábito em se produzir funcionários administrativos “ineptos, corrompidos, prevaricadores, tirânicos”.#

Bomfim conclui que a história do Brasil revela grandes potencialidades para o progresso nas populações espalhadas pelo território. No entanto, estas competências foram constantemente reprimidas pelo descaso dos governos quanto às questões sociais, a sua instrução e educação, em favor de uma exploração comercial sustentada pelo argumento da necessidade da ordem, o que explicava o atraso frente aos ideais de progresso durante a Primeira República. Dito isto, tal atraso não poderia ser explicado por uma suposta condição determinista ou étnica, atávica aos americanos, fruto de uma cientificidade associada a identidade europeia e à políticas imperialistas: a história revelava a aptidão do brasileiro frente as adversidades. Grande parte da historiografia do século XIX teria se esforçado por legitimar a noção de que o brasileiro é um desordeiro e incapaz o qual apenas poderia manter-se unificado, como povo e território, através do regime monárquico, desvalorizando parte indispensável da história para o estímulo da ontológica orientação humana através das experiências do passado.#

O Brasil na História compõe um importante exemplar historiográfico de um célebre momento da intelectualidade brasileira. No final do século XIX e início do XX foi produzida uma erudita e específica prática de escrita tendo a história como foco e o ensaio como gênero textual destacado, elaborando o espaço para a convivência do rigor, do método e da ciência simultaneamente a subjetividade, a afetividade, a elucubração. Para além de uma compreensão particular de determinados fenômenos históricos, trata-se de um trabalho o qual possibilita a melhor apreensão da historicidade da década de 1920, da Primeira República brasileira e de sua comunidade letrada.

Clayton José Ferreira – Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel e ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: claytonjf15@hotmail.com.

Revoltas e Revoluções no Século XX | Temporalidades | 2017

“– Senhor, o povo tomou a Bastilha.

– É uma revolta? – Não, Senhor, é uma revolução.”

O diálogo entre o Duque de Liancourt e Luís XVI, na manhã do dia 15 de julho de 1789, nos remete diretamente às questões do presente dossiê: Revolta e Revolução. Ao longo dos últimos dois séculos, ambas foram constantes. Os séculos XIX e XX podem ser descritos como os séculos das revoltas e revoluções.

A ideia da revolta sofreu poucas modificações ao longo deste período. Grosso modo, pode ser descrita como ação de contestação de um estado de coisas ou autoridade, uma insurreição, um levante. Suas marcas seriam a contestação que, mesmo quando vitoriosa, não objetiva organizar uma nova ordem social ou sistema político pelo recurso da violência. Neste sentido, marcaria mais um descontentamento, uma recusa de uma situação dada e menos uma proposta de transformação ou de futuro. O que não nos autoriza a considerá-las como irracionais ou como não informadas por uma lógica de ação. Em “A economia moral da multidão”, Thompson demonstra a existência de noções legitimadoras nos motins de subsistência na Inglaterra do século XVIII.[1] A suposição e o resgate das convicções e concepções que informavam as revoltas também se fazem presentes nos estudos de Rudé e Hobsbawm [2] e são constitutivos da chamada História social.[3] Leia Mais

Genealogias possíveis: arquivo, exibição e circulação | MODOS. Revista de História da Arte | 2017

O terceiro Encontro do Grupo MODOs, realizado na Universidade Estadual de Campinas em setembro de 2016 com apoio do FAEPEX e do Museu de Artes Visuais da Unicamp, teve como tema Genealogias possíveis: arquivo, exibição e circulação. O evento buscava, como o dossiê aqui presente, refletir sobre as possibilidades de construir outras filiações, estabelecer afinidades antes impensadas e nem sempre legitimadas pela história da arte. Aos convidados presentes no evento juntaram-se outros pesquisadores, que atenderam nossa chamada pública, para compor o dossiê homônimo. Buscamos, com este primeiro dossiê da revista debater outros sentidos metodológicos em circulação, considerados como desafios que exigem diferentes abordagens conceituais e, ao mesmo tempo, uma atenta reflexão sobre as especificidades da história da(s) arte(s). Campos de poder em disputa, referências cruzadas, sistemas e conceitos em trânsito, sistematizações em xeque, alianças institucionais inusitadas, apropriações e ressignificações diversas ampliaram o campo da história da arte tradicional e tornou-se urgente (re)discutir suas bases conceituais e matéria constitutiva. Nesse cenário, o dossiê busca debater uma de suas mais importantes táticas: a constituição de genealogias. Leia Mais

300 años: masonerías y masones, 1717-2017 – ESQUIVEL et al (REHM)

ESQUIVEL, Ricardo Martínez; POZUELO, Yván; ARAGÓN, Rogelio (Ed). 300 años: masonerías y masones, 1717-2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. Resenha de: SÁNCHEZ, José-Leonardo Ruiz. Revista de Estudios Históricos de la Masonería. San Pedro, Montes de Oca, v.9 n.1  May./Dec. 2017.

Con el título de Migraciones sale a la luz el primero de los cinco volúmenes que, con ocasión del tercer centenario del nacimiento de la masonería especulativa, constituirán la colección sobre la historia de dicha institución en la que se insertan, además de este, otros volúmenes dedicados a los Silencios, las Artes, la Exclusión y el Cosmopolitismo. Su edición ha sido fruto de la actividad desplegada por la red de investigadores en su mayoría agrupados en torno a la Revista de Estudios Históricos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña (REHMLAC+) y la han impulsado comprendiendo la necesidad de luchar contra los mitos y leyendas que se cernían sobre la historia de esta organización, provenientes tanto de quienes la aprecian y están interesados en ella como de sus detractores. En este primer volumen los autores de los distintos trabajos abordan no solo la realidad de la masonería en esa nueva Europa que surge alrededor de la revolución francesa y la nueva América que a partir de entonces se independiza, sino que también describe cómo las redes masónicas de entonces fueron un componente clave de sociabilidad, de migración de ideas, que cimentó los fundamentos de esta nueva realidad por ambos continentes y que permite reconstruir y explicar el devenir histórico posterior.

El primero de los ocho trabajos de que consta el volumen está realizado por el profesor Ferrer Benimeli, fundador del CEHME y en la actualidad su Presidente de Honor; como es bien sabido fue pionero en abordar la temática desde la perspectiva europea y americana, con una dilatadísima producción historiográfica a sus espaldas contribuyendo, con rigor académico, a desmontar en su obra los estereotipos antimasónicos existentes hasta la fecha. En esta ocasión ha centrado su trabajo cronológicamente en el período que va desde las Cortes de Cádiz hasta la independencia de México, en el tránsito del antiguo al nuevo régimen, mostrando la utopía y realidad del liberalismo masónico, cuyo protagonismo hoy se replantea y está en gran parte por demostrar. El autor, haciendo uso de un prolijo conocimiento de los textos del momento a uno y otro lado del Atlántico, muestra cómo y cuándo se prefabricó ese pretendido protagonismo de la masonería; o la importancia que se le atribuyó a ciertos personajes de los que no sabemos con certeza si realmente fueron masones, realidad que se constata en una literatura similar, tanto en la metrópoli como en México, donde también se asocian con los independentistas como Hidalgo. Todo ello no deja de sorprender cuando, lo que sí queda claro, es que las Cortes de Cádiz prohibieron la masonería en los dominios de la Corona española.

Eduardo Torres-Cuevas, director de la Biblioteca Nacional de Cuba “José Martí”, impulsor en el ámbito latinoamericano y caribeño de los estudios sobre la masonería al poner en marcha en 2007 la primera red académica de investigadores sobre la temática, además de gran conocedor de la historia de Cuba, se extiende sobre la instalación de la orden en la Isla y el valor que tuvo para la formación y desarrollo del país. Tras establecer distintas etapas, de la primera de ellas -correspondiente al siglo XVIII- informa de los planes ingleses para fijar logias en la Isla dentro de un plan para el control de La Habana; durante su ocupación por los ingleses, algunos de ellos eran masones, pero nunca criollos. En realidad, los primeros talleres existentes en Cuba a partir de 1798 no lo fueron por influencia de la Gran Logia Unida de Inglaterra sino, paradójicamente, en relación con el Gran Oriente de Francia; el hecho está en relación con el traslado a la mayor de las Antillas de numerosos franceses tras el levantamiento de esclavos en Santo Domingo, incorporándose a los trabajos -ahora sí- algunos criollos y españoles; la primera logia creada en Cuba, en 1804, lo hizo con patente de la Gran Logia de Pensilvania, emigrando en su mayoría tras el movimiento anti galo con la guerra de la independencia. Algo más tarde se constituirían en la Isla los dos cuerpos masónicos, yorkinos y escoceses: los primeros, con connotaciones liberales, formado por criollos, pretendieron influir en el movimiento libertador de México y Cuba; y los segundos, vinculados al Gran Oriente de Francia, mayoritariamente oficiales y comerciantes españoles. Tras un periodo de inactividad, desde comienzos de la década de 1830 hasta 1857 (entonces los cubanos entraron en instituciones masónicas extranjeras, de Estados Unidos, México y Francia), nació la Gran Logia Colón (sin conexión con España, donde no existía masonería) y el Gran Oriente de Cuba y las Antillas (de escaso recorrido, aunque fue en ella donde se gestó el movimiento independentista de 1868) si bien la verdadera reconstitución de la masonería cubana comenzó a partir de esa última fecha, apoyada por los cuerpos masónicos tanto de Estados Unidos como de España, sin que hubiese interferencias en lo político. Esta última masonería influyó en el pensamiento cubano pues buena parte de la intelectualidad, tanto autonomista como independentista, eran masones; tras la primera guerra muchos marcharon del país para sostener desde fuera la lucha por la independencia y se instalaron en cuerpos masónicos extranjeros, entre ellos José Martí. No obstante, el autor indica cómo el movimiento independentista de 1895-1898 no estuvo asociado a cuerpo masónico alguno aunque sí lo fueran sus tres principales figuras (Martí, Gómez y Maceo). Concluye apuntando que la masonería de Cuba contribuyó al desarrollo de las conciencias nacionales y patrióticas así como la cívica individual.

Por su parte Éric Saunier, se extiende sobre el espacio caribeño al plantearlo como enclave estratégico para comprender la masonería francesa y la lucha por el poder entre París y las provincias. Su estudio está centrado en el período cronológico que va desde finales del siglo XVIII a los años de los movimientos independentistas en América latina. Pone en relación la constitución de la masonería caribeña en la lucha de poder entre los altos grados de la de Santo Domingo a finales del XVIII y el control de la vida masónica cubana a comienzos del XIX; sitúa esa masonería caribeña en el contexto del combate entre obediencias francesas y anglosajonas en la zona; insiste en la necesidad de impulsar los estudios sobre las personas y las redes sociales para reconstruir la vida de los iniciados; y los pone en relación con el comercio establecido entre el gran puerto colonial de la Bretaña francesa de El Havre y el área del Caribe, especialmente con Santo Domingo y Cuba, que considera vital para explicar la pronta irrupción de la masonería en el Caribe, que pudo influir en las revoluciones de Portugal y Brasil de los años veinte y treinta.

Interesante el trabajo de Ricardo Martínez Esquivel, profesor de la Universidad de Costa Rica, director de REHMLAC+ y por tanto miembro de una de las mejores revistas académicas sobre este fenómeno. Siguiendo la estela marcada por Miguel Guzmán-Stein añade una visión totalizadora de la cuestión al entender que hablar de la masonería es, también, hablar de toda la sociedad. Su trabajo se centra en el presbítero católico Francisco Calvo, organizador de la primera logia en Costa Rica y alma del Centro Masónico Centro Americano (1865-1876) quien estuvo inmerso -a pesar de su condición eclesiástica- en distintos proyectos civilistas, de promoción de las libertades e inmerso entre la intelectualidad costarricense del momento, buena parte iniciada en la masonería, a cuyo desarrollo no fue ajena la fundación de la Universidad de Santo Tomás. A partir de ahí el autor se centra tanto en la actividad masónica como antimasónica centroamericana, que en Costa Rica tuvo un desarrollo tardío, y que en su opinión tuvo que ver más con un carácter asociativo que propiamente masónico, en el que participaron los ordenados como él, posiblemente más en relación con lo que era la tradición anglosajona que la latina. Cuando esta última se hizo más preponderante, tuvo que abjurar de su condición con lo que se inició el declive y cierre de todas las logias en 1876. Su proyecto regional pudo darse por concluido en 1899 cuando comenzaron a surgir las grandes logias nacionales centroamericanas.

La masonería en la amplia geografía mexicana durante el período de su independencia es el objeto de análisis de María Eugenia Vázquez Semadeni, de la Universidad de California en Los Ángeles, especialista en la historia de su país. La autora comienza su trabajo cuestionando la credibilidad de la historia realizada por los propios masones, imposible de contrastar por las escasas fuentes primarias existentes, razón por la que deben ser utilizadas con espíritu crítico. Se extiende a continuación en el establecimiento de las logias del rito York en las costas del seno mexicano, con autorización de la Gran Logia de Luisiana entre 1816 y 1820, que al poco se incorporaron al rito escoces. Debieron ser estos los primeros talleres y fueron fruto de las relaciones comerciales entre Nueva Orleans y las colonias españolas y francesas de la Indias Occidentales en el Caribe. Su desarrollo en Luisiana debió tener lugar con ocasión de la revuelta de esclavos de Santo Domingo cuando el territorio, tras el breve dominio francés, fue adquirido por los norteamericanos. De ahí, partieron las iniciativas para su instalación en Nueva España, primero en Veracruz, luego en Campeche y otros lugares. Sus componentes estaban de una u otra manera forma vinculados a la marina siendo comerciantes o militares de la armada. Y aunque algunos actuaron en política, su nacimiento no fue necesariamente con ese fin si bien una investigación más profunda, con nuevos fondos documentales, pudiera arrojar más luz.

Por su parte Dévrig Mollès, doctorado en Francia y director científico del Archivo de la Gran Logia de Argentina, analiza las relaciones entre feminismo, librepensamiento y masonería entre Europa y América en el cambio de siglo del XIX al XX. Y para ello traza la implantación de las organizaciones masónicas nacionales en Argentina, Brasil, Uruguay y Chile, que brotaron de aluvión con la presencia de exiliados franceses, británicos, italianos, españoles y portugueses preguntándose, al mismo tiempo, si los talleres pudieron ser el espacio de lucha cultural para las primeras generaciones feministas argentinas. A su modo de ver, las primeras mujeres en logias bonaerenses estuvieron vinculadas desde mediados del siglo XIX al librepensamiento; hace alusión expresa al caso de Brasil, mucho más tardío que el argentino. Refiere en tal sentido la presencia de Belén de Sárraga, discípula de Odón de Buen, en el XIII Congreso Internacional de Librepensamiento celebrado en Buenos Aires en 1906, en representación de la logia Virtud de Málaga, quien participó en la difusión del feminismo por distintos países hispanoamericanos y se erigió en símbolo de la nueva mujer latinoamericana.

Los orígenes y primer desarrollo de la masonería en Chile durante el siglo XIX son planteados por Felipe Santiago del Solar, de la París Diderot-París 7. La ausencia de fuentes fiables, la destrucción de los archivos de la Gran Logia de Chile a comienzos del siglo XX, la dispersión de las fuentes y el carácter no académico de la producción masonológica constituyen en su opinión los principales problemas para su estudio. En este caso, la difusión de la masonería está marcada por su escaso intercambio intercultural con Europa, condicionado por su situación geográfica y la legalidad comercial impuesta desde la metrópoli en el siglo XVIII, situación que cambiaría en algo a comienzos del siglo XIX lo que se tradujo entonces en la presencia de algún masón extranjero en la zona y poco más. Como primer dato cierto de la existencia de un taller cita la logia Lautaro existente entre 1817 y 1820, que vendría a ser parte de un proyecto cuyo objetivo último pudiera ser el derrocamiento del Virreinato del Perú. Ya en los años veinte, pudo tener algún desarrollo mayor en relación con las élites militares de países emergentes como Venezuela y Colombia, siendo la presencia extranjera en ellos importante. En realidad, es desde mediados del XIX cuando se inició el establecimiento de talleres, en un momento de impulso asociativo y de movilización popular, promovido por comerciantes y artesanos extranjeros de origen europeo no hispano y norteamericanos, instalados en los centros comerciales nacionales e internacionales del Pacífico. Fue así el caso de Valparaíso, por franceses, vinculado al Gran Oriente de Francia, pero también de otros promovidos por norteamericanos, argentinos y otros. Así hasta la formación de la Gran Logia de Chile en 1862, al margen del Gran Oriente de Francia. Este proceso se desarrolló de una manera discontinua hasta el inicio del siglo XX cuando el número de talleres rondaba la treintena.

Por último Guillermo de los Reyes Heredia, historiador mexicano afincado en la Universidad de Houston, se introduce en el papel que juega el asociacionismo -también el masónico- en el seno de la sociedad civil estadounidense. En tal sentido y a pesar de su independencia, intenta monopolizar el poder, dirigir en todos órdenes la vida económica, política y cultural; y desde este territorio intentará de expandirse por otros lugares con el mismo fin. Más adelante se extiende sobre la importancia que tiene la orden en Estados Unidos como organización fraternal.

Nos encontramos pues ante una interesante obra colectiva en la que se nos muestra las interinfluencias, las migraciones, de todo tipo (de los mitos, de las obediencias de distintas nacionalidades, de las personas) que vino a caracterizar la puesta en marcha de la masonería en la América que se independiza de su metrópoli europea a comienzos del siglo XIX. La masonología, como ciencia, está de enhorabuena y es de justicia felicitar a los autores que han aportado sus trabajos para la ocasión.

José-Leonardo Ruiz Sánchez – Catedrático de Historia Contemporánea de la Universidad de Sevilla. Presidente del Centro de Estudios Históricos de la Masonería Española. E-mail: leonardo@us.es

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História, cotidiano e memória social – a vida comum sob as ditaduras no século XX / Estudos Ibero-Americanos / 2017

Por uma história do cotidiano dos regimes autoritários no século XX

Em língua portuguesa, os dicionários comportam pelo menos duas definições para a palavra cotidiano: primeiramente, significa o “conjunto das ações que ocorrem todos os dias”, mas é também aquilo que “não é extraordinário; comum ou banal”. Já no idioma inglês, as palavras everyday e daily aparecem como sinônimos podendo significar, de acordo com o Oxford English Dictionary, “happening or used every day”. O vocábulo daily, por sua vez, se tem uma definição muito próxima da de everyday (“one, produced, or occurring every day or every weekday”), comporta também outros sentidos. É o que verificamos, por exemplo, na expressão daily life, a qual possui acepção bastante similar ao segundo significado que a palavra cotidiano possui em português: “the activities and experiences that constitute a person’s normal existence”. Na língua espanhola, também é possível distinguir dois termos diferentes: cotidiano, para se referir ao que “ocurre con frecuencia, habitual” e cotidianidad, entendido como a “característica de lo que es normal porque pasa todos los días”. Assim, o cotidiano pode estar ligado, ao mesmo tempo, às ideias de repetição e rotina e à de normalidade.

O dossiê História, cotidiano e memória social: a vida comum sob as ditaduras no século XX, que ora apresentamos ao leitor, tem como proposta justamente a reflexão sobre o cotidiano. A rigor, uma dupla reflexão: pretende, em primeiro lugar, debater as possibilidades, os contornos e os limites do que podemos denominar uma história da vida cotidiana e sua inscrição no âmbito dos múltiplos significados que o termo pode admitir. Assim, trata-se de refletir sobre o cotidiano como objeto historiográfico a partir daquilo que ele representa em termos de repetição, de rotina, ou antes, de rotinização da vida; mas também como aquilo que pertence ao universo do ordinário, de uma “existência normal”. Ao mesmo tempo, a proposta se concentra principalmente nas possibilidades de se pensar o universo do cotidiano em um quadro de exceção; o ordinário no contexto do extraordinário. Dito de outra forma, trata-se de questionar: é possível pensar a reprodução da vida cotidiana no quadro dos diversos regimes autoritários que tiveram lugar no século XX? Como podemos elaborar uma reflexão sobre os fatos banais da vida daqueles que não se sentiram concernidos por tais regimes, os quais tinham como base o terror de Estado e a disseminação do medo? Como se davam as reivindicações de uma “existência normal” em conjunturas excepcionais, de violência política e de ditaduras?

Para as ciências sociais, para a história, em particular, tratar o cotidiano pode constituir desafiadora empreitada, na medida mesmo em que o interesse historiográfico pelo objeto reside justamente nas possibilidades de articular a reflexão a partir de ambas as dimensões: a análise das atividades do dia-a-dia como aspecto decisivo para a compreensão de determinada sociedade no tempo; bem como as perspectivas de elaborar historicamente este sentido que o vocábulo comporta do que não é extraordinário, do que é banal e comum. Michel de Certeau, em seu estudo pioneiro, A invenção do cotidiano, fala das pesquisas que desenvolveu sobre o tema como uma “interrogação sobre as operações dos usuários, supostamente entregues à passividade e à disciplina” (CERTEAU, 1998, p. 37). Dialogando, então, com o que eram as recentes pesquisas de Michel Foucault, Certeau questiona:

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também “minúsculos” e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (ou “dominados”?) dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-política (CERTEAU, 1998, p. 41).

Assim, Certeau descreve seu trabalho como uma tentativa de constituir certo aparato metodológico para que se possa delimitar um campo, refletindo sobre o estudo do cotidiano a partir da ideia de práticas comuns, introduzindo-as “com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo caminho” (CERTEAU, 1998, p. 35). A delimitação do campo, no entanto e apesar da vigorosa proposta metodológica de Certeau, não é algo simples. Como bem lembrou Peter Burke, citando Norbert Elias, do ponto de vista das ciências sociais, “a noção de cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece. Elias distingue oito significados atuais do termo, desde a vida privada até o mundo das pessoas comuns”. O historiador continua, sinalizando para o fato de que

Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança. Visto de seu interior, o cotidiano parece eterno. O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos, como a Reforma ou a Revolução Francesa, ou a tendências de longo prazo, como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo. O famoso sociólogo Max Weber criou um termo famoso que pode ser útil aqui: “rotinização” (Veralltäglichung, literalmente “cotidianização”). Um foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por outro (BURKE, 1992, p. 23).

Burke considera, portanto, o cotidiano como um objeto dentro do amplo espectro da História Social. Nesse sentido, o desafio seria justamente refletir sobre a articulação entre os grandes acontecimentos e a rotinização da vida; a estrutura e a mudança; o eterno e o repetitivo de um lado e o instante e a ruptura de outro. Assim, caberia a pergunta: existe, como campo ou como área de estudos uma História do Cotidiano? Se existe, como e de quê ela se constitui? Luis Castells nos lembra que “no existe una corriente que se englobe tras esta denominación, con la excepción de Alemania, donde el movimiento Al [1] tagsgeschichte se ha constituido como un referente de aquella historiografia” (CASTELLS, 1995, p. 11).

Na Alemanha, desde pelo menos a década de 1970, historiadores como Richard van Dülmen, Hans Medick, Alf Lüdtke ou Dorothee Wierling vêm encarando, “o desafio de fundar uma antropologia histórica”, a qual por sua vez, se distancia do estruturalismo, dando lugar à subjetividade dos atores e às suas experiências pessoais. Daí a apropriação do conceito de habitus caro a Pierre Bourdieu, que concilia determinações sociais e oportunidades de desenvolvimento individual. Isso explica também a preferência, por exemplo, por estudos que se concentram em processos locais e regionais, bairros ou até mesmo algumas famílias. É sob este aspecto que a Alltagsgeschichte alemã se aproxima e dialoga com a micro-história praticada na Itália por Giovanni Levi e Carlo Ginzburg (LE MOIGNE, 2005, p. 30).

Analisando os processos a partir dos quais a Alltagsgeschichte tomou corpo na academia da República Federal da Alemanha ao longo da década de 1970, Nicolas Le Moigne explica que, no contexto alemão daquele período, tais premissas não estavam isentas de “implicações universitárias e mesmo políticas”. Também Alf Lüdtke, um dos grandes expoentes da Alltagsgeschichte alemã, reconhece que em fins dos anos 1970, formaram-se na RFA, grupos locais, preocupados com a Geschichte von unten (História dos de baixo) e com a Geschichte vor Ort (História local). Para o historiador, tais iniciativas partiam, frequentemente, dos fortes conflitos surgidos a partir de 1968 em centros de ensino, em meios burocráticos de conformação de políticas culturais e outros espaços públicos em torno do tema de um novo ensino de História (LÜDTKE, 1995, p. 54). Assim, se na França análises de micro-história encontraram espaço propício para se desenvolver no âmbito de uma História Social que se renovava, o mesmo não se passou na Alemanha com a Alltagsgeschichte: determinados historiadores passaram a “acusar os defensores da Alltag de fazerem pouco da tradição iluminista, colocando emoções e subjetividades no coração da análise histórica” (LE MOIGNE, 2005, p. 31). Sobre a Alltagsgeschichte alemã, Lüdtke explica:

La Alltagsgeschichte no es una disciplina especial. Se trata más bien de un enfoque específico del pasado. Este punto de vista no se limita a las ‘acciones de los dirigentes y de hombres de Estado’ tal y como se hacía predominantemente en la historia política y militar de antes. Por otro lado, esta visión de las experiencias y actuaciones del pasado no se reduce tampoco a coacciones anónimas de mecanismos estructurales. En el centro se encuentra más bien la conducta diaria de los hombres: tanto los prominentes como los supuestamente anónimos son considerados como actores históricos. Se reconstruyen las formas de la práctica en las que los hombres se ‘apropiaban’ de las situaciones en las que se encontraban. Este enfoque insiste en que cada hombre y cada mujer ha ‘hecho historia’ diariamente (LÜDTKE, 1995, p. 50).

Nesse sentido, a Alltagsgeschichte, embora tributária em alguma medida desta se afasta da History from below inglesa(LÜDTKE, 1995, p. 54). O conceito remete às questões da reprodução da vida dos indivíduos anônimos ou não, de origem popular ou das elites, buscando na dinâmica entre as esferas pública e privada elementos que possam contribuir para a compreensão dos modos de pensar e agir das pessoas em seu cotidiano. Nesse sentido, a amplitude do conceito pode resultar em problemas de delimitação do objeto ou da natureza mesma da História do Cotidiano. Luis Castells chama atenção para o fato de que:

Buena parte de sus problemas a la hora de precisar lo que se entiende por historia de la vida cotidiana deriva de su imprecisión, de sus vagos contornos, así como de su escasa teorización, cuando menos desde la perspectiva de los historiadores (CASTELLS, 1995, p. 11).

Não obstante, Castells relembra também que tais problemas são inerentes ao próprio campo da História Social. O que não se pode perder de vista quando se trata deste objeto ou campo de estudos, supostamente de contornos imprecisos, é justamente suas relações com o público. Dedicando-se ao estudo dos aspectos talvez mais triviais do dia-a-dia dos atores sociais, a História do Cotidiano não pode, no entanto, ser pensada separadamente da esfera política. Ao contrário, ao centrar as atenções no quadro microssocial, os historiadores do cotidiano concebem a história como um processo multidirecional, em constante transformação, em uma tentativa de apreender em sua complexidade os comportamentos coletivos (KOSLOV, 2010).

Ainda sobre a corrente alemã, Le Moigne explica que a Alltagsgeschichte deu prioridade a três campos de pesquisa: em primeiro lugar, os “parâmetros gerais da vida humana” que tendiam a ser considerados “a-históricos” na Alemanha: a sexualidade, o nascimento, as doenças, o amor, a morte; depois, ela se ocupou dos meios desenvolvidos pelos homens para gerir seu cotidiano: o vestuário, a habitação, nutrição e o trabalho. Por fim, a História do Cotidiano voltou-se para os comportamentos e as formas de adaptação em situações excepcionais, notadamente a Guerra, a crise econômica, as privações de liberdade, as ditaduras (LE MOIGNE, 2005, p. 32).

Aplicado ao caso do nazismo, a História do Cotidiano ajudava a melhor perceber a atração que o regime exerceu sobre a sociedade e as maneiras a partir das quais as “emoções se combinaram com interesses materiais e necessidades individuais durante o processo que possiblitou que a política de destruição e perseguição nazista fosse colocada em marcha” (KOSLOV, 2010). Em 1989, Alf Lüdtke publicava na Alemanha um trabalho com uma série de estudos sobre História do Cotidiano1. Especificamente no que concernia ao período do nazismo, o autor evocava algumas vezes o sofrimento dos atores e a necessidade por parte do historiador de elaborar – social e historicamente – tal sofrimento. Não obstante, no caso do nazismo, compreender as penúrias impostas pelo regime significava igualmente refletir sobre os comportamentos que as produziram ou que, de maneira mais recorrente, ao menos coexistiram com elas. Tratava-se de compreender aquilo que o autor chamou de fascismo comum (REVEL, 1995, p. 805-808).

Não obstante, Lüdtke reconhecia as dificuldades e controvérsias que as propostas da Alltagsgeschichte poderiam suscitar especificamente quando dedicadas a refletir sobre o nazismo (LÜDTKE, 1994, p. 2). Sob este aspecto, é fundamental nos colocarmos diante das questões levantadas por Detlev J.K. Peukert também para o caso alemão:

podemos, ou mesmo devemos, falar de “vida cotidiana” em uma era que, para as vítimas de perseguição e guerra, significou um perpétuo estado de emergência? Em face da monstruosidade dos crimes do nacional-socialismo, não deveríamos ficar em silêncio sobre as rotinas diárias banais da maioria que não sente que foi afetada ou envolvida? (PEUKERT, 1987, p. 21)

Assim, se a ênfase nos estudos dos fatos da vida cotidiana sob um regime criminoso pode colocar o historiador diante de importante questão ética, o mesmo Peukert nos lista uma série de razões pelas quais o estudo de um regime autoritário – o nazismo, no caso – sob a perspectiva da História do Cotidiano pode também fornecer bases interessantes para uma historiografia crítica, na medida em que retira o seu objeto de interesse justamente das contraditórias e complexas experiências da “gente comum”.

Também Alf Lüdtke defende que

apenas um estudo detalhado dos comportamentos e das tomadas de consciência individuais pode identificar as contradições com as quais lideram indivíduos e grupos sociais sob o nazismo. Assim, pode-se entender o funcionamento do movimento de massas que esteve na origem do triunfo e da manutenção do regime nacional-socialista (KOTT; LÜDTKE, 1991, p. 153).

Mas, as reflexões em torno da vida cotidiana sob regimes autoritários no século XX não ficaram, evidentemente, restritas ao caso alemão. A historiografia sobre tais experiências vem passando por um processo de renovação desde pelo menos as décadas de 1970 e 1980 na Europa e, mais recentemente, processo similar se verifica para o caso da América Latina. Nesse sentido, o trabalho com categorias como memória, opinião, consenso, consentimento e resistência têm sido fundamentais para compreender os regimes autoritários do século XX, em suas mais diversas essências e temporalidades em ambos os continentes. No mesmo movimento, o cotidiano foi tomado como objeto, interrogando sobre a pluralidade das atitudes coletivas e sobre as formas a partir das quais se teceram as relações sociais em seus ambientes cotidianos, moldadas pelos pressupostos dos Estados autoritários que as governavam.

Assim, é importante destacar, dentre tantos outros, o estudo realizado por Sheila Fitzpatrick sobre a vida cotidiana sob o stalinismo. Nele, a autora avalia que existem inúmeras teorias sobre a forma de se escrever a história da vida cotidiana. Algumas delas consideram que o cotidiano abrange essencialmente a esfera da vida privada: a família, o lar, a educação das crianças, os lazeres, as relações de amizade e a sociabilidade. Outros voltam suas atenções para o mundo do trabalho, os comportamentos e atitudes nos locais de trabalho. Já os especialistas da vida cotidiana sob regimes autoritários se interessaram principalmente pelas diferentes formas de resistência – ativa ou passiva – elaboradas pelos cidadãos ou pela questão da resistência cotidiana, no campo ou nas cidades (FITZPATRICK, 2002, p. 13).

É o que ocorre, por exemplo, no caso do Brasil, onde apenas muito recentemente verifica-se um processo de renovação historiográfica que busca refletir sobre a ditadura como um processo de construção social [2]. No que se refere aos debates a respeito das reflexões sobre o cotidiano e, especificamente, sobre as problemáticas em torno da articulação entre uma reflexão sobre as possibilidades de uma História do cotidiano sob ditaduras, os trabalhos existentes retomam, em primeiro plano, as questões que envolvem o dia-a-dia dos grupos de resistência e oposição ao regime.

Neste caso, trabalho pioneiro foi a reflexão desenvolvida por Maria Hermínia Tavares e Luiz Weiz a respeito do cotidiano de oposição da classe média brasileira durante a ditadura e que compõe o volume 4 da coletânea História da vida privada no Brasil. Os autores estudaram especificamente setores a que chamaram “classe média intelectualizada”: “estudantes politicamente ativos, professores universitários, profissionais liberais, artistas, jornalistas, publicitários, etc” e a vasta gama de comportamentos que definiam a oposição durante a ditadura (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 327-328).

Tavares e Weiz chamam atenção, nesse sentido, para os diferentes modos de se relacionar com o espaço urbano que a clandestinidade impunha: o isolamento social em alguns casos, as dificuldades por parte das famílias de jovens militantes em “retomar uma existência cotidiana regular” e, por fim, a transformação do medo e da insegurança em “sensações básicas cotidianas e comuns a quem quer que tenha feito oposição à ditadura, marcando a fundo a vida privada dos oposicionistas” (TAVARES; WEIZ, 1998, p. 328).

É importante, no entanto, considerar que não foi apenas a vida cotidiana da oposição à ditadura que sofreu profunda alteração. Tampouco as sensações de medo e insegurança ficaram restritas a tais meios. Ao contrário, a temática da violência política e a sensação de que se poderia estar sob vigilância teria caracterizado o dia-a-dia de parcelas muito mais expressivas da sociedade e não apenas daqueles que se opuseram ao regime. A própria Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que ao fim forneceu a justificativa para o golpe e para a manutenção da ditadura, ao operar a partir de noções como as de guerra permanente e guerra total, contribuía de forma expressiva para moldar a vida cotidiana sob a ditadura. O dia-a-dia do “cidadão comum” foi, dessa maneira, invadido por tais noções e estes incorporaram, sob muitos aspectos, a essência da DSN, a qual residia mesmo “no enquadramento da sociedade nas exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica anti-subversiva contra o inimigo comum” (BORGES, 2007, p. 29).

Não obstante e de maneira geral, se em um primeiro momento a ideia de tomar o cotidiano sob regimes autoritários como objeto esteve vinculada às possibilidades de ampliar os estudos sobre as diversas formas de resistência, trabalhos mais recentes vêm propondo transcender este âmbito. Ainda de acordo com Fitzpatrick, tais análises buscam “dar ênfase às práticas, ou seja, às formas de comportamento e estratégias pessoais elaboradas para fazer face à condições sociais e políticas particulares” (FITZPATRICK, 2002, p. 14).

Sobre tais práticas e estratégias, talvez seja interessante ter em vista, de um ponto de vista teóricometodológico, aquilo que o historiador Andrew Stuart Bergerson observa para o caso alemão. Em seu estudo sobre alemães comuns em tempos incomuns, que toma como base as relações de vizinhança e em outros espaços cotidianos na cidade de Hildesheim, Bergerson busca compreender justamente “como pessoas comuns buscaram manter uma cultura de normalidade enquanto, não obstante, transformavam amigos e vizinhos em judeus e arianos” (BERGERSON, 2004, p. 6) [3]. Por “cultura de normalidade”, o historiador explica que não se refere a um estado natural, mas a um subproduto da cultura humana: “uma experiência gerada por uma forma específica de ser, acreditar e se comportar”. Nesse sentido, a cultura de normalidade fornece os elementos a partir dos quais as pessoas comuns se autodefinem como tais, tendo em vista ideias de impotência e insignificância, reforçando a construção de uma percepção sobre si mesmo que os aparta da História com H maiúsculo, mas que, de fato, apenas os habilita a “moldar a história” enquanto os envolve em uma autoilusão de inocência (BERGERSON, 2004, p. 6).

Sob este aspecto e como a ideia de homem comum ou de uma vida ordinária estão presentes e ligadas de certa maneira às possibilidades e questionamentos em torno da História do Cotidiano, é importante destacar que tais termos são entendidos aqui de maneira similar à proposta de Bergerson e relaciona-se, antes de tudo, à uma autoimagem ou autodefinição de si mesmos. Assim, para o autor, o termo comum [4] serve

não tanto para descrever um conjunto de pessoas que permaneceram fora dos círculos do poder público e da responsabilidade histórica. Ser comum era engajar-se em uma estratégia cultural específica de sobrevivência. Uma resposta criativa às rápidas e perturbadoras transformações históricas, essa forma de comportamento foi caracteristicamente moderna, mais que especificamente alemã, um hábito de vida diário (BERGERSON, 2004, p. 6).

Por fim, o que pretendemos ao propor este dossiê temático, considerando os pressupostos e as discussões em torno da chamada História do Cotidiano, foi chamar atenção para as possibilidades – e os limites – de se tomar como objeto de estudos a vida cotidiana sob regimes autoritários e / ou situações de guerra no século XX.

Nesse sentido, indagamos sobre como as vidas de pessoas não implicadas diretamente nos embates políticos em questão foram modificadas – ou não – por eles. Mais que isso, como estas pessoas perceberam, reagiram e se adaptaram a tais regimes em seus espaços de vivência cotidiana. Como segmentos sociais diversos lideram com os regimes políticos em questão, naturalizando, em níveis distintos, suas práticas e linguagem próprias? Quais comportamentos e “estratégias pessoais” utilizados diante das novas situações? Por outro, consideramos importante também pensar atores não tão “comuns” e seus espaços cotidianos: meios de comunicação, participantes de organizações armadas, ídolos musicais. Como veremos nas páginas que seguem, o conceito de cotidiano é ampliado, enriquecendo os questionamentos aqui apresentados.

Esta edição conta com quinze artigo, três resenhas e duas entrevistas. Abrindo o dossiê, o artigo de Fernando Perlatto “Svetlana Aleksiévitch, a Grande Utopia e o cotidiano: testemunhos e memórias do Homo Sovieticus”, analisa a obra da escritora bielorrussa a partir da reflexão da vida cotidiana dos homens e mulheres “comuns” ao longo dos anos de autoritarismo soviético. A autora contribui para pensarmos a relação entre grandes acontecimentos e a vida cotidiana do “Homo Sovieticus”. Por sua vez, Daniel Lvovich em seu texto “Vida cotidiana y dictadura militar en la Argentina: Un balance historiográfico” faz um levantamento e uma análise dos estudos que tomam como objeto a questão do cotidiano durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

Em “Mortes no mar, dor na terra. Brasileiros atingidos pelo ataque do submarino alemão U-507 (agosto de 1942)”, o terceiro artigo de nosso dossiê, Jorge Ferreira parte do ataque de retaliação do governo nazista a navios brasileiros para trabalhar as reações das vítimas e seus familiares sobre o referido episódio a partir de cartas publicadas em jornais. Também no contexto da década 1940, mas em Portugal, Carla Ribeiro em “A educação estética da Nação e a “Campanha do Bom Gosto” de António Ferro (1940- 1949)” analisa a iniciativa cultural durante o Estado Novo e sua proposta de criar uma consciência estética entre os portugueses, assim como as marcas que essa campanha deixou na identidade do país no século XX.

Os artigos de Lorena Soler e Diogo Cunha trabalham o cotidiano e questões de sociabilidade no contexto sul-americano: em “Sociabilidad y vida cotidiana. Los rituales del festejo de amistad durante el stronismo en Paraguay”, a autora também utiliza a imprensa como caminho de análise das formas de recreação cotidianas que geravam adesões ao autoritarismo stronista, com foco na organização civil Cruzada Mundial de la Amistad, apoiada pelo regime. Já Diogo Cunha em “Sociabilidade, memórias e valores compartilhados: o cotidiano na Academia Brasileira de Letras durante a ditadura militar através da Revista da Academia Brasileira de Letras” propõe, através da análise da revista citada no título, pensar como esta instituição pode ter servido como espaço de legitimação da última ditadura em nosso país. O autor destaca a intensa sociabilidade entre os membros da ABL e representantes do regime como parte desta legitimação.

Nina Schneider também trabalha o regime brasileiro em “Propaganda ditatorial e invasão do cotidiano: a ditadura militar em perspectiva comparada”. A historiadora propõe uma reflexão sobre os impactos da propaganda governamental no cotidiano sob ditadura, assim como os limites no respeito à vida privada por parte do regime. Para a autora, diferente dos casos do varguismo e do nazismo, a última ditadura brasileira não procurou politizar e mobilizar a sociedade através da propaganda.

Os trabalhos que seguem de Marcos Napolitano e Rodrigo Patto Sá Motta têm como foco a análise da grande imprensa como ator durante a ditadura civilmilitar no Brasil. Em “A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985)”, Napolitano parte da análise desse ator para pensar o cotidiano ditatorial. Analisando os editoriais de quatro jornais da grande mídia (O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e O Globo) no aniversário do Golpe de 1964, o autor trabalha com a hipótese de que foi a linhagem ideológica, das guinadas e revisões da memória liberal sobre o regime presente nestes editoriais, que definiu as bases da memória hegemônica de “resistência democrática” sobre o período. Já Rodrigo Motta propõe em seu trabalho “Entre a liberdade e a ordem: o jornal O Estado de São Paulo e a ditadura (1969-1973)” pensar as representações políticas divulgadas pelo citado jornal para tentar compreender suas estratégias frente à ditadura que, segundo o autor, variaram entre a adesão e a acomodação.

Retornando à Argentina em “Vida cotidiana, violencia política y represión. La Argentina de los años setenta y de la post-dictadura a partir del Archivo Marshall T. Meyer”, Sebastián Carassai parte de um arquivo pessoal para analisar as diversas experiências da sociedade do país no contexto de violência política dos anos 1970 e 1980, incluindo o pós-ditadura. Com uma interessante variedade de fontes o autor reflete sobre a partir da experiência concreta de uma comunidade judia de classe média em Buenos Aires.

No artigo que segue, Ana Maria Mauad trabalha as últimas ditaduras na América do Sul em um contexto regional, a partir da análise de imagens particulares. “Imagens que faltam, imagens que sobram: práticas visuais e cotidiano em regimes de exceção 1960-1980” vai do contexto privado das fotografias familiares e sua migração para o espaço público e propõe a discussão do papel da fotografia na elaboração da imaginação civil na contemporaneidade. Também no campo das manifestações culturais, “Entre a política e o prazer: ditadura, arte e boêmia através do filme “Garota de Ipanema” (Leon Hirszman, 1967)”, de Carlos Eduardo Pinto de Pinto, o autor usa a obra cinematográfica citada para analisar as tensões entre política e prazer no cotidiano do Rio de Janeiro no último período ditatorial, trazendo ao debate imaginários como a boemia, a arte e a despolitização na época.

Já o artigo de Cláudia Cristina da Silva Fontineles: “O cenário esportivo como arena de disputas políticas: entre a memória recitada e o apagamento de rastros” utiliza uma vasta seleção de fontes históricas para discutir que papel nas disputas entre dois grupos políticos majoritários tiveram o estádio de futebol “Albertão” e o time de futebol Tiradentes no Piauí, entre as décadas de 1970 e 1980. O artigo aponta as disputas de memórias entre as múltiplas leituras do espaço esportivo feitas por aliados como parte da euforia desenvolvimentista e por opositores pelo uso como reafirmação da presença do governo de Alberto Silva (1971-1975).

Em mais um trabalho que tem a imprensa como objeto de análise, Nataniél dal Moro utiliza o periódico Correio do Estado para abordar conflitos de classe no artigo intitulado “Conflitos entre elite e povo comum na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70)”. O autor destaca que as matérias produzidas pelo periódico representam um discurso próprio do mesmo, e por isso um interessante meio de análise dos conflitos cotidianos da cidade.

Finalmente, o trabalho de Gustavo Alves Alonso Ferreira: ”Os Vandrés do sertão: Música sertaneja, ufanismo e reconstruções da memória na redemocratização”, fecha a seção de artigos desse dossiê. Alonso discute a imagem de apoiadores da ditadura que carregam os artistas sertanejos. Se por um lado muitos deles de fato apoiaram a ditadura em determinado momento, como tantos outros artistas de gêneros musicais distintos, no período da redemocratização os sertanejos se engajaram no processo de transição, o que parece “esquecido” nas disputas de memória.

Essa edição conta com três resenhas. A primeira delas, feita por Maurício Santoro, intitulada “Memória familiar, identidade e ditadura”, sobre a obra A Resistência, de Julian Fuks (Companhia das Letras, 2015). Em “A casa dos horrores e seus agentes: o DOI-Codi de São Paulo e o trabalho sujo na ditadura”, Laurindo Mekie Pereira resenha o livro Na casa da vovó – Tempos da ditadura (o que vi e vivi) (Revan, 2015), de Francisco Antônio Doria. Finalmente, a obra Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Lamparina, 2015), de Henri Acselrad, deu origem à resenha “O Cotidiano sob a Ditadura Civil-militar: o espaço de interação entre a militância clandestina e os habitantes do subúrbio”, de Keila Auxiliadora Carvalho.

Fechando o dossiê, duas entrevistas que trazem como tema diferentes experiências autoritárias no século XX. A primeira delas realizada por Lívia Gonçalves Magalhães com a cientista política Pilar Calveiro, argentina sobrevivente de centros clandestinos de detenção durante a última ditadura civil-militar argentina. Vivendo no México desde seu exílio em 1979, Calveiro possui diversos trabalhos que procuram entender o cotidiano autoritário tanto em ditadura como em democracia. A entrevista de Janaina Martins Cordeiro foi feita com Antonio Cazorla Sánchez, espanhol e hoje professor de História Contemporânea no Canadá. Autor de uma biografia do general espanhol Francisco Franco, Cazorla é hoje um dos maiores especialistas no período do primeiro franquismo.

Esperamos que este dossiê gere novos debates e reflexões sobre o tema, que de forma alguma se esgota nas páginas que seguem.

Boa leitura!

Notas

1. Cf. a edição francesa do livro: LÜDTKE, 1994.

2. Cf., dentre outros, AARÃO REIS, 2000; GRINBERG, 2009; ROLLEMBERG e QUADRAT, 2010; MAGALHÃES, 2014; MOTTA, 2014; ALONSO, 2015; CORDEIRO, 2015.

3. Grifos no original.

4. O termo utilizado no original em inglês é ordinary.

Referências

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

ALONSO, Gustavo. Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

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MAGALHÃES, Lívia G. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

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ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. Vol. 1: Europa.

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Janaina Martins Cordeiro – Professora Adjunta de História Contemporânea do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição, é Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ, 2015-2018) e autora de A ditadura em tempos de Milagre: comemorações, orgulho e consentimento (FGV, 2015) e Direitas em movimento: a Campanha da Mulher pela Democracia e a ditadura no Brasil (FGV, 2009). E-mail: janainamcordeiro@gmail.com

Lívia Gonçalves Magalhães – Professora Adjunta de História do Brasil Republicano do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela mesma instituição e Mestra em Estudos Latino-Americanos pela Universidad Nacional de San Martín (UNSAM, Argentina). Possui Pós-Doutorado em História pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES, CAPES, 2014-2016). É autora de Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina (Lamparina, 2014) e Histórias do Futebol (APESP, 2010). E-mail: livinhagm@gmail.com


CORDEIRO, Janaina Martins; MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 43, n. 2, maio / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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História, cultura e natureza / História Revista / 2017

A história ambiental é um campo historiográfico relativamente novo. Apesar do debate entre história e natureza não ser algo distante dos estudos históricos, a história ambiental procurou enfatizar e privilegiar as relações entre humanos e meio ambiente em diferentes temporalidades e espacialidades. Surgida nos Estados Unidos, na segunda metade do século XX, procurou discutir sobre o papel da natureza no imaginário americano, sobretudo no que se refere a criação de uma cultura nacional fundada na relação com o meio. A partir da década de 1970 ampliou o seu escopo sobre outras abordagens ambientais, se mostrando muito mais interdisciplinar e buscando novas espacialidades. Além dos Estados Unidos, no Brasil, na América Latina e na Europa, um grupo significativo de pesquisadores tem se debruçado em estudos em história ambiental, com temáticas diversas como rios, montanhas, florestas, flora, fauna, cientistas‐conservacionistas, dentre outros, e em diversas temporalidades.

Nessa perspectiva, o dossiê temático História, cultura e natureza se apresenta como um campo privilegiado para a discussão da relação entre história, cultura e natureza. Ao propor o dossiê, nossa intenção foi promover um espaço de debates sobre os vários ambientes e os diferentes fenômenos decorrentes dessa relação. Apesar de ser um campo historiográfico, esse espaço de debates se propunha interdisciplinar, considerando a possibilidade de envolver biólogos, geógrafos, antropólogos e os estudiosos dos diferentes campos das engenharias que se dedicam às questões ambientais. Para tanto, propusemos discutir temas que envolvessem a relação homem e natureza em diferentes cenários, biomas, domínios naturais e paisagens, bem como a utilização de diferentes fontes e métodos na compreensão desses fenômenos, tanto no Brasil como na América, na África e na Europa, em diferentes temporalidades.

Como resposta à chamada do dossiê, recebemos um número significativo de submissões de autores vinculados a instituições de diferentes regiões do Brasil, e também uma contribuição do exterior. Os textos, avaliados e aprovados por reconhecidos especialistas em história ambiental, foram organizados no dossiê de acordo com as temáticas e abordagens apresentadas. Em primeiro lugar, apresentamos os artigos centrados em questões conceituais, teóricas e historiográficas. Em seguida, apresentamos uma abordagem da relação homem e natureza no contexto dos Estados Unidos da América. Depois, aparecem os artigos que analisam o fenômeno no Brasil, iniciando com uma abordagem sobre a história dos projetos de conservação de espécies da fauna brasileira, seguida por outra focada nas transformações na paisagem do estado de Santa Catarina, outra centrada no debate político ambiental no estado de São Paulo, chegando, por fim, ao artigo que se dedica ao Cerrado no século XIX. Excetuando‐se os três primeiros artigos – aqueles de abordagens teóricas –, percebe‐se que nosso critério para a organização dos textos no dossiê foi geográfico, partindo da realidade mais distante geograficamente, os Estados Unidos da América, para a mais próxima do lugar de publicação da História Revista, o nosso Cerrado.

Assim, abrimos o dossiê com três artigos centrados em questões conceitual, teórica e historiográfica.

No primeiro artigo, Roger Domenech Colacios, pós‐doutorando pelo Departamento de História da UNESP / Assis, apresenta uma abordagem conceitual, situada no debate sobre a polissemia do meio ambiente. O autor propõe analisar o conceito de meio ambiente utilizado pela historiografia ambiental brasileira focando as três matrizes teóricas que guiam os estudos históricos no Brasil: ecológica, socioambiental e geográfica. No que se refere à metodologia, a análise utiliza o instrumental Latouriano, utilizado pela história das ciências, referente às caixas‐pretas conceituais, o que está indicado no título do artigo: Os meios ambientes da História Ambiental brasileira: pela abertura da caixa‐preta.

Prosseguindo com a discussão teórica, o segundo artigo, História, meio ambiente e interdisciplinaridade, de Dora Shellard, professora convidada do MBA da ENS / Funenseg São Paulo e pós doutoranda no Instituto de Estudos Brasileiros IEB / USP, apresenta duas questões fundamentais sobre a abordagem do meio ambiente na história. Em primeiro lugar, a autora discute a singularidade da história ambiental frente a outros campos da disciplina, destacando que, até a década de 1950, a exploração do meio ambiente no Brasil também era objeto da história econômica e social. Em seguida, a autora apresenta importantes reflexões sobre a interdisciplinaridade entre as ciências ambientais e sociais, suas possibilidades e seus limites.

O terceiro artigo do dossiê, foi escrito por Márcia Helena Lopes, Cristiane Gomes Barreto e André Vasques Vital, pesquisadores vinculados a diferentes instituições: a primeira é professora na Unievangélica / GO, a segunda é professora na Universidade de Brasília, e o terceiro é doutor pela Fundação Oswaldo Cruz e bolsista CAPES / PNPD do Centro Universitário de Anápolis. Como indica o título, O Papel do Ambiente no Pensamento Social Brasileiro: Contribuições a partir de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, o artigo apresenta uma análise profunda do papel do ambiente nas interpretações do Brasil desenvolvidas por três grandes intérpretes do nosso país, destacando como a natureza está presente na formação social brasileira, segundo esses autores.

Consoante a proposta do dossiê de discutir temas que envolvessem a relação homem e natureza em diferentes cenários se apresenta o texto de Micah Bacheller e Sandro Dutra e Silva – o primeiro, norte americano, vinculado ao North Central College / USA, e o segundo, brasileiro, professor da Universidade Estadual de Goiás e do Departamento de Ciências Ambientais no Centro Universitário de Anápolis. Em The Birth of National Parks: Culture and Nature in Visiting the Wilderness in the United States (1920‐1940), os autores abordam a relação entre sociedade, cultura e natureza no contexto norte‐americano, estabelecendo como marco inicial o governo do Presidente Wilson (1913‐1921). Com enfoque na história da conservação da natureza e criação de áreas protegidas, os autores abordam a questão proposta em duas perspectivas: o nascimento do Sistema e Serviço de Parques Nacionais nos Estados Unidos e os fatores relacionados ao aumento de visitantes aos Parques entre as décadas de 1920 e 1940.

Passamos, então, ao cenário brasileiro. O primeiro artigo, História dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil, é fruto da discussão de três pesquisadores, vinculados a importantes centros de pesquisa em história ambiental: Fernanda Cornils Monteiro Benevides, vinculada ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e membro do Observatório das Unidades de Conservação e Políticas Sociais Conexas, José Luiz de Andrade Franco, vinculado ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, e Vivian da Silva Braz, professora no Centro Universitário de Anápolis / GO. O artigo traça uma história dos projetos de conservação de espécies da fauna no Brasil. Nas palavras dos autores: “projetos pioneiros iniciados pela Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza (FBCN), entre 1966 e 1972; consolidação e surgimento de novos projetos de 1973 a 1988; e crescimento do número de projetos, de 1989 até o presente. Trata da cooperação da FBCN com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), com a Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), e com organizações não governamentais (ONGs) internacionais para o desenvolvimento dos projetos de conservação da fauna.” O artigo destaca, em suas conclusões, que os projetos de conservação da fauna revelam‐se importantes para o desenvolvimento de uma consciência ampla sobre a perda da biodiversidade.

Deslocando nosso olhar para o Sul do Brasil, o artigo intitulado Meio ambiente e sociedade: as transformações na paisagem do Oeste Catarinense, na segunda metade do século XX, de Samira Peruchi Moretto, apresenta as diversas transformações ambientais no Oeste catarinense no século passado, provocadas, em sua maioria, pela antropização da paisagem. A autora, que é professora do Curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul, utiliza um denso e variado corpus documental para analisar o processo histórico da transformação ambiental no Oeste catarinense, após o processo de ocupação da região.

No contexto da região Sudeste situa‐se o artigo O conceito de restauração de florestas nativas no debate político ambiental em São Paulo (1912‐1944), de Luiz Antônio Norder, professor do Departamento de Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de São Carlos.  Por meio do estudo de publicações que continham conceitos e propostas de restauração de florestas, o autor analisa o contexto e as características do conceito de restauração de florestas nativas no Brasil e, especialmente, no estado de São Paulo, no período de 1912 a 1944.

Finalizamos o dossiê com uma abordagem sobre o Cerrado. Em A diversidade paisagística dos “campos” nas iconografias de Florence e de Martius: alguns aspectos do Cerrado da primeira metade do século XIX, Ana Marcela França de Oliveira, doutora pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, discute a diversidade paisagística das extensões florísticas que abrangem atualmente parte do Cerrado, da forma como foram registradas pelo botânico alemão Carl F. von Martius (1794‐1868) e pelo artista francês Hercule Florence (1804‐1879). Ao estudar os registros dos dois viajantes, a autora problematiza o uso das imagens dos “cerrados” que ambos construíram como testemunhos de usos pretéritos do ambiente analisado.

Os leitores encontrarão nesse dossiê um debate riquíssimo no âmbito da história ambiental. Os artigos que o compõem apresentam diferentes abordagens e importantes reflexões em um campo historiográfico que, como dissemos no início dessa apresentação, é relativamente novo. Estamos profundamente agradecidos a todos que colaboraram: aos autores, que submeteram suas propostas e aceitaram as críticas e sugestões dos revisores, e aos pareceristas que gentilmente, e no melhor espírito acadêmico, apresentaram reflexões importantes e pertinentes nas suas avaliações, revelando leituras atentas e cuidadosas dos artigos. Nosso muito obrigado!

Sandro Dutra – Doutor (UEG)

Adriana Vidotte – Doutora (UFG)

Organizadores


DUTRA, Sandro; VIDOTTE, Adriana. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 22, n. 2, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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A Presença da História Cultural nas Pesquisas em História da Educação Matemática / HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática / 2017

O que você lerá, nas páginas que se seguem, compõe o segundo número temático da Revista em História da Educação Matemática – HISTEMAT e coube a mim o convite para ser seu editor. A principal ideia, dessa publicação, foi reunir um grupo de estudos que mostrassem “A Presença da História Cultural nas Pesquisas em História da Educação Matemática”, seja nas análises de seus resultados, seja para auxiliar nas reflexões e / ou discussões dos argumentos acionados ao longo do seu desenvolvimento. Para tanto, fez-se mister o movimento de algumas etapas para que se chegasse a esse produto final. Etapas que se consolidavam, cada uma a seu tempo, à medida que permitiam, aos 23 articulistas convidados, revisitarem o encadeamento de suas ideias. Nesse sentido, apresento-lhe, em 13 artigos, o pensamento de pesquisadores que, em seus trabalhos, conjugam aspectos relacionados a diferentes contextos, sobretudo, políticos e educacionais. Passo, então, a delineá-los, brevemente, na ordem de sua aparição.

Hoffmann e Costa (David) analisam, apoiados nas referências da história, história da educação, bem como da história da educação matemática, a tese oficial n. 06 presente nos Anais da Primeira Conferência Estadual de Ensino Primário ocorrida em Santa Catarina em 1927, a qual tratou, especificamente, dos trabalhos manuais nas escolas primárias e complementares.

Costa (Reginaldo) apresenta, sob seis categorias de análise – recorte temporal; personagens e educadores matemáticos; instituições; metodologia; conteúdos matemáticos; fontes e níveis de ensino – um panorama das pesquisas agrupadas no Eixo História da Educação Matemática, nos Anais do XI ENEM, ocorrido em Curitiba em 2013, cujos setenta e um trabalhos contemplam desde o período colonial até os dias atuais, entretanto, a maioria concentra-se nas décadas de 1950 e 1960.

Duarte explicita as produções realizadas pelo Grupo de Pesquisa em História da Matemática e da Educação Matemática (GHMEM) e que estabelecem interações com projetos impulsionados pelo Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática Sociedade Brasileira de História da Matemática Brasil (GHEMAT), destacando a relevância de estudos que preconizam os saberes e práticas presentes no cotidiano escolar.

Búrigo analisa as críticas de pesquisas acerca do movimento da matemática moderna no Brasil e suas conexões com processos ocorridos em outros países, no mesmo período, sinalizando que o diálogo entre pesquisadores e suas produções tem permitido o refinamento das narrativas do movimento da matemática moderna como um processo complexo, resultante da interveniência de múltiplos atores e das condições em que se moveram.

Pontello e Gomes têm por principal objetivo analisar as ações realizadas pela Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário (CADES), detendo-se sobre as potencialidades das narrativas de sujeitos participantes para a formação de professores de Matemática no Ceará, nas décadas de 1950 e 1960.

Santos, Bezerra e Carvalho apresentam os aspectos históricos acerca da origem, da organização e do processo de estruturação do Liceu Alagoano, entre 1930 a 1970 e, além de refletirem sobre o currículo, a formação do professor e os métodos de ensino, destacam a evolução do Ensino Secundário, com ênfase no Curso Normal.

Almeida e Pinto procuram compreender como as tabuadas foram apropriadas pelos autores de livros didáticos de Aritmética que tiveram ampla repercussão, nas primeiras décadas do século XX, tais como Georg Büchler (Arithmetica Elementar, 1919) e Antônio Trajano (Aritmética Elementar, 1922) os quais apresentam registros de novos usos das tabuadas que, em tempos de protagonismo do método intuitivo, expressam contraponto com as práticas de memorização da tabuada de períodos anteriores.

Alves e Ripe, a partir da coleção “Nossa Terra Nossa Gente” e da reelaboração da coleção “Estrada Iluminada”, produzidas no estado do Rio Grande do Sul, no período de 1960-1978, identificam quais conteúdos da Matemática Moderna foram contemplados nessas coleções e o desenvolvimento e a influência do Movimento na produção didática gaúcha.

Rocha e Siqueira Filho, subsidiados por questões que preconizam saberes elementares matemáticos, prescritos e praticados por sujeitos inseridos em contextos educacionais, sumarizam a produção dos integrantes do GHEMAT-ES, os quais tomam a cultura como parte essencial da vida social, sobretudo, acerca do papel que desempenham como intérpretes do passado nas narrativas que constroem.

Souza et al. apresentam um breve inventário das pesquisas desenvolvidas pelo grupo COMPASSODF, ressaltando a importância do entrelaçamento da história da educação matemática do Distrito Federal (DF) com as demais histórias narradas por pesquisadores de outras localidades, para ampliação da visão de representações, apropriações e práticas relativas à história da educação matemática do Brasil.

Zuin, situando-se no século XIX, com destaque para a segunda metade dos Oitocentos, procura captar as representações e práticas, individuais ou coletivas, que refletiram o modo de ler o mundo, bem como os prós e contras, no interior das escolas no Brasil, com relação à legitimação do sistema métrico decimal como saber escolar e, portanto, um componente dos conteúdos de formação geral.

Santos aponta as intencionalidades em se construir representações e os caminhos seguidos para compreender a matriz da apropriação, a partir de trabalhos de conclusão de curso (TCC) e dissertações de mestrado produzidos, respectivamente, no âmbito dos Cursos de Licenciatura em Matemática e do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Matemática, da Universidade Federal de Sergipe.

Kuhn e Bayer analisam exercícios de cálculo oral encontrados nas séries Ordem e Progresso e Concórdia, duas coleções de livros de aritmética, destinadas às escolas paroquiais luteranas do século passado, no Rio Grande do Sul, e identificam que os autores propuseram exercícios orais para que os alunos desenvolvessem habilidades de cálculo mental para que as utilizassem na administração do orçamento familiar e gerenciamento da propriedade rural.

Assim posto, na análise dos textos aqui publicados, penso ser possível postular que a vinculação entre história da educação matemática e história cultural ocorre por meio de vieses que permitem aos pesquisadores, da educação matemática, encontrar na história cultural a execução do ofício de historiadores, cujas reflexões apontam possibilidades de contribuições efetivas e significativas para compreendermos as perspectivas e lógicas de ações individuais ou coletivas, advindas de discursos e / ou intencionalidades imersas em documentos produzidos no passado, seja para legislar a formação de professores, seja para reformar a instrução pública em determinado tempo e espaço.

Moysés Gonçalves Siqueira Filho – Editor Adjunto


SIQUEIRA FILHO, Moysés Gonçalves. Apresentação. HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática. São Paulo, v.3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung – HONNETH (K)

HONNETH, A. Die Idee des Sozialismus: Versuch einer Aktualisierung. Berlim: Suhrkamp, 2015. 168 p. Resenha de: CAUX, Luiz Philipe de. Kriterion vol.58 no.137 Belo Horizonte Mayo/Aug. 2017

Referindo-se à sua tentativa de renovação da teoria crítica da sociedade a partir de uma teoria do reconhecimento, os mais precipitados críticos de Axel Honneth costumam caricaturá-lo como um teórico que, em face do sempre crescente enrijecimento das relações sociais de dominação no mundo contemporâneo e da imensa dificuldade de retomar de maneira promissora a sua crítica, prescreve tão somente que deveríamos “nos reconhecer mais”. Ocorre que cada nova obra de Honneth parece jogar mais água no moinho de tais críticos e tornar essa caricatura cada vez mais realista.

Em outubro de 2015, foi publicado pela Suhrkamp seu mais recente opúsculo, “Die Idee des Sozialismus”, uma tentativa, como reza o subtítulo, de atualização da ideia de socialismo, ideia envelhecida, para Honneth, desde o momento em que perdeu o amparo histórico que encontrava nas sociedades ocidentais de economia industrial do século XIX. Honneth esforça-se por mostrar que a ideia é velha, por certo, mas não caduca. Para isso, no entanto, precisa retraçar seus contornos com tal inventividade que, ao cabo, não lhe assusta que poucos dos “partidários” do socialismo estariam prontos para reconhecê-lo em sua nova imagem (p. 163). Mas Honneth não acredita estar desfigurando, mas apenas depurando de contingências históricas e trazendo a ideia a um nível de abstração mais elevado. A expectativa, por paradoxal que pareça, é que, nessa nova forma altamente abstrata e quiçá irreconhecível, a ideia ganhe força motivacional, alcance novamente a “virulência” que teria perdido (p. 20).

O novo livro é admitidamente motivado pela recepção do livro anterior, “O Direito da Liberdade”, recentemente traduzido para o português.1 Numa resposta aos debatedores de um simpósio sobre o livro realizado em Londres em maio de 2014, Honneth relata seu estranhamento em se ver reconhecido, após “O Direito da Liberdade”, não como um hegeliano de esquerda, como entende a si próprio, mas como “um daqueles hegelianos de direita dos quais eu nunca tive problemas em explicitamente me afastar”.2 O livro de 2011, uma atualização bastante direta das “Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito” para o mundo contemporâneo, que, contra o espírito hegeliano, trata a tripartição de esferas sociais do livro de Hegel como um esquema formal passível de ser aplicado como que do exterior a uma sociedade incomparavelmente mais complexa, foi recebido por parte da crítica como uma virada de orientação de Honneth em direção a uma perspectiva mais conservadora ou não afinada com os objetivos de uma teoria crítica da sociedade.3 Ao partir da premissa de método (em sua assim chamada reconstrução normativa) de que uma teoria crítica da sociedade precisaria ancorar-se apenas nos valores superiores aos quais a integração social remete sempre já como sua condição de possibilidade, Honneth expôs-se à acusação justa de ter se colocado do ponto de vista da mera reprodução do estado de coisas existente. Assim, o novo opúsculo é escrito em parte como um esclarecimento ou uma tentativa de desvincular-se de tal imagem e de filiar-se a um mais progressista revidierter Sozialismus, um “socialismo revisado”. O primeiro passo será a busca da ideia do socialismo no momento mesmo de seu nascimento, para, num procedimento contraditório que vai à origem para negá-la, desembaraçar a ideia não apenas das distorções que teria vindo a sofrer, mas também já de seus Geburtsfehler, de suas, digamos, malformações congênitas.

A ideia de socialismo nasce, para Honneth, como consequência do mal-estar da impossibilidade da efetivação simultânea dos três ideais da Revolução Francesa tão logo ela se completa. Na medida em que a forma individualista de liberdade da recém-instaurada esfera do mercado capitalista se põe no caminho tanto da efetivação da igualdade material e não apenas jurídico-formal quanto da fraternidade ou da solidariedade, levando ao risco da anomia, à efetiva pauperização e aos consequentes sentimentos de aviltamento, vergonha e injustiça da parte dos trabalhadores e suas famílias, surge o socialismo, ou antes, sua ideia, como uma “reação normativa” (p. 27). Como já espera o leitor a ele familiarizado, Honneth quer enfatizar o caráter moral, e não apenas econômico-utilitário do socialismo. Os primeiros socialistas, os denominados socialistas utópicos (alcunha que Honneth evita), teriam todos concebido a futura forma comum, não privada, da propriedade não como um fim em si, mas como um pressuposto para fins morais já estabelecidos – que poderiam, portanto, ser perseguidos por outros meios por um socialismo revisado. Na medida em que, para os primeiros socialistas, o egoísmo privado instaurado no mercado, fundado por sua vez na propriedade privada dos meios de produção, é fonte da incompatibilidade constatada entre os três princípios da Revolução de 1789, cabe superá-lo numa nova concepção de liberdade, não compreendida mais como a limitação recíproca que permite a mera compatibilização externa das vontades individuais, mas como a complementação mútua e internamente vinculada das vontades, em que a realização das finalidades de um indivíduo é vista por todos como condição para a realização de suas respectivas finalidades. Honneth apenas reencontra, em suma, sua noção de liberdade social como já reconstruída em “O Direito da Liberdade”, noção que ali estrutura as esferas de “eticidade democrática” (a dos “relacionamentos pessoais”, a da “ação numa economia mercado” e a da “formação democrática da vontade”).4 A ideia de socialismo, como grafado na contracapa do livro, seria, de fato e propriamente, a ideia de liberdade social. O primeiro dos erros dos socialistas seria tê-la tentado efetivar apenas em uma das três esferas socialmente diferenciadas na modernidade nas quais ela já estaria inscrita, em detrimento das outras duas. Ela seria, todavia, mais ampla do que os primeiros socialistas teriam percebido. Os três ideais da referida revolução burguesa compatibilizar-se-iam na noção de liberdade social; e o socialismo, que não é senão o movimento cujo objetivo é sua realização, seria, assim, uma “crítica imanente” do capitalismo (p. 33), isto é, no sentido de Honneth: uma busca de realização de suas promessas não cumpridas.

O próximo passo de Honneth é mostrar de que modo o espírito das sociedades industriais do século XIX teria contaminado a ideia central de liberdade social com certas “ficções da ciência” (p. 101), desveladas na era de um dito capitalismo pós-industrial. No entanto, o socialismo cujas características são recusadas por Honneth é, de fato, um “cachorro morto”, para o qual dificilmente se encontrariam defensores, mesmo no mais ortodoxo dos partidos comunistas. Sua refutação não apenas é supérflua, como cumpre na argumentação o papel pouco leal de deixar na penumbra todo o pensamento socialista (ou, mais amplamente, o de inspiração marxiana em geral) que igualmente recusa os pressupostos aduzidos, ou, quando os aceita, oferece justificações razoáveis e não consideradas por Honneth. São três os pressupostos do socialismo na era industrial repelidos por Honneth: a) a centralidade da esfera econômica, a consequente recusa da gramática dos direitos na luta social e o déficit democrático do movimento; b) a vinculação reflexiva da teoria a um portador, o proletariado, cujos interesses objetivos representados são presumidos sem verificação empírica; e c) a concepção determinista de história como um processo regido por leis e para o qual a ação livre humana é indiferente. Não cabe aqui discutir nenhum dos três “descaminhos” do socialismo pintado por Honneth, aliás, correspondente, de fato, a uma concepção outrora existente e que os assumia de modo enfático. O que importa é o que essas três recusas dizem sobre Honneth, pois ele as faz para a cada vez assumir uma posição diametralmente oposta. Em primeiro lugar, ad a) o autor considera absolutamente irrenunciável em quaisquer condições futuras ou imagináveis o recurso ao código do direito, aplicável coercitivamente pelo Estado. Direitos subjetivos são, para Honneth, uma conquista histórica inultrapassável e definitiva, que em nenhuma condição poderá se tornar obsoleta. Em segundo lugar, ad b) Honneth veda-se metodologicamente a imputação de quaisquer interesses objetivos a indivíduos ou grupos sociais; isso significa, por um lado, que apenas devem valer como interesses aqueles verificados empiricamente por declaração do agente e, por outro lado e mais importante, que, por princípio, os agentes não podem estar enganados acerca dos próprios interesses (ou seja, não existem ilusões socialmente necessárias). Por fim, ad c) o processo histórico como pensado por Honneth não é influenciado por tendências materiais, mesmo que fracas; o avanço técnico não condiciona de nenhum modo o desenvolvimento moral. Este último é tomado por um fato, possui autonomia e é impulsionado por sua própria força, uma tendência espontânea interna às próprias relações intersubjetivas pela progressiva eliminação de seus bloqueios e coerções de toda espécie (mesmo que essa tendência histórica afirmada dogmaticamente por Honneth, com ajuda de Dewey (p. 100), carregue um ônus metafísico tanto maior do que aquela que constituiria a crença dos socialistas).

Com isso, chega-se ao terceiro passo, propriamente propositivo, da argumentação do opúsculo. Sublimada de seus acidentes, a ideia de socialismo não seria senão a ideia de liberdade social, que precisa ser atualizada para as condições sociais do século XXI. A palavra socialismo ganha agora um sentido totalmente novo, mas não inesperado para o leitor de Honneth. O socialismo não é agora senão a realização do social, o “tornar-se social da sociedade” (p. 89). A formulação causa espécie caso não se compreenda o sentido do adjetivo em Honneth,5 que aparece plenamente explícito no novo opúsculo. O social é um conceito normativo para Honneth, ou antes, descritivo-normativo, pois designa não um dever-ser externo, mas a normatividade estruturante da sociedade (p. 105). A sociedade é social, “no sentido pleno da palavra” (p. 166), quando as relações de reconhecimento recíproco estão plenamente desenvolvidas, sem bloqueios à comunicação, em todas as esferas de ação por elas estruturadas. Apenas a sociedade socialista de Honneth é uma tal “sociedade social”.

Mas como alcançá-la? Honneth não se preocupa em apontar quais são os obstáculos sistemáticos que se opõem à realização da liberdade social, mas antes delega a tarefa de sua superação a um “experimentalismo histórico”. Em razão de sua ontologia social normativista, Honneth é incapaz de apontar causas materiais para as patologias sociais e desenvolvimentos normativos desviantes que constata. Apesar de contarem de saída com um empuxo transcendental em direção à emancipação, as lutas por reconhecimento não a alcançam, e isso, em Honneth, como que por mero acaso: deveria acontecer, mas não acontece.6 O mundo social de Honneth é frouxamente estruturado: ainda aqui, a concepção marxiana de capitalismo como uma totalidade, na qual certas determinações estão interna e logicamente interligadas, é recusada em prol de uma afirmação vazia e implausível de que o mercado capitalista não é mais do que um agregado de componentes absolutamente díspares e artificialmente conjuntados (pp. 91 e 109-110). Assim, a solução “experimentalista” de Honneth tampouco chega a surpreender. Experimentar novas configurações sociais a fim de romper barreiras e obstáculos à comunicação e à inclusão de novos atores em esferas de liberdade social é algo que está à disposição dos atores para Honneth, que desconsidera o fato de que justamente tais barreiras e obstáculos impedem tal experimentalismo de ter algum sucesso significativo. Em todo caso, apoiado na ideia mecânico-naturalista e ao mesmo tempo especulativa de John Dewey de que, em todos os âmbitos da realidade (do físico-químico ao social, passando pelo biológico e pelo psíquico), o aumento do volume das interações entre os seus elementos (no caso do âmbito social, os indivíduos) leva à efetivação de potenciais ali já existentes (no caso, à efetivação da liberdade social), Honneth considera que apenas o contínuo experimentalismo, isto é, a repetida variação das formas de interação pode progressivamente levar ao socialismo.

Assim, é marcante que Honneth não se pergunte, por exemplo, por que o capitalismo precisa necessária e logicamente engendrar sua crescente financeirização, mas antes proponha impotentemente que experimentemos um mercado não financeirizado; que afirme a incompatibilidade normativa entre, de um lado, as noções de mérito ou de recompensa do desempenho diferencial que estrutura o mercado e, de outro, os ganhos nele obtidos por meio da especulação financeira, sem se perguntar que tipo de processo material leva a que uma tal contradição real possa subsistir (pp. 108-109). O horizonte da crítica de Honneth, seu “end in view” (Dewey) é uma pouco definida noção de “socialismo de mercado”, pelo que não se deve entender, como de costume, algo como o sistema econômico vigente na China contemporânea (de resto, obviamente capitalista), mas simplesmente uma economia estruturada pelo mercado (que conta em qualquer caso como uma esfera de eticidade, i.é., de liberdade social) e que não seja, ao mesmo tempo, capitalista, se é que isso é conceitual e empiricamente possível. Honneth não deseja sequer definir de antemão se seu “socialismo de mercado” deverá se estruturar como um livre mercado (à la Smith), como uma “associação de produtores livres” (Marx) ou como uma espécie de capitalismo de Estado, desde que, em qualquer destas configurações, esteja garantida a realização recíproca e complementar dos fins individuais, como prescreve a liberdade social, na ação econômica (pp. 94-95). Não lhe parece um passo necessário investigar se sua liberdade social é de fato compatível com qualquer destas três formas de organização econômica.

Por fim, a ideia do socialismo revisado determina ainda a efetivação da liberdade social não apenas na esfera econômica, mas nas outras duas esferas de eticidade hegeliana atualizadas por Honneth em “O Direito da Liberdade”. Não apenas no mercado, mas no âmbito das relações pessoais íntimas e no das relações políticas é preciso fazer valer o mesmo princípio de complementação mútua das liberdades. Para Honneth, os primeiros socialistas, localizados num momento de desenvolvimento histórico ainda incipiente, não foram capazes de notar o movimento de diferenciação funcional em esferas de ação distintas na modernidade (embora seja curioso que Honneth apenas replique, em contraposição, uma diferenciação social mínima constatada por Hegel numa Prússia ainda semifeudal). A acusação é obviamente injusta, na medida em que, por exemplo, a elaboração teórica já do jovem Marx tem início justamente a partir de uma reconceituação da diferenciação moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa em Hegel. Em todo caso, é porque ou não teriam notado essa diferenciação funcional ou não a teriam apreendido como um objetivo a ser alcançado, isto é, como uma injunção pela busca da efetiva autonomização tanto das relações privadas quanto das relações políticas em relação à sobredeterminação econômica, que os primeiros socialistas teriam apreendido o socialismo apenas como uma forma de governo e não, como quer Honneth, como uma abrangente forma de vida.

Na mesma réplica aos debatedores do supracitado simpósio de Londres sobre “O Direito da Liberdade”, Honneth oferece uma surpreendente releitura da tese de Hegel sobre o fim da história. Questionado por Jörg Schaub acerca da impossibilidade por parte do método da reconstrução normativa de dar conta de revoluções normativas, isto é, de abalos fundamentais na própria estrutura normativa da sociedade,7 Honneth recorre à abominada tese hegeliana, a fim de aceitar a objeção e insistir sobriamente em sua posição.

E se Hegel não quisesse realmente avançar a estranha e certamente falsa ideia de que, com o começo da era da subjetividade institucionalizada, as lutas sociais teriam chegado a um fim, mas antes estivesse avançando o argumento distinto e mais fraco de que somos completamente incapazes de imaginar um futuro no qual o princípio da subjetividade livre é substituído por um princípio superior, mais elevado? A fala sobre o ‘fim da história’ significaria então que temos uma boa razão para eliminar a possibilidade de uma ‘revolução’ na estrutura normativa da sociedade; e que, na medida em que as lutas e os amargos conflitos ao redor da implementação correta de nossos princípios modernos fundamentais possam continuar, eles não excederão o horizonte normativo da sociedade moderna.8

Mais do que seu mestre Habermas, que defende até razoavelmente que ainda nos movemos no horizonte da modernidade,9 Honneth acredita que nunca o iremos ultrapassar, mas apenas realizar progressivamente os seus potenciais. Se é verdade, com e contra Honneth, que os movimentos socialistas de toda espécie visaram e ainda visam uma superação do capitalismo não apenas como estrutura de distribuição material, mas sobretudo como horizonte ético-normativo (basta pensar n’ “A Questão Judaica” ou na “Crítica ao Programa de Gotha”), então o socialismo de Honneth, como mal consegue disfarçar, não passa, em qualquer de suas versões, de um derrotismo resignado. Se, segundo um de seus historiadores, o traço teórico marcante da assim chamada Escola de Frankfurt foi a sua impressionante capacidade de “imaginação dialética”, a falta, ou antes, a renúncia à imaginação por parte de seu atual representante oficial, que termina até na adesão à tese da inultrapassabilidade da estrutura normativa da modernidade, justifica o seu crescente reconhecimento não como representante desta tradição, mas, malgré lui, como legítimo herdeiro dos velhos hegelianos.

Notas

1HONNETH, A. “O direito da liberdade”. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

2HONNETH, A. “Rejoinder”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, p. 205, 2015.

3Para citar alguns exemplos: HEINS, V. “Zwischen Habermas und Burke: Axel Honneths Kritikstil in Das Recht der Freiheit”. In: ROMERO, J. (ed.). Immanente Kritik heute: Grundlagen und Aktualität eines sozialphilosophischen Begriffs. Bielefeld: transcript, 2014, pp. 143-156; MOHAN, R. “Normative Reconstruktion und Kritik: Die Subsumtion der Gesellschaftsanalyse unter die Gerechtigkeitstheorie bei Axel Honneth”. Zeitschrift für kritische Sozialtheorie und Philosophie, Vol. 2, Nr. 1, pp. 34-66, 2015; SCHAUB, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions: Normative reconstruction as method of critical theory”. Critical Horizons, Vol. 16, Nr. 2, pp. 107-130, 2015; WILDING, A. “The problem with normative reconstruction”. In: 6th International Critical Theory Conference. Comunicação, Roma, Itália, maio de 2013. Disponível em: https://www.academia.edu/5115504/The_Problem_With_Normative_Reconstruction. Acesso em 3 de agosto de 2016.

4HONNETH, A. “O direito da liberdade”, op. cit.

5Cf. DE CAUX, L. Ph. “Contorno e limites do conceito do social em Axel Honneth”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Vol. 3, Nr. 1, pp. 28-48, 2015.

6DE CAUX, L. Ph. “Um mundo que, por acaso, não é como deveria ser: crítica e explicação em Axel Honneth”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 2017 (no prelo).

7SCHAUBE, J. “Misdevelopments, pathologies, and normative revolutions”, op. cit.

8HONNETH, A. “Rejoinder”, op. cit., p. 209.

9HABERMAS, J. “O discurso filosófico da modernidade: doze lições”. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Luiz Philipe de Caux – UFMG. luizphilipedecaux@gmail.com

Religiões Mediúnicas e a Hiatória / Revista Brasileira de História das Religiões / 2017

Em mais um espaço, aberto pela Revista Brasileira de História das Religiões, vários profissionais reúnem-se para discutir a temática das Religiões Mediúnicas. Trata-se de um assunto extremamente presente na cultura e no cotidiano do povo brasileiro, assumindo a dimensão de um valor caro e partilhado. A crença nos Espíritos, para muito além do Espiritismo é algo vivenciado e orientador do viver individual e coletivo entre nós. Por outro lado, a familiaridade com o invisível, presente nas “mesas” kardequianas e nas “giras” de Umbanda, há muito que se impôs ao repertório das vivências capazes de caracterizar a forma de exteriorizar-se culturalmente do povo brasileiro. Sem fronteiras muito definidas, ultrapassando projetos identitários, essas crenças e vivências são fundamentais para quem se aventura a pensar o Brasil. É com satisfação que vemos hoje, aumentar o número de historiadores, cientistas sociais e cientistas da religião interessados nesses fenômenos e comprometidos com projetos editoriais e de investigação sobre os mesmos.

Neste Dossiê temos, inicialmente, a presença de Pedro Paulo Amorim, abordando a temática da imprensa espírita, em um recorte temporal que vai do século XIX até a década de 1960. Marcos Diniz Silva, por sua vez, estuda a afirmação e legitimação do Espiritismo no campo religioso cearense. Em seguida, Deise Maria Albuquerque de Lima Saraiva e Emanuela Sousa Ribeiro abordam uma questão importantíssima para conhecermos os contornos da literatura espírita produzida entre nós: o papel do negro na mesma. Ainda, sobre o Espiritismo, há o meu artigo, remetendo à discussão sobre as relações entre Espiritismo, Educação e Estado Laico. Pensando as religiões afro-brasileiras, Vanda Serafim aborda as aproximações teóricas entre Nina Rodrigues e Tylor. Já Cairo Katrib contribui com um artigo sobre a controversa figura do Exu no campo umbandista, enquanto os pesquisadores João Luiz Carneiro e Érica Jorge Carneiro refletem sobre a importância da Umbanda Esotérica na conformação da Umbanda no Brasil.

Em nome de todos os escritores que aqui escrevem, agradeço à equipe da Revista Brasileira de História das Religiões por se mostrar sensível e aberta ao assunto que ora reúne os profissionais presentes neste Dossiê. O volume também agrega artigos livres que exploram a diversidade do campo religioso.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Dr. Artur Cesar Isaia


ISAIA, Artur Cesar. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.10, n.28, maio / sete., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution | Julia Gaffield

Em Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution, Julia Gaffield enfatiza a importância de inserir o processo de independência do Haiti no mundo Atlântico, levando em conta suas dimensões políticas, econômicas e diplomáticas no início do século XIX. Ao abordar as relações do Haiti independente com a comunidade internacional do período, com ênfase nas relações com o Império Britânico, Gaffield lança mão do conceito de “estratos de soberania”, emprestado de Lauren Benton (A Search for Sovereignty: Law and Geography in European Empires, 1400-1900, 2004). Mas, enquanto Benton o utiliza para analisar relações entre impérios, Gaffield estende sua aplicabilidade para o estudo do caso haitiano no cenário internacional:

Enquanto o trabalho de Benton foca nos diferentes estratos entre impérios, o caso haitiano demonstra que esses estratos também eram importantes no contexto internacional. O reconhecimento não oficial não culminou em um isolamento diplomático, ocorrendo, inclusive, reconhecimento temporário da independência haitiana pela França. Além disso, esses estratos são visíveis não apenas na diplomacia, mas também nas relações comerciais. Governos estrangeiros estavam visando estender o reconhecimento econômico ao Haiti, ao mesmo passo que retinham seu reconhecimento diplomático (p.13).

Dessa perspectiva, Gaffield enquadra a história do Haiti como a de um país que, embora parcialmente aceito na arena internacional por sua relevância comercial, sofreu profundamente com o fato de não ter sido diplomaticamente reconhecido no início do século XIX por ter fundado sua independência sobre uma revolução de escravos bem-sucedida, desafiando, portanto, as estruturas do escravismo no mundo atlântico.

No primeiro capítulo da obra, a autora nos traz a questão das tentativas do império francês de isolar o Haiti independente no cenário atlântico, reivindicando autoridade legal sobre aquele território, que supostamente atravessava uma situação temporária e que em breve retornaria à jurisdição francesa. A proclamação de independência, assinada por Jean-Jacques Dessalines em 19 de novembro de 1803, continha lacunas que permitiram que os franceses continuassem reivindicando sua autoridade legal sobre o Haiti e visassem apoio no cenário internacional para isolá-lo. A intenção da França em reassumir eventualmente o controle da colônia motivava-se, de acordo com Gaffield, pelo fato de que os franceses “se preocupavam com um espraiamento revolucionário em suas colônias remanescentes no Caribe – Martinica, Guadalupe, e Guiana; visavam também prevenir o monopólio britânico nos mercados coloniais; e almejavam revitalizar o comércio francês no Atlântico” (p. 20).

Dessa perspectiva, proibir o comércio britânico com o Haiti era central para impedir que Londres alcançasse seus desígnios de controlar os mercados atlânticos. Para tanto, os agentes fiscalizadores franceses centraram suas ações nas ilhas de Curaçao e St. Thomas, sob jurisdição batava e dinamarquesa, respectivamente, que eram pontos de partida esseciais para a atividade comercial estrangeira com o Haiti. Embora Paris arrancase das metrópoles europeias a proibição do comércio com o Haiti, a França não possuía meios de patrulhar efecientemente o Mar do Caribe, o que, na prática, permitiu a continuação do intercâmbio entre mercadores estrangeiros estabelecidos em Curaçao e St. Thomas e hatianos. A pressão dos agentes franceses sobre essas ilhas findou quando, em 1807, o império britânico assumiu o controle de ambas. As leis do comércio ultramarino britânico (Navigation Acts) confirmaram as suspeitas francesas sobre os planos geopolíticos de Londres para o Novo Mundo: enquanto elas proibiam o comércio das Antilhas britânicas com o estrangeiro, abriam uma honrosa exceção para o Haiti, evidenciando que o que estava em questão para Westminster era incorporar a ex-colônia francesa às redes de comércio de seu sistema colonial.

Os capítulos 2 e 5 tratam das relações internacionais do Haiti, principalmente com o império britânico. No segundo, Gaffield traz importantes assertivas acerca da limitação do direito de propriedade a brancos, com exceção de poucos imigrantes que arribaram na ilha no período, política esta que será seguida pela proibição de proprietários absenteístas. Abordando os desígnios britânicos em relação ao Haiti, afirma a autora que Londres tentava absorver o território em seu imperialismo. Contudo, nesse capítulo, as questões diretas que envolviam o comércio haitiano com o restante do mundo atlântico relacionam-se não com a Grã-Bretanha, mas sim com outros territórios americanos: a proibição do comércio por parte dos Estados Unidos e também das ilhas de Curaçao e St. Thomas. Por meio dessa restrição no mercado internacional, encontravam os britânicos caminho livre para a efetivação de seus objetivos. O capítulo 5, por sua vez, trata em especial dos anos de 1807 a 1810, época marcada pela guerra civil que dividiu a ilha entre o Norte, comandado por Henry Christophe, e o Oeste e o Sul, governados por Alexandre Pétion, bem como pela limitação das relações econômicas com diversos países do espaço atlântico. Gaffield trabalha com as tentativas daqueles dois governantes de assinar, com o Império Britânico, tratados econômicos de caráter similar àquele negado por Dessalines em 1804 em relação à Jamaica. A historiadora salienta também que nesse período os mecanismos do chamado “império informal” – conceito utlizado para explicar as relações de poder assimétricas entre um Estado mais forte e um mais fraco, em que o primeiro estabelece controle político sobre o segundo sem exercer domínio formal de fato – característico do mundo pós colonial, sobretudo na América Latina, começaram a se delinear nas políticas econômicas entre o Haiti e o império britânico. Gaffield discorre ainda durante o capítulo sobre os elementos que contribuíram para o sucesso da independência da antiga colônia francesa, afirmando que as relações econômicas no mundo atlântico, sobretudo com os britânicos, apesar de seu papel importante, não teriam sido as únicas responsáveis. Em conjunto com esse fator externo, a rígida militarização implantada pelos governantes da nova nação, em detrimento dos direitos individuais, foi um elemento crucial para o sucesso da emancipação.

No capítulo 3, a autora trata dos múltiplos “estratos de soberania” da independência haitiana por meio da análise de quatro julgamentos envolvendo navios mercantes pelo departamento da marinha britânica, capturados e sentenciados em dois momentos distintos (dois em 1804 e os outros em 1806). Aqui, Gaffield mostra questões relativas ao status ambíguo do Haiti no espaço atlântico, já que nos primeiros casos a ilha foi considerada uma colônia francesa e, portanto, proibida de comerciar, e nos últimos um reconhecimento temporário da soberania foi concedido, já que o comércio exercido com os haitianos não foi julgado ilegal. Tal mudança de atitude britânica, segundo a historiadora, deve-se às tentativas cada vez mais assíduas de estabelecimento de acordos econômicos entre as duas nações, mesmo que a recognição diplomática ainda não fosse uma realidade. Nesse sentido, Gaffield afirma que o reconhecimento da soberania temporária “permitiu que tanto britânicos como negociantes estrangeiros tivessem acesso aos benefícios financeiros disponíveis por causa da independência de fato da ilha em relação à França” (p. 114).

No capítulo 4, a autora aborda a relação dos Estados Unidos com o Haiti, e aqui mais uma vez as trocas comerciais entre as duas nações, bem como a tentativa de estabelecimento de acordos formais entre os governos, servem de exemplo para mostrar o lugar significativo que a ex-colônia ocupava no mundo atlântico. Mesmo com a proibição do comércio de 1806 a 1810 envolvendo os dois países, assunto igualmente tratado neste capítulo, as transações mercantis entre eles mostram-se valorosas já nos primeiros dois anos de independência haitiana, e logo retornam com a expiração do decreto de Thomas Jefferson responsável pela proibição das trocas comerciais com o Haiti. Apesar disso, assim como ocorreu no império britânico, os benefícios econômicos daqui advindos não implicaram reconhecimento diplomático do novo país americano, o qual só ocorreria em 1862, malgrado tais benefícios terem grande influência nas discussões do Congresso americano sobre a suspensão das trocas comerciais ocorridas entre 1804 e 1806.

A produção historiográfica focada no século XIX haitiano é recente, e o trabalho de Gaffield mostra-se importante não apenas pela análise lúcida das conexões estabelecidas entre a ilha e o mundo atlântico, mas também por contribuir para o próprio entendimento da situação interna do país nos primeiros anos de sua independência. Mas, como a historiografia em geral vem mostrando há décadas, o estudo da independência do Haiti no início do século XIX é essencial também para a compreensão das dinâmicas do mundo ocidental do período. Situada no ínterim marcado por transformações de caráter político, econômico e social, sua independência se ajusta cronologicamente às transformações que moldaram o mundo moderno. Obras magistrais que abordam as agitações e mudanças do período do ponto de vista de uma grande angular, como os clássicos The Age of the Democratic Revolution (1959 – 1964), de R. R. Palmer, e The Age of Revolution, 1789-1848 (1963), de Eric Hobsbawm, centraram suas análises no mundo europeu e nos Estados Unidos da América, excluindo o Haiti (bem como, poderíamos dizer, o Brasil). O livro de Gaffield, portanto, insere-se num panorama de renovação desse campo.

As fontes para a realização de um estudo como o de Gaffield são encontradas principalmente nas línguas francesa e inglesa. Apesar de se concentrar inicialmente nos arquivos francese e haitianos, a historiadora também percorreu arquivos nos Estados Unidos Inglaterra, Jamaica e Dinamarca a fim de reconstituir o conjunto das ligações atlânticas do Haiti e, assim, superar o estreito círculo da história nacional. A própria natureza desses documentos, divididos entre debates do Congresso norte-americano, correspondências diplomáticas e de comerciantes e registros de tribunais, espalhadas por vários territórios atlânticos, só reforça a ideia do não isolamento do Haiti no período analisado.

Gaffield, assim, nos traz à tona a desenvoltura do processo formativo do Haiti em sincronia com outros quadrantes do mundo atlântico. Segunda nação independente do continente americano, formada por ex-escravos, com uma população composta em sua esmagadora maioria por negros, e ainda importante economicamente apesar do relativo declínio após o início de seu processo revolucionário (1791), o Haiti fez convergirem para si os olhos das duas principais potências do período, os impérios britânico e francês, além dos EUA. Sua notabilidade internacional possuía raízes econômicas e políticas. Enquanto a ex-colônia oferecia oportunidades comerciais relevantes aos grandes atores internacionais do período, ela também inpirava temores por ter nascido de um movimento revolucionário de escravos que, se tomado como exemplo, poderia levar ao desmoronamento do escravismo colonial nas Américas. Como sugere Gaffield neste breve, porém iluminador trabalho, o Haiti, isolado pela comunidade ocidental devido aos temores que inspirava, mas fortemente integrado a ela por outras vias, parece, desde suas origens até nossos dias, ter como destino pôr a nu os paradoxos do capitalismo.

Isabela Rodrigues de Souza – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.

João Gabriel Covolan Silva – Estudante de graduação em História na Universidade de São Paulo.


GAFFIELD, Julia. Haitian Connections in the Atlantic World: Recognition after Revolution. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2015. Resenha de: SOUZA, Isabela Rodrigues de; SILVA, João Gabriel Covolan. Formação do Haiti no mundo atlântico do século XIX. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 359-364, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina | José Carlos Chiaramonte e Carlos Marichal

Em 1860, a província de Buenos Aires encontrava-se separada das outras com as quais havia formado o Vice-Reino do Rio da Prata e mergulhada em debates acerca de se, e como, deveria realizar uma reintegração nacional. Um editorial do periódico El Nacional, de propriedade de Bartolomé Mitre, tratou de colocar em pauta a questão do nome que assumiria o país resultante dessa reunião. O autor antecipa seus críticos: embora pudesse parecer impossível recorrer à “questão de nomes” sem “cair na trivialidade”, ela envolvia “outra questão de honra e de vergonha”.

É de momentos como este que Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina se nutre. O livro, publicado em português pela primeira vez este ano pela Hucitec e originalmente em espanhol em 2008 pela Editora Sulamericana, aposta na importância que os nomes assumiram em tais momentos, para usá-los como novos pontos de observação da história das nações. Dezesseis nomes hoje reivindicados por países e regiões da América Latina são examinados em dezessete artigos de autores diferentes, dois deles dedicados ao México. O conjunto da obra apresenta mais altos que baixos e tem na coerência com seus pressupostos uma característica da qual deriva duas de suas qualidades mais interessantes.

A primeira é uma relação de reforço mútuo entre a História aqui praticada e o aparato teórico que lhe sustenta, calcado na ideia de nação como artefato cultural. A importância disso para o trabalho aqui realizado fica evidente em alguns textos. A pesquisa de José Carlos Chiaramonte1 sobre os termos ArgentinaProvíncias Unidas do Rio da Prata e Confederação Argentina se beneficia imensamente da compreensão de nação como entidade circunstancialmente construída. O mesmo pode ser dito sobre o trabalho de Ana Frega, da Universidad de la República (Uruguai), sobre o par oriental/uruguaio, que, interrogado por essa lente, revela o retrato de uma identidade nacional fraturada, cindida originalmente pelas diferentes reações ao movimento juntista de 1810 esboçadas pelo governo de Montevideo e pelos habitantes do restante da banda oriental do rio Uruguai. Ambos os casos apresentam conflitos que, lidos a partir da noção essencializada da nação, perderiam importância. Seus resultados já estariam determinados de antemão pelo presente. A história dos nomes assim alimentada se restringiria a uma história da revelação do nome, da vitória do nome atual. A nação inventada liberta os eventos passados de destinos inexoráveis e dá voz aos diferentes projetos apresentados nas instâncias de discussão destas questões. Os nomes deixam de ser sinas e tornam-se símbolos, prenhes de expectativas e desejos; suas histórias deixam de ser a narrativa de suas descobertas e convertem-se em reflexões acerca de seus usos. A abordagem assim concebida, por sua vez, transforma-se em importante testemunha contra uma representação reificada da nação ao possibilitar uma indexação de eventos que confirmam a natureza histórica da nação. A imbricação entre a história aqui praticada e a teoria que lhe dá substância se revela recíproca. O estudo de Pablo Buchbinder, da Universidad de Buenos Aires, sobre Paraguai é emblemático disso, pois captura na indecisão em estabelecer-se como república ou província as dificuldades de autodeterminação enfrentadas por uma individualidade próxima o bastante a Buenos Aires para estar em sua esfera de influência, mas distinta o suficiente para não ser por ela absorvida.

A aglomeração das várias histórias nacionais no espaço de experiência latino-americano é o segundo ponto de interesse decorrente do pressuposto teórico da nação como construção. A justaposição dos casos individuais confere ao livro muito de sua força explicativa e permite que os casos específicos elucidem uns aos outros. A construção de si passa pelo reconhecimento do outro; histórias como as aqui escritas precisam necessariamente superar as fronteiras nacionais, com as quais seus objetos nem sempre coincidiram.

Alguns nomes se prestam mais que outros para exemplificar essas relações transnacionais. Os assumidos pelas repúblicas construídas no antigo território da Gran Colombia estão entre os mais úteis para sublinhar o papel do outro na definição de si. Venezuela foi, de acordo com Dora Dávila Mendoza, da Universidad Católica Andrés Bello (Caracas), uma identidade em cuja construção a percepção de si esteve informada pela presença do outro. A indeterminação histórica da formação de um território venezuelano, em mais de uma ocasião englobado por outros nomes (designado, por um momento, como parte do vice-reino de Nova Granada; e, em outro, como componente da Gran Colombia) orientou parte significativa da produção historiográfica do país.

Aimer Granados, do México, dá conta de como o pensamento político de Bolívar expressava-se exemplarmente no nome Colombia, que engendrava um projeto de superação das identidades locais através da grande pátria americana. A Gran Colombia foi o corolário desse desejo, um projeto de nação que incluía os atuais territórios de Equador, Venezuela e Colômbia. Mesmo após seu esfacelamento o nome persistiu, herdado pelo antigo vice-reino de Nova Granada; se a república que hoje existe neste antigo território herda seu nome do sonho falido de Bolívar é porque houve um esforço consciente por parte de uma elite para inventar uma tradição. O autor relata que, no momento da emancipação, o termo Nova Granada possuía mais potencial aglutinador que o termo sobrevivente.

A influência da alteridade na formação da individualidade nacional segue relevante, mas de forma surpreendente, na história por trás do nome adotado pela outra entidade política que surgiria com a derrocada da Gran Colombia. Ana Buriano, do Instituto Mora, México, relata como Equador, que foi um nome usado para se referir ao território após as missões científicas francesas de 1736 destinadas a estabelecer a forma exata da Terra, significou a possibilidade de consenso entre as rivais Guayaquil, Quito e Cuenca. Historicamente neutro, o nome permitiu que o território construísse sua identidade sem que uma das partes se impusesse sobre a outra.

O caso mais emblemático da presença da alteridade na formação do eu nacional, porém, está nos artigos dedicados aos países que compartilham a ilha de São Domingos. O historiador porto-riquenho Pedro L. San Miguel defende que o nome República Dominicana representa uma ruptura com os governos de Espanha e Haiti, de quem a comunidade esteve próxima em outros momentos. Abandonando o São Domingos colonial, a nação se marcava como república independente e, ao mesmo tempo, evocava o antigo nome espanhol como forma de se diferenciar do vizinho, tônica forte na construção de sua identidade. O passado do nome Haiti, que para os taino, habitantes originais, significava toda a ilha, foi questionado no marco desse desejo de oposição. Quisqueya foi a alternativa encontrada pelos dominicanos, chegando a constar do hino nacional, embora seja considerado exemplo de revisionismo politicamente enviesado.

Interessantemente, Guy Pierre, professor de História Econômica da Universidad Autónoma (México), dirá que as fontes não permitem afirmar que a ilha se chamava Ayiti, embora exista um virtual consenso sobre o assunto. Mais importante para ele, porém, são os conteúdos de futuro e passado que podemos depreender do batismo. Dessalines, ao escolher o nome taino, expressava uma ruptura com a Saint Domingue escravista e apontava para um porvir de liberdade, significado informado também pela referência ao momento pré-colombiano, e, portanto, anterior ao cativeiro.

Os nomes e os batismos foram, no pós-independência latino-americano, ferramentas comumente usadas para marcar novos começos. Jesús Aguilar, da Pontifícia Católica do Peru, nos traz um exemplo capaz de mostrar que os nomes não servem somente para fundar novas eras. O termo Peru, mantido na passagem do vice-reino à república independente, é lido aqui como expressão do desejo de continuidade, o que nos demonstra como elites locais encontraram valor justamente no caráter inercial da palavra. O termo se confundia com o momento da colônia. Seu conteúdo temporal sugere um futuro idêntico ao passado, alimentado pela memória de levantes de nativos.

O tema indígena é um dos principais enfoques dos trabalhos dedicados aos termos Bolívia e México. O trabalho de Esther Aillón, da Universidad de San Andrés (Bolívia), faz astutas observações acerca da existência de uma identidade organizada ao redor do imaginário inca que conferiu capacidade de atuação e espaço de pertencimento a um setor da população não contemplado no projeto nacional boliviano. Uma das contribuições da história dos nomes para o estudo das identidades é a possibilidade de mapearmos o arraigamento destas a partir da verificação da adoção daqueles. É por este mecanismo que a autora demonstra a importância da experiência da Guerra do Chaco (1932-1935) para que uma integração fosse observada.

O caso mexicano é notadamente distinto, pois o mesmo dispositivo nos mostra que, em vez de marginalizada, a memória do passado pré-colombiano foi um eixo aglutinador. É único também no contexto da obra, que lhe dedica dois artigos, suficientemente distintos para que ambos tenham contribuições a oferecer. Dorothy Tanck de Estrada parte da reação crioula a uma crítica do século XVIII, feita à vida intelectual mexicana – palavra aqui entendida em seu sentido original, referente à cidade do México – e inicia uma reflexão acerca da expansão das fronteiras do termo a partir daí. O trabalho de Alfredo Ávila, da Universidad Autónoma, por sua vez, evidencia a natureza histórica da atual composição territorial do país. Sua tese assenta na percepção de que os mesmos nomes foram, por diversas razões, compartilhados por regiões diferentes. México engendrava tanto a cidade capital do vice-reino quanto a região sob sua influência. Nova Espanha, por sua vez, tinha tantas formas quanto tinha facetas a soberania do vice-rei. Estava definida pelo alcance de sua autoridade, que era variável nas diferentes esferas em que ele a exercia.

Similar à Gran Colombia até onde também representa uma resposta agregadora à emergência das soberanias locais, o nome Centroamerica nos é apresentado pela costa-riquenha Margarita Silva Hernández como conceito histórico-político, diferenciando-se de América Central, que designa um espaço geográfico. A autora nos traz a importância de um na composição do outro, o que integrou as características de seu espaço no caráter de sua identidade. Para ela, o feitio de istmo significou a compreensão do território como passagem. Entre o mundo inca e o asteca. Entre o Atlântico e o Pacífico.

O estudo dedicado a Chile é outro que olha para a influência de uma percepção do espaço na formação da nação e de sua organização política. Visto primeiro como ermo e hostil, e depois como “cópia feliz do Éden”, o território entre os Andes e o Pacífico, limitado ao norte pelo Atacama, teve desde os primeiros momentos da emancipação quem quisesse dar forma política às suas fronteiras geográficas. A realidade do nome como ponto nodal permite que Rafael Baeza, da PUC do Chile, reúna na mesma narrativa esta dimensão, características da identidade do país, visto como estável e ordenado, e a da política, percebida como autoritária e centralista.

José Murilo de Carvalho, o brasileiro convidado para a coleção, tira também proveito do caráter do nome como espaço de encontros e sugere, na interação das imagens religiosas (Ilha de Vera Cruz; Terra de Santa Cruz), exóticas (Terra dos Papagaios), econômicas (Brasil), temporais (mundus novus; realização do império futuro português), a formação de uma identidade ressentida de seu passado. Os nomes se prestam a revelar essa mágoa; a prevalência do nome de uma madeira vulgar e o abandono dos que faziam referência à religião é vista como causa da decadência do país. Similarmente, a tentativa de encontrar na mítica Hi-Brazil, ilha fantástica do imaginário europeu medieval, uma nova raiz para o nome da nação, é, segundo o autor, declaradamente um esforço para estabelecer uma origem “mais agradável ao espírito e ao coração dos brasileiros”.

Os artigos dedicados a Puerto Rico e Cuba desenvolvem descrições bem embasadas de trajetórias interessantes – Rafael Rojas, do Centro de Investigación y Docencias Económicas (México) nos descreve as diferenças de pertencimento entre pátria e nação para o caso cubano e como uma deu lugar à outra. As porto-riquenhas Laura Náter e Mabel Rodriguez Centeno falam sobre as peculiaridades de uma identidade desenvolvida numa unidade política como Puerto Rico, descrita aqui como uma nação sem Estado. As autoras fazem também uma avaliação dos significados de resistência que as diferenças entre Porto Rico e Puerto Rico (bem como entre porto-riquenho e puerto-riquenho) engendrou. O artigo revela desafios específicos à tradução de uma obra desta natureza, que requer atenção a diferenças importantes entre terminologias por vezes similares. O trabalho de tradução de João Ribeiro demonstra sensibilidade nesse quesito e preserva os termos originais quando substituí-los constituiria prejuízo para o texto.

Embora o livro contenha certa desigualdade qualitativa entre os capítulos, o que é habitual em obras coletivas, Criar a Nação revisita temas fundamentais de maneira provocante e deixa a porta aberta para que o leitor encontre paralelos e contrastes capazes de sugerir novas discussões.

Numa famosa passagem de Romeu e Julieta em que reflete sobre a desimportância das palavras diante da realidade ontológica das coisas, a protagonista imagina que uma rosa não teria um perfume diferente se tivesse outro nome. O trecho aparece como epígrafe em Criar a Nação, retoricamente apresentado para que sua premissa seja desmontada. A própria narrativa de Shakespeare desmentiria Julieta, afinal, vítima que foi da história do nome de sua família. Agregamos que o que diferencia “Capuleto” de “rosa” é o conteúdo histórico do primeiro. Existem nomes que integram categorias e nomes que marcam individualidades. Criar a Nação apresenta um caso convincente da importância destes últimos para o historiador: como possibilitadores de projetos, como facetas de identidades, como vestígios por estudar.

Pedro Henrique Falcão Sette – Graduado em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


CHIARAMONTE, José Carlos; MARICHAL, Carlos; GRANADOS, Aimer (Orgs). Criar a Nação: História dos Nomes dos Países da América Latina. Trad. João Ribeiro. São Paulo: Hucitec, 2017. Resenha de: SETTE, Pedro Henrique Falcão. As nações e seus nomes: invenção de entidades e identidades nas emancipações latino-americanas. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 365-371, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

Etnicidade e as políticas das identidades nas sociedades Antigas / Hélade / 2017

Etnicidade: cultura e política

De alguma maneira, a Antiguidade ressoa com bastante frequência quando o debate sobre o problema das etnicidades se enuncia. Não tanto pelo viés fonético, por mais que seja impossível dissociar, no plano da etimologia, a forma moderna do conceito do étimo grego que está na base de sua formulação. O vocábulo ἒθνος, a bem da verdade, possui um escopo semântico assaz versátil: pode ser entendido como “raça”, “povo”, “nação” (BAILLY, 1963), como “pessoas que vivem juntas”, “companhia”, “corpo de homens” (LIDDELL & SCOTT, 1996) e como “grupo mais ou menos permanente de indivíduos” e, em alguns casos, “povos estrangeiros”, “bárbaros” (CHANTRAINE, 1977). Em todas as definições, ἒθνος parece se referir a grupamentos humanos (apesar de se referir, também, a animais) com características particulares, capazes de exibir algum tipo de distinção quando comparados a outros. É uma versatilidade inquestionavelmente oportuna e constantemente evocada.

No entanto, para além do plano gramatical, ressoa a memória que se constrói acerca de eventos que, pela lente do mundo contemporâneo, parecem assumir um caráter fundante de diferenças étnicas observáveis tanto em escala regional quanto global. Refiro-me, nesse caso, à lógica sob a qual se opera a bem conhecida dissensão entre Oriente e Ocidente nos termos que Edward Said propõe no clássico Orientalismo (1978): discurso estratégico, politicamente estruturado no marco de um projeto imperialista. Na pista proposta por Kostas Vlassopoulos (2013, p. 1-2), vale recordar a controversa remissão à Batalha de Maratona, ocorrida no verão de 490 a.C., como o evento que teria fundado o longo histórico de embates entre Ocidente e Oriente e que, dentre outras coisas, segundo a leitura rápida de alguns, culminou com o atentado às Torres Gêmeas ocorrido em Nova Iorque em setembro de 2001. Observe-se, por exemplo, a difícil afirmação de Anthony Pagden, também mencionada por Vlassopoulos:

Maratona marcou o fim da primeira Guerra Greco-Pérsica. Fez descer a cortina do primeiro ato do grande drama trágico de Heródoto acerca do conflito entre Europa e Ásia, entre Gregos e Bárbaros. A partir de então, Maratona passou a ser aceita como um turning point na História da Grécia e, posteriormente, de toda Europa. Foi um momento de resiliência de uma forma política incomum – a democracia – e a confiança dos gregos em sua particular noção de liberdade foi posta à prova e emergiu triunfante (PAGDEN, p. 25).

Não é difícil reconhecer nessa narrativa a célebre e cada vez mais questionada lógica de herança que parece atribuir à Antiguidade – e à Antiguidade Clássica, em particular – toda sorte de legados históricos que amparam um movimento de naturalização de disposições sociais que, por sua vez, seguem insolúveis por força do desejo preclaro de não os solucionar. Resiste, por força de uma disposição frequentemente criticada pelas análises pós-coloniais (e, mais recentemente, pelo “giro decolonial”), a lógica de produzir estereótipos que fundam a imagem de um “bárbaro” tiranizado, escravo de suas paixões, excessivo e indisponível para o diálogo, mais especificamente para o diálogo democrático. Afinal, no mundo contemporâneo, não estamos mais diante dos persas liderados por Xerxes, mas de uma política que toma a História antes como a algema com que se ata as próprias mãos do que como um espaço de problematização para refletir sobre nossos conflitos e colocá-los em perspectiva.

É precisamente pela resistência a um tipo de lógica civilizacional2, marcadamente de caráter Iluminista, que parecia utilizar a cultura como símbolo diacrítico evocado para hierarquizar modos de vida, que o tema da etnicidade – um conceito que o pensamento social abraçou de modo entusiástico principalmente a partir da década de 1970 – propõe entender a cultura não como um fim em si, mas como um elemento politicamente reivindicado. Afinal, “a fronteira étnica depende da cultura, utiliza a cultura, mas não é idêntica a esta última tomada em seu conjunto” (CARDOSO, 2005, p. 186). O que está na base, portanto, das recentes análises do fenômeno da etnicidade, são os usos políticos da cultura, e não apenas o caráter fronteiriço que ampara processos de diferenciação social livres de toda sorte de conflito. Há, nesse ponto, um esforço cada vez mais insistente de resistência, no plano teórico e empírico, aos princípios que outrora ligavam perigosamente o conceito à ideia de raça e, portanto, a um viés essencialista, bem como ao primado do subjetivismo por longo tempo explorado a partir da sociologia weberiana. É por esse traçado que se torna menos usual tratar as identidades (em particular, as identidades étnicas) como algo que responde por si, como um objeto ligado aos sujeitos e alheio à influência das estruturas sociais. Pensar etnicidade implica, por princípio, uma reflexão sobre a política das identidades. Afinal, como bem observou Todorov (2010, p. 64), “o bárbaro não é, de modo algum, aquele que acredita na existência da barbárie, mas quem está convencido de que uma população ou um indivíduo não pertencem plenamente à humanidade e merecem tratamentos que ele recusaria resolutamente aplicar a si mesmo”. É precisamente por isso que, ainda segundo o autor, “o medo dos bárbaros é o que ameaça converter-nos em bárbaros” (TODOROV, 2010, p. 15). Trata-se – insisto – de um fato político culturalmente justificado.

Não sem razão, a proposta do dossiê Etnicidade e as políticas das identidades nas Sociedades Antigas teve uma excelente acolhida. A variedade de povos antigos analisados pelos autores que submeteram suas propostas é um poderoso indicativo para pensarmos a amplitude do problema, as inúmeras possibilidades de abordagem, a diversidade de documentos passíveis de estudo, bem como os métodos que permitem a construção de críticas de inegável qualidade acadêmica. Também indica o caráter contemporâneo da questão, posto que este é o estopim para que nossos interesses e projetos políticos convirjam para o estudo das sociedades históricas.

Notas

2. Como sinalizou Todorov em sua crítica (2012, p. 36), “Barbárie e civilização assemelham-se não tanto a duas forças que lutam pela supremacia, mas a dois polos de um eixo ou a duas categorias morais que nos permitem avaliar os atos humanos particulares”

Referências

Dicionários

BAILLY, A. Abrégé du Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librarie Hachette, 1950.

CHANTREAINE, P. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grècque. Paris: Librarie C. Klincksieck, 1963.

LIDDELL and SCOTT’S. An intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1992.

Bibliografia

CARDOSO, C. F. S. Um historiador fala de teoria e metodologia: Ensaios. Bauru: Edusc, 2005.

PAGDEN, A. Worlds at War. The 2,500-year struggle between East and West. New York: Random House, 2008.

TODOROV, T. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

VLASSOPOULOS, K. Greeks and Barbarians. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,3, n.2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Viagens e narrativas (auto)biográficas | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2017

Quem nunca se imaginou atravessando terras, céus e mares em busca do desconhecido, do inusitado, do novo? Uma propaganda e até mesmo uma revista que se vê de relance em uma banca de jornais despertam o desejo de partir, sumir, mudar, experimentar. Apesar de sempre ter existido a curiosidade pelo estranho e o exótico, o educador Francisco Venâncio Filho (1941)1, considerava que, o gosto pela viagem era moderno na medida em que se tornara possível viajar pelo livro, pela revista ilustrada ou pelo cinema. No seu entendimento, elas podiam ser de diferentes gêneros e espécies: de negócio, de saúde, de luxo, de recreio e de cultura, exigindo sempre um cuidado especial. Assinalava, ainda, existir, uma “encantadora psicologia da viagem” (idem, p. 119), como sugeria Paul Morand, em Le voyages (notes e maximes), o que envolvia um projeto com previsão de custos e itinerários, o que seria precedido da reunião de mapas, guias, prospectos e conhecimento de uma literatura especializada, capazes de fornecer informações preciosas e precisas. No delineamento de uma certa pedagogia da viagem, Venâncio Filho, sinaliza para a importância de estudo e planejamento, como a necessidade de viajar com pouca bagagem, comprar o menos possível e conhecer pelo menos cem palavras do país visitado para ter acesso a números, moedas, passagens e alimentação. Alertava ainda: “A preparação cultural da viagem torna-se condição para que se aproveite o mais possível” (idem, p. 123). Leia Mais

O tráfico de Escravos Africanos: Novos Horizontes / Tempo / 2017

A escravização e o transporte forçado de africanos para as Américas possibilitaram a exploração intensiva da mão de obra de milhões de indivíduos, influenciando profundamente o desenvolvimento das sociedades americanas, das nações europeias diretamente envolvidas na colonização e das sociedades africanas escravizadoras e escravizadas. O tráfico de escravos e as lutas por sua extinção no século XIX foram fundamentais para definir as identidades de negros e brancos, legando importantes consequências socioculturais no mundo atlântico. Por isso, esses temas seguem inspirando profícuos trabalhos nos campos das ciências humanas, notadamente na história. Desde o lançamento do banco de dados Voyages (<slavevoyages.org>) em 2008,2 esses estudos ganharam uma ferramenta central de investigação. Totalizando informações de aproximadamente 35 mil viagens pelo Atlântico, Voyages tornou possível redimensionar os dados até então conhecidos sobre o infame comércio de seres humanos. Hoje, sabemos que cerca de 12,5 milhões de indivíduos foram embarcados e transportados em condições degradantes em navios de mais de uma dezena de nações. Desses, apenas 10,7 milhões chegaram vivos aos portos de desembarque. Graças ao Voyages, sabemos atualmente também mais sobre a distribuição geográfica desses africanos, as condições a bordo dos navios e outras características importantes do tráfico que gerações anteriores de historiadores.

Além de ser uma monumental fonte de registros sobre o tráfico, Voyages tem influenciando a constituição de outros bancos de dados que vêm se demonstrando ferramentas fundamentais que possibilitam aos estudiosos enveredarem por investigações inovadoras que tanto têm contribuído com novos entendimentos da história da migração forçada de seres humanos. A cada pesquisa que se inicia, um minucioso perfil dessa atividade se desvela. Estudos recentes vêm investindo em aspectos originais que não foram contemplados na plataforma online, mostrando que, mais do que uma operação mercantil, o comércio de africanos provocou transformações em diferentes esferas conectadas pelo tráfico. E não apenas aquelas do contexto atlântico, pois foi um fenômeno de dimensões globais, impactando regiões a milhares de quilômetros de distância.

O objetivo deste dossiê é trazer em primeira mão alguns resultados atuais, inovadores e originais sobre o trato negreiro que vêm renovando a historiografia sobre o assunto. Assim, oferecemos aos leitores textos que tenham como tema principal o comércio de africanos a partir de perspectivas e abordagens diversificadas.

O artigo “Ending the history of silence: reconstructing european slave trading in the Indian Ocean”, de Richard Allen, que abre este dossiê, é inovador em vários aspectos. Primeiramente, por abordar com profundidade um tema que ainda permanece renegado pela historiografia do tráfico de escravos: o comércio de cativos realizado nas águas do Índico, rompendo com um padrão “atlântico-cêntrico”.4 Em segundo, por apresentar uma meticulosa análise de documentos recentemente inventariados da Companhia das Índias Orientais Britânica dos séculos XVII e XVIII e de viagens francesas e portuguesas pela localidade, cobrindo um período que vai de 1670 aos anos 1830. Ao deslocar seu campo de estudo para o Índico, Allen propõe que os historiadores passem a analisar esse comércio como uma atividade global, e não apenas regional, dentro de uma imbricada rede mercantil, envolvendo comerciantes de diversas nações europeias e de outras regiões, bem como a escravização de milhares de africanos, indianos, malaios, chineses e outros povos que circundavam o Mare Indicum. Essas atividades impactaram de forma variada e generalizada os Estados e as sociedades locais. Allen revisita também o movimento abolicionista que tomou forma no Índico pari passu àquele do Atlântico, que propunha o fim do comércio de cativos e da utilização da mão de obra escrava, demonstrando, assim, as conexões existentes dessa atividade global. Na parte final de seu artigo, ele lança um estimulante desafio, apontando várias questões que ainda carecem de análises e abordagens mais aprofundadas para que a atividade mercantil escravista do Índico atinja a devida importância no âmbito da historiografia.

Estímulos a novas pesquisas relacionadas com tráfico de escravos também são sugeridos em “Patterns in the intercolonial slave trade across the Americas before the nineteenth century”. Escrito em coautoria por Gregory E. O’Malley e Alex Borucki, esse é o segundo artigo que compõe o dossiê. Nesse texto, os autores focam o estudo das rotas dos escravos no continente americano, outra dimensão da migração forçada de africanos repleta de lacunas a serem preenchidas pelos investigadores. Para muitos africanos escravizados, a chegada a um porto americano após uma dolorosa travessia atlântica não significava o fim da sofrida jornada, mas apenas uma etapa de um caminho que estava por ser concluído. A partir de uma análise qualitativa, os autores buscam esquadrinhar onde e por que as rotas de escravos se desenvolveram nas Américas. O foco da investigação recai sobre o período anterior às abolições do comércio de escravos britânico e norte-americano. Os autores elaboram uma tipologia para diferenciar as modalidades dessa atividade escravista. De forma geral, o tráfico intercolonial se dividia em duas grandes categorias, intraimperial e transimperial, com três ramificações cada, decorrentes das condições de tributação, de legalidade, da capacidade econômica e da política imperial. O bem-sucedido trabalho ora apresentado é um refinado arcabouço conceitual que nos permite enxergar com mais clareza os padrões da prática mercantil escravagista intra-americana. Não à toa, trata-se de um texto que reflete inquietações intelectuais de um grupo de historiadores partícipes de um projeto maior que busca desenvolver uma ampla base de dados intitulada Final Passages: The Intra-American Slave Trade Database. Inspirado pelo Voyages, esse conjunto de informações visa a levantar e tornar público elementos sobre as viagens de escravos pelas Américas. Assim, ao final do artigo, os autores incentivam que mais pesquisadores passem a se dedicar a essa modalidade da migração forçada dos africanos e de seus descendentes que tanto contribuíram para moldar as diversas sociedades americanas nas quais estiveram inseridos.

A modalidade intra-americana do comércio de escravos também é o objeto de análise do terceiro texto que compõe o dossiê, “O tráfico interestadual de escravos nos Estados Unidos em suas dimensões globais, 1808-1860”, de Leonardo Marques. Seu escopo analítico mira as tensões provocadas na esfera pública norte-americana causadas pelo tráfico interestadual no período posterior à abolição do comércio transatlântico nos Estados Unidos. Na primeira parte, Marques nos apresenta um minucioso debate historiográfico sobre a temática, com contribuições de pesquisas recentes que descortinam as relações entre a instituição da escravidão e do tráfico no sul dos Estados Unidos com o desenvolvimento do capitalismo global no Oitocentos. O acirrado debate pró e contra o tráfico interestadual norte-americano é escrutinado na segunda parte do texto. Aqui, ficamos sabendo o quanto essa questão sofria influência de processos atlânticos e hemisféricos. O tráfico doméstico norte-americano nos é apresentado como constituinte de uma rede mercantil mais ampla, que envolvia territórios no Caribe, África e Brasil, causando tensões diplomáticas internacionais, ao mesmo tempo que impactava sobremaneira o debate interno existente entre os defensores e os contrários ao tráfico e à escravidão no âmbito doméstico.

No século XIX, o debate em torno da legalidade ou não do tráfico de escravos calcava-se em argumentos de caráter econômico, mas também humanitários. Eram seres humanos, afinal, os transportados em condições degradantes pelas águas do Atlântico. Muito pouco se sabe ainda sobre a história de vida desses indivíduos que foram obrigados a realizar essa longa jornada, que muitas vezes se iniciava nos sertões africanos, estendendo-se até o interior do continente americano. O quarto texto do dossiê, “The slave ship Manuelita and the story of a Yoruba community, 1833-1834”, escrito por Olatunji Ojo, nos revela quem eram alguns desses africanos. Em plena era da abolição, a apreensão de um navio cubano em 1833 por forças anglo-espanholas fornece ao autor um caminho para descortinar o passado desses sujeitos. Por meio da utilização da base de dados African Origins (<www.african-origins.org>) e de outros materiais investigativos, Ojo estabelece quem eram esses escravos, suas origens, os trajetos por eles percorridos, os processos e o contexto de escravização pelos quais passaram na África, suas afinidades sociais e familiares pré-escravistas, bem como suas experiências no domínio da escravidão. Vale apontar o destaque dado pelo autor aos impactos causados pelo tráfico de escravos, acarretando guerras generalizadas, além do papel atuante dos africanos no processo de captura e venda dos escravos nas rotas mercantis da Iorubalândia.5 Por serem descritos nos registros coevos como sendo lucumis-ecomoshos,6 os sobreviventes que chegaram a Havana direcionam a investigação ora apresentada para a análise da questão identitária dessa região africana e de como essas mesmas identidades poderiam ser reinterpretadas no contexto americano. O artigo busca esquadrinhar também o processo de condenação do navio no tribunal antiescravista de Havana, de como os recém-libertos foram inseridos na ilha de Trinidad na condição de trabalhadores contratados ou aprendizes, causando repercussões trágicas na vida desses indivíduos.

Por fim, o texto que encerra o dossiê, “Domingos Dias da Silva, o último contratador de Angola: a trajetória de um grande traficante de Lisboa”, escrito por Maximiliano M. Menz, segue os passos da carreira de um importante agente do comércio angolano de escravos. Por meio da análise da biografia desse personagem, Menz soma esforços a uma ampla gama de trabalhos que vêm se dedicando nas últimas décadas a desvelar a complexa engrenagem que movia os negócios negreiros envolvendo agentes das praças de Lisboa, Rio de Janeiro e Luanda. Para tanto, o autor utiliza um vasto manancial documental calcado em um alicerce teórico-metodológico vinculado aos estudos da história econômica clássica e da micro-história. Assim, a trajetória que nos é revelada ilumina o modus operandi dos circuitos mercantis e de seus agentes, responsáveis pela migração forçada de milhões de africanos entre as duas margens do Atlântico Sul.

A publicação desse dossiê pela Tempo, portanto, contribui para a divulgação desses novos estudos, ampliando o espaço de debate e de interesse pela temática, rompendo com a ideia de que a escravização e o comércio de escravos africanos ocorreram exclusivamente na esfera atlântica. Ele também proporciona novos olhares sobre contextos diferentes nos quais a dinâmica escravista exerceu papel fundamental

Notas

1. Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: alexvieira77@gmail.com.

2. Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: domingues@rice.edu.

3. Desde 2015, o banco de dados conta com uma versão em português. Uma primeira versão ainda em inglês fora publicada em 1999 no formato de CD-Rom pela Cambridge University Press.

4. Allen, em seu texto, menciona o historiador francês Hubert Gerbeau como tendo sido o primeiro a apontar a “história do silêncio” em torno do tráfico de escravos no Índico.

5. Região cultural africana do golfo da Guiné que compreende hoje parte da Nigéria, Togo e Benin, habitada pelo povo iorubá.

6. Designação aplicada aos falantes da língua iorubá em Cuba no século XIX.

Alexandre Vieira Ribeiro – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ), Brasil. E-mail: alexvieira77@gmail.com

Daniel B. Domingues da Silva – Departamento de História da Universidade de Rice – Houston(TX), EUA. E-mail: domingues@rice.edu


RIBEIRO, Alexandre Vieira; SILVA, Daniel B. Domingues da. Apresentação. Tempo. Niterói, v.23, n.2, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Feminismo e Política: uma introdução | Felipe Luis Miguel e Flávia Biroli

O objetivo dos autores em Feminismo e Política: uma introdução, como o nome sugere, é propor uma discussão introdutória referente à teoria política feminista, apontando e discutindo as diferenciadas vertentes do movimento feminista, bem como as suas contribuições no combate às desigualdades e na busca de uma sociedade mais justa. A obra, publicada em 2014, é organizada no formato de uma pequena coletânea, que é composta por onze artigos.

Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli são os organizadores e os autores dos estudos. Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UNB, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê. O estudioso é autor de livros como: Mito e discurso político[1] ; Política e mídia no Brasil [2] ; O nascimento da política moderna [3] ; Mídia, representação e democracia [4] ; Coligações partidárias na nova democracia brasileira [5] ; Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia [6] ; Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras [7] ; Teoria política feminista: textos centrais [8] ; Desigualdades e democracia: o debate da teoria política [9] ; Coligação e disputas eleitorais na Nova República [10]; Encruzilhadas da democracia [11] , [1]2 . Leia Mais

O protagonismo indígena na história / Revista Brasileira de História / 2017

Durante os séculos XVI e XVII, professores das universidades do “quadrilátero da luz”, conhecidas como Escola Ibérica da Paz, produziram uma tratadística, expressão de uma consciência crítica, ao colocarem em causa a legitimidade do processo de conquista e colonização das Américas, desafiando os poderes imperial e papal, bem como propugnando o direito de resistência ativa contra a tirania. Em travessia atlântica, na Universitas do aquém-mar, cumprindo seu papel de Alma Mater como promotora seminal de conhecimento, professores e investigadores respondem aos desafios atuais propondo a reescrita dessa história com o foco nas formas de resistência dos povos indígenas.

Revista Brasileira de História atendeu, precisamente, ao imperativo de repensar esse “protagonismo indígena” ao colocar o agenciamento dos sujeitos individuais ou coletivos em múltiplos cenários e diferentes dinâmicas ao longo da história. Essas releituras historiográficas evocam a atuação dos povos indígenas como epicentro de análise para a compreensão, explicação e construção de outras narrativas que manifestam formas criativas de resistência, composição de novas identidades, campos de saberes nativos, ressignificação de práticas e discursos, constituição e organização de movimentos, entre outros tópicos que vicejam na América Latina. Abarcando um largo espectro temporal e geográfico, o corpus do Dossiê atendeu a um amplo cenário, desde tempos imemoriais plasmados nos vestígios de cultura material à luta contemporânea pelo direito à terra.

No artigo “A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas”, Maria Regina Celestino de Almeida contextualiza o importante debate acadêmico dos anos 1990 que provocou uma renovação teórico-metodológica na tessitura entre as histórias dos índios, as histórias regionais e a história do Brasil. Recorrendo a um amplo conjunto documental, apresenta um percurso sobre temas de investigação, com o estabelecimento de acordos e negociações entre o domínio português e indígenas, assegurado no sentido da vassalagem ao rei, dentro da lógica da economia do dom do Antigo Regime, que foi apropriado pelos indígenas no Rio de Janeiro para alcançarem seus próprios objetivos.

“As cachoeiras como bolsões de histórias dos grupos indígenas das terras baixas sul-americanas”, escrito em coautoria por Fernando Ozorio de Almeida e Thiago Kater, traz um viés arqueológico, numa articulação criativa, densa e interdisciplinar com a história, sobre o entorno de cachoeiras das terras baixas sul-americanas, tomadas como lugares para realização de rituais, que se constituíram como locus privilegiado de memórias partilhadas e percebido como espaço ancestral, sendo, portanto, um marco cultural da paisagem. Nesse sentido, o protagonismo das sociedades indígenas também se perscruta no horizonte geográfico.

“‘De farinha, bendito seja Deus, estamos por agora muito bem’: uma história da mandioca em perspectiva atlântica”, de Jaime Rodrigues, trata de uma instigante e inédita abordagem sobre a produção nativa da mandioca e sua apropriação pelos europeus. O autor destaca que a domesticação, a produção e a disseminação desse conhecimento marcam a originalidade dos povos indígenas no estabelecimento desses saberes. Contraditoriamente, foi justamente o cultivo da mandioca que possibilitou o comércio atlântico e, por decorrência, a permanência no ultramar.

“A escrita política eo pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c.1753)”, de Eduardo Santos Neumann e Capucine Boidin, propõe uma análise fecunda da dimensão política do protagonismo indígena no marco das discussões sobre a transmigração territorial das reduções jesuíticas que acabou por resultar na guerra guaranítica. Recorrendo a uma exegese minuciosa e crítica das fontes vertidas do original guarani, percebidas mediante o recurso à antropologia política e à análise semântica, os autores descortinam a frontalidade de algumas lideranças por meio da apropriação e instrumentalização da cultura escrita para defender os interesses de parte dos naturais, que se opunham às determinações de transmigração definidas pelo Tratado de Madri. Expressaram o grau de autonomia frente à ingerência jesuítica no sentido de resguardar o autogoverno guarani.

Hal Langfur, com “Canibalismo e a legitimidade da guerra justa na época da Independência”, contribui com uma arguta percepção sobre a dinâmica dos Botocudo frente à implementação da política indigenista encetada por d. João, em 1808, que foi conduzida pelos indígenas entre confrontos, recuos e, sobretudo, comprometimento estratégico com os invasores combatentes, levando à dispersão do conflito e favorecendo visões defensoras de políticas brandas de pacificação e de incorporação dos povos indígenas à sociedade dominante.

“Os índios do Ceará na Confederação do Equador”, de João Paulo Peixoto Costa, apresenta uma versão instigante da decisiva participação dos indígenas do Ceará nesse evento de 1824, tendo em conta seus próprios interesses, marcadamente a garantia da liberdade e do domínio sobre suas terras. Para o autor, a atuação das lideranças, subsumida nos relatos da historiografia tradicional, demonstra a importância estratégica de sua inserção no movimento rebelde, atentando, no entanto, para o fato de que assumiram posições ambivalentes e particulares.

“Passo Ruim 1868: as estratégias dos Xokleng nas fronteiras de seus territórios do alto rio Itajaí”, de autoria de Lúcio Tadeu Mota, analisa criteriosamente, a partir de um ataque dos indígenas, no Paraná, o complexo contexto de relações socioculturais na dinâmica de desterritorialização dos indígenas e suas estratégias para lidar com os invasores e expedições de contato.

“Presente de branco: a perspectiva indígena dos brindes da civilização (Amazônia, século XIX)”, de Márcio Couto Henrique, aborda os múltiplos sentidos dos “presentes”, uma das tópicas mais recorrentes no processo de “mediação” de contato com os naturais. Articulando a discussão na interface entre história e antropologia, o autor desconstrói, de forma engenhosa e muito perspicaz, a ideia da mera sujeição às estratégias da política indigenista. Ele desloca o argumento em direção aos recursos performáticos, apresentando um estudo de caso dos Munduruku, na Amazônia do século XIX, em que os “brindes” foram interpretados de forma distinta ao atribuírem outros sentidos e usos aos objetos.

Henyo Trindade Barretto Filho encerra o dossiê com “‘Protagonismo’ como Vulnerabilização em Demarcação de Terras Indígenas: o caso do acordo judicial para demarcar a terra Tapeba”, um polêmico e complexo debate sobre os recentes procedimentos referentes à demarcação dessa terra no município de Caucaia, zona metropolitana de Fortaleza (CE). O desfecho do acordo sugere o protagonismo dos Tapeba, quando, de fato, tratou-se de expediente escuso das agências do poder público para forçá-los a aceitarem os termos propostos (mesmo que em condições desfavoráveis) como possível solução para contornar a morosidade e os entraves para a demarcação definitiva da TI. O alegado “protagonismo” encobria, efetivamente, um longo processo de “vulnerabilização” dos indígenas a partir da “manipulação dirigida” dos agentes.

Com este Dossiê, os autores constroem “outras” narrativas, que provocam (e exigem) a reescrita da nossa própria história, na qual a atuação dos povos indígenas é tomada na urdidura desse processo. Ao refletirem sobre o longo processo de conquista (ainda em pleno “curso”), atualizam a indagação incisiva e nada retórica de Domingo de Soto: “Com que direito retemos o império ultramarino?”. Hoje, bem sabemos! São tempos reeditados de violações dos direitos dos povos indígenas assegurados pela Constituição de 1988; da destruição da paisagem e do ecossistema, com a devastação de florestas e a ruína de rios pelas mineradoras e pelo agronegócio; criminalização de professores, historidores, antropólogos, missionários, lideranças indígenas, funcionários da Funai e do Incra, integrantes de ONGs; da expulsão covarde dos territórios, despejo compulsório e massacres bárbaros alimentados pela impunidade dos brutais agressores, entre outras expressões da “banilização do mal” assistida pelo Estado brasileiro – que espera-se seja responsabilizado em nome da devida e proporcional reparação (se é que possível) pelos sacrifícios inomináveis dos povos originários. Até esse porvir, lamentavelmente, o apelo atemporal de Francisco de Vitória ainda ecoará retumbante nestes tristes trópicos: “Não é lobo o homem para o homem, senão homem!”.

Maria Leônia Chaves de Resende – Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Investigadora no CHAM / Universidade Nova de Lisboa (Marie Curie Actions – International Fellowships), Pesquisadora do CNPq e da Fapemig. São João del-Rei, MG, Brasil. E-mail: leoniachaves@gmail.com


RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.75, mai. / ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926) | Lúcia Helena Oliveira Silva

Paulistas afrodescendentes é o esperado fruto da tese de doutoramento de Lúcia Helena Oliveira Silva, defendida no ano de 2001, e se insere no contexto de consolidação do pós-Abolição como um campo autônomo de investigação historiográfica. Informado pela historiografia social da escravidão e do processo de abolição do trabalho escravo no Brasil, o estudo desvenda os caminhos que ex-escravos e seus descendentes trilharam ao buscar melhores condições de vida e ampliação da cidadania e conferir significados próprios à liberdade durante os anos posteriores à Abolição.

Desde os anos 1980 a historiografia social brasileira procura associar o tema das relações raciais com o problema gerado pelas tentativas de controle social da classe trabalhadora. A historiografia social do trabalho enquadrou essa especificidade do Brasil republicano com a compreensão das mais diversas esferas da vida cotidiana dos sujeitos. A perspectiva tem sua explicação no fato de que a questão do controle social, quando abordada pelo viés da experiência cotidiana da classe trabalhadora, ressalta o caráter da disputa política presente na vida cotidiana dos agentes sociais. Historiadoras(es) do pós-Abolição brasileiro têm percebido que a luta por cidadania da população negra também pode ser assimilada quando analisada à luz das práticas sociais dos sujeitos em seus dia a dia, e não só da realização de movimentos de reivindicação (Sidney Chalhoub, “Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque”).

Desse modo, Paulistas afrodescendentes é um livro que fornece ao leitor importante imersão no panorama teórico por que o campo acadêmico do pós-Abolição brasileiro passou entre os anos 1990 e 2000. Nele está presente o viés metodológico que privilegia as visões da liberdade que os sujeitos mobilizam para elaborar estratégias de garantir a manutenção de suas vidas no mundo após o fim do cativeiro.

O texto de Lúcia Helena Oliveira Silva revela os anos iniciais da República como um período recheado de expectativas orientadas pelos padrões socioculturais do mundo escravista do século 19, mas também engendradas pelas novas condicionantes sociais no Brasil após a abolição. A autora segue a tendência, muito presente na historiografia desde o fim da década de 1990, de demonstrar que a relação de negros com a sociedade pós-escravista foi marcada por numerosas redefinições, todas elas pautadas em concepções de cor que tenderam a se transformar com o passar do tempo, fosse para negros ou para brancos – como apontou o estudo de Hebe Mattos, Das Cores do Silencio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (1995).

Sendo assim, juntando-se a uma historiografia que começou a assumir as visões da última geração de escravos brasileiros como um problema histórico importante, a historiadora não se limita a atestar a marginalização dos ex-escravizados no mercado de trabalho. Oliveira Silva interpreta as estratégias de resistência de uma parcela da população negra paulista, acompanhando suas trajetórias e seus desejos de protagonizar uma vida mais justa frente ao convívio intenso que tiveram que ter com imigrantes, poder público e as economias de lugares como o estado de São Paulo e a cidade do Rio de Janeiro.

Protagonizar uma vida com melhores condições econômicas e com a efetividade do direito à cidadania não poderia deixar de levar em conta toda uma experiência acumulada durante os anos do cativeiro. Portanto, o racismo, somado à falta de acesso à propriedade e ao mercado formal de trabalho, contribuiu para a escolha da migração como solução por parte dos ex-escravizados e seus descendentes. Mobilidade territorial, nesse contexto, significou, para muitas mulheres e muitos homens, tomar as rédeas de suas vidas e lutar por mais direitos. Oliveira Silva propõe a noção de redes de solidariedade e de trajetórias para apreender o horizonte de experiências que a população negra de migrantes paulistas teve de lidar para resistir ao racismo pós 1888.

O debate sobre mobilidade territorial e migração no pós-Abolição tem importância historiográfica. Inspiradas por uma historiografia norte-americana que entende que migrar foi uma dimensão crucial da noção de liberdade, Ana Lugão e Hebe Mattos sugerem que o exercício da liberdade de movimentação do ex-cativo significou uma possibilidade de realizar rotas que poderiam proporcionar melhorias na condição de vida (O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas, 2004). Migrar traduzia a necessidade dos agentes históricos de constituir família, obter moradia e trabalho em locais onde as redes de solidariedade amenizassem a experiência do racismo.

A publicação do livro de Lúcia Helena Silva contribui para o cenário da historiografia nacional, tendo em vista os diálogos que seu texto estabelece com as gerações posteriores de historiadores. Esse texto pertence a um grupo que soube enfrentar o problema com as fontes que os temas relacionados ao pós-Abolição apresentam. Para acessar a experiência histórica dos ex-cativos, os historiadores dependem de documentação que só parcialmente comunica a cor dos indivíduos negros. A maior parte costuma ocultar a cor das pessoas envolvidas. De maneira muito habilidosa, Silva analisa os livros de registros de presos da Casa de Detenção da Corte (posteriormente denominada de Distrito Federal) que, por ser uma fonte policial, em muitos casos apresenta a cor dos presos, além de evidenciar o seus locais de emigração. Desse modo, a autora traça um quadro geral sobre os locais de habitação e os locais por onde os migrantes negros paulistas circularam e viveram na cidade do Rio de Janeiro.

Mas os livros de registro deixam de fora aspectos da rotina daqueles personagens. Como alternativa metodológica, Silva usa processos criminais e cíveis para captar os padrões de sociabilidade dos habitantes das regiões estudadas (p. 140). Enquanto os livros da Casa de Detenção fornecem indícios quantitativos sobre a repressão aos negros na cidade carioca, os processos delineiam um caminho qualitativo para a análise das experiências de negras naquela cidade.

A utilização de processo-crime também contribui para a coleta de evidências acerca das condições de vida, trabalho, lazer e religiosidade da população negra. Servindo-se de relatos orais, periódicos da grande imprensa, anuário estatístico e imprensa negra, a autora mescla informações de diferente natureza para delinear o quadro de racismo e de situações adversas que negros tiveram que enfrentar.

Quanto à periodização, a autora esclarece que “partimos de 1888, data da Abolição, e concluímos com 1926, data que marca o fechamento do jornal Getulino e o momento em que o item cor deixa de ser preenchido na documentação da Casa de Detenção” (p. 28).

Antes da análise dos capítulos, cumpre levantar questões metodológicas que nortearam os caminhos investigativos da autora. O caráter empírico da abordagem micro-histórica possibilitou a problematização de práticas sociais no pós-1888. Em alguma medida, para a historiografia do pós-Abolição brasileiro, o método da redução de escala foi a saída encontrada para cumprir com o objetivo de organizar e explicar a sociedade no seu período. Portanto, Lúcia Helena Silva opta pela investigação das trajetórias de sujeitos como uma maneira de se aproximar dos tipos de experiência que o novo mundo republicano possibilitou à população negra. A redução de escala, ao nível das trajetórias individuais ou coletivas, dos conflitos cotidianos, é importante instrumento metodológico para a captação das contradições, dos limites e das escolhas que os indivíduos fazem (Giovanni Levi, “Sobre Micro-História.” In: BURKE, Peter (Org). A Escrita da História: novas perspectivas, 1992.).

Com base nessas premissas metodológicas, Lúcia Silva argumenta que negros enfrentaram fortes dificuldades no Estado de São Paulo devido à mescla de características e estereótipos dos tempos escravistas e à perseguição policial e judicial. A escolha pela migração para lugares onde a vida poderia ser melhor foi uma consequência direta das condições sociais, culturais e econômicas que minavam as oportunidades que negros poderiam ter em São Paulo.

Desse modo, o primeiro capítulo analisa a experiência de vida de afrodescendentes paulistas no campo e na cidade no estado de São Paulo. Aproveitando-se de um processo-crime, de depoimentos orais, artigos da imprensa negra e da imprensa paulista, a autora investiga as sociabilidades e as relações de trabalho da comunidade negra focando nas relações raciais (p. 33). A população negra em São Paulo teve sua experiência social demarcada por conflitos raciais que, pautados em estereótipos grosseiros, acabaram por moldar posturas sociais, policiais e judiciais que forjaram mecanismos de discriminação contra pretos e de pardos. Fugindo da simples interpretação da exclusão, Lúcia Silva sugere que, se o negro sofreu com um processo de afastamento dos direitos à cidadania, isso não se deu sem conflito e sem contestação. Graças à sua capacidade de estabelecer laços de solidariedade, os negros puderam enfrentar o preconceito de cor e a violência das relações raciais (p. 46).

Mas num estado onde a política de branqueamento teve grande êxito e as teorias racialistas pautavam os rumos das práticas policiais e jurídicas, ser trabalhador negro não parecia coisa simples. Em São Paulo houve clara orientação política pela escolha de estrangeiros para a ocupação dos postos de trabalho. No campo, os imigrantes foram escolhidos para se submeter ao regime de colonato. Mas, e esse é um dos primeiros estudos a apontar para o fato, o negro também participou dessa prática de produção agrícola. Estudos recentes têm comprovado que houve uma considerável participação negra nas práticas de colonato dentro das fazendas paulistas (Karl Monsma, “Vantagens de imigrantes e desvantagens de negros : emprego, propriedade, estrutura familiar e alfabetização depois da abolição no oeste paulista”, Dados, v. 53, n. 3, 2010).

Ainda assim, na cidade ou nos campos de São Paulo o grande contingente imigrante e o racismo contaram para a exclusão do negro dos postos de trabalho e para a não consolidação de seus direitos de cidadania. Essa parcela da população sofreu com a precariedade e com a inconstância no trabalho (p.78-79). É dentro desse contexto que a possibilidade de migração apareceu como forma de efetivação de interpretações de liberdade. O segundo capítulo do livro trata da experiência de migração como uma das possibilidades de vivenciar a liberdade por parte dos libertos ao lhes dar uma visão de mundo mais larga e autônoma. A cidade do Rio de Janeiro foi um espaço aglutinador, onde migrantes negros e naturais dessa região tiveram como inventar suas próprias maneiras de sobrevivência. Era uma cidade com uma vida cultural negra muito rica, que distou da cultura da “elite da belle époque” (p.99-100). Não obstante, e mesmo com todas as possibilidades urbanas cariocas , com toda a expectativa dos ex-escravos e seus descendentes, ser pobre num período de grande esforço para o controle das ações e das ocupações populares representou lutar constantemente contra a saga reformadora da cidade do Rio de Janeiro (p. 105-117).

Mas o Rio de Janeiro ofereceu melhores possibilidades de formação de laços de amizade e de solidariedade que serviram como estratégia para burlar todo assédio do poder público (p.122-123). Mesmo com a forte perseguição policial e com uma reforma urbana que visava afastar o negro e o pobre do centro da cidade, a presença de manifestações religiosas afrodescendentes é um indício de que, com base nesses espaços de solidariedade e lazer, a comunidade negra transformou o território urbano em um campo de batalha política, onde houve constante negociação entre a cidade que se queria “civilizada” e a cidade “africana” (p.127). Dessa forma, Lúcia Silva enxerga o Rio de Janeiro como um campo de disputa mais favorável do que foi o estado de São Paulo. Podia-se estabelecer alianças – inclusive com a classe dominante – e estratégias de manutenção da vida cotidiana (p.127-128).

Por fim, no terceiro e último capitulo Lúcia Helena Oliveira Silva examina as relações entre migrantes paulistas e os habitantes da cidade do Rio de Janeiro, observando como se deu sua interação durante a transformação do espaço social e físico da cidade. A historiadora enfoca nas vivências cotidianas de migrantes negros, mulheres e homens, afirmando que existiram alguns sujeitos que galgaram espaços em profissões relativamente estáveis e de boa remuneração. Eles conseguiram comprar casas, terrenos e alfabetizar-se, o que demonstra que migrar poderia ser uma maneira de mudança (p.146-147). Se é verdade que migrantes negros paulistas escolheram a cidade do Rio de Janeiro por estarem em busca de melhores condições de vida, e que lá estabeleceram laços socais que tornavam o dia a dia mais leve, também é verdade que tiveram que optar por moradias precárias para ficar perto das regiões que mais empregavam. A vida em cortiços era revestida de diversos conflitos que irrompiam quando os limites de privacidade e de convívio eram ultrapassados. É importante perceber que mulheres negras (migrantes aí incluídas) sofreram, repetidamente, com os padrões morais que deslegitimavam a forma de vida dessas agentes que, pelo caráter de suas profissões, deveriam ocupar espaços que se queriam masculinos.

Graças ao uso das ferramentas metodológicas da micro-história, Lúcia Silva oferece em Paulistas Afrodescendentes no Rio de Janeiro um rico quadro de experiências subjetivas dos negros que escolheram migrar de São Paulo para o Rio de Janeiro como uma estratégia possível de luta pela cidadania. É um estudo altamente recomendável para os interessados na construção social da liberdade no Brasil do fim do século 19.

Fábio Dantas Rocha – Possui graduação em História pela Universidade Federal de São Paulo (2014). Atualmente é membro do conselho editorial da Editora Palácio e analista de produção e difusão do conhecimento da Fundação Perseu Abramo. Mestrado em andamento na Universidade Federal de São Paulo.


SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Paulistas afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016. Resenha de: ROCHA, Fábio Dantas. O caminho para Pasárgada: negros paulistas no Rio de Janeiro do pós-Abolição. Almanack, Guarulhos, n.16, p. 352-358, maio/ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

A questão feminina em nossos meios | Lucía Sánchez Saornil

“A questão feminina em nossos meios”, é um livro de e sobre Lucía Sánchez Saornil. Lucía, foi uma anarquista espanhola que viveu e militou de forma ativa durante a Guerra Civil/Revolução Social Espanhola. Esse livro lançado em sua homenagem é uma apresentação histórica sobre sua vida e militância em um período marcante da história da Espanha e do anarcossindicalismo espanhol, com ênfase na organização feminina Mujeres Libres, que durou de 1936 a 1939. A obra apresenta a historicidade das mulheres anarquistas que se dedicaram à revolução e à emancipação feminina, elucidando os problemas estruturais enfrentados pelas mesmas dentro do movimento anarcossindicalista espanhol.

A autora, diferente de outras militantes anarquistas e feministas, é pouco conhecida no Brasil, e por isso o livro inicia com uma introdução feita por três outros autores que apresentam, de forma breve sua vida e obra. Em seguida inicia-se os escritos de Lucía. Esses escritos baseiam-se em artigos que a autora escreveu para mídias libertárias espanholas como o “Solidariedad Obrera” entre outros, onde trata da “questão feminina” nos meios anarquistas. A maior parte de seus artigos apresentados nesse livro possuem o mesmo nome que o título do livro aqui trabalhado. Leia Mais

La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne – ISMARD (Tempo)

ISMARD, Paulin. La démocratie contre les experts: les esclaves publics en Grèce ancienne. Paris: Seuil: 2015. 273 p.p. Resenha de: TRABULSI, José Antonio Dabdab. Experts e democracia: uma convivência impossível? Tempo v.23 no.2 Niterói mai./ago. 2017.

Paulin Ismard, maître de conférences em história grega antiga na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e nome emergente no campo dos estudos sobre a Grécia antiga, publica um novo livro muito interessante. Desde a apresentação e a contracapa, o autor não deixa pairar qualquer dúvida sobre sua vontade de propor um livro de intervenção cidadã:

Suponhamos por um instante que o diretor do Banco da França, o chefe da polícia nacional e o chefe do Arquivo público sejam escravos, propriedades do povo francês a título coletivo. Imaginemos, em suma, uma República na qual alguns dos maiores dirigentes do Estado fossem escravos. Eles eram arquivistas das leis, policiais, controladores da moeda: todos escravos, apesar de se beneficiarem de uma condição privilegiada, e foram os primeiros funcionários públicos das cidades gregas […]. Que a democracia tenha se construído em sua origem contra a figura do expert que governa, mas também segundo uma concepção do Estado que nos é radicalmente estrangeira, eis o que deveria nos intrigar.

Vemos como o autor atiça desde o início a atenção do leitor, seja ele helenista, seja ele simples cidadão atento aos assuntos coletivos.

Na Introdução (p. 13-30), ele propõe colocar seu estudo no contexto de renovação dos trabalhos sobre a escravidão, e os escravos públicos gregos como um exemplo análogo a outros ao longo da história ocidental, mas também africana ou asiática. Faz uma revisão bibliográfica e observa, com razão, que apenas um livro (Jacob, Oscar. Les esclaves publics à Athènes. Liège: Champion, 1928), já bem antigo e puramente descritivo, existe sobre o tema dos escravos públicos na Grécia antiga. Afirma:

Algumas das tarefas confiadas aos dêmosioi requeriam de facto competências excepcionais. Confiando-as a escravos, a cidade queria colocar fora do campo político alguns saberes especializados, impedindo que seu exercício pudesse vir a legitimar a detenção de um poder. A expertise dos dêmosioi esclarece assim com uma nova luz a questão espinhosa – e tão contemporânea – do status político dos saberes no seio da cidade democrática. (p. 30)

Observemos de passagem sua estimativa do número de escravos públicos na Atenas clássica, entre 1000 e 2000, o que parecerá a certos analistas um pouco excessivo, sobretudo porque ele tende a privilegiar na argumentação o limite mais alto desse intervalo, o que tem implicações importantes para seu ponto de vista, pois ele pensa quase sempre (ou pelo menos deixa o leitor pensar) que as numerosas magistraturas propriamente políticas ficavam fora do campo das competências, quaisquer que fossem. Outra vez, muitos historiadores do período não estarão de acordo com ele. Isso não invalida a constatação de que o livro se apresenta como muito atrativo, com uma abordagem renovada e muito atual.

No Capítulo I (“Gênese”, p. 31-61), Ismard procede a uma arqueologia do dêmosios desde o início do arcaísmo, a partir do dêmiourgos homérico, das figuras de Dolon, de Dédalo, de Spensithios, o Escriba, na Creta do século VI, e de Patrias, na Élis do início do século V. Considera também o papel das tiranias arcaicas na gênese de um aparelho estatal no qual o escravo público encontrará, mais tarde, seu lugar. Tudo resultando, na época clássica, em uma nova configuração:

Abrindo o acesso à participação política ao maior número de cidadãos, os regimes democráticos instauraram enfim novas relações entre saber e poder. A competência herdada de uma longa familiaridade com o poder era doravante imprópria para legitimar a autoridade política. Sem dúvida, em certos campos, a competência permanecia indispensável, mas os valores do regime democrático proibiam que tais funções fossem confiadas a uma categoria restrita de cidadãos. Os atenienses preferiram então, na maior parte das vezes, atribuí-las a escravos, o que resultava em suma em relegar essa expertise para “fora do político”. (p. 60)

Temos aqui um capítulo muito bom, realmente original.

No Capítulo II (“Servidores da cidade”, p. 63-94), o autor procede a um levantamento sistemático das atividades dos escravos públicos na Atenas clássica, mas também na época helenística, em várias cidades, o que abre o campo de observação de forma muito enriquecedora. Ele explica sucessivamente o papel dos dêmosioi na assembleia, no conselho, diante dos tribunais e no ginásio. Seu papel é muito importante nas escrituras públicas, na gestão dos arquivos oficiais, no estabelecimento dos inventários de bens, nas contas dos canteiros de obras ou dos santuários religiosos em Atenas; eles garantiam a autenticidade das moedas e cuidavam da regularidade dos pesos e das medidas. Muitas vezes, em Atenas e em outros locais, eles encarnavam a autoridade pública em sua dimensão repressiva, com um papel de polícia e de manutenção da ordem, auxiliavam os magistrados quando das detenções e cuidavam da prisão da cidade. Em Atenas, os “cítios” (nem sempre provenientes desse povo) tinham papel-chave no funcionamento das instituições (assembleia, conselho, festas, mercado etc.). Outros, menos especializados, trabalhavam em tarefas de interesse coletivo, nas oficinas e canteiros diversos. Por vezes, puderam até ser encarregados de alguns sacerdócios. Em sua maioria comprados nos mercados de escravos, eram numerosos em Atenas, sem que possamos ter um número preciso (ele insiste nos valores entre mil e 2 mil, p. 85). Segundo o autor:

Assegurar com competência o controle da comunidade cívica sobre um dirigente; efetuar no lugar de um cidadão uma tarefa infamante; fornecer força de trabalho indispensável aos grandes canteiros de obras cívicas: não faltam razões para explicar o interesse das cidades gregas em ter a seu serviço escravos. Algumas dessas tarefas conferiam de facto aos dêmosioi um certo poder sobre os membros da comunidade cívica. Entretanto, como afirmava Sócrates o Jovem, a função deles não participava do domínio da arché. Os dêmosioi não eram magistrados da cidade e sua atividade era entendida como estranha ao campo político. (p. 88-89)

Muitos intérpretes viram nos dêmosioi as primícias de um “serviço público” na cidade clássica.

O Capítulo III (“Estranhos escravos”, p. 95-130) é um dos mais importantes para o objetivo do autor e apresenta o interesse de estar “irrigado” por um comparatismo bem-feito com outras sociedades com escravos e outras sociedades escravistas (não apenas o velho sul dos Estados Unidos, o que é frequente na bibliografia, mas também os mundos árabe, otomano, africano, indiano, entre outros, o que é bem mais raro). Ele examina o corpo escravo, os privilégios dos dêmosioi que os distinguiam dos escravos-mercadoria típicos. Por exemplo, eles podiam ser proprietários de bens, e até, talvez, de escravos; beneficiavam-se de um “privilégio de parentesco” (p. 107); em pelo menos um caso bem conhecido (Pittalakos), um escravo público pôde ter acesso aos tribunais, diretamente, como um cidadão; não estavam excluídos de todas as honras públicas, o que revela a delicada questão da timè; se o próprio do escravo é estar privado dela, o caso dos dêmosioi apresenta uma exceção notável. Eles eram um “bem público” em um universo em que o Estado não era um sujeito de direito; e, portanto, seu pertencimento era mais vago, definido pela negação, pelo fato de “não pertencer” a ninguém de forma individualizada. O autor volta às teorizações de juventude de Moses Finley (p. 125-126), para reabilitar o uso da noção de status como um conjunto de direitos, privilégios, imunidades, capacidades etc.; tudo ligado à timè (com mil configurações e contornos):

Neste sentido, a sociedade ateniense não se decompõe em blocos de estatutos homogêneos, superpostos à maneira das ordens. Ela também não é uma sociedade aberta, na qual cada um pode se liberar de suas determinações estatutárias e transitar de um status a outro graças ao mérito ou à sorte. Ela se apresenta como um espaço social multidimensional, atravessado por um caleidoscópio de statusDêmosios é o nome de um deles. (p. 128)

Trata-se, é preciso observar, de uma muito rara reabilitação de Finley… Estaríamos assistindo aos primórdios de uma reviravolta historiográfica? A questão se apresenta, a tal ponto Finley foi criticado ao longo dos últimos 20 anos.

Em um capítulo que está, em certo sentido, no âmago do argumento do livro (Capítulo IV, “A ordem democrática dos saberes”, p. 131-165), o autor analisa em detalhes certo número de “casos” muito esclarecedores: a função de “verificador” das moedas, uma das funções exigindo um conhecimento técnico dos mais profundos, é confiada a dêmosioi. O caso de Eucles, escrivão e contador de santuários, realizando inventários da maior importância para a cidade; o caso de Nicomachos, o Jurista, filho de dêmosios, encarregado durante vários anos seguidos da tarefa de revisar e republicar as leis de Atenas. Tais exemplos, entre outros, mostram, segundo o autor, que

[…] a experiência ateniense encontra aqui uma das questões mais ardentes do nosso presente democrático. O status político da expertise está, com efeito, no coração do “desencanto” contemporâneo em relação à democracia representativa. Democracia e saber: os dois termos se apresentam o mais das vezes no discurso corrente sob a forma de duas exigências contraditórias. O ideal democrático de participação do maior número de pessoas nos assuntos públicos seria incompatível com a exigência de eficácia que é necessária ao governo dos Estados, coisa forçosamente complexa, e, portanto, especializada: quem não reconheceria aqui um refrão do nosso tempo, que faz da “epistocracia” dos governos o horizonte necessário de qualquer política? (p. 133)

Ismard mostra muito bem a que ponto a figura do expert governante é estranha à ideologia democrática antiga. O fato de confiar tarefas muito importantes a escravos não implica nenhum desprezo pelos conhecimentos inerentes à função, que são considerados como muito importantes. Mas a preocupação era manter certos saberes especializados fora do campo político para conservar todo o espaço para o debate político entre não especialistas, na convicção de que desse debate sairia um saber coletivo útil à cidade (p. 134-135). Foi também a razão pela qual a cidade grega privilegiou o recrutamento de seus escravos públicos muito qualificados no mercado externo, para impedir a constituição de um grupo muito hereditário que poderia controlar uma parte do poder social:

Se os escravos públicos da Atenas clássica não vieram a formar um corpo autônomo na cidade, foi também porque a ideologia democrática ateniense, estabelecendo uma barreira entre a ordem da expertise e o campo político, proibia que sua competência própria pudesse resultar no exercício de um poder. Neste sentido, a epistemologia democrática ateniense, ao relegar os saberes especializados para fora dessa nobre atividade reservada aos cidadãos, ou seja, a política, não se apresenta apenas como a defesa de um saber público fundado na prática deliberativa. Ela também tem indiretamente por função legitimar a distinção fundamental que separa o escravo do homem livre e fundar na razão a estrutura escravista da sociedade ateniense. Na Atenas clássica, a ordem democrática dos saberes é também a ordem da sociedade escravista. (p. 165)

Mais uma análise que tem no final uma “sonoridade finleyana”; lembramo-nos imediatamente da célebre expressão da marcha “de mãos dadas”, da democracia e da escravidão, formulada pelo grande historiador. Quanto a mim, se aprovo totalmente a primeira parte do argumento de Ismard, ou seja, a parte relativa à preocupação em preservar a totalidade da soberania popular colocando o conhecimento técnico sob controle político, a segunda parte do argumento me deixa relativamente cético; que as coisas tenham acontecido historicamente como ele diz, é um fato. Que a democracia antiga deva sua existência ao fato escravista, no absoluto, é outro debate, longo demais para ser levado adiante aqui.

Em um Capítulo V mais teórico (“Os mistérios do Estado grego”, p. 167-202), Ismard discute sobre os escravos públicos no quadro mais amplo do debate sobre o Estado e sua existência no mundo grego antigo:

Pois é este o sentido dessa surpreendente instituição: ao mesmo tempo em que confiava funções que atribuíam um poder de facto a escravos, as cidades manchavam essas funções com um déficit irremediável ligado ao status dos que as exerciam […]. Tornando invisíveis os que tinham o encargo de sua administração, a cidade conjurava o aparecimento de um Estado susceptível de se constituir em instância autônoma e, em certas circunstâncias, se voltar contra ela. Podemos formular isso de outra forma: na cidade clássica, o Estado nunca se encarnou de outra forma que não fosse na pura negatividade do corpo-escravo do dêmosios. (p. 176)

O autor examina, então, três casos: os últimos momentos de Sócrates na prisão; a queda de Édipo; o batismo do primeiro dos gentis. Três casos que fazem intervir a figura de um escravo público ou real.

Em sua conclusão, insiste ainda acerca desse aspecto “obscuro” da cidade antiga ao dizer que

[…] a viva luz que ainda brilha a partir das assembleias e dos teatros das cidades talvez nos cegue. A “transparência” do político grego tem, com efeito, a medida do véu de opacidade com o qual a cidade encobre o que permanece nas suas margens e que, portanto, é indispensável ao seu funcionamento. Pois à digna gestualidade das belas palavras dos cidadãos reunidos em assembleia responde, como num teatro de sombras, a cenografia muda de seres anônimos, sem identidade e sem voz. Quase escondidos nos cantos da Acrópole contando e recontando os bens de Palas Ateneia, anotando conscienciosamente as despesas dos estrategos em expedição militar, ou se agitando por todos os lados para orientar os jurados cidadãos e dirigir os espectadores nos tribunais: era preciso que todos esses homens fossem invisíveis para que pudesse se manter a ilusória transparência da comunidade cívica. (p. 205)

Ele prolonga sua análise sobre a diferença radical entre a cidade grega e os Estados modernos, falando do “primitivismo” da cidade, “condição intransponível da experiência democrática na Grécia antiga” (p. 213), em um último eco finleyano. A retração dos circuitos do comércio de escravos a partir de meados do século III de nossa era, conjugada com uma nova concepção, agora cristológica, do poder, pôs fim à prática então quase milenar da escravidão pública nas cidades antigas.

Estou de acordo com a maior parte das opiniões do autor, mas uma vez que seu livro toca voluntariamente a questão da política atual, e como eu também sou historiador da antiguidade grega preocupado com a política atual, permito-me não estar de acordo quanto a um ponto importante da análise de Ismard, que podemos ler ao longo de seu texto e especialmente no final: “Nesse sentido também, a democracia direta era paga com o preço da escravidão” (p. 215). Tal posição me parece ligeiramente excessiva no que se refere à política antiga e, sobretudo, muito pesadamente desanimadora para o interesse que podemos ter hoje pela política antiga na intenção de renovar nossa política. Mas isso não muda nada quanto ao interesse do livro; é uma obra cheia de qualidades, um tipo de livro que faz bem aos estudos clássicos e ao debate político contemporâneo ao mesmo tempo. E esses livros não são assim tão numerosos para nos impedir de saudar calorosamente a iniciativa de Paulin Ismard.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – Brasil. E-mail: dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.