Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora – SAUL (C)

SAUL, Ana Maria. Paulo Freire: uma prática docente a favor da educação crítico-libertadora. São Paulo: Educ, 2016. Resenha de: DALZOTTO, Mariana Parise Brandalise. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 623-626, set/dez, 2017.

Quando pensamos nos autores que estudaram e reinventaram o conceito de educação no Brasil,1 é impossível não lembrar Paulo Freire. Seu pensamento é referência e tema de estudo, independentemente do passar dos anos, pois está fundamentado na prática educativa realizada, principalmente, neste país. De forma concisa, Ana Maria Saul busca tratar da atualidade do pensamento de Paulo Freire ao refletir sobre sua notória presença em pesquisas de pós-graduação e em práticas educativas no Brasil.

Ela também comenta, brevemente, a história do educador, escrevendo a respeito de algumas vivências com o mesmo. Por isso, em alguma medida, é possível observar que parte da biografia da autora se mistura com seus escritos no livro. Leia Mais

Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica – VIDAL; CISNEROS (C)

VIDAL, G. R.; CISNEROS, É. L. Convergencias teóricas: usos y alcances de la retórica. México: IIF/Unam, 2015. Resenha de: PAULA, Erico Lopes Pinheiro de. Conjectura, Caxias do Sul, v. 22, n. 3, p. 618-622, set/dez, 2017.

A obra é o 32º volume da Colleción Bitácora de Retórica, editada pelo Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México (IIF/Unam). O trabalho foi organizado pelos professores Gerardo Ramírez Vidal e Érika Linding Cisneros, com o subtítulo “Homenaje a Helena Beristáin”. A coletânea reuniu 17 textos acadêmicos, para marcar os dois anos de falecimento da pesquisadora emérita do IIF/Unam. Sobre os organizadores, Vidal foi secretário-geral da Asociación Latinoamericana de Retórica entre 2010 e 2012. O pesquisador desenvolve projetos individuais com enfoque no movimento sofístico nos séculos 5-6 a.C. na Grécia. Cisneros é membro do Sistema Nacional de Investigadores no México, desde 2007, e direciona seus trabalhos ao fenômeno da construção do pensamento social e político.

Logo na apresentação, os organizadores citam quais seriam as aplicações atuais para a disciplina “Retórica”. Segundo Vidal e Cisneros, entre as atividades teóricas e didáticas empreendidas de forma subjacente, a retórica possibilita investigar questões teóricas e metateóricas, relacionando-as com um sistema crítico. A seção também sistematiza breve apresentação dos artigos reunidos, analisando-os em três capítulos independentes. Leia Mais

Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964 – SILVA (Tempo)

SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: SPERANZA, Clarice Gontarski.1 Os trabalhadores, a Justiça e a transformação social às vésperas do golpe civil-militar. Tempo, v.23 n.3, Niterói, set./dez. 2017.

Se a história do trabalho no Brasil tem atravessado um momento de grande fertilidade nos últimos anos, uma das áreas em que tal fenômeno parece ter alcançado maior significação são as pesquisas envolvendo processos da Justiça do Trabalho – como objeto, fonte ou ambos. Para a gênese desse movimento, contribuíram autores que chamaram a atenção para a chamada “cultura legal” dos trabalhadores brasileiros – como French (2001) e Paoli (1988) -, bem como a disponibilização de acervos de vários dos tribunais regionais, em um movimento de preservação da documentação levada a cabo por juízes do trabalho e historiadores, entre outros. O lançamento em livro de Trabalhadores no tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no contexto do golpe de 1964, de Fernando Teixeira da Silva, é um importante marco para a consolidação desse campo, tornando-se desde já leitura imprescindível para os que desejam compreender a formação do trabalhador brasileiro e suas relações com o Estado.

Trabalhadores no tribunal foi antecedido em 2014 por outra obra de Fernando Teixeira da Silva essencial para os pesquisadores que se aventuram em meio às ações da Justiça do Trabalho (criada pela Constituição de 1934, mas somente instituída em 1941, em pleno Estado Novo). A coletânea A Justiça do Trabalho e sua história, organizada por ele e por Angela de Castro Gomes (2013), já trazia, além de artigos de diversos autores mostrando a diversidade de novas abordagens possíveis no campo, uma introdução detalhando a importância e a significação dessa justiça especializada em meio aos conflitos entre capital e trabalho no Brasil.

O livro aqui analisado, porém, alcança outro nível, não apenas por ser obra autoral, de maior fôlego, originando-se da tese de livre-docência do autor na Unicamp, como por contar com uma pesquisa ampla em numerosas fontes primárias (em especial dissídios coletivos do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região de São Paulo). A grande importância do livro deriva, em primeiro lugar, da capacidade de Silva de abordar e analisar os principais e polêmicos aspectos que envolvem a pesquisa com processos judiciais trabalhistas no âmbito da história do trabalho, dialogando ou citando virtualmente os estudos mais relevantes realizados no Brasil que utilizam esse tipo de fonte ou se debruçam sobre o tema (e que não são poucos nos dias de hoje, felizmente2). Ao fazê-lo, torna-se valiosa obra de síntese para outros estudos.

Por outro lado, Silva se apropria e vai além de constatações já feitas por essa bibliografia, como a de que a Justiça do Trabalho, por muitos anos menosprezada pela literatura acadêmica historiográfica, influiu decisivamente não só nos contornos da identidade do trabalhador brasileiro como na forma específica de suas lutas. Por meio da análise dos dissídios coletivos, esfera na qual pode ser exercido o polêmico poder normativo, privativo da Justiça do Trabalho (em síntese, o poder de criar normas extensíveis a um grupo, algo estranho, em tese, ao Poder Judiciário), Silva demonstra como este foi, diversas vezes, favorável aos sindicatos e representantes dos trabalhadores – urbanos e rurais – no período imediatamente anterior ao golpe civil-militar de 1964, sendo utilizado ampla e habilmente por eles em seu benefício e integrando os juízes nos conflitos patrões-operários não como mediadores neutros, mas como atores ativos relevantes.

O livro divide-se em duas partes, a primeira composta por três capítulos, e a segunda, por quatro e mais um capítulo “bônus”. No primeiro capítulo, o autor resume em grandes linhas a história da Justiça do Trabalho e faz um amplo levantamento da historiografia relativa a ela, relatando a grande mudança provocada pela incorporação da perspectiva thompsoniana da lei como campo de luta e o acesso facilitado às fontes como ingredientes do interesse renovado na área. Silva identifica os diversos caminhos seguidos até agora pelos pesquisadores, entre eles uma análise mais nuançada do corporativismo varguista (que contempla não apenas sua inspiração fascista, mas a ambiguidade de suas práticas), a apropriação feita pelos trabalhadores da esfera jurídica, a compreensão culturalmente definida das normas legais e a análise da progressiva judicialização das relações de trabalho no Brasil.

A discussão entre as características e eficácias dos modelos contratualista e legislado das relações de trabalho, e uma análise da influência da Magistratura del Lavoro fascista italiana sobre a Justiça do Trabalho brasileira são o tema do segundo e do terceiro capítulos, respectivamente. Ambos são um deleite para historiadores que se interessam pelo direito como campo de conhecimento e lugar de discursos e práticas de poder. No primeiro, Silva mostra como, longe de se oporem totalmente, ambos os modelos apresentam características um do outro na experiência prática de sua implantação. Mais adiante, sustenta que “o lugar para o qual a Justiça do Trabalho foi concebida no edifício corporativista brasileiro guardava semelhanças com o papel da Magistratura del Lavoro no arranjo corporativista italiano” (p. 107), porém ilustra por meio de comparações exaustivas como seu funcionamento efetivo acabou distanciando-as.

Essa primeira parte aparece como um aperitivo dos capítulos seguintes, nos quais é apresentada a pesquisa empírica propriamente dita, da qual foram utilizadas como fonte cinco centenas de processos do TRT-2 que tramitaram entre janeiro de 1963 e março de 1964. A metodologia da segunda parte da obra mescla a descrição e a análise de casos específicos com levantamentos quantitativos da massa documental, em um diálogo ativo e constante, manejado com habilidade pelo autor, sem perder nunca de vista o objetivo final de contrastar os processos que sofreram intervenção da Justiça e os que acabaram em acordos diretos entre as empresas e os trabalhadores. Minuciosos e detalhados (inclusive debruçando-se sobre as principais demandas específicas dos trabalhadores), os levantamentos mostram as vantagens dos processos julgados aos acordos, podendo nos primeiros o poder normativo do Judiciário trabalhista arbitrar índices e valores acima inclusive do reivindicado. Porém, para isso, o poder de barganha dos diferentes grupos de trabalhadores era um ativo forte na mesa de negociação jurídica, e a crescente mobilização dos sindicalistas à época tendia a esgarçar os limites do Judiciário: “as categorias mais organizadas e com maior poder de negociação tendiam a arrancar mais concessões do tribunal, que, por sua vez, procurava fixar um mesmo patamar de direitos para os trabalhadores como um todo” (p. 154).

Os levantamentos quantitativos são seguidos pela análise de julgamentos do tribunal e também da influência das numerosas greves ocorridas no período durante o desenrolar dos processos jurídicos dos dissídios; paralisações que colocavam à prova também as restrições impostas originariamente pelo Decreto-lei no 9.070, a lei de greve vigente de 1946 até o golpe de 1964. Nesse momento, Silva apresenta como os trabalhadores muitas vezes deslocavam o alvo de suas reivindicações dos patrões para a própria Justiça, que tinha o poder de decidir sobre salários e condições de trabalho. Presa nessa armadilha, a Justiça do Trabalho foi se tornando cada vez menos “técnica” e mais política, sensível à pressão cada vez mais efetiva das paralisações dos trabalhadores. Mais do que isso, muitas greves eram programadas com o intuito de pressionar diretamente não os patrões, mas o Judiciário.

O sétimo capítulo merece um lugar à parte, pois nele o autor acompanha o líder sindical e militante do Partido Comunista Luiz Tenório de Lima, não apenas discutindo a ambiguidade pela qual os dirigentes sindicais manejavam a Justiça do Trabalho – demonização verbal conjugada com uso frequente -, como salientando a importância do jogo jurídico na luta pelos direitos dos trabalhadores do campo no contexto do pré-1964. Foi pela via jurídica, mostra a obra, que os camponeses obtiveram importantes vitórias, por meio de recursos reiterados aos tribunais, ora exigindo o cumprimento de leis, ora buscando seu enquadramento legal como operários urbanos. Para eles, “as leis codificadas e as sentenças escritas apareciam como possibilidades de repor relações e direitos costumeiros, suspensos pelo arbítrio patronal amparado pelos poderes locais” (p. 239). E o mais impressionante é que a pesquisa empírica mostra a receptividade dos tribunais da época a essas demandas – movimento logo abortado a partir do golpe de 1964.

Por fim, no “capítulo bônus”, o leitor é guiado em meio a um amplo panorama da situação atual dos arquivos judiciários trabalhistas e da luta por sua preservação, esforço que tem como forças coadjuvantes grupos de historiadores, arquivistas, juristas e funcionários da Justiça do Trabalho. Apesar de importantes vitórias, com a constituição de valiosos centros de pesquisa de processos judiciais trabalhistas em todo o país, muita documentação ainda é eliminada cotidianamente. Essa destruição diminui em muito a chance de acessarmos as relações e os valores de multidões inteiras de trabalhadores, cujas experiências possivelmente não poderão ser analisadas.

Este último capítulo, apesar de sóbrio e extremamente bem embasado, dá o necessário tom de militância a uma obra que se debruça sobre o passado, porém busca também agir politicamente sobre o presente. Isso a torna viva e só a fortalece.

Por todas essas razões, cabe novamente reiterar que Trabalhadores no tribunal é leitura imperativa para todos os que desejam compreender melhor as lutas dos operários brasileiros não apenas no período que antecedeu o golpe de 1964, mas desde a década de 1940, quando surge oficialmente a Justiça do Trabalho. Fica claramente demonstrado o quanto a forte mobilização sindical, em uma apreensão hábil das “regras do jogo” legais, conseguiu garantir novos direitos. Por transitar entre o foco nas lutas “miúdas” (ou nem tanto?) de diversos grupos de trabalhadores e um olhar macro-orientado, a obra permite desvendar a transformação social que antecedeu o golpe civil-militar no âmbito dos trabalhadores, transformação essa imediatamente abortada pelos novos detentores do poder. O que nos inspira a interpretar outras transformações abortadas, e outros golpes, com os quais nossa nação hoje tristemente se depara.

 

Referências

CORRÊA, Larissa. A tessitura dos direitos: patrões e empregados na Justiça do Trabalho, 1953 a 1964. São Paulo: LTr, 2011. [ Links ]

DROPPA, Alisson. Direitos trabalhistas: legislação, Justiça do Trabalho e trabalhadores no Rio Grande do Sul, 1958-1964. Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. [ Links ]

FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. [ Links ]

GOMES, Ângela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Org.). A Justiça do Trabalho e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas: Unicamp, 2013. [ Links ]

PAOLI, Maria Célia. Labor, law and state in Brazil: 1930-1950. Tese (Doutorado em História), Birbeck College, Universidade de Londres, Londres, 1988. [ Links ]

RESENDE, Vinícius Donizete de. Tempo, trabalho e conflito social no complexo coureiro-calçadista de Franca-SP (1950-1980). Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012. [ Links ]

SOUZA, Edinaldo Antonio Oliveira. Trabalho, política e cidadania: trabalhadores, sindicatos e luta por direitos (Bahia, 1945-1950). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. [ Links ]

SOUZA, Samuel Fernando. Coagidos ou subornados: trabalhadores, sindicatos, Estado e as leis do trabalho nos anos 1930. Tese (Doutorado em História), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. [ Links ]

SPERANZA, Clarice Gontarski. Cavando direitos: as leis trabalhistas e os conflitos entre os mineiros de carvão e seus patrões no Rio Grande do Sul (1940-1954). São Leopoldo: Oikos; Porto Alegre: Anpuh-RS, 2014. [ Links ]

VARUSSA, Rinaldo J. Trabalhadores e a construção da Justiça do Trabalho no Brasil (décadas de 1940 a 1960). São Paulo: LTr , 2012. [ Links ]

1 Clarice Gontarski Speranza – Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas(UFPel) Pelotas/Brasil. E-mail: clarice.speranza@gmail.com

2Seria temeroso um apanhado extenso dos trabalhos mais importantes, dada a fertilidade da área e o interesse despertado entre jovens pesquisadores, além, é claro, dos limites desta resenha. Porém, de forma meramente ilustrativa, podemos citar alguns exemplos de recentes pesquisas no Brasil envolvendo a Justiça do Trabalho no campo da história: Corrêa (2011)Droppa (2015)Resende (2012)Souza (2007)Souza (2015)Speranza (2014) e Varussa (2012).

História & Luta de Classes. [?], v.13, n.24, set. 2017.

Internacionalismo e Lutas de Classe

Apresentação

De caboclos a Bem-te-vis – formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão (1800-18500) – ASSUNÇÃO (Tempo)

ASSUNÇÃO, Matthias Rönrig. De caboclos a Bem-te-vis – formação do campesinato numa sociedade escravista: Maranhão (1800-18500). São Paulo: Annablume, 2015. Resenha de: GUIMARÃES, Elione. Lutas camponesas no império do Brasil: a desmitificação da passividade política do “povo” brasileiro. Tempo, v.23 n.3 Niterói, set./dez. 2017.

De caboclos a Bem-te-vis, livro de Matthias Rönrig Assunção, foi editado no Brasil em 2015. Primeiramente apresentado como tese de doutoramento junto à Universidade Livre de Berlim em 1990, a pesquisa foi premiada em 1993 e publicada a seguir, na Alemanha, pela Editora Vervuert (1993) com o título Pflanzer, Sklaven und Kleinbauern in der brasilianischen Provinz Maranhão, 1800-1850 (Fazendeiros, escravos e camponeses na província brasileira do Maranhão, 1800-1850).

Concluída e publicada nos anos 1990, a tese de Matthias Assunção foi iniciada nos anos 1980, quando o autor passou uma temporada no Brasil pesquisando nos arquivos do Maranhão e no Arquivo Nacional. Portanto, foi gestada no bojo da renovação historiográfica brasileira, com ela contribuindo e dialogando.

Do início do século XX até aproximadamente 1960, a historiografia brasileira estava caracterizada pelo ensaísmo.2 Os historiadores de outrora defendiam a tese da inexistência de comunidades camponesas, desde o período colonial até a primeira metade do oitocentos. Considerava-se que a população brasileira era composta por uma pequena elite branca europeia e seus descendentes, assim como por uma massa de indígenas, pessoas escravizadas e homens livres pobres (em geral mestiços), dispersa por um vasto território e sem apego à terra. Nessas circunstâncias, o “povo brasileiro” – aqui entendido como os homens livres pobres e privados de direitos políticos – eram estimados como politicamente passivos, desarticulados e despossuídos de cultura. Em outras palavras, incapazes de se organizarem para defenderem seus interesses.

A produção histórica das últimas décadas, principalmente a partir dos anos 1980, apresenta uma ruptura com a historiografia tradicional. Em oposição ao ensaísmo anterior, os estudos que vieram a lume nos últimos decênios são fartamente alicerçados em fontes documentais e apresentam resultados não generalizantes. A multiplicação das pesquisas é, em parte, resultado da proliferação dos cursos de pós-graduação e, junto com eles, do incentivo pela recuperação de acervos e produção de conhecimentos históricos regionais e locais. Influenciados pela historiografia francesa, inglesa e italiana,3 os historiadores elegeram outros objetos e novas metodologias de pesquisa, produzindo uma diversidade de trabalhos que muito têm contribuído para a revisão de paradigmas até recentemente cristalizados, a exemplo da “passividade política do povo brasileiro”. A recuperação das fontes locais trouxe a lume histórias desconhecidas, esquecidas em porões, nas tradições e na memória coletiva local. Resgatar ao passado os fatos e as memórias esquecidas ou apagadas pelos detentores da memória dominante possibilita novas leituras e a retomada da importância histórica dos populares e do grau de participação das regiões nos processos históricos.4

Assunção está entre os pioneiros dessa geração (brasileiros e estrangeiros) que renovou a produção historiográfica brasileira. Retirou do esquecimento dos arquivos histórias até então ignoradas, fez aos documentos perguntas que não haviam sido elaboradas. Tirou da amnésia social histórias da formação do campesinato maranhense, seus anseios, seus temores, suas lutas pela sobrevivência, sua tomada de consciência e suas ações pela defesa de seus interesses. Junto com isso emergiu muito mais… Delineia-se no texto a ocupação de um território, as relações entre as diversas formações sociais que nele habitaram. Perpassa o texto, como observou Martha Abreu, um “intenso diálogo entre o local, o regional e o Atlântico”.5

Mais de duas décadas depois da publicação alemã, o texto ganha uma edição em português, possibilitando sua circulação para um público mais amplo. A versão, ora publicada pela Editora Annablume, é uma exposição ampliada e atualizada da tese. O autor incorporou novas fontes de pesquisa à já significativa documentação levantada originalmente e visitou as produções historiográficas mais recentes sobre o Brasil, tanto as concernentes a temas mais amplos – como escravidão e questão agrária – quanto as específicas, relativas às revoltas ocorridas no Norte e no Nordeste durante o período regencial, especialmente a Balaiada (1838-1841), por ele eleita como fio condutor para nortear suas reflexões.

A preocupação central de Matthias Assunção é compreender o desenvolvimento da formação camponesa no Maranhão durante a primeira metade do século XIX e as transformações que gestaram a insurreição conhecida como Balaiada entre os anos 1838-1841. A análise leva em consideração a história ambiental, agrária, econômica e social, e suas dimensões culturais.

O livro está estruturado em cinco capítulos. No primeiro, o autor discute o impacto da economia de plantation sobre o meio ambiente maranhense – isto é, como a elite e os administradores se relacionavam com a natureza, percebendo as transformações nas condições de produção, e enfrentavam o desmatamento na defesa da expansão das fronteiras agrícolas. Partindo da descrição dos contemporâneos – relatos, cartografias, documentos administrativos -, o autor buscou compreender as diferentes paisagens maranhenses e seu potencial agrário e, ao mesmo tempo, a interação entre os homens e a natureza, assim como seu impacto na formação social maranhense, demonstrando a ocupação do território à medida que áreas anteriormente tomadas eram desgastadas.

O segundo capítulo é dedicado à análise das taxas demográficas: nascimento e morte, impacto das endemias e epidemias, influência do tráfico de cativos e das ondas migratórias de nordestinos. Dialoga, basicamente, com os censos, que se constituem na base quantitativa do capítulo. Destaco as relevantes críticas internas à fonte e os critérios estabelecidos para seu uso. As principais dificuldades apresentadas estão relacionadas com a não coincidência entre os limites das diferentes unidades administrativas (freguesias, distritos e termos), frequentes subdivisões das freguesias, bem como com a criação de novas. Soma-se a isso a fluidez das categorias raciais, que são socialmente construídas.

Matthias Assunção descreve detalhadamente a ocupação das microrregiões do Maranhão, demonstrando como o desenvolvimento econômico de cada uma delas reflete-se em sua estrutura demográfica. O autor conclui que a população camponesa foi a que mais cresceu na província maranhense no período avaliado, tanto nas áreas de economia de subsistências quanto nas áreas escravistas mais antigas. O predomínio de escravizados (55%) e a baixa concentração de brancos (16%) na província apresentavam-se como base concreta para o medo da eclosão de uma revolta de cativos, a exemplo da ocorrida no Haiti. No Maranhão, o medo dos “horrores do Haiti” estava tão presente no imaginário das elites quanto o pavor da “reescravização” no dos livres “de cor”. Por outro lado, a presença expressiva de migrantes nordestinos – que se juntaram a caboclos, forros e seus descendentes, formando uma significativa classe camponesa – possibilitou a insurreição dos Balaios, movimento que se estendeu às áreas em que esses grupos predominavam e extrapolou a província do Maranharão, atingindo alguns municípios do Ceará e do Piauí.

Partindo da análise dos Registros Paroquiais de Terras de nove freguesias da área central da revolta dos Balaios, o autor demonstra, no terceiro capítulo, as múltiplas formas de acesso a terras pelos camponeses (comunal, terras de santos, terras de pretos, terras indígenas). O relacionamento desse segmento com a elite agrária e os detentores do poder também não escapou à análise cuidadosa. Do texto emergem a complexa estrutura fundiária da província do Maranhão e a dissociação entre a teoria jurídica e a realidade concreta, evidenciando os conflitos agrários que permeiam a história do Maranhão. As disputas não se restringiram aos grupos antagônicos, como fazendeiros e posseiros, indígena e Estado, quilombolas e Estado. Elas se estenderam aos sesmeiros entre si e aos copossuidores de terras (“terras em comum”). Muitos desses conflitos tiveram origem na indefinição de limites e nas disputas pelas melhores áreas de terra.

O quarto capítulo é dedicado às atividades econômicas que se desenvolveram nas diferentes regiões maranhenses – fazendas de algodão, gado, mandioca e as unidades de produção camponesa. Assunção avalia as técnicas de produção e o aproveitamento dos recursos naturais, além das relações de trabalho em cada uma delas (existência ou não de trabalhadores escravizados, média destes em cada tipo de fazenda/região, composição dos trabalhadores livres etc.), descrevendo as hierarquias sociais construídas a partir das relações de trabalho. A economia da província do Maranhão foi analisada em sua integração com os mercados – local, regional e Atlântico -, considerando as crises conjunturais e pontuais do principal produto de exportação, as do mercado interno de alimentos e do mercado local de perecíveis, as ocasionadas por fatores externos, as naturais e as de abastecimento. O papel do Estado e as políticas fiscais do governo também foram criteriosamente analisados, demonstrando que a maior parte dos recursos arrecadados com os tributos na província maranhense era repassada à metrópole, primeiro a Lisboa e depois ao Rio de Janeiro, pouco contribuindo para o desenvolvimento da província. Todas essas questões econômicas foram consideradas em relação à geração dos antagonismos sociais.

O capítulo final é consagrado à análise das reformas institucionais pós-Independência e às intrincadas lutas das famílias da elite pelo controle do poder local e regional na província do Maranhão. O resultado foi o monopólio político de alguns grupos e a marginalização de outros, acentuando a polarização política e ideológica, sem impedir que se unissem quando tinham seus interesses confrontados com os dos subalternos. As transformações vivenciadas tanto pelo Estado central quanto pelo provincial gestaram as arenas dos conflitos na conjuntura de formação do Estado nacional e das disputas entre “portugueses” e “nacionais”, “conservadores” e “liberais” (os Bem-te-vis, aos quais o título da obra faz referência).

As práticas discriminatórias que incidiam sobre a população pobre livre, majoritariamente “de cor”, estigmatizada como “vadia”, “ociosa”, “vagabunda”, “classe perigosa” e “ladra”, formaram terreno fértil para a propensão à resistência. Somam-se a isso os frequentes recrutamentos compulsórios a que eram submetidos, concebidos como injustos e ilegais. A insubordinação dos escravizados, principalmente manifesta em fugas e formação de quilombos, e a circulação de informações e “ideias subversivas” se multiplicavam pela província. Os dominados reagiam às imposições dos dominantes e às suas estratégias de controle e práticas punitivas. Havia uma significativa mobilização popular, que circunstancialmente escapou ao controle dos liberais (1821, 1831 e 1838).

Nesse contexto, o pequeno jornal liberal radical, que adotou o apelido dos liberais, O Bem-te-vi, veiculava denúncias sobre os desmandos dos governantes “portugueses” e os desrespeitos aos direitos dos cidadãos brasileiros. Apesar de sua tiragem limitada, logrou penetração entre os “populares”, dando sentido ideológico ao discursos dos revoltosos. Não raro, os movimentos sociais foram liderados por libertos e escravizados (como feitores, por exemplo). Nessa conjuntura, foi moldada a mobilização autônoma das classes pobres e emergiu o discurso dos Balaios.

A Revolta dos Balaios (1838-1841) representou a maior ruptura entre a elite e os subalternos na província do Maranhão. A área central da insurreição, que se estendeu a partes do Piauí (onde contou com o apoio de famílias de grandes fazendeiros) e do Ceará, foi o Maranhão Oriental, que concentrava a maior população livre “de cor”. A rebelião também contou com o apoio de fazendeiros liberais do sul do Maranhão e atingiu o Vale do Itapecuru, área de grande lavoura, agregando escravizados, índios, caboclos e negros livres. A “Balaiada” contou com o apoio maciço dos pobres do campo e, fato raro na história dos movimentos sociais rurais do período, agregou homens livres e cativos na defesa de seus interesses e do que entendiam como seus direitos.

Para além da questão específica da “Balaiada”, o texto aborda a formação do campesinato na província do Maranhão, as formas de apropriação e uso da terra e os conflitos vivenciados com os demais segmentos sociais em defesa de seus interesses, evidenciando a luta dos camponeses. A obra de Assunção soma-se às diversas pesquisas no campo da história social da agricultura e da escravidão produzida nas últimas décadas; pesquisas essas inicialmente motivadas por Maria Yeda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, que em obra de 1981 contribuíram para motivar a revisão da historiografia brasileira, especialmente da história social da agricultura (Linhares e Silva, 1981). Esses autores elencaram e problematizaram uma série de fontes até então pouco utilizadas para esse fim, estimulando e provocando novos historiadores, que produziram uma diversidade de trabalhos de cunho regional sobre o mundo rural brasileiro, sua estrutura e seus agentes e a produção de alimentos,6 a exemplo de Hebe Mattos, João Fragoso e Márcia Motta.7

Desses estudos emergiram posseiros, pequenos produtores, camponeses e, mais recentemente, o campesinato negro e mestiço (da brecha camponesa às terras de pretos). Da releitura de velhas fontes à incorporação de novas, afloraram complexas histórias dos conflitos agrários de norte a sul do país, assim como das atividades econômicas desenvolvidas “nas bordas da plantation”, extrapolando a análise econômica tradicional para contemplar o cotidiano dos homens do campo em sua multiplicidade.8 Para além das revoltas clássicas reconhecidas pela historiografia, emergem outras, até recentemente pouco conhecidas, como a Rebelião de Carrancas, a Revolta dos Marimbondos e as resistências cativas, tanto as cotidianas quanto as eventualmente mais incisivas, como a de Manoel Congo, em Paty do Alferes (Andrade, 1996Palacios, s.d.; Pinaud, 2003).

Márcia Motta, principalmente, contribuiu com indagações que enriqueceram a história social da agricultura, extrapolando as estruturas econômicas e buscando compreender as diversas formas de acesso à terra, assim como de legitimação do direito ao território ocupado, dando visibilidade aos embates que ocorriam no cotidiano. Motta influenciou uma geração de novos historiadores, preocupados em recuperar os conflitos agrários, as múltiplas formas de apropriação da terra e as estratégias dos pobres do campo (camponeses, agregados, libertos e cativos) no vasto território brasileiro. Todas essas questões emergem das fontes e contribuem para desmitificar a tese da passividade política do povo brasileiro.9

Creio que a contribuição das pesquisas recentes me permite discordar de Assunção em algumas questões pontuais. Ao analisar o trabalho dos negros escravizados no Maranhão, ele destacou que “Outra particularidade nas fazendas maranhenses foi o uso frequente de negros alforriados ou mesmo escravos de confiança como feitores” (p. 219). A produção historiográfica dos últimos anos, principalmente sobre o Sudeste, tem observado com constância a presença de cativos e libertos ocupando funções de confiança, como feitores, capatazes e administradores. Portanto, não se apresenta como uma particularidade do Maranhão, mas uma realidade do sistema escravista brasileiro.

Outra questão apresentada como especificidade do Maranhão, destacada por Assunção, é que mesmo nas áreas de predomínio da grande lavoura havia povoados de subsistência, e nas áreas de forte predomínio de subsistência havia plantations isoladas. Acredito que inexistiram áreas exclusivas de plantation também nas demais regiões do Brasil. Na Zona da Mata mineira, por exemplo, especialmente em seu principal município produtor de café (Juiz de Fora), também havia povoados exclusivamente voltados para a produção de subsistência (Souza, 1998).

Ao analisar a condição dos “vadios”, termo presente nas fontes analisadas, Assunção observou que este não designava propriamente pessoas desempregadas ou ociosas, “[…] porque trabalhavam a terra, colhiam, caçavam e pescavam. O pecado deles, que incomodava tanto a elite, era de tentar viver de maneira autônoma, sem aderir à emergente ética de trabalho capitalista” (p. 224; grifo nosso). Tive entendimento semelhante ao analisar a situação dos libertos que foram criminalizados por vadiagem e das mães libertas que reivindicavam a guarda de seus filhos, tutelados pelos ex-senhores, no pós-Abolição (Guimarães, 2006). Nas fontes, deparei-me com libertos acusados de serem vadios, pois vagavam de fazenda em fazenda. Essa circulação não denotava vadiagem; pelo contrário, é evidência de que eles percorriam as propriedades agrícolas em busca de trabalho e nessas propriedades poderiam exercer as atividades com as quais estavam acostumados, os serviços de roça – eram “trabalhadores ocasionais para os períodos apertados de trabalho nas propriedades” (Moura, 1998, p. 82-83). Nas regiões cafeeiras, por exemplo, havia períodos em que esses trabalhos eram oferecidos em maior quantidade do que em outros – como os períodos de colheita, secagem e armazenagem do café (maio a julho) e de semeadura dos gêneros (julho a outubro),10 uma vez que a vida produtiva da roça se organizava intercalando meses de trabalho com meses de não trabalho (ou de menos labuta) (Moura, 1998, p. 48).

Em suma, De caboclos a Bem-te-vis apresenta-se como leitura indispensável aos que pretendem conhecer o passado rural brasileiro e as lutas camponesas. Em tempos “excepcionais”, como os que estamos vivendo no Brasil, as palavras de Gomes, um dos líderes dos Balaios, são oportunas para encerrar minha abordagem, na expectativa de que a tomada de consciência nos motive à resistência e luta pela garantia de nossas conquistas: “Brasileiros unimo-nos senão a nossa Pátria está perdida” (Raimundo Gomes Vieira Jutahy, 10 de julho de 1840, p. 337).11

 

Referências

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1Elione Guimarães é professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora (SARH/PJF). Doutora (pós-doutorado) em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora do projeto educativo Arquivo Escola (AHJF/SARH/PJF). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sociedade, Cultura e Trabalho na região da Zona da Mata Mineira, séculos XVIII-XX (Unisinos).

2Refiro-me a: Prado Jr. (1954 e 1981), Sodré (1944 e 1962), Holanda (1995) e Furtado (2003).

3Principalmente Marc Block, Lucien Febvre, E. P. Tompson e Giovani Levi.

4 CARDOSO, Ciro Flamarion. Cultura, Etnia, Identidade e Memória. Digitado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense.

5Marta Abreu (professora-associada do Departamento de História da UFF), texto de apresentação na contracapa do livro de Assunção.

6Para um balanço dessas questões, ver: Motta e Guimarães (2007, p. 95-117).

7 Fragoso (1983), Mattos de Castro (1987) e Motta (1998). No campo mais específico do escravismo e das rebeliões cativas, podemos citar Mattos de Castro (1995), Gomes (2015) e Machado (1994).

8Para apreciação de alguns textos e autores, ver: Brandão e Christillino (2014).

9Entre outros: Silva (2011)Myskiw (2011)Machado (2011)Pinto (2010) e Lamas (2013).

10A respeito da sazonalidade da produção cafeeira e dos principais produtos de subsistência, ver: Stanley (1985, p. 58-61) e Fragoso (1983, p. 51-58).

 

Cidade e Memória / Urbana / 2017

Andar pela cidade, perceber o traçado de suas ruas, estudar os estilos arquitetônicos de seus prédios ou o seu centro histórico nos abre a possibilidade de ver e viver a cidade em perspectivas plurais, mas que deixam ainda obscuras tantas outras possibilidades de leitura do espaço citadino. Neste número a Urbana abre espaço para discussões que nascem da preocupação em entender a cidade como um espaço que ganha contornos e formas ao sabor das memórias que a constituem. A cidade torna-se plástica, moldável, maleável às falas de seus tantos habitantes, visitantes, urbanistas, cronistas, enfim, de todos aqueles que com ela vivem ou viveram algum tipo de relação – seja de identificação ou de estranhamento.

Pensar essas narrativas ditas e escritas em diversos momentos da vida dos habitantes da cidade consiste em um desafio instigante ao pesquisador do urbano. A todo instante nos deparamos com a defesa de alguns historiadores de que a nossa narrativa deve ser marcada pela objetividade e pelo caráter de cientificidade que lhe é inerente. Parece-me bastante propositivo pensar na construção da história a partir dessa mescla entre os “desejos” do historiador e seu compromisso com aquilo que suas fontes o permitem dizer. Reconhecer a impossibilidade de atingir uma verdade “absoluta” é reconhecer a pluralidade inerente à própria história, mesmo sem perder de vista que essa pluralidade dependerá dos vestígios, dos indícios que elegemos como significativos para tal pesquisa.

A saber, como nos ensina Bloch, a história carece de uma dose imensa de escolha pessoal, e essas escolhas são fruto do lugar em que se encontra o historiador. Lidar com a impossibilidade da construção de uma narrativa objetiva e total já era uma preocupação apontada por Lucien Febvre ao afirmar que “não adianta, você nunca poderá ver tudo, haverá sempre fontes que lhe escapam” (apud DUBY, 1989, p. 37). Por isso, usando a metáfora criada por Duby, o passado se apresenta como um “tecido amarrotado, coçado, rasgado”; ao historiador jamais será possível reconstitui-lo em sua totalidade, ou sequer conhecer a extensão daquilo que está perdido. As lacunas, assim como a subjetividade, são partes inerentes ao nosso ofício. Ao historiador fica o desafio de lidar com os limites, com aquilo que o lugar de produção da história lhe permite ou lhe proíbe dizer, uma vez que

a história se define inteira por uma relação da linguagem com o corpo (social) e, portanto, também pela sua relação com os limites que o corpo impõe, seja à maneira do lugar particular de onde se fala, seja à maneira do objeto outro (passado, morto) do qual se fala (CERTEAU, 2008, p. 77).

Somente quando consideramos a importância do lugar social [1] no processo de construção da história é que perceberemos sua própria historicidade. O nãolugar impede a história de ser história e o historiador de construir o seu corpus documental. O historiador – que tem o tempo como material de análise ou como objeto específico – trabalha

de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (papéis, pedras, imagens, sons, etc.) que distinguem, no continuum do percebido, a organização de uma sociedade e o sistema de pertinências próprias de uma ‘ciência’. Trabalha sobre um material para transforma-lo em história. (CERTEAU, 2008, p. 79)

A produção da narrativa histórica acaba voltando-se a uma postura de respeito aos interlocutores com os quais lidamos na pesquisa. Devemos ter com eles uma postura de respeito, postura expressa na necessidade de inserir cada um deles no seu lugar de autor, levando em consideração o seu arcabouço conceitual – que informa e institui as suas interpretações acerca do mundo. Estaríamos, assim, diante de “um quadro vivo resultante da recusa em bani-los de antemão ou de cristalizá-los como paradigmas; uma atitude respeitosa em relação às posições assumidas, ainda quando delas discordamos.” (BRESCIANI, 2009, p. 183) Assim, essa postura respeitosa deve ser estendida tanto aos autores com que dialogamos quanto, e talvez sobretudo, aos nossos colaboradores – que se dispuseram a narrar suas experiências, ou às narrativas memorialísticas e tudo o que constitui a(s) memória(s) citadina(s).

Compartilhando da ideia apresentada por Jeanne Marie Gagnebin no prefácio ao volume I das “Obras Escolhidas de Walter Benjamin – Magia e Técnica, Arte e Política”, em que afirma que, para Benjamin, “a reconstrução da experiência deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade” (GAGNEBIN, 1994, p. 09) este número da Revista Urbana apresenta-se como espaço para discussões sobre a relação existente entre experiência, narratividade e memória como possibilidade de entendimento das trajetórias trilhadas pelos diferentes indivíduos que compõem uma coletividade e a forma como se apropriam das imagens que parecem caracterizar essa mesma coletividade a partir de duas questões principais: a relação entre a memória e a história; e o entendimento do espaço citadino a partir das memórias que o constituem.

Pensar a relação entre memória e história é deparar-se com uma complexidade de entendimentos e de procedimentos que norteiam o trabalho do historiador para quem, assim como Proust, pensa que

a vida é vagabunda, nossa memória é sedentária, ou seja, à descontinuidade das experiências ao longo do tempo, a memória, igualmente descontínua, revela a possibilidade de algo único. A memória, portanto, constrói o real, muito mais do que o resgata (SEIXAS, 2001, p. 39).

É, portanto, entender a memória como presentificação do passado, (re)elaboração, (re)construção de uma experiência vivida. A memória não traz de volta a experiência vivida, mas constrói uma elaboração, uma digressão sobre essa mesma experiência. O falar, o narrar – embora impossibilitado pela vida moderna, como afirma Benjamin – constrói uma unicidade e uma lógica cadencial para os acontecimentos que não existia no momento em que a experiência se deu. Esse “algo único” de que nos fala Jacy Seixas (2001), é essa possibilidade que a memória tem de permitir uma organização de fatos descontínuos, uma ordenação mesma da vida em torno de expectativas e de questões presentes – é o dar forma à memória pessoal, mencionado por Monique Augras.

O rememorar é, então, entendido como um ato político e intencional de formulação de uma imagem sobre o passado e sobre a experiência vivida, seja ela entendida na individualidade ou mesmo na coletividade. Um ato que não prescinde da marca do seu narrador, do seu enunciador. A narrativa traz em si “impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do oleiro no vaso da argila.” (BENJAMIN, 1989, p. 107) Essa impressão remete, inclusive, a uma noção de tempo que varia de acordo com a situação vivenciada. Para Bergson, a mesma durée pode ser vivenciada de formas distintas – pode parecer interminável se vazia de significado, ou ainda, parecer um momento fugaz se plena de intensidade psicológica. (BENJAMIN, 1989)

Aqueles que são incitados a lembrar dão à sua memória contornos próprios dessa vivência, uma vez que “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido, não sua mera repetição”. (BOSI, 1994, p. 20) Pensar na estreita relação entre passado e presente quando se fala de memória é pensar também em como se constitui a sua dimensão temporal. Passado e presente estabelecem uma relação de reciprocidade na medida em que constituem partes integrantes do processo do rememorar. Aquilo que Bergson chama de presentificação da durée seria o processo de apropriação mesmo das lembranças e transformação dessa experiência em memória voluntária. Benjamin chega a afirmar que esse processo de presentificação seria uma forma, também, de amortização do choque das experiências vividas pela uniformização dessas experiências em uma narrativa coerente, mas que “não pode contudo evitar que nela persistam a existência de fragmentos desiguais e privilegiados.” (BENJAMIN, 1989, p. 136) Por mais coesão que se tente dar a rememoração de um fato esse processo implicará sempre em imperfeições, em lacunas que são inerentes a qualquer tipo de narratividade.

Este caráter lacunar e imperfeito da memória é, para Todorov, inerente a ela. Não há oposição entre memória e esquecimento – eles são partes de um mesmo processo.

O uso da memória como instrumento de elaboração do conhecimento histórico pressupõe mais do que conceder ao outro (ao colaborador) o direito à lembrança; é mais do que isso, Todorov lança o desafio de conceder ao nosso interlocutor o direito ao esquecimento. O processo de elaboração de uma imagem de si no presente, implica que “para comenzar a hablar, hay que poner o pasado entre parêntesis” (TODOROV, 2000, p. 27), ou seja, repensar ações, vivências, decisões e dar a elas os contornos que o momento presente lhe exige, ou lhe permite fazer. Até mesmo considerar a impossibilidade de fazê-lo, o direito de manter no esquecimento fatos imagens que não queremos mais relacionar à nossa vida, à nossa imagem. Essa complexa dinâmica, própria da memória, se amplia quando, ao ser instigado a lembrar o indivíduo se vê diante de um processo que vai conceder ao outro (geralmente um desconhecido) as interpretações sobre sua própria experiência. Abrir mão do lugar de construtor de si não é processo fácil, portanto, implica ao depoente a construção de uma imagem bem consolidada de si e que não deixe muita margem à interpretações “errôneas” sobre ele ou sua atuação num determinado momento do passado.

Bastante profícua é a ideia dessa complexidade [2] de que fala Todorov e que nos instiga a pensar os meandros da relação que se constrói entre a memória e a história. A história se coloca fora dos grupos que viveram aqueles acontecimentos e cria ligações artificiais entre eles. Há uma multiplicidade de tempos tantos quantos são os grupos que compõem a sociedade. Mas nenhuma dessas consciências coletivas de tempo se impõe a todos os outros grupos. Ou seja, não há como falar em uma memória universal, como pretende a história, pois, como afirma Benjamin ao discutir Proust

um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.” (BENJAMIN, 1994, p. 37)

O trabalho com a memória e com a história oral implica considerar, além das subjetividades, as inúmeras temporalidades que as compõem: da experiência vivida, da experiência rememorada, do presente em que rememora, e do presente do historiador quando se dedica a estudar essa rememoração.

Ao colaborador cabe a construção e a tessitura da narrativa da forma que achar mais adequada para os contornos que quer dar à sua memória. Diferentemente dos historiadores, o colaborador não tem uma preocupação em entender ou mesmo explicar os fatos que narra ou as conexões que estabelece entre eles – essa é uma característica marcante da narrativa para Benjamin. (1989, p. 203) A riqueza da oralidade, para o historiador, está em identificar esses contornos e a importância deles para a elaboração da narrativa do colaborador. Assim, os meus interlocutores ao falarem de Brasília e da relação que estabelecem com essa cidade me concedem não apenas o conteúdo mesmo de sua narrativa memorialística, mas os silêncios e as inquietudes que vivenciam no exercício de lembrar.

Assim, pensar a cidade a partir da fala de seus moradores, das memórias de seus edificadores, gestores, enfim, daqueles que a constituem, implica refletir sobre essas várias temporalidades e subjetividades que estão envolvidas no processo de historiar. A experiência de hoje lembrar sobre um fato passado, ocorrerá mediante o estímulo de questões colocadas pelo historiador / entrevistador, de fotografias apresentadas ou mesmo de um passeio pelas ruas da cidade, no entanto, essa será uma memória perpassada pelos limites que o historiador acaba colocando para o seu colaborador [3] no momento da entrevista / pesquisa.

Entendida como um espaço plural e complexo a cidade ganha contornos a partir dos diferentes discursos que incidem sobre ela – de urbanistas, de jornalistas, de cronistas, de memorialistas e de habitantes que acabam atribuindo significados à cidade e aos usos que são feitos dela a partir de seu lugar de atuação. Neste número a Revista Urbana apresenta as discussões e perspectivas traçadas por diferentes estudiosos sobre o espaço citadino e as relações com seus habitantes.

Notas

1. Lugar social entendido a partir da proposta de Michel de Certeau quando afirma que este é caracterizado pelo lugar social, político, econômico, institucional, ideológico, etc. ocupado pelo historiador no momento de elaboração de seu texto. (CERTEAU, 2008).

2. Ver também: RICOEUR (2007); SEIXAS (2001); NORA (1993); LE GOFF (2003); BERGSON (1999); HALBWACHS (1990); BOSI (1994).

3. Pesquisadores do NEHO / USP utilizam a nomenclatura de colaborador para referirem-se aos entrevistados, por entenderem que estes não apenas narram as suas experiências individuais, mas contribuem para a elaboração e consolidação de um saber que depende da forma como eles trabalham essa memória.

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TODOROV, Tzvetán. Los abusos de la memoria. Buenos Aires: Paidós, 2000.

Viviane Gomes de Ceballos – Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: vgceballos@gmail.com


CEBALLOS, Viviane Gomes de. Editorial. Urbana. Campinas, v.9, n.3, set / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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As NTICS e a escrita da história no tempo presente / Revista Transversos / 2017

No início deste século, refletindo acerca das mutações pelas quais passava o mundo da escrita, Roger Chartier afirmou que a “resistência” e o “estranhamento” do historiador à utilização ou a interveniência das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs) no seu fazer pareciam-lhe “lamentações nostálgicas”. Por outro lado, completava, outros olham para esse novo espaço de interação e produção textual com “entusiasmos ingênuos”.

Passada quase uma década dessas palavras, o que mudou na discussão sobre essa questão no Brasil e no mundo? Com certeza, muitos escritos já se somaram às ideias apresentadas pelo historiador francês na 10ª. Bienal Internacional do Livro. Mas, basta uma rápida visita aos trabalhos produzidos no país e verifica-se que a maioria discute formas de utilização das NTICs, relatam experiências, principalmente em sala de aula, mas, poucos se arriscam a romper o limiar de pensar a utilização dessas tecnologias por um viés funcional e auxiliar à escrita da história no tempo presente.

A proposta do presente dossiê pela linha de pesquisa Escritas Contemporâneas de História, do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades – LEDDES / UERJ, pretende dialogar com aqueles profissionais – acadêmicos ou não – que ousam romper o “estranhamento” dessa fronteira e compreender, sem o objetivo de profetizar, lembrando mais uma vez Chartier, que a história se escreve no e para o presente, refletindo seus problemas e incorporando as tecnologias e as ferramentas existentes para essa escrita. Compreendendo, acima de tudo, “os significados e os efeitos das rupturas que implicam os usos” das NTICs nas escritas da história nos dias de hoje, seja a escolar, a pública, ou a historiográfica.

Convidamos historiadores e demais profissionais que pensam a escrita da história ou a produção de narrativas, fundamentais para a materialidade do conhecimento histórico, a enviarem suas reflexões acerca do tema. Rompendo com a perspectiva apresentada acima, temos certeza que os trabalhos que passamos a apresentar (re)significaram a demarcação estabelecida há quase vinte anos para esta discussão e buscaram interpretar fronteira como um lugar de encontro e não apenas de limites.

O artigo que abre o dossiê é de autoria do jovem historiador digital Ricardo Pimenta. Sua reflexão problematiza os desafios do historiador contemporâneo mergulhado em uma época na qual o processo de produção do conhecimento, mesmo que de maneira transversal, está sendo intermediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Além de ter que ampliar sua capacidade transdisciplinar, um limite antigo do profissional da área que se complexifica neste novo século, a pesquisa científica e sua divulgação são certamente atravessadas pela consciência de que para “a massa de ‘visualizadores de informação’, saber sobre um assunto, sobre um fato histórico, ou sobre qualquer informação ordinária, resume-se em consultar os motores de busca dispostos na internet”.

Pimenta nos lembra que a cultura digital, característica do presente e na qual estamos todos mais ou menos mergulhados, para além de nos exigir o desenvolvimento de novas competências, modifica estruturalmente pressupostos conceituais com os quais trabalhamos. Será que os regimes de historicidade serão sobrepostos por um ”regime de informação”?

Uma cultura marcada pela atuação e expressão de uma techné marcadamente multimodal e pela práxis da convergência dos registros / escritas / produções existentes no espaço eletrônico onde a relação com a representação do passado, enquanto prática informacional, é plenamente “atravessada” pelos suportes e plataformas mediadoras da informação, convidando-nos a refletir sobre nós mesmos e nossa relação com o tempo e espaço na era digital.

Outra porta abre-se acerca da influência da cultura digital na produção de sentido para informação / conhecimento histórico nos dias de hoje com o artigo O portal Metapedia: revisionismo histórico e negacionismo no tempo presente. Neste trabalho, Diego Leonardo Santana e Dilton Maynard analisam a criação de uma enciclopédia digital – o portal Metapidia – por grupos de extrema direita negacionistas. O portal, segundo os autores, apresenta conceitos e biografias, construídos a partir do revisionismo negacionista, oferecendo versões diferentes para os acontecimentos e conceitos históricos, sobretudos aqueles ligados à Segunda Guerra Mundial.

A análise de verbetes do Metapidia permitiu a Santana e Maynard problematizar um tipo de reescrita da história sendo desenvolvida na e pela rede mundial de computadores e o fato da internet servir de suporte na produção / divulgação pedagógica de posicionamentos intolerantes: “No Metapedia a história tem papel importante, ela colabora sensivelmente para legitimar uma visão fascista de mundo. Se tudo é uma farsa criada pelos adversários, cabe revisar a história e demonstrar o verdadeiro significado das coisas”.

O caráter pedagógico do espaço digital também é explorado por Raone Ferreira de Souza. Mas, seu artigo O podcast no ensino de história e as demandas do tempo presente: que possibilidades? discute a potencialidade das NTICs para o ensino de história escolar. O autor entrelaça História Pública e o campo do Ensino de História para, partindo de questões candentes no tempo presente, pensar a constituição do saber histórico escolar a partir do desenvolvimento de uma oficina de podcast.

Dialogando com a História Digital, Souza afirma que a hipertextualidade, característica das redes digitais, alterou os modos de produção historiográfica. O professor deve estar atento, portanto, às narrativas históricas produzidas a partir desta influência e, mais do que tolerar a sua presença na cultura escolar, utilizar-se delas como ferramenta para a história escolar fazer sentido para os aprendizes. O projeto “Histórias na podosfera”, oficina desenvolvida para que professores de história pudessem utilizar a mídia Podcast como meio de produção de narrativas históricas no espaço escolar, foi a fonte fundamental da reflexão de Souza.

Nosso dossiê também flana pelas vias mais públicas da história sob a guia de Daniel Carvalho Pereira, que nos oferece uma leitura saborosa da historiografia alemã recente para pensar interfaces possíveis entre Ensino de História e como diz no título de seu artigo a Didática da História Pública. Pereira, em diálogo com autores como Jeisman, Bergman e Rüsen nos fala da importância de concebermos uma literacia da História mais alargada, que dê conta de outras (novas) formas de estar no mundo, o que, para o autor, necessariamente, deve ultrapassar as paredes da sala de aula.

Argumentando em favor de uma postura autoreflexiva da didática, ou da Geschichtsdidaktik, que no alemão refere-se especificamente à Didática da História reconectada à Teoria, Pereira poderia parecer sugerir um retorno à teoria que nos encerraria mais uma vez entre os muros da Torre de Marfim da Academia, entretanto, costura caminhos mais híbridos, ou porosos, por assim dizer, ao amarrar a teoria a uma visão fundamental de consciência histórica que se engaja inexoravelmente com uma agência do público inconcebível se permanecemos entre os muros da escola e / ou da universidade. Assim, seguindo as indicações de Pereira, a História Pública parece ser a chave mestra para abrir as portas da sala de aula a práticas que nos permitam reelaborar a Geschichtsdidaktik numa roupagem de Didática da História Pública, e as tecnologias digitais, também aí, parecem ser grandes aliadas.

Com um objeto bastante distinto dos demais artigos vistos até aqui, Igor Lemos Moreira dá o play para outra faixa do dossiê – onde a música pop e ícones efêmeros desse universo particular se encontram com conceitos historiográficos do porte de espaços de experiências e horizonte de expectativas, de Kosseleck. Noutro registro, porém, daquele de Pereira, aqui a historiografia alemã dá “pano para manga” na discussão de outro espaço de importância nesse dossiê que não é a sala de aula, mas o vasto mundo da World Wide Web, neste caso como arena para disputas narrativas no Tempo Presente. Ao analisar um artigo em um portal da web como fonte histórica para se pensar regimes de historicidade e modelos biográficos, Moreira nos alerta para a importância de, na Era Digital, repensarmos o estatuto das fontes históricas e nos lançarmos na, de certa forma, melindrosa, atividade de fazer a crítica histórica de um “documento” completamente novo (born digital) que, pelo seu inerente contexto (a Web) tem dinâmicas bastante distintas das fontes que costumamos encontrar bem guardadas em arquivos.

Se a discussão da influência da tecnologia digital nas mudanças do regime de historicidade contemporâneo parece ser um eixo recorrente, mesmo que indiretamente, na análise de parte dos artigos desta coletânea, a pesquisa que fecha o dossiê aprofunda tal discussão com aportes da ciência da Comunicação.

O trabalho de Marialva Carlos Barbosa – Comunicação: uma história do tempo passando – se debruça sobre quatro décadas de pesquisas de pós-graduação desta área do conhecimento e conclui sobre a especificidade presentista destes estudos. Para a autora, o esfacelamento da articulação entre passado, presente e futuro que caracteriza os nossos dias é também uma consequência da forma como a mídia, seja a tradicional ou a informacional, realiza sua construção temporal.

Interessante pensar como em um tempo marcado pela hegemonia da pauta midiática, onde os meios de comunicação e suas narrativas exercem papel estratégico e se apregoam como produtores de uma história imediata, a escrita da História pode ser influenciada. Afinal, como diz Barbosa: “A temporalização do presente contida nas premissas do olhar comunicacional caracteriza-se pelo agora mesmo, isto é, percebe a ação humana, sobretudo, num tempo presente que passa durando”.

Fazem parte também da temática proposta para o presente dossiê a entrevista com a professora e pesquisadora em Ensino de História Marcella Albaine e a resenha de seu editado livro Ensino de História e Games: dimensões práticas em sala de aula realizados respectivamente pelas responsáveis por esse número da TransVersos, Anita Lucchessi e Sonia Wanderley. Nada como valorizar o trabalho de uma jovem profissional que leva a sério a proposta de refletir / trabalhar a partir do diálogo entre saberes e narrativas de diferentes origens, incluindo aí aqueles que chegam à cultura escolar por conta da massificação da cultura digital, o saber histórico escolar e a teoria da história.

Por fim, o mesmo frescor corajoso que identificamos nos trabalhos que fazem parte do dossiê temático, encontramos no artigo livre que fecha este número da revista. Guilherme Moerbeck e Luciana Velloso discutem como utilizar o conceito de cidade, em suas múltiplas possibilidades – temporais, espaciais, territoriais, simbólicas, de pertencimento e identitárias – como ferramenta na construção das noções de cidadania e de urbano para alunos do Ensino Fundamental de uma escola da região metropolitana do Rio de Janeiro, o município de Duque de Caxias.

Inquietos didaticamente, os professores visitam recentes discussões teóricas do campo historiográfico e de outras ciências sociais para planejarem uma aula como um texto autoral que reflita as especificidades do saber histórico escolar e produza sentido para o cotidiano de seus alunos, sujeitos que, como lembram, vivem em uma cidade que está dividida e divide.

Anita Lucchesi

Sonia Wanderley


LUCCHESI, Anita; WANDERLEY. Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.11, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Discursos e itinerários de modernização educativa no espaço luso-brasileiro / Revista História da Educação / 2017

Nos últimos anos, no âmbito da História da Educação, pesquisadores têm mobilizado esforços para articular projetos de pesquisa que evidenciem ideias, projetos e práticas de intelectuais e seus grupos e de instituições de pertencimento e sociabilidade, com conexões luso-brasileiras. O resultado dessa articulação é expresso na produção de livros e artigos, viabilizado por iniciativas institucionalizadas de estudos, assim como contatos pessoais e profissionais. Os textos elencados neste dossiê resultam de discussões oriundas da apresentação de trabalhos no Congresso Luso Brasileiro de História da Educação, realizado em 2016, na cidade do Porto, em Portugal.

As investigações aqui sistematizadas remetem ao período em que os autores Teresa Rosa, que é portuguesa, e os brasileiros Raylane Barreto, Mauro Gonçalves e Giana Amaral, realizaram o estágio pós-doutoral, na Universidade de Lisboa, sob orientação de Justino Magalhães. Constituiu-se, no ano de 2014, um grupo que tinha na modernização educativa uma temática comum em suas pesquisas. Nos artigos aqui apresentados, foram analisados documentos arquivados na Biblioteca Nacional de Portugal, na Torre do Tombo e em diferentes acervos documentais lusitanos e brasileiros.

A compreensão dos dilemas da modernidade e dos processos de modernização no âmbito educacional tem desafiado pesquisadores. Ainda mais se levarmos em conta a afirmativa de Justino Magalhães (2010, p. 11) de que “na base da Modernidade está a educação”. A educação aqui tomada pelo autor, como sinônimo de pessoalização; etimologicamente remetida a educare e / ou educere: “acção de alimentar, desenvolver e criar, ou a acção de conduzir e fazer sair. O sentido de transformação, ou seja, uma sucessão de quase-metamorfose está presente no conceito de educação”.

Assim, o dossiê Discursos e Itinerários de Modernização Educativa no Espaço Luso-brasileiro constitui um meio de investigação, conceptualização e discussão. Incide numa temática aberta, modernização educativa, que será extensiva ao Ocidente Moderno e Contemporâneo, a partir de uma perspectiva histórico-comparada entre Portugal e Brasil. O tempo longo e a representação sob a modalidade de discursos e itinerários permitem mapear diversos assuntos, espaços e quadros de modernização educativa. O compromisso de partida entre o conjunto de investigadores: a partilha de uma metodologia comum, associada à História Cultural. A incidência em discursos e itinerários meta-educativos de teor reformista possibilitam um contributo substantivo para a História da Educação. É proposto um ensaio paradigmático resultante da congregação de um tema, de uma conceptualização que reúne um grupo de produção com um quadro histórico-educativo de referência.

O artigo de Teresa Rosa, A Matriz Pedagógica Jesuíta e a Sistemática Escolar Moderna, trata da Ratio Studiorum, texto fundador de ordenação e sistematização de estudos, que permitiu o desenvolvimento de um sistema escolar de alcance internacional. A autora evidencia a possível atualidade de algumas das características dessa metodologia jesuítica, que podem ainda a vir contribuir para que o aluno participe com mais empenho no processo ensino-aprendizagem. Sublinha a potencialidade da Ratio Studiorum na inspiração para o trabalho educativo nos tempos atuais, uma vez que se centra no encontro pessoal entre o educador e o educando, num processo contínuo de interação e comunicação.

Raylane Barreto, em seu artigo Tobias Barreto de Menezes e a Educação para um Brasil Moderno (Séc. XIX), ressalta a importância da abordagem da história de intelectuais para a compreensão de aspectos da História da Educação. Assim, destaca ideias, propostas e práticas de Tobias Barreto de Menezes, um dos autores expoentes dos oitocentos brasileiro, relacionando-as com questões educacionais do período, em especial no nordeste brasileiro. Nesse sentido, a análise empreendida busca articular as principais expressões desse autor, que teve o germanismo como “linha inspiradora” – germanismo este, que se revelou em diversas frentes de sua produção bibliográfica – em prol da educação superior feminina e da educação para o trabalho com vistas a um Brasil moderno. A autora conclui que a concepção de Tobias Barreto mais do que partir da crítica a todos os membros da hierarquia social do império, contempla a missão do homem de ciência para a qual, segundo Weber, a visão de mundo permite apresentar padrões morais e éticos e a ciência se torna uma instância mediadora da vida.

O artigo de Giana Lange do Amaral, Os maçons e a Modernização Educativa no Brasil no Período de Implantação e Consolidação da República, parte da premissa de que a atuação de maçons e da maçonaria no contexto educacional brasileiro ainda é uma temática pouco estudada. Nesse sentido, a autora destaca encaminhamentos de um estudo maior sobre a influência de maçons no processo de modernização educacional que se consolida entre as últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. A atuação de maçons, respaldada por idéias liberais e iluministas, se consolida nas primeiras décadas do regime republicano, influenciada pelo ideário positivista e antijesuítico, em defesa do ensino elementar público, laico e obrigatório. No Brasil, a Maçonaria adaptou-se às condições específicas e necessidades regionais de onde se instalou. Portanto ela não deve ser compreendida num sentido unívoco, sendo mais fácil identificar a ação e engajamento ideológico de maçons e não da Maçonaria propriamente dita. Este artigo, fundamentado pela História Cultural, privilegia o uso de periódicos maçônicos e busca destacar práticas políticas dos maçons como intelectuais, gestores, legisladores, escritores, jornalistas e professores, bem como as Lojas Maçônicas como potenciais espaços de sociabilidades e organização ideológica.

Mauro Castilho Gonçalves, no artigo Integralismo Lusitano e Educação Católica: Conexões entre Intelectuais e o Caso do Colégio Vasco da Gama de Lisboa, Portugal (década de 1920) apresenta, inicialmente, as fontes e problematizações que nortearam a temática abordada, particularmente as que versam sobre as conexões entre o Integralismo Lusitano (IL) e o campo escolar. O autor examina o projeto cultural e pedagógico do colégio lisboeta Vasco da Gama, instituição de ensino fundada em 1915, que pretendeu instruir e educar seus alunos sob as bases da Educação Física, da Religião e das Artes, à luz da doutrina católica, dos princípios integralistas e de uma rígida disciplina interna. Seu estudo tem como fonte central de investigação um periódico, criado em meados dos anos de 1920. Ele serviu de base na configuração do projeto cultural do colégio e expressão institucionalizada de uma rede de sujeitos conectados e ativos em tempos conturbados da política portuguesa. Alcançar os estudantes secundaristas e universitários era uma das metas do IL. Seguindo os preceitos doutrinários do IL, estava destinado à juventude escolar e acadêmica um papel na luta pela regeneração da alma portuguesa, por meio da restauração monárquica.

Pelo que foi exposto, o leitor pode perceber que há, entre os trabalhos apresentados, linhas comuns no modo de abordagem sobre um mesmo tema, mas há também o objetivo de mostrar como a modernização educativa sofre metamorfoses discursivas tendo sido alocada em diferentes espaços, movimentos e ideários. É uma temática de História Cultural, centrada nos movimentos de intelectuais e de transformação social e institucional. A modernização educativa em Portugal e Brasil é aqui inventariada e referenciada em distintos tempos históricos, assuntos, autores e pensadores.

Referência

MAGALHÃES, J. Da cadeira ao banco: escola e modernização (séculos XVIII-XX). Lisboa: EDUA, Unidade de I&D de Ciências da Educação, 2010.

Giana Lange do Amaral – Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, pesquisadora CNPq / PQ2, Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com estágio Pós-doutoral na Universidade de Lisboa e na PUC / RS. E-mail: gianalangedoamaral@gmail.com

Mauro Castilho Gonçalves – Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade de Taubaté, SP. Doutor em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP. E-mail: mauro_castilho@uol.com.br


AMARAL, Giana Lange do; GONÇALVES, Mauro Castilho. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 21, n. 53, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.178, n.473 jan./mar. 2017.

Revista IHGB – Número 473

  • Carta ao Leitor
  • Lucia Maria Paschoal Guimarãe
  • Congresso internacional – Cem anos do Código Civil (1916-2016)

Apresentação

  • Sobre o chamado “Livro do Centenário”  – Apresentação do volume temático da Revista do IHGB
  • Airton Cerqueira-Leite Seelaender
  • O Código Civil – entre rupturas e compromissos
  • Arno Wehling
  • Oração breve pelo transcurso do Centenário do Código Civil à luz do pensamento civilista de Orlando Gomes
  • Brief discourse on the Centenary of the Civil Code in the light of the civilian thought of Orlando Gomes
  • Luiz Edson Fachin
  • Pandectística e sua recepção no Direito brasileiro
  • Pandectistics and its reception in Brazilian Law
  • Jan Dirk Harke
  • Entre a consolidação e o código: O diálogo entre a doutrina e o mundo forense no Segundo Reinado e no início da República
  • Between Consolidation and Code: Dialogue between doctrine and the forensic world in the Second Reign and at the outset of the Republic
  • Alfredo de J. Flores
  • Código Civil e Ciência do Direito entre sociologismo e conceitualismo Civil
  • Code and Jurisprudence between sociology and conceptualism
  • José Reinaldo de Lima Lopes
  • Influência da Pandectística no Código Civil Brasileiro
  • The Pandectistic influence on the Brazilian Civil Code
  • Torquato Castro Jr.
  • O Código Beviláqua e outra compreensão da dimensão jurídica: transformações nas fontes do direito brasileiro
  • The Beviláqua Code and another understanding of the legal dimension: Transformations in the sources of Brazilian Law
  • Sérgio Said Staut Júnior
  • Clóvis Beviláqua: redes de sociabilidade política, reconhecimento e ressentimento Clovis Beviláqua: networks of political sociability, recognition and residence
  • Gizlene Neder
  • República, evolucionismo e Código Civil:  a Presidência Campos Sales e o Projeto Clóvis Beviláqua
  • Republic, evolutionism and Civil Code: The Presidency of Campos Sales and Clóvis Beviláqua`s project
  • Christian Edward Cyril Lynch
  • Clóvis Beviláqua jurista e escritor
  • The jurist and writer Clóvis Beviláqua
  • Vamireh Chacon
  • Clóvis Beviláqua e a Lei de Introdução ao Código Civil – Reflexões sobre aspectos internacionais
  • Clóvis Beviláqua and reflections on international aspects of the Introductory Law to the Civil Code
  • Maria Arair Pinto Paiva
  • Clóvis Beviláqua e a Justiça internacional: Entre o sim e o não a Rui Barbosa
  • Clovis Beviláqua and international Justice: Between the yes and no to Rui Barbosa
  • Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
  • Clóvis Bevilaqua e o Direito Internacional
  • Clovis Beviláqua and International Law
  • Antônio Celso Alves Pereira
  • Autonomia do Direito Privado ou Política Codificada? O Código Civil de 1916 como Projeto Republicano
  • Autonomy of Private Law or Codified Politics? The Civil Code of 1916 as a Republican Bill
  • Thiago Reis
  • A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade
  • The long shadow of the household. Domestic power, traditional concepts and “legal imagery” in Brazil’s passage from the Ancien Régime to Modernity
  • Airton Cerqueira-Leite Seelaender
  • El pensamiento de Clovis Bevilaqua y su impacto en los debates jurídicos argentinos de la primera mitad del siglox XX
  • The thoughts of Clóvis Beliváqua and their impact on the legal debates in argentina in the first half of the 20th century
  • Ezequiel Abásolo
  • Entre modernidad y tradición: La experiencia codificadora en Brasil y el Perú
  • Between modernity and tradition: The codifying experience in Brazil and Peru
  • Carlos Ramos Núñez
  • O Código Beviláqua no cenário internacional
  • The Beviláqua Code in the international scenario
  • Otavio Luiz Rodrigues Junior
  • O direito das coisas entre os dois Códigos Civis brasileiros: do individualismo à centralidade da pessoa
  • Property law in the two brazilian Civil Codes: From individualism to the centrality of the person
  • Francisco Luciano Lima Rodrigues
  • Gustavo César Machado Cabral
  • O direito civil antes do Código de 1916: A ausência das Ordenações Filipinas e as expectativas na imprensa e na doutrina nacional
  • Civil law before the 1916 Code: The absence of Philippine Ordinances and expectations in the press and in national doctrine
  • Gustavo S. Siqueira
  • Dogmática civilista e mudança social: Pandectística,  urbanização e industrialização
  • Zivilrechtsdogmatik und Gesellschaftswandel: Pandektistik, urbanisierung und industrielle revolution
  • Miloš Vec

Normas de publicação

  • Guide for the authors

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.78, n.475 set./dez. 2017.

I – DOSSIÊ

  • DOSSIER
  • Tempos de Constituição: Perspectivas e paradoxos da Lei Orgânica da Revolução Republicana de 1817
  • In times of Constitution making: Perspectives and paradoxes of the organic Law of the Republican Revolution of 1817
  • Marcelo Casseb Continentino
  • Tradição e inovação no discurso político-jurídico da Revolução de 1817
  • Tradition and innovation in the political-legal discourse of the Revolution of 1817
  • Arno Wehling
  • A Revolução Pernambucana de 1817 no contexto do Reino Unido luso-brasileiro
  • The Pernambucan Revolution of 1817 in the context of the lusobrazilian United Kingdom
  • Maria de Lourdes Viana Lyra
  • Para fazer de 1817 uma revolução: o papel da historiografia
  • Making the 1817 Uprising a Revolution: The Role of Historiography
  • Guilherme Pereira das Neves
  • Os embates pela história da  Revolução Pernambucana de 1817
  • The struggles for the history of the pernambuco revolution of 1817
  • George F. Cabral de Souza
  • 1817: Ideário Liberal Pernambucano
  • 1817: Liberal Ideas in Pernambuco
  • Leonardo Dantas Silva
  • A Vila do Recife, em 1817
  • Vila do Recife in 1817
  • José Luiz Motta Menezes
  • Breves considerações sobre as ideias de Simón Bolívar na Revolução Pernambucana de 1817
  • Brief considerations on the ideas of Simón Bolívar in the Pernambuco Revolution of 1817
  • Cláudio Aguiar
  • Bicentenário da Diplomacia Brasileira
  • Bicentenary of brazilian diplomacy
  • Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão
  • Revolução Republicana em Pernambuco de 1817 burguesia e maçonaria versus aristocracia
  • The Republican Revolution of 1817 in Pernambuco bourgeous and masonry versus aristocracy
  • Reinaldo Carneiro Leão
  • A Revolução de 1817 e a unidade nacional do Brasil
  • The Revolution of 1817 and the national unit of Brazil
  • Vamireh Chacon

II – ARTIGOS E ENSAIOS

  • ARTICLES AND ESSAYS
  • A igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso e os retábulos atribuídos ao Aleijadinho
  • The Matrix church of our Lady of Good Success and the retables attributed to Aleijadinho
  • Aziz José de Oliveira Pedrosa
  • Moradas de engenho e arte: as casas do Conde da Barca no Novo Mundo
  • Manor houses and art: the houses of the Count of Barca in the New World
  • Ana Pessoa
  • Ana Lucia V. Santos

III – COMUNICAÇÕES

  • NOTIFICATIONS
  • Visconde do Uruguai: realismo periférico, construção do Estado e geopolítica na América Ibérica Oitocentista
  • Visconde de Uruguay: peripheral realism, construction of the State and geopolitics in nineteeth-century Iberian America
  • Christian Edward Cyril Lynch
  • Reconfiguração regional e disputa oligárquica no Sudeste brasileiro no final do Império: imigração, ensino agrícola e o projeto da Província do Rio Sapucaí
  • Regional reconfiguration and oligarchic dispute in southeast Brazil at the end of the Empire: immigration, agricultural education and the project of the Province of Rio Sapucaí
  • João Eduardo de Alves Pereira

IV – DOCUMENTOS

  • DOCUMENTS
  • Direito e feitiçaria na América portuguesa do século XVIII: a devassa movida contra Maria do Gentio da terra da Vila de Paranaguá
  • Law and witchcraft in portuguese America in the 18th century: the criminal proceeding conducted against
  • Maria de Gentio da Terra from Vila de Paranaguá
  • Danielle Regina Wobeto de Araujo
  • Liliam Ferraresi Brighente
  • Luís Fernando Lopes Pereira

V – RESENHAS REVIEW

  • ESSAYS
  • Doze capítulos sobre escravizar gente e governar escravos: Brasil e Angola – séculos XVII-XIX
  • Luiz Fabiano de Freitas Tavares
  • Normas de publicação
  • Guide for the authors

Cadernos Pagu. Campinas, n.51, 2017.

Apresentação Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações

  • Vianna, Adriana; Lowenkron, Laura
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Vianna, Adriana; Lowenkron, Laura
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • ¿Matronato? Gestiones maternales de protección estatal Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Lugones, María Gabriela
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • Tráfico de mulheres nas portarias das prisões ou dispositivos de segurança e gênero nos processos de produção das “classes perigosas” Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Padovani, Natália Corazza
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Um estudo de caso sobre o policiamento global dos casamentos de mulheres do Terceiro Mundo: Mulheres filipinas e migração matrimonial Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Ricordeau, Gwenola
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • A categoria como intervalo – a diferença entre essência e desconstrução* Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Feltran, Gabriel de Santis
  • Resumo: EN PT
  • Texto: EN PT
  • PDF: EN PT
  • Os Meninos de Rosa: sobre vítimas e algozes, crime e violência Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Efrem, Roberto
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Quais políticas, quais sujeitos? Sentidos da promoção da igualdade de gênero e raça no Brasil (2003 – 2015) Dossiê Gênero E Estado: Formas De Gestão, Práticas E Representações
  • Aguião, Silvia
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Aguafiestas porteñas. Sexo y dinero en la micropolítica emocional abolicionista* Artigos
  • Daich, Deborah
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • “É ajuda, não é prostituição”. Sexualidade, envelhecimento e afeto entre pessoas com condutas homossexuais no Pantanal de Mato Grosso do Sul* Artigos
  • Passamani, Guilherme
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • “A gente sempre tem coragem”: identificação, reconhecimento e as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher* Artigos
  • Duque, Tiago
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • La calle es un lugar – Escenas de interacción entre varones homosexuales y agentes policiales durante la década de 1980 en Córdoba (Argentina)* Artigos
  • Blázquez, Gustavo; Peressotti, Ana Laura Reches
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • A mulher moderna como fotógrafa na guerra: Margaret Michaelis e Kati Horna Artigos
  • Zerwes, Erika
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Militância, escrita e vida: a poesia de Deolinda Rodrigues* Artigos
  • Souza, Larissa
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Políticas de empleo con enfoque de género: formación laboral en oficios no tradicionales para mujeres* Artigos
  • Millenaar, Verónica
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • As casas de Carolina: espaços femininos de resistência, escrita e memória* Artigos
  • Palma, Daniela
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Somente um ponto de vista* Artigo
  • Figueiredo, Angela
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • O que é um nome? Mulherismo, Feminismo Negro e além disso* Artigos
  • Collins, Patricia Hill
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Género, dinero y fronteras amazónicas: la “prostitución” en la ciudad transfronteriza de Brasil, Colombia y Perú Artigos
  • Nieto Olivar, José Miguel
  • Resumo: EN ES
  • Texto: ES
  • PDF: ES
  • Casamento em performance, parentesco em questão: gênero e sexualidade no São João de Belém, Pará* Artigos
  • Noleto, Rafael da Silva
  • Resumo: EN PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Máscaras heterossexuais, desejos homossexuais* Resenhas
  • Bento, Berenice
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • A “guerra” contra o gênero: reações às últimas décadas de políticas de promoção da igualdade de gênero no Brasil* Resenhas
  • Balieiro, Fernando de Figueiredo
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Romances latino-americanos subversivos: leitura e escrita a contrapelo da heteronormatividade* Resenhas
  • Cargnelutti, Camila Marchesan
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Gênero no mundo do trabalho* Resenhas
  • Araujo, Anna Bárbara
  • Texto: PT
  • PDF: PT

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar – ROSSA; RIBEIRO (Tempo)

ROSSA, Walter; RIBEIRO, Margarida Calafate. Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar. Rio de Janeiro: EDUFF, 2015. 533p.p. Resenha de: CHUVA, Márcia. Presença portuguesa, patrimônios e influências plurais. Tempo v.23, n.3 Niterói Spt./Dec.2017.

Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar é uma coletânea com edição simultânea no Brasil e em Portugal, organizada por Walter Rossa e Margarida Calafate Ribeiro, que compartilham também a coordenação do Programa de Doutoramento em Patrimônios de Influência Portuguesa. Escrever sobre esse livro é também trazer, ainda que de forma indireta, esse programa interdisciplinar, interinstitucional e transnacional, de complexa engenharia, como já se nota na apresentação do livro, nas palavras de seus organizadores. Sediado na Universidade de Coimbra, o curso tem regime de cotutela com universidades na Europa (Universidade do Algarve; Universidade de Bolonha; Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense), no Brasil (Universidade Federal Fluminense) e em Moçambique (Universidade Eduardo Mondlane), além da colaboração de instituições em Angola e Cabo Verde. A obra reúne contribuições de especialistas envolvidos com esse projeto, profissionais que enfrentam as controvérsias teóricas de um campo em construção – o campo do patrimônio -, considerando as singularidades desses percursos em seus países.

A centralidade portuguesa, que parece se esboçar logo no título da obra (e do programa) Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar, acaba por desconstruir-se, atualiza-se e se refaz passo a passo, no decorrer dos capítulos, colocando em evidência os desconfortos dessa posição, remanejando pontos de vista, perspectivas, pontos de fuga. Seus organizadores partem de uma constatação relacional valiosa, que se refere à impossibilidade de falar com autoridade e propriedade sobre o patrimônio do outro, mas também à inutilidade de pensar o meu isoladamente. Entendo que tal constatação é geradora dos desafios dessa obra, ao conduzir as discussões do patrimônio para o eixo dos debates do colonialismo e do pós-colonialismo, motivos suficientes para dar pertinência e relevância a ela. É essa, sem dúvida, sua principal contribuição no Brasil, pois tal abordagem no campo do patrimônio ainda tem caráter de novidade por aqui.

Uma segunda constatação vai delinear as singularidades dessa obra: subsistem desconhecimentos e diferenças sensíveis nas práticas de atuação, na teorização e nas normativas, entre os universos das culturas latinas e anglo-saxônicas, apontando os descompassos em termos internacionais no campo do patrimônio. A obra pretende marcar posição nesse debate, como lugar alternativo, em termos teóricos, à hegemonia anglo-saxônica, que se dá em escala europeia e se impõe inclusive em função de sua capacidade editorial. A ambição dessa publicação é, pois, ampliar e transformar perspectivas e reflexões por meio de um debate que se estabelece não apenas pela ampliação do universo empírico de casos distintos, como também por caminhos teóricos alternativos, focados a partir da América do Sul, Ásia e África. Esses caminhos recuperam, como dizem seus organizadores, a ligação umbilical dos estudos culturais com os estudos pós-coloniais, justamente o ponto no qual se distanciam do universo acadêmico anglo-saxônico. Não por acaso, e curiosamente, a mesma frase de Salman Rushdie aparece citada por dois autores: The empire writes back to the centre. Parece mesmo ser indício da predominância dos estudos culturais na operacionalização de análises tão diversificadas, nas quais os conceitos de discurso (como dispositivo que engloba o dito e o não dito), em Michel Foucault, e de tradução, em Stuart Hall (que descreve identidades em diáspora, as quais intersectam as fronteiras nacionais), ou ainda como Homi Bhabha (que toma o processo de descolonização como tradução), atravessam fartamente as análises aqui presentes, apresentando-se inclusive em alguns títulos de capítulos. Isso não significa, de modo algum, uma abordagem teórica homogênea ao longo dos 18 capítulos do livro. Ao contrário, revela uma orientação teórica compartilhada pela maioria dos autores, que conecta abordagens e evita a fragmentação da obra em uma enxurrada de problemas, objetos e contextos bastante diferentes que caracterizam os estudos do patrimônio. Assim, o patrimônio relativamente circunscrito, tomado como discurso e tradução, é apresentado estrategicamente como um conceito-ação, ancorado fortemente na história para não resvalar em perspectivas estanques ou essencialistas.

Por sua vez, língua e território são conceitos que fazem o chão dessa obra de empreitada. Esses conceitos são tradicionais nos estudos nacionais e foram, a um só tempo, aqui reconcebidos e reconectados como pertencimento e poder. A língua tirana e colonial pode ser, por outra via, apenas rastro, traço, resto; ou ainda permanência, lugar de resistência, mobilidade. O território, de aparência tão concreta, pode tornar-se fluido, desmanchar-se em múltiplos fragmentos. Essas tensões constituintes dos conceitos de língua e território configuram o próprio campo do patrimônio e são o fio condutor nos processos de construção de identidades e de patrimonialização aqui analisados. À medida que se avança na leitura dos capítulos, o patrimônio se revela um conceito bastante largo, como aquilo que agrega comunidades, mas também é fruto de política e de poder: por isso mesmo usado no plural, patrimônios.

A estrutura do livro, com duas partes interseccionadas por uma entrevista, sugere que sua leitura tenha início pelos conceitos contextualizados para, em seguida, avançar sobre dispositivos variados, em uma abordagem histórica e objetivada. Na primeira parte, são trabalhados conceitos tradicionalmente presentes no campo do patrimônio, como memória e identidade, somados em pares ou tríades, a outros inescapáveis, como poder e herança, e seguem configurando o universo de questões para (re)desenhar esse campo no âmbito dos debates pós-coloniais. Questões como transnacionalização da memória – mobilidades, migrações, diásporas e pós-memórias (que seriam o modo com que as segundas gerações lidam com as experiências traumáticas que ocorreram antes do seu nascimento, as quais, no entanto, lhes foram transmitidas de modo tão profundo a ponto de se constituírem em memórias suas) – introduzem o debate sobre uma “pós-memória pública”, sugerida por Antonio Sousa Ribeiro. Seis capítulos circunscrevem um expressivo conjunto de conceitos desfiados, desafiados e enfrentados por seus autores, em contextos para ler e pensar a partir de uma perspectiva pós-colonial. Compreende-se a necessidade de uma parte teórica, não por uma instabilidade conceitual advinda, pura e simplesmente, da jovem/relativamente recente configuração do campo, mas sim pelo desafio que é intrínseco a seu próprio projeto: patrimônios de influência portuguesa. A escolha pelo conceito de influência – entre outras tantas possibilidades, como origem ou matriz – apresenta-se para expressar a orientação teórica e política que intitula a obra (e o doutoramento). O conceito de influência é desenvolvido com desenvoltura por Renata Araújo como o melhor caminho a tomar, até mesmo por sua ambiguidade e fluidez, pois, embora também traga riscos, ficamos convencidos de que o maior deles talvez seja, em suas palavras, o “da sublimação ou branqueamento dos processos, que há que acautelar”. É justamente por causa desse risco que uma pergunta de imediato se apresenta: afinal, quem tem legitimidade e meios para falar disso?

Tentativas de respostas a essa pergunta aparecem na parte 2 – “Discursos e percursos” -, composta por 12 capítulos. Seus autores têm lugares de fala variados, desenham objetos de investigação que são também fontes e sujeitos de narrativas. Tais autores buscam, com mais ou menos familiaridade, aproximar-se de problemas postos em diferentes circunstâncias no campo de ação das políticas, ou de investigação do patrimônio. É nessa parte que as distintas narrativas disciplinares se apresentam com maior clareza, pelas abordagens, temas ou fontes trazidas para a investigação. Ali também estão à mostra processos de pesquisa vivenciados a partir das próprias experiências pessoais de construção de identidade em um mundo adverso, onde, a partir da percepção do pequeno gesto de “olhar para baixo”, descortina-se a possibilidade libertadora do ser e do saber, conjugados, tal como trabalhado por Graça dos Santos.

Cinema, desenho, planta ou cartografia, arquitetura, fotografia e espaço urbano são patrimônios expressos em diferentes linguagens aqui capturadas, ora como fontes, ora como objetos de investigação. Urge a aproximação com os debates da história pública, a fim de abrir para a compreensão do conceito em construção de fotografia pública, lançado por Ana Maria Mauad, ou do já referido pós-memória pública, ambos aqui tangenciados. Ainda que essa obra não tenha se proposto enfrentar tal debate, o leitor pode sentir-se provocado a estabelecer algumas conexões, tendo em vista que a temática dos usos públicos da história, por meio dessas diferentes linguagens, tem levado historiadores e cientistas sociais em geral a se interrogarem sobre suas próprias práticas e os efeitos políticos delas. Assim provocada, senti a ausência, entre os autores dessa obra, de agentes do campo do patrimônio, para promover diálogos entre mundos ainda apartados e intelectuais com lugares de fala distintos. Esses profissionais têm muito a dizer e premem por esse debate.

Na interseção das duas partes, encontra-se uma entrevista com o reconhecido pensador português Eduardo Lourenço, que oferece os indícios das expectativas que o livro pode gerar ao conduzir um claro entendimento, em associação: a creoulização da língua portuguesa foi obra do acaso e da ganância; e “influência”, categoria aparentemente problemática que nomeia o livro, difere de cópia – assunto caro ao campo do patrimônio, pois envolve a desconstrução do mito da autenticidade – e se apresenta de forma promissora para a reflexão sobre patrimônios, no âmbito dos estudos pós-coloniais. Por isso, talvez, essa entrevista seja um bom ponto de partida para a leitura da obra.

Trata-se de uma obra densa, e seus organizadores e autores não parecem ter se preocupado em torná-la de digestão fácil ou rápida; mostram-se autores de um conhecimento produzido na base do desconforto e da inadequação, dos incômodos acerca da “situação colonial”. Nessa condição, estabelecem conexões entre campos de conhecimento e disciplinas diversas, trazendo suas contribuições. Destaco aqui a forte presença dos estudos literários, que são apresentados no capítulo de Margarida Calafate Ribeiro, em excelente panorama de suas conexões com o debate pós-colonial. A autora sublinha que a interculturalidade (interpretação cultural resultante do processo colonial) não pode ser compreendida sem ter em conta as relações de poder inerentes à “situação colonial”, assim pensada por Balandier, em 1951, e à “situação pós-colonial”, como tratado por Elikia M’Bokolo. O mesmo raciocínio vale para compreender os processos de descolonização, não como rejeição ou aceitação do patrimônio atribuído pelo ex-colonizador, mas como um processo de tradução de intensidades e modos diversos.

A intenção de ampliação de universos de conhecimento e ruptura de fronteiras disciplinares rígidas pode ter sido motivo para um afastamento de alguns autores dos debates relativos especificamente às políticas de salvaguarda e proteção de bens culturais que configuram parte expressiva das reflexões no campo do patrimônio na atualidade. Parece tratar-se de um esforço legítimo de integrar essa temática ao escopo de problemas teóricos e historiográficos mais amplos. Contudo, sempre se corre o risco de perder o esforço de algumas décadas de circunscrição de um aparato metodológico no campo das ciências sociais, construído para lidar com os novos objetos teóricos advindos desse foro de ação política – o que poderia vir a diluir as especificidades do campo em temáticas históricas das quais faz parte, mas não se confunde com elas. Os autores são grandes especialistas em suas próprias áreas temáticas, neófitos que buscaram conectar-se com reflexões próprias do campo do patrimônio. Por isso mesmo, alguns capítulos brilhantes ganham maior inteligibilidade se lidos em continuidade, como as lições de história sobre colonialismos e pós-colonialismos, de Miguel Bandeira Jerónimo e Francisco Bethencourt; ou as reflexões sobre o ofício do historiador, posto em cena por meio do debate historiográfico sobre territórios em rede, que reorienta a compreensão sobre eurocentrismo e protagonismo de agentes locais, trabalhado por Maria Fernanda Bicalho, e a reflexão de Luís Filipe Oliveira sobre o lugar dos arquivos como espaço de poder sobre o passado e a memória. Esses e outros diálogos entre autores demonstram a organicidade da obra, ficando a cargo do leitor estabelecer as inúmeras correlações entre eles.

Por fim, um mapeamento institucional e disciplinar dos autores evidencia seu locus de fala/ação: acadêmico, europeu e português. Trata-se de características relevantes a serem consideradas para que se compreenda a obra: são 18 capítulos de especialistas com formações nas áreas de letras, história, arquitetura, história da arte, antropologia, comunicação e teatro. A diversidade institucional dos autores aponta para um predomínio português e europeu, seguido de instituições brasileiras e de uma instituição moçambicana. Um olhar mais detido aponta evidências sobre seu caráter interdisciplinar, com predomínio de uma formação teórica ligada aos estudos literários associados à perspectiva histórica (bem aos moldes dos estudos culturais). Essa especificidade confere o tom geral da obra e a distingue da produção especializada na temática do patrimônio no Brasil, em que predominam estudos nos campos da antropologia e da arquitetura, presentes em minoria nesse livro.

É possível afirmar que os estudos brasileiros encontram-se bastante amadurecidos no que concerne às reflexões sobre políticas institucionais de memória e patrimônio, sustentadas por profissionais com larga experiência, que atuam como agentes ou pesquisadores do campo. Por isso mesmo, para ser compreendida, essa obra nos obriga a deslocamentos, mudanças de ênfases e perspectivas, uma vez que aproxima a temática do patrimônio do lugar de formulação de alternativas emancipadoras à situação pós-colonial, pensada em seu sentido mais amplo, como uma fase a ser superada, e não um modo imutável de estar no mundo. Daí a importância de sua publicação no Brasil.

Márcia Chuva – Departamento de História, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: marciachuva@gmail.com.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Early Greek Philosophy – LAKS; MOST (RA)

LAKS, A.; MOST, G. Early Greek Philosophy (9 vols.). Cambridge MA, Loeb Classical Library. Les débuts de la Philosophie, des premiers penseurs grecs à Socrate. Paris: Fayard, 2016. Resenha de: ROSSETTI, Livio. Revista Archai, Brasília, n.21, p. 341-350, set., 2017.

A ampla coleção de textos e informações sobre os ‘filósofos’ pré-socráticos conhecida pelo nome Diels-Kranz foi publicada em 1903 e atualizada até 1952. Alcançou sucesso imediato e teve o raro privilégio de sobreviver sem dificuldades às muitas tentativas de atualizações selecionadas publicadas até recentemente (as mais recentes: D.W. Graham, The Texts of Early Greek Philosophy, Cambridge, 2010; J. Pórtulas-S. Grau, Saviesa grega arcaica, Barcelona, 2011; J. Mansfeld-O. Primavesi, Die Vorsokratiker, Griechisch-Deutsch, Stuttgart, 2012). De fato, mesmo apresentando inconvenientes inevitáveis (passaram-se mais de cento e dez anos, com grande quantidade de publicações e um número considerável de fatos novos que ocorreram durante este período), aquela obra foi reconhecida por unanimidade como exemplar pelo cuidado e credibilidade ‘nos limites do humano’.

Entretanto, em 2016, a situação mudou com a saída dos nove volumes de formato pequeno do Early Greek Philosophy (fazem parte da Loeb Classical Library, a celebrada coleção de textos gregos e latinos traduzidos e anotados publicados em Harvard) e, paralelamente, do Les débuts de la philosophie em volume único, publicado em Paris pela Arthème Fayard. Nos dois casos, os responsáveis pela seleção e organização das informações disponíveis foram André Laks que foi professor da Sorbonne (atualmente professor na Universidad Panamericana de Ciudad de México), e Glenn W. Most, professor na Normale de Pisa e na Universidade de Chicago, com a colaboração de Gérard Journée, Leopoldo Iribarren, David Levystone e outros. A edição inglesa em língua se estende por 4200 páginas, aquela em língua francesa por pouco mais de 1650 páginas, embora em um formato bem maior. Com esta obra, a situação mudou porque agora existem as condições para citar LM ao invés de DK, contudo que por esta razão é inevitável que, durante alguns anos, continuamos a usar tanto a numeração DK quanto a LM.

É verdade que, na ‘Advertência’, Laks e Most começam por assegurar que “A presente coleção, embora procurando ser útil aos especialistas, tem o propósito de apresentar a um público amplo as informações  disponíveis a respeito dos inícios da filosofia grega”, mas isto são apenas respeito e modéstia em face da imponência do antecedente constituído pelo DK. Na opinião de quem escreve, uma tal declaração não  poderia enganar ninguém!

A obra nos apresenta, se contei bem, algo como 3.600 unidades textuais, cada qual proposta em sua língua original (oferecendo, quando necessário, também os textos em latim, hebraico, siríaco armênio ou árabe), com anotações bem selecionadas sobre as dúvidas da constituição do texto, e acompanhada de tradução que, seguindo um uso atualmente já bem estabelecido, não se limita apenas aos fragmentos. São unidades textuais sobre Tales, Anaximandro,  Anaxímenes, Pitágoras e os Pitagóricos, Heráclito, Parmênides, Zenão, Empédocles, Demócrito, Protágoras, Górgias etc. Os noventa capítulos da coleção Diels-Kranz aqui se tornaram 43 (30 sem contar os sofistas), enquanto Graham selecionou apenas 20, Pórtulas e Grau 26 (mas somente para o período  que vai até Parmênides), Mansfeld e Primavesi 12  (contagem esquemática que aqui talvez seja permitido não ‘aprimorar’). Há portanto muitos autores considerados menores (Petrônio, Ico, Menestor,  Cleidemo, Ideo, etc.) que  não  são reportados  na  coleção LM, e se trata de uma escolha sensata. Em compensação, a série inicia com uma ampla seleção de textos de Homero e Hesíodo, Teógnides, Píndaro e outros poetas da idade arcaica e se conclui com um panorama análogo de textos trágicos e cômicos: duas novidades importantes em relação a DK, e também em relação à maioria das coleções comparáveis. Depois da seleção dedicada à poesia arcaica, seguem os ‘costumeiros’ Tales, Anaximandro etc., enquanto que depois de Heráclito é a vez de uma seção ampla e  articulada sobre Pitágoras e os Pitagóricos que, com suas 190 páginas da edição francesa, é a seção mais ampla da inteira obra (a segunda é a de Empédocles, com 160 páginas). Entre as new entries se encontram também uma seção muito útil sobre doxógrafos  e ‘sucessões’ (um grande trabalho historiográfico  realizado em época helenística e que sobreviveu em condições muito precárias), uma generosa seleção de textos médicos e sobretudo o Papiro de Derveni (este último com um substancioso aporte da italiana Valeria Piano): todas opções mais do que acertadas.

Para apresentar-nos os pré-socráticos, o Laks-Most parte de Diels-Kranz (nem era pensável agir de forma diferente), mas fá-lo repensando a matéria por inteiro e com grande liberdade intelectual. Quando possível, as fontes são dispostas, para cada autor, em volta de três seções: P sobre a personagem e os fatos biográficos, D sobre os ensinamentos,  R sobre as repercussões e discussões sucessivas.  As seções reservadas a Heráclito, Empédocles e Demócrito têm notável amplidão, todavia surpreende também a amplidão do capítulo dedicado a Melisso.  Uma qualidade vistosa, e que todos apreciarão, é  também a decisão de organizar o todo tendo como base uma bem estruturada série de subtítulos que  constituem também o plano e a posição de cada capítulo, permitindo a configuração de numerosos grupos homogêneos de informações e – o que mais importa – facilitando de muito a tarefa de quem vai buscar algo específico, mesmo porque cada capítulo se abre com o prospecto dos pequenos títulos utilizados para caracterizar cada um dos grupos ou os subgrupos de documentos. A fórmula funciona bem e tem a qualidade considerável de colocar um pouco de ordem entre as informações, portanto, não só de facilitar a primeira fase de orientação, mas  especialmente de oferecer uma visibilidade inédita à componente enciclopédica da obra de muitos entre os pré-socráticos (por exemplo, Parmênides).

A escolha de privilegiar as informações produz  também efeitos colaterais: antes de tudo, justifica  a apresentação dos fragmentos e testemunhos com base no argumento tratado, não sem ter o cuidado de imprimir os fragmentos em negrito; mas serve  também para deixar cair muitos textos que podem ser considerados acessórios como, por exemplo,  aqueles que engastam um fragmento (eventualmente reapresentando-os, se valer a pena, na seção R). Esta escolha é exatamente uma escolha, a expressão de um critério e não é isenta de contrapartidas. Por  exemplo, teria sido desejável uma oferta mais generosa (na seção R) dos contextos que LM omitem quando se trata de apresentar um fragmento.

Outra inovação relevante é de natureza inteiramente diferente e se refere à presença de uma  seção sobre Sócrates. Há mais de um século todos nós aprendemos a falar dos filósofos pré-socráticos e, com isto, a separar Sócrates de todos eles,  mesmo sabendo que ele foi ativo quando o foram as personagens normalmente etiquetadas como  sofistas, não depois. Bem, Laks e Most ousaram  fazer aquilo que, se eu não estiver errado, ninguém fizera antes: inserir nesta coleção também um capítulo dedicado a Sócrates. A escolha tem algo de curioso, porque torna Sócrates um… pré-socrático (na realidade um pré-platônico como, de fato, ele foi) mas de certa forma, uma escolha explosiva,  porque induz a uma representação de Sócrates com as categorias do século V, como é justo que seja, e não com as categorias de Platão e de outros seus contemporâneos. É como se fôssemos libertados da obrigação de aceitar como bom aquele Sócrates do qual lemos em muitas centenas de páginas escritas à distância de algumas décadas de sua morte.  É minha ideia que nesse caminho Laks e Most  tenham percorrido somente uma parte da estrada, a primeira parte. Com efeito, a seleção das fontes retoma até demais dos textos platônicos enquanto silencia inteiramente as evidências relativas a Polícrates o acusador, não valoriza o testemunho de Ésquines de Esfeto e Fédon e usa mais do que com parcimônia os textos de Xenofonte.

Todavia, como é sabido, começar é a parte mais difícil e, feito o primeiro passo, outros certamente virão mais facilmente. Acredito, enfim, que esta  inovação em particular esteja apta a produzir efeitos de importância especial não por causa daquilo que Laks-Most selecionaram ou deixaram de lado, mas pela nitidez que sua escolha garante à exigência  de enquadrar Sócrates entre os não-filósofos do V século e, por conseguinte, de notar antes de tudo o quão representativo de outra época (aquela de seus autores) seja o conjunto dos diálogos socráticos.

Por fim, assinalo a presença de dois apêndices, um dedicado a informar a respeito dos mais de duzentas personagens que entram em cena como autores (a partir dos quais se cita) ou como personagens (dos quais se escreveu). Pena que a escolha das personagens sobre as quais se informa seja seletiva demais e as páginas nas quais eles estão presentes não sejam indicadas. O outro é um bom glossário, sempre útil, ao lado de outros apêndices.

Em todo caso, o resultado de momento maior não é nenhum daqueles listados até agora: é ter alcançado uma meta tão ambiciosa, e ter conseguido manter sob controle uma massa tão imponente de documentos.

Defeitos? Sou tentado a dizer que, se os há, estão bem escondidos e que será preciso muito para encontrá-los. É claro que há defeitos, é simplesmente humano que os haja, e isto depende principalmente da impossibilidade de satisfazer os desejos dos mais diferentes leitores. A falta mais grave concerne, sem dúvida, o índice das fontes, mas é lógico esperar que se remediará por ocasião de uma segunda edição.  De fato, quando se procura estabelecer se uma certa unidade textual foi inserida ou omitida, a tarefa se torna necessariamente difícil, embora se possa ainda recorrer ao prospecto das concordâncias entre DK e LM que é realmente bem feito.

Ainda em referência a omissões (pois nada direi a respeito de escolhas na constituição dos textos e na tradução), seria possível alcançar uma lista de tamanho considerável, dada a propensão dos editores de conter os capítulos. A seguir dou alguns  exemplos mais familiares ao autor desta resenha.

No caso do capítulo 5 sobre Tales, se omite a sua menção por parte do poeta de Lesbos, Alceu, apesar de que DK nos dê esta informação em 11A11a; igualmente se omite a respeito do título de sophos com o qual a cidade de Atenas teria honrado Tales ‘antes’ de formar o colégio dos sete sábios. Note-se que se trata de detalhes que falam da celebridade  da personagem alcançada em vida e, em relação a Atenas, de sua política cultural por volta do ano 580 a.C. Por sua vez, o âmbito das ‘descobertas astronômicas’ é detalhado no que diz respeito às medidas espaciais mas nos dá apenas uma informação a  respeito das partes do ano (5R25), enquanto um  detalhe não menos importante sobre o intervalo  entre o equinócio de outono e o poente das Plêiades se encontra e 5R21, portanto, um pouco fora  de lugar. Teria sido possível (e desejável) destacar  a notícia referente ao comprimento desigual dos  intervalos (entre solstícios e equinócios, que implica ter aprendido a estabelecer com exatidão a data de ambos) que se encontra dispersa em 5R16, unidade textual caracterizada como notícia que concerne o sol. Ainda, pelo que diz respeito à sua “atitude diante da vida”(um dos subtítulos que se encontra na pag. 40 da edição francesa), deveria ter se informado da opinião de Tales sobre inumação, notícia preservada em 11A13 DK (=Th 318 Wöhrle).

No capítulo 19 sobre Parmênides se destaca o  silêncio sobre o fr. 20 Cerri do próprio Parmênides (a louvação de Amínia, da qual fala Boécio), embora não seja raro que um autor do período assim chamado arcaico resolva honrar alguém (es. Pausânia mencionado por Empédocles). Que depois se passe o mesmo, entre outros, com a coleção de Graham, de Pórtulas-Grau e de Mansfeld-Primavesi não é um bom motivo para ignorar a notícia. Ademais, tendo se estabelecido o uso de anotar os neologismos isolados, ao menos as palavras alogon, pseudophanēs e hudatorizon gostaríamos de tê-las encontradas impressas em negrito, independentemente do parecer dos editores sobre a paternidade efetiva deste ou  daquele neologismo.

O capítulo sobre Zenão parece até mesmo curto demais quando comparado com a coleção publicada por H.P.D. Lee em 1936 (in Zeno of Elea, p. 12-63), ainda mais porque o próprio Lee fora até seletivo  demais, tanto que se procurariam inutilmente, por exemplo, as passagens relevantes (que não são nem genéricas e nem pleonásticas) do De lineis insecabilibus pseudo-aristotélico, passagens que são omitidas também por LM. Uma outra omissão se refere à página, notadamente assinalada por John Dillon em 1974, na qual Proclo reporta inequivocamente que Zenão teria falado dos antípodas, atestando  portanto que  o próprio  Zenão pôde mencionar o  termo e tratá-lo como uma noção já estabelecida e portanto ‘disponível’.

No capítulo 31 sobre Protágoras (e, igualmente, no capítulo correspondente da coleção Graham e no DK) gostaríamos de ter encontrado passagens sobre a  dikē huper misthou, vale dizer, a disputa  entre Protágoras e Evatlo, que é decididamente  paradigmática como exemplo de antilogia perfeitamente equilibrada e de uma situação de todo indecidível, e surpreende que tenha sido eliminada até mesmo a breve síntese que se encontra em Diógenes Laércio.

Pergunto-me também por que os dois decidiram falar de “sistemas filosóficos sucessivos”em referência aos ‘pluralistas’, a Arquelao, a Diógenes de  Apolônia, aos textos médicos e ao Papiro de Derveni, já que não se trata de sistemas e nem de textos inequivocamente filosóficos, enquanto que sucessivos ao século V a.C. são somente alguns textos médicos (não todos) e o papiro.

É  evidente que estas indicações não podem de  forma alguma ofuscar os méritos de uma obra que não pode não marcar presença, tornando-se imediatamente indispensável para todos aqueles que se confrontam com os pré-socráticos (ou melhor, com os pré-platônicos, Sócrates incluso). Se acrescentarmos as 1.060 páginas muito bem informadas do Die Philosophie der Antike, I, Frühgriechische Philosophie, obra dirigida por Flashar, Bremer e Rechenauer  (Basel, 2013), podemos bem dizer que o estudo  dos pré-socráticos está partindo novamente sobre  novas bases e com instrumentos de trabalho muito sólidos, e quem se ocupa disso dispõe de recursos atualizados e muito, muito profissionais.

Nota

1 O autor gostaria de agradecer ao Doutor Nicola Galgano (USP) pela tradução da resenha que agora se publica.

Livio Rossetti1 – Universidade de Perugia (Itália). E-mail: livio.rossetti@gmail.com

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Seneca: selected dialogues and consolations – ANDERSON (RA)

ANDERSON, Peter J. Seneca: selected dialogues and consolations. Indianapolis: Cambridge, Hackett Publishing Company, Inc, 2015. Resenha de: DINUCCI, Aldo. Revista Archai, Brasília, n.21, p. 337-340, set., 2017.

This volume presents a selection of Seneca’s dialogues and consolations. It is composed of introduction, the translations of selected Seneca’s dialogues and consolations, biographical information of key individuals, glossary of Latin words, and index of  historical persons. The five parts of the book are  thus briefly described and evaluated below.

The Introduction is divided into eleven sub- sections. In the first subsection, Anderson presents a well-written account of Seneca’s life (p. xi- xiii).  Concerning the philosopher’s exile after his implication in an adulterous affair with Julia Livilla,  Anderson points out that almost all ancient sources consider Seneca not guilty. A weak point in this  argument is that Anderson does not mention the  referred primary historical sources, which would  be useful to the reader.

The next sub-section deals with the literary qualities of Seneca’s philosophical writings. Anderson  correctly points out that literary form and philosophy are, in Seneca, two sides of the same coin, noting  that, through these writings, Seneca is simultaneously aiming at showing literary excellence and at  philosophically persuading the reader. In the third subsection (“A note on the translations”), Anderson discusses the difficulties to render Seneca’s dialogues in English. In order to achieve this, the translator – based on Lindsay’s Oxford classical text – tries to replicate Seneca’s prose, consistently rendering the following six key words:  animus  as  “spirit”, mens as “mind”, virtus as “virtue”, otium  as  “retirement”, bonum as “good”and  malum  as “bad”.

The next sub-section examines the interplay between Seneca and Stoicism. In the historical account of the Stoic school, however, Anderson does not  mention Diogenes of Babylon. Some information  about him should be provided, as he was the first  Stoic philosopher in Rome, being sent to the Eternal City (together with the Academic Carneades and the Peripatetic Critolaus) in 155 BC to appeal a fine,  and to deliver public lectures on Greek philosophy, which much impressed the Romans (cf. Aulus Gellius, Attic Nights, vii. 14; Cicero, Academica, ii. 45).

After the historical account, Anderson makes  two important assertions: in the first place, in  Seneca’s time, Stoicism was a “holistic practice of a set of principles and belief “(p. xviii), which is in  marked contrast to the contemporary conception of philosophy; secondly, there are centuries of other  philosophers’ reflections behind Seneca’s arguments.

The next subsections present and clarify the  following Stoic reflections and concepts that underlie Seneca’s philosophical works: the concept of a providential and living god (p. xx), the celebrated  expression “to live according nature”, the idea that each person is responsible for her or his actions  through the rational capacity and the use of impressions (phantasiai), the concept of oikeoisis (p. xxii), and the indifferents (adiaphorap. xxiii).

In this latter sub-section, Anderson correctly notes that, for the Stoics, things as wealth (which was the same of Seneca’s case) and poverty are indifferent  and, therefore, cannot guarantee happiness (p. xxiv), which is an important thing to note, as sometimes Seneca’s wealthy is regarded as inconsistent with  his claims of being a Stoic. In fact, for the Stoics,  wealthy can be used for the good or for the bad, as everything else which is indifferent.

The introduction ends with three informative  sub-sections: the dating and the addresses of the  dialogues and consolations, and a further reading  sub-section.

Anderson translates the following Seneca’s works: “On providence”, “On the resolute nature of the wise man”, “Consolation to Marcia”, “On the happy life”, “On retirement”, “On serenity of the spirit”, “On  the shortness of life”, “Consolation to Polybius”,  “Consolation to his mother Helvia”. The subtitles  of these works are the original and correspondent ones in Latin. My only suggestion with regard to  the translation of the titles is the rendering of  De constantia sapientis  as “On the resolute nature of  the wise man”, which would be better translated as “On the firmness of the wise man”.

Anderson’s translations of Seneca’s selected works are sound. Elucidative footnotes, mainly concerning individuals and historical facts mentioned by Seneca, are supplied. The book ends with biographical information for key individuals, a glossary of Latin words and an index of historical persons.

In summary, the book provides good translations and plenty information concerning Seneca’s  dialogues and consolations. Thus, it is an excellent tool for students and teachers of Latin literature and Stoic philosophy.

Aldo Dinucci – Universidade Federal de Sergipe (Brasil). E-mail: aldodinucci@yahoo.com.br

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Cultura Histórica & Patrimônio. Alfenas, v.4, n.1, 2017.

Editorial

Artigos

Expediente

Publicado: 31-08-2017

Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 16 n. 2, 2017.

Editorial

Notícias de Pesquisa

Artigos

Publicado: 2017-08-28

Urbana. Campinas, v.9 n. 1, 2017.

jan./abr. [15] – Dossiê: Villas Miseria, Favelas y Asentamientos: nuevas rutas en Historia Urbana

EDITORIAL

PUBLICADO: 2017-09-27

Ciencia Nueva – Revista en historia y política. Pereira, v.1, n.2, 2017.

Julio – Diciembre

Presentación

Editorial

Estudios Históricos

Ciencias Políticas

Dossier

Reseñas

Anales y Memorias

Publicado: 2017-08-22

História e Cultura. Franca, v.6, n.2, 2017.

Dossiê Assistência e Pobreza: sentidos e lugares dos pobres no Brasil

EDITORIAL

APRESENTAÇÃO

ARTIGOS – DOSSIÊ

ARTIGOS – LIVRES

RESENHAS

Publicado: 2017-09-10

Manduarisawa. Manaus, v.1, n.1, 2017.

História Social do Trabalho na Amazônia

APRESENTAÇÃO

DOSSIÊ TEMÁTICO

ARTIGO LIVRE

RESENHAS

PESQUISA EM EXPERIÊNCIA EM DOCÊNCIA

Publicado: 2017-09-08

Língu@ Nostr@. Vitória da Conquista, v.5, n.1, 2017.

Apresentação

Artigos – Dossiê

Entrevista

Publicado: 2017-08-06

Navegando com o sucesso: lições de liderança, trabalho em equipe e capacidade de superar desafios – SCHÜRMANN (MB-P)

SCHÜRMANN, Vilfredo. Navegando com o sucesso: lições de liderança, trabalho em equipe e capacidade de superar desafios. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. 153p. Resenha de: SORENZUTTI, Patrícia Simon. A arte de velejar e o exercício da liderança. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

A temática da liderança perpassa a literatura desde o início do século XX e sua complexidade e aplicabilidade apresentam desafios após mais de um século de pesquisas.

É possível identificarmos que o conceito de liderança é diferenciado conforme cada autor que o desenvolve e aqui repousa a particularidade do livro “Navegando com o sucesso”.

Nele, o autor Vilfredo Schürmann faz um paralelo entre os desafios de velejar e o exercício da liderança demonstrando, na prática cotidiana a bordo do veleiro Aysso, como conduziu sua tripulação (equipe) numa desafiadora jornada marítima.

Ao longo das 153 páginas que compõem o livro, Schürmann narra de forma entusiasmada as duas circunavegações que realizou com sua família e demais tripulantes: a primeira que durou de 1984 até 1994 abrangendo 44 países; e a segunda, denominada Magalhães Global Adventure, que alcançou 19 países nos anos de 1997 até 2000, reeditando a rota do português Fernão de Magalhães. A tônica da narrativa perpassa uma analogia do veleiro, como uma empresa repleta de desafios e o mar bravio, como o mundo empresarial moderno, dinâmico e mutante. Ao descrever sua jornada marítima, Schürmann expõe como conduziu sua tripulação diante dos desafios impostos pela vida no mar e exerceu sua liderança, com maestria, equilibrando dois fatores apontados pelo autor como fundamentais: a capacidade de planejamento e a gestão das pessoas a bordo.

Ao seguirmos a narrativa do autor, empresário e economista com vasta experiência administrativa e gerencial, é possível identificarmos como ele transforma um sonho em projeto (o desejo de velejar pelos mares ao redor do planeta), seleciona uma boa equipe de trabalho (sua tripulação), executa cada fase do planejamento com organização, disciplina, treinamento e, principalmente, envolve toda a tripulação do Aysso em cada etapa (tanto os componentes da equipe de apoio logístico em terra quanto os membros a bordo do veleiro). Tais aspectos nos indicam como o planejamento, a supervisão e o monitoramento do trabalho, vinculados ao comprometimento da equipe, são fundamentais para o sucesso de qualquer trabalho.

O autor apresenta em seus relatos os desafios enfrentados em diversas áreas: econômica, logística, estrutural, mudanças da equipe e riscos como de morte, de acidente ou de ataques de piratas em determinados oceanos. Para todos os desafios a resposta engloba a identificação do risco, a tomada de decisão para resolver a situação, o bom treinamento dos tripulantes para lidar com o problema e, principalmente, a responsabilidade de todos a bordo. Dessa forma, Schürmann demonstra com sua experiência que o bom líder não é, necessariamente, o melhor ou o mais competente mas, sim, aquele que sabe muito bem, e estrategicamente, qual o seu papel e o de cada um na engrenagem do processo. Além disso, sua capacidade de comunicação clara e assertiva fica evidente em vários episódios descritos no livro.

Nesse sentido, os exemplos práticos do exercício da liderança apresentados por Vilfredo Schürmann, a bordo do veleiro Aysso, consistem numa abordagem precisa, entusiasmada e detalhada de atitudes concisas e coerentes por parte de um comandante, tendo como foco central o comprometimento da tripulação com todas as decisões tomadas.

Tais exemplos práticos, elencados no decorrer de sua obra, indicam uma proximidade de sua liderança a abordagens, entendidas conceitualmente, como democráticas (como definido pelo teórico Kurt Lewin), flexíveis e democráticas (tal como propõem Blake e Maouton na Teoria do Grid Gerencial) ou o quanto o líder consegue influenciar os liderados, como nos ensina a Teoria do Modelo de Participação do Líder, de Vroom e Yetton. Cabe ressaltar que outras aproximações teóricas são possíveis, pois um dos aspectos centrais da apresentação apaixonada de Schürmann sobre sua arte de transformar o sonho de velejar num projeto de vida autossustentável é o seu comprometimento, como líder, com as pessoas e com os processos.

Patrícia Simon Lorenzutti – CT (T) Marinha do Brasil

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Movimentos Sociais e Identitários / Ofícios de Clio / 2017

Braços erguidos, punhos cerrados. Essa imagem marca importantes momentos históricos em diferentes tempos e espaços. Os movimentos sociais e identitários são parte fundamental na engrenagem que move a História, mesmo quando repreendidos e / ou criminalizados. A Revista Ofícios de Clio oportuniza nesse número um espaço de divulgação de pesquisas e de debates entre historiadores que abordam esses movimentos. Objeto de estudo tradicional, normalmente filiado ao campo da História Social, compreendendo as perspectivas do trabalho, da política sindical e da etnicidade; recentemente, tem dialogado com outros campos e categorias de análise, por exemplo, cultura, gênero, queer e raça. Dessa forma, são contemplados por esse campo de estudo os movimentos de trabalhadores e de estudantes, os que lutam pelo acesso à terra e à moradia e os coletivos que defendem populações tradicionais. Também os movimentos LGBT+, feministas, raciais, entre outros. A agência desses sujeitos coletivos ou individuais são compreendidos a partir de suas formas de (re) organização, de expressão, de luta e o engajamento político e / ou intelectual de militantes e ativistas. A produção de conhecimento histórico sobre os movimentos sociais e identitários está em constante movimento, os pesquisadores tem ampliado os possíveis caminhos teórico-analíticos e metodológicos constantemente.

Esses movimentos são a origem de inovações e de produção de saberes articulados aos processos políticos, sociais e culturais nos quais estão inseridos. A própria produção intelectual formal está em transformação devido o engajamento de grupos sociais e identitários; principalmente a partir do tensionamento dos debates sobre racismo na sociedade brasileira e da implementação das ações afirmativas. Os ativistas passam a reescrever a sua própria História, desde o seu lugar de fala. O diálogo entre a História Social e o Tempo Presente também tem proporcionado discussões sobre a importância da perspectiva dos historiadores para a compreensão de ações coletivas contemporâneas, como as Jornadas de 2013 e o Golpe de 2016.

Os doutorandos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, José dos Santos Costa Júnior e Roger Camacho Barrero Júnior, ao escreverem o artigo “Jovens como esperança na transformação: a campanha Juventude Participa! em Campina Grande (PB 2009-2011)”, aproximam-se desse debate, ao buscar na perspectiva de análise do Tempo Presente elementos para compreender os jovens como “sujeitos historicamente situados que participam de processos de transformação social e / ou manutenção e atualização de determinados modelos de comportamento e formas de ação social”. Suas fontes foram imagens, relatórios institucionais e boletins informativos, pelas quais analisaram o discurso sobre a participação política de jovens e os significados atribuídos aos conceitos de juventude, participação e cidadania. Ressalta-se que foi considerada a pluralidade do grupo e as discussões apontadas pela Política Nacional de Juventude (PNJ).

A Paraíba também é o local onde está situado o objeto de estudos de Iany Elizabeth da Costa, doutoranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. No artigo “Movimento Quilombola na Paraíba: algumas considerações sobre a organização social pelo direito à terra”, privilegia o estudo sobre a Coordenação Estadual de Comunidades Negras e Quilombolas da Paraíba (CECNEQ), mas também estabelece relações com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). No transcorrer do artigo pode-se acompanhar um levantamento teórico sobre a relação do Movimento Negro e do Movimento Quilombola na luta por direitos sociais desde a Constituição de 1988. Iany buscou “compreender os avanços e limites no estudo dessas organizações sociais, a fim, de perceber como as antigas comunidades negras rurais adquirem espaço na luta dos movimentos sociais brasileiros” e como articulam-se para “ocupar espaços nas pautas reivindicatórias por direitos sociais” na atualidade.

A luta por direitos sociais é o principal elemento articulador dos movimentos sociais, entre esses está o direito à terra. O Movimento Sem Terra surgiu nos anos 1980, e hoje é um dos maiores movimentos sociais do Brasil. Da mesma forma que ocorre no movimento negro, no quilombola, no direito à moradia, as mulheres ocupam papel central na luta. Leonardo Dantas D’Icarahy, mestrando da Universidade Federal da Bahia, debruçou-se sobre essa questão ao escrever “Mulheres sem terra no surgimento do MST na Bahia (1987-89)”. Com o aporte da história oral, ouviu a história de vida de cinco mulheres do MST que participaram do período de surgimento e estabelecimento desse movimento social na Bahia. Analisou o papel delas na decisão familiar de ocupar terras e as estratégias utilizadas para sobreviver no acampamento. O autor, sem deixar de considerar as “hierarquias de poder das relações de gênero dentro deste movimento social”, percebeu a participação política de suas entrevistadas em diferentes aspectos do cotidiano, ressaltando “o protagonismo dessas mulheres nesta fase inicial do MST no estado baiano”.

Os movimentos citados até o momento tiveram seu auge no processo de redemocratização do Brasil, mas suas “bandeiras” têm origem em períodos anteriores. Durante a Ditadura Civil-Militar no Brasil, diferentes organizações coletivas foram perseguidas, dificultando a sua manutenção e ação. Assim como no Brasil, Portugal também viveu uma Ditadura, recorte cronológico contemplado pelo artigo “Contra o Estado Novo: manifestações e organizações em Portugal no período marcelista (1968-1974)” de Pamela Peres Cabreira, doutoranda da Universidade Nova de Lisboa. O estudo apresenta algumas organizações civis que agiram contra o Estado Novo português (1926-1974). Pamela parte do pressuposto de que o país não estava “adormecido” frente a situação nacional no período, marcado por retrocessos socioeconômicos e políticos. Através de fontes documentais, como o periódico Avante! Clandestino e discussão bibliográfica, analisou as ações do Partido Comunista Português, os levantes nos quartéis, os movimentos dos estudantes e dos trabalhadores “enquanto frentes mobilizadoras e legitimadoras de uma luta contra o sistema retrógrado do Estado Novo em Portugal”, criando “um espaço revolucionário” com o fim do período ditatorial.

Por fim, a pós-graduanda do Instituto Federal Fluminense, Mariana Mendes Christo, amplia o debate ao compartilhar um texto que analisou o século XVIII. Nessa análise, parte dos conceitos aliados a concepção de Antigo Regime nos Trópicos, para compreender as relações de poder no interior das capitanias do Rio de Janeiro e das Minas Gerais. Como pode-se apreender pelo título “Manoel Henriques e as relações de poder nos Sertões de Macacu (1765 – 1787)”, toma como objetivo central a ação do bando liderado por Manoel Henriques, no interior dos Sertões de Macacu, analisando suas ações e o papel executado por esse sujeito naquele contexto social. A hipótese que pretende comprovar durante o desenvolvimento do artigo, é de que no interior da colônia existiam diversas redes de poder que fugiam ao controle da Coroa.

Compartilho com a Revista Discente Ofícios de Clio a alegria de poder trazer aos nossos leitores artigos que demonstram a vitalidade e a importância das pesquisas que tomam como objeto os movimentos sociais e identitários.

Boa leitura!

Micaele Irene Scheer – Doutoranda UFRGS / CAPES


SCHEER, Micaele Irene. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 2, n. 3, ago./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente – YOUNG (SY)

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, 3ª reimpressão, 2015. Resenha de:  CORDAZZO, Karine; PREUSSLE, Gustavo. Synesis, Petrópolis, v.9, n.2, p.112-124, ago./dez., 2017.

Jock Young, sociólogo e criminologista, aborda na obra “Sociedade excludente: Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente”, primordialmente os aspectos fundantes da transição da sociedade inclusiva para a sociedade excludente.

A sociedade inclusiva remonta ao período dos “anos dourados” na Europa, e na América do Norte do pós-guerra. Tratava-se de um mundo de pleno emprego, incorporação gradual da classe trabalhadora, entrada mais plena das mulheres na vida pública e no mercado de trabalho, bem como à tentativa dos Estados Unidos em criar uma igualdade para os afro-americanos.

Nesta sociedade inclusiva, o trabalho e a família eram os pilares centrais, encaixando-se como num sonho funcionalista. Em parte alguma desenvolveu-se uma sociedade tão inclusiva, cingindo o cidadão do berço ao túmulo, insistindo na cidadania social plena. (YOUNG, 2002, p. 21)

No tocante à criminalização, a sociedade inclusiva não excluía o “outro”, não o catalogava como um inimigo, mas o enxergava como alguém que devesse ser reabilitado, socializado, curado até ficar como “nós” (YONG, 2002, p. 21). Em verdade, na visão modernista, o outro aquele a quem faltava os atributos do observador.

Entretanto, o sonho de uma sociedade inclusiva e tradicional da família e da comunidade começou a desmoronar. Ao longo dos anos 1980 e 1990, no bojo daquela sociedade utópica, figurou um período de extremo declínio, culminando em um processo de exclusão social. Notadamente, trata-se da transição da modernidade para a modernidade recente, ou seja, a transição de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente.

Segundo Young, alguns fatores contribuíram para que esta exclusão fosse implementada, como por exemplo, a economia de mercado, que trouxe um salto qualitativo nos níveis de exclusão. O downsizing da economia acarretou a redução do mercado de trabalho primário, expansão do mercado de trabalho secundário e a criação de uma subclasse de desempregados estruturais. (YOUNG, 2002, p. 24)

O trabalho seguro e qualificado foi reduzido, dando lugar à força de trabalho terceirizada, mediante contratos curtos, sem qualquer estabilidade ou vínculo empregatício. O grande efeito deste processo de exclusão, foi, inevitavelmente, gerar um sentimento de precariedade em todos os trabalhadores.

Essas frustrações, afirma o autor, conscientemente são expressas sob forma de privação relativa. Trata-se da frustração daqueles a quem a igualdade no mercado de trabalho foi recusada face àqueles com mérito e dedicação iguais. Eis aqui o paradoxo do novo individualismo para Young. A insatisfação face à situação social pode dar lugar a uma variedade de respostas políticas, religiosas e culturais e, frequentemente, fechar e restringir as possibilidades criando respostas criminais. (YOUNG, p. 30)

Nesse contexto, o aumento da criminalidade é evidenciado, afinal a criminalidade emerge da inflamável combinação de privação relativa e individualismo. Ocorre que este aumento rápido da taxa de criminalidade refletiu nas transformações dos comportamentos e atitudes públicos no desenvolvimento do aparato de controle do crime e da criminologia, alimentou o medo público do crime e gerou padrões elaborados de comportamento de evitação. E, consequentemente, resultou num aumento da população encarcerada.

Young expõe alguns dados. Nos Estados Unidos, por exemplo, os presos constituem uma população excluída significativa, cerca de 1,6 milhões de pessoas estão presas – uma cidade do tamanho de Filadélfia, se fossem todas reunidas no mesmo lugar –. Além disso, 5,1 milhões de pessoas estão em regime de supervisão correcional (prisão, condicional ou sursis), um em cada 37 adultos da população adulta residente. Young compara dramaticamente a situação prisional norte americana com o gulag1, em que este gulag americano seria agora do mesmo tamanho do gulag russo, e ambos contrastariam com a situação da Europa Ocidental, em que a população carcerária total seria de 200 mil pessoas.

Após estas reflexões iniciais, Young indaga aos seus leitores a respeito da existência de uma possível distopia de exclusão, onde as divisões e desigualdades ocorreriam não apenas entre nações, mas no interior das próprias nações.

A modernidade recente, ou sociedade excludente, pode ser identificada através de um núcleo, de um cordão sanitário e pelas pessoas que estão de fora.

O núcleo corresponde aos que pertencem ao mercado de trabalho primário, aqueles que trabalham em tempo integral, com estruturas de carreiras seguras e sólidas. Aqui é o reino da meritocracia. No entanto, trata-se de um núcleo que encolhe sem parar. A parte que mais cresce do mercado de trabalho é a do mercado secundário, em que a segurança no emprego é muito menor, em que as estruturas de carreira estão ausentes e a vida é experimentada como precária. (YOUNG, 2002, p. 40)

Também é possível visualizar o chamado cordão sanitário, uma fronteira criada entre o grupo nuclear e os que estão fora deste grupo, através de uma série de medidas, pelo planejamento urbano e, principalmente, pelo dinheiro. Já os que estão fora, são grupos que viram bodes expiatórios para os problemas da sociedade mais ampla. Eles são a subclasse, onde todos os problemas da sociedade lhes são imputados.

Neste contexto, é destacado pelo autor a dualidade do Sonho Americano e do Sonho Europeu. Para Young, é evidente a natureza excludente do Sonho Americano, onde a noção de cidadania enfatiza fortemente a ideia de igualdade legal e política, e muito menos a de igualdade social. Em verdade, o foco está sobre os bens sucedidos. Por outro lado, no sonho Europeu há uma menção à igualdade social, aos direitos de inclusão.

Em que pese a suposta utopia de alcançar o Sonho Americano ou o Sonho Europeu, Young demonstra que o cordão sanitário, que busca diferenciar, afastar e excluir os segmentos mais vulneráveis da população, tem conseguido cada vez menos proteger separar o cidadão “honesto” contra o crime e a desordem em ambas visões. Afinal, a noção de que o criminoso é um inimigo externo está fundamentalmente equivocada. Privação relativa e individualismo ocorrem através de toda a estrutura social e em todos os lugares, a existência de crimes de colarinho branco disseminados e de crimes entre membros “respeitáveis” das classes trabalhadoras mal nos permitem separar os criminosos dos não criminosos. (YOUNG, 2002, p. 45-46)

Para o autor, há relação inequívoca entre as mudanças na criminalidade e desordem com as mudanças na base material. A solução estaria na criação e implementação de políticas que partam da margem e vão tão longe quanto seja aceitável em vez de políticas que partam do centro e vão tão longe quanto seja caridoso.

Encerrando o primeiro capítulo, Young é enfático, a nostalgia social-democrata do mundo inclusivo dos anos 1950, com pleno emprego masculino, família nuclear e comunidade orgânica, é um sonho impossível. (YOUNG, 2002, p. 50)

No segundo capítulo, Young explicita como ocorreu a transformação nos últimos vinte anos no âmbito do crime, do controle da criminalidade e da própria criminologia. Para o autor, existe uma relação linear entre a crise da criminologia com a crise da modernidade. As velhas certezas sobre a natureza óbvia do crime e o papel central do sistema de justiça criminal em seu controle já não são tão obvias assim.

Young aborda cinco fatores, que em sua visão, contribuíram para que a modernidade fosse repensada.

O primeiro fator refere-se ao rápido crescimento das taxas de criminalidade, sustentado no positivismo social de que o crime seria causado por más condições sociais e que foi claramente contradito, afinal, a criminalidade aumentou à medida que o Ocidente enriqueceu.

O segundo fator remonta à existência de uma cifra oculta de crimes não notificados. Com efeito, a taxa de criminalidade seria pelo menos três vezes maior do que os números oficiais apresentam. Esta distinção entre crimes visíveis e crimes invisíveis quase vira de cabeça para baixo o paradigma modernista. Pois sugere que a imagem da criminalidade apresentada nas cifras oficiais seja fundamentalmente defeituosa (YOUNG, 2002, p. 66).

Sob a ótica da problematização do crime – terceiro fator –, Young demonstra como é construída a noção de crime. Em verdade, a quantidade de crime, o tipo de pessoa e de infração selecionados para serem criminalizados, e as categorias usadas para descrever e explicar o desviante são construções sociais, que podem variar de acordo com o tempo e espaço, ou seja, emergem da pura discricionariedade e conveniência do homem em um dado momento histórico. (YOUNG, 2002, p. 67)

Quanto ao quarto fator – que notadamente culminou na desintegração da modernidade –, diz respeito à universalidade do crime e a seletividade da justiça. Tradicionalmente a criminologia vê a criminalidade como se estivesse concentrada na parte mais baixa da estrutura de classes e como se fosse maior entre adolescentes do sexo masculino. No entanto, os crimes de colarinho branco desiquilibraram esta ortodoxia. A seletividade da justiça criminal, por seu turno, ocasiona toda uma série de ações espetaculares de discriminação e preconceito gerando um descontentamento público disseminado quanto à imparcialidade do sistema de justiça criminal.

Isso nos leva à problematização da punição e da culpabilidade – quinto e último fator –. À medida que aumentam os crimes, problemas por trás do processo de criminalização devem ser analisados, como por exemplo, como operar um sistema punitivo com recursos limitados em termos de detecção e isolamento. A reação à isto, como em qualquer outra burocracia, é tentar pegar atalhos. Consequentemente, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. (YOUNG, 2002, p. 74)

Corrupção, transação penal e seletividade sobre o infrator refletem na problematização da justiça. A justiça que o suposto infrator recebe torna-se resultado, não de uma culpa individual e uma punição proporcional, mas de um processo negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas, e não de obediência a padrões absolutos. (YOUNG, 2002, p. 75)

A partir destas análises Young volta à noção de privação relativa, que surge do fato das pessoas compararem-se umas às outras.  Para o autor, quando os diferenciais se aproximam, as diferenças se tornam ainda mais evidentes. A privação relativa não desapareceu com o crescimento da riqueza, não melhorou com o avanço disseminado da cidadania – ao contrário, foi exacerbada. Mas a privação relativa não explica sozinha o aumento da criminalidade e da desordem a partir dos anos 1960. Ela origina um mal-estar que pode se manifestar de muitas maneiras, e o crime é somente uma delas. (YOUNG, 2002, p. 80)

Há um pensamento predominante, compartilhado pela esquerda e pela direita do espectro político, de que o último terço do século XX foi um período de declínio. No entanto, este declínio nada mais é do que o reflexo do triunfo do mercado.

Young alerta que a sociedade de mercado engendra uma cultura de individualismo que mina as relações e os valores necessários a uma ordem social estável, fazendo aumentar, consequentemente a criminalidade e desordem.

O sistema capitalista exige ordem política e estabilidade econômica, mas a criminalidade não representa grande ameaça, para o autor, sem dúvida alguma, a criminalidade representa uma consequência inevitável de um sistema de mercado livre bem-sucedido.

Superado o segundo capítulo, o autor traz à tona as categorias de inclusão e exclusão elaboradas por Claude Lévi-Strauss. Para Lévi-Strauss, as sociedades primitivas engolem os desviantes e adquirem sua força de trabalho – são antropofágicos –, ao passo que as sociedades modernas – antropoêmicas –, lidam com desviantes vomitando-os, conservando-os fora da sociedade ou inserindo-os em espaços determinados, mantendo-os sob constante supervisão.

Neste contexto, surgem dois termos muito utilizados por Young em toda obra, a dificuldade e a diferença. A combinação do aumento da dificuldade (crime, desordem e incivilidades) com o aumento da diferença (diversidade) resulta em uma mudança qualitativa na sociedade, como também numa mudança no sistema de controle, particularmente pelo crescimento de um sistema atuarial de justiça.

Destarte, haveria um declínio a longo prazo na tolerância, afinal, as sociedades modernas recentes consomem diversidade, elas não recuam diante da diferença, elas reciclam e a vendem no supermercado, o que estão menos inclinadas a suportar é a dificuldade (crime).

Em sentido diametralmente oposto, na modernidade, a ênfase era antropofágica. Criminosos eram reabilitados, viciados em drogas eram tratados, imigrantes assimilados, adolescentes eram ajustados e famílias disfuncionais recebiam aconselhamento para voltarem à normalidade. A modernidade não tinha medo do indivíduo difícil, não era a dificuldade que ameaçava a modernidade, era a diversidade. Sua tarefa foi transformar a diversidade em desvio (YOUNG, 2002, p. 98), ou seja, transformar o diferente em criminoso.

O mundo excludente da modernidade recente começa a mudar tudo isto. A diferença adquire valor supremo, a diferença é livremente reconhecida, aceita e, muitas vezes, certamente exagerada, é a dificuldade que é mais problemática. (YOUNG, 2002, p. 102)

O atuarialismo emerge desse contexto, como o motivo principal do controle social na sociedade moderna recente. A postura atuarial reflete o fato da criminalidade ter se tornado uma parte normalizada da vida cotidiana, onde tanto os crimes como as pequenas incivilidades geram um sentimento de desconforto e insegurança.

Com relação à esta insegurança, Young traz à tona o termo Umwelt, que representa uma proteção que os indivíduos e grupos criam e cercam a si mesmos. Pensemos, exemplificativamente, em uma bolha, e dentro desta bolha estaria inserido o homem, que evitaria ao máximo o contato com o mundo externo. Desta forma, o Umwelt teria duas dimensões, a área em que o indivíduo se sente seguro e confortável e a área em que ele está em guarda, a área de apreensão.

A natureza do Umwelt varia segundo a categoria social, é fortemente baseada no gênero, é marcada pela questão racial e pelas classes. A título de exemplo, o Umwelt representaria como a cultura dominante vê as culturas minoritárias como sinônimo de perigo, criando uma espécie de proteção ou barreira entre elas. Com efeito, o que é visto na modernidade recente, é nada mais que uma diminuição da área de segurança dos indivíduos ao passo que a área de apreensão se expande sem precedentes.

O autor aborda também a existência de uma linha de pensadores que identificam o “medo” do crime como um problema autônomo em relação à criminalidade. (YOUNG, 2002, p. 115). Contudo, o crime é parte e faz um continuum com outras formas de comportamento antissocial. (YOUNG, 2002, p. 116)

Neste contexto, Young acredita que o processo de inclusão e exclusão é que seriam as verdadeiras causas da criminalidade. Com efeito, o crime ocorre quando há inclusão social e exclusão estrutural.

Ao inverter a máxima do positivismo individual, percebe-se que o crime não é resultado de uma falta de cultura, mas da adesão a uma cultura de sucesso e individualismo. Consequentemente, ao recontextualizar o positivismo social, demonstra-se que não é a privação material, nem a falta de oportunidade que dá lugar ao crime, mas a privação no contexto da cultura do “Sonho Americano”, em que se exorta a meritocracia aberta a todos. (YOUNG, 2002, p. 125)

Tudo isso leva de volta a Lévi-Strauss e suas metáforas do antropofágico e do antropoêmico, as sociedades canibais e as sociedades que vomitam os desviantes. Como paradigma de sociedade descontente é a que faça as duas coisas, devora pessoas vorazmente e depois invariavelmente as expele. A ordem social do mundo industrial avançado é uma ordem que engole seus membros. Ela consome e assimila culturalmente massas de pessoas através da educação, da mídia e da participação no mercado. (YOUNG, 2002, p. 125)

No entanto, a crise da modernidade recente não é apenas um reflexo de uma simples exclusão. Em verdade, há um verdadeiro processo bulímico de inclusão e exclusão, onde determinados grupos sociais são incentivados à participarem do sistema capitalista, da sociedade de consumo, dos tênis de marcas, dos carros de luxos, mas, diante da impossibilidade de adentrarem neste círculo de consumo, são excluídos, estigmatizados. Consequentemente, a subclasse reage a essa superidentificação pelo crime, pela criação de gangues e de subculturas criminais. (YOUNG, 2002, p.132)

Sob esta perspectiva, o autor destaca que as diferenças culturais estão diminuindo e não aumentando. Pelo bem ou pelo mal, só uma cultura viceja, a cultura do negócio, do trabalho e do consumo. (YOUNG, 2002, p. 134)

Encerrando o terceiro capítulo, Young afirma que é um erro que a sociedade multicultural seja vista como portadora de uma série de culturas independentes umas das outras. Estes argumentos encontram-se intimamente ligados ao processo de globalização, de que está ocorrendo um processo de imperialismo cultural.

No quarto capítulo, Young aborda o problema da diferença, ou seja, como o indivíduo e a sociedade como um todo lidam com os problemas gerados por uma ordem social mais diversificada.

Segundo Young, o multiculturalismo possibilitaria a diversidade, permitiria que as pessoas fossem elas mesmas e ao mesmo tempo tolerassem o desvio.

No entanto, a retórica progressista que enfatiza a igualdade entre os diversos grupos multiculturais, por exemplo, se transformou na noção de que as pessoas são essencialmente diferentes, de que a diferença deve ser reconhecida e respeitada sob forma de igualdade de tratamento. No entanto, isto se combinou com uma forma de essencialismo, tais diferenças baseavam-se em essências aparentemente fixas e atemporais. (YOUNG, 2002, p. 154)

Para o autor, o essencialismo nada mais é do que uma forma extremada de exclusão, afinal, separa grupos humanos com base na sua cultura ou na sua natureza. (YOUNG, 2002, p.156)

Eis, portanto, a crítica do essencialismo por Young. A noção de que cultura não envolve essências atemporais. As culturas podem mudar rapidamente no tempo se as circunstâncias mudarem. Para o autor, esta hibridação torna-se cada vez mais evidente no período atual de globalização. Portanto, se rejeitarmos esse essencialismo, decorre que teremos que descartar a noção de multiculturalismo que propõe um mosaico de essências fixas, coladas ao seu passado histórico. (YOUNG, 2002, p. 161) Brilhantemente, Young demonstra como a exclusão baseada no essencialismo é requisito necessário para a demonização de parte da sociedade. Notadamente porque permite que os problemas da sociedade sejam colocados nos ombros dos “outros”, em geral percebidos como situados na “margem” da sociedade. Assim, o crime é a moeda forte desta demonização. (YOUNG, 2002, p. 165)

Sendo assim, na modernidade recente, delinquentes escolhem voluntariamente a criminalidade, sem qualquer influência de circunstancias sociais, ou seja, são vistos como a causa de todos os problemas da sociedade, quando na verdade os seus problemas é que são causados pela própria sociedade, que desampara, criminaliza e estigmatiza grupos vulneráveis.

No próximo capítulo, Young adentra na seara da exclusão social proveniente do sistema de justiça criminal, que na modernidade recente, em razão do aumento da criminalidade e da desordem, demandam a criação de soluções rápidas. Neste contexto, Young expõe algumas falácias sobre a diminuição da criminalidade na cidade de Nova Iorque que teria ocorrido entre os anos de 1993 e 1996.

De fato, entre 1993 e 1996, a taxa de criminalidade em 12 de 17 países industriais avançados caiu e várias agências de controle da criminalidade começaram a reivindicá-la para si. Em nenhum lugar tanto quanto na cidade de Nova Iorque a taxa da criminalidade desabou em 36% em três anos.

Um dos motivos atribuídos a este sucesso, seria pela aplicação da política da tolerância zero. No âmbito do policiamento, trata-se de sinalizar intolerância para com incivilidades, de varrer os desvios e a desordem das ruas, lidar com pedintes agressivos, lavadores de para-brisas de sinal, vadios, bêbados e prostitutas. (YOUNG, 2002, p. 182)

Young então desmarcara as afirmações falaciosas acerca da tolerância zero e do sucesso da Polícia de Nova Iorque para com a redução da criminalidade, afinal, afirmava-se que a tolerância zero se baseava na filosofia de “janelas quebradas”, testada em Nova Iorque e que teria levado a uma redução da criminalidade.

Em suma, a única parte verdadeira da equação é redução da criminalidade em Nova Iorque no período de 1993 a 1996. No entanto, Young esclarece que a redução não ocorreu em virtude da implementação de práticas policiais inovadoras do Departamento de Polícia de Nova Iorque, pois, o declínio da criminalidade ocorreu em cidades industrializadas de todo o mundo, muito antes de a expressão tolerância zero tornar-se um chavão internacional. Ademais, o próprio comissário do Departamento de Polícia de Nova Iorque negou explicitamente a implantação de uma política de tolerância zero. Em verdade, a grande mudança foi alterar o foco, de modo a dar mais recursos de polícia a crimes de desordem.

Esta realocação da polícia de um papel central a um mais periférico no controle da criminalidade, produziu uma concordância imediata entre criminólogos de todas as tendências teóricas. Os autores, Wilson e Kelling – da obra “Teoria das janelas quebradas” – perceberam que o controle de pequenos infratores e de comportamentos desordeiros não criminosos era tão importante para a comunidade quanto o controle da criminalidade e que este era, como efeito, o papel original da polícia. Em verdade, o controle das incivilidades seria, por assim dizer, uma partida rápida no sentido da superação da desesperança e da desintegração da comunidade. (YOUNG, 2002, p. 188)

Posteriormente, Young adentra na ideia da falácia cosmética, que concebe a criminalidade como um problema superficial da sociedade, que pode ser tratado, e não como uma doença crônica da sociedade como um todo. A ideia é de que a criminalidade causaria problemas para a sociedade, quando na verdade é a sociedade que causaria o problema da criminalidade.

Young afirma categoricamente que não se pode mais conceber a ideia de manchas cosméticas isoladas, a criminalidade já se espalhou por todo o tecido social, devendo ser abandonada a noção modernista do criminoso distinto, pois, a obviedade quanto ao infrator, como da própria infração, já não se sustentam mais na modernidade recente.

Em verdade, são os problemas estruturais do sistema que produzem as taxas de criminalidade. É necessário não apenas punir os infratores por quebrarem janelas, mas na verdade consertar as janelas. Isto é, empreender um programa de reconstrução social abrangente nas nossas cidades. Tolerância zero à criminalidade deve ser tolerância zero à desigualdade. (YOUNG, 2002, p. 205)

Neste contexto a experiência prisional norte-americana permite evidenciar outro pilar da criminologia da tolerância zero, qual seja, o aumento do uso do encarceramento. Young afirma que se a solução da criminalidade fosse o encarceramento, seria difícil imaginar o tamanho que a população carcerária teria que atingir para realizar o sonho de baixar a taxa Norte-americana a níveis Europeus. (YOUNG, 2002, p. 211)

A única lição a ser aprendida, afirma o autor, é desviar desta linha de punição desvairada, é compreender que se for necessário um gulag para manter a sociedade do vencedor leva tudo, então é a sociedade que precisa ser mudada, e não as prisões expandidas. (YOUNG, 2002, p. 214)

No sexto capítulo, Young demonstra que tanto a sociedade inclusiva dos anos 1960 quanto o mundo excludente dos anos recentes fracassaram. Com efeito, o autor acredita na superação destes modelos através de um novo inclusivismo, ou seja, um mundo que reúna as pessoas, distribuindo a riqueza de maneira justa e nivelada, garantindo, ao mesmo tempo, liberdade e diversidade. O sistema de justiça criminal isolado não consegue manter a coesão social. É para a sociedade civil que temos que nos voltar se quisermos localizar as fontes tanto da coesão como da ruptura na vida social. (YOUNG, 2002, p. 217)

Construir uma sociedade nova, justa e inclusiva demanda duas coisas: distribuição meritocrática das recompensas e uma sociedade que veja a si própria como uma unidade, respeitando ao mesmo tempo a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 218)

A partir destas reflexões, Young adentra no sétimo capítulo, destacando como a cidade pode ser um lugar de possibilidades e estímulos intermináveis, mas também um lugar onde as pessoas se preocupam tão pouco umas com as outras que não há por que proibir a diversidade. (YOUNG, 2002, p. 246-247)

A cidade facilita uma variedade de subculturas, pois possibilita a coexistência de diferenças sociais sem exclusão. No entanto, essa diversidade só é possível diante deste cenário de impessoalidade e anonimidade.

A imagem de um mosaico de pequenos mundos que se tocam mas não se interpenetram não corresponde ao mundo moderno recente comum de transposição, globalização, hibridação, em que fronteiras se diluem e transformações ocorrem em todas as direções. (YOUNG, 2002, p. 264)

Nesse ponto, Young volta à noção de privação relativa. Porém, enfatiza o autor, que as pessoas não se sentem relativamente privadas às pessoas do mais alto escalão, mas sim com o homem da porta ao lado. Há uma comparação da posição material do indivíduo com a de outros que, espera-se, deveriam ganhar salários parecidos e ter estilos de vida semelhantes. (YOUNG, 2002, p. 270-271)

Destarte, Young defende a ideia de propagar uma política de meritocracia radical, através da qual, com a abertura do mercado de trabalho para todos, da distribuição equitativa da riqueza refletida no mérito, iniciar-se-ia, finalmente, uma efetiva transformação da sociedade.

No oitavo e último capítulo, Young caminha para o desfecho de sua obra destacando a contradição existente na modernidade recente.

Inicialmente, o autor compara o grande gulag penal construído nos Estados Unidos ao gulag russo. Segundo o autor, não só a violência é moeda corrente na cultura americana, mas também o sistema de justiça criminal, em forma de prisão, condicional e sursis. Com efeito, o gulag prisional americano representa a crise da modernidade recente na mesma medida em que o gulag russo representou um sinal para o mundo da crise da modernidade soviética.

Evidentemente, por trás de toda a frustação fomentada pelo individualismo está o motor do mercado. A globalização contribui com esse sentimento, pois, estimula diuturnamente os indivíduos à compararem uns aos outros, tornando suas vidas uma eterna disputa. De outro lado, há uma demanda de autoexpressão individual, onde o desejo de realização pessoal é obstruído pela real natureza do trabalho e das possibilidades de realização.

Para o autor, a luta por uma nova sociedade inclusiva, pautada em um novo contrato social parece ser a medida mais razoável. Este novo contrato social da modernidade recente não deve apenas prover empregos, mas insistir na meritocracia, deve buscar não apenas prover facilidades de lazer, mas voltar sua atenção para trabalho e lazer significantes, que deem à pessoa um sentido de propósito e identidade. (YOUNG, 2002, p. 288)

Sendo assim, criminalidade e intolerância ocorrem justamente quando a cidadania é anulada. A causa primeira da criminalidade reside na injustiça, e seu efeito inevitável é produzir mais injustiça e violação da cidadania. A solução deve ser encontrada não na ressureição de estabilidades passadas, mas numa nova cidadania, uma modernidade reflexiva capaz de manejar os problemas da justiça e da comunidade, da recompensa e do individualismo. (YOUNG, 2002, p. 290)

Notas

1 Gulag era um sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer cidadão em geral que se opusesse ao regime na União Soviética.

Referência

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. (Pensamento criminológico; 7), 3ª reimpressão, 2015.

Karine Cordazzo – Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Mestranda da Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8385110584658796. E-mail: karine.cordazzo@hotmail.com

Gustavo Preussle– Universidade Federal de Grande Dourados, Brasil. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7966792380099410. E-mail: gustavopreussler@ufgd.edu.br

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Assistência e pobreza: sentidos e lugares dos pobres no Brasil / História e Cultura / 2017

A caridade e a filantropia no Brasil são, desde tempos coloniais, práticas amplamente devotadas a assistir aos pobres, sobretudo para a salvação de suas almas. Já na passagem do século XIX para o XX, a “modernização da assistência” demandou maior eficiência das ações beneficentes. No que diz respeito às obras voltadas para os cuidados com a saúde, essa melhoria ficou evidenciada na criação e no remodelamento de hospitais, que foram transformados em espaços de assistência médica, ensino e filantropia.

Dessa maneira, refletir sobre como e com quais motivações essas entidades foram fundadas; o modo que agiam frente aos problemas sociais; pensar a respeito de quem era o pobre brasileiro, do significado de ser pobre e de quais lugares eles ocupavam na sociedade; a aliança entre médicos e filantropos na transformação das ações assistenciais, referem-se a questões de longa duração no mundo ocidental e tem sido objeto de grande debate na historiografia sobre o mundo europeu. Com este dossiê pretendemos reunir e divulgar trabalhos que se dediquem à temática pobreza e assistência no contexto brasileiro, do período colonial ao republicano.

Desde a Colônia, o cuidado com os pobres ocupou um lugar de destaque nas iniciativas caritativas no Brasil. A instalação de entidades como as Santas Casas de Misericórdia, por exemplo, carregavam consigo o sentido de abrigar e proteger aos “desprovidos de sorte”. Segundo a noção de caridade cristã, essas ações eram consideradas o “dever” de um bom cristão que, preocupados com a salvação de suas almas, doavam esmolas e / ou legados testamentais para o cuidado dos pobres. É relevante ressaltar que eram os doadores que designavam a obra assistencial a ser prestada com sua doação, portanto, eram privilegiadas obras de apelo moral e religioso. No que diz respeito às crianças, a função dessa entidade limitava-se em batizá-las, o que denota uma maior devoção ao cuidado espiritual do que ao material.

Durante o Império, após a fundação das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, os hospitais passaram, gradativamente, a se tornar “lugares de cura”, inserindo em suas práticas critérios e conceitos determinados pela higiene, por meio da ação do médico, o que só foi de fato consolidado durante a República. Se na Colônia a assistência aos pobres esteve muito restrita às iniciativas caritativas de ordens leigas ou religiosas, no final do Império e, principalmente, no início da República, novos grupos sociais emergiram nesse cenário, com destaque para os médicos e para os filantropos. Estes últimos, segundo Sanglard e Ferreira (2014, p. 74), eram pessoas que “investia[m] seu capital social e financeiro na abertura de instituições voltadas para o atendimento da população indigente”.

A filantropia era praticada em maior escala pelas elites que, sensibilizadas por motivos políticos, científicos ou morais, se responsabilizaram pelo processo de modernização da nação. Nas ações filantrópicas destaca-se a participação de mulheres pertencentes às elites ou em processo de profissionalização, envolvidas ou não em movimentos feministas. De acordo com Maria Luiza Marcílio (2006, p. 132), a aliança entre médicos e filantropos reorganizou a assistência no país, criando novos modelos institucionais que se baseavam na prestação de serviços de saúde e / ou educacionais por meio de trabalho voluntário, com ações custeadas por doações filantrópicas ou pelo próprio Estado. Uma evidência dessa mudança foi a transformação da mortalidade infantil num entrave ao progresso nacional. Com vistas a corrigir esse problema, as ações médicas identificaram sua causa, a alimentação infantil, e orientaram as ações filantrópicas no sentido de reunir recursos para executar sua estratégia de combate ao flagelo, ou seja, a instrução maternal em puericultura. Na medida em que os princípios da higiene e preceitos pedagógicos norteavam a ação de filantropos e profissionais, podemos dizer que as ações filantrópicas possuíam um apelo científico.

As mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil pós-abolicionista provocaram uma transformação na pobreza característica do país. Desse modo, o lugar da pobreza e sobre quem recaía a responsabilidade de socorrê-la foi modificado. Nesse período, as cidades receberam um grande contingente populacional, com o qual não sabiam como lidar. Essa migração provocou aglomerações urbanas, desemprego, crescimento descontrolado e a demanda por novos cuidados. O retrato da pobreza urbana, até então composto por vadios ociosos, viúvas e órfãos, passou a integrar negros forros, imigrantes que chegavam ao Brasil, e trabalhadores urbanos. Ao mudar o assistido e quem o assistia, mudam-se também as motivações da assistência, a forma de se efetuar a mesma e seu estatuto, transformando-a em uma “questão social”, que passa a demandar ações filantrópicas e estatais, em conjunto ou separadamente.

A necessidade do provimento da assistência em conjunto com o Estado, o qual até então somente realizava ações isoladas, em casos, principalmente, epidêmicos, marcou a delimitação das funções das esferas públicas e privadas. De acordo com Robert Castel (2010), ao Estado caberiam ações gerais e à filantropia ações específicas. Desse modo, as fundações de entidades assistenciais nesse período correspondiam a essa nova ordem que se caracterizava na relação Estado e filantropia para o fornecimento da assistência à pobreza. Sabemos que com relação à assistência materno-infantil, esse modelo foi fundamental para ao desenvolvimento de políticas públicas para a maternidade e infância a partir das décadas de 1920 e 1930.

Através dessa breve contextualização, buscamos levantar algumas questões que irão permear dossiê temático. Com o objetivo de refletir sobre pobreza e assistência, os artigos aqui apresentados buscam compreender quem era o pobre no Brasil durante os períodos colonial, imperial e republicano, e qual o significado de ser pobre nesse espaço, bem como as relações articuladas em prol da pobreza. Relacionada a essa problemática serão discutidas algumas entidades caritativas, filantrópicas e instituições públicas fundadas e mantidas ao longo desse recorte e ações em prol da pobreza. Além disso, os artigos também propõem a reflexão a respeito das ações de sujeitos e instituições, estratégias, cuidado com a pobreza, financiamento da assistência, redes de sociabilidade e cooperação.

Iniciando por “A atenção aos pobres: apontamentos históricos sobre assistência e proteção social no Brasil” e percorrendo os caminhos da história da assistência à pobreza no Brasil desde o período colonial, Gisele Bovolenta discute essa questão perpassando pela importância do papel das Irmandades, especialmente, a Misericórdia, na prestação de serviços nas suas Santas Casa, tais como: distribuição de esmolas e alimentos, recolhimento dos órfãos, atendimento aos doentes, além de administrarem os cemitérios, livrar os presos pobres, fazer enterramentos, entre outros. A autora destaca a presença dessa instituição como pioneira no campo da assistência social no Brasil, ainda antes da existência do Estado e da sua tardia preocupação em implantar medidas efetivas no que diz respeito a assistência à pobreza e aos trabalhadores, as quais deram-se, inicialmente, através da promulgação de leis voltadas à proteção social, datadas do início do século XX. Bovolenta ainda discute e aprofunda tópicos relativos à legislação do serviço social ao longo do último século, chegando até a Constituição de 1988 em que a assistência social efetiva-se enquanto política pública.

Em seguida, no artigo “Caridade, devoção e assistência hospitalar aos pobres: o Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira (1734-1770)”, há a reflexão sobre práticas de caridade no período colonial, especialmente durante o século XVIII. Tânia de Santana nos apresenta o caso do Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira, no Recôncavo baiano como um caso interessante para pensarmos a assistência aos pobres em outro contexto que não o dominado pelas Misericórdias. Estudando um personagem que considera fundamental para as obras da instituição, no seu artigo encontramos uma discussão interessante a respeito da diferença entre as práticas de caridade e ao auxílio à pobreza praticado pelas elites.

Ainda abordando questões relacionadas às Misericórdias, no artigo “Assistência aos presos nas cadeias públicas do Rio de Janeiro e de Salvador pela Santa Casa da Misericórdia (séculos XVII-XIX)”, Nayara Luchetti faz uma leitura do Compromisso da Misericórdia no que diz respeito a sua responsabilidade com os presos, destacando que até o século XVIII essa função era cumprida pelas instituições Pias, não sendo dever do Estado arcar com quaisquer custos de seus prisioneiros, ficando estes à mercê da caridade pública. No entanto, a historiadora destaca a dificuldade financeira ultrapassada pelas Misericórdias do Rio de Janeiro e de Salvador, no período compreendido entre os séculos XVII e XIX, e em que medida isso afetou no cumprimento do provimento de recursos aos presos pobres.

Buscando discutir a respeito da institucionalização da criança no Brasil a partir do século XIX, Alan Costa Cerqueira, em “Assistência, pobreza e institucionalização infantil: usos estratégicos da roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia (Salvador, século XIX)”, entende a criação da Roda dos Expostos enquanto meio de combate ao abandono de bebês nas cidades brasileiras. Nesse sentido, o autor utiliza alguns exemplos de exposição de crianças na Roda da Misericórdia de Salvador para demonstrar as estratégias que eram utilizadas pelas famílias. Destaca como três, os principais motivos do enjeitamento: a censura social ao nascimento ilegítimo, a miséria e a morte de pelo menos um dos pais. Sendo assim, Cerqueira defende os usos das Santas Casas como estratégia de sobrevivência das famílias de Salvador.

Já em “Cortejo de miséria: seca, assistência e mortalidade infantil na segunda metade do século XIX no Ceará”, Georgina da Silva Gadelha e Zilda Maria Menezes Lima nos apresentam um olhar a respeito do quanto as migrações do campo para a área urbana ocasionadas pelas grandes secas gerou um novo panorama nas cidades. As historiadoras demonstram o quanto esse contexto transformou o que antes seria apenas um evento climático, em uma questão social, forçando o governo a assumir a gestão da pobreza, através de controle e disciplina. Nesse sentido, focam sua análise no caso das crianças, principais afetadas num cenário de fome e miséria, causando altos índices de mortalidade infantil, compreendendo o quanto essa particularidade influenciou na administração caridade e da pobreza enquanto problema social.

Refletindo a respeito das mudanças urbanas que atravessava a cidade de Natal no início do século XX, Renato Santos reflete sobre os elementos desse contexto, os quais envolviam os desejos da elite de transformar sua urbe. Através disso, discute o que estava por trás do discurso modernizador que pretendia civilizar seus espaços e sua população. Nesse sentido, dedica-se a estudar a Escola de Aprendizes de Natal, inaugurada em 1910, que representava o ideal de disciplinar, normatizar, criar novos hábitos, dentro de uma formação voltada para o trabalho. Além de ser um espaço em que poderiam estar inseridos os “desfavorecidos de fortuna”, membros das “classes perigosas”. Assim, o texto, através da análise dessa instituição e de outras, como presídio, lazareto e dispensário de pobres, nos leva a pensar no pensamento moralizador e civilizatório da Primeira República.

Outro artigo focado neste mesmo período histórico trata-se de “‘O pobre não é vadio’”: uma crítica ao discurso elitista acerca do trabalho na Primeira República”. Utilizando como fontes dois jornais que circulavam na capital paulista, Rose Dayanne de Brito discute através de ideias antagônicas o pensamento da elite brasileira durante a Primeira República que relacionava pobreza à falta de trabalho, ou seja, o que se considerava vadiagem e, em contraposição, a crítica a esse pensamento, apontando para a exploração do trabalho e as faltas de condições sociais e assistência que isso impunha ao trabalhador.

Perpassando também, de alguma maneira, a questão do trabalho e da noção de pobreza, no artigo “Subcidadania, naturalização das desigualdades e jovens em situação de risco: pensando sobre futuro em um presente marginalizado”, Neylton Costa discute o conceito de “subcidadania” a partir do sociólogo Jessé de Souza, através de um olhar mais sociológico a respeito das mudanças que ocorreram a partir do século XIX no Brasil. O foco de sua análise centra-se em entender como o processo de modernização brasileiro formou um grupo de excluídos, tentando entender como um modelo de competição mercadológica naturalizou e reproduziu as desigualdades sociais. Para responder a essa questão, o autor entrevistou um grupo de jovens a fim de compreender se eles se reconhecem como classe desfavorecida e como percebem seus futuros.

Discutindo as diferenças entre a assistência e o assistencialismo, Dayanny Rodrigues em “Assistencialismo, primeiro-damismo e manipulação social: a atuação de Lúcia Braga no estado paraibano na década de 1980” estuda o caso de Lúcia Braga, política paraibana, para entender a relação entre práticas assistencialistas e manipulação social nas suas práticas enquanto primeira-dama. Além disso, destaca seu papel não apenas enquanto meio de legitimação política através de ações governamentais, mas também no âmbito das ações sociais que promoveu e o quanto isso gerou popularidade, garantindo um capital político próprio para além da figura do marido, governador.

Por fim, em “Espiritismo, caridade e assistência: Florina da Silva e Souza e a Sociedade Espírita Feminina Estudo e Caridade em Santa Maria / RS” Felipe Girardi e Beatriz Weber trazem uma outra perspectiva da assistência, mas que não está distante do que já foi apresentado aqui, no que diz respeito as ações de assistência à pobreza. Focalizando na análise das práticas do espiritismo relacionadas a criação e manutenção de obras assistenciais como escolas e abrigos, por exemplo, os autores apresentam a trajetória de uma mulher que colaborou na fundação e atuou numa instituição de caráter assistencial, voltada, sobretudo, ao atendimento de crianças e jovens pobres. Analisando o que consideram peculiaridades da visão espírita, dedicam-se a entender seu olhar sobre a caridade e a assistência, através das visões e abordagens dadas à questão da infância e da juventude.

Desejamos a todos uma boa leitura, esperando contribuir para novas questões e discussões a respeito da historiografia da assistência à saúde e à pobreza.

Referências

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 2010.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 2006.

SANGLARD, Gisele Porto. FERREIRA, Luiz Otávio. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a assistência à infância no Rio de Janeiro (1900-1920). Est. Hist., Rio de Janeiro, v. 27, n. 53, p. 71-91, jan.-jun. 2014.

Daiane Silveira Rossi – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista PDSE / CAPES na Universidade de Évora, Portugal. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: daisrossi@gmail.com

Lidiane Monteiro Ribeiro – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Bolsista FIOCRUZ. Membro do Grupo de Pesquisas “História da Assistência à Saúde”, vinculado ao CNPq. E-mail: lidiane_monteiro@yahoo.com.br


ROSSI, Daiane Silveira; RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Apresentação. História e Cultura. Franca, v. 6, n. 2, ago. / nov., 2017. Acessar publicação original [DR]

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A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena | José Luiz Del Roio

José Del Roio constrói sua narrativa a partir da leitura de historiadores especialistas em História Política, Social e Econômica, ligados ao movimento dos operários no Brasil, como Michael Hall e Suely Robles Reis de Queiroz a militantes intelectuais que viveram no período, como Everardo Dias e Astrojildo Pereira. Além disso, utiliza em seu arcabouço historiadores como Edgar Rodrigues, que se dedicaram aos estudos do anarquismo no Brasil, um campo que ainda carece de estudos e debates, sendo subjugado por uma memória oficial. Neste sentido, Del Roio dará voz a esses sujeitos anarquistas em seu livro “A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena”, (São Paulo: Alameda, 2017).

Com relação às fontes empregadas pelo escritor, mas antes propriamente de indicá-las, é necessário relatar a relação entre o autor e elas. José Del Roio, radialista, ativista do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na década de 60 e fundador, junto a Carlos Marighella, da Ação Libertadora Nacional (ALN), foi um dos que possibilitou a preservação do acervo de Astrojildo Pereira, durante o regime de ditadura militar. O acervo contém vários documentos reunidos sobre o “Movimento operário no Brasil”, folhetos, reportagens de jornais da época, canções, convocações e comunicados do Comitê de Defesa Proletária (CDP), que hoje permanecem no Centro de Documentação e Memória (CEDEM), em São Paulo e que foram utilizados como fontes para o livro.

Diante disso, em meio a um cenário brasileiro contemporâneo, marcado por passeatas, greves gerais e paralisações de várias categorias, no qual há luta por mais transparência política e direitos básicos dos trabalhadores, o livro escrito por José Luiz Del Roio cumpre papel relevante na divulgação de um acontecimento. Fenômeno que há cem anos sinalizaria o início das movimentações sindicais e da organização popular em torno de melhorias nas condições de trabalho do operariado paulista. O autor nos leva, através de sua interpretação, à análise e imaginação ao mundo dos trabalhadores nos bairros Brás, Mooca, e outros de São Paulo, que para ele representou a máxima do movimento sindicalista revolucionário, mas também o início de sua decadência.

Em sua obra, dividida em cinco capítulos, que totalizam cerca de 130 páginas, José Luiz Del Roio busca traçar, inicialmente, os elementos históricos que antecedem a eclosão dos protestos, modificações sociais em São Paulo que, desde o final do século XIX, possibilitaram um crescimento demográfico e industrial na cidade. Decorrente dessas transformações há consequências fundamentais ao contexto da greve. A vinda de imigrantes europeus após a abolição da escravatura, que circunscreveu a formação de uma mão-de-obra ainda com resquícios da escravidão e que, portanto, foi submetida muitas vezes ao trabalho compulsório, fator que elevou ainda mais a pauperização das relações de trabalho. Simultâneo a isso, o aumento e mudança de produção para suprir demandas durante a Primeira Guerra Mundial, o crescimento desordenado destas fábricas e das condições precárias impostas aos trabalhadores acabam propiciando o surgimento de movimentos anarquistas e anarcossindicalistas como resistência a este panorama, tornando-se alvo de discussão do autor no capítulo dois. Segundo o autor, o anarcossindicalismo, apresentando-se como uma cisão anarquista dos sindicatos socialistas, obteria uma atuação mais ampla e direta a favor do operariado através de uma luta mais insurrecional.

No capítulo três há uma maior ênfase na descrição pormenorizada destes protestos e de casos e indivíduos específicos que atuam no desenrolar das paralisações. O autor traz luz às dificuldades e toda a repressão que os grevistas passaram por parte do Estado. Também ganha destaque do escritor a contribuição dos jornalistas à greve, inclusive nas intermediações das negociações, uma vez que a maioria dos diretores do Comitê de Defesa Proletária eram vinculados a estes meios, a exemplo de Edgard Leuenroth, condutor de um meio de comunicação anarquista, a Plebe.

Por fim, nas últimas duas divisões do livro há elaboração de um balanço do movimento, entretanto, se por um lado são destacados os ganhos que o operariado adquiriu e a repercussão que a greve teve em outras regiões do país, por outro são elencadas as sucessivas ações repressivas que sofreram os líderes grevistas após julho de 1917, a estruturação de um sindicalismo moderno advindo da cisão do movimento anarquista no Brasil, além do montante de mortos e desaparecidos nos conflitos, dados que só podem ser discutidos pelo escritor por meio de fontes extraoficiais, visto que os anúncios e denúncias de desaparecidos geralmente eram publicados somente nos jornais anarquistas.

A resistência contra o Estado e a oficialidade dos fatos é algo marcante que permeia toda a obra de José Del Roio. Ele coloca os trabalhadores de 1917 como sujeitos ativos na luta pelos seus direitos e que resistem às forças em contraposição ao seu movimento. O autor faz parte dessa resistência que ainda permanece, também pela escolha de uma documentação não oficial. Apesar de não haver muito sobre as personagens femininas que participaram da greve – o que o autor reconhece e justifica devido à falta de uma documentação – elas são mencionadas como significantes, e as fotografias trazidas ao final do livro as mostram atuantes nas manifestações. Ele não as esquece, assim como também os anarquistas ou os mortos em confronto com a polícia. Logo, a história a contrapelo torna-se aqui presente.

Por fim, torna-se relevante neste trabalho de Del Roio o resgate da greve de 1917 a partir da demonstração das relações deste fenômeno histórico com o movimento anarquista. Evidenciar a relevância desta influência, que adveio da Europa, principalmente através dos imigrantes italianos, ressalta as relações culturais e sociais entre estes e o operariado brasileiro, corroborando o ecletismo dos trabalhadores paulistas no início do século XX. Atitude metodológica que apresenta esses sujeitos históricos de forma complexificada, demonstrando como compreendiam e sintetizavam os ideais anarquistas, aplicando-os em suas visões de mundo e no cotidiano em prol da luta social.

Deste modo, a obra atende bem ao seu propósito, pois a condensação das ideias em um livro menor e a utilização de uma linguagem acessível acabam permitindo uma exposição da greve de 1917 para além do âmbito acadêmico, atingindo um público mais amplo. Da mesma forma, o anexo de fontes ao final do livro, que contém de imagens à recortes de jornais anarquistas, também agrega para um maior envolvimento da obra com um público mais leigo, que talvez não fosse ter acesso a tal documentação por outros meios. Portanto, mesmo o autor não sendo historiador, sua experiência de vida, aliada à apresentação recorrente das fontes pelas quais Del Roio não se abstém, enriquece seu trabalho como pesquisa.

Kauana Silva de Rezende – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná

Pâmela de Souza Oliveira – Graduada em História (Memória e Imagem) pela Universidade Federal do Paraná.


DEL ROIO, José Luiz. A greve de 1917 – Os trabalhadores entram em cena. São Paulo: Alameda, 2017. Resenha de: REZENDE, Kauana Silva de; OLIVEIRA, Pâmela de Souza. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.135-139, 2017. Acessar publicação original [DR]

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 | Ricard van Leeuwen

Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800 é o décimo primeiro volume de uma série de livros em contínua produção, Rulers & Elites, organizada por Jeroen Duindam. A série se propõe a analisar o poder dos governantes e das elites de períodos e espaços diferentes a partir de aspectos culturais, literários, econômicos, entre outros. No caso da obra selecionada, a concepção e a legitimação de uma realeza diretamente relacionada ao poder, sejam de um rei, sultão ou califa, podem ser encontradas em narrativas literárias como espelho-depríncipes e histórias de aventura.

O autor de Narratives…, Richard Van Leeuwen, é professor na Universidade de Amsterdã e atua na área de Estudos Islâmicos. Suas pesquisas são majoritariamente sobre história do Oriente Médio, a literatura árabe e o islã no mundo moderno. Algumas de suas publicações são Waqfs and Urban Structures: The Case of Ottoman Damascus (1999) e The Thousand and One Nights: Space, Travel and Transformation (2007).

Em sua Introdução, Leeuwen reconhece as dificuldades impostas pelo tema. As fontes selecionadas são histórias que sobrevivem ao tempo sofrendo algumas mudanças conforme o contexto perpassado. Um exemplo recorrente é a compilação de histórias de As Mil e Uma Noites, cujo título aparece por volta do século XII, mas alguns dos contos são de séculos anteriores e a obra completa permanece até a atualidade como uma grande referência literária. A sobrevivência destas narrativas e de seus temas permanece, também, devido às traduções e adaptações. Várias histórias criadas na Ásia, por exemplo, foram traduzidas para o árabe e turco pelos mamelucos e otomanos, permitindo que elas se difundissem por um grande espaço geográfico.[2]

As adaptações refletem os gostos e mentalidades de diversos períodos. O espaço e o período compreendidos pelas fontes, portanto, são demasiado vastos. Não foi possível aprofundar cada contexto de origem e de mudança das narrativas selecionadas separadamente. Mas o objetivo de Narratives… é outro: encontrar possíveis paralelos discursivos sobre poder e reinado em textos narrativos de impérios euroasiáticos entre 1300 e 1800. De acordo com Leeuwen, a literatura era um meio importante para a compreensão e divulgação dos símbolos de poder. Além disso, traços de tradições orais são encontradas mescladas com tradições escritas, significando um encontro entre o imaginário popular e o aristocrático.

A obra é dividida em seis capítulos, cada um tratando de um tema específico utilizando entre duas e seis histórias, sendo eles: os papéis do rei, dos vizires e das concubinas na trama; deuses e demônios em contato com o rei e sua influência na legitimação do governante; percepção divina e harmonia cósmica; a relação e diferenciação entre o cavaleiro e o rei; o amor e o poder soberano; e, por último, conselhos e críticas (desejados ou não) feitas ao governo. Para situar o leitor, o autor apresenta uma sinopse do conto seguida de uma análise aprofundada do mesmo. Devido aos limites instituídos pela quantidade de fontes e pelo tamanho da produção historiográfica, muitos detalhes do roteiro são explicados brevemente em meio à análise das obras.

A organização do texto é bem estruturada e clara, como descrevemos acima, cumprindo objetivamente o que é proposto no título e na introdução. Apesar de as sinopses serem extremamente breves – ponto que o próprio autor reconhece – alguns detalhes da narrativa são abordados conforme o tema, como a descrição de uma personagem ou uma cena específica que são determinantes para o argumento construído por Richard van Leeuwen. Estas amostras das histórias, porém, incitam o leitor a procurá-las e lê-las na íntegra. Os temas de cada capítulo se relacionam com as fontes e temas anteriores, criando uma rede de ligações entre os aspectos comuns às várias narrativas.

O primeiro capítulo, Kings, Viziers, Concubines, traz quatro narrativas cujos pontos comuns incluem o governante como a personificação dos valores do reino, o vizir como o sábio conselheiro a ser seguido, e a concubina real que traz o desequilíbrio do reino. Os contos abordados são Seven Viziers [3] e algumas de suas variações como Jali’ad of Hind and His Vizier Shimas, ambas de origem persa em sua versão de As Mil e Uma Noites, King Wu’s Expedition Against Zhou e Proclaiming Harmony, ambas de origem chinesa. As versões das duas primeiras histórias utilizadas pertencem ao século XVIII, enquanto as chinesas datam do século XIV.

As narrativas persas possuem um formato comum, em que os desejos carnais e a influência das mulheres no governante trazem a ruína do império, restando ao sábio vizir redirecionar a impulsividade do líder imperial. Portanto, o posicionamento das personagens é bem claro: o rei aparece como representante do reino, às vezes cedendo às paixões; o papel do vizir é manter a tradição e a sabedoria por meio do aconselhamento; e a mulher causa a desordem, a enganação, as emoções irracionais. Estas características se mantêm, mesmo atravessando limites culturais e temporais. O perigo atribuído às paixões e o papel sábio dos ministros também aparece nos contos chineses, porém de forma mais similar a um espelho-de-príncipe. A ficção não é tão presente quanto nas outras fontes: a história das dinastias é o principal elemento do roteiro, apresentando personagens e acontecimentos históricos.

Analisando o discurso de poder nestas fontes, Richard van Leeuwen destaca alguns pontos comuns. Em todas as narrativas, há uma ameaça de descontinuação da dinastia, seja pela falta de um príncipe ou pelo comportamento inadequado de um rei, obrigando a formação de novos princípios para o governo que visam o restabelecimento do império. Para isto, o rei deve ser iniciado na sabedoria e conhecimento acumulados na tradição humana, pois ele não apenas deve seguir seus princípios como deve personificá-los (LEEUWEN, 2017: 24).

No segundo capítulo, é abordada a relação entre a autoridade do governante e do vizir e a aparição de forças sobrenaturais na forma de deuses, demônios e espíritos, aparecendo como parte da iniciação da personagem. Para esta análise, foram utilizados contos sobre os reinantes Vikramaditya, Harun Al-Rashid e Wu, protagonistas semi-históricos. Os três ascendem ao poder de forma quase inevitável, como se forçados a assumir este papel. O autor afirma que de certa forma “eles são antiheróis, que atingiram sua posição apesar de si mesmos, como se obrigados por forças irresistíveis a assumir suas responsabilidades” (LEEUWEN, 2017: 76) [4].

Eles estão diretamente relacionados às forças sobrenaturais (encantamentos, objetos mágicos, demônios) e sua autoridade é concebida pelo divino. No entanto, é uma autoridade a ser conquistada de acordo com a disposição de ajudar a população. É interessante notar como os elementos sobrenaturais se alteram conforme o período e região, como a cosmologia e mitologia hindu na versão bengalesa e referências a práticas islâmicas em versões persas posteriores. O conhecimento esotérico e o esclarecimento divino também aparecem como determinantes para a formação do protagonista. Esta transformação possibilita perceber a influência do contexto do autor ou tradutor na obra sobre a qual ele trabalha.

Histórias como The Queen of Serpents (introduzida em As Mil e Uma Noites no século XVIII), The Sorcerer’s Revolt (um romance compilado pelo chinês Feng Menglong no século XVII) e Manuscrit Trouvé à Saragosse (escrito por Jean Potocki no século XIX) apresentam a iniciação do príncipe ou vizir ao conhecimento esotérico, visando a atingir o meio termo entre crença e superstição, entre morais extremas e entre os interesses humanos e divinos. A autoridade e legitimidade do governante, portanto, são situadas de acordo com suas relações com a religião e as forças sobrenaturais de forma bem ampla. Sua autoridade se naturaliza e harmoniza com forças cósmicas, denotando a importância do equilíbrio nas relações e atribuindo o nome do terceiro capítulo, Divine Insights, Cosmic Harmony.

Além de reis e ministros, outra figura é destacada por Leeuwen: o cavaleiro. O autor comenta: “Há dois temas que parecem estar presentes em literaturas pelo mundo inteiro: amor e guerra” (LEEUWEN, 2017: 109). No quarto capítulo, foram selecionados seis romances cavalheirescos variando geográfica e temporalmente, de tradições europeia, persa/urdu, chinesa, árabe, malaia e turca. Neles, a ascensão ao poder se dá não por um sucessor sanguíneo, mas por um guerreiro que passa por uma iniciação para se tornar o soberano. Os cavaleiros abordados são Tirante o Branco, Amir Hamza, Yue Fei, Hang Tuah, Al-Zahir Baybars e Sayyd Battal. Um conto apresenta uma inclinação para o aspecto biográfico, o Romance of Baybars, cujo protagonista é estrangeiro, forasteiro naquela sociedade e governo.

Richard van Leeuwen aborda Ron Sela, que pesquisou biografias com aspecto fictício de Tamerlão que apareceram no século XVIII em turco e persa. Sela compara estas biografias com a de Baybars, e Leeuwen concorda com a ideia de que ambas as narrativas encaixam na categoria literária semipopular, combinando elementos populares com discursos aristocráticos de poder. Os valores morais defendidos pela comunidade são determinantes para a legitimação destas duas figuras, tornando-as modelos de um líder ideal antes de colocá-las no poder. Estes valores apresentam uma conexão entre a cultura popular e a elitizada.

A figura da mulher muda nestas últimas narrativas: seu papel ainda é determinante, mas desta vez de forma positiva. Porém, ela nunca ocupa um lugar de poder, sua posição é de subordinação à das outras personagens nas narrativas abordadas. Leeuwen descreve os contos como misóginos, mesmo para o contexto em que se encontravam. Em Tirant lo Blanc e The Book of Amir Hamza o caso é mais complexo: a figura feminina está envolvida com a estrutura de poder e autoridade, atuando como referencial de virtude e lealdade. Há, portanto, um paradoxo, em que por um lado sua posição é marginal, mas por outro possui um poder simbólico forte. Ela atua como ruptura e ao mesmo tempo como continuidade.

As relações entre os gêneros são foco dos romances de amor, aprofundados no quinto capítulo do livro. Este é dividido em duas partes, uma analisando um agrupamento de uma rede de histórias de amor árabe-persa e hindu, e outra um agrupamento de romances de cavalaria que se tornaram contos de amor na Europa. Nos contos, percebe-se a conexão direta entre a realeza e o amor na busca pela pessoa amada na forma de uma aventura. Um padrão é identificado nas primeiras cinco fontes, pertencentes às tradições árabe, persa, hindu, indiana, e nas fontes europeias.

O amor fornece não só um enredo dramático, mas também o paradoxo feminino tratado anteriormente: a interrupção da dinastia devido à paixão e a continuidade da mesma pela sexualidade. Entre a ruptura e a continuidade, há o período de busca e aventura por parte do príncipe. A ameaça de ruptura surge com o fato de o amor e de a sexualidade possivelmente quebrarem regras sociais e instituições. Desta forma, este sentimento se manifesta como destino, afetando não só as duas personagens envolvidas, mas também a comunidade inteira por meio de suas ações.

No sexto e último capítulo, Richard van Leeuwen apresenta narrativas ficcionais e semificcionais que criticam o usufruto do poder pelo governante. Seus autores eram indivíduos que voluntariamente tomaram a posição de vizir e tentaram corrigir o rei, mesmo que seu aconselhamento não fosse requisitado e muitas vezes oprimido. Eles são produzidos em períodos prósperos governados por poderes absolutos, podendo ser considerados “absolutismos esclarecidos” (LEEUWEN, 2017: 200), que incluem as dinastias Ming e Qing, os impérios Mogol e Otomano e as casas reais da Espanha, França, Inglaterra e Áustria.

Diferente das narrativas anteriores que visam a facilitar o discurso de poder, estas questionam sua efetividade e problematizam a relação entre comunidade e governante. A contestação se dá diretamente ao líder por meio da crítica ou pela recomendação de alternativas que diminuam seu poder absoluto. Obras do Oriente Médio e da Ásia contribuíram para as produções no Ocidente nos séculos XVIII e XIX, visto que o contato entre estes se intensificou, criando novas e mais complexas formas de visão de mundo.

Concluindo a obra, Leeuwen destaca como as narrativas funcionam sempre dentro da estrutura de poder e autoridade, dialogando entre a visão da corte e a visão popular. O hibridismo que permite esta conexão insere na imaginação coletiva valores que consolidam as estruturas de poder. A história serve como repositório de identidades, de valores culturais e morais, geralmente projetadas sobre uma figura específica, e como fonte de legitimação (LEEUWEN, 2017: 255). A religião também aparece com papel semelhante, fornecendo valores e um sentimento de experiência comum, junto da história. O que permite a permanência de uma narrativa através do tempo e do espaço, porém, é seu impacto e sua capacidade de se reinventar como fenômeno cultural e literário.

Narratives of Kingship in Eurasian Empires é uma ótima leitura tanto para interessados em história quanto em literatura, estabelecendo um rico diálogo entre as duas áreas. Como tratado nesta resenha, a quantidade de fontes narrativas é grande, fornecendo um panorama geográfico e temporal vasto para entender as manifestações literárias sobre discursos de poder entre 1300 e 1800.

Notas

2. Um exemplo seria o trabalho de Mamede Mustafa Jarouche, na tradução direta do árabe para o português da obra Livro das Mil e Uma Noites, publicada no Brasil em 4 volumes. JAROUCHE, Mamede Mustafa. O Livro das Mil e Uma Noites: volume I – ramo sírio. v. 1. São Paulo: Editora Globo, 2005.

3. Este título se refere a uma gama de traduções e adaptações, alguns exemplos sendo O Livro de Sinbad, na versão árabe, e The Seven Sages of Rome, como é chamado em vários outros idiomas.

4. Tradução de minha autoria.

Annie Venson Bogoni – Graduada no curso de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal do Paraná. Mestranda em História pela mesma instituição.


LEEUWEN, Richard van. Narratives of Kingship in Eurasian Empires, 1300-1800. Leiden: Brill, 2017. Resenha de: BOGONI, Annie Venson. Cadernos de Clio. Curitiba, v.8, n.2, p.141-150, 2017. Acessar publicação original [DR]

Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil | João Feres Júnior

João Feres Júnior (IESP/UERJ) e Marcelo Jasmin (PUC-RJ) são dois pesquisadores brasileiros que, no início da década de 2000, abordaram, em algumas obras organizadas por eles, os preceitos elaborados pela história conceitual alemã, na qual o historiador alemão Reinhart Koselleck é um dos maiores expoentes. Algumas destas publicações foram: História dos conceitos: debates e perspectivas, de 2006, e História dos Conceitos: diálogos transatlânticos, de 2007 (apud ROIZ, 2014).

Neste sentido, Feres Júnior dá continuidade às propostas teórico-metodológicas de Reinhart Koselleck na obra intitulada Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014). O trabalho em questão é uma continuidade ou, como o próprio João Feres Júnior afirma, a segunda fase e/ou uma edição revisada e ampliada da obra organizada por ele, em 2009, ambos com o mesmo título e derivados das pesquisas dos historiadores brasileiros participantes do Proyecto Iberoamericano de Historia Conceptual – Iberconceptos2. A ideia que mobilizou a criação deste grupo de pesquisa foi elaborada pelo organizador das referidas obras, juntamente com Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni, em 2004. No entanto, a publicação de 2009 possuía menos capítulos – que, assim como a obra por nós resenhada, tiveram o caráter de verbetes de dicionário, o que demonstra a originalidade deste trabalho (apud FERES JÚNIOR, 2014).

Contudo, Feres Júnior – que atua sem a participação de Marcelo Gantus Jasmin tanto na organização da obra de 2009 quanto na de 2014 – e os demais participantes brasileiros do Proyecto Iberconceptos, optaram por utilizar não somente as sugestões teóricas de Koselleck, mas compatibilizá-las com as ideias propostas pela Escola de Cambridge, representada por Quentin Skinner e John Greville Agard Pocock (apud FERES JUNIOR, 2014). Ao justificar a complementaridade entre estas duas correntes teórico-metodológicas, João Feres Júnior afirma que Melvin Richter, por meio do seu trabalho intitulado The History of Political and Social Concepts: A Critical Introduction (1995), defende a ideia de que os historiadores mais simpáticos aos preceitos elaborados pela Escola de Cambridge passassem a considerar, também, as ideias propostas pela história conceitual alemã (RICHTER, 1995 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15). Além disso, o cientista político finlandês Kari Palonen também recomendou o mesmo caminho proposto por Richter e que foi adotado pelo Proyecto Iberconceptos (PALONEN, 2003 apud FERES JUNIOR, 2014, p.15).

Ainda neste sentido, sobre as escolhas teórico–metodológicas de Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil (2014), acreditamos ser pertinente acrescentar que a defesa da complementaridade entre estas duas correntes pode ser corroborada pela seguinte afirmação de Koselleck, que denuncia a tendência que seria própria da história das ideias, em relação às expressões históricas, de conceber estas últimas “[…] como constantes, articuladas em figuras históricas diferentes, mas elas mesmas fundamentalmente imutáveis” (KOSELLECK, 1985a, p.80 apud JASMIN, 2005, p.31).

Em consonância com estas concepções teóricas, Feres Júnior argumenta, no capítulo onde realiza uma leitura de caráter transversal acerca do conceito de “civilização”, com base em outros trabalhos sobre este termo (2014, p.423-454), que a utilização daquelas duas correntes teóricas, de forma conjunta, evitaria a “[…] cilada de ter de optar pelo aspecto descritivo ou normativo dos conceitos. Os elementos descritivos e normativos são tomados como partes da semântica do conceito e, portanto, como objetos a serem estudados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427). Além disso, segundo o organizador da obra, também não é necessário que haja uma escolha pelo total desprendimento entre as questões objetivas e as subjetivas, característica e/ou tendência mais ligadas à linha cartesiana de pensamento, pois

[…] a inspiração fenomenológica embutida na história conceitual foca a experiência e a construção da linguagem através de um processo social de atribuição de significado intersubjetivo, que nunca é totalizante ou propriamente objetivo, pois se encontra fracionado como a própria sociedade (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Neste sentido, na ótica de Feres Júnior, pelo fato de a História conceitual não se alicerçar em uma dita “perfeição” teórica e/ou não defender a utilização de um único conceito tido como “inquebrantável” na busca pela compreensão de determinado assunto – modelo que seria mais próprio das ciências naturais, e que parte das ciências humanas seguem, como, por exemplo, a Ciência Política, e algumas vertentes das Ciências Sociais -, a escolha pelas indicações de Koselleck e Skinner se mostram mais favoráveis, pois se dispõem a “[…] resgatar a linguagem em seus múltiplos usos e significados” (FERES JÚNIOR, 2014, p.427).

Dessa forma, tentando seguir estes postulados, a obra derivada da primeira fase (2009) contou com análises transversais sobre todos os conceitos abordados até àquele momento, embasadas nos verbetes resultantes das discussões sobre os próprios conceitos e compôs uma publicação em língua espanhola, intitulada Diccionario político y social iberoamericano: conceptos políticos en la era de las independências, 1750-1850 (apud FERES JÚNIOR, 2014). Além disso, a primeira fase (2009) foi derivada do artigo Algumas notas sobre História Conceptual e sua aplicação ao espaço Atlântico Ibero-Americano (2008, p.5-16 apud ROIZ, 2014, p.280), de autoria de Javier Fernández Sebastián e que compôs o dossiê intitulado História Conceptual no Mundo Luso-Brasileiro, 1750-1850, também apresentado por Sebastián e que compõe o número 55 da revista Ler História (apud ROIZ, 2014). Este número, de acordo com Diogo da Silva Roiz, teve, no Brasil, acesso limitado e enfatizou as relações existentes entre o mundo ibero-americano na época das independências (ROIZ, 2014).

Além disso, contou com ensaios que, assim como ainda nos informa Roiz, tratavam de vários conceitos como América-Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá), Cidadão-Vizinho (Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira), Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Federalismo (de Ivo Coser), História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araújo), Liberal-Liberalismo (Nuno Gonçalo Monteiro), Nação (Sérgio Campos Matos), Opinião pública (Ana Cristina Araújo), Povo (Fátima Sá e Melo Ferreira) e República-Republicanos (Rui Ramos) (apud ROIZ, 2014).

No entanto, na obra de 2009 que foi publicada no Brasil e que focou na operacionalização de todos estes conceitos no caso específico brasileiro daquele recorte temporal – ou seja, não colocou a atenção em Portugal, como havia sido feito no trabalho de 2008 – alguns conceitos foram trabalhados por outros autores e a disposição dos capítulos ficou da seguinte forma: América/Americanos (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá); Cidadão (Beatriz Cruz Santos e Bernardo Ferreira); Constituição (Lúcia Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves); Federal/Federalismo (Ivo Coser); História (João Paulo Pimenta e Valdei Lopes de Araujo); Liberal/Liberalismo (Christian Edward Cyril Lynch); Nação (Marco A. Pamplona); Opinião Pública (Lúcia Bastos Pereira das Neves); Povo/Povos (Luisa Rauter Pereira); e República/Republicanos (Heloisa Maria Murgel Starling e Christian Edward Cyril Lynch) (apud ROIZ, 2014).

Dessa forma, João Feres Júnior, ainda no prefácio da obra sobre a qual estamos direcionando nossa atenção por meio deste trabalho, nos inteira que a intenção ao elaborar o Léxico da segunda fase (2014) foi a mesma da que motivou a publicação do livro de 2009, mas com uma novidade: trouxe a abordagem de outros dez conceitos além dos que estão presentes na obra resultante da primeira fase. Os dez novos capítulos tratam sobre: Soberania (Luiza Rauter Pereira), Independência (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves), Partido/Facção (Ivo Coser), Democracia (Christian Edward Cyril Lynch), Pátria (Marco Antonio Pamplona), Estado (Ivo Coser), Liberdade (Christian Edward Cyril Lynch), Ordem (Cláudio Antonio Santos Monteiro), Civilização (João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá) e Revolução (Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves) (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, aos dez trabalhos referentes à publicação resultante da primeira fase do Iberconceptos (2009) se somaram mais 10 novos capítulos, totalizando uma produção de 20 conceitos trabalhados neste Léxico publicado em 2014. Neste sentido, ao tratarmos aqui de modo breve sobre cada verbete que compõe a nova obra, iniciamos pelo trabalho de João Feres Júnior e Maria Elisa Noronha de Sá que, ao abordarem a noção de América/Americanos (2014, p.25-39), identificam seis diferenciações deste conceito e afirmam que o mesmo parece começar a obter características políticas:

[…] com o advento das independências dos Estados Unidos da América e das colônias espanholas, e o conseqüente uso desses exemplos por parte dos atores coloniais descontentes com o Império português. A associação da América com o valor da liberdade tornou-se comum a partir da primeira década do século 19, ao mesmo tempo que a depreciação das experiências políticas das novas repúblicas da América espanhola rapidamente se converteu em tropo retórico daqueles que não desejavam o governo republicano no Brasil, ou seja, da parte dominante do espectro político brasileiro por toda a primeira metade do século 19 e além (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.36).

O capítulo sobre Civilização (NORONHA DE SÁ; FERES JÚNIOR, 2014, p.209- 231) também é escrito por aqueles dois autores, que indicam um processo de “nacionalização” do referido termo – na expressão de Pim den Boer trabalhada por eles -, protagonizado pela geração romântica brasileira. No que tange ao conceito de Cidadão, Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira afirmam que existia uma relação entre a preservação da ordem escravocrata e a manutenção das hierarquias de caráter tradicional, o que contribuía para o vínculo entre liberdade, cidadania e propriedade que classificava as pessoas entre “cidadãos ativos”, “cidadãos passivos” e os “não cidadãos” (SANTOS; FERREIRA, 2014, p.54-55).

Por sua vez, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Pereira das Neves estabelecem a relação entre a noção de Constituição com questões religiosas ou, nas palavras dos próprios autores, uma “[…] dificuldade demonstrada por portugueses e brasileiros em lidar com a democracia, esse ‘poder dos homens tomando o lugar das ordens definida por Deus ou desejada por Deus” (NEVES; NEVES, 2014 p. 72). Além deste capítulo, estes autores também atuam juntos em outros trabalhos componentes deste livro, que são os casos dos trabalhos sobre Independência (NEVES; NEVES, 2014, p.233-252) e sobre a ideia de Revolução (NEVES; NEVES, 2014, p.379-399). Em relação à Independência, estes autores afirmam que o referido termo, “[…] confundia-se com a honra e o orgulho do Brasil” (NEVES; NEVES, 2014, p.248) e não teria mudado tanto a não ser na década de 1860, período em que houve uma maior aproximação com a ideia de “soberania”. Por sua vez, em relação às questões sobre as possibilidades de ruptura total que envolvem o conceito de Revolução, Lúcia M. Bastos Pereira das Neves e Guilherme Neves concluem que, no período analisado, “[…] somente poucos, sem conseguir-se desprender tampouco de uma perspectiva reformista, pareciam dotados de condições para superar essa visão litúrgica do mundo e reconhecer o potencial dos homens para interferir na vida pública em seu próprio proveito” (NEVES; NEVES, 2014, p.394).

Sobre as modificações que envolveram as concepções acerca da própria disciplina histórica propriamente dita – no verbete intitulado História -, João Paulo G. Pimenta e Valdei Lopes de Araújo abordam, dentro do recorte temporal estabelecido (1750-1850) e de seu processo de mudança, o desprendimento dos preceitos religiosos na escrita da história, perpassando pelo estágio onde se percebeu uma ligação entre o letramento e a narrativa histórica, até a fase em que “[…] a história deixava de ser apenas a sucessão de acontecimentos isolados, tornando-se fator de desenvolvimento dessa identidade” (PIMENTA; ARAÚJO, 2014, p.116).

No capítulo Liberal/Liberalismo, Christian Edward Cyril Lynch nos traz a informação de que “no Brasil, o verdadeiro liberal era o conservador, que exigia, pela centralização, o robustecimento da autoridade do Estado, agente civilizador capaz de se impor à aristocracia rural, acessar a população subjugada no campo e fazer valer os direitos civis” (LYNCH, 2014, p.132). Neste sentido, podemos considerar, também, o verbete Ordem, de autoria de Claudio Antonio Santos Monteiro indicando que “[…] com os perigos representados pelo mundo da desordem (homens pobres e livres e escravos), ordem no Brasil imperial implica a total inviabilidade da expansão da liberdade […]” (MONTEIRO, 2014, p.354).

Alguns autores escreveram mais de um capítulo, assim como já colocamos em relação ao texto de Beatriz Santos e Bernardo Ferreira. Esse também é o caso de Lúcia M. Pereira das Neves em seu trabalho sobre o conceito de Opinião Pública, no qual trata sobre a permanência da “[…] perspectiva da opinião como uma, próxima às concepções de cultura política do absolutismo” (NEVES, 2014, p.166), do trabalho de Luisa Rauter Pereira que, além do capítulo sobre Soberania – assim como já pontuamos – também trata sobre a noção de Povo/Povos (PEREIRA, 2014, p.173-189), abordando a relação entre este conceito e a soberania política, liberdade, igualdade e a natureza geográfica do país, não tão ligados assim à esfera política e de Christian Edward Cyril Lynch, que, assim como no trabalho sobre o conceito de Libera/Liberalismo, também se debruçou em outros como sobre a ideia de República/Republicanos – o qual escreveu em parceria com Heloisa Maria Murgel Starling (STARLING; LYNCH, 2014, p.191-207) -, Democracia (LYNCH, 2014, p.253-274) e Liberdade (LYNCH, 2014, p.323-339) – nos quais atuou sozinho –, capítulos estes que nos possibilita perceber uma ligação entre estes conceitos, os quais estavam relacionados às características da monarquia de então.

Outros autores também participam da obra com mais de um trabalho, tais como, Ivo Coser e Marco A. Pamplona. Aquele, ao analisar os sentidos das ideias de Federal/Federalismo (COSER, 2014, p.79-101), Estado (COSER, 2014, p.301-322) e Partido/Facção (COSER, 2014, p.359-377), por meio dos textos de Paulino José Soares de Souza (o Visconde do Uruguai), Alves Branco, Tavares Bastos, entre outras personalidades, chama a atenção para a complexidade entre o estabelecimento da fragmentação do poder estatal, a continuidade do personalismo e a transformação da facção em partido – com um programa racional definido. Por sua vez, Pamplona analisa o conceito de Nação (PAMPLONA, 2014, p.137-153) que, ao dialogar tanto com o trabalho de Beatriz Catão Cruz Santos e Bernardo Ferreira (Cidadão), quanto com o de Luisa Rauter Pereira sobre Soberania (PEREIRA, 2014, p.401-421), aborda a discussão sobre quem seria considerado cidadão dentro daquela formação político-social no Brasil, defendendo que a “adoção do princípio da ‘soberania do povo’ iniciou uma transformação mais profunda da moldura normativa existente até o momento para a legitimação do poder político” (PAMPLONA, 2014, p.148). Pamplona também trata sobre o conceito de Pátria (p. 275-300), que, segundo o autor, sofreu um processo de singularização, “[…] sendo utilizado cada vez mais na sua identificação com a nação, à medida que esta aprofundava sua sinonímia com o Estado Imperial” (PAMPLONA, 2014, p.297).

Além de conter os verbetes com os conceitos trabalhados por todos os pesquisadores brasileiros neste Léxico, de 2014, a obra também conta com mais um capítulo escrito por João Feres Júnior, mais ao final do livro. Trata-se do posfácio intitulado De olho nas pesquisas futuras: as camadas teóricas da história dos conceitos (FERES JÚNIOR, 2014, p.455-477), no qual trata um pouco mais sobre a possibilidade de complementaridade entre os pressupostos teóricos da Escola de Cambridge e as noções propostas pela Begriffsgeschichte e realiza uma análise crítica sobre a utilização ou não de algumas ideias de Koselleck – como, por exemplo, as noções de “temporalização”, “ideologização”, “politização” e “democratização” dos conceitos – nas pesquisas que tem a história dos conceitos como o principal norte teórico-metodológico (FERES JÚNIOR, 2014).

Dessa forma, ao tratarmos sobre os principais aspectos da obra organizada por Feres Júnior, não temos dúvida de que o recorte enfatizado – que diz respeito à segunda metade do século XVIII e as cinco primeiras décadas do século XIX – contribuiu muito para a riqueza dos resultados obtidos não somente por Feres Júnior, como também por todos os autores envolvidos neste trabalho, pelo fato de ser um período de profundas transformações da sociedade brasileira vinculadas à política do país. Além disso, assim como Diogo Roiz (2014) bem observou sobre a utilização do norte teórico-metodológico escolhido – complementaridade entre o contextualismo linguístico, de Skinner e Pocock, e a história dos conceitos alemã, de Koselleck – na obra da primeira fase (2009) – é totalmente pertinente, pois proporciona discussões frutíferas e inovadoras ao analisar as fontes selecionadas com foco nos conceitos estudados dentro do período trabalhado, o que permite conciliar análises históricas, políticas, linguísticas e sociais. Todos estes fatores colaboram para uma leitura fluida e compõem uma obra que contribui consideravelmente para a historiografia acerca dos temas e período trabalhados, além de despertar novas reflexões sobre as questões abordadas.

Notas

2. Assim como o próprio organizador do Léxico nos informa, O Iberconceptos consiste em um projeto iniciado por meio de uma reunião entre João Feres Júnior, Javier Fernández Sebastián e Vicente Oieni (que não atuou no projeto posteriormente) durante a VII Conferência Internacional de História dos Conceitos, realizada em 2004. Desde o início, o objetivo desta iniciativa era o “[…] de se fazer uma história conceitual dos países de fala espanhola e portuguesa na Europa e na América […]” (FERES JÚNIOR, 2014, p.9), e Sebastián foi o responsável pela angariação de financiamento para a realização deste projeto em seu país natal, a Espanha. João Feres Júnior ficou a cargo da coordenação do Iberconcpetos no Brasil. Sob a coordenação de João Feres Júnior aqui, no Brasil, atuam vários pesquisadores de diversas instituições tais como Beatriz Catão Cruz Santos (UFRRJ), Bernardo Ferreira (UERJ/IUPERJ), Christian Edward Cyril Lynch (IESP-UERJ/FCRB), Cláudio Antonio Santos Monteiro (Université Robert Schuman, de Strasbourg, França), Guilherme Pereira das Neves (UFF), Heloisa Maria Murgel Starling (UFMG), Ivo Coser (UFRJ), João Paulo G. Pimenta (USP), Lúcia M. Bastos Pereira das Neves (UERJ), Luisa Rauter Pereira (IUPERJ/UFF), Marco A. Pamplona (PUC-Rio), Maria Elisa Noronha de Sá (PUC-Rio) e Valdei Lopes de Araújo (UFOP). Além dos pesquisadores brasileiros anteriormente citados, o Projeto Iberconceptos também é composto por equipes de pesquisadores de outros vários países: Argentina, Colômbia, Chile, Espanha, México, Peru, Portugal, Uruguai, Venezuela e países do Caribe e da América Central (FERES JÚNIOR, 2014).

Referências

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Elvis de Almeida Diana1 –  Mestre em História pela UNESP. E-mail: eaediana844@gmail.com


FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da História dos conceitos políticos do Brasil. Belo Horizonte: EdUFMG/Humanitas, 2014. Resenha de: DIANA, Elvis de Almeida. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.587-594, ago., 2017.Acessar publicação original [DR]

K.: relato de uma busca | Bernardo Kucinsk

A obra K. configura-se como trabalho histórico e memorialístico na medida em que expõe, denuncia e recupera o relato de dor e sofrimento2 do pai de Ana Rosa Kucinski Silva, desaparecida política brasileira. Durante o regime militar no Brasil (1964-1985), a agonia do pai e dos sobreviventes, vítimas da ditadura, intensificou-se com o silenciamento instaurado na sociedade, pelos detentores do poder, em relação ao paradeiro dos desaparecidos políticos. Nota-se que em 1974, ano em que ocorreu o desaparecimento de Ana Rosa e de seu marido, Wilson Silva, o regime ainda sentia os reflexos da concentração de poder nas mãos dos militares, fruto da instalação do Ato Institucional nº 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), que enrijeceu o sistema autoritário e levou vários dissidentes à morte.

Durante a ditadura, cidadãos que se opunham ao regime, como Ana Rosa Kucinski Silva e Wilson Silva, foram violentados, massacrados (expressão que carrega o sentido de humilhação)[3] e “desapareceram”. Para Bernardo Kucinski, trataram-se de crimes contra a humanidade, uma vez que, independentemente da posição política de esquerda comungada pelo casal – eram integrantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), que combateu o regime militar no Brasil –, os crimes contra a vida não se justificam, situação que se agrava ao avaliar a atrocidade dos acontecimentos e a existência, desde 1948, em âmbito internacional, da Declaração Universal dos Direitos Humanos [4].

As pistas e os vestígios [5] referentes ao casal e demais perseguidos políticos que compunham a organização clandestina de resistência ao regime foram destruídos pelos militares e por outros agentes, que endureceram o rigor do regime autoritário. Dessa forma, o jornalista Bernardo Kucinski, filho de Majer Kucinski e irmão de Ana Rosa Kucinski, utilizando-se da narrativa ficcional [6], oferece-nos a oportunidade de reconstruirmos o passado que se esconde pelas vias silenciosas das ações dos detentores do poder, que impuseram sua vontade através do apagamento dos rastros, de violências, atentados e humilhações contra a vida humana.

Além de militante política, Ana Rosa ocupou o cargo de professora doutora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), onde cumpriu com suas funções de forma assídua até o dia 23 de abril de 1974, quando, segundo suas colegas de trabalho, ela não retornou à universidade. Wilson Silva, seu marido, era físico e trabalhava em uma empresa. Já seu pai, o senhor Majer Kucinski, foi resistente judeu na Polônia e se dedicou integralmente, no Brasil, ao iídiche [7].

Amparado neste enredo, o jornalista Bernardo Kucinski amarrou os fios que estabelecem a intriga por meio da vivência familiar e ocupou, dessa maneira, o papel de testemunha [8], mesmo vivendo grande parte da sua vida no exterior. O autor alerta: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu” (p. 8), ou seja, a reunião das informações esfaceladas, seja através do registro sobre o caso de desaparecidos políticos encontrado nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), seja através do depoimento da escritora Maria Victoria Benevides – que rememora a aflição de Majer Kucinski na Comissão de Justiça e Paz, quando este estreitou laços de amizade com Dom Paulo Evaristo Arns –, ajuda-nos a situar este relato nos debates acerca da história, do trauma e da memória.

A tensão entre testemunho, denúncia, literatura, trauma e memória converge, no trabalho historiográfico, no labor com a realidade e a ficção. Na constituição da narrativa de Bernardo Kucinski, ao invés de se oporem, existe integração entre o par realidade e ficção [9], que se evidencia como um dos pontos centrais explorado no livro por meio dos sentimentos de agonia e dor alimentados por Majer na busca por sua filha. Indubitável que o livro, ao retratar o sofrimento angustiante de Majer Kucinski no resgate memorialístico de sua filha Ana Rosa (vinculada à história do regime militar no Brasil), vem assinalar um marco problematizador nos debates historiográficos referentes à ditadura brasileira, uma vez que revela uma atenção por parte de Bernardo em investigar as incertezas, o medo, a indignação, as mentiras e outras facetas decorrentes de regimes autoritários pela América Latina.

O desespero de Majer Kucinski diante do sumiço de sua filha, ao mesmo tempo que recupera sua singular trajetória de vida como militante político na Polônia, no pré-Holocausto – período em que foi reconhecido como prestigioso escritor do iídiche, com destaque para a literatura –, revela os meandros da política autoritária brasileira. Este sistema, regido especificamente pelo autoritarismo, guarda sua especificidade nacional diante de regimes totalitário-autoritários ocorridos na Itália e na Alemanha, na medida em que os militares, a mando dos detentores do poder no Brasil, desapareciam com as figuras oponentes ao regime sem deixar vestígios, tornando-as, portanto, desaparecidos políticos.

Além da incerteza do que realmente aconteceu com o casal, a experiência de dor visualizada no pai de Ana Rosa permite o paralelismo com os sentimentos de Primo Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, na Segunda Guerra Mundial (1939- 1945) [10]. Se a preocupação sobre o paradeiro de Ana Rosa e Wilson Silva é central para o autor, o sofrimento do pai, dos irmãos, o vazio, a humilhação e “a supressão dos sentidos ordinários comuns da vida” (p. 186), escancarado pelas vias do silêncio e perpetrado em suas veias pelos detentores do poder, desabrocha nos sentimentos da nossa indignação e ira diante da ditadura militar no Brasil.

É, portanto, diante o retrato de sentimentos como a culpa, a impunidade, o trauma, alimentados pela família Kucinski devido o desaparecimento de Ana Rosa que, não podemos perder de vista o quanto a obra de Bernardo Kucinski se constitui como se Bernardo assumisse a voz do seu pai na narrativa de desaparecimento de Ana Rosa. Interessante que, neste aspecto, as contribuições de Sigmund Freud (1856-1939) vêm ao encontro da problemática deste livro. Porque, por meio da A Interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001) apreende-se que o autor ao retratar acerca da “psicologia dos processos oníricos” e da “função dos sonhos – sonhos de angústia” descreve que “no inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido”. O que Freud quer explorar com essa passagem é que no estudo das histórias humanas “a via inconsciente de pensamentos que conduz à descarga no ataque histérico volta imediatamente a tornar-se transitável quando se acumula excitação suficiente”. E continua Freud, “uma humilhação experimentada trinta anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso às fontes inconscientes de afeto” [11]. Nesse sentido, Bernardo Kucinski se constitui personagem paciente deste retrato apresentado por Freud. E, Kucinski, ao trazer suas inquietações a público por meio deste livro nos conduz automaticamente ao desdobramento de Freud, supracitado.

Por outro lado, foi possível notar ainda que a estrutura de K. é bastante sugestiva no que tange à maneira como vamos ler a obra, pois, diante de uma leitura rápida, é difícil encontrar uma linearidade que conduza a história de forma objetiva. O leitor desavisado só conseguirá configurar o enredo após a leitura do posfácio de Renato Lessa. Nesse sentido, percebe-se que Lessa se volta às problemáticas e considerações a respeito dos estudos sobre as vítimas do regime militar no Brasil, apresentadas também por Maria Victoria Benevides na orelha do livro, em que a autora analisa os usos da ficção e da literatura no escopo do discurso do autor.

Bernardo Kucinski traz informações sobre a chegada da sua família ao Brasil e enriquece o retrato sobre a vida de Majer e Ana Rosa Kucinski Silva. Além de usar a letra K, sugerindo correlação com a trajetória de vida do escritor Franz Kafka (1883-1924) – escritor tcheco, que sofreu por ser judeu; escreveu para revistas literárias e mantinha grande simpatia pelo socialismo e sionismo –, Bernardo evidencia a perseguição política que Majer Kucinski sofreu na Polônia, sendo obrigado a fugir para o Brasil em 1935. Por escrever em iídiche, passou a ser reconhecido pelos judeus do bairro de Bom Retiro, em São Paulo. Além disso, escreveu em jornais de São Paulo, Buenos Aires e Nova Iorque. Logo, angariou um sócio com grande capital para abrir uma loja de tecidos.

Como alguém que carrega um trauma do que viveu [12], Majer não contou aos filhos a dor que sofreu no passado para não influenciar a formação psíquica e ética deles. Majer Kucinski tinha 30 anos quando foi arrastado pelas ruas de Wloclawek, uma pequena cidade polonesa, onde se deu o primeiro massacre organizado da população judaica pelas tropas alemãs na invasão da Polônia. Neste episódio, em que sua irmã mais nova morreu sua outra irmã, mais velha, Guita – militante de esquerda que ajudou a fundar o Linke Poalei Tzion (Partido dos Trabalhadores de Sion de Esquerda) –, foi presa e veio a falecer de frio. Já a mãe de Ana Rosa Kucinski, Ester, perdeu toda sua família. Ester veio para o Brasil um ano depois da chegada do marido. Ela desenvolveu câncer no seio direito na mesma época em que engravidou de Ana Rosa, que nasceu em 1942. A mãe de Ana Rosa veio a falecer, e Majer casou-se com sua segunda mulher. Porém, reclamava desta devido à vida pacata que levava, uma vez que sempre foi um homem ativo na sociedade.

Bernardo retrata a agonia de Majer diante das pistas incertas e seu cansaço ao seguir as indicações de informantes – dentre eles, o decorador de vitrines (Caio), o dono da padaria (o português Amadeu) e o farmacêutico (reconhecido como excelente informante dos judeus em São Paulo, que indicou a Majer um rabino em São Paulo e um dirigente da comunidade no Rio de Janeiro que mantinham contatos com os generais). Em busca de respostas, Majer viajou para Nova York ao escritório American Jewish Committee – ambiente que o recebera no passado para lhe conceder o prêmio pelo poema “Haguibor”, publicado na revista Tzukunft (revista literária iídiche publicada em Nova York). Foi a Londres, na Anistia Internacional, e antes esteve em Genebra, onde apelou à Cruz Vermelha. Bernardo Kucinski retrata o desgosto de Majer com a Comissão de Direitos Humanos, que rejeitou sua petição. Por fim, todas as buscas foram em vão. Ademais, muitas pessoas que Majer procurou não lhe ajudaram por medo do sistema, que perseguia pessoas e desaparecia com os opositores ao regime sem deixar rastros.

A insistência de Majer na busca por Ana Rosa levou-o a descobrir a vida clandestina da filha tanto em relação à política como em relação a sua própria família, já que, procurando protegê-los, Ana Rosa omitiu diversos fatos de sua vida, como o casamento com Wilson Silva. Sua luta política foi cultivada no anonimato e, com o casamento, Ana Rosa aproximouse ainda mais do marido, que mantinha maior vínculo com as ideologias incentivadas pelos grupos de esquerda no Brasil.

O desespero de Majer intensificou-se ao tomar conhecimento de outras famílias que procuravam por seus desaparecidos. Muitos queriam apenas enterrar seus mortos, uma vez que o tempo dera provas de que já não havia mais esperanças. Dessa maneira, o que se pode notar é que Majer estava ante uma especificidade do Estado autoritário brasileiro, que conseguia escamotear, acabar com as pistas, vestígios, rastros que levassem aos autores dos crimes encomendados.

A forma com que os militares desapareciam com os corpos no Brasil é comparada por Bernardo ao que fizeram os nazistas com seus prisioneiros: antes de serem reduzidos a cinzas, era dado baixa do número que cada um tinha tatuado no braço num livro. Depois, eram enterrados em vala comum. Dessa forma, era possível saber que os judeus e as vítimas de outra ordem se encontravam enterrados em determinado local. Já no Brasil, como Bernardo afirma, o luto referente às vítimas da ditadura continua em aberto devido à ausência e ao sumiço dos cadáveres. Neste encalço e na suposição de que este assunto ainda deva atormentar os sonhos de Bernardo Kucinski vale atentarmo-nos ao que Freud nos assegura “a interpretação dos sonhos é a via real para o conhecimento das atividades inconscientes da mente” [13]. Ou seja, por meio das dúvidas e “certezas” que cercearam os sonhos e a mente de Majer, estes, agora, passaram a atormentar os sonhos e mente de Bernardo. Nesse sentido, o ato do sepultamento tanto para Bernardo quanto às famílias vítimas de narrativas de mesma natureza simboliza o fim do trabalho de dor e luto pelo desaparecido político.

Outra análise motivada por Bernardo Kucinski é: diante dos acontecimentos com sua irmã e seu pai, como ficam os torturadores em relação às manifestações de sobreviventes e presos políticos, como o “dossiê das torturas” e o “relatório prometido à Anistia Internacional”, citados no livro? Se, para ele, a punição aos mentores dos crimes está longe de se tornar realidade, em contrapartida, ela ainda persiste em relação às vítimas. Este assunto remete aos debates e catalogações dos historiadores e se vincula aos estudos sobre os crimes cometidos contra a humanidade [14], em que se configuram atrocidades inimagináveis quanto à vida humana.

Se, por um lado, o livro de Bernardo denuncia a realidade cruel sofrida por seu pai, por outro, tece pontos estratégicos ao retratar como funcionou o sistema político no Brasil, que desapareceu com as pessoas sem deixar vestígios, humilhando-as e levando-as à morte. Nos capítulos “A Cadela” e “A Abertura”, os diálogos sugeridos por Bernardo entre os mandantes do governo e os sujeitos nomeados pelo autor como Lima, Mineirinho, Fogaça e Fleury revelam a tortura psicológica que as vítimas sofreram ante a instauração do silêncio e das informações falsas concedidas por estes mesmos sujeitos acerca dos desaparecidos políticos. O governo, através de um aparelho de Estado repressor que tudo sabia e que constantemente estreitava contatos de fidelidade com pessoas dentro e fora do país para enrijecer o sistema, tentou a todo custo despistar, cansar, manipular e mentir aos familiares sobre o paradeiro de seus desaparecidos. Dessa maneira, Bernardo realizou um trabalho notável ao explorar as vias enigmáticas em que se instaurou o sistema autoritário brasileiro, que conseguiu levar Majer à exaustão, uma vez que seus movimentos foram monitorados por agentes do governo, desviando-o de seu objetivo: encontrar a filha, ainda que morta.

Um dos pontos auges do livro encontra-se no capítulo “A Terapia”. Neste, Bernardo, utilizando-se do relato da personagem Jesuína Gonzaga, expõe os bastidores de uma casa em Petrópolis [15], no Rio de Janeiro, onde um dos chefes de comando do regime militar, o suposto Sérgio Paranhos Fleury, vinha de São Paulo para comandar e realizar torturas psicológicas, físicas e massacrar, de fato, os opositores ao regime. Fleury era reconhecido pela terapeuta do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e pelos demais como “o Fleury do esquadrão da morte”. Segundo Jesuína, nesta casa havia uma espécie de garagem ou depósito que ela só pôde conhecer quando esteve sozinha no local. As atrocidades reveladas por testemunhas oculares [16] como Jesuína, mesmo que de forma fragmentada, colocam em evidência os horrores a que as vítimas diretas do regime foram sujeitadas. Jesuína, por exemplo, por não suportar conviver com aquela realidade, procurou o INSS para realizar um tratamento psicológico, além de fazer uso de pílulas para dormir. Neste capítulo, Bernardo escancarou a realidade do local onde ocorria a carnificina e o esquartejamento dos corpos que, posteriormente, eram levados em sacos de lonas bem amarrados para lugares até hoje desconhecidos.

Bernardo, ao relatar o encontro de Majer com o arcebispo de São Paulo, solidário às famílias que buscavam por seus desaparecidos políticos, revelou a incapacidade do pai em relatar coerentemente o acontecido. Ainda que Majer Kucinski fosse contrário ao catolicismo no passado, naquele momento tentou preencher o vazio com notícias que talvez o arcebispo poderia lhe conceder sobre a filha e o genro. É indubitável que a supressão de provas tornou a busca de Majer ainda mais dolorida, pois, diferente da Polônia – onde a família do preso era notificada, podia visitá-lo, e os presos tinham direito à defesa –, no Brasil os corpos simplesmente desapareciam.

O livro K., através de sua narrativa ficcional, procura compreender o papel de sobreviventes ante acontecimentos estarrecedores, como foi o caso da invasão na Polônia, em que Majer perdeu suas duas irmãs, e sua primeira mulher, toda a família. Conforme retratado anteriormente, Majer não relembrou esses episódios aos filhos para evitar causar-lhes mal no período em que estavam construindo suas vidas, além disso a lembrança provocava-lhe malestar. Por meio de estudos acerca do trauma nota-se que o sobrevivente procura viver o presente tentando se recuperar do trauma do passado. Dessa forma, o passado vivia adormecido na vida de Majer Kucinski até o momento em que sua vida no Brasil fê-lo vítima das atrocidades do regime militar. Nesse sentido, é importante observar que o livro de Bernardo apresenta problemáticas quanto ao estudo de passados traumáticos [17], por exemplo, em relação ao sobrevivente que, além de carregar o mal do passado, sente-se culpado e tornase vítima de um sistema que imputa a ele a responsabilidade psicológica de não ter oferecido o amor necessário à filha, como retrata Bernardo na obra ao afirmar que os sobreviventes sempre vasculham o passado “em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam” (p. 168). Ou seja, a culpa alimentada através da dúvida e das incertezas impostas pelo sistema permanece dentro de cada sobrevivente como um drama pessoal e familiar, que foge da ordem coletiva. Dessa forma, a dor psicológica e a culpa instalam-se.

Bernardo deixa explícito o poder de imposição do sistema ao final da obra, no “Post Scriptum” de 31 de dezembro de 2010, quando toma como referência um telefonema que recebeu em que uma voz originária de Florianópolis-SC relatou que, numa viagem ao Canadá, uma pessoa de nome Ana Rosa Kucinski Silva se apresentou a ela. Bernardo não retomou contato com a pessoa do telefonema porque acredita que o sistema repressivo continua articulado. Ou seja, segundo Bernardo, essa ação é fruto de uma reação referente a um vídeo gravado por uma atriz brasileira convidada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para personificar o desaparecimento de Ana Rosa. Nesse sentido, a obra K. contribui de forma categórica à problemática em que se circunscrevem as vítimas diretas e os sobreviventes do regime militar no Brasil, conduzindo esse problema aos debates acerca da história, do trauma e da memória e contribuindo decisivamente com estudos de passados traumáticos.

Bernardo estimula-nos ao imaginário individual e de ordem coletiva que funciona como via de regra na constituição dos fatos. Assim como o luto continua em aberto, uma vez que não foi possível oferecer às vítimas uma lápide devido à ausência dos corpos, esta mesma ausência causa transtornos aos familiares dos desaparecidos políticos, que ainda buscam por certezas e justiça para seus entes, baseados nos debates constantes acerca da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em desacordo com os crimes de qualquer natureza cometidos contra a humanidade. No encalço dessas problematizações cabe ainda salientarmos a importância dos debates no Brasil acerca da temática “Justiça de Transição”. Este é um assunto que tem ganhado espaço nos debates acadêmicos devido aos “conceitos de legados autoritários, justiça transicional e política do passado como são hoje aplicados e analisa também as formas de justiça transicional que estavam presentes durante os processos de democratização na Europa do Sul” [18].

Por fim, o livro resenhado atribui aos pesquisadores e intelectuais de um modo geral a tarefa de investigar pistas, rastros e vestígios em busca de respostas sobre esse passado traumático que sucumbiu com a vida de pessoas como a de Majer Kucinski – pelos tormentos da culpa, do trauma e da morte causados pelo cansaço e exaustão ao procurar sua filha – e de Ana Rosa Kucinski Silva, que até agora continua sem um túmulo, sem uma lápide que a insira num tempo que contabilize seu nascimento e morte, pois, conforme os judeus, “Sem corpo não há rito, não há nada”.

Notas

2. É importante deixar claro que o livro de Bernardo Kucinski se situa no âmbito das discussões teóricas da egiptóloga Aleida Assmann, a qual, por meio do livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural (ASSMANN, 2011), nos oferece a oportunidade de analisar que o resgate da memória traumática, referente a acontecimentos do nosso passado recente, nos remete a posicionarmos contra as catástrofes, atrocidades dos eventos traumáticos. Um dos exemplos chave que podemos apontar nesta abordagem, o Holocausto.

3. Conferir o texto do historiador Edgar Salvadori de Decca A humilhação: ação ou sentimento? (MARSON; NAXARA, 2005). Nesse texto, Decca contribui sobre o que é humilhação. Segundo o autor, diante de várias características que a palavra carrega, a humilhação é o processo em que a “vítima é forçada à passividade, sem ação e sem socorro” (p. 108).

4. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 dez 1948. Disponível em . Acesso em: 30 out. 2015.

5. Vale lembrar que, para o historiador Carlo Ginzburg as pistas e vestígios do passado são fundamentais ao historiador no processo investigativo de determinado acontecimento histórico. Dessa maneira, através deste pressuposto, reconhecido como “paradigma indiciário” é que, também, podemos ler as lacunas e os silêncios que muito nos contribuem sobre aquele objeto de estudo e o tempo em que ele está imerso. Conferir: Sinais: Raízes de um paradigma indiciário (GINZBURG, 1989, pp. 143-179).

6. Nesse sentido, Hayden White expõe a problemática de que o historiador em seu processo de escrita, onde a leitura das fontes se apresenta como norteadora, deve se utilizar da sutileza e da herança cultural literária que ele carrega, oferecendo, portanto, um sentido específico ao que objetiva narrar. Dessa forma, para White essa ação é uma “operação literária e criadora de ficção”. Consultar: O texto histórico como artefato literário (WHITE, 1994, p.104).

7. “O iídiche é falado pelos judeus da Europa Oriental e teve seu apogeu no início do século XX, quando se consolidou sua literatura; sofreu rápido declínio devido ao Holocausto e à adoção do hebraico pelos fundadores do Estado de Israel” (p. 13).

8. É importante considerar neste contexto que para Paul Ricouer o testemunho se configura como elemento muito importante para que o historiador possa resgatar o passado. Conferir: O testemunho (RICOUER, 2007, p.170).

9. O historiador italiano Carlo Ginzburg argumenta que a relação entre narrações ficcionais e narrações históricas “devia ser enfrentada da maneira mais concreta possível”. Ou seja, nota-se que tanto para Hayden White quanto para Carlo Ginzburg as duas formas de narrativas são fundamentais em nossa operação historiográfica. Conferir o livro O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (GINZBURG, 2007, p.12).

10. Consultar: É isto um homem? (LEVI, 2000).

11. Cabe salientarmos que para melhor apreensão acerca deste assunto é preciso consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.554).

12. É interessante notar que os estudos do historiador Dominick LaCapra sobre trauma são bastante sugestivos justamente ao enfoque que ele dá aos traumas de pessoas que testemunharam eventos históricos estarrecedores. Observa-se que as vítimas sentem-se como sua linguagem ficara comprometida devido aos efeitos psicológicos. Pois as testemunhas oculares de eventos limites carregam imagens do ocorrido e que vem a lhe causar tormentos constantes diante das cenas que lhes vem à memória. Conferir: Writing History, Writing Trauma (LACAPRA, 2001).

13. Consultar a obra: A interpretação dos Sonhos (FREUD, 2001, p.581).

14. O historiador Francês Pierre Nora à frente da Associação Liberdade para a História na França tem chamado a atenção acerca da liberdade dos historiadores em representar os crimes cometidos contra a humanidade. Pois essa assertiva vai à contramão de políticas públicas que muitas vezes procuram através de leis e ações políticas salvaguardar o retrato desses acontecimentos à luz de interesses políticos ou de natureza particular. Conferir o livro: Liberté pour l’histoire (NORA, 2008).

15. Vale lembrar que a esta altura do livro, Bernardo Kucinski, ao referir-se à uma casa em Petrópolis ele faz alusão à existência da Casa da Morte em Petrópolis no Rio de Janeiro para onde foram levados os presos políticos e lá, massacrados.

16. A abordagem da historiadora argentina Maria Ines Mudrovcic acerca de testemunhas oculares se faz bastante pertinente nesta resenha no que concerne à abordagem referente à dor psicológica causada no indivíduo que testemunhara a um evento limite. Segundo Mudrovcic, testemunha ocular é todo indivíduo que vê o que acontece diante os seus olhos, portanto, no caso de Jesuína, ela testemunhara os horrores à sua frente. Logo, essas experiências desencadearam com o tempo, trauma. Conferir: El debate em torno a la representación de acontecimientos límites del pasado reciente: alcances del testimonio como fuente (MUDROVCIC, 2007, pp. 127-150).

17. Os estudos do literato Márcio Seligmann-Silva vem a calhar com questões acerca de passado traumáticos assim como os trabalhos da historiadora Maria Ines Mudrovcic. As expressões eventos limites, trauma, literatura, ficção, história e memória são bastante recorrentes nas obras de Seligmann-Silva, dentre elas, consultar: A História como Trauma (SELIGMANN-SILVA, 2000, p.78).

18. Consultar: O Passado que não Passa: A sombra das Ditaduras na Europa do Sul e na América Latina (COSTA; MARTINHO, 2012, p.5).

Referências

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Varlei da Silva1 – Mestrando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista do CNPq. E-mail: silva.varlei@yahoo.com.br


KUCINSKI, Bernardo. K.: relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: SILVA, Varlei da. As lacunas e os silêncios de uma busca que não terminou. Aedos. Porto Alegre, v.9, n.20, p.595-605, ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

História Regional, patrimônio e arquivo | Outras Fronteiras | 2017

Os debates historiográficos sobre História Regional, patrimônio e arquivos nos instigam a repensar várias questões sobre a escrita da história. Para realizar uma brevíssima reflexão sobre as temáticas desta natureza, irei me valer das discussões empreendidas pela micro-história ou microanálise1, enquanto campo metodológico que nos oferece amplas possibilidades a partir do jogo de escalas2.

Jacques Revel observa que a redução de escala e a escolha por uma análise que tem como fio condutor histórias individuais ou de grupos familiares possibilita outra leitura do social3 . Para Giovanni Levi4, uma análise exaustiva da documentação oferece pistas que viabilizam articulações mais amplas, instigando os historiadores a formularem questões que possam transitar neste jogo entre o micro e o macro, não apenas para a construção de uma simples interpretação, mas para formular explicações históricas sobre uma sociedade. Leia Mais

Prácticas docentes de la enseñanza de la historia: Narrativas de experiencias – SALTO (REH)

SALTO, Victor A. (Comp.), Prácticas docentes de la enseñanza de la historia: Narrativas de experiencias. UNCo, 2017. 227p. Resenha de: ALVARELLOS, Pablo. Reseñas de Enseñanza de la Historia, n.15, p.231-236, ago. 2017.

Pablo Alvarellos – UNCo – FaHu – CRUB Acesso apenas pelo link original

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La enseñanza de la historia. Políticcas, tensiones y disputas en torno a la Reforma Universitaria de 1918. Entre el mito del nuevo espíritu y los Dolores que nos qedan – AQUINO; FERREYRA (REH)

AQUINO, Nancy; FERREYRA, Susana (Edición). La enseñanza de la historia. Políticcas, tensiones y disputas en torno a la Reforma Universitaria de 1918. Entre el mito del nuevo espíritu y los Dolores que nos qedan. Córdoba: APEHUN, 201Q8. 226p. Resenha de: HUERGA, Verónica; SENA, María Laura. Reseñas de Enseñanza de la Historia, n.15, p.237-244, ago. 2017.

Verónica Huerga María Laura Sena Acesso apenas pelo link original

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Impérios em Guerra (1911-1923) – GERWARH (RTF)

GERWARH, Robert; MANELA, Erez. Impérios em Guerra (1911-1923). Lisboa: Dom Quixote, 2014. Resenha de: SAMPAIO, Thiago Henrique. Colonialismo e conflitos: a Primeira Guerra revisitada. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 10, n. 2, ago.-dez., 2017.

Ao se pensar Primeira Guerra Mundial, em contrapartida acaba-se por lembrar das consequências do conflito na Europa, mas a participação de outros continentes e as áreas coloniais neste conflito é normalmente esquecida. Estas inquietações motivaram a presente obra Impérios em Guerra (1911-1923), na qual buscou-se um panorama da guerra a partir da perspectiva de Impérios em disputas e não de Estados-Nações.

Essa obra é resultado de duas conferências temáticas sobre o assunto ocorrida em Dublin em 2010 e 2012, a sua elaboração contou com auxílio financeiro do Conselho Europeu de Investigação (CEI). A publicação ocorreu no ano do centenário do início da Primeira Guerra Mundial.

Na introdução, os organizadores apresentaram que a guerra será estudada em um quadro temporal e espacial maior do que o convencional, pois a desmobilização das tropas dos exércitos coloniais, na Ásia e da Europa Centro-Leste não se encerraram ao final do Conflito Mundial. Desta forma, é mostrada a Primeira Guerra como um enfretamento de Impérios globais e multiétnicos e não entre Estados-Nações. Os organizadores definem que Império seria uma entidade política cujas populações e territórios estão dispostos e são administrados de forma hierarquizada em relação ao centro imperial. Assim, “a Grande Guerra foi uma guerra de impérios, travada principalmente por impérios e pela sobrevivência ou expansão de impérios” (p. 50).

No primeiro capítulo, O Império Otomano, Mustafa Aksakal afirmou que o processo de declínio deste território vinha muito antes do conflito mundial. Ao longo dos séculos, os otomanos eram uma experiência de sucesso como instituição multiétnica que foi acabada com a Primeira Guerra Mundial.

Em suas análises, é mostrando o anacronismo existente na administração imperial. Pois era um Estado cheio de dívidas e agrediam as populações não muçulmanas, no que causou nestas o desejo de independência. Na construção deste capítulo, o autor baseou-se em relatos diplomáticos europeus, na qual mostram uma má gestão otomana, e fontes otomanas em que o Império é vítima do imperialismo europeu. A Primeira Guerra Mundial foi tratada pela administração otomana como um conflito ideológico e militar. No primeiro caso, o sultão otomano buscou trata-la como uma Guerra Santa, apelou para os súditos muçulmanos e residentes islâmicos fora do império para participarem da causa em favor da Tríplice Aliança. Na segunda questão, tentou a recuperação de territórios perdidos anteriormente com países europeus.

O Estado Otomano tomou medidas preventivas contra populações cuja lealdade desconfiava, como os armênios e os árabes. No caso armênio, aconteceu o episódio conhecido como Holocausto Armênio que é até hoje denunciado internacional e a Turquia atual não o reconhece. No caso árabe, as privações sofridas por esta população causaram a Revolta Árabe de 1917 que enfraqueceu o Império Otomano nessas localidades. Ao final do conflito, diversas regiões do império são ocupadas e fragmentadas entre as potenciais vencedoras, o processo de substituição do Império Otomano pelo Estado-Nação Turco não foi rápido e nem simples como demonstrado pelo autor ao final do capítulo.

No segundo capítulo, O Império Italiano, Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi mostraram como a Itália, um país recém unificado, se fez ou tentou se fazer presente na Primeira Guerra Mundial. O Estado Italiano construiu a ideia em sua população de uma Terceira Itália, na qual apropriou-se do tempo e da tradição imperial daquele território, rememorando os grandes feitos do Império Romano e dos Estados Italianos que lideraram a cultural ocidental durante o Renascimento.

A ocupação de áreas do Império Otomano, como a Líbia, foi tratada pela sua administração como uma forma de mandar a população mais pobre para terras férteis e estancar a emigração para o continente americano. A invasão a essa localidade sofreu severas críticas tanto por liberais e socialista na Itália.

Em outras colônias italianas, como a Eritreia não houve nenhum indício de rebelião durante a Primeira Guerra Mundial que questionasse a dominação da Itália.

Essa colônia era para os italianos a porta de entrada para a Etiópia região cobiçada pelo país desde o século XIX. No caso da Somália Italiana, a ocupação era precária e dava margens aos potentados locais a participarem da administração.

No capítulo seguinte, O Império Alemão, Heather Jones declarou que no caso da Alemanha existia uma relação complexa que desafia a compreensão cronológica e espacial tradicional do Imperialismo. A ideia de império se baseou em três componentes imperiais distintos que foram: o formado após a unificação da Alemanha em 1871; o território alemão mais os Estados satélites ocupados por ele ao longo da Primeira Guerra; e o os territórios alemães de além-mar.

O projeto de colonização alemã na África foi algo recente, começou na última década de Oitocentos e as primeiras do século XX. Segundo Heather Jones, a crise do Marrocos (1911) foi um ensaio alemão para a Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ansiava por colônias desde a década de 1880 para se transformar em um modelo contemporâneo de Estado-Nação/Império.

A Alemanha expandiu-se na Europa ao longo da disputa. A Primeira Guerra foi usada pelos alemães para defender, expandir e consolidar as fronteiras do Império na Europa. A sua radicalização beligerante ao longo do conflito mundial baseou em suas táticas de repressão aos povos africanos.

Até 1916, todas os seus territórios coloniais foram capturados pelos adversário.

Ao final da guerra, os três componentes imperiais que baseavam seu Império caíram e a Alemanha sofreu consequências graves no período posterior.

No quarto capítulo, A Áustria-Hungria, Peter Haslinger mostrou que o Estado austro-húngaro existia uma solidariedade entre os povos que o compunham, mas era um império debilitado a décadas. A noção de irmandade entre seus povos, sofreu seu primeiro revés no século anterior, em 1867, quando ocorreu o Compromisso Austro- Húngaro despertou o desejo e sentimento de outros povos pela emancipação.

Ao longo da história do império, ele nunca adotou uma política de discriminação para nenhum de seus povos. No entanto, ao longo da Primeira Guerra Mundial, duas medidas causaram efeitos nacionalistas em seu território: Quatorze Pontos de Woodrow Wilson (8 de janeiro de 1918) e a Declaração do Direitos dos Povos da Rússia (15 de novembro de 1917).

Ao final do conflito mundial e com o desmantelamento gradual do Império, aumentasse a responsabilidade das administrações regionais frente a Viena. Entre os dias 8 a 11 de abril de 1918, ocorreu em Roma, o Congresso das Nacionalidades Oprimidas formada pelos diferentes povos que compunham o território que desejavam uma autonomia completa. Em agosto de 1918, a Tchecoslováquia tem reconhecida sua independência, o mesmo passo é seguido por demais áreas do Império entre os meses de outubro e novembro de 1918.

Os meses finais de 1918 confirmaram o fim da monarquia dual existente na Áustria-Hungria. Após a sua dissolução, o problema dos Balcãs, que desencadearam o conflito mundial, continuaram.

No quinto capítulo, O Império Russo, Joshua Sanborn mostrou que ao longo da história do Império Russo ocorreram conquistas modestas e fracassos que ajudaram no desenvolvimento do seu poderio militar. Desde 1881, o império passou por um processo de russificação iniciado pelo czar Alexandre III, após essa medida os movimentos nacionalistas separatistas nunca foram uma ameaça real ao território. Ao iniciar a Primeira Guerra Mundial, os povos que o compunham sofreram tratamento militar diferente conforme a assimilação que as populações haviam passado pela russificação. A administração imperial mudou, o sistema de governança foi substituído por um sistema de governança militar entre os generais que ocuparam territórios no conflito.

Essa transformação desencadeou falhas para o Império, ocorrendo resistências locais, crises econômicas, aumento da inflação e falta de alimentos.

Em 1915, os russos sofreram fortes baixas como parte dos territórios polacos e a Ucrânia. No ano seguinte, ocorreu vitórias irregulares e inconclusivas. O sistema econômico, que já estava debilitado anteriormente, começou a ruir pela escassez de mão de obra. Uma solução encontrada para cobrir essa demanda foi o uso de prisioneiros de guerra em campos de trabalho forçado.

Em junho de 1916, o tratamento militar distinto entre as minorias étnicas foi cancelado, o Conselho de Ministros incorporou populações que eram isentas ao serviço militar para as frentes de conflito. Em finais daquele ano, as fronteiras ocidentais estavam sob ocupação estrangeira ou debaixo de administrações militares incapazes.

Com o início da Revolução Russa, em 1917, o país retirou-se do conflito mundial, para tentar resolver seus problemas internos. A primeira fase da Revolução, iniciada em fevereiro, mostrou uma política liberal fracassada que despertou o nacionalismo em diversas regiões do Império, como a Finlândia, Geórgia e a Ucrânia. Com a passagem do poder para as mãos dos sovietes, em outubro, a possibilidade de independência de outras regiões do império alterou-se, pois a independência de qualquer território transformaria aquela região dependente do Império Alemão.

Ao final da Primeira Guerra, ocorreu o colapso absoluto do Império Russo que adentrava em um conflito civil. Ao final da Guerra Civil Russa, o Kremlin transformouse em um novo centro imperial com novas perspectivas de expansão.

No capítulo seguinte, O Império Francês, Richard S. Fogarty apresentou a visão de uma Grande França que entrou no conflito, essa entidade seria a união da metrópole com as colônias. Nesta perspectiva, os territórios ultramarinos ajudaram a travar uma guerra total, pois foi arrecado 650 milhões de franco de assistência econômica proveniente das áreas do ultramar, 500 mil súditos soldados e 200 mil trabalhadores provindo do além-mar para a indústria da guerra foram mobilizados.

A Primeira Guerra tornou o império rentável para a França, tratando-o como uma entidade única. No decorrer do conflito, o Império era mais importante psicologicamente do que materialmente, pois causava na população que era empregada no conflito um sentimento de unidade para uma causa maior.

Nos últimos dois anos de guerra, ocorreram uma resistência ao recrutamento no ultramar, desta forma empregou-se o trabalho forçado para a indústria de guerra e o convocação obrigatória de soldados. Essa mudança de perspectiva da população deveuse o conflito estar associada a morte ou a perda de capacidade física para os que entraram nela. No período posterior, o significado do Império Francês alterou-se, ganhou importância para a defesa e a vida da nação.

No sétimo capítulo, A África Imperial Britânica, Bill Nasson demonstrou como o Império Britânico se fragmentou em três frentes de conflito: Europa, Ultramar e Oriente Médio e a importância das colônias para defender os interesses da metrópole.

Desta forma, a guerra travada pelo Império Britânico em África era para aumentar seu poderio colonial no continente e legitimar seu domínio do mar.

Para a população colonial em África, ocorreu um atrativo no alistamento militar para a guerra pois era associada a autoridade patriarcal e a identidade guerreira de certas tribos, além da remuneração compensar para os jovens que não tinham nenhum ofício. A Primeira Guerra na África Britânica foi heterogênea em seus territórios: a África do Sul buscou expandir com a incorporação do Sudoeste Alemão; no Sudão houve uma cautela no recrutamento de soldados devido aos chefes locais e medo de insurreições muçulmanas; na Rodésia ocorria interações tensas entre os soldados britânicos e a população local.

No oitavo capítulo, Os domínios, a Irlanda e a Índia, Stephen Garton apresentou as demais entidade políticas que compunham o Império Britânico: a Nova Zelândia, a Austrália, a Índia e a Irlanda. Por ser uma entidade polimórfica, o Império Britânico desenvolveu estratégias distintas para suas diversas regiões que participaram do conflito mundial.

Mesmo sendo uma entidade heterogênea, algumas consequências foram comuns em diversas localidades do império como greve de trabalhadores cansados dos fardos da guerra e medo de rebeliões internas devido minorias alemãs em suas áreas.

Após a Primeira Guerra Mundial, ocorreu maior independência nas entidades políticas que compunham o Império e aconteceu sua expansão, através da incorporação de territórios da Alemanha e do Império Otomano. Desta forma, o conflito mundial não foi apenas da Grã-Bretanha, mas de todo um grupo de entidades soberanas que se consideravam parte de um mesmo ser: o Império Britânico.

No nono capítulo, O Império Português, Filipe Ribeiro Meneses apresentou a importância do peso do colonialismo na história portuguesa diferente dos demais impérios europeus. Desta forma, a República Portuguesa, que foi instaurada em 1910, via necessidade na manutenção do país como uma potência colonial. No entanto, a falta de investimento do Estado e recursos humanos para trabalharem no ultramar causavam um colonialismo fraco comparado com os demais países.

Ao longo da Primeira Guerra Mundial, Portugal mobilizou tropas em suas colônias para garantir a continuidade do seu Império. Ao final do conflito, na Conferência de Paz de Paris as potências europeias tiveram interesses em partes dos territórios lusitanos, mas com um forte apelo diplomático e histórico, Portugal conseguiu manter seus territórios.

Em, O Japão Imperial e a Grande Guerra, Frederick Dickinson evidenciou a importância da Ásia Oriental como local crucial para as disputas imperiais. Até a Primeira Guerra Mundial, ele aumentou seu território imperial através de exploração de áreas do território chinês (1895) e a Guerra contra o Império Russo (1905). Entre os anos de 1914 a 1919, o Japão não aumentou suas áreas, mas manteve uma ação na Sibéria para conter a Revolução Russa.

Após a Primeira Guerra Mundial, os japoneses passaram ao cenário internacional como potência mundial, devido sua atuação no conflito. No entanto, a guerra na Ásia não terminou com o Tratado de Versalhes, lá ela terá sua temporalidade própria diferente da Europa. O estado de beligerância acabou na Ásia após a Conferência de Washington em 1921.

No capítulo, A China e o Império, Xu Guoqi assinalou que durante o conflito libertaram-se os fantasmas da época imperial chinesa. Após a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), os chineses começaram a repensar o papel de sua civilização mundialmente dando início a várias iniciativas nacionalistas em seu território para fortalecimento contra potências rivais. Ao final desse conflito, o Japão tornou-se a potência principal da Ásia Oriental.

Durante a Primeira Guerra Mundial, o Japão buscou garantir o controle da China e lançou um manifesto conhecido como 21 exigências, na qual o presidente chinês cedeu. Essas medidas tiravam a soberania chinesa em várias localidades de seu território e os concedia aos japoneses. Em 1917, a China entrou oficialmente na Primeira Guerra contra os alemães. Buscou-se uma base constitucional de uma política de guerra antes da entrada no conflito, isso ocasionou disputas governamentais internas.

O país contribuiu fortemente com o envio de trabalhadores para o Ocidente para as indústrias da guerra, baseando em seus novos princípios de internacionalização e renovação nacional.

Ao final da guerra, a China via com grandes expectativa a Sociedade das Nações. No entanto, o Tratado de Versalhes foi visto com desapontamento pela população chinesa, essa angústia com o acordou permitiu que durante as décadas de 1920 e 1930 ocorressem uma aproximação da China com a Alemanha. Esse contato possibilitou o Tratado Sino-Germânico, 1921, o primeiro tratado assinado com um país europeu que os chineses foram considerados como iguais. Após o conflito mundial, a China buscou um novo modelo de construção de sua nação, tal possibilidade foi vista na Revolução Bolchevique.

No penúltimo capítulo, O Império dos Estados Unidos, Christopher Capozzola discorreu sobre o período de 1914 a 1924 de como os EUA administraram forças militares de territórios dependentes e soberanos. Os norte-americanos buscaram reafirmar seu poder na América Latina e seus domínios coloniais foram dados maiores autonomia, como o caso da Filipinas.

Com a criação da Força de Patrulha da Esquadra do Atlântico, em 1917, ocorreu a concretização da Doutrina Monroe, ideologia defendida no século anterior. Após a Primeira Guerra Mundial houve um aumento estratégico dos EUA no mundo, na qual buscou uma reorientação em sua política externa.

No último capítulo, Os Impérios na Conferência de Paz de Paris, o autor Leonard V. Smith defendeu que ela legitimou a normalização do Estado-Nação como instituição que sucedeu os impérios multinacionais ao final da guerra. Além disso, é revisitado o papel dos mandatos concedidos pela Liga das Nações a França e a Inglaterra, o ódio alemão pelas cláusulas do Tratado de Versalhes e o bolchevismo como alternativa a alguns lugares no pós-guerra.

A obra crítica a historiografia tradicional da Primeira Guerra Mundial que deixou de lado o Leste Europeu, a Região do Pacífico, as colônias e a América, tratando-os apenas como atores secundários na beligerância. Muitas vezes é esquecida a participação dos súditos imperiais que serviram nas frentes europeias e seus efeitos no mundo colonial como as dificuldade econômicas, as ocupações e os alistamentos forçados.

O final do conflito mundial foi turbulento tanto para os vitoriosos quanto para os derrotados. Ao mesmo tempo, ocorreu um processo de declínio imperial que conduziu ao fim da ordem global vigente e sua substituição por uma ordem assentada no Estado-Nação.

A obra Impérios em Guerra é uma alternativa ímpar a historiografia padrão do conflito mundial, possibilitando aos leitores refletirem sobre alternativas de análises sobre a Primeira Guerra Mundial. Para aqueles que não sabem muito sobre essa beligerância, é uma ótima leitura para ser realizada nestes anos que se aproximam do centenário do final da Grande Guerra.

Thiago Henrique Sampaio – 1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/Assis). Endereço: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual Paulista, Av. Dom Antônio, 2100 – Parque Universitário, Assis – SP. E-mail: thiago.sampaio92@gmail.com.

Passado a limpo: o estado capixaba e o seu mito fundador | José Pontes Schayder

Passado a limpo: o estado capixaba e o seu mito fundador é o mais novo livro do historiador capixaba José Pontes Schayder. Lançado em edição própria, o livro chega para os historiadores locais, intelectuais diletantes e demais interessados na história do Espírito Santo no ano de 2017. A densa obra é resultado de longos anos de pesquisa do autor sobre a história capixaba e revela um pesquisador amadurecido em comparação aos seus livros anteriores. Em formato de ensaio, o livro é um esforço de síntese monumental que se estende por 516 páginas apoiadas em vasta bibliografia documental e também numa erudição historiográfica formidável sobre o que se considera atualmente a história do Espírito Santo.

O objeto principal do livro é refletir e propor como problema o mito fundador da história (e também da historiografia) capixaba. Nesse sentido, o leitor é convidado a conhecer o personagem histórico Vasco Fernandes Coutinho para além de sua tradicional roupagem historiográfica e assim fazer a sua devida crítica. Orbitando a figura do capitão donatário, o leitor é apresentado ao que se sabe de concreto sobre o personagem histórico e como foi a historicidade de sua construção no seio da historiografia capixaba. Schayder nos apresenta uma nova forma de interpretar a história capixaba a partir da chave do mito fundador, que para ele é resultante de um constante e secular esforço de criação narrativa de historiadores em aliança com as tradicionais elites que forjaram o estado capixaba. Leia Mais

História e Ensino de Ciências / Khronos – Revista de História da Ciência / 2017

Na primeira metade do século XX, a institucionalização nos Estados Unidos e na Europa da História das Ciências como disciplina universitária também esteve ligada às suas potencialidades para o ensino de graduação em ciências. Por exemplo, o Journal of Chemical Education relata experiências norteamericanas pioneiras com a Química com este propósito. Um outro exemplo foi o livro Introdução à medicina [1931], de Henry Sigerist, rapidamente traduzido do alemão para outras línguas, que era um manual de iniciação do curso de medicina destinado aos jovens estudantes, mas escrito a partir de uma perspectiva histórica. No prefácio, o autor assim justificava essa nova empreitada: “Existe melhor procedimento para compreender uma ideia que fazer o leitor participar da sua elaboração? ”

Por outro lado, de acordo com a epistemologia genética defendida por Jean Piaget, os estudantes, em seus primeiros contatos com a ciência, utilizam explicações muito semelhantes às utilizadas no passado das ciências para entender determinados fenômenos. Essa espécie de recapitulação histórica no aprendizado das crianças e adolescentes tinha algo a contribuir para o problema observado cada vez com maior intensidade na segunda metade do século XX, de uma queda no nível e aproveitamento no ensino de ciências nas etapas que correspondem ao ensino fundamental e médio. Iniciou-se então uma discussão internacional sobre a possibilidade de se inserir o ensino de História e Filosofia da Ciência no currículo escolar. Defendia-se que isto poderia enriquecer e humanizar o ensino de ciência, e ainda melhorar a formação do professor para o desenvolvimento de uma epistemologia mais eficiente da ciência.

Na década de 1980 criou-se um projeto, vinculado ao departamento de Física de Harvard, para ser usado em escolas secundárias e baseado no uso da História da Ciência. Na Grã-Bretanha, a discussão também se inflamou e a partir da década de 1980 a introdução de História da Ciência no currículo equivalia a 5% do programa total. Desta forma procurou-se desenvolver nos estudantes a relação entre a mudança do pensamento científico através do tempo e sua utilização com os contextos sociais, morais e culturais em que estão inseridos.

Estas propostas também tiveram reflexos no Brasil, embora aqui o campo de História da Ciência ainda fosse muito mais incipiente, especialmente na sua relação com as graduações em ciências, tecnologia ou medicina. Na década de 1970, a FUNBEC em associação com a Editora Abril lançou Os Cientistas, reunindo kits de experiências famosas com biografias dos cientistas envolvidos. No entanto, tanto em termos de ensino não-universitário quanto universitário, muitos livros didáticos de matemática, ciências, física, química e biologia inseriram alguma informação de História da Ciência, mas em geral dentro de uma visão meramente factual e cronológica, um desfile pouco saboroso de nomes de cientistas e datas. Uma das poucas tentativas recentes que romperam essa visão meramente cumulativa foi o Grupo Teknê, oriundo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que apresentou em quatro volumes uma Breve História da Ciência Moderna (Jorge Zahar Editora).

Uma constatação bastante óbvia é que há um abismo na formação de professores separando ciências naturais de ciências humanas e que não permite a interdisciplinaridade necessária e condizente com o alvo de integração do conhecimento em todos os níveis. A edição deste número 4 da Khronos traz um dossiê que focaliza a temática História e Ensino de Ciências com seis artigos de especialistas que refletem sobre suas experiências práticas no Brasil. Esperamos que esta coletânea contribua para um aprofundamento do assunto e para uma sistematização de possíveis soluções aos problemas colocados acima.

Alguns artigos complementam a presente publicação, sendo que três deles tratam de aspectos diversos da história brasileira da saúde pública e um último artigo aborda a cientificidade institucional de uma área das ciências humanas.

Fechando este número, há uma tradução de capítulo da obra fundamental do biogeoquímico soviético Vladimir Vernadsky, O pensamento científico como fenômeno planetário. Escrito no final da Segunda Guerra Mundial e pouco antes do seu falecimento do seu autor, esse tratado de epistemologia é ainda pouco conhecido entre os leitores de língua portuguesa.

Gostaria de deixar registrado o apoio da editoria competente realizada por Lauro Fabiano, Ana Torrejais e Raiany Oliveira, indispensável para colocar Khronos em sua nova fase, que tem o propósito de manter a regularidade de produção.

Gildo Magalhães – Editor


MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.4, ago., 2017. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Rumos da História. Vitória, v.1, n.6, ago./dez. 2017.

Expediente

Artigos

 

Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.6, n.17, jan./jul. 2017.

Expediente

Editorial/Apresentação

Artigos

Entrevistas

Publicado: 2017-07-31

Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.17, n.3[46], 2017.

Julho/Setembro

Editorial

Artigos

Publicado: 2017-07-24

Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 18, n.2, 2017.

Artigos

Publicado: 2017-07-24

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.3, n.1, 2014.

 

Corpo, gênero e sexualidade no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2017

Corpo – gênero – sexualidade no Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2017

O corpo é a expressão material e biológica da existência humana. Mas haveria um corpo material preexistente à experiência cultural? Na tradição ocidental há muito tempo cristalizou-se a ideia essencialista de um binarismo corpo/alma, corpo/espírito, corpo/mente, natureza/cultura. Entretanto, é impossível pensar o ser humano separado da cultura. Nesse sentido, o corpo não pode ser separado da cultura, em uma preexistência, como algo já dado em que se inscreve a experiência social e cultural. Portanto, o corpo é um produto histórico e cultural, e também produtor de cultura, status, identidades e sexualidades.

Se admitirmos que o corpo seja produto e produtor de identidades, então as identidades de gênero são mesmo performances sociais contínuas, nem verdadeiras ou falsas, nem reais ou aparentes, nem originais ou derivadas. Por conseguinte, as sexualidades também constituem disposições, representações e práticas voltadas para a experiência do desejo que contribuem na formação das identidades de gênero e de outra ordem. Por outro lado, a sexualidade também pode ser vista como um dispositivo normativo para controle da dissipação das energias, para o estabelecimento de normas e valores, enfim, para o controle e a docilidade dos corpos.

O trinômio corpo, gênero e sexualidade como produto e produtor das experiências culturais, históricas, políticas e sociais, tem produzido relações de poder em que o masculinismo e a heterossexualidade aparecem como hegemônicos e naturalizados, muitas vezes, marginalizando, excluindo, perseguindo e silenciando outras formas identidárias de gênero e de sexualidade.

Por essas razões, foi organizado para este número da Revista Brasileira do Caribe, um dossiê intitulado “Corpo, gênero e sexualidade no Caribe”, com o objetivo de debater as experiências históricas, artísticas, políticas e sociais dessas três categorias no Caribe. Como corpo, gênero e sexualidade se articulam no Caribe para formar identidades, relações de poder, desejo? O dossiê se inicia com o artigo “El amor en tiempos de Sidentidades: eros y thanatos en las “autohistorias” de Pedro Lemebel y Reinaldo Arenas” de Massimiliano Carta. Nesse artigo, Carta analisa como a obra de Reinaldo Arenas e Pedro Lemebel, no contexto sanitarista da pandemia da AIDS, nos EUA do final do século passado. O texto aborda a questão do amor, da morte, das identidades latino-americanas e LGBTQI (Lésbica, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queers e Intersexuais) na formação de identidades, mais especificamente as sidentidades proposta por Llamas.

O segundo artigo, “La metáfora de la libertad: el discurso del cuerpo en la literatura de Zoé Valdés” de Brigida Pastor trata de uma análise do romance La nada cotidiana da escritora cubana exilada em Paris, Zoé Valdés. Pastor aborda em seu artigo o uso da linguagem do corpo utilizada pela escritora Zoé Valdés como instrumento e “estratégia feminina/feminista” de resistência da mulher a qualquer forma de repressão.

O terceiro artigo, “Big Bang o el uso de los cuerpos en la poesía de Severo Sarduy”, de Denise León, trata da obra Big Bang de Severo Sarduy, que explora em sua poesia a divulgação científica, restos literários em uma linguagem minimalista, bem como o papel dos corpos no universo do desejo erótico e sua ambígua trajetória, onde o importante é ter algo ou alguém a quem desejar. São corpos que, nas palavras de León, se quebram sem limites e se abrem em infinita expansão.

No artigo “Corpo e negritude no discurso do rap cubano e do rap brasileiro: diálogos (d)e resistência”, Yanelys Abreu Babi analisa, por meio da análise de discurso de Pêcheux, como as condições de produção, formação ideológica e formação discursiva são usadas na construção de sentidos em torno do corpo negro. Para tanto, o artigo analisa seis letras de rap, compostas por rappers negros de Havana e São Paulo no período entre 2000-2012.

O artigo de Clara Heibron trata da representação da mulher Mokaná. A autora reúne na sua análise uma documentação variada constituída por crônicas, imagens do artesanato local que evidencia o constituir feminino na comunidade Mokaná, especialmente, da mulher mohana, a mulher guerreira.

A seção Outros Artigos abre-se com o artigo “Legal and Extra-Legal Measures of Labor Exploitation: Work, Workers and Socio-Racial Control in Spanish Colonial Puerto Rico, c. 1500-1850” de Jorge Chinea. O artigo analisa e debate a conexão entre trabalho, regimes de trabalho e o desenvolvimento da colônia espanhola de Porto Rico de 1500 até a metade do século XIX, em que os exploradores buscaram extrair o máximo de trabalho da população alvo ao mínimo custo possível para reduzir despesas operacionais e maximizar os lucros em seus empreendimentos de mineração, criação de gado e agricultura, bem como controlar essa população.

O artigo “Convenios laborales de las personas de origen africano y afrodescendientes en el valle de Toluca, siglos XVI y XVII”, de Georgina Flores, Maria Guadalupe Zárate Barrios e Brenda Jaqueline Montes de Oca, também trata da temática do trabalho. Com base na documentação histórica do Arquivo Geral de Notarías do Estado do México as autoras debatem parte da história laboral de homens e mulheres africanos e afrodescendentes que habitaram o vale de Toluca durante o período colonial. O artigo apresenta a forma na qual os escravos alcançaram a liberdade, as atividades realizadas, as relações sociais e econômicas entre os grupos étnicos, os contratos laborais pactuados entre indivíduos de diferentes qualidades etc.

Por sua vez, no seu artigo, “A Revolução Cubana e o perfil ideológico do Movimento 26 de Julho”, Rafael Saddi analisa o perfil ideológico do Movimento 26 de Julho na luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista e algumas de suas consequências para a Revolução Cubana após a tomada do poder.

Fechando a seção de outros artigos, “Bob Marley: memórias, narrativas e paradoxos de um mito polissêmico”, de Danilo Rabelo, debate por meio da biografia de Marley as várias representações e discursos elaborados sobre Bob Marley durante sua vida e após a sua morte, estabelecendo significados, apropriações, estratégias políticas e interesses em jogo, bem como as contradições e paradoxos da sociedade jamaicana quanto ao uso das imagens elaboradas sobre o cantor.

Por último, a resenha sobre a obra de Elzbieta Sklodowska “Invento, luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015)” de Marcos Antonio da Silva. O autor nos convida a ler essa importante obra sobre a História do tempo presente em Cuba e as grandes mudanças do fim de século após o desaparecimento do campo socialista e os reflexos dessas transformações no cenário social e cultural da ilha caribenha.

Na oportunidade, agradecemos aos autores e autoras que contribuíram para a publicação deste fascículo e desejamos aos nossos leitores e leitoras uma ótima e proveitosa leitura.

Danilo Rabelo Isabel Ibarra


RABELO, Danilo; IBARRA, Isabel. Corpo, gênero e sexualidade no Caribe. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.18, n.35, jul./dez. 2017. Acessar publicação original. [IF].

Acessar dossiê

Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.6, n.17, jan./jul. Especial, 2017.

Dossiê América Latina: (neo) colonização e (neo) descolonização, séculos XIX-XXI

Expediente

Editorial/Apresentação

  • Editorial
  • Alba Cristina Santos Salatino, Lidiane Elizabete Friderichs
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Apresentação do Dossiê

Dossiê

Publicado: 2017-07-13

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.19, 2017.

Artigos

Resenhas

Publicado: 2017-07-07

Mnemosine. Campina Grande, v.8, n.2, 2017.

História e ensino de história

História e ensino de História

APRESENTAÇÃO ……………………………………………………………………………. 5

ARTIGOS DO DOSSIÊ

  • “REFÚGIO DAS CRIANÇAS”: OS INSTITUTOS DE AMPARO AS CRIANÇAS DESVALIDAS E A ADESTRAÇÃO DE CORPO NA PARAÍBA (1889-1930)
  • Azemar Jr., Edna Araújo e Joedna Menezes ……………………………………………. 8
  • O ENSINO PROFISSIONAL NO RIO GRANDE DO NORTE: UMA ANÁLISE DAS AÇÕES DO ESTADO ENTRE OS ANOS DE 1908 E 1957
  • Karla Silva e Olívia Medeiros Neto… ……………………………………………………. 21
  • INDUSTRIALIZAÇÃO E POLÍTICA DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL NO BRASIL DO SÉCULO XX
  • Karla Queiroz e Francisco Souza …………………………………………………………. 32
  • O OLHAR E O SENTIR: AULA DE CAMPO COMO METODOLOGIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM
  • Ana Claudia Costa e Kyara Vieira………………………………………………………… 50
  • A PORTA GIRATÓRIA DA DIFERENÇA: “QUEM DE NÓS NÃO FOI AINDA AMALDIÇOADO(A) PELA VÍBORA”?
  • Eronides Câmara de Araújo ………………………………………………………………. 65
  • ENTRE VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS: O PIBID DE HISTÓRIA DO CERES/UFRN E A ESCOLA ESTADUAL MONSENHOR WALFREDO GURGEL (CAICÓ-RN 2012-2014)
  • Ana Carla Trindade e Jailma Lima ……………………………………………………….. 76
  • PEDAGOGIA DA VIRILIDADE: MODELOS E AVESSOS DO HOMEM TRABALHADOR EM A BAGACEIRA (1928)
  • Matheus Zica e Carlos Martins……………………………………………………………. 88
  • RECEITAS E CONSELHOS: “O LIVRO DAS NOIVAS” PEDAGOGIZANDO A FAMÍLIA
  • Regina Coelli Gomes Nascimento ………………………………………………………. 111
  • A FUNÇÃO DE DIREÇÃO ESCOLAR NA LEGISLAÇÃO EDUCACIONAL PIAUIENSE (1910-1947)
  • Mariane Silva e Antônio Lopes …………………………………………………………. 122
  • BEM-ESTAR/MAL-ESTAR DOCENTE: A PERSPECTIVA DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BÁSICA
  • Gabriela Alves Monteiro …………………………………………………………………. 140
  • O PATRONATO AGRÍCOLA DE BANANEIRAS: UMA EXPERIÊNCIA DE ATENDIMENTO E EDUCAÇÃO PARA A INFÂNCIA POBRE DA PARAÍBA (1924-1934)
  • Suelly Cinthya Costa dos Santos ………………………………………………………. 157

ARTIGOS DE FLUXO

  • A INFLUÊNCIA DO CONCEITO DE AGENCIAMENTO DE E. P. THOMPSON NOS ESTUDOS SOBRE HISTÓRIA INDÍGENA
  • Lana Camila Gomes de Araújo ………………………………………………………… 174
  • ENTRE DESVIOS E TÁTICAS: COMO OS POPULARES VIVENCIARAM A CIDADE DE NATAL EM PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DO INÍCIO DO SÉCULO XX
  • Gabriela Fernandes de Siqueira ………………………………………………………… 197
  • HISTÓRIA AMBIENTAL URBANA, ZOONOSES E DIREITO DOS ANIMAIS: UM ESTUDO DE CASO EM CAMPINA GRANDE (2004-2017)
  • Edilene Santos e José Otávio Aguiar ………………………………………………….. 214

Publicado: 2017-07-03

Revista de Ensino de Geografia. Uberlândia, v. 8, n. 15, jul./dez. 2017.

APRESENTAÇÃO

Editoria

ARTIGOS

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS

Intelectuais, Cultura e Modernismo / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2017

A temática deste dossiê nasceu de um projeto coletivo fruto das discussões de um Seminário entre docentes e discentes do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, em colaboração com a Universidade Estadual de Goiás. O nosso objetivo foi o de propor reflexões em torno da figura do intelectual enquanto mediador cultural, destacando-se o seu papel na formação de importantes grupos literários no contexto das correntes modernistas brasileiras das primeiras décadas do século XX. Nessa perspectiva, buscamos ainda problematizar a categoria de intelectual e os seus desdobramentos no conjunto dos debates da História Cultural e das relações entre História, Literatura e Cinema. Somos gratos à acolhida da nossa proposta pelos editores da Revista Eletrônica História em Reflexão, os quais viabilizaram um espaço privilegiado para a publicação dos nossos textos.

Diante da aguda crise política vigente no país, evidenciada por uma polarização radical entre discursos tidos como de direita ou de esquerda e o avanço de um pensamento e práticas conservadoras, faz-se importante os debates em torno do papel dos intelectuais e dos meios de mediação cultural. A coletânea organizada por Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen (2016), Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação política, traz uma importante contribuição acerca dessas questões e novos olhares no interior do debate historiográfico. Numa acepção mais ampla contemplada pelas autoras, os intelectuais são

[…] homens da produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social. Sendo assim, tais sujeitos podem e devem ser tratados como atores estratégicos nas áreas da cultura e da política que se entrelaçam, não sem tensões, mas com distinções, ainda que historicamente ocupem posição de reconhecimento variável na vida social (2016, p. 10).

Uma dimensão importante no que concerne ao conceito de mediação cultural é o seu significado para a História Cultural, visto que a mesma busca compreender as operações de apreensão da realidade social a partir dos sentidos atribuídos pelos sujeitos. Nessa perspectiva, analisar as práticas de mediação torna-se estratégico para o entendimento das dinâmicas de circulação, comunicação e apropriação dos bens culturais, pois as mesmas envolvem mudanças de sentidos nas intenções de seus produtores (GOMES; HANSEN, 2016, pp.12-13).

A categoria de intelectual mediador permite ampliar a noção de redes de atuação desses sujeitos, pois tais homens “duplos”, segundo definição de Christophe Charle, assumem o papel de intermediadores, ao circularem entre os produtores da cultura e o público. Os mesmos servem como meio de passagem (passeurs) entre a cultura popular e a erudita, frequentemente analisadas como separadas, estabelecendo um elo fundamental na disseminação da novidade cultural (CHARLE, 1992, pp. 72-75). Algumas ocupações são emblemáticas nesse tipo de mediação, permitindo a aproximação entre os diferentes públicos e os bens culturais, tais como: tradutores, educadores e críticos de música, literatura, cinema, televisão, teatro e artes plásticas.

À luz disso, o conjunto de artigos selecionados para o dossiê contempla textos de docente e discentes de pós-graduação em História (mestrandos e doutorandos), com vistas a ampliar as possibilidades de debate acadêmico e dar maior visibilidade às pesquisas em andamento. Os três primeiros estabelecem uma discussão que amplia a reflexão em torno dos intelectuais mediadores, assim como das práticas de mediação cultural, e os dois últimos colocam em foco as relações entre História, Literatura, Cinema e Periódicos.

O texto de José Fábio Silva, Crítica literária e mediação cultural: Nestor Vítor e o seu papel na divulgação da obra de Cruz e Sousa, analisa o papel exercido pela crítica literária, com destaque para a produção de Nestor Vítor, na difusão e canonização da obra do poeta Cruz e Sousa na virada do século XIX para o século XX. Num primeiro momento, o autor recupera a trajetória intelectual do crítico literário e a sua atuação junto ao grupo de escritores simbolistas brasileiros. Dedica-se ainda a evidenciar a atuação de Vítor como mediador cultural, pois como crítico literário dedicou-se a publicar e disseminar a obra de Cruz e Sousa. Nesse percurso, destacou-se as querelas no meio literário em torno da recepção e rejeições à obra do poeta. Por último, recuperou-se o percurso de consolidação de Cruz e Sousa no cânone literário brasileiro, ao lado do legado de Vítor nesse processo e no campo da crítica literária.

Alex Fernandes Borges, no artigo O Historiador como Intelectual Mediador da Cultura, estabelece uma análise teórica acerca da possibilidade de se qualificar o historiador como um intelectual mediador, com base no conceito proposto pelos estudos de mediação cultural elaborados por Jesús Martín-Barbero e sistematizado no estudo de Ângela de Castro Gomes e Patrícia Hansen. Borges buscou pensar a figura do historiador – como um tipo ideal – à luz das concepções formuladas na teoria de Jörn Rüsen, problematizando-o como mediador cultural, bem como caracterizando-o como um criador de conteúdos e, também, um divulgador, um tradutor capaz de construir sínteses entre as carências de orientação difusas no campo da experiência política, sociocultural e econômica. Dessa maneira, o autor chega à ideia segundo a qual os historiadores propõem narrativas que permitem dar sentido ao agir e contribuem para a formação de identidades, utilizando-se de conhecimentos de sua área e dialogando interdisciplinarmente com todos os campos das chamadas Ciências Humanas, mediando ideais e projetos políticos.

O artigo de Karla de Souza Ferreira, Mediador Cultural ou Antropólogo do Mal: Bruce Albert e o caso de “A Queda do Céu”, propõe uma análise crítica sobre o fragmento “Postscriptum, quando eu é um outro (e vice-versa)”, apresentado na obra A Queda do céu: palavras de um xamã yanomami; livro pensado por um xamã yanomami, Davi Kopenawa, e produzido pelo etnólogo francês Bruce Albert. Souza Ferreira reflete acerca do processo de produção do livro, no qual dois universos culturais se encontram. Sob este prisma, apresenta-se uma produção literária indígena do povo Yanomami, cuja importância para a construção da História Indígena é fundamental, porém, trata-se de um trabalho produzido em coautoria entre personagens com diferentes formações culturais. Por esse motivo, a autora questiona o papel de Albert no processo de elaboração do livro – seria o mesmo um mediador cultural ou um “antropólogo do mal”? – visando estabelecer um cotejamento e reflexões acerca do ato tradutório e suas implicações, destacando-se os desafios e contribuições apresentadas nesse processo.

Por seu turno, Edson Mendes de Almeida no texto Um Tico para formar adultos estabelece uma discussão acerca da revista Tico-Tico, fundada em 1905 no Rio de Janeiro, realçando o seu papel no tocante à formação e educação do público infantil. A mesma era publicada como um Suplemento na revista O Malho, trazendo em seu conteúdo histórias em quadrinhos, lendas, contos, galeria de fotos dos leitores, além das seções do Dr. Sabetudo e das Lições do Vovô. A publicação foi pioneira no âmbito de se direcionar às crianças, enquanto veículo de mediação cultural, com a proposta de estimular o gosto pelo conhecimento e pela leitura. Em vista disso, Almeida selecionou o período 1920 a 1922 do periódico, com vistas a promover um diálogo com o movimento modernista referenciado na Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922.

Já no artigo intitulado Cinema Novo e sua relação com o Modernismo literário: reflexões sobre aspectos similares, o historiador Julierme Morais propõe uma discussão acerca da relação entre as matrizes culturais que aproximaram os movimentos do Cinema Novo e o Modernismo literário brasileiro, buscando explicitar como o movimento cinematográfico, evidenciado nos anos de 1960, apresenta algumas características similares ao movimento literário, cujo marco construiu-se em torno da Semana de Arte Moderna de 1922. Segundo Morais, a aproximação entre Modernismo e o Cinema Novo pode ser pensada a partir dos questionamentos e desconstrução da linguagem artística tradicional, conduzidos pelo desejo da invenção e de discutir o brasileiro. Esses movimentos buscavam, inspirados nas vanguardas europeias de suas respectivas épocas, uma autonomia no ato da criação, assim como a possibilidade de inventar um instrumental capaz de forjar uma expressão artística que pudesse ser considerada nacional.

Por fim, cabe ressaltar que somos gratos à acolhida da nossa proposta pelos editores da Revista Eletrônica História em Reflexão, os quais viabilizaram um espaço privilegiado para a publicação dos nossos textos. Nesta medida, esperamos que os temas analisados neste dossiê possam contribuir para a edição deste volume do periódico, que constitui um importante espaço de divulgação e diálogo acadêmico, com vistas a fomentar a produção do conhecimento histórico.

Referências

CHARLE, Cristophe. Le tempsdeshommes doublés. Revue d’ HistoireModerne et Contemporaine, n 39, pp. 73-85, jan. / mars. 1992. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2017.

GOMES, Ângela de C; HANSEN, Patrícia S. Apresentação. In: _______ (org). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 7-37.

Luciana Lilian de Miranda – Professora Doutora (PPGH-UFG)

Julierme Morais – Professora Doutora (UEG).

Goiânia-Morrinhos, GO, setembro de 2017.


MIRANDA, Luciana Lilian de; MORAIS, Julierme. [Intelectuais, Cultura e Modernismo]. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 11, n. 21, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Em nome da ordem e do progresso: educação, trabalho e infância no Brasil / Revista de História e Historiografia da Educação / 2017

Como construir uma nação?

Em agosto de 1883, o livro “O abolicionismo” tornou público o diagnóstico elaborado pelo estadista e intelectual Joaquim Nabuco a respeito das mazelas da sociedade brasileira. Defensor de inúmeras reformas, Joaquim Nabuco considerava o abolicionismo, ou seja, a necessidade de eliminar a escravidão da constituição do povo brasileiro, como o mais premente antídoto aos infortúnios nacionais e como uma medida que deveria preceder a todas as demais. Raiz de todos os males e vícios da sociedade e de suas instituições, eliminá-la colocava fim à excepcionalidade negativa do país frente ao mundo civilizado; mundo ao qual o Brasil e grande parte de suas gentes desejava participar e integrar. Mais do que isto, o abolicionismo abria possibilidade para a fundação de uma nova nação e para o soerguimento de um povo imbuído de valores civilizados e mais adaptado às mudanças políticas prenunciadas ao final daquele século. Para o autor, o vício da escravidão inutilizava a ambos, senhores e escravos, para uma vida livre. Daí suas proposições em torno da necessidade de operar profundas reformas, reformas que visavam constituir um “povo forte, inteligente, patriota e livre”.

A instrução pública, a associação de imprensa, a imigração espontânea, a religião purificada e a elaboração de um novo ideal de Estado apresentavam-se como veículos e como estratégias para a produção de um sentimento de responsabilidade cívica entre homens e mulheres; suprimindo, definitivamente, as marcas que a escravidão havia impresso na constituição física, mental e social do país e de seus habitantes. Note-se que estas reformas de cunho individual, ou seja, este aprimoramento de corpos e almas possuía, aos olhos de seu defensor, uma importância muito mais significativa do que as mudanças promovidas pela força das leis. Nos últimos parágrafos de “O abolicionismo”, Joaquim Nabuco conclamava àqueles que possuíam “força, coragem e honradez” para utilizarem-se dos jornais, dos livros, das associações, das escolas e da palavra na difusão daqueles princípios próprios às “nações modernas, fortes, felizes e respeitadas” (NABUCO, 2000, p. 172).

Mais de 100 anos nos separam das preocupações de Joaquim Nabuco sobre o futuro da nação e do povo brasileiro. Contudo, deparamo-nos, ainda hoje, com o desafio de responder à sua questão: como construir uma nação? Ou a uma outra questão da mesma grandeza e importância: qual cidadão é preciso formar? Nesse sentido, discutir historicamente as relações existentes entre a infância, a educação e o trabalho torna-se um exercício vital para a compreensão dos processos que marcaram de forma indelével a construção dessa nação, de dimensões continentais, que é o Brasil. E não há dúvidas de que nessas relações muitas escolhas foram realizadas; escolhas que, de modo geral, culminaram com a valorização de um modelo de trabalhador e cidadão, lapidado conforme os anseios de uma elite dirigente que estava empenhada em manter a Ordem e em alcançar o Progresso.

As dinâmicas próprias à vida social, no entanto, nos lançam no universo da história “a contrapelo”, ou seja, fazem-nos reconhecer que homens e mulheres experienciam as situações cotidianas e constroem uma compreensão particular a respeito delas, porque além de se apropriarem das referências produzidas na coletividade possuem expectativas, necessidades e interesses que lhes são próprios. Neste movimento de construção, homens e mulheres, mesmo ainda quando crianças, reelaboram e reinterpretam os elementos que compõem a cultura e a vida social. Elaboram, assim, “uma política da vida cotidiana que tem seu centro na utilização estratégica das regras sociais” (LEVI, 1989 apud REVEL, 1998, p. 22). O que os artigos reunidos nesse dossiê demonstram é que na articulação entre infância, educação e trabalho, pessoas e grupos sociais distintos construíram visões também distintas de cidadania e de trabalho e buscaram caminhos nem sempre “retos” para concretizá-las.[1] As possibilidades de resistência – e porque não de “acomodação” – às estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes propiciam, a nosso ver, uma visão matizada dos poderes institucionalizados em uma sociedade. Analisar como estes poderes submeteram-se às lógicas sociais particulares de indivíduos e grupos sociais enriquece, portanto, a compreensão das múltiplas facetas de um dado momento histórico.

Lançar luzes sobre essas dinâmicas sociais é a tarefa a que se propõe o grupo de autores deste dossiê. A partir de diferentes projetos de pesquisa, desenvolvidos por professores vinculados a importantes grupos de pesquisa do campo da Educação, bem como da História, foram descobertas e reunidas aqui diferentes histórias e personagens; narrativas que ao serem entrecruzadas permitem identificar e reconstituir algumas das muitas facetas das dinâmicas sociais e históricas, nas quais estiveram imersos homens e mulheres, velhos, jovens e, especialmente, crianças. Importa destacar a originalidade dos artigos reunidos nesse dossiê, assim como, a diversidade de fontes históricas as quais os autores recorreram no intuito de trazer à tona as vivências dos atores sociais em foco. Finalmente, esperamos contribuir para que este campo de investigação, ainda incipiente, se consolide entre os pesquisadores da Educação e da História.

Nota

1. Caminho “reto”, da forma como propusemos aqui, é uma analogia ao texto bíblico. Não é demais lembrar, a relação das intenções e ações descritas neste livro com o provérbio: “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele” (Provérbios, cap. 22, vers. 6).

Fabiana da Silva Viana – Professora Doutora. Universidade do Estado de Minas Gerais.

Marileide Lázara Cassoli – Professora Doutora. Universidade do Estado de Minas Gerais.

Organizadoras do dossiê temático


VIANA, Fabiana da Silva; CASSOLI, Marileide Lázara. Apresentação. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 1, n. especial, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Ensino de História / Crítica Histórica / 2017

As pesquisas acerca do ensino de história no Brasil têm ganhado significativa relevância nas últimas décadas, adquirindo contornos importantes a partir da constituição de linhas de pesquisas dentro dos programas de pós-graduação em educação ou em história. Igualmente, tem-se a mesma percepção ao nos reportarmos à realização de eventos nacionais das respectivas áreas, como os vários simpósios temáticos que têm ocorrido no contexto dos Encontros promovidos pela ANPUH regional e nacional, o Encontro Nacional dos Pesquisadores em Ensino de História e o Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História.

Notadamente, esta produção e suas interfaces tem permitido a constatação de um campo de estudos em ebulição ao evidenciar produção significativa do ponto de vista teórico-prático face às aproximações e distanciamentos entre o que se produz nos centros de pesquisa em história e / ou em educação e o que se produz nas salas de aulas da educação básica pelos professores e estudantes.

Apesar dessa constatação, a história, dentre as disciplinas escolares, é a que tem sofrido os mais fortes ataques em nosso tempo presente, seja no desenvolvimento de ações daquilo que se reconhece como Escola Sem Partido ou mesmo no contexto das reformas educacionais em curso no Brasil contemporâneo, materializadas na polêmica reforma do ensino médio e nas diferentes versões da Base Nacional Comum Curricular.

Este contexto aparentemente contraditório: de um lado o fortalecimento do campo do ensino de história, de outro sua desconsideração oriunda das políticas públicas transfiguradas em reformas curriculares em andamento no país, tende a nos aproximar destas produções recentes no sentido de reafirmarmos a sua relevância do ponto de vista social, cultural e político assim como a ressignificação do ensino de história para os estudantes da educação básica enquanto conhecimento histórico que pretende ampliar o campo de possibilidades de formação destes agentes sociais enquanto sujeitos críticos e reflexivos não apenas nos espaços escolares, mas também fora destes! Notadamente, estes discursos já foram fatidicamente anunciados, entretanto, ainda é incipiente a sua materialização nas práticas cotidianas de estudantes e professores no âmbito das salas de aulas da educação básica.

Em face das considerações iniciais deste escrito, eis um dos objetivos deste Dossiê trazido por esta edição da Revista Crítica Histórica sobre o ensino de história e algumas de suas interfaces no Brasil.

Em seu conjunto, os textos aqui apresentados pelos autores percorrem um leque interessante de preocupações. A leitura deste Dossiê permite ter uma noção acerca das reformas curriculares em curso no país por meio de dois de seus artigos, adentrar às especificidades das práticas escolares em outros dois, perguntar-se sobre o ensino de história em espaços não escolares, aproximar-se de questões relativas à aprendizagem de adolescentes, jovens e adultos em relação ao tempo histórico e, por último, num texto instigante, pensar a formação cultural e histórica de crianças num tempo outro.

Adentrando ao Dossiê, deparamo-nos com o artigo de Giovani José da Silva e Marinelma Costa Meireles cujo debate descortina as tensões concernentes à primeira versão da Base Nacional Comum Curricular. Para além das discussões e escolhas que essa versão preliminar da BNCC implicou, o artigo torna-se instigante por ser de autoria de um dos profissionais envolvidos no desenvolver dos debates e, sobretudo, na redação da primeira versão do referido documento que pretendia ser referência sobre o ensino de história na educação básica no país. Por outro viés, o escrito também tem um caráter documental de registro dos processos políticos de elaboração de uma reforma educacional curricular.

Na sequência, o artigo de Geraldo Magela Neto, também sobre a primeira versão da BNCC, faz uma incursão em outra perspectiva. Procura recuperar o debate público que essa versão preliminar propiciou na sociedade, extrapolando os espaços acadêmicos e ganhando ímpeto na imprensa escrita e televisiva. O autor denuncia, ainda, a ausência de um interlocutor importante na constituição do referido documento: o professor que, ao seu ver, teoricamente seria o responsável por sua implementação no currículo nos espaços escolares.

Ao recuperar a sala de aula como lugar de produção do conhecimento histórico, Lídia Baumgarten, trabalhando com o conceito de consciência histórica, discute em seu artigo resultados de uma pesquisa realizada com estudantes do final do Ensino Fundamental e início do Ensino Médio ao desvelar qual a “compreensão sobre o ensino de História, suas relações entre passado e presente, a relação com a vida cotidiana e a formação da consciência histórica de alunos de duas turmas da educação básica do município de Assis”, interior paulista.

Igualmente, na perspectiva de diálogos com jovens e adolescentes que frequentam a escola brasileira, Adriano da Silva “apresenta uma pesquisa sobre o ensino e aprendizagem da história escolar e tem como finalidade investigar o entendimento dos estudantes do ensino médio sobre as noções de tempo e de temporalidades principalmente em relação ao tempo histórico e os usos do passado”.

Alargando as possibilidades de pensar a aprendizagem histórica para além das salas de aula e ampliando a perspectiva de pensar a formação em ambiente escolar, Júlio Cesar Costa discute em seu artigo o ensino de história no contexto de práticas educativas em museus. Além de alterar a perspectiva do ensino de história e focar a formação continuada de professores, o artigo possibilita refletir acerca das imbricações entre história e memória.

Ao finalizar a travessia pelo presente Dossiê, o leitor encontrará no escrito de Andrea Giordanna Araújo da Silva, intitulado “As narrativas radiofônicas de Walter Benjamin: ensino de história cultural e formação política” uma reflexão inicial dos conteúdos pedagógicos manifestos nas narrativas que compõem a obra “A Hora das Crianças: narrativas radiofônicas de Walter Benjamin”. Nota-se neste artigo uma interessante reflexão sobre as possibilidades de se pensar questões como tempo e história, cultura e política com e para as crianças. Um texto que trata dos anos 30 do século XX na Alemanha às portas do totalitarismo, mas possibilita instigantes reflexões sobre o nosso tempo presente, tempo em que a escola foi universalizada e as crianças brasileiras a frequentam em sua maioria. Qual o ensino de história que deve ser destinado a essas infâncias?

Completa o Dossiê duas resenhas sobre importantes livros do campo do ensino de história. A primeira delas, elaborada por Cibele de Camargo Lima e André Luiz Lírio da Cunha, trata do livro Professores de História. Entre Saberes e Práticas, de Ana Maria Monteiro. A segunda, escrita por Júlio César Machado, apresenta de forma instigante o livro intitulado Ensino de História, da Coleção ideias em Ação, obra que tem como uma das organizadoras Kátia Maria Abud.

Enfim, acima uma das possibilidades de leitura que este conjunto de textos possibilita. Certamente os leitores e leitoras é que lhes darão maior sentido e significado. Leituras críticas poderão aprofundar o que aqui buscamos proporcionar, juntos com as autoras e os autores deste Dossiê.

Impossível fechar sem aludir ao tempo presente no qual o quadro político e social no Brasil se esgarça e suas mazelas são publicamente expostas. Conflituoso momento político esse em que vivemos e escrevemos, no entanto, tão propício para que professores- pesquisadores e historiadores se debrucem sobre as tensões históricas e políticas do tempo presente para que exerçam e garantam o seu relevante papel social de não permitir que a memória se apague e que não seja esquecido o quanto árduo foi construir a tênue democracia em que vivemos.

Constitui-se esta, numa outra lição que cabe ao ensino de história e aos seus responsáveis, professores e formadores de professores, não perderem de vista buscando avançar para além do saber de cor no intuito de aprendê-la.

Antônio Alves Bezerra – Professor Doutor (ICHCA / UFAL)

João do Prado Ferraz de Carvalho – Professor Doutor (EFLCH / UNIFESP)

Organizadores do dossiê Ensino de História


BEZERRA, Antônio Alves; CARVALHO, João do Prado Ferraz de. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 8, n. 15, julho, 2017. Acessar publicação original [DR]

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A Redemocratização Brasileira e o Seu Processo Constituinte / Cantareira / 2017

No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo

voltaria ao que era na véspera, menos a Constituição.

(Machado de Assis)

O encerramento dos anos 1980, dando lugar a última década do século, consagrou um marco para a história brasileira, servindo de palco para a retomada, pela sociedade, de uma série de movimentos sociais e culturais. As campanhas em torno de uma Anistia Ampla Geral e Irrestrita e pelas Diretas Já! são exemplos evidentes desse estado de mobilização transformadora – e essa mesma participação popular culminou na luta por uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC), desaguando em uma etapa inédita na vida dos brasileiros. O processo constituinte trouxe reflexos de cunho cultural, social, político e jurídico, chegando ao seu ápice na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB / 88) – considerada, segundo expressão do constituinte Ulysses Guimarães, uma “Constituição Cidadã”.

Durante seus 18 meses de funcionamento, a ANC ocupou o centro do cenário político, mobilizando forças e atenções de agentes nas escalas políticas e populares. Os 584 dias que se seguiram à instalação da ANC de 1987-88 foram marcados por disputas e acordos, bem como por uma relação, sem precedentes, entre atores parlamentares e extraparlamentares. Segundo o cientista político Antônio Sérgio Rocha, estima-se que nove milhões de pessoas tenham passado pelo Congresso Nacional naqueles dois anos [2]. Porém, as mobilizações não ocorreram apenas durante a ANC; começaram bem antes, dentro e fora do Congresso, por meio do envio de cartas, telegramas e sugestões e caravanas, entre outras manifestações.

Uma série de desconhecidos se comprometeu com a Constituinte, ampliando a rede de atores que, até então, era composta quase que apenas por líderes políticos. Além dos partidos, inúmeras organizações da sociedade, como sindicatos e associações, dialogaram com a população acerca da Constituinte. O debate político incluía palavras de ordem e uma luta por um espaço visual para que permitisse colocar em evidência as mais diversas reivindicações. Neste contexto, foi criado o slogan “Constituinte sem povo não cria nada de novo”[3].

A compreensão de um fenômeno cultural só pode ser entendida em prisma histórico através da reconstrução do ambiente social e político onde ocorreu o debate. Logo, é preciso registrar que este período de transformações no cenário político foi marcado pela junção de duas forças: centrífuga, de dentro para fora, notadamente por meio da transição política conservadora, lenta e gradual, firmada através de acordos; e centrípeta, de fora para dentro, principalmente no que diz respeito à feitura da vindoura Carta Magna de 1988, baseada na participação popular. Em termos simbólicos, o processo de redemocratização visava ao equilíbrio da conjuntura, mas não às custas da herança institucional do passado. Contudo, em termos práticos, a mobilização popular foi o “x” da questão, equacionando a seguinte fórmula final: uma nova Constituição, elaborada por uma ANC que fora, por sua vez, pressionada pelas campanhas do próprio destinatário do documento final: o povo. Este, por seu turno, contribuiu fortemente para a confecção do diploma constitucional de 1988, impedindo, por meio da reivindicação de seus direitos, que o texto definitivo revelasse carga ainda mais conservadora.

Tendo em vista a coexistência inevitável, portanto, de forças opostas, contesta-se a ideia de que a transição esteja relacionada exclusivamente à operação do sistema político, que enfatiza as instituições e a negociação entre os parlamentares, deixando de analisar o papel dos movimentos sociais e sua relação com o Estado. É preciso abandonar o enfoque exclusivo da faceta da democratização relacionada às instituições políticas para abarcar, também, as ações sociais.

Faz-se necessário, ainda, calibrar o olhar e projetar a análise para o tempo atual, uma vez que o presente só pode ser compreendido de forma plena por meio de uma investigação do passado, de modo a promover uma síntese da dinâmica destes tempos, que se comunicam em via de mão dupla: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”[4].

Outra citação se faz pertinente: “O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”[5]. Se, em seu tempo, o poeta Mário de Andrade encontrou razões para estranhar o passado, que dizer do tempo atual, neste século XXI? Além do passado, o presente também é analisado de forma desconfiada. A recente expansão de ideologias antidemocráticas – tais como o clamor pela volta dos militares ao poder – deixa em evidência o quanto “é preciso estar atento e forte”, como já diziam Caetano Veloso e Gilberto Gil na música Divino, Maravilhoso.

O advento, nestes últimos anos de crise política, de novas medidas normativas voltadas para alterações no panorama da Carta Magna de 1988 endossa o presente apelo. É manifesto que o rumo de supressão de direitos e garantias individuais e coletivas em nome de interesses políticos conservadores, importa na transgressão ao espírito garantista da ANC de 1987-88 e à letra da norma petrificada nos títulos da CRFB / 88, intitulados “Dos Direitos e Das Garantias Fundamentais” e “Da Ordem Social”[6]. Dentre as mudanças mais recentes que acenam para a retirada de direitos, destaca-se a reforma trabalhista, engendrada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em contraste com o direcionamento adotado rumo à ANC de 1987-88, por meio do qual se buscava consolidar uma nova e relativamente ampla gama de direitos no seio constitucional, a tônica que hoje se desvela traz um cunho predominantemente autoritário. Dentro deste entrelace do ontem com o hoje, os acontecimentos do passado constituinte atravessaram os anos, perpetuando-se nos dias atuais. Por que, afinal, apesar de registrarem aspectos específicos de seu momento, seus embates e expectativas persistem? Frente a esse novo cenário, muito mais complexo e desafiador, a população não espera concessões da parte dos poderes estabelecidos – o que, curiosamente, evidencia o entrelace entre tempos idos e presentes e remete aos versos de Geraldo Vandré, na música “Pra não dizer que não falei das flores”, que traduzem a inquietude e a necessidade de ação: Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Esta edição tem por objetivo elucidar a redemocratização brasileira e a importância do processo constituinte para o entendimento dos movimentos sociais no Brasil contemporâneo, cujas políticas públicas, em grande parte, possuem fundamento nas reivindicações daquele período. A redução da distância entre o processo constitucional e as práticas cotidianas fomentou o amadurecimento das experiências e de novas iniciativas rumo ao fortalecimento da identidade do povo brasileiro. O novo diploma legal incorporou ideias comprometidas com os direitos sociais e individuais, corroborando a noção de que o processo constituinte democrático estabelece novas bases de fortalecimento popular à medida em que investiga o passado com o intuito de ascender a um novo patamar na emancipação social.

Quatro artigos abordam temas relacionados à temática deste dossiê. O primeiro, intitulado Um Olhar Histórico-Jurídico da Liberdade Religiosa no Brasil: do Império à Constituição Cidadã (1824 a 1988), de autoria de Walber da Silva Gevu, faz um apanhado histórico que visa compreender o avanço do instituto da liberdade religiosa ao longo das Constituições brasileiras de 1824 até 1988 – enfatizando os avanços nesta última e a preocupação com os tempos presentes que, segundo o autor, “parecerem sombrios e de retrocesso”.

O segundo, por sua vez, foi escrito por Aílla Kássia de Lemos Santos, tendo como título Movimentos Negros em Pernambuco e a Imprensa Negra como estratégia de luta (1980-1990). O artigo examina o Movimento Negro Unificado de Pernambuco no período de redemocratização do país entre os anos de 1980 e 1990, suas estratégias de luta e sua relevância para a sociedade, notadamente nas suas ações voltadas para o combate ao racismo e ao mito da democracia racial.

As Diretas Já foram analisadas no terceiro artigo, intitulado Indiretamente pelas Diretas. A Democracia Corinthiana no Conjunto das Manifestações pelas Diretas Já!, de coautoria de Ana Cláudia Accorsi, Gabriel Félix Tavares, Mateus Henriques de Souza e Nathália Fernandes Pessanha. Neste texto, a Democracia Corinthiana é considerada como um movimento da década de 1980 que lutava não apenas pelas demandas do futebol, mas também pelo voto. Os autores procuram entender a inserção de tal movimento no contexto das Diretas Já, ilustrando a transformação do estádio esportivo em espaço de manifestação política.

O quarto e último artigo do dossiê – Mídia e Democracia: a Atuação dos Jornais na Ruptura da Ordem Constitucional de 1964 e no Cenário de Reabertura Política, de Matheus Guimarães Silva de Souza – está centrado no debate acerca da mídia e da democracia, por meio da análise de fontes de jornais. O autor aponta que a mídia contribuiu para a subida e consolidação dos militares ao poder político, elaborando um panorama do golpe de 1964 enquanto mostra a participação das principais publicações brasileiras como responsáveis pelo curso da história. O autor visa não somente alicerçar o regime autoritário, mas também a ação de tais veículos de comunicação, almejando “reaver a atuação da mídia durante o processo de redemocratização do país”.

Também constam quatro artigos da seção livre, a saber: o primeiro, de autoria de Robson Williams Barbosa dos Santos, aborda o papel desempenhado pelos escravos do rio Poxim na Vila Real de São José do Poxim, atual município de Coruripe (Alagoas), sendo intitulado Fragmentos da Escravidão em Alagoas: Escravos, Sociedade na Villa Real de São José do Poxim – 1774 a 1854; o segundo, intitulado O instrumento da Correição Geral na São Paulo Setecentista: o Caso do Juízo dos Órfãos (1744), de autoria de Amanda da Silva Brito, trata do “papel da correição geral enquanto mecanismo de disciplinamento da ação do juiz de órfãos”, no século XVIII; o terceiro, por sua vez, escrito por Denilson de Cássio Silva, chama-se O ‘Afeto das Palavras’: Pátria, Nação e Estado em Fernando Pessoa, Mário de Andrade e Cecília Meireles (Lisboa, São Paulo, Rio de Janeiro, Primeira Metade do Século XX), e tem por objetivo abordar, nos textos de Fernando Pessoa, Mário de Andrade e Cecília Meireles, os conceitos de “pátria”, de “nação” e de “Estado”; e o quarto e último possui como título Cultura em Campo: Entre o Elitismo e a Popularização do Futebol (1897-1938), de autoria de Lucas de Carvalho Cheibub, e tem por foco o exame do “processo de popularização do futebol na sociedade do Rio de Janeiro, durante a Primeira República”.

Encerrando esta edição, apresenta-se entrevista com a parlamentar constituinte de 1987-88 e atual Deputada Federal Benedita da Silva. Independentemente de bandeira partidária, é necessário ter acesso à perspectiva de quem participou diretamente do processo, de modo a evidenciar, sob o olhar de um dos Constituintes, a trajetória daquele momento histórico e expor alguns dos resultados das dinâmicas de enfrentamento, das disputas de poder e das resoluções de interesse entre parlamentares e extraparlamentares.

Tendo em vista os 30 anos da inauguração da ANC, em 1º de fevereiro de 1987, e da própria promulgação da Constituição Federal, em 2018, as questões abordadas neste dossiê assumem dimensões de destaque, invocadas que são por estas datas comemorativas. O desenvolvimento de uma análise sobre as relações entre a sociedade brasileira e o seu processo de redemocratização, pela via constitucional, tem sua importância, assim, amplificada.

Boa Leitura!

Notas

  1. ROCHA, Antônio Sérgio. “Genealogia da Constituinte. Do autoritarismo à Redemocratização”, Lua Nova: Revista de Cultura e Política, Dossiê “Constituição e Processo Constituinte”, nº88, 2013, p.74.
  2. BRANDÃO, Lucas Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2011, p.217
  3. BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001, p.65.
  4. ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins / INL, 1978, p.254.
  5. Títulos II e VIII da Carta Magna, respectivamente

Aimée Schneider Duarte – Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: schneider_aimee@hotmail.com


DUARTE, Aimée Schneider. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.27, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual | Faramerz Dabhoiwala

Pode ser contraditório intitular um livro como As Origens do Sexo quando, na verdade, seu recorte espaço-temporal abarca a Grã-Bretanha do período 1600-1800. De qualquer forma, FaramerzDabhoiwala – professor e pesquisador de História da Universityof Oxford – não deseja apresentar uma história linear e “total” da sexualidade, mas descrever as transformações das experiências sexuais do Ocidente, relacionando-as com as grandes propensões políticas, intelectuais e sociais da época. Três elementos estruturais estão na base da composição da obra: o espaço, ou seja, a casa, o bordel, a rua, etc.; os personagens, isto é, os homens e as mulheres; e o elemento unificador: o sexo. Da trama sutil desses fatores, surge uma história enquanto realidade axiomática. A arte de Dabhoiwala consiste, sobretudo, na habilidade com que conseguiu arranjar esses elementos, salvaguardando o caráter multifacetado de análises que não permite o esgotamento das possibilidades interpretativas. O resultado é a conclusão de que as atitudes em relação ao sexo oscilaram, na Inglaterra dos séculos XVII-XIX, entre a censura tirânica e a relativa liberdade.

O livro é, sobretudo, um grande mosaico crítico de uma cultura que intentava disciplinar a sexualidade, mas que, com o tempo, viu emergir em seu próprio meio ideias relacionadas a uma maior tolerância e liberdade sexual. Texto nascido a partir da análise das mais variadas fontes históricas – Literatura, Tratados Morais, Processos-crime e Legislação encontram-se ajustadas. O discurso continuamente se entrelaça a uma linguagem poética, em Criminal -, compõe-se de um complexo tecido no qual História, Literatura e Jurisprudência uma investigação histórica sem precedentes. Dabhoiwala propõe uma História da Sexualidade que é, no seu conjunto, uma narrativa sempre reencetada. Por isso, os mais variados assuntos são trazidos à tona – casamento, prostituição, libertinagem, individualismo, ascensão da opinião pública, urbanização, tolerância religiosa, crescimento da cultura de massa, propagação da impressão e filantropia –, constituindo, todos eles, um verdadeiro amálgama de elementos que permitem, cada um a seu modo, que a sexualidade passasse a ser entendida como uma questão privada, de moral pessoal, sujeita apenas ao controle individual. Esta seria, segundo o autor, “a primeira revolução sexual”.

O capítulo 1, Declínio e queda da punição pública, explica que até fins do século XVI o policiamento das condutas sexuais era exercido não somente pelo poder da Igreja e do Estado, mas também pela participação popular – vigias, agentes de polícia, pais de família. Tratava-se de um enorme sistema que defendia padrões coletivos de comportamentos sexuais e que por trás dessa vigilância incessante buscava inculcar os ideais de monogamia e castidade, além de condenar práticas como luxúria, fornicação, adultério e prostituição. Fundamenta o autor que prostitutas, adúlteros e sodomitas foram, por muito tempo, ridicularizados, estigmatizados e até mesmo mortos por seus vizinhos e pela comunidade em geral. Essas tentativas de criar uma sociedade livre do pecado – característica da sociedade inglesa puritana – fizeram surgir leis mais rígidas para impor a disciplina sexual. Todavia, deve-se levar em consideração que os padrões exigidos tornavam muitos julgamentos puras ocasiões de formalidade. O autor considera essa questão uma notável ironia: o poder político e religioso buscava o apelo popular, todavia, a campanha anti-imoralidade surtia o efeito contrário. Isso porque sua retórica dependia de grupos de delatores regulares e oficiais, coisa rara naquele período. Além disso, o crescente tamanho e a complexidade da vida na Inglaterra Industrial minaram a eficácia desse sistema de policiamento sexual. O movimento da população do campo para as cidades, onde havia mais lugares e ocasiões para o ato sexual, acabou por tornar a comunidade em geral menos vigilante em relação aos transgressores. O anonimato das grandes cidades conseguiu enfraquecer a perseguição a práticas sexuais mais heterodoxas. O resultado foi exatamente um declínio e uma queda da punição pública quando comparados a períodos anteriores.

No capítulo 2, A ascensão da liberdade sexual, o autor explica que a mudança que mais abalou a sociedade entre fins dos séculos XVI e início do XVII foi a cisão religiosa, fato que acabou por legalizar a pluralidade moral inglesa. Na verdade, Dabhoiwala quer deixar bem claro ao leitor que a tolerância sexual somente cresceu e se difundiu a partir de uma maior tolerância religiosa. Esta tolerância foi, de fato, uma das características centrais do Iluminismo europeu. Com base nos escritos de variados pensadores, como John Locke, John Milton, David Hume, William Walwyn, Thomas Hobbes, Pierre Bayle, Richard Fiddes, Joseph Priestley e Robert Malthus, o autor elucida como tais filósofos ajudaram a expandir o escopo da liberdade pessoal. Buscavam, com isso, viver em um clima muito mais pluralista. O efeito das discussões filosóficas foi colocar as normas morais numa posição mais liberal, fazendo surgir, já na década de 1750, uma doutrina considerada bem desenvolvida de liberdade sexual. Sexo era, a partir desse período, uma questão privada. Criou-se um modelo civilizacional baseado nos princípios da “privacidade, igualdade e liberdade”, princípios que foram fundamentais para a criação de um novo modelo de cultura sexual e que o Ocidente continua a sentir seus reflexos.

O culto à sedução constitui o capítulo 3. Busca situar o leitor nas novas maneiras de observar o sexo feminino. Antes de 1800, afirma Dabhoiwala, as mulheres eram consideradas o sexo mais lascivo. Argumentos misóginos eram tão difundidos que era ideia comum entre a sociedade de que elas eram mental, moral e corporalmente mais fracas do que os homens. No século XIX ocorre uma mudança radical em relação a essa visão. A partir desse período, a ideia era exatamente oposta: passou-se a acreditar que na verdade eram os homens os seres mais libidinosos por natureza. No caso deles, isso era uma espécie de “impulso elementar”. O sexo feminino passará a ser considerado como “delicado”, “passivo”, “frágil”. Segundo o autor, tal mudança estava extremamente avançada na metade do século XVIII, pois já era expressa de forma notória em grandes romances em língua inglesa que surgiram entre as décadas de 1740 e 1750. O interessante é que essa nova visão da premissa da lascívia masculina foi, em grande parte, herdada da crescente proeminência cultural de mulheres artistas. Houve, por exemplo, uma enorme ascensão de atrizes profissionais no teatro inglês após 1660. As peças elisabetanas e jacobinas encenavam a vulnerabilidade feminina sempre contrastada com a lascívia masculina. A violência masculina tornou-se o tema central de vários enredos trágicos. Peças de comédia como Rei Lear, escrita por Nahum Tate, VertueBetray’d, de John Banks, The Orphan, de Thomas Otway, e The Fair Penitent, de Nicholas Rowe, apenas para citar algumas, colocavam o sofrimento feminino no centro da história. Eram claras admoestações contra as artimanhas dos homens que colocavam em cena, quase sempre, estupros, raptos, enganações e mortes. O romance foi outro meio utilizado para divulgar essa imagem de “sexo frágil” em relação à mulher. Conquista e sedução eram assuntos primordiais no romance, como o comprovam as obras de Jane Austen, AphraBehn, DelarivierManley e Eliza Haywood, PenelopeAubin, Jane Barker e Mary Davys. Essas autoras ajudaram, cada uma a seu próprio modo, a estabelecer o romance como a forma mais difundida de literatura inglesa, sendo a sedução – e questões como o amor, conquista e desejo carnal – seu enredo mais fundamental. Dabhoiwala acredita que o romance teve, nesse contexto, um papel fundamental na mudança para uma moralidade mais tolerante.

Em O novo mundo de homens e mulheres, quarto capítulo da obra, o autor explica que a imagem do homem voraz sexualmente fez emergir uma outra imagem: a das mulheres que, do século XIX em diante, deveriam se resignar, se fechar, se enclausurar cada vez mais para proteger-se das investidas masculinas. O que estava em causa, após as primeiras décadas do século XIX, era como domar a imprudência e a aparente promiscuidade “natural” do macho. Essa ideia de que as mulheres eram superioras moralmente tinha uma força gigante. Isso acabou por dividir a suposta natureza sexual dos homens e das mulheres, legitimando e acentuando preconceitos sociais e sexuais, preconceitos estes que ainda hoje se fazem presentes. Diante disso, a questão posta aos homens do período foi a seguinte: como canalizar a lascívia masculina de modo a preservar a “pureza” feminina? A resposta a essa pergunta estava, entre outras coisas, na aceitação social da prostituição. Entendia-se que melhor seria reservar uma classe de mulheres “inferiores” do que sacrificar as “respeitáveis”.

Diante disso, o quinto capítulo, As origens da escravidão branca, dedica-se a explicitar a posição social das prostitutas no seio da sociedade britânica no século XIX. Segundo o autor, foram realizados diversos esforços no intuito de criar abrigos, workhouses e instituições de caridade (como a MagdalenHousee a LamberthAsylum) para as mulheres “decaídas” e garotas em risco de sedução ou vítimas potenciais da lascívia dos homens. Por trás da configuração filantrópica pública em prol das meretrizes havia, porém, diversos interesses egoístas. Crescia a visão de que o encarceramento rotineiro e a exploração econômica dessas mulheres não passavam de meios para transformá-las em membros economicamente produtivos da sociedade.

O sexto e último capítulo, Os meios e a mensagem, narra como a revolução midiática do Iluminismo – exemplificada pelo crescimento da cultura de massa, da pornografia, de publicações biográficas de prostitutas e cafetinas, de xilogravuras baratas e de gravuras das “damas de prazer” – foi central para as mudanças comportamentais em relação ao sexo no século XIX. O crescimento da mídia, a disseminação dos livreiros, o aumento do número de alfabetizados, a ascensão da imprensa periódica como os jornais e o maior uso de panfletos na sociedade fizeram emergir uma cultura midiática que ajudou a criar um novo modelo de vivências erótico-sexuais no Ocidente. Criaram-se, por exemplo, diversos clubes especiais masculinos como o Beggar’sBeninson, em que seus membros reuniam-se para beberem, conversarem acerca de sexo e, em alguns momentos, ejacularem coletivamente lendo pornografia. O prazer sexual passou a ser celebrado em fins do século XIX. Houve, segundo o autor, uma espécie de colapso do policiamento sexual. Desenvolveu-se uma enorme indústria material dedicada ao sexo. A prostituição tornou-se mais visível. Pinturas, desenhos e livros eróticos eram sensação quase instantânea, popularizando-se no mundo anglófono. Amplamente relidos, tais imagens e textos ajudaram a apressar o desenvolvimento da vida privada. O resultado foi o aumento de um público ávido por leituras desse tipo, muito mais amplo do que nos séculos precedentes, refletindo uma nova apreciação do homem moderno com o ato sexual.

No epílogo, Culturas modernas do sexo – dos Vitorianos até século XXI, Dabhoiwala destaca os temas e recortes que utilizou para explicar as origens das atitudes modernas ocidentais em relação ao sexo. Afirma que não se pode estudar a História da sexualidade sem compreender as revoluções sociais que abalaram o Ocidente, especialmente as do século XVIII.

O livro, portanto, não é autotélico: volta-se para alvos definidos, com existência própria. De modo geral, em toda a obra verifica-se uma vinculação íntima entre o passado legível e o presente oculto. Sem dúvida, os historiadores estão diante de uma obra que ainda tem muito a revelar. O que surge ao longo das páginas é o homem moderno, moldado pela cultura em corte profundo. Dabhoiwala realizou um notável trabalho, tendo que trilhar por um caminho difícil, pois enveredou por um campo de pesquisa mais ou menos ilimitado. Para seu crédito, o autor abraça as complexidades dos estudos históricos, escrevendo de maneira clara e sucinta. A escrita dessa obra pôs em relevo a transgressão sexual, à margem das grandes cidades inglesas entre os séculos XVIII e XIX, resgatando o sentido do caráter infrator do sexo que prefigurou, a seu modo, a maneira como a sexualidade é vivida na contemporaneidade.

Wallas Jefferson de Lima – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, vinculado a Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades. Bolsista Capes. E-mail: wallasjefferson@hotmail.com

DABHOIWALA, Faramerz. As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual. Trad. Rafael Mantovani. São Paulo: Globo, 2013. Resenha de: LIMA, Wallas Jefferson de. Puritanos e revolucionários: as origens da primeira revolução sexual. CLIO – Revista de pesquisa histórica. Recife, v.35, n.2, p.260-264, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v. 7, n. 2, jul./dez. 2017.

8 Apresentação

TEMA 1 – A FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA

TEMA 2 – METODOLOGIAS DE ENSINO DE LÍNGUA MATERNA E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

TEMA 3 – ELABORAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO

TEMA 4 – LETRAMENTOS, MULTIMODALIDADE E TECNOLOGIAS NO ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA

RESENHAS

Moçambique, o Brasil é aqui: uma investigação sobre os negócios brasileiros na África | Amanda Rossi

Dividido em 21 sessões e um apêndice de peso, com entrevistas do escritor moçambicano Mia Couto e do ex-presidente brasileiro Lula, o livro Moçambique, o Brasil é aqui: Uma investigação sobre os negócios brasileiros na África extrapola a ideia de reportagem e propõe um deslocamento histórico e espacial pelo território moçambicano no qual, Amanda Rossi, a julgar por seus agradecimentos, parece ter construído visíveis laços de afeto.

Instigada pela presença cultural, religiosa e pelo crescente interesse econômico do Brasil em Moçambique, a obra contextualiza as relações históricas entre os dois países até chegar ao tempo presente. Para tanto, a jovem jornalista percorreu de trem, machimbombo, chapa e tchopela grande parte do território moçambicano onde o Brasil, de alguma forma, se faz presente nos chamados projetos de cooperação (Fiocruz, Embrapa, SENAI, Caixa Econômica e Ministérios da Educação, Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social, Esporte) ou fazendo negócio: Vale, OAS, Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez, Embraer, Rede Record, Petrobrás, Eletrobrás, Grupo Pinesso ( produção de soja) e BRF ( venda de frango congelado). Leia Mais

Joana d’Arc: Uma Biografia | Colette Baune

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: paulaflrs@gmail.com


BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]

Pequeno dicionário de grandes personagens históricos | Karl Schurster e José Maria Gomes Souza Neto

Embora a datação convencional do Iluminismo se inicie com o final da Revolução Gloriosa e o início da Revolução Francesa, esta periodização não deve ser tomada de maneira rígida. O eixo é sempre um pouco antes e um pouco depois de 1750, estando, certamente, articulado em suas origens, à Revolução Científica do século XVII. Já o seu final pode ser visto entre a crise revolucionária e o fortalecimento do pensamento romântico (FONTANA, 1998; FALCON, 1997). Talvez fosse mais prudente se preferir falar em iluminismos no plural, ao invés de tê-lo como um movimento unificado. Segundo Kant, em seu ensaio: O que é o iluminismo, este seria “a libertação do homem de sua auto-imposta custódia”. Custódia para Kant era: “a inabilidade do homem para fazer uso de seu entendimento sem a direção de outrem” (CHENG, 2012, p.30). Kant se opunha, nesse sentido, à tutela estabelecida pela tradição por um lado e pela religião por outro. Em suma, a definição de Kant para a ilustração é a saída da minoridade, o caminho para servir-se de sua própria razão. (FONTANA, 1998)

Um dos mais importantes historiadores do iluminismo, Robert Darton, menciona que o antigo regime é posto contra a parede no século XVIII. Mas, antes mesmo de termos a Revolução Francesa – já se carregava muito de suas reflexões teóricas e de seus desdobramentos políticos. Assim sendo, palavras como razão, natureza, liberdade, felicidade e progresso davam sentido a um novo movimento intelectual, o das Luzes (DARTON, 2001). Influenciados pela revolução científica, os pensadores Iluministas, similarmente ao que aconteceu entre os filósofos pré-socráticos, os socráticos e sofistas, direcionaram a razão como elemento de compreensão do homem em sociedade. A própria noção de filósofo sofre uma mudança semântica, na qual os do iluminismo se põem numa posição de críticos e reformadores de sua sociedade. Embora a religião não seja de todo abandonada, os filósofos do iluminismo assumem uma posição mais secular, na qual o universo religioso desempenha papel secundário (CHENG, 2012).

Havia a concepção de uma natureza humana universal. Uma das preocupações dos historiadores iluministas era explicar os eventos históricos em termos da ação humana e não divina; conferir o verbete Voltaire, p.303-310. O iluminismo deu origem a uma forma de investigação histórica: desenvolveu a noção de que o presente era um momento de peso excepcional na História Mundial. A noção de que aquela época havia transcendido a período greco-romano, tão importante para os renascentistas. A História Clássica ainda era venerada, mas agora, a Europa moderna requeria graus de autonomia cultural. A História possuía uma função social para os iluministas e, geralmente, suas abordagens do passado serviam para condenar e para reafirmar a sua crença no progresso da humanidade. Assim, a abordagem era centrada no homem, padrões e crenças de sua própria época. A leitura do passado tinha como intenção promover a virtude provendo exemplos morais que deveriam ser imitados ou evitados (BENTLEY, 1997).

A leitura de um dicionário e, pode-se imaginar, todo o processo de sua confecção acaba por inspirar a essa já longa digressão sobre algumas das bases epistemológicas nas quais reside nosso impulso sistematizador do conhecimento. As fronteiras da razão humana a partir de então pareciam ilimitadas, a partir das quais os limites do progresso humano seriam incalculáveis. É nesse clima que a publicação da Enciclopédia (Encyclopedie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, 1751-1771 – Diderot e D’Alembert) se tornava uma sinédoque daquilo que se configurava, num sentido mais amplo, o próprio movimento iluminista. Entre 1751 e 1771 dezessete volumes foram organizados, nos quais estavam compilados todos os conhecimentos modernos de A até Z (DARTON, 2001).

No Pequeno dicionário de grandes personagens históricos, organizado pelos professores da Universidade de Pernambuco (UPE): José Maria Gomes de Souza Neto, Kalina Vanderlei Silva e Karl Schurster, após mais de duzentos anos do iluminismo, revisita-se, em quase quinhentas páginas, o impulso de se dedicar à sistematização do conhecimento. Neste caso, dedicado às trajetórias histórico-biográficas de personagens que tiveram papel significativo no desenrolar dos acontecimentos de seus próprios tempos e, muitas vezes, muito além da efeméride de sua própria vida. Numa empreitada como essa, torna-se quase inevitável a avaliação da relação entre trajetória biográfica e vetores de transformação socioculturais, como Karl Schurster e Leandro Couto Carreira Rincon fizeram na introdução, p.XXI-XXIII.

Em que medida o tempo de uma vida é importante para deixar marcas, por vezes indeléveis, no tecido da história? Um dos mais representativos historiadores do século XIX, Jacob Burckhardt, cuja concepção de história contrastava profundamente com o mainstream da historiografia de sua época, concedia pouco relevo aos personagens como reais agentes da transformação sociocultural, para o historiador suíço, os atores históricos eram não muito mais do que elementos representativos de uma época. Ainda que fosse assim, Burckhardt considerava uma espécie de relação entre o indivíduo e a comunidade e que um grande homem pode romper as forças estáticas que mantém a coesão cultural. São estes homens que emprestam movimento à dinâmica da História contra formas antiquadas de existência. Qual a importância de Michelangelo e Rubens para a arte do Renascimento, qual a relevância de Péricles e Alcibíades para os desdobramentos políticos da segunda metade do século V a.C.? A reposta está mais nas bases epistêmicas do conhecimento produzido por Burckhardt, pois o ponto de inflexão não era a trajetória desses homens, tornados já discurso pela própria narrativa de um Tucídides ou de um Giorgio Vasari, mas sim dos nexos mais profundos entre a cultura, o estado e a religião (MURRAY, 1998).

Os jogos de escala e propostas metodológicas da Micro-História italiana de Edoardo Grendi, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi e, em certo sentido, os estudos seminais de Edward P. Thompson, nos levam a outra forma de História Cultural que toma personagens pouco ou nada conhecidos e suas trajetórias como ponto de partida para descortinar elementos mais profundos das comunidades em que esses indivíduos estavam inseridos. Era a inversão qualitativa da história dos grandes processos e transformações para uma compreensão mais capilar das mudanças sociais que, talvez, a história de lentes mais abertas não conseguia capturar (LIMA, 2006). E como esse novo dicionário, esse ainda epíteto de uma idade da razão se coloca após pelo menos duzentos anos de crítica e reflexão dentro da Historiografia?

Do ponto de vista da organização, o Pequeno Dicionário está organizado em seis partes, a saber: Parte I – Exploradores do infinito; Parte II – Cometas e seu brilho: os líderes políticos; Parte III – Pontes com o divino; Parte IV – Os demiurgos; Parte V – Heróis da resistência; Parte VI – Senhores da guerra. Dentro de cada uma dessas partes foram inseridos os verbetes. No total, o Pequeno Dicionário conta com oitenta deles. Cada uma dessas entradas é acompanhada ainda de um subtítulo explicativo adscrito e um epíteto de cunho metafórico, por exemplo, Homero: Poeta grego século VIII a.C. – O educador da Hélade; Martinho Lutero: Teólogo alemão, 1483-1546 – O reformador; Átila: Chefe huno, c.400-454 – O flagelo de Deus, e assim por diante. Cada um dos verbetes, em suas respectivas páginas vem acompanhados de uma ilustração que faz menção a de cada uma das personagens, geralmente por meio de um busto. Este elemento reforça o caráter juvenil do Pequeno Dicionário, tornando-o mais leve para a leitura. Essa mesma função é feita pela janela curiosidades, que surge sempre ao final dos verbetes, com um fato pitoresco ou complementar sobre a trajetória ou sobre o contexto da época de cada personagem.

Como o seu próprio título indica, trata-se de um pequeno dicionário, e dizer que ao invés de Homero poderiam ter escolhido Heródoto, Jung ao invés de Freud ou ainda Ella Fitzgerald no lugar de Billie Holiday seria uma chateação indesculpável deste ou de qualquer outro leitor. O melhor a se fazer é deixar se levar na forma leve em que as linhas de vida são perfiladas no Pequeno Dicionário.

Já tendo me estendido em demasia sobre o iluminismo no início deste comentário não retornarei a essa temática dentro dos verbetes, mas sim, por meio de dois outros para tentar mostrar um pouco dos encaminhamentos dados pelos autores, seja quanto às suas formas ou conteúdos.

O verbete sobre o dramaturgo e cidadão ateniense Sófocles (p.228-234), um dos maiores nomes do teatro grego antigo, é iniciado com uma afirmação categórica de Aristóteles em sua Poética; a que punha Édipo Rei, tragédia encenada por volta de 427 a.C., como a mais perfeita obra deste gênero teatral. E é desta forma que os autores tentam explicar a obra de Sófocles, por meio da leitura de Aristóteles. O terror e a piedade, elementos da kathársis convergem numa estética da recepção característica dos helenos, que acentua o fenômeno de purificação, tida pelo filósofo como uma das funções da tragédia Ática. De uma leve guinada, estamos tomando conhecimento da vida não apenas de Sófocles, mas também de outros dramaturgos gregos e de seus próprios contextos criativos, suas lutas nas batalhas intermináveis da Guerra do Peloponeso e disputas simbólicas, no Teatro de Dioniso, na Atenas do século V a.C.

Mais adiante, é possível deter o seu tempo em muitos outros verbetes, mas por que não entender um pouco sobre uma das figuras mais celebradas, mal compreendidas e apropriadas pela cultura popular, o samurai lendário Miyamoto Musashi (p.431-435). Após brandirem suas espadas em uma enorme batalha, o clã Tokugawa iniciou um período de governo centralizador e rígido, que só seria encerrado com a transição e processo de ocidentalização do Japão na era Meiji. Entremeios, surgia a figura de Musashi, misto de ronin e filósofo de sua arte com a katana. De livro tornado célebre por Eiji Yoshikawa a releituras da figura do samurai feitas por cineastas japoneses como Akira Kurosawa, Takeshi Kitano, Yoji Iamada, Hiroshi Inagaki e Takashi Miike, podese ter um lampejo de como a figura do samurai se tornou não apenas um elemento cultural japonês. Tornado ainda mais acessível na prática do Akidô, mas cultuado mundialmente, figura do imaginário, às vezes bastante romantizado, em torno desses homens da guerra e de seus códigos de conduta e honra absolutamente inflexíveis.

Uma das poucas ressalvas que se pode fazer ao Pequeno Dicionário são atinentes à forma. Em se tratando de uma obra de projeto gráfico-editorial bastante moderno, poder-se-ia investir em indicações bibliográficas dentro de cada um dos verbetes, ainda que apenas uma ou duas referências fundamentais, isto faria a pesquisa mais dinâmica e intuitiva. Outro elemento que pode ser mencionado é quanto à taxonomia utilizada para traçar uma divisão entre as personagens do dicionário. Creio que há um nível significativo de interseção entre os líderes políticos e os senhores da guerra, por exemplo. É claro que sempre há algo de arbitrário nas escolhas e as classificações, que quase nunca são perfeitas. No limite, é apenas uma ênfase na abordagem que poderia alocar Adolf Hitler em líderes políticos e não em senhores da guerra. Na verdade, a notória e nefasta personagem do século XX faria justiça a essa “dupla-inserção”.

O interesse pela obra, pelo ser humano, pelo tempo. Qual o significado de uma vida? Qual o padrão de julgamento que os historiadores podem utilizar para fazer esse tipo de avaliação? Quiçá, chegue-se à conclusão transitória de que vida é compreendida de sentidos, geralmente expressos por uma narrativa mais ou menos coerente e orientada em torno da qual reside um projeto. Se no relato autobiográfico, como disse Pierre Bourdieu, há a busca de se “tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva”, há o risco de se mergulhar numa espécie de ilusão retórica. Se na análise do historiador as ilusões de um percurso autobiográfico podem ser desfeitas, desveladas, então qual a natureza da narrativa que se poderia criar para as grandes personagens? Em que nível a memória, a análise histórica, o viés metodológico e as orientações teóricas desaguam num texto inteligível em relação à constância nominal, ao indivíduo cujo nome próprio assegura a existência dessa personalidade no devir temporal? (BOURDIEU, 1996 p. 183-191).

Essas são perguntas muito caras aos historiadores e qualquer resposta demandaria muito mais espaço do que se poderia dispor nesse trabalho cujas pretensões são declaradamente limitadas. Uma das melhores respostas, no entanto, foi dada por um sociólogo. Ao tratar da vida de Wolfgang Amadeus Mozart, Norbert Elias em nenhum momento mostra desprezo ou pormenoriza os fatos casuísticos da atribulada vida desse notável músico. Entretanto e, sem dúvida alguma, a sinfonia de Elias começa a ganhar corpo aos ouvidos dos historiadores quando se mostra interessado em como “Mozart só emerge claramente como um ser humano quando seus desejos são considerados no contexto de seu tempo” (ELIAS, 1994, p. 15). Porque, segundo o sociólogo, as realizações e os fracassos de Mozart surgem em um contexto em que a dinâmica entre os conflitos de padrões de classe são cruciais para o entendimento da vida do músico, em talvez entendê-lo como um “burguês outsider a serviço da corte” (ELIAS, 1994, p. 16). Assim, Elias afirma que: “É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o indivíduo [… e do] modelo das estruturas sociais da época, especialmente quando levam a diferenças de poder” (ELIAS, 1994, p. 18-19).

Por fim, creio que o leitor terá em mãos, no Pequeno dicionário de grandes personagens históricos um notável exemplo desse esforço, a saber: de não se perder na ilusão e nos gracejos vazios do pitoresco e do riso fácil, como em uma deliciosa comédia de costumes de Martins Penna, e de tentar dar conta dessas mudanças das estruturas sociais, do habitus, que condicionam as ações e reações dessas personagens nos mais diferentes contextos sociais em que viveram (BOURDIEU, 2009).

A obra em questão que atenderá a um amplo público, especialmente alunos de ensino médio, dos primeiros períodos de graduação e ao público leitor em geral. Representa esse esforço iluminista e convida a todos a mergulhar nas trajetórias e em tempos pretéritos. Assim, se pode ir muito além de ler o verbete como um fim em si, mas utilizá-lo como a possibilidade de ser uma janela para novas pesquisas, para a possibilidade de deixar a história orientar a vida, de se ampliar como ser humano e, a cada vez que se cruzar esse rio ter a sensação da renovação, de viver em um mundo mais consciente da sua existência pela do outro. (RÜSEN, 2001)

Referências

BENTLEY, Michael. Introduction: Approaches to modernity: Western historiography since the enlightenment. In: __________. (Ed.) A Companion to Historiography. London: Routledge, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. (O original é de 1980).

__________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M. e AMADO, J. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1998.

CHENG, Eileen Ka-May. Historiography: An introductory Guide. London: Continuum, 2012, p.29-

DARTON, Robert. A eclosão das Luzes. In: __________ e DUHAMEL, Olivier. (Orgs.) Democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, p. 21-36.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 61-89.

FONTANA, Josep. História: Análise do passado e projeto social. Bauru: EDUSC, 1998.

LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escala, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001. Vol. I

Guilherme Gomes Moerbeck – Professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da ESDI/UERJ Pós-doutorando do LABECA/MAE-USP. E-mail: gmoerbeck@yahoo.com.br


SCHURSTER, Karl; SOUZA NETO, José Maria Gomes de; SILVA, Kalina Vanderlei (Orgs.). Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. Resenha de: MOERBECK, Guilherme Gomes. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 163- 170, 2017. Acessar publicação original [DR]

O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330) | Alain Boureau

Conspirações, redes de heréticos ameaçando a cristandade, demônios dotados de poder e prontos a se fundir com os humanos. Esse é o pano de fundo no qual se desenrola a construção de uma ciência dos demônios, a demonologia, entre o fim do século XIII e início do XIV. O argumento é que essa construção ocorreu no âmbito escolástico. Em síntese é assim que se pode resumir o livro Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330), de Alain Boureau.1 O livro foi publicado originalmente em 2004, na França, sob o título Satan héretique: Naissance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). A tradução, no entanto, é recente: em 2016, por Igor Salomão Teixeira2, na coleção Estudos Medievais, da Editora da UNICAMP. Esse é primeiro livro de Alain Boureau publicado no Brasil.

Partindo de pressupostos da história intelectual, na relação texto/contexto, Boureau desenvolve o argumento que o nascimento da demonologia ganhou força a partir do final do século XIII e nas primeiras décadas do século XIV junto aos debates escolásticos nas universidades. Demonologia essa que o autor defende ser “(…) a gênese da obsessão demoníaca (…) plenamente provida de procedimentos e de certezas por volta de 1430-1450 (…)” (BOUREAU, 2016: 19) que dá início à “caça às bruxas”. Ao longo dos sete capítulos do livro é discutido como o demônio emergiu fortalecido e capaz de ameaçar a Cristandade. O diabo, e seus poderes sobre os homens, estava cada vez mais presente nas discussões de teólogos e canonistas naquele período. Nessas considerações é possível perceber o que o autor chama de “antropologia escolástica”. A antropologia escolástica seria o entendimento de novas formas para se pensar os homens (sua natureza, sua origem) e que tem este nome de “escolástica” por ser marcadamente oriunda do âmbito universitário europeu entre 1150-1350. O “homem” teria passado a ser, segundo Boureau, o objeto privilegiado nos debates intelectuais universitários (TEIXEIRA, 2014: 3)3.

Essa “antropologia” atuou de forma decisiva na emergência de uma obsessão pelo demônio no cristianismo medieval, entre 1280 e 1330, ao se preocupar com a relação do humano com o sobrenatural e com o mundo natural. Influenciada por reflexões naturalistas e escolásticas, essa antropologia trouxe à tona um sujeito multifacetado mais propenso às ações do sobrenatural (tanto em relação às investidas de deus e suas criaturas benéficas quanto às dos demônios):

A antropologia escolástica, explorando os limites da ação e da consciência, tinha descrito as zonas de vazio e de fragilidade da personalidade humana. Ora, a sobrenatureza, longe de ter horror ao vazio humano, parecia encontrar acolhida exatamente aí. (BOUREAU, 2016: 201)

Na gênese dessa demonologia, estava presente o embate entre duas “antropologias” no âmbito escolástico. De um lado havia uma “antropologia tomista”, oriunda dos escritos de Tomás de Aquino, teólogo da Ordem dos Pregadores (OP). De outro, uma “antropologia neoagostiniana”, oriunda principalmente dos escritos de Pedro de João Olívio, teólogo da Ordem dos Frades Menores (OFM). Segundo Boureau, para Tomás de Aquino os poderes de Satã estavam confinados à manipulação do mundo natural e não tinham efeitos sobrenaturais em relação aos homens. Diferentemente, na concepção de Pedro de João Olívio, Satã era dotado de poderes sobrenaturais, sendo capaz de atuar sobre os homens.

Tomás de Aquino desenvolve sua “antropologia” na relação entre o humano e o sobrenatural em diversos tratados teológicos. O principal desses é De malo (“Sobre o mal”), redigido por volta de 1272, durante a segunda regência de Tomás em Paris. No De malo o teólogo discute a natureza dos demônios e as circunstâncias de sua queda. Além disso, Tomás se preocupa com as capacidades dos demônios após sua queda e os seus poderes sobre os homens. Nisso, os demônios são descritos como seres sem muita vivacidade, limitados na sua ação ao mundo natural. Sua incapacidade de atuar sobre os humanos de forma sobrenatural deve-se ao uso, por Tomás, de uma psicologia aristotélica. Nessa, é defendida a unidade do sujeito, com o humano composto de uma forma, dada pela alma intelectiva, e uma matéria, isto é um corpo. Portanto, para Boureau, na concepção tomista, a pessoa é vista como substância individualizada da natureza racional. Esta forma de “antropologia” é definida por Boreau como um “‘individualismo substancial’” (BOREAU, 2016: 223). O homem, então teria uma personalidade una, selada por Deus, fazendo com que possuísse uma forma substancial única. Por isso, a alienação de alguma faculdade diminui o poder espiritual e cognitivo do homem. Ou seja, a possessão anularia qualquer possibilidade de ação do sujeito.

Oposta a essa “antropologia tomista” há uma “antropologia neoagostiniana”. Nessa, Pedro de João Olívio apresenta em sua Suma sobre as Sentenças, de Pedro Lombardo, os demônios dotados de possibilidades de atuar sobrenaturalmente em relação aos homens. Neste texto Pedro Olívio ataca os pressupostos lançados por Tomás no De malo. Para o frade Menor o demônio possuía uma capacidade real de ameaçar o homem pelas suas capacidades sobrenaturais. A capacidade que o demônio tem de atuar sobre os humanos deve-se ao uso, pelo franciscano, de uma psicologia agostiniana. Essa é marcada por uma teoria pluralista na qual o sujeito possui uma estrutura federativa ou confederativa, sendo composto de diversos estratos. Além disso, a alma é concebida com certa autonomia sobre o corpo, tendo lugar no interior do indivíduo o confronto entre o divino e o mal. Nisso o homem possuiria, portanto, uma forma substancial múltipla na qual convivem diversas personalidades. O que gesta uma “antropologia” marcada pela ideia de “‘individualismo acidental’” (BOREAU, 2016: 223). Boureau complementa: Com o homem dotado de passividade e descontinuidade na sua pessoa é possível inferir que a sua alma coabitasse tanto com o divino quanto com os decaídos. O demônio, portanto, figura como uma extensão da personalidade de alguns homens. É esse limite cognitivo e espiritual que abre a possibilidade da possessão.

Segundo Boureau esses embates teológicos gestaram a demonologia no âmbito escolástico. Sendo que “(…) a oposição entre Tomás de Aquino e Pedro Olívio nos mostra os contornos da nova cartografia demonológica.” (BOREAU, 2016: 118). É, portanto, principalmente, a partir das considerações desses dois teólogos que se desenvolvem os argumentos de uma demonologia escolástica.

Para pensar como essas considerações, do final do século XIII, são recebidas nas duas primeiras décadas do século XIV, o autor parte das atas de processos de canonização para “(…) encontrar um eco das novas preocupações demonológicas que dominam o início do século XIV e (…) marcam a ação dos papas Clemente V e João XXII.” (BOREAU, 2016: 146). Nesses processos o autor identifica uma relação próxima entre o louco e o possesso. De um pontificado ao outro, casos semelhantes, que antes eram tratados como cura da loucura, passam a ser cada vez mais considerados como exorcismo de demônios.

Nos processos iniciados pelo pontífice Clemente V, como o de Tomás de Cantilupe (1307-1320) e de Luís de Anjou (1308-1317), Boureau identifica a presença de cura de casos de loucura. Porém, nenhum de possessão demoníaca. Essa situação muda durante o pontificado de João XXII com relatos de combate contra o demônio em inquéritos de canonização de santos como Tomás de Aquino (1319-1323). Outro caso, desse mesmo pontificado é o de Nicolau de Tolentino (1325-1446), com diversos casos de possessão e exorcismo, além de fraca presença de casos de loucura nas atas do inquérito, é descrita a luta do santo contra demônios.

Esse último caso, o de Nicolau, é interessante já que leva 121 anos para a finalização do processo. Boureau argumenta que isso se deve, principalmente, à prudência da cúria quanto às canonizações de santos muito envolvidos no combate aos demônios. Além disso, argumenta que, apesar das virtudes eclesiológicas de um santo, naquele período no qual ainda estava se consolidando uma demonologia, poderia levar os leigos a perigosos diálogos. Para o autor, essa mudança ocorrida entre os dois pontificados estava relacionada aos problemas que João XXII enfrentou nas décadas de 1310, 1320 e 1330:as contendas em relação ao espirituais franciscanos, defensores ferrenhos da pobreza evangélica de Cristo e grandes críticos do papado de Avignon. De ambos os lados, tanto dos frades quanto do papado, partem acusações de envolvimento com o Satã. João XXII era considerado o Anticristo místico, proposto no comentário de Pedro de João Olívio. Segundo o franciscano, o anticristo estaria disfarçado de papa e desvirtuaria a Igreja, preocupado apenas com enriquecimento desta. Uma vez que João XXII foi um dos papas que mais enriqueceu a Igreja, durante o século XIV4, os espirituais acusavam-no de ser a encarnação e Satã. Por outro lado, estes frades eram acusados de envolvimento com o demônio, por armarem conspirações e eram considerados hereges que voltavam junto ao diabo para assombrar os fiéis. Sobre os espirituais choveram condenações de heresia, sendo seis deles queimados em 1318, e ordenada a destruição da obra de Olivi em 1326.

Portanto, essa demonologia, desenvolvida no âmbito escolástico, esteve muito associada às tentativas de deslegitimar adversários políticos e ao ataque aos poderes estabelecidos. É isso o que discute Alain Boureau no capítulo um do livro, quando demonstra como o desenvolvimento teológico de uma demonologia durante as últimas décadas do século XIII foi utilizado para dar base à associação entre magia, demônio e heresia. Segundo o autor, é principalmente durante o pontificado de João XXII, no início do século XIV, que se tem “(…) um novo desenvolvimento judiciário (…)” (BOUREAU, 2016: 24).

Nesse período, o conteúdo doutrinal acerca do pacto com o diabo recebeu uma nova abordagem, na qual foi valorizada a ação universal dos demônios. Ou seja, o diabo perdia a limitação de seu poder ao mundo natural, para ganhar novos poderes, capaz de agir sobrenaturalmente, ameaçando a cristandade. Nesse desenvolvimento judiciário, Boureau demonstra a importância da bula Super illius specula e da comissão sobre a magia, reunida pelo papa João XXII, em Avignon, em 1320. A bula, promulgada entre 1326 e 1327, foi, para o autor, o texto fundador da obsessão demonológica e do interesse do papa pela magia. Nela, João XXII incrimina práticas mágicas, como o uso de imagens e utensílios, que derivavam da adoração aos demônios por meio da associação entre a invocação destes com as aquelas práticas, sendo ambos referidos como dogma. Porém, a grande novidade da Super está no desenvolvimento de um novo conceito relacionado a construção processual deste pontificado. É nessa bula que o papa traz a noção de “feito herético” (factum hereticale), a partir do qual a heresia deixava de ser apenas matéria de opinião, passando a estar relacionada também à ação. Apesar da originalidade da bula ser passível de discussão, a questão do fato herético já figurava na consulta de 1320 sobre a magia. Nessa, a noção de fato herético estava presente nas questões propostas à comissão. Na consulta o papa perguntou a teólogos e canonistas se era possível associar práticas como o batismo de imagens e outras práticas mágicas à heresia, que, poderia ser considerada crime de lesa-majestade divina, punida com o máximo de rigor pela purificação por meio das chamas. Apesar dessa associação encontrar resistência nas respostas da maior parte dos teólogos chamados para a consulta, resoluções, como a do franciscano Henrique de Carretto, deram crédito à tese do fato herético.

A essa tese estavam associadas outras práticas jurídicas de João XXII. O uso da fama para determinar a qualidade das ações dos que estavam sendo acusados de heresia, a utilização do processo sumário nos casos de julgamento relacionados à invocação de demônios e o recurso a tribunais especiais do papado, para cuidar destes casos. Segundo Boureau, essas práticas demonstram não só a desconfiança de João XXII quanto a Inquisição, mas também que frente a ameaça dos demônios era necessário uma ação rápida e eficaz. Assim, o autor propõe que a forma de agir do papa demonstrava que “(…) em matéria de sortilégios, antes de reprimir, importava (…) reunir opiniões em relatórios complexos unindo a magia, a invocação de demônios e a heresia.” (BOUREAU, 2016: 53).

O livro Satã Herético não é uma leitura simples, fazendo-se difícil para iniciantes que ainda não tiveram contato com tema das ordens mendicantes e sua relação com as universidades. Boureau traz como subentendido que seu leitor deve ter alguma noção sobre o contexto do papado de Avignon, do âmbito universitário dos séculos XIII e XIV e do método escolástico. Apesar desses pontos, que podem dificultar a leitura, a forma como autor relaciona as discussões escolásticas com o fazer político dos jogos de poder no período é interessante, e importante em termos metodológicos. Pois, permite ao historiador, que deseja se debruçar sobre as questões políticas do período, montar o contexto linguístico, do qual parte o conteúdo dos vestígios aos quais se dedica.

Notas

1. Alain Boreau atualmente é diretor do Groupe d’Anthropologie Scolastique (GAS) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Também, atua como co-diretor das coleções Histoire e Bibliothèque scolastique da editora Les Belles-Lettres. Além de ser membro do comitê de redação da revista Penser/rever. Informações obtidas em: http://gas.ehess.fr/document.php?id=122

2. Igor Salomão Teixeira é professor de História Medieval no departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

3. TEIXEIRA, I. S. “Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau”. In: Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre. Auxerre, França. Vol. 18, n. 1, 2014. pp. 1-13. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/103476 Último acesso em: 27 de abril de 2017.

4. Cf. LE GOFF, J.A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de antropologia histórica. RJ: Civilização Brasileira, 2014. Para mais sobre o contexto do papado de João XXII e as disputas com os espirituais ver: AGAMBEN, G. Altíssima pobreza. SP: Boitempo, 2014; BÓRMIDA, J. (OFM Cap.). A não propriedade: uma proposta dos franciscanos do século XIV. Porto Alegre: Edições EST, 1997; BURR, D. “The Correctorium Controversy and the Origins of the Usus Pauper Controversy” In: Speculum. EUA: Medieval Academy of America, 1985, n. 60 (2). pp. 331-342; DE BONI, L. A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003; FLOOD, D. (OFM). “Poverty as Virtue, Poverty as Warning, and Peter of John Olivi” In: BOUREAU, A. e PIRON, S. (dirs.). Pierre de Jean Olivi (1248-1298): Pensée scolastique, dissidence spirituelle et société. France: Librairie Philosophique J. VRIN, 1999. pp. 157-173; NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal: Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy. Oxford: Oxford University Press, 2003; e TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo: A canonização de Tomás de Aquino. 1. ed. Curitiba: Prismas, 2014.

Luiz Otávio Carneiro Fleck – Mestrando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: lotaviocf@gmail.com


BOUREAU, Alain. Satã Herético: O nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da UNICAMP, 2016. Resenha de: FLECK, Luiz Otávio Carneiro. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 171- 177, 2017. Acessar publicação original [DR]

Estética e política em tempos sombrios | Revista do IHGPA | 2017

Mergulhar nos textos que compõem esta edição da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Pará é lançar-se em um rizoma de afetos, na possibilidade de transcender as zonas de discussão que os integra e banhar-se nas linhas e entrelinhas. Os autores aqui reunidos, propuseram-se a escrever sobre experiências, análises, críticas, ensaios em intersecção com a temática “ESTÉTICA E POLÍTICA EM TEMPOS SOMBRIOS”, reflexões sobre o momento atual em que vivemos de verdades ilusórias, de “Ilusões sem Ilusão” e de “Políticas apolíticas”, nesses tempos de crueldades melancólicas, em que não se desenvolvem mais projetos, vivemos em tempos de desilusões destrutivas.

Acreditar na palavra enquanto linguagem e ferramenta de resistência é o que move os escritos que aqui se desenvolvem. Um movimento de levante contra as forças silenciosas que maquinam e torturam em uma incessante ganância e opressão. Expor seus mecanismos, identificá-los e combater, aqui a palavra ganha mais que o formato das letras, elas gritam e penetram onde talvez o próprio homem atualmente não consiga adentrar. Neste ambiente, propomos discutir sobre estas armas que perpassam por uma política / estética colocando à mesa estas duas vertentes que se encontram de forma sublime nos textos aqui apresentados. Leia Mais

Histórias da moda / História – Questões & Debates / 2017

No final dos anos 1950, antes mesmo da publicação de O sistema da moda em 1967, o semiólogo francês Roland Barthes produziu alguns textos que tratavam do tema [1]. Ainda que seu objetivo em grande medida fosse, a partir dessas reflexões, começar a esboçar o método de análise textual que destrincharia no referido livro, algumas questões colocadas por ele nos artigos que escreve no período, são bastante pertinentes para pensar e entender os desenvolvimentos da historiografia de moda no século XX.

Em História e Sociologia do Vestuário, publicado em 1957 na revista dos Annales – cuja importância para as transformações ocorridas no pensamento historiográfico é bastante conhecida – ,Roland Barthes reclamava, por exemplo, do caráter inventariante das “histórias da moda” produzidas até então. Naquele momento, os livros que tratavam do vestuário por uma perspectiva histórica tinham por preocupação central recensear as transformações ocorridas nas roupas ao longo dos séculos, sem se beneficiarem, ainda, das “transformações ocorridas nos estudos históricos que ocorreu na França há uns trinta anos” conforme apontava o semiólogo. Barthes pontuava também que “ainda está faltando toda uma perspectiva institucional da indumentária, em termos de dimensão econômica e social da História, de relação entre o vestuário e os fatos de sensibilidade, conforme definidos por Lucien Febvre, de exigência de uma compreensão ideológica do passado, como a que pode ser postulada pelos historiadores” [2].

O semiólogo, que morreu em 1980, não viu a incorporação de seus questionamentos à produção historiográfica. Uma vez que é a partir dessa década que a historiografia sobre o tema sofrerá grandes transformações deixando de lado o recenseamento para analisar a moda em conexão com a cultura, o consumo, as relações sociais e os papeis de gênero. Neste sentido, podem ser considerados seminais os trabalhos Le travail des apparences ou les transformations du corps féminin XVIIIe-XIXe siècle, de Philippe Perrot, e La culture des apparences. Essai sur l’Histoire du vêtement aux XVIIe et XVIIIe siècles (A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII), de Daniel Roche, publicados respectivamente em 1984 e 1989, produzidos na França, e Adorned in Dreams: fashion and Modernity (Enfeitada de Sonhos) de Elizabeth Wilson lançado em 1985 na Inglaterra [3].

A partir de então, a produção historiográfica sobre moda cresceu e se diversificou rapidamente. De modo que em 1997, o historiador britânico Christopher Breward observava: “A roupa e a moda finalmente se tornaram veículos de debate que agora estão no centro dos estudos em cultura visual e material” [4]. A colocação, ainda bastante atual, aponta para a multiplicidade que passa a caracterizar a produção historiográfica em moda, a partir de abordagens e fontes diversificadas como a imprensa, as roupas propriamente ditas, a fotografia, a publicidade, os inventários, entre muitos outros. De tal modo, que hoje não podemos falar em “uma” história da moda, mas em Histórias da Moda.

Este dossiê tenta apresentar um pouco dessas Histórias da Moda, reunindo textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que tratam de temas como indumentária e cultura material, a imprensa e a produção de significados para as roupas e os indivíduos que as vestem, as construções memoriais acerca do comércio de moda, o questionamento da própria “história da moda”, produção, acervo e atuação de arquivos de moda, as relações entre moda e interesse econômicos.

Abre este número o relevante artigo de Alessandra Vaccari, Moda na Autarquia: políticas de moda na Itália fascista nos anos 1930. Nele, a historiadora investiga os aspectos econômicos das políticas de Mussolini, examinando como a moda coloca em confronto tanto a construção de uma nova imagem da nação, quanto as formas de desobediência explícita ou implícita ao regime fascista, revelando-se, aqui particularmente, um objeto fascinante. Vale destacar a densa pesquisa documental e a análise da autora de como as políticas autárquicas serão importantes para conformar uma estética e uma metafísica da moda italiana, colaborando vivamente para o seu sucesso no pós-guerra.

Moda e política também estão presentes no texto de Maria Claudia Bonadio, Chatô: o Rei do Algodão, que aborda um tema ainda pouco estudado: o papel do empresário Assis Chateaubriand na promoção da moda brasileira no início da década de 1950. A historiadora analisa como as ações de Chatô visando associar matériaprima nacional à alta-costura francesa – que incluíram trazer ao Brasil Marcel Rochas, Jacques Fath e Elsa Schiaparelli – se afastavam das propostas nacionalistas que costumeiramente marcavam a sua atuação. Para Bonadio, essas estratégias buscavam chancelar a produção de algodão de fibra longa que, então, se concentrava na Paraíba, onde Chateaubriand atuava como senador e, provavelmente, mantinha investimentos econômicos.

Os três artigos seguintes, cada um a seu modo, evidenciam as revoluções promovidas pela indumentária no período compreendido entre o final dos anos 1950 e o dos anos 1960, bem como os sentidos sociais da moda e a sua associação com a transgressão, num sentido amplo. Em Aniki Bobó: desbunde e psicodelia nos anos de chumbo, Maria do Carmo Rainho investiga a trajetória de uma das mais criativas lojas cariocas dos anos 1960-1970. A Aniki Bobó, criada em 1968, por Celina Moreira da Rocha, se diferenciava tanto das butiques inauguradas no Rio de Janeiro nas décadas anteriores como daquelas que emergiram no final dos anos 1960 e, que, assim, como ela, emulavam as lojas de Londres. A partir da análise dos produtos comercializados, do público consumidor e de sua proprietária, a historiadora discute temas como gênero, sexualidade e política. Os modos como a memória sobre a butique foram e são construídas também são abordados.

Maíra Zimmerman, em A criminalidade transfeita em estilo: Caso Aída Curi e os irmãos Kray na passagem dos anos 1950-60 analisa a cultura de consumo neste período, relacionando crime, moda e mídia. Num linha cara à história comparativa, Maíra estuda a repercussão da morte da jovem Aída Curi, ocorrida em Copacabana, e os atos criminosos dos irmãos Kray, na Inglaterra, examinando os padrões de elegância desses criminosos e como a vilania se transmutou em estilo, em grande medida, graças à atuação da mídia.

Roupas para mamães: corpo e gravidez nas representações para a maternidade na revista Manequim (1963), de Ivana Similli, se dedica às representações da maternidade em editoriais de moda, notadamente, na edição especial “Futura mamãe”, da revista Manequim, de 1963. A autora aponta como a gestação foi incorporada pela moda e como esta produziu e difundiu representações para o corpo grávido. No artigo são analisados, ainda, os modos como as transformações corporais definiram linhas de indumentárias apropriadas à gestação naquela década e como estas assimilaram tendências e estilos da moda jovem, colaborando para a ampliação do consumo.

O instigante texto de Vania Carvalho, Quando sonhar está na moda – a nostalgia do feminino na cultura de consumo examina os filmes de princesas de Walt Disney, como Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Cinderela (1950) para discutir como os repertórios materiais e visuais da aristocracia do século XVIII foram reapropriados pela sociedade moderna ocidental, no sentido de estabelecer clivagens entre os gêneros masculinos e femininos. Mais do que isso, ela discute como a distinção e a hierarquização dos gêneros, deram origem a novos territórios para o cultivo de subjetividades sexualizadas.

Rita Andrade em Vestires indígenas em bonecas karajá: argumentos para uma história da indumentária no Brasil reflete sobre os modelos de pensamento que deram origem à categoria “indumentária indígena” na história da indumentária no Brasil e sobre os modos como a formação dessa tipologia de coleções nos museus pode interferir na construção de valores éticos e estéticos dos modos de vestir. Para tanto, ela analisa a indumentária indígena nas bonecas karajá, as ritxoko. O trabalho, além da contribuição ao campo da metodologia de pesquisa em indumentária, entre outras, chama a atenção para a necessidade da construção de uma história da indumentária brasileira que considere a cultura material e as visualidades.

Fecha o dossiê, o texto de Fred van Kan, Preserving Dutch Fashion Archives. The Fashion Network Arnhem. O autor, que dirige o Arquivo de Gelders, na Holanda, apresenta um projeto de preservação dos acervos da moda holandesa, intitulado Modekern, que reúne o Museu de Arte Moderna de Arnhem, o Instituto de Artes ArtEz e o Arquivo de Gelders. A proposta do Modekern é trabalhar em rede, com cada parceiro tendo uma responsabilidade específica. O Arquivo de Gelders conserva e preserva os registros de importantes designers de moda holandeses, incluindo esboços, experimentos com tecido e portfólios. A academia de moda do Instituto de Artes ArtEz utiliza esses registros para pesquisa e educação. Quanto ao Museu de Arte Moderna de Arnhem, organiza exposições baseadas nos arquivos e no uso de objetos de moda.

O presente número é composto ainda por quatro textos de temática livre que compõem a seção Artigos e uma Resenha. O primeiro deles Virgem Senhora Nossa Mãe Paradoxal, de autoria de Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan, analisa as diferentes séries de sentido que convergem na figura de Nossa Senhora, com vistas a construir outros modos de pensar o feminino a partir da semiologia barthesiana e as invaginações e o pensamento genital de Gille Deleuze.

Na sequência, o texto de André Luiz Moscaleski Cavazzani e Sandro Aramis Richter Gomes, Família, hierarquia e imigração portuguesa: trajetórias e atividades econômicas dos Viera dos Santos (Vila de Morretes e Paranaguá, Província de São Paulo, 1812- 1848) investiga a trajetória de quatro indivíduos da família Vieira dos Santos, os quais habitaram os municípios de Morretes e Paranaguá, localizados no litoral do atual Estado do Paraná, na primeira metade do século XIX. O objetivo principal é evidenciar as dificuldades econômicas e as restrições de oportunidades sociais vivenciadas pelos descendentes de imigrantes portugueses que se estabeleceram, a partir do fim do século XVIII, em áreas litorâneas do Brasil Meridional.

Observar as condições de emergência para constituição de um sujeito gaúcho, que é tomado como herói a partir de alguns acontecimentos históricos e da música pampeana é a proposta do artigo A Natureza e o Gaúcho Herói nas tramas da história: tensionamentos foucaultianos, que tem por autores Virgínia Tavares Vieira e Paula Corrêa Henning. Como o título anuncia, as análises desenvolvidas no texto baseiam-se no pensamento do filósofo francês Michel Foucault e, em especial, no conceito de Genealogia, uma vez que ele objetiva problematizar a fabricação de um espaço geográfico e cultural marcado por um ideal de beleza e romantismo.

Encerrando a seção de artigos, apresentamos o texto O filme As Sufragistas e as transformações nos modos de vida pela militância política: deslocamentos subjetivos, sacrifício do corpo e afinidades feministas de Priscila Piazentini Vieira, que debate As Sufragistas, lançado em 2015, e dirigido por Sarah Gavron. O filme é analisado especialmente a partir do jogo que as sufragistas praticam com os direitos, tendo como principal objetivo aprovar o voto das mulheres na Inglaterra no início do século XX e ainda as transformações subjetivas pelas quais passam ao entrarem para a militância – em especial em suas relações com os maridos, patrões e filhos. A importância dos usos do corpo das sufragistas, tanto de forma sacrificada nas fábricas, quanto como forma de militância também é foco da análise.

Fechando o presente número apresentamos a resenha do livro Fashion victims: the dangers of dress past and present de Alison Matthews David, publicado em 2017 pela Bloomsbury Visual Arts e escrita por Luz Neira Garcia. Em seu texto, a pesquisadora deixa claro para o leitor, de que maneira a obra analisada levanta novos questionamentos acerca da história e produção contemporânea de objetos do vestuário, observando que, longe de ser apenas uma futilidade, as modas e sua produção podem gerar inúmeros riscos para os consumidores e também para aqueles que trabalham nas confecções e em outros setores do fabrico de vestuário.

Notas

1. BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo, Companhia Editora Nacional / Edusp, 1980. A versão francesa denominada Système de la mode foi publicada em 1967 pela editora Seuil.

2. BARTHES, Roland. História e sociologia do vestuário. In: Inéditos. Vol. 3: imagem e moda. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 258.

3. Os livros mencionados além de receberem diversas reedições, também foram publicados em mais de um idioma, o que indica o impacto e a repercussão dos trabalhos. O livro de Philippe Perrot curiosamente foi publicado inicialmente em italiano (Il sopra e il sotto della borghesia. Storia dell’abbigliamento nel XIX secolo) em 1982, antes mesmo de sua edição em francês. A obra recebeu edições em alemão (Werken aan de schijn; de veranderingen van het vrouwelijk lichaam in de achttiende en negentiende eeuw, Nijmegen, SUN, 1987) e inglês (Fashioning the Bourgeoisie: A History of Clothing in the Nineteenth Century, Princeton University Press, 1994, com reedição em capa dura em 1996). O livro de Daniel Roche foi traduzido para o inglês e publicado sob o título The culture of clothing: Dress and Fashion in the ‘ancien régim’ em 1994, pela Cambridge University Press e recebeu diversas reimpressões. A obra também foi publicada em português pela editora Senac-SP, que lançou o livro em 2007 sob o título A cultura das aparências: uma história da indumentária, séculos XVII-XVIII. O trabalho de Elizabeth Wilson teve a primeira edição publicada em 1985 pela editora inglesa Virago, a segunda edição publicada pela University of California Press em 1987 e recebeu em 2013 uma edição revisada e ampliada publicada pela I.B.Thauris. O livro foi editado ainda em alemão (Klædt i drømme: om mode, Tiderne Skifter, 1987), português (Enfeitada de sonhos, Edições 70, 1989) e italiano (Vestirsi di sogni. Moda e modernità, Franco Angelli, 2008).

4. Traduzido de: Clothing and fashion have finally become a vehicle for debates that now lie at heart of visual and material culture studies. BREWARD, Christopher. Cultures, identities: fashioning a cultural approach to dress. In: Fashion Theory, vol. 2, issue 4, December 1998.

Maria Claudia Bonadio e Maria do Carmo Rainho


BONADIO, Maria Claudia; RAINHO, Maria do Carmo. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.65, n.2, jul./dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Intelectuais, Imprensa e Poder (II) / História.com / 2017

Apresentação [1]

A comunicação de massa tem um domínio sobre a pauta da opinião pública. Ela é um importante instrumento político para convencer a sociedade acerca da legitimidade da agenda de grupos organizados; tratando-se de um elemento que não pode ser negligenciado pelos historiadores dedicados ao estudo de diversos temas como: política, movimentos sociais, economia, dentre outros.

O Brasil, assim como outros países afetados pela crise econômica iniciada em 2008, tem sido palco de eventos como: manifestações, greves, ocupações, dentre outros. Tem havido uma profusão de fatos históricos e a imprensa tem sido um veículo de disputas de narrativas que contribui para sentirmos, cada vez mais, a necessidade de cruzarmos todos os discursos possíveis que apresentam diferentes leituras sobre os acontecimentos, sejam elas confirmando a agenda pautada pelos órgãos de imprensa tradicionais ou a questionando.

As redes sociais possibilitaram que não apenas os grandes grupos econômicos pudessem ter o monopólio sobre as notícias e a formação da opinião pública, mas que, também, intelectuais, trabalhadores, jovens, idosos, a direita, a esquerda, o centro, as feministas, os evangélicos e demais variedades de sujeitos sociais pudessem disputar a “voz do povo”.

E a imprensa e os intelectuais do passado? Como atuavam? Como pensavam? Como eram lidos? Como influenciavam? Como ecoavam? Como se posicionavam? Movidos por estas e demais questões que instigam os estudiosos investigadores das práticas e processos históricos, sociais e culturais, a Revista Discente História.com propôs o Dossiê Temático “Intelectuais, Imprensa e Poder”. (v. 4, n. 8, 2017). Como recebemos muitas propostas para a publicação e considerando os problemas que enfrentamos no início de 2017, resolvemos organizar com esses artigos e resenhas dois números. Tivemos a felicidade de recebermos trabalhos que analisaram de forma “problematizadora” a atuação dos veículos midiáticos e editoriais, bem como dos pensadores em diferentes contextos.

Luiz Mário Burity e Shirley Silva, com o texto “’As tuas horas de lazer, emprega-as no estudo’: a imprensa pedagógica enquanto suporte para a cultura educacional paraibana (1930-1945)”, analisaram experiências educativas que exploraram a imprensa paraibana como veículo de divulgação de uma proposta pedagógica para o estado da Paraíba entre 1930 e 1945.

Hugo Cavalcante, no artigo “Disputas entre a agricultura e a criação de gados no Cariri cearense da segunda metade do século XIX: o liberalismo de João Brígido e o jornal O Araripe”, problematizou os discursos do jornal cearense O Araripe quando este retratava processos criminais envolvendo as esferas econômico produtiva e do cotidiano.

Alex Guimarães, no texto “Sob a pena de Júlia: sociabilidades intelectuais, imprensa e poder no entresséculos (XIX-XX)”, analisou as ações e a produção intelectual de Júlia Lopes de Almeida, que atuou na imprensa e na literatura do Rio de Janeiro entre o final do século XIX e início do século XX.

Pedro Henrique Alves, no artigo “Archimínia Barreto: mulher, negra, protestante, intelectual”, apresenta a trajetória de uma intelectual negra, protestante e de origem pobre que rompia com os estereótipos da intelectualidade das últimas décadas do século XIX e das primeiras do XX.

Além dos trabalhos supracitados, não deixe de conferir as demais seções do atual número da revista: Artigos Livres, Resenhas e História na Sala de Aula. Eles também abrilhantam a contribuição deste periódico para com os debates da historiografia e áreas afins.

Boa Leitura!

Antonio Cleber da Conceição Lemos – Conselho Editorial. Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe. Correio eletrônico: cleberhist@hotmail.com

Nota

1. A caricatura de Rachel de Queiroz foi retirada do website Templo Cultural Delfos. Disponível em: http: / / www.elfikurten.com.br / 2012 / 11 / rachel-de-queiroz-dama-sertaneja-das.html?m=1 . Acesso em: 27 abr. 2018.


LEMOS, Antônio Cleber da Conceição. Apresentação. História.com. Cachoeira, v.4, n.8, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Dimensões do Regime Vargas (II) / Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade / 2017

Fazer a apresentação de um trabalho acadêmico, seja ele escrito ou oral, sempre representa riscos e é sempre difícil. Mais ainda, quando se parte da premissa de que esta apresentação deva dar conta da dimensão que o trabalho em questão ocupa no universo acadêmico. Contudo, a tarefa do “apresentador” pode ser facilitada tanto quanto há trabalhos de qualidade a ser apresentado, tal como os que versam neste volume.

Como se observará, todavia, não se pretende aqui fazer uma análise ou apresentar artigo por artigo, os quais compõem o todo deste segundo volume do Dossiê temático intitulado Dimensões do Regime Vargas, mas, sim, ressaltar, mais uma vez sobre as suas possibilidades e potencialidades que, ao nosso ver, não são poucas.

Os diversos artigos que compõem este 19º volume da Revista Cordis, publicação do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade (NEHSC), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ventilam algumas das tendências sobre as quais pesquisadores das mais variadas instituições nacionais têm se debruçado no sentido de deslindar as Dimensões de um regime que deixou marcas profundas na sociedade brasileira.

Destarte, procuramos proporcionar aos pesquisadores de diversas áreas um espaço para publicações de suas pesquisas acerca de um período de grande relevância para a história do Brasil. Tal período foi marcado, internamente, não apenas por disputas pelo poder e pelo confronto entre variados projetos políticos que se buscou consolidar no país. Externamente, impõe-se, como pano de fundo, uma situação de crise do capitalismo, uma guerra mundial e a subsequente bipolaridade do mundo na chamada Guerra Fria.

Gostaríamos de externar nossos mais sinceros agradecimentos ao Prof. Dr. Nataniél Dal Moro, editor científico da Revista Cordis, por sua fundamental contribuição na organização dos volumes que versam sobre as Dimensões do Regime Vargas e à Profa. Dra. Yvone Dias Avelino, uma das fundadoras do NEHSC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e incansável encorajadora de novas pesquisas e estudos históricos. Evidentemente, gostaríamos de deixar bem claro para o leitor que toda e qualquer imperfeição que este volume possa ter são de nossa exclusiva responsabilidade. Assim, gostaríamos de eximir esses professores de quaisquer culpa e responsabilidade pela publicação das Dimensões.

Também, não menos importante, gostaríamos de agradecer a todas e a todos os pesquisadores que, após meses de árduas pesquisas, como é possível constatar pelos resultados dos artigos aqui publicados, submeteram seus trabalhos à Cordis, a vocês, nosso muito obrigado! Mais do que esperar, almejamos que, juntos, estes artigos possam suscitar novas provocações, novas indagações e novas pesquisas no que tange aos estudos históricos.

São Paulo (SP), dezembro de 2017

Pedro Paulo Lima Barbosa – Professor Doutor

Organizador deste número da Revista Cordis


BARBOSA, Pedro Paulo Lima. Apresentação. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade, São Paulo, 19, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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As conexões e as dinâmicas atlânticas na formação do mundo moderno / Anos 90 / 2017

Entre os dias 5 e 7 de novembro de 2014, o Instituto Latino- -Americano de Estudos Avançados (ILEA–UFRGS) foi palco do Seminário Internacional Conexões Atlânticas – evento promovido pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e organizado por nós, juntamente com o colega Luiz Alberto Grijó. O Seminário pretendeu ser um espaço de debates sobre a história brasileira entre os séculos XVI e XIX, a partir de perspectivas historiográficas recentes que tratassem das múltiplas dinâmicas sociais, econômicas, políticas e culturais mais globais, com ênfase nas inter-relações entre as sociedades atlânticas – Europa, África e as Américas. Entendíamos que era um momento mais do que necessário para tais reflexões e debates, uma vez que o número de professores e estudantes brasileiros no exterior aumentava a cada ano, implicando em uma intensa troca de ideias e experiências acadêmicas com pesquisadores estrangeiros. Além disso, de uma realidade em que a nossa história era unicamente objeto de estudo de pesquisadores europeus e norte-americanos, os últimos anos nos revelavam um sentido inverso, pois numerosos grupos de historiadores brasileiros cada vez mais pesquisavam a história dos países latino-americanos, da Europa medieval e moderna e das sociedades africanas, entre outras. Portanto, o Seminário buscou oferecer uma oportunidade para pensarmos os mencionados caminhos até então percorridos e as possibilidades de pesquisa abertas às gerações futuras.

Historiadores e historiadoras nacional e internacionalmente renomado(a)s conferenciaram ao longo dos três dias, revisitando antigos debates reanimados à luz de novas pesquisas, e propondo novos enfoques analíticos sobre diferentes temáticas. Carlos Alberto Sánchez e Giovanni Levi trataram da Atlantic History, suas contribuições, seus desafios e seus limites analíticos; João Paulo Pimenta, Ana Frega, Gabriel Di Meglio e Jose Carlos Chiaramonte proferiram suas falas a respeito do processo de Independência no sul da América e suas conexões políticas com o outro lado do Atlântico; Marcus Carvalho, Paulo Moreira e Eduardo França Paiva relacionaram a escravidão africana com o tráfico transatlântico e às dinâmicas de mestiçagem; João Luís Fragoso e Ana Volppi Scott refletiram sobre as migrações, as relações familiares e o uso das fontes paroquiais para o estudo do Brasil colonial; Tiago Luís Gil e Maria Fernanda Martins palestraram a respeito das estratégias sociais das elites luso-brasileiras no século XVIII; e Angela Alonso tratou das redes de relações e do papel dos mediadores no movimento abolicionista internacional no século XIX. Neste sentido, o presente Dossiê foi pensado não apenas como um capítulo final do Seminário que obteve um grande sucesso de público, como também um outro espaço para propiciar novas reflexões a respeito do tema, visto que o número de pesquisas inspiradas pelo mesmo continua crescendo.

Nos últimos anos, a grande repercussão internacional de algumas matrizes historiográficas que apostam nas abordagens e métodos de análise em escala mais global é notável. A “Global History”, por exemplo, tem pautado coletâneas, debates em periódicos e temáticas de eventos no mundo todo. Contudo, no que diz respeito à história das sociedades ocidentais, a chamada “Atlantic History” também atraiu uma série de investigadores preocupados com a chamada “formação” do mundo moderno entre os séculos XV e XIX. Fruto de uma iniciativa da parte de um grupo de historiadores da Universidade Johns Hopkins, liderados por Jack Greene, os mesmos adotaram o Atlântico como campo de investigação e promoveram um amplo e dinâmico grupo de pesquisa que reunia metodologias interdisciplinárias e uma perspectiva comparativa. Uma das propostas do grupo era fugir do molde imperial ou nacionalista das análises anteriores, atravessando divisas e fronteiras e estudando os movimentos das pessoas, de animais, de plantas e mercadorias, com fins de reconstituir o ir e vir de costumes, ideias, estilos e artes. Ao reunir estudiosos de várias disciplinas, as novas pesquisas contribuíram para a criação de uma nova perspectiva e uma aproximação original das facetas do Atlântico e da inter–conectividade dos povos que habitavam as costas dos continentes banhados pelo mesmo oceano.

Não demorou muito e estes ventos começaram a soprar para os lados do Brasil. Dialogando com estas e outras correntes historiográficas, um número significativo de pesquisas proporcionou uma profunda revisão de interpretações clássicas a respeito de temas ligados tanto à América portuguesa quanto ao Brasil monárquico. Por ocasião destas recentes perspectivas, a constituição da sociedade colonial tem sido entendida nos quadros do Império português e sob uma comparação mais complexa com outras realidades coloniais do período. O maior número de estudos escritos por africanistas possibilitou uma melhor compreensão da escravidão, do tráfico atlântico e das sociedades neles envolvidas sob uma perspectiva multiculturalista, valorizando, cada vez mais, a história da África e a sua importância para a compreensão da história do Brasil. A história dos povos originários também se viu renovada, apresentando importantes contribuições a partir de um diálogo mais aproximado com a Antropologia e a Arqueologia. As diferentes sociedades escravistas do atlântico, as migrações em escala mais global, as diversas elites locais forjadas em economias agrárias e mercantis, seus espaços de atuação e suas estratégias e a possibilidade de compará-las umas com as outras tem oferecido uma visão do passado muito mais complexa do que há 40 anos. Com relação aos aspectos políticos e econômicos, a preocupação em vincular a crise do Antigo Regime europeu com o processo de independência das colônias americanas e as distintas trajetórias institucionais dos Estados constituídos durante a “Era das Revoluções” com o avanço do capitalismo e a desagregação das economias escravistas tem crescido bastante. Em suma, pode-se dizer que a configuração de um mosaico social e econômico tem se tornado cada vez mais claro aos pesquisadores que buscam estudar realidades históricas circunscritas regionalmente sem perder de vista as dimensões atlânticas em que as ditas sociedades estavam envolvidas.

Não se pode dizer que estas preocupações estavam totalmente ausentes em pesquisas realizadas antes dos anos 1970. Contudo, a renovação historiográfica posterior pautou os novos estudos a partir de referenciais teóricos e metodológicos distintos. Escapando da rigidez estruturalista e dos postulados caros à Teoria da Dependência, a perspectiva atlântica das décadas posteriores trazia consigo um maior protagonismo dos agentes históricos, dialogando com uma história vista debaixo, e trazendo para o centro das atenções estudos referentes ao papel dos indígenas, dos escravos, dos libertos, dos homens livres pobres, das mulheres de todas as classes sociais, em diferentes enfoques. As noções de “Centro” e “Periferia”, “Metrópole” e “Colônia”, “Colonizadores” e “colonizados” foram revistas. Neste sentido, os antes chamados “povos sem história” também foram contemplados e a sua ação social foi encarada como ingrediente cultural fundamental na constituição das sociedades atlânticas do mundo moderno. Para tal empreitada, novas fontes documentais foram descobertas e novos métodos em história social disseminaram-se entre os historiadores que buscam a comparação de resultados gerais sem deixar de atender à riqueza das trajetórias individuais. O presente Dossiê reúne seis artigos e todos eles são tributários de parte dessas reflexões e debates.

Carlos Alberto Sanchez estuda o profundo impacto do descobrimento e da conquista da América no imaginário dos europeus do século XVI. Sevilha é destacada como a grande metrópole do século e, ao lado de Lisboa, tornou-se o eixo que coordenava as dinâmicas políticas e econômicas atlânticas daquele novo mundo. Por fim, o autor advoga a necessidade de se praticar uma “nova história atlântica” que integre o Mundo Atlântico em um contexto mais amplo da história global. Uma história que integre todas as Américas (espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e holandesa) e que supere uma historiografia empenhada em destacar apenas as diferenças e disparidades. Neste sentido, critica vertentes que enfatizam a excepcionalidade do caso norte-americano que exibe o sucesso do norte frente ao fracasso do sul, trazendo para o debate interpretações que defendem que a colonização puritana da Nova Inglaterra foi, também, uma continuação dos modelos ibéricos e não um capítulo de ruptura na história do período.

Rubens Leonardo Panegassi analisa o contexto intelectual que caracterizou a formação do mundo moderno enquanto espaço de circulação de ideias e juízos diversos. Para tanto, o autor recupera o senso de ordem social próprio do imaginário europeu da primeira modernidade a partir de diferentes registros literários produzidos no contexto do Renascimento ibérico. Tais registros remeteriam ao ideário do cristianismo primitivo – referência intelectual coerente aos propósitos espirituais da mundialização levada a cabo pelos ibéricos. Portanto, apesar das concepções etnológicas da primeira modernidade serem tributárias do “pensamento patrístico”, elas se vinculam à experiência estatal moderna. Neste sentido, nas palavras do autor, a sujeição política foi a tônica dominante do fenômeno da mundialização.

Fernando Bouza analisa os debates gerados no século XVII a respeito das potencialidades da exploração comercial da erva-mate (Ilex Paraguaienseis). Sua pesquisa permite acompanhar as discussões que pautaram a construção de saberes locais na América do Sul na primeira metade do seiscentos. No memorial enviado ao rei Felipe IV, pelo fray agostinho Gonzalo del Valle, em 1637, onde consta a sugestão de introduzir uma nova taxa sobre o consumo da erva mate paraguaia, – é possível compreender as estratégias presentes na tomada de decisão pelo governo espanhol e os critérios adotados nos assuntos referentes as Índias ocidentais. Bouza trabalha com documentos inéditos a respeito da produção, distribuição e consumo de erva mate nas colônias espanholas até sua eventual chegada na corte espanhola. A discussão reporta a um debate intelectual travado entre sujeitos que ocupavam posições de destaque tanto na Península Ibérica como na América, gerando uma circulação de saberes entre as duas margens do Atlântico, tema que evidencia as conexões entre o Velho e o Novo mundo.

Fábio Kuhn trabalha com a construção da hegemonia portuguesa no contrabando de escravos para o rio da Prata durante a primeira metade o século XVIII. Enquanto que entre 1715 e 1730, os contrabandistas luso-brasileiros atuaram a partir da Colônia de Sacramento, afrontando diretamente os interesses britânicos estabelecidos em Buenos Aires, após essa conjuntura, e por conta de mudanças no contexto político e da nova guerra anglo-espanhola que interrompeu as operações da South Sea Company no rio da Prata, o predomínio lusitano consolidou-se. Os traficantes luso-brasileiros passaram a tomar conta do negócio negreiro estabelecendo as conexões atlânticas necessárias para formação de uma rede de agentes envolvidos no comércio ilícito de cativos. O contrabando trans -imperial de escravos conectou os traficantes luso-brasileiros que operavam na Colônia do Sacramento aos dois principais portos negreiros da América portuguesa (Rio de Janeiro e Salvador). Tais negócios foram fundamentais no desenvolvimento econômico e social da região platina, aproximando mais ainda os interesses dos colonos tanto do lado português quanto do lado espanhol das fronteiras imperiais.

A presença de comerciantes estadunidenses no Rio da Prata entre a última década do século XVIII e o fim do período das independências na América do Sul é o objeto do artigo de Fabrício Prado. Normalmente negligenciada por historiadores em detrimento de análises da consolidação dos laços comerciais entre os países sul-americanos e o império britânico, a presença comercial norte-americana, de acordo com Prado, se estabeleceu através de redes construídas no contexto do domínio colonial ibérico na região do Prata e se reconfigurou de acordo com as mudanças políticas, entre elas a invasão de Napoleão à Espanha, a subsequente tomada de Montevidéu e Buenos Aires pelos ingleses nos primeiros anos do oitocentos, o período das guerras revolucionárias e, no caso de Montevidéu, o período Cisplatino. As flutuações das relações entre mercadores norte-americanos e as elites locais são aqui estudadas através da presença de navios estadunidenses na região do Prata.

Finalizando o Dossiê, Jonas Vargas estuda a importância da Irlanda na produção e no comércio atlântico das carnes preparadas nos séculos XVII e XVIII e de como tal êxito serviu de modelo para as Coroas ibéricas incentivarem a criação das suas próprias fábricas de carnes em barris no sul da América. Apesar da vinda de mestres irlandeses para as principais cidades da região, as tentativas foram frustradas e um outro tipo de carne, mais simples e de qualidade inferior (e que já era do conhecimento dos indígenas americanos), acabou vingando. O charque (que no Rio da Prata era conhecido como tasajo) trouxe grande riqueza para os investidores de Pelotas, Montevidéu e Buenos Aires e teve uma função primordial no interior dos sistemas econômicos que caracterizaram o mundo atlântico no colonial tardio, pois fomentou a entrada de escravos africanos para trabalharem nas fábricas, abasteceu as plantations açucareiras e cafeeiras do Atlântico e garantiu a alimentação da tripulação dos navios negreiros.

Boa leitura!

Eduardo Santos Neumann – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Jonas Moreira Vargas – Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Renata Dal Sasso Freitas – Universidade Federal do Pampa (Unipampa).


NEUMANN, Eduardo Santos; VARGAS, Jonas Moreira; FREITAS, Renata Dal Sasso. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 24, n. 45, jul., 2017. Acessar publicação original [DR]

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Por nomes e sobrenomes: biografias, acervos pessoais e história da família na produção dos espaços / Revista Espacialidades / 2017

[Por nomes e sobrenomes: biografias, acervos pessoais e história da família na produção dos espaços]. Revista Espacialidades. Natal, v.12, n. 01, 2017. Acessar dossiê [DR]

Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire – ROCHA (SO)

ROCHA, Ronai Pires da. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SECCO, Gisele Dalva. Sofia, Vitória, v.6, n.3, p. 175-191, jul./dez., 2017.

INTRODUÇÃO: UM POUCO DE CONTEXTO

Muitos dos temas e problemas com os quais lida Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire (ROCHA, 2017) são frutos de reflexões germinadas no ainda pouco explorado Ensino de filosofia e currículo (ROCHA, 2008). Exemplarmente constam ali críticas do “princípio do presépio” como critério capital de desenho curricular; da concepção expressivista de currículo; da imagem da desnutrida da escola como mero aparelho de reprodução de desigualdades sociais; das abstrusas caracterizações de interdisciplinaridade mobilizadas em documentos e debates sobre currículo escolar, do populismo pedagógico; das projeções de ferinas disputas universitárias em ambiente escolar.

A Introdução de Quando ninguém educa informa que a motivação final para sua escrita data de fins de 2015, quando da publicação do ofício endereçado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) por pesquisadores da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) com o apoio da Associação Brasileira de Currículo (ABdC). Intitulado “Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum Curricular”,2 o documento apresenta, em nove tópicos, observações desfavoravelmente críticas à forma e ao conteúdo da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) — naquela ocasião, sujeita à consulta e a debates públicos.

A oferta da BNCC pelo Ministério da Educação (MEC) em 2015 fora prescrita em 1996, no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O objetivo fulcral do documento sugere-se em sua denominação: servir de alicerce para edificações de currículos nas redes estaduais (caso do Ensino Médio, a partir de agora EM) e municipais (caso do ensino fundamental, a partir de agora EF), e em cada instituição de ensino brasileira. A proposição da BNCC, portanto, configura-se como uma condição de possibilidade do exercício pleno dos direitos garantidos pela lei máxima da educação nacional.

Para além do destaque à reação das entidades representantes da comunidade de pesquisadores em educação frente à proposição da primeira versão da BNCC, vale ressaltar outro elemento do cenário em que se compôs o livro aqui analisado: o fato de que, como se conta no primeiro capítulo (“O currículo e as competições ferozes”), aquela reação foi uma de outras, todas fluindo em peculiar leito midiático:

De um dia para outro a conversa sobre o currículo saiu do círculo dos especialistas, passou para os editoriais dos grandes jornais e dali foi para as redes sociais. A questão da existência ou não de uma base curricular nacional deixou de ser um tema dos especialistas e passou a ser matéria do noticiário cotidiano. (Rocha, 2017, p. 23)

Voltemos ao ofício da ANPEd: em uma passagem, declara-se existir, na base de elaboração da Base, um descolamento entre “as constantes críticas dos especialistas na área” e os alicerces curriculares estipulados na LDB, que deveriam figurar na BNCC. Alega-se ainda, na mesma passagem, que nos anos imediatamente anteriores à publicação da BNCC o MEC operou silenciamentos “sobre os debates, avanços e políticas no sentido de democratização e valorização da diversidade” em prol de um “projeto unificador e mercadológico na direção que apontam as tendências internacionais” (ANPED, Ofício n.º 01/2015/GR, p. 1). Se é fato a ruptura entre o que dizem os especialistas na área (mencionados do ofício da ANPEd) e os especialistas chamados pelo MEC a elaborar a BNCC, perguntar parece propício: o que nos insinua tal fato? Por que a BNCC, parece, teria sido elaborada sem considerar as referidas “críticas constantes”, encarnando um modelo de currículo a elas avesso?

Questão de segunda ordem: seriam tais perguntas respondidas a contento pela via explicativa de mão única que enfatiza as opções políticas desta ou daquela gestão ministerial, e de cada equipe de professores e pesquisadores por elas mobilizadas na confecção da Base? Ou, como acadêmicos dedicados a pensar em como nossa área (a Filosofia) pode contribuir para os debates sobre a construção da Base, nos seria permitido duvidar desta via expressa, buscando compreender as coisas sob outras perspectivas em teorias curriculares? É apostando em respostas positivas a esta última questão, que Quando ninguém educa foi publicado — sem para nada excluir como irrelevantes os elementos de ordem política que compõem o quadro das práticas curriculares no Brasil.

Sobre o momento desta publicação, é trivial lembrar que se trata de um período de padecimento para todos. Vivemos consideráveis perdas de direitos sociais, e ameaças de maiores, mais profundos e variados retrocessos. É inevitável mencionar, nesse contexto, a proposta de revogação do título de Patrono da Educação Nacional, pertencente a Paulo Freire, por parte de mensageiros de “movimentos” “sem partido”, nem ideologia. Um sobreaviso, assim, quase tarda: o livro aqui anotado não seja tratado, por motivo de subtítulo, como gato no saco de desmastreios em que estão metidas iniciativas de similar estirpe. Se é verdade que Quando ninguém educa (QNE) foi publicado em momento turvo e tenso, não é menos verdade que por seus estilo, teor e dicção, visa um público extenso e multiforme, e tem um dilatado potencial para provocar conversas, debates e autocríticas cuja urgência e importância não podemos falhar em reconhecer. Que o mapa que se pode traçar a partir das anotações a seguir possa servir para estimular a leitura deste livro, contracorrente.

1 SOBRE A PRIMEIRA PARTE: A TRAMA E A CRÍTICA

Do ponto de vista morfológico o livro está composto de três partes intercaladas por quatro parábolas, denominadas pelo autor como “fábulas de Zilbra”. O comparecimento de tais historietas não configura aspecto ignorável, pois não somente impõem certo ritmo à leitura das partes principais do livro, como também um tom que pode gerar desconfortos em leitores mais sensíveis às críticas embutidas nesta peculiar eleição retórica. O mesmo se aplica aos primeiros parágrafos do capítulo inaugural, em que, ao modo de pastiche, encontramos uma comparação entre discussões atuais acerca de currículo escolar e debates sobre o valor universal da democracia no Brasil dos anos 1970. Desde o início, portanto, saiba o leitor da possibilidade de estranhamentos diversos no que diz respeito ao modo como são apresentadas as ideias do autor. Quais são elas?

Sigo aqui a ordem da composição. Após a proposição do pastiche como forma de verificarmos semelhanças e diferenças entre o cenário atual e o cenário em que se iniciou o processo de suspensão da tradição de estudos curriculares no Brasil, a primeira parte do livro narra o processo de estabelecimento da teoria curricular hoje hegemônica no país, fortemente calcada em estudos culturais e sociologias do conhecimento (trata-se, portanto, do advento de teorias críticas e teorias pós-críticas do currículo, ocorrido com o abandono das teorias tradicionais). Desde cedo em QNE somos impelidos a pensar que as críticas ao modelo teórico tradicional — o assim chamado currículo por objetivos — resultaram, no Brasil da segunda metade do século passado, em um processo de descarte do abacate junto com o caroço. Vejamos, ainda de que brevemente, quais eram os pontos principais destas críticas.

O primeiro deles indica que teorias como as de Ralph Tyler e Hilda Taba (nomes dos mais conhecidos nos estudos curriculares de então), tal como praticadas no Brasil e a despeito de algum sucesso do ponto de vista de “metas triviais”, não satisfaziam “os fins mais amplos da educação” (ROCHA, 2017, p. 28). Foram, assim, batizadas de tecnicistas. A segunda acusação alegava que a formulação de objetivos de aprendizagem em termos operacionais, válida para o campo empresarial, não valeria para o educacional. Ademais, tal modelo pressionaria em demasia os professores quanto ao planejamento sequencial das fases da aprendizagem, sem espaço para desdobramentos da ordem do imprevisível, que exigiriam menos planejamento e mais capacidade de improviso por parte dos docentes.3 A esta crítica se associa uma quarta, relativa ao privilégio de comportamentos cognitivos enquadráveis em avaliações e mensurações que acabariam por excluir a dimensão humana da experiência escolar — razão pela qual se incriminou o modelo por baixa densidade democrática. Finalmente, dada a padronização da avaliação dos resultados das aprendizagens escolares em termos de mensurações objetivas, artes e ciências humanas não caberiam no espartilho de um tal modelo curricular, cujo descarte estaria, assim, plenamente justificado. Uma sugestão de pesquisa, no livro somente implicada, propõe comparar os cinco pontos das críticas ao modelo tradicional de currículo com os nove pontos de crítica apresentados pela ANPEd no oficio acima descrito: quais diferenças e repetições vigoram entre elas?

O capítulo inicial remete ainda à discussão proposta no segundo capítulo de Ensino de filosofia e currículo (EFC), onde Rocha delineia uma perspectiva sobre educação na qual convivem em paz seu objetivo principal, o da conservação da herança cultural da humanidade — e que será esclarecido adiante no livro, na seção “A educação é conservadora” — e o respeito ao “aspecto essencial de indeterminação, intrínseco à formação educativa” (ROCHA, 2017, p. 29). O capítulo finaliza num duplo movimento: por um lado, e com base nas sugestões de Lawrence Stenhouse, “desempacota” o conceito de educação, como o conceito de um complexo contendo ao menos cinco etapas ou eixos:

Quanto mais nos elevamos nas camadas do processo educativo — habituação, treinamento, instrução, iniciação, indução — mais torna-se complexa a aplicação do modelo de currículo por objetivos. Os problemas mais interessantes ocorrem na área de indução ao conhecimento, pois trata-se de uma tarefa na qual as diferentes camadas da educação estão presentes. De um lado, quando aprendemos a falar colocamos em ação as estruturas conceituais e inferenciais da linguagem, das quais nem sempre temos uma consciência explícita e de cujas potências nem sempre suspeitamos; mas quando aprendemos nossa língua materna não estamos apenas dominando um código, pois ele traz consigo algo que um dia chamaremos, com sorte, de “mundo”. Aqui surge (ou não) a aventura do conhecimento, pois queremos induzir nossos filhos a uma explicitação dos níveis básicos de conhecimento que acompanham a aquisição da língua materna. O nome disso pode ser escola e currículo. (ROCHA, 2017, p. 31).

Por outro lado, o autor sugere que é possível retomar alguns dos bons elementos da tradição de desenhos curriculares calcada no modelo por objetivos, desde que nossa atitude como filósofos e teóricos do currículo não consista na dogmática postura de virar-lhe as costas, sem qualquer empenho de compreensão e subsequente avaliação de seu valor na empreitada de aprimorar a cultura curricular e pedagógica nacional. Além disso, após oferecer — novamente com o apoio de Stenhouse — uma caracterização de currículo como esforço para comunicar as linhas gerais de propósitos educacionais de maneira constitutivamente aberta à crítica, Rocha termina por alinhavar a primeira apreciação mais pungente do espectro hegemônico do campo curricular no Brasil. É neste momento que começamos a entender a função que a análise da opera magna de Paulo Freire tem no livro, pois somos então informados de que

No final dos anos 1970, o giro sociopolítico no campo do currículo consolidou-se e, com ele, os estudos curriculares ligados aos conteúdos e às didáticas foram varridos para baixo do tapete pedagógico. No lugar deles entraram as teorias da ação social aplicadas à educação. O esvaziamento da escola foi de tal ordem que surgiu no início dos anos 1980 um movimento que procurou recuperar o que havia sido sacrificado no altar da crítica. (ROCHA, 2017, p. 33).

Ora, foi justamente o grupo da “Pedagogia histórico-crítica” ou “Pedagogia crítico-social dos conteúdos” o responsável por tecer as primeiras críticas à pedagogia freiriana. Nela não estariam contemplados, de modo adequado, a entrada das crianças e dos jovens no universo dos conhecimentos escolares. De acordo com os primeiros críticos, esta insuficiência se deve, em larga medida, à ênfase desmesurada na valorização da cultura extraescolar na experiência pedagógica. Veremos a seguir, porque o deixa bastante claro o autor, que uma tal desmedida parece se dever um pouco menos à letra do texto de Paulo Freire do que a certas apropriações inadequadamente dogmáticas, derivadas de leituras anacrônicas, de sua Pedagogia do oprimido.

O segundo capítulo segue a narrativa acerca do que chama de extravio da cultura curricular nacional, mobilizando discussões acerca da natureza da escola, uma reflexão sobre as melhores maneiras de conversar sobre currículo, e uma importante crítica à “visão expressivista do currículo” — exposta em documentos oficiais como as Orientações curriculares para o ensino médio . Nesta visão, o currículo é compreendido como um tipo de orientação sem poder de prescrição . A ideia é a de que um currículo que descreva comportamentos esperados de cada ator do teatro educacional não deve desdobrar seu potencial de prescrição das melhores atitudes a esperar de professores e alunos,4 mas tão somente manifestar, revelar, exteriorizar (quiçá sem critério algum?) o que cada sistema e escola entende como o melhor para sua comunidade particular (estaríamos diante de uma sorte especial de relativismo pedagógico?).

Esta primeira e também extensa parte do livro contém ainda cinco capítulos. Antes de expor a crítica a Freire, e a certo freirismo, constante no capítulo “Ninguém educa ninguém”, direi do contexto da crítica no fluxo narrativo-argumentativo de QNE. É que imediatamente antes do estudo de caso crítico, aparece “Formas do conhecimento”. Este capítulo abre com uma máxima de dupla função: de um lado, arrematar o que fora exposto nos capítulos “O currículo como iniciação” e “O currículo como mensagem” (duas perspectivas pouco ou nunca sonhadas pelo grosso da pedagogia nacional) e, de outro, anunciar a tônica de sua crítica: “Conversar sobre currículo sem falar em epistemologia é como pacto sem espada, vira conversa fiada” (ROCHA, 2017, p. 59). Que o modo de adágio desta frase não aligeire o leitor a ignorar a que imediatamente se segue:

Se é verdade que o currículo implica poder e política, pois ele está ligado às formas de distribuição e transmissão de conhecimento, é igualmente verdadeiro que estamos falando exatamente sobre conhecimento .” ( Loc. cit .).

Quem, em são entendimento, poderia desviar-se de tamanha evidência? A quem serviria ler QNE de modo a ignorar sua obstinação na discussão conceitual, filosófica, sobre as relações internas entre categorias epistemológicas e curriculares? Possivelmente somente àqueles sectários afeitos à erística, dessidente do jogo de dar e pedir razões — dos quais temos exemplos de sobra tanto à direita quanto a esquerda do espectro político-ideológico.5 Mas voltemos ao texto.

Antes, no capítulo sobre o currículo como mensagem, o leitor havia sido familiarizado com o vocabulário, algo denso, advindo de uma sociologia da educação epistemologicamente tratada, encarnada na obra de Basil Bernstein. Destaque-se aqui a centralidade da distinção entre conhecimento ou discurso horizontal e vertical , a partir da qual somos a apresentados à crítica do “populismo pedagógico” como fruto de uma confusão entre tais categorias. Registre-se, de modo telegráfico, que se os discursos ou conhecimentos horizontais são da ordem do mostrar — das coisas que aprendemos em nossas comunidades locais, por meio de treino e exemplo (amarrar os sapatos, usar talheres) —, os conhecimentos horizontais são da ordem do dizer : eles operam e se aprendem por meio de “estruturas simbólicas especializadas de tipo explícito, proposicional” (ROCHA, 2017, p. 50). Tais conhecimentos, que Michael Young compreende como efetivamente “empoderadores”,6 demandam ambientes especialmente desenhados, como escolas, para sua aquisição.

Ora, o que em QNE se chama populismo pedagógico se resume num conjunto de práticas curriculares balizadas na polarização entre o conhecimento popular e o conhecimento especializado, frequentemente associadas a uma romantização ou supervalorização do primeiro em detrimento do segundo. Podese neste ponto antecipar os resultados das críticas ao modo hegemônico de ler a Pedagogia do oprimido como uma forma particular de populismo pedagógico: de tanto proteger o aluno de “sustos didáticos”7 (derivados de coisas como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou compreender o que é se contradizer), o populismo pedagógico acarreta o abandono de aprendizagens daquele “conhecimento poderoso” de que fala Young (como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou ser capaz de reconhecer ou visualizar a relação lógica de contradição no clássico quadro das oposições, ou a aprender a ler mapas, ou uma obra de Clarice Lispector).8

A trama de fundo da crítica a Freire e a seu modo habitual de apropriação e propagação apresentada na seção “Ninguém educa ninguém” envolve ainda a ênfase de Rocha na ideia de que a epistemologia, como investigação sobre as variedades do conhecimento humano, é indispensável para práticas curriculares adequadas aos fins da escola. Aquelas, as variedades, dizem respeito aos distintos critérios para a disposição e ajuste curricular dos conhecimentos, tais como: suas fontes, seus tipos, objetos, as estruturas dos objetos de conhecimento, os tipos de consciência que cada saber mobiliza, seus graus de publicidade, e as não menos relevantes condições sociais e históricas de sua produção e apropriação. Já os fins da escola, por sua vez, tomam corpo na ideia de empoderamento intelectual e humano dos estudantes, e serão ainda tematizados em ao menos três das “séries de lembranças” que compõem a parte final do livro. De todo modo, desta trama praticamente se pode deduzir a pergunta pela epistemologia sobre a qual se erige a referência máxima da pedagogia nacional. Chegamos, assim, ao acontecimento crítico central da primeira parte de QNE.

O capítulo dedicado, ao modo de estudo de caso, a analisar a Pedagogia do oprimido se desdobra em quatro momentos, a começar por um duplo reconhecimento: o da importância histórica da obra, combinado ao do anacronismo de suas leituras mais comuns. Se da primeira não há folga em esquecer, do segundo pouco se diz. As luzes anacrônicas que geralmente se projetam sobre esta obra de Freire, mostra Rocha, se revelam no modo como uma distinção importante como aquela entre educação bancária e educação emancipadora é transportada, do contexto em que foi engendrada — com a finalidade de criticar os modos de relação dos dirigentes políticos da ação revolucionária com as massas, afinal “o tema do livro são as relações de opressão consideradas em um nível de bastante abrangência” (ROCHA, 2017, p. 69) — para contextos de discussão sobre os fins e meios da escola . Não à toa, somos informados, a palavra “escola” aparece em escassas cinco ocasiões ao longo de toda a obra. Mas o problema indicado com as parcas referências à escola não se encerra nesta observação, estendendo-se ao modo como Freire pensa a relação entre lar e escola, fortemente influenciada pelas assim chamadas visões reprodutivistas. Tais perspectivas consideram a escola, prioritariamente, com um aparelho de réplica das desigualdades sociais típicas de instituições como a família (em que os pais mandam e as crianças obedecem, e não pensam) e as prisões (comparação suficientemente desgastada como para exigir alguma explicação aqui).

Que uma distinção tão central para o livro de Freire, como entre “bancário” e “emancipador” seja assim generalizada — do contexto de alfabetização de adultos para o contexto de alfabetização de crianças em idade escolar — explica-se pelo fato de que além de anacrônicas, as leituras mais comuns da Pedagogia do oprimido são também seletivas. De acordo com Rocha, a dificuldade de contextualizar o que Freire diz nos capítulos inicial e final do livro acaba por induzir os leitores contemporâneos a simplesmente ignora-los, para o mal de sua compreensão. Nesses capítulos, aponta Rocha, Freire indica claramente a quem o livro se dirige (os companheiros revolucionários, por quem era acusado de não ser suficientemente comunista, e a quem acusa de agir conforme um sectarismo tão nefasto quanto o de seus efetivos oponentes), e de onde brotam os princípios que orientam, por exemplo, a necessária “reeducação ‘dos profissionais de formação universitária ou não’”, calcada em um alargamento das estratégias dialógicas de ação cultural por parte dos revolucionários. Rocha destaca que

O tema da reeducação dos acadêmicos ocupa quatro páginas no final do livro e é mais uma das formulações freirianas que somente faz sentido quando se tem presente o flerte de muitos intelectuais com o maoísmo da época. Como já antecipei, o livro era um libelo contra o dirigismo revolucionário que contaminava as fileiras da esquerda e a educação bancária a que se o livro se refere pouco tem a ver com os processos de escolarização formal. (ROCHA, 2017, p. 70).

Tendo mostrado suficientemente como a falta de sentido histórico é um aspecto importante na avaliação da atualidade da Pedagogia do oprimido , Rocha se dedica a auscultar a epistemologia sugerida nas considerações de Freire acerca da estruturação do conhecimento. Não se vai longe: citadas algumas passagens, ficamos sabendo que as importantíssimas fontes de saber que são memória e testemunho são ali desprezadas, dando-se a entender “que quando alguém nos conta alguma coisa não há um trabalho de conhecimento” (ROCHA, 2017, p. 71). Do que resulta uma concepção de saber que, aceitas as maneiras de encarar os fenômenos relativos ao conhecimento desde a perspectiva em epistemologia contemporânea aqui adotada, faz pouco sentido — embora se adeque à causa da época.

Ao postular uma educação libertadora que parece não atentar a elementos relevantes para uma descrição minimamente adequada dos processos de conhecimento — como a participação da memória e do testemunho de outros seres humanos na construção de diferentes tipos de saber — engasta-se na obra de Freire a ideia de que “ninguém educa ninguém”. Rocha enfatiza que esta tese foi mobilizada pelo autor no contexto de abordagem da tarefa de alfabetizar adultos. Quer parecer, portanto, que uma reterritorialização da tese para “pensar a escola, o currículo e o conhecimento em outros níveis que não o da alfabetização de adultos” (ROCHA, 2017, p. 72) implicaria alguma mudança no modo de ver a coisa. Deveríamos nos precaver de generalizar teses situadas em contextos específicos. Para que possa o leitor ele mesmo julgar se a concepção sobre o conhecimento humano que encontramos na Pedagogia do oprimido é, como pretende Rocha, demasiadamente restrita, o capítulo “Variedades do conhecimento” mostrará, articuladas, uma gama de distinções conceituais. Vendo este capítulo como uma sorte de “introdução à epistemologia para fins de desenho curricular”, e dado o atual contexto de discussões sobre o que é e como se faz currículo, talvez seja este um dos momentos mais importante de todo o livro. Para Rocha, os critérios de classificação das formas de conhecer, a que já me referi acima e que recebem uma organização gráfica bastante simpática (cf. Rocha, 2017, p. 82), devem ser incorporados ao léxico dos desenhistas de currículos. Isso se justifica na medida em que se aceita a adequação deste gênero de taxonomia diante da tarefa de projeção de distintas e plurais dimensões da formação e das aprendizagens humanas (objeto de estudo da epistemologia aqui mobilizada) nos currículos escolares. A título de amostra da articulação entre epistemologia e currículo escolar proposta por Rocha, ofereço abaixo uma importante passagem deste capítulo final da primeira parte:

A noção de conhecimento precisa de um esclarecimento simples e importante. Não podemos considerar o conhecimento humano apenas como o conjunto das afirmações verdadeiras sobre os diversos aspectos da realidade. O conhecimento tem muitas outras dimensões. As afirmações que encontramos nas diversas áreas de realizações e conhecimentos surgiram a partir do exercício de habilidades e procedimentos duramente conquistados ao longo da história da humanidade. O conhecimento não é apenas produto, é antes de tudo um processo, e a Pedagogia, de modo coerente com essa compreensão, não é um misto de teoria e prática acompanhada de consciência política. A capacidade profissional de intervenção do pedagogo não é adquirida apenas pelo estudo de teorias; ela surge da combinação disso com a formação de uma capacidade de julgamento e avaliação de situações particulares. Essas habilidades surgem no contexto de uma formação por meio de situações de conhecimento por familiaridade, ligadas ao desenvolvimento da capacidade de saber-fazer. (ROCHA, 2017, p. 85)

Além de servir também para que não se acuse o autor de proclamar uma monarquia do conhecimento proposicional, vale destacar que esta passagem participa de um argumento crítico de certas estratégias de estudo sobre currículo de teor sobremaneira sociologizante e descontrutivista, de que a Pedagogia do oprimido é exemplar. Em geral, para Rocha, elas consistem na desidratação de considerações de ordem metateórica que são imprescindíveis para bem situar e realizar o que pretendem — desmantelar as edificações erguidas a partir de nefastas relações de poder e saber, “construções sociais de x ”. Nelas também se encontra um uso “de descrições homogeneizadoras e estereotipadas da ‘ciência’, do ‘ocidental’, da ‘objetividade’, da ‘neutralidade’.” (ROCHA, 2017, p. 85) Isso posto, não é de se espantar a baixa atratividade de muitos debates sobre currículo e pedagogia no Brasil para o público do campo filosófico: enquanto a fenomenologia do conhecimento e da ciência que perpassa as estratégias desconstrucionistas permanecer tão precária como nos apresenta Rocha, parece que nosso destino guarda forte tendência a seguirmos patinando em discursos dotados de tanto sentido quanto a maior parte das experiências escolares cotidianas — sobre as quais, sabemos, incidem elementos que por óbvio ultrapassam os temas de QNE, que afinal não é um livro sobre a dimensão política da escola. Somente leituras tortuosamente motivadas podem esperar deste livro mais do que ele pretende fornecer: uma perspectiva em estudos curriculares que, posicionando o estudioso em primeira, e não mais terceira em pessoa, favoreça o resgate de uma mística mínima para a escola.

2 SOBRE A SEGUNDA PARTE: EPISTEMOLOGIA, CURRÍCULO, E UM CHAMAMENTO

Após noventa páginas de abertura, e precedida por uma parábola que conta sobre o início da derrocada da hierarquização das disciplinas no currículo escolar, a segunda parte de QNE se dedica a fazer o que apontou como ausente nas estratégias anteriormente criticadas: refletir, em perspectiva de segunda ordem, sobre as relações conceituais que mobiliza em seus argumentos. Assim, os dois capítulos desta parte do livro tematizam, o primeiro, as relações entre o campo da epistemologia e o campo do currículo; o segundo, os modos como a noção de interdisciplinaridade floresceu nos documentos e nos debates sobre desenho curricular — como solução algo mágica para o fenômeno do “professor fragmentado”. Vejamos quais os principais pontos de cada capítulo.

Em “Currículo e epistemologia”, Rocha retoma algumas questões já abordadas em outros momentos de sua obra,9 descrevendo os bons frutos que uma interação entre estas duas áreas pode gerar para ambas e, em especial, para as práticas de desenho e realização de currículo. Resgatando as perspectivas sobre currículo apresentadas anteriormente (currículo como iniciação e como mensagem ou narrativa daquilo que valoramos como passível de transmissão às novas gerações), o autor reconhece a evidência de que as práticas curriculares são objeto de disputas que envolvem a tentativa de “chegar a acordos sobre os aspectos centrais de nosso reservatório curricular” (ROCHA, 2017, p. 93). Tal reconhecimento calibra, por meio de um contraste, os aspectos sociológicos dos fenômenos curriculares com os aspectos primordiais, os que implicam “uma teoria do conhecimento, ligada ao papel da escola como uma instituição comprometida com o que temos de melhor.” ( Loc. cit .).

Da parte da epistemologia, Rocha a descreve novamente utilizando a categoria da narração: “é o estudo do conhecimento — daquilo que contamos como conhecimento, sua natureza, fontes, limites, formas etc.” ( Idem , grifos meus), e segue esclarecendo que os problemas da epistemologia são tão polimorfos quanto as variedades já exploradas. Tais problemas e variedades incluem, em um polo, temas ligados ao papel de formalismos de ordem lógica na estruturação de certos conhecimentos e, no oposto, temas vinculados aos aspectos políticos e sociais das diferentes formas de saber. Os dois campos nomeados com as palavras “epistemologia” e “currículo” podem andar juntos sem estranheza:

Isso parece ser cada vez mais necessário, na conjuntura em que vivemos, diante das muitas propostas de intervenção no currículo escolar: as pressões para a introdução de conteúdos sobre criacionismo e ensino religioso, as polêmicas sobre a base curricular nacional e as propostas de mordaças na escola. Nessa hora fala-se sobre muita coisa e pouco sobre os critérios conceituais que devem presidir as decisões de desenho curricular, menos ainda sobre a penúria de nossa cultura pedagógica, curricular e avaliativa. (ROCHA, 2017, p. 94)

Oportuna, a lembrança da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) que se segue a esta passagem não nos deixa esquecer que, a despeito das rupturas e dificuldades que vivemos, este livro participa do esforço em continuar e qualificar os debates sobre educação no país. O PNE renovou as pressões anteriores para que se pratique interdisciplinaridade nas escolas, o que supõe planejadores “boa noção das características dos domínios da experiência e do conhecimento que serão alvo do currículo” ( Idem ). Ocorre que planejar currículos interdisciplinarmente articulados exige muito mais do que tem sido feito — vide o exemplo das duas primeiras versões da BNCC para o Ensino Médio, claramente confeccionadas sem qualquer sinal de contato entre diferentes interfaces disciplinares. Diante destes fatos, e das sugestões até aqui colocadas em QNE, aparece um conjunto de nove “perguntas singelas”, das quais destaco as que dizem respeito ao tipo de unidade curricular que se pode supor, à organização curricular de diferentes disciplinas ou saberes (ou seja, dadas as disciplinas de que dispomos, pode-se deduzir uma organização implícita do currículo ou qualquer critério organizacional é externo às disciplinas?), à compreensão da estrutura conceitual de cada disciplina , e de suas relações.

Um dos esclarecimentos mais importantes no que diz respeito ao tema da interdisciplinaridade no currículo é elaborado na segunda seção deste capítulo. Trata-se da distinção entre um nível avançado, dito “de pesquisa”, e um nível mais elementar, propriamente escolar. Vale destacar que para Rocha, independentemente da perspectiva assumida, qualquer empreitada interdisciplinar precisa, por manutenção de sentido, reconhecer o respeito pelo conhecimento disciplinar. A não ser que se retorne a algum ideal absolutista de unificação dos saberes, parece que a famigerada fragmentação dos conhecimentos precisa ser recolocada, e avaliada, em seu devido lugar.

Enquanto a interdisciplinaridade à serviço da pesquisa tem a ver com o desenvolvimento de explicações de fenômenos tão complexos a ponto de exigir a associação de disciplinas existentes (e às vezes mesmo a criação de novos campos de saber, como observa Olga Pombo)10, a interdisciplinaridade a serviço da escola “é uma tarefa curricular e didático-pedagógica”:

É curricular porque pode ser antecipada nas fases de macroplanejamento, é didático-pedagógica porque sua realização efetiva na escola depende da mobilização de vontades particulares, da sensibilidade aos contextos de aprendizagem e da subordinação aos objetivos formacionais. Pense aqui, como exemplo, nas relações de dependência conceitual entre a matemática e a física, ou entre habilidades de argumentação e domínio da língua: não aprendemos a argumentar adequadamente no vazio conceitual. O interdisciplinar escolar não entra em conflito com as disciplinas e tampouco é uma panaceia contra a falta de unidade do saber e a fragmentação dos conhecimentos. Por vezes a gente esquece que “disciplina” também quer dizer “ter cuidado”. (ROCHA, 2017, p. 95)

A última observação, associada ao reconhecimento de um fato conhecido por quase todos os educadores do Brasil — o que de não somos habituados a trabalhar como equipes — o que se segue até o final do capítulo é uma reflexão instigante acerca do conceito de transmissão (lembra-se aqui do desprezo de Freire pela narração como transmissão), posto que as disciplinas escolares passam e ser vistas como “rizomas de realizações e curiosidades humanas” (ROCHA, 2017, p. 96) que merecem e devem ser transmitidas, ou traduzidas,11 para aqueles que se iniciam no mundo através da escola. Reconhecendo que os processos de transmissão de tais rizomas culturais não são passíveis de formulações canônicas satisfatórias, Rocha termina por considerar o currículo como sendo “para a educação, como um roteiro ou guião, com a diferença importante de que temos que contar a história” (ROCHA, 2017, p. 97). Este, por assim dizer, “dever curricular” deriva, na perspectiva de Rocha, de sua concordância com a filósofa que tão bem abordou o tema do caráter conservador da educação — Hannah Arendt.

O capítulo seguinte, segundo e final desta parte do livro, nos conta como e por quais motivações os documentos oficiais trazem à tona a demanda por ações curriculares interdisciplinares e contextualizadas. A história é complicada e repleta de matizes, os quais apenas insinuarei aqui. Em primeiro lugar, cabe destacar como um exemplo de complicação (por vagueza) conceitual o texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de acordo com o qual as disciplinas escolares figuram no currículo como passos a serem superados por uma esperada — e entretanto jamais circunscrita ou positivamente caracterizadas — interdisciplinaridade. Em seu “segundo afloramento”, nas Orientações Curriculares Nacionais (OCN), a questão da integração e da articulação no currículo passa a ser tratada, mostra-nos a análise de Rocha, por meio de verbos como relacionar, conectar, vincular, sem no entanto diferenciarem-se os modos como propostas de inter, trans, e outros gêneros curriculares se diferenciam entre si com relação a tais ações. “As expressões surgem como um rol de reis assírios, sonoras, belas, mas magras” (ROCHA, 2017, pp. 103-4). A imagem sugerida nesta passagem certamente faz referência ao princípio de organização curricular já criticado em EFC, o princípio do presépio . De acordo com este princípio, que por inércia seguimos quase todos, cada professor, em cada escola, traz para o currículo aquilo que consegue, sem jamais se perguntar pelo que trazem os demais como contribuição para as aprendizagens dos estudantes. Após seis páginas de uma detalhada análise do modo como se compreende a interdisciplinaridade nas OCN (“O mistério da multiplicação das áreas do conhecimento”), Rocha aborda o desejo de “Resgate do uno” — exemplificado num documento de orientação curricular do estado do Rio Grande do Sul. O capítulo termina com a sugestão de que uma das melhores maneiras de evidenciar a penúria de nossos debates sobre o assunto é a defesa da tendência, autorizada por documentos como o que por último foi analisado, a uma eventual democracia epistemológico-curricular (a postulação radical de uma igualdade de direitos entre todas as disciplinas escolares, refletida na distribuição igual de horas semanais). Para sustentar a legitimidade desta evidência, o autor retoma pontos já trabalhados, como a necessidade de escrutínio de importantes pressuposições conceituais das nossas conversas sobre currículo:

Tal crença na igualdade democrática das disciplinas implicaria um conjunto adicional de crenças sobre a natureza e o papel delas no crescimento e na formação humanas. Ora, estaríamos aí no núcleo duro de uma discussão de epistemologia e currículo, no início de uma longa conversa sobre a natureza dos conhecimentos, habilidades e competências que queremos promover na escola. (ROCHA, 2017, p. 110).

Nesse ponto o leitor poderia com razão reclamar do caráter algo evasivo da sugestão de discussão sobre as relações entre epistemologia e currículo. Gostaríamos de ver como elas se refletiriam ou desdobrariam, por exemplo, em negociações sobre distribuição de horários de diferentes disciplinas, ou em discussões sobre a presença compulsória de distintas disciplinas no currículo escolar — discussão de relevância fundamental após a publicação da Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que modifica substancialmente a estrutura curricular do Ensino Médio e seus meios de financiamento.12

Aproveitando a referência à situação atual, é oportuno ressalvar as perguntas inicialmente propostas nestas notas, relativas a um fato reconhecido no documento da ANPEd: a falta de diálogo entre gestores, formuladores de currículo (mais especificamente a BNCC — que, não custa lembrar, não é um currículo ) e os especialistas que constantemente criticam os moldes e conteúdos das iniciativas propostas em distintos documentos oficiais. Propus, então, uma leitura de acordo com a qual QNE é um esforço, eminentemente acadêmico , em responder à pergunta pela possibilidade de explicar esta falta de diálogo de modo crítico e positivo. O livro de Rocha poderia, e talvez mesmo deveria, ser lido como proposição de caminhos, alternativos ao hegemônico na academia brasileira, de diálogo entre os que tomam decisões políticas acerca da educação, os professores e gestores no chão da escola e os pesquisadores em educação. Em tempos de rupturas como as que vivemos, esta não é uma tarefa de pouca valia — embora possa ser entendida por alguns como inadequada concessão ao campo inimigo. Foi em razão desta possibilidade interpretativa — além, é claro, do que se pode identificar como estrito caroço da proposta — que, também nas notas introdutórias a este texto, caracterizei QNE como um livro contracorrente. Se o leitor com nada mais concordar, fica ao menos um chamamento para a continuidade da prosa, que se adverte cedo ou tarde inevitável: precisamos falar sobre currículo.

3 SOBRE A TERCEIRA PARTE: POR OUTRA CULTURA CURRICULAR

Feita álbum, a reunião de lembranças de que é composta a parte final de QNE organiza-se em cinco partes, ou variações, sobre os principais temas abordados anteriormente. Como explicitação de pressupostos, o final do livro atesta a legitimidade da descrição fornecida ainda na em sua Introdução, como “caderneta de campo muito pessoal” do professor Ronai.

Autorizada pela consideração de que o que foi dito até aqui serve suficientemente como descrição do contexto e da estrutura do livro — e também por julgar que estas descrições funcionam como chamado à leitura do texto aqui anotado — não apresentarei com o mesmo detalhamento os capítulos de sua parte final. O que ofereço ao leitor, a partir de agora, é uma avaliação do livro, condensada em algumas perguntas que incidem menos sobre o que nele é dito, e mais no que ele pode nos mostrar.

Começo pelo que está posto no capítulo “Quarta série de lembranças”, em que se discute com mais fôlego o tema da interdisciplinaridade escolar a partir da postura de respeito às disciplinas. Para Rocha, vivemos em um clima conceitual pautado por muitos especialistas do esfarelamento curricular, no qual ocorre um “triplo jogo de faz de conta”. Nele, manter as disciplinas implica fragmentações já insuportáveis; a escola deve visar a unificação destes fragmentos; e as áreas de saber são, ainda assim, unidades pedagogicamente operacionais. Juntos, estes três elementos tornam a situação conceitualmente insustentável, pelo seguinte:

Em primeiro lugar, a diversidade de disciplinas não é o resultado de caprichos burocráticos. Ela expressa apenas o fato trivial que cada uma das disciplinas tradicionais é uma faceta peculiar da curiosidade humana, com suas características e nuances. Em segundo lugar, não podemos confundir os anseios por um sentimento de unidade na vida de cada um de nós com a fantasia de uma unidade do conhecimento. O que isso significaria: uma mesma metodologia operacional aplicada a todas as ciências? Por fim, a pesquisa sobre a integração das disciplinas em áreas, se existe, não chega nem às escolas nem aos livros. A prática usual de uma escola é a do “cada um por si”, mas isso nada tem a ver com uma suposta falta de unidade do conhecimento humano, é apenas uma falha no trabalho de formação pedagógica. (ROCHA, 2017, p. 132)

Quadro que, reconhecido, impõe a questão sobre o que fazer — especialmente com relação à formação docente nas universidades brasileiras.13 Quanto a isto, para o autor (e para esta autora), é um fato que não podemos decidir como seguir se não entendermos como chegamos até onde estamos. Nossas principais dificuldades envolvem fatores ligados à democratização do acesso à escola pública sem a devida atenção em termos de políticas de acolhimento do “novo público”, e à consequente queda de qualidade do ensino e das aprendizagens; à ênfase desmedida em leituras sociológicas e políticas das relações educacionais, em detrimento de estudos curriculares epistemologicamente tratados; mas passam também pelo fato de que, para profissionais da filosofia, é claro que a pesquisa pedagógica prática é melhor em áreas que se dedicam há mais tempo (Ciências Naturais e Matemática, por exemplo).

Além disso, a tão falada “bacharelização” dos cursos de licenciatura em filosofia constitui um dos elementos chaves neste processo, e tarda muito em ser discutida de maneira adequada entre nós — especialmente no momento em que todos os cursos de licenciatura do Brasil estão em vias de modificar seus currículos para adequar-se à já referida Lei 13.415, à Resolução nº 02, de 1º de julho de 2015 do CNE14 e à proposta, no momento ainda não divulgada, da versão final da BNCC do Ensino Médio. Sobre “As licenciaturas”, seu futuro, Rocha afirma o predomínio do ceticismo:

A formação docente que ocorre no interior das universidades ainda não encontrou um formato adequado, mas isso pouco tem a ver com boas ou más vontades . Há fatores objetivos que concorrem para isso. O principal deles é que o ciclo de afirmação dos departamentos de conhecimento básico, que são essenciais para as licenciaturas, ainda está em curso. As melhores energias institucionais ainda se concentram na fixação da identidade profissional de cada disciplina e na construção de uma rede de pós-graduação. (ROCHA, 2017, p. 137, grifos meus)

Sublinhando as ricas experiências de formação docente (inicial e continuada) possibilitadas por importantes iniciativas dos governos anteriores (seja o PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, agora ameaçado de extinção, o exemplo), não pareceria, ao contrário, haver muita má vontade distribuída em nossos departamentos no que tange à tarefa de formar bons professores para as escolas de nosso país?

Encerro este texto de modo um pouco abrupto, alinhavando uma avaliação do livro que pretende pensar menos o que ele faz e mais o que ele ainda pode fazer , com as seguintes perguntas:

  1. Quanto ao tipo de pesquisa que nos permitiria avaliar melhor a plausibilidade da ideia e da instauração de currículos “epistemologicamente democráticos”: o que podemos somente com os conceitos destacados neste livro?
  2. Quanto ao comprometimento dos Departamentos, em especial os de Filosofia, nas discussões sobre educação: é pouco mesmo o papel das vontades, e maior o das questões “objetivas” (consolidação das identidades dos cursos de graduação e da rede de Pós-Graduação)?
  3. Nas reformas curriculares das licenciaturas, agora em curso: como podemos aplicar o que em QNE é pensado na direção da relação com a escola? Quais adaptações são necessárias para que apliquemos as críticas feitas no livro aos departamentos alheios (de Educação) sobre nós mesmos (do campo da Filosofia)?

Comentando Tolstoi, Wittgenstein disse que a compreensibilidade geral de um tópico é, no mais das vezes, dificultada pelo que “a maioria das pessoas quer ver”. Por causa disso, seguiu, “as coisas mais óbvias podem se tornar as mais difíceis de compreender. Não é relacionada ao entendimento que uma dificuldade precisa ser superada, senão à vontade” (Wittgenstein, 2000). Dadas certas dificuldades da vontade que mui provavelmente alguns de nós enfrentarão com a leitura de QNE — sejamos ou não do campo da Filosofia — só posso lembrar das palavras de outro excelso escritor, silogizando algumas delas num adágio final: em filosofia da educação, muitas vezes, o que a lida quer da gente é coragem.15

Notas

1 Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE_BNCC.pdf>. Acesso em: 09 de novembro de 2017.

3 Valeria perguntar-se aqui pela ideia que fazem os críticos, de ontem e hoje, acerca do improviso na arte, invariavelmente acionada como modelo de prática a ser seguida pela pedagogia, em detrimento de modelos como as práticas científicas.

4 Estranha ideia, sobretudo se pensarmos, por exemplo, no caráter inevitavelmente normativo do uso de dispositivos como mapas, que servem para representar e fornecer orientação (a não ser que se deseje flanar sem rumo, mapas prescrevem os melhores caminhos a seguir dadas certas finalidades: chegar mais rápido ao destino, ou com mais segurança, ou pelo caminho mais agradável etc.).

5 O que, aliás, não só era de conhecimento de Paulo Freire, como foi levado em conta como audiência privilegiada da Pedagogia do oprimido , conforme se conta na seção “Os sectários de esquerda e de direita” (ROCHA, p. 69). A esta altura faz-se imperioso lembrar de “A educação depois de 1968, ou cem anos de ilusão”, ensaio no qual Bento Prado Jr. reflete acerca das transformações nas ideias sobre educação no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Nosso filósofo aborda então o que chamou de “descarrilamento do pensamento progressista”, alinhavando críticas similares às que Rocha concretiza em QNE no que diz respeito a aporias que a filosofia da educação brasileira deveria, já naquela ocasião, enfrentar. Que me seja permitido sugerir ao leitor sugestionado uma visita a este belo e atualíssimo ensaio.

6 Aludo em especial a um dos poucos textos deste sociólogo traduzido do inglês para nossa pátria, “Para que servem as escolas?” (YOUNG, 2007).

7 A expressão foi emprestada de Tiago Irigaray, estudante licenciatura e bolsista do PIBID Filosofia UFRGS que, sob a supervisão da Prof.ª Rúbia Vogt, realiza sua iniciação à docência no Colégio de Aplicação da UFRGS. Tiago batizou assim o efeito de práticas didáticas — atualmente sob experimentação — nas quais os alunos respondem muito positivamente às novidades conceituais que lhes são apresentadas nas aulas de Filosofia.

8 Aprender a demonstrar teoremas, mais do que aprender a calcular, é um modo de alfabetização simbólica, de aprender a manipular diagramas e figuras, usar definições, seguir regras, imaginar movimentos e testar possibilidades de percepção e raciocínio. Somente alguma sorte de cegueira diante dos prazeres estéticos e intelectuais da matemática pode engendrar qualquer desprezo por seu ensino, ou apagar as possibilidades de articulação entre práticas matemáticas e artísticas.

9 Não somente em EFC (em especial no capítulo “Estudos curriculares e filosofia”), mas também em “Qual epistemologia? Qual currículo?” (ROCHA, 2016).

10 Em um texto que serve de excelente complemento bibliográfico a esta seção, “Epistemologia da interdisciplinaridade” (POMBO, 2008). 11 Utilizo o recurso à sinonímia possível entre traduzir e transmitir a partir da constatação de similaridades positivamente relevantes entre QNE e o precioso livrinho, há pouco publicado na França, Transmettre, apprendre (BLAIS, GAUCHET & OTTAVI, 2014).

12 O texto da lei encontra-se em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13415-16fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.html>.

13 De todas as opiniões de especialistas recentemente veiculadas sobre este assunto, destaco uma das mais recentes, de Bernadete Gatti, disponível no link a seguir. (A manchete afirma o óbvio.):  http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/11/bernardete-gatti-nossas-faculdades-nao-sabemformar-professores.html.

14 Disponível em: http://ced.ufsc.br/files/2015/07/RES-2-2015-CP-CNE-Diretrizes-CurricularesNacionais-para-a-forma%C3%A7%C3%A3o-inicial-em-n%C3%ADvel-superior.pd.

15 Agredeço aos colegas César Santos, Frank Sautter, Elisete Tomazetti, Mitieli Seixas e Rogério Saucedo, pelas diversas análises e críticas que compartilhamos na tarde de debates sobre o QNE organizada pelo Departamento de Filosofia da UFSM — algumas das quais foram incorporadas a este texto.

Referências

BLAIS, Marie-Claude & GAUCHET & OTTAVI, Dominique. Transmettre, apprendre . Paris: Stock, 2014.

POMBO, Olga. Epistemologia da interdisciplinaridade. Revista do Centro de Educação de Letras da Unioeste — Campus de Foz do Iguaçu , vol. 10, n. 1, pp. 940, 2008.

PRADO Jr., Bento. A educação depois de 1968 ou cem anos de ilusão. In: ______. Descaminhos da Educação. Pós — 68. São Paulo: Brasiliense, 1980. pp. 9-30.

ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de filosofia e currículo . Petrópolis: Vozes, 2008.

______. Qual epistemologia? Qual currículo?. In: SECCO, Gisele Dalva (Ed.) Epistemologia e currículo: registros do II Workshop de Filosofia e Ensino . Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. pp. 95-132.

______. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire . São Paulo: Contexto. 2017.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas?. Educação e Sociedade . Campinas, vol. 28, n. 101, pp. 1287-1302, 2007.

Gisele Dalva Secco1 – Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Brasil. E-mail: gisele.secco@ufrgs.br

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Ensino, gênero e diversidade / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2017

Pesquisas recentes no campo da História da Educação e História do Ensino de História indicam que a escola é um espaço político. Tal característica, ainda que não seja exclusiva do tempo presente, tem sido objeto de disputas bastante acirradas. Práticas docentes, conteúdos ministrados e mesmo a função de uma formação cidadã emergem como passíveis de questionamentos e judicialização por parte de setores conservadores da sociedade, inclusive por meio de projetos de lei apresentados por iniciativas como “Escola sem Partido”, que visam, entre outras questões, o cerceamento da autonomia docente e a retirada de referências à identidade de gênero, diversidade e orientação sexual dos Planos Estaduais e Municipais de Educação. Nesse sentido, O número 29 da revista Fronteiras, a Revista Catarinense de História, traz o Dossiê – Ensino, Gênero e Diversidade: embates contemporâneos, cujo objetivo é promover espaço para os debates contemporâneos a respeito das questões políticas, de gênero, sexualidade e das relações étnico-raciais em suas diferentes possibilidades de articulação com o espaço escolar.

Em Ditadura militar e relações de gênero: problematizando o ensino de História por meio das ideias históricas de estudantes do Ensino Médio, Elaine Prochnow Pires e Cristiani Bereta da Silva analisam as ideias históricas de jovens estudantes do ensino médio de uma escola estadual de Santa Catarina a respeito dos conteúdos sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) com o objetivo de discutir as representações das mulheres e das relações de gênero no ensino de história do Brasil. As autoras propõem uma sequência didática que problematiza as narrativas construídas pelos(as) estudantes sobre o tema, visando refinar sensibilidades e desenvolver olhares mais críticos sobre questões de gênero, feminismos e história das mulheres.

Vanderlei Machado e Carla Simone Rodeghero apresentam Os Livros didáticos e a História da participação das mulheres no Movimento Estudantil, artigo no qual analisam a maneira como onze livros didáticos de história (distribuídos pelo PNLEM / 2008) abordam, por meio de textos e imagens, a participação feminina no movimento estudantil brasileiro entre os anos de 1964 e 1968. Para os autores, o número de pesquisas que abordam participação feminina no movimento estudantil no Brasil cresce, no entanto, referências veiculadas nos livros didáticos ainda são poucas.

Em Da teoria à prática: gênero, saberes docentes e desafios contemporâneos, Cintia Lima Crescêncio discute as contradições de nosso tempo presente marcado, por um lado, pelo fortalecimento dos estudos de gênero e consequente conquista de espaços no campo do ensino, especialmente por meio da formação de professores e, por outro, pela ascensão de projetos de lei com características conservadoras, inspirados em programas como o Escola sem Partido.

Ana Maria Marques, por intermédio da análise de duas telas históricas de Moacyr Freitas, apresenta debates referentes às questões de gênero e étnico-raciais em Havia uma Rosa e uma Vitória na representação pictórica da História de Mato Grosso. A autora propõe a desconstrução de violências, dentre as quais as de gênero, ao analisar as duas únicas telas do acervo do autor em questão que trazem mulheres como protagonistas.

Ainda alinhado a proposta deste dossiê, apresentamos a tradução do artigo “Não ensinamos mais a história da França na escola!” Mas ensinamos o que então?, de Henry Rousso. Neste, o autor posiciona-se diante de uma querela ocorrida na primavera francesa de 2015 a respeito de novos programas de História que deveriam nortear o ensino escolar da disciplina. Tal texto possibilita-nos pensar acerca de questões como as potencialidades do ensino de história e, consequentemente, de seus diversos usos políticos.

Na seção Artigos, Thiago Reisdorfer, em Uni-la: O processo de construção de uma universidade intercultural para a integração latino-americana, assume a instituição universitária e suas diferentes dimensões como objeto de pesquisa e analisa a formação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, percebendo-a pelo viés da integração intercultural.

Daniela Queiroz Campos, em Garotas de papel: a arte gráfica e os traços de Alceu Penna trata da produção gráfica de Alceu Penna. Através da análise meticulosa de colunas e daquilo que as caracteriza – diagramação, cores, imagens, traços, qualidade de impressão – apresenta um panorama sobre a arte gráfica brasileira no século XX e problematiza elementos concernentes ao reconhecimento e / ou possibilidade de enquadramento de Penna como designer.

O artigo Transformações urbanas na cidade de Florianópolis (1989-2011): a derrubada do Bar do Chico no bairro Campeche, de Carolina do Amarante e Luciana Rossato, discute as mudanças na cidade de Florianópolis, desde a década de 1980, a partir da análise dos discursos veiculados nos jornais. Para as autoras, os textos jornalísticos promovem e defendem a necessidade de preservar a identidade e a cultura açoriana, ao mesmo tempo em que a cidade e seus bairros costeiros como, por exemplo, o Campeche, passam por transformações devido ao crescimento populacional decorrente do desenvolvimento do turismo. O caso do Bar do Chico, construído na década de 1980 e demolido vinte anos depois, torna-se exemplificativo para a análise em questão.

Karla Simone Willemann Schütz, em “Uma incursão estranha”: a história oral na UFSC e as entrevistas de Simão Willemann (década de 1970), examina aspectos da criação e da trajetória do Laboratório de História Oral da Universidade Federal de Santa Catarina e mapeia alguns dos pressupostos que orientaram seu estabelecimento. Para tanto, parte de um estudo realizado sobre as pesquisas desenvolvidas pelo historiador catarinense Simão Willemann durante a década de 1970, em diálogo com publicações brasileiras sobre história oral, editadas no país entre as décadas de 1970 e 1990.

Na seção Resenhas, Natan Alves David realiza uma análise de Um país impresso: História do Tempo Presente e revistas semanais no Brasil, publicação de 2014 organizada por Silvia Maria Favero Arend. Ana Terra de Leon resenha Vigiar e Medicar: estratégias de medicalização da infância, livro organizado por Sandra Caponi, Marua Fernanda Vásquez-Valencia e Marta Verdi, publicado em 2016.

Agradecemos a todas e a todos que colaboraram com este número. Boa leitura!

Caroline Jaques Cubas

Joana Vieira Borges

Organizadoras


CUBAS, Caroline Jaques; BORGES, Joana Vieira. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.29, 2017. Acessar dossiê [DR]

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Mulheres, palcos e letras: evocando os 150 anos do nascimento de Mercedes Blasco / Historiae / 2017

No segundo volume de 2017 apresentamos o dossiê Mulheres, palcos e letras: evocando os 150 anos do nascimento de Mercedes Blasco. Assim, na passagem do 150º aniversário de Mercedes Blasco, pseudônimo pelo qual ficou conhecida a célebre atriz e escritora portuguesa Conceição Vitória Marques (Mina de São Domingos, concelho de Mértola, 1867 – Lisboa, 1961), a presente coletânea de estudos pretende compreender o protagonismo nos diversos “palcos da vida” desempenhado pelas mulheres no mundo, ao longo dos tempos.

No conjunto de artigos agora reunidos assinalamos ainda a passagem dos 50 anos da morte de Virgínia Victorino (1895-1967) e o 600.º aniversário de Isotta Nogarola (1418-1466) expressão da vitalidade da pena feminina. Também o centenário da revolução Russa não foi esquecido trazendo à memória a icónica Zinaida Serebriakova (1894-1967).

Sarah Bernhardt (1844-1923) e Carmen Miranda (1909-1955) são alguns dos nomes que ocuparam por diversas vezes lugares de destaque que a imprensa coeva soube registrar. Artistas conhecidas e admiradas pela sua beleza e elegância, desconhecem-se, na grande maioria das vezes, facetas não menos interessantes do seu percurso que foram preteridas face à mediatização de que foram alvo.

Foram aventureiras e pioneiras aquelas cujo arrojo tantas vezes escandalizou a sociedade da época; a título de exemplo, lembramos Amélia Earhart (1897-1937) nos Estados Unidos da América e Maria de Lourdes Braga de Sá Teixeira (1907-1984) em Portugal. Se no teatro isabelino os papéis femininos eram representados por homens, houve, desde então, toda uma “guerra” para que as mulheres pudessem alcançar a justa visibilidade. Personagens trágicas como a Severa ocupam um lugar de destaque no imaginário cultural ocidental. Que vozes ainda hoje ecoam das figuras que ousaram fazer do palco a sua tribuna? Recuperar biografias e reabilitar a memória tantas vezes obliterada da História mundial é também o propósito do dossiê que organizamos para a Historiæ.

Isabel Lousada – Doutora (Universidade Nova de Lisboa)

Rosa Fina – Doutora (Universidade Nova de Lisboa)

Fátima Mariano – Doutora (Universidade Nova de Lisboa) Organizadoras


LOUSADA, Isabel; FINA, Rosa; MARIANO, Fátima. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 8, n. 2, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Fontes e Métodos na escrita da História: novas perspectivas de abordagens / Revista Maracanan / 2017

“Sem documentos, sem história”.[1] A máxima, tão conhecida por historiadores de formação – ainda que nem sempre compreendida, de fato –, tem origem no tempo em que se ansiava para a disciplina um estatuto científico. Apesar da atualidade ainda permanente desse debate sobre a história ser ou não ciência, é inquestionável a transformação pela qual passou a substância do trabalho do historiador ao longo do tempo, desde a publicação de Introdução aos Estudos Históricos (1898).

O que nunca se transformou foi a crença de que o cerne da operação historiográfica centra-se no trato direto com as fontes.[2] Mesmo os críticos mais tenazes de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos (para nos restringirmos à tradição francesa) jamais deixaram de lado a possibilidade de se fazer história partindo de uma dada “realidade” do que foi. A fonte seria isso, essa possibilidade, ou caminho.

Evidentemente que a natureza do que se entende por fonte modificou-se na mesma medida em que a ciência histórica amadureceu. Para Marc Bloch e Lucien Febvre, ela poderia ser “qualquer coisa”, desde que colaborasse em responder às perguntas formuladas pelo historiador – a famosa concepção de história-problema. Autores igualmente importantes no campo da teoria da história qualificam fonte como “vestígio”, como o italiano Carlo Ginzburg. [3] Assim, mais do que um documento escrito, oriundo, normalmente, da burocracia estatal, como criam os metódicos, o historiador deve apelar para aquilo que restou do passado no seu presente. [4]

Mas, então, como realizar esse trabalho?

Partindo do método crítico, diriam alguns. Sim, aquela forma de tratar a fonte também evidenciada em Introdução aos Estudos Históricos, não à toa considerado um manual da escola metódica, a partir da influência alemã. O historiador deve questionar o documento, contextualizá-lo, atentar para suas especificidades. Saber, em última análise, quem o produziu, por que e para quem. Havia também certa obsessão em distinguir um documento original de uma falsificação, herança dos eruditos desde o Renascimento. [5] Afinal, como um documento falso poderia trazer a verdade de que necessitava o historiador?

Ao longo do novecentos, essa postura também se alterou. No seu mais famoso trabalho, Bloch indica que mesmo a falsificação pode subsidiar o historiador. Sempre importa sua questão, aquilo que, com os olhos do presente, ele busca investigar no passado. De todo modo, a análise crítica, juntamente com a comparação, seguiu vital para o historiador profissional. “O testemunho só fala quando questionado” [6] torna-se nossa nova máxima. Tal questionamento, entretanto, segue um roteiro semelhante ao anterior: quem disse, por que, com que intenção? Se mentiu, por que o fez?

Até mesmo após os fundadores dos Annales, o método crítico não perdeu sua majestade. Qualquer historiador que se preze deve tê-lo em mente no processo de pesquisa. No entanto, assim como a concepção do que pode ser fonte, aquilo que se entende por metodologia histórica também foi alterada – ou melhor, ampliada.

Como métodos, entende-se a maneira de tratar a fonte. Mesmo com os críticos pós-modernos indagando se haveria alguma possibilidade de encontro do historiador com uma realidade prévia (ou, ao fim e ao cabo, se a própria realidade existiria, diriam eles), e, portanto, questionando esse lugar da fonte e do método, ainda hoje, grosso modo, os profissionais que fazem história centram sua análise no passado presente que é a fonte. E fazem isso tendo em vista não só a crítica histórica, mas uma série de metodologias que surgiram e vem surgindo ao longo dos anos.

Hoje existem inúmeras possibilidades sobre a forma como a fonte pode ser investigada, tratada, ou, como diria Bloch, interrogada. Análise dos discursos, história oral, história comparada, história dos conceitos, história serial e história quantitativa são apenas algumas delas. Métodos e formas que nos abrem um enorme leque de alternativas para o fazer histórico. O presente dossiê tem como propósito contar um pouco dessa história, reunindo de forma plural uma variedade de fontes e métodos utilizados pelos autores para a elaboração de seus artigos.

Em “A estranha vida dos objetos: Os alcances e limites de uma historiografia da ciência a partir dos instrumentos científicos”, Janaína Lacerda Furtado reflete acerca da cultura material como fonte e objeto para o historiador, a partir de uma análise das propostas teóricas e metodológicas surgidas nos últimos anos em torno da temática. Também Tiago Luís Gil, em seu artigo “As Listas Nominativas de habitantes como fontes para a história dos preços, 1798- 1810”, apresenta ao leitor as possibilidades de trabalho com um tipo específico de documento – as listas nominativas de habitantes – apresentando-o como fonte relevante para tratar do período colonial brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao estudo dos preços. Já Paulo Roberto de Jesus Menezes contextualiza as “galerias ilustradas”, em “Retrato, Biografia e Conhecimento Histórico no Brasil oitocentista”. Além disso, o autor investiga como tais fontes são importantes por portar uma determinada memória a partir da conexão entre imagens e textos.

Os historiadores Francisco Gouvea de Souza, Géssica Guimarães Gaio e Thiago Lima Nicodemo propõem em seu texto “Uma lágrima sobre a cicatriz: O desmonte da Universidade pública como desafio à reflexão teórica (#UERJresiste)” uma discussão em torno do nosso ofício, enquanto pesquisadores e professores, tomando a própria historiografia como fonte de pesquisa, e o fazer histórico, por conseguinte, como objeto de estudos. Outro artigo elaborado coletivamente, “‘Entre os artistas amigos o momento bom de ternura é o aparecimento de obra nova’: O exercício da crítica literária na correspondência de Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade (1924-1928)”, de Giuseppe Roncalli Ponce León de Oliveira, Marinalva Vilar de Lima e José Machado de Nóbrega, busca privilegiar as cartas trocadas entre aqueles intelectuais na década de 1920. A partir desse caminho, observou-se o debate de ideias entre os pares, sobretudo no que dizia respeito à crítica literária, tão fundamental para a configuração do movimento modernista brasileiro.

Em “A Lei de Terras de 1850 e os Relatórios do Ministério da Agricultura entre 1873- 1889”, Pedro Parga Rodrigues seleciona os referidos relatórios como fontes centrais para a pesquisa. Ao fazê-lo, traz uma nova leitura da problemática exposta, partindo do princípio, por exemplo, de que os relatórios indicam que a aplicação da legislação não foi homogênea em todo o território nacional, indicando a necessidade do olhar específico do historiador para compreender as vicissitudes de cada província.

Robério Américo do Carmo Souza, ao finalizar os artigos que compõem a parte temática do dossiê, problematiza a narrativa oral, refletindo sobre sua própria construção como fonte. Tal elaboração é feita ativamente, vale lembrar, pelo historiador. “Narrativas orais como fontes para uma compreensão histórica da experiência vivida” faz parte, portanto, de um contexto investigativo importante para o campo da história oral – metodologia em crescente uso pelos historiadores, ainda que, de certo modo, permaneça sendo objeto constante de julgamentos por parte dos mais críticos.

Esta edição é enriquecida, ainda, com uma entrevista, uma tradução, além de notas de pesquisa, um artigo livre e um depoimento. Em uma agradável conversa, o arquivista Jaime Antunes, nos brindou com as memórias dos [muitos] anos em que esteve à frente da direção-geral do Arquivo Nacional. Antunes destacou aspectos de sua trajetória profissional, desde o seu primeiro estágio com ênfase para os esforços que possibilitaram a Lei de Arquivos, assim como sua importante atuação para garantir a aprovação da Lei de Acesso à Informação. Legislações recentes que asseguraram, não apenas aos historiadores, mas também ao público em geral, a disponibilidade dos documentos históricos, atravessando, para tanto, as polêmicas que ainda envolvem os arquivos da Ditadura Militar no Brasil. Ao longo da entrevista concedida à Revista Maracanan, Antunes relatou os tortuosos caminhos percorridos pelas leis de abertura de documentos ao público e a criação do “Centro de documentação Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985)”.

Em trabalho conjunto, Beatriz de Moraes Vieira e Renata Duarte nos apresentam a tradução do artigo “A escrita da história: Entre literatura, memória e justiça”, de Enzo Traverso. Um texto que nos ajuda a pensar questões metodológicas debatidas pelos historiadores nos últimos vinte anos, desde a natureza da história enquanto narrativa, até a relação entre a escrita da história e a justiça, recuperando que a história é, sobretudo, um ato de escrita.

Em um estudo sobre as redes constituídas por letrados brasileiros e portugueses no final do século XIX, Rodrigo Perez Oliveira, se debruça em seu artigo “Uma República luso-brasileira das letras: a interlocução entre Eduardo Prado, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós no final do século XIX” sobre a correspondência entre os escritores mencionados para compreender as angústias e inquietudes desta intelectualidade luso-brasileira.

Nesta edição apresentamos três notas de pesquisa. Em “A Colônia Juliano Moreira e seus homens ‘desviantes’ (1930-1945)”, as autoras Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes, Renata Lopes de Almeida Marinho e Aléxia Iduíno Duarte de Mello voltam um olhar cuidadoso para o “tratamento” da homossexualidade. Partindo de um espaço que desperta a atenção de diferentes campos de estudo, atravessam o período varguista, buscando refletir sobre o ideal de masculinidade desta conjuntura. A partir de uma contribuição estrangeira, Rodrigo Cabrera Pertusatti se debruça sobre o estudo de duas línguas da Baixa Mesopotâmia, o sumério e o acádio, em “Consideraciones en torno al contacto entre lenguas y el cambio lingüístico. Repensando el bilingüismo sumerio-acadio del tercer y segundo milenio a. C.1”. O texto de Thiago Bastos de Souza apresenta os resultados parciais de sua dissertação de mestrado. Em “Recopilación Historial / Historia de Santa Marta: notícias de uma ficção política” o autor objetiva a formulação conceitual de ficção política, enquanto uma categoria de análise sobre a crônica Recopilación Historial, escrita pelo provincial da ordem franciscana frei Pedro de Aguado para o Vice-Reino da Nueva Granada no século XVI.

Por fim, pensando a interface entre as fontes e os métodos de pesquisa, a historiadora Márcia Motta, rompe com as especificidades e limites das áreas de conhecimento. Em seu depoimento, “Um INCT em construção: Proprietas (História Social das Propriedades e Direitos de acesso)”, discorre acerca da construção de uma rede multidisciplinar de pesquisadores, norteados por um tema comum de pesquisa, a propriedade e o direito de acesso. O depoimento nos mostra, além da identidade da Rede Proprietas, e de todo o trabalho da equipe envolvida, o quanto o potencial de nossos pesquisadores é capaz de alcançar quando lhes são concedidas as condições para que isso ocorra. Diante das crises que assolam a todas as instituições de ensino, ciência e tecnologia, produção de conhecimento ou salvaguarde do patrimônio – histórico, artístico, documental, intelectual, etc. –, tais escritos nos levam a refletir acerca de diversas questões que permeiam nossa sociedade. Deste modo, a publicação do referido dossiê foi uma conquista dos professores e pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em tempos de crise, continuamos resistindo.

Notas

  1. LANGLOIS, Ch. V.; SEIGNOBOS, Ch. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946, p. 15.
  2. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica – 1. Um lugar social. In: A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65-77.
  3. Ginzburg, além de entender a fonte como vestígio, indica o trabalho do historiador como algo aproximado ao de um detetive. Cf. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.
  4. “A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta das flores habituais. Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois. Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 249.
  5. Cf. FURET, François. O nascimento da história. In: A oficina da história. Lisboa: Gradiva, p. 109-135; PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma herança? História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 103-122, mar. 2011.
  6. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 78.

Ana Carolina Galante Delmas – Professora com vínculo pós-doutoral ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ). Possui graduação, mestrado e doutorado em História pela UERJ. Suas pesquisas têm se voltado para a história do Brasil no período joanino e história do Brasil Império, privilegiando as abordagens no campo da história política, da história cultural e da história do livro e da leitura. Integra o Laboratório Redes de Poder e Relações Culturais (UERJ) e o Grupo de Pesquisa Ideias, cultura e política na formação da nacionalidade brasileira – CNPq.

Marina Monteiro Machado – Professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense e mestrado e doutorado em História Social pela mesma instituição. Atualmente, é coordenadora de curso da FCE-UERJ; integrante do Núcleo de História Rural; membro-fundador e vice-coordenadora do INCT Proprietas. É autora do livro Entre Fronteiras: posses e terras indígenas nos sertões (Rio de Janeiro, 1792-1824) (Horizonte / Unicentro / EdUFF, 2012).

Isadora Tavares Maleval – Professora da área de Teoria e Metodologia da História no Departamento de História de Campos da Universidade Federal Fluminense (CHT-UFF). Possui doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-UERJ); cumpriu estágio doutoral na Université Paris-Sorbonne e pós-doutoral no Departamento de História da UERJ. É especialista em temas relacionados à teoria da história, historiografia, história do Brasil Império e história do livro e da leitura.


DELMAS, Ana Carolina Galante; MACHADO, Marina Monteiro; MALEVAL, Isadora Tavares. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Série Verbetes Enciclopédicos | Angela Paiva Dionisio

Na contemporaneidade, é comum o aparecimento de novas formas de leitura que extrapolam recursos linguísticos. Os textos que circulam na escola, por exemplo, combinam imagens com palavras, dentre outras semioses, exigindo, assim, competências do aluno, além do domínio do código linguístico, de modo que seja possível dar sentidos aos textos lidos dentro e fora do contexto escolar.

Essa junção de modos semióticos distintos justifica o fenômeno da multimodalidade como ferramenta que subsidia os indivíduos na leitura/interpretação de textos multissemióticos (DIONISIO; VASCONCELOS, 2013), cabendo, portanto, à escola, enquanto instância privilegiada para a exploração de práticas de letramentos, propiciar eventos de leitura desses tipos de textos, a fim de que possa desenvolver uma aprendizagem mais eficiente. Leia Mais

A formação docente do PIBID Letras. Alguns recortes de experiências | Alexandra Santos Pinheiro e Rita Maria Decarli Bottega

O livro “A formação docente do PIBID Letras no Brasil: reflexões e (con)vivências”, organizado pelas autoras Alexandra Santos Pinheiro e Rita Maria Decarli Bottega, e publicado pela editora Pontes em 2014, reúne artigos que relatam experiências vivenciadas em subprojetos do PIBID Letras de 8 universidades brasileiras, localizadas em cinco estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A inquestionável validade do PIBID para a formação do licenciando dos cursos de Letras é o tema gerador do livro e uma posição partilhada pelos 11 subprojetos, cujo relato das atividades e/ou reflexão de conceitos e metodologia de trabalho compõe(m) a obra. Apesar dessa posição partilhada, os 10 capítulos que integram a obra distinguem-se pela natureza das atividades realizadas em cada subprojeto e/ou por buscarem embasamento teórico em proposições teóricas distintas, ainda que o alvo seja a formação do professor de língua portuguesa.

O capítulo 1, “Formação inicial dos docentes de letras na UFT – Experiências a partir da interdisciplinaridade”, discute as dificuldades enfrentadas com o trabalho interdisciplinar no âmbito do Projeto PIBID-PIBID, envolvendo os cursos de licenciatura em Letras, História, Biologia e Geografia da UFT. Dentre as considerações que o capítulo apresenta para o professor de língua portuguesa, ressaltam-se: a necessidade de repensar conteúdos tradicionais, que valorizam apenas conhecimentos linguísticos e literários em detrimento do desenvolvimento de habilidades e competências, as quais devem ser contempladas; e a necessidade de valorizar “discussões sociais” na proposição de conteúdos conceituais e metodologias de ensino. Leia Mais

Modelos didáticos de gêneros textuais. As construções dos alunos professores do PIBID Letras inglês | Lidia Stutz

Esta obra, organizada por Lidia Stutz, professora adjunta da Universidade Estadual do Centro-Oeste de Guarapuava -PR (UNICENTRO), apresenta uma coletânea de cinco modelos didáticos (MD) de gêneros textuais realizados no âmbito do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), desenvolvidos por alunos de letras: língua inglesa, da referida instituição. Além dos cinco capítulos dedicados à apresentação dos MD, a obra conta com um prefácio da professora Vera Lúcia Lopes Cristóvão, da Universidade Estadual de Londrina, e posfácio do professor Kleber Aparecido da Silva, da Universidade de Brasília. Após o prefácio, antes de sermos apresentados aos MD propostos, podemos conhecer o funcionamento do PIBID Letras-inglês, na apresentação da organizadora da obra, e o local onde as intervenções didáticas foram realizadas, no capítulo escrito por Priscila A. da Fonseca Lanferdini, supervisora do grupo PIBID Letras-inglês de Guarapuava. Finalizando a obra, podemos conhecer um pouco mais sobre cada autor em suas respectivas biodatas.

O prefácio da obra inicia-se com uma comparação entre os protestos de junho de 2013, no Brasil, dentre eles, aqueles que reivindicavam mais qualidade para a educação, com os protestos ocorridos no Chile, em 2006. Cristóvão interroga, quando mencionamos qualidade na educação, o que realmente estamos querendo dizer. Para tanto, recorre a uma entrevista [1] de Paulo Freire concedida ao educador Moacir Gadotti, em 1993, em que tratou sobre a importância de se valorizar as dimensões regionais “para compreender a cultura multiculturalmente” (p. 8). A valorização do trabalho multicultural depende da recriação de táticas diárias para se explorar de modo amplo o sentido desse trabalho multicultural na educação. Leia Mais

América Latina x Estados Unidos. Uma relação turbulenta | Joseph S. Tulchin

O livro do historiador estadunidense Joseph Tulchin, recentemente lançado no Brasil, traz um panorama das relações entre América Latina e Estados Unidos desde o processo das independências até o presente, com foco na política externa adotada nos diferentes períodos históricos pelos Estados Unidos e pelos diversos países da América Latina, bem como das diferentes iniciativas de integração hemisférica desde o século XIX, após as independências, até os dias atuais. Tratando-se de uma narrativa factual bem escrita, com poucas notas e de fácil assimilação pelo leitor médio, a publicação tem o formato de um manual básico para estudantes de História e de Relações Internacionais, ora tratando diretamente das relações entre Estados Unidos e América Latina, ora trazendo uma história comparativa dos processos políticos no hemisfério. A maior parte das referências utilizadas pelo autor é de autores norte-americanos, havendo pouca interação com a produção historiográfica latino-americana sobre os diversos temas históricos tratados na obra.

Joseph Tulchin é PhD em História pela Universidade Harvard com especialização em América Latina, tendo sido professor das Universidades de Yale e Carolina do Norte; além de ter dirigido o tradicional Programa Latino-americano do Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington. O trabalho de pesquisa mais relevante de sua carreira se concentra na história argentina do século XX e suas relações com os Estados Unidos (TULCHIN 1990). Leia Mais

Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010 | Leticia Reina e Ricardo Pérez-Montfort

Obras escritas com a participação de diversos autores geralmente abordam um determinado tema a partir de múltiplos enfoques, mas este não é o caso do livro Fin de siglos¿ Fin de ciclos? 1810, 1910, 2010; nesta obra, organizada por Letícia Reina e Pérez Montfort, 27 autores escreveram sobre três conjunturas históricas relevantes para o México, e o resultado do livro foi uma narrativa marcada pela pluralidade de assuntos e interpretações – uma História no “plural”.

Os textos reunidos no livro de Reina e Péres-Montfort registram o pensamento dos pesquisadores que participaram do seminário de especialização realizado pelo Instituto Nacional de Antropologia e História do México (INAH) e pelo Centro de Investigações e Estudos Superiores de Antropologia Social (CIESAS). A proposta do seminário consistia em promover uma discussão sobre a história do México a partir das comemorações decorrentes do bicentenário da Independência e do primeiro centenário da Revolução Mexicana, ambos completados em 2010. Leia Mais

Lugares e Memória do Século XX / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2017

O presente número da Revista Clio se inicia com os textos reunidos no Dossiê “Lugares e Memória da Cultura” organizado pelos Professores Antônio Paulo Rezende (UFPE) e Augusto Neves (UNINABUCO). Seu objetivo é reunir artigos que analisem historicamente as relações culturais, destacando a sua temporalidade e como elas influenciam na construção do poder na sociedade ao longo do século XX.

No primeiro texto, Janaína Cardoso de Mello toma como objeto de estudo as representações do poder régio ilustrado a partir das relações entre arquitetura, mobiliário e história no âmbito da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Na sequência, Luciana Penna-Franca aborda a cena cultural do teatro amador carioca no final do século XIX e início do XX a partir das publicações de “assuntos teatrais” nos periódicos do Rio de Janeiro, observando sua influência na vivências artísticas e no cotidiano da cidade.

O terceiro texto do dossiê foi elaborado por Aldo José Morais Silva a partir dos debates sobre a escolha de um hino para a cidade de Feira de Santana (BA) entre o final do século XIX e o início do XX. O artigo enfoca as razões das escolhas e como elas representavam as expectativas da sociedade local em relação à sua autoimagem. A partir dos escritos de Manuel Quirino e à luz das concepções propostas por Nora, Morse e Spivak, Bruno Pinheiro analisa os lugares de memória na fase do pósabolição em Salvador (BA).

O quinto texto da coletânea especial enfoca a organização sindical dos trabalhadores em São Paulo. Alzira Lobo de Arruda Campos, Marília Gomes Ghizzi Godoy e Rafael Lopes Souza discutem as conexões e antagonismos entre as influências teóricas europeias e as características históricas do Brasil no processo de construção das organizações de luta em defesa dos trabalhadores.

O sexto texto é foi escrito por Márcio Rogério Olivato Pozzer e analisa o papel histórico das políticas públicas de patrimônio cultural para os museus no México ao longo do século XX, mas precisamente a partir da Revolução Mexicana de 1910. O dossiê, neste número, se encerra com o texto de Carolina C. de Souza Martins e Elio de Jesus Pantoja Alves sobre a experiência de pais e mães de santo no Terreiro do Egito, no Maranhão, na busca pela ancestralidade numa região do município de São Luís que desde os anos 1980 vem sendo ameaçada pela expansão do complexo portuário da capital maranhense.

Para além dos artigos que compõem o dossiê, o presente número da Revista Clio veicula também mais cinco artigos livres e duas resenhas. O primeiro artigo livre foi escrito por Anne Karolline Campos Mendonça e se intitula “As mulheres sem nome: o desenvolvimento de argumentos jurídicos baseados no estatuto feminino. Comarca das Alagoas – Capitania de Pernambuco (1716-1765)”. Nele a autora analisa como as elites coloniais faziam valer seus interesses se apropriando do discurso jurídico sobre aqueles que eram considerados inferiores, no caso específico, sobre as mulheres. Avançamos então para o século XIX, com um estudo sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul intitulado “As Companhias Colonizadoras no processo da imigração italiana em territorialidades do Vale do Taquari / Rio Grande do Sul”, apresentado por Janaine Trombini, Luís Fernando da Silva Laroque e Ana Paula Castoldi, com especial atenção para a atuação das firmas Bastos & Companhia, Cia Colonizadora Rio-Grandense e Tchener & Cia, que existiram do final do século XIX até meados da década de 1920.

Gabriela Fernandes de Siqueira é a autora do terceiro artigo livre veiculado neste número e intitulado “A questão da salubridade em Natal nas primeiras décadas do século XX na ótica dos periódicos A República e Diário do Natal”. Para elaborar seu texto, a autora utilizou, além dos periódicos citados, outras fontes tais como mensagens de governadores, leis e decretos municipais e estaduais. O artigo enfoca as contradições do processo de modernização e aplicação de medidas de higiene na capital do Rio Grande do Norte nas primeiras décadas do século XX. No quarto artigo da série, nos deparamos com a história de um trabalhador tentando fazer valer seus direitos mediante uma ação na Justiça do Trabalho em 1965. Trata-se dos resultados da pesquisa realizada por Márcio Ananias Ferreira Vilela e Marcelo Goés Tavares no acervo de processos trabalhistas conservados na Universidade Federal de Pernambuco. O artigo se intitula “A peleja de João Amaro: um trabalhador rural na luta por direitos (Pernambuco, anos 1960)”. O quinto artigo livre foi escrito por Lourival dos Santos, se intitula “Por uma história do negro no sul do Mato Grosso: história oral de quilombolas de Mato Grosso do Sul e a (re)invenção da tradição africana no cerrado brasileiro”. O texto aborda uma das mais candentes questões da atualidade no Brasil. O autor analisa a oposição surgida entre o Instituto Histórico do Mato Grosso do Sul e a Fundação Palmares sobre a identificação de comunidade quilombolas naquele estado, na primeira década do atual século.

Fechando o presente número, Clio veicula uma resenha, escrita por Wallas Jefferson de Lima e enfoca o livro As origens do sexo: uma história da primeira revolução sexual, escrito por Faramerz Dabhoiwala e publicado no Brasil pela Editora Globo, em 2013, com a tradução de Rafael Mantovani.

A Equipe Editorial da Revista Clio agradece a todos os autores, pareceristas, revisores e colaboradores que contribuíram para a preparação deste número e deseja uma boa leitura.

George Cabral – Editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: georgecabral@yahoo.com

Antônio Paulo Rezende – Organizador do Dossiê. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: cielo77@uol.com.br

Augusto Neves – Organizador do Dossiê. Professor da Faculdade Uninabuco. E-mail: augustonev@gmail.com

Rômulo Nascimento – Vice- editor da Revista. Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: romuloxavier7@hotmail.com


CABRAL, George; REZENDE, Antônio Paulo; NEVES, Augusto; NASCIMENTO, Rômulo. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.35, n.2, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.1, n.2, jul./dez. 2017.

Editorial

Apresentação

Artigos

A grande estrangeira: sobre literatura – FOUCAULT (A)

FOUCAULT, Michel. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. Resenha de: LIMA,Wallas Jefferson de. Antítese, v. 10, n. 20, p. 1115-1119, jul./dez., 2017.

Além da multiplicidade de releituras, acredita-se que o mais impressionante na obra de Michel Foucault é sua pluralidade de interesses, temas e objetos de estudos, a aplicação que ele fez de sua habilidade de escrita e pensamento a tantos campos de pesquisa, indo da Filosofia e da História a ensaios acerca do poder, da loucura, da sexualidade, da penalidade, da linguagem e da estética, sem esquecer os registros de suas aulas, as entrevistas concedidas e sua atuação direta nos acontecimentos da França de 1968. Teria sido tudo isso um acaso? Alguns afirmam que essa variedade simbiótica entre teoria e prática foucaultiana deve ser aclamada como riqueza axiomática do filósofo. Outros problematizam que tal escrita, apesar de abastada, tem sido pouco compreendida em sua profundidade. Como é possível que um homem tenha conseguido escrever acerca de tantas temáticas a partir de diferentes aportes teóricos (às vezes contraditórios e discordantes entre si) e sob óticas tão heterogêneas? Qual é o segredo da escrita de Foucault? Tais questões, aparentemente irrelevantes, são suficientes para explicar os motivos da paralisia crítica presente atualmente nas Ciências Sociais em relação ao autor de História da Loucura. Ocorre que se tem esbarrado, quase sempre, na espantosa complexidade dessa escrita polivalente, ainda hoje não assimilada em sua totalidade. E poderia ser diferente?  Entretanto, dentre tantos livros já escritos acerca de Foucault, talvez pouco tenha sido dito em relação ao complexo vínculo estabelecido entre ele e a Literatura. O que um tem a dizer a respeito do outro? Em A grande estrangeira, tais questões são problematizadas e demonstram que até mesmo os labirintos da escrita se tornaram um problema para esse filósofo. Essa inquietação com o literário, é verdade, não é algo novo em Foucault. Mas, constata-se que nessa obra ela ganhou novas perspectivas analíticas: o que está em jogo é uma investigação que toma como problema filosófico a polivalência das formas, as estratégias, os usos, as modalidades, as enunciações, os procedimentos e a construção das narrativas dentro do campo literário.

Formulada assim, é possível asseverar que o elo entre Foucault e a Literatura abarca múltiplos desdobramentos. A presente edição sustenta-se referencialmente em transcrições datilografadas de pronunciamentos públicos feitos pelo próprio Michel Foucault – seja em programas radiofônicos ou em conferências. É o caso do primeiro capítulo, A linguagem da loucura, em que o filósofo analisa as diferentes formas de linguagens patológicas por meio de duas transmissões radiofônicas no programa L’Usage de la Parole, veiculados pela RTF France III National e dirigido por Jean Doat. Foucault analisa a figura do louco a partir de releituras de Cervantes, Shakespeare, Corneille, Gérard de Nerval, Raymond Roussel, Mario Ruspoli, Michel Leiris, Jean-Pierre Brisset e Henri Michaux. Lendo citações de textos literários, o pensador francês explica como a cultura ocidental silenciou a loucura e, paralelamente a esse fenômeno, criou a ideia de que os loucos possuem uma linguagem peculiar caracterizada pela sobrecarga, por signos e por “delírios epistemológicos” (FOUCAULT, 2016, p. 63). Se analisada mais de perto, é possível afirmar que a Literatura ora buscou afastar a loucura de sua visão, ora lançou-lhe um olhar distante, tomando-a pelo seu lado cômico, irônico e melancólico. É o que pode ser percebido por exemplo, na figura de Dom Quixote. O estudo da Literatura, sob o ângulo dessa tensão entre loucura e linguagem, ainda está por ser feito, mas isso não significa, reconhece Foucault, que “toda linguagem de loucura tenha uma significação literária” (FOUCAULT, 2016, p.70). Há, naturalmente, problemas epistemológicos intricados a serem resolvidos, o que torna o discurso do louco um problema a ser examinado pela estética literária.

O capítulo dois, Linguagem e Literatura, é a transcrição de uma conferência realizada em 1964, na Facultés Universitaires Saint-Louis, em Bruxelas. Foucault inicia sua fala questionando o que é a Literatura, considerada como um objeto estranho. Para ele, antes de responder a essa pergunta, é necessário distinguir três coisas: a linguagem, as obras e, por fim, a Literatura. Chamada de “vértice de um triângulo”, a Literatura pode ser entendida como um “texto feito de palavras (…) escolhidas e arranjadas” (FOUCAULT, 2016, p. 81) que constrói em seu interior duas figuras importantes: a figura da transgressão e a figura da morte. A complexidade implicada pelo estudo dessas duas figuras demonstra o quanto a escrita do Marquês de Sade simboliza essa palavra transgressiva, interdita, profana e de morte.

Analisando escritos de Dostoiévski, Proust, Diderot e Joyce, Michel Foucault explica que a Literatura é uma espécie de jogo que coloca em seu meio o simulacro, o irreal, o fantasioso em que o tempo é encerrado, longínquo e irrecuperável. Nessa perspectiva, não é um acaso que Proust tenha intitulado sua obra mais famosa de Em busca do tempo perdido. O tempo da escrita literária é, para Foucault, fragmentado, despedaçado e disperso. Essa preocupação com o tempo não é, aliás, característica apenas da escrita proustiana; ela também é encontrada em Ulisses, de James Joyce. Nessa obra, o tempo e o espaço constituem configuração essencialmente circular: todo o livro passa-se em um único dia, em uma única cidade; o círculo temporal vai da manhã à noite e o personagem dá voltas, passeia, caminha por esse espaço virtual, vivenciando as ruas, as multidões e os ambientes diversos.

É no interior dessa relação entre tempo e espaço que Foucault estuda, ainda, a linguagem literária. Esta experiência representa uma espécie de releitura acerca dessa linguagem, caracterizada por seus redobramentos, suas reduplicações e repetições. Em síntese: a literatura é uma linguagem ao infinito. O filósofo francês dedica-se a estudar as noções de metalinguagem e esoterismo estrutural a partir de releituras do linguista russo Roman Jakobson. A ideia central é analisar as formas da linguagem, seus códigos e suas formas para compreender como a Palavra literária (com P maiúsculo) faz-se presente de forma soberana ao leitor. Trata-se de uma espécie de decodificação do discurso que objetiva compreender como a palavra literária – um simples texto de palavras – se metamorfoseia e transforma-se em palavra deificada, glorificada, sublimada, enaltecida. Por que ela é respeitada? Por que a palavra do literário extasia, fascina, deslumbra? Como se dá essa mudança? A partir de que meios isso acontece e sob que condições? Essas são, ao que tudo indica, as preocupações principais de Foucault. Do ponto de vista da literatura, ele levanta e deixa em suspenso problemas interessantes: como se pode analisar essa linguagem? Como esboçar uma teoria que leve em consideração a estrutura de repetição dessa linguagem?  Para responder a tais questões, seria preciso, segundo Foucault, levar adiante uma análise semiológica que estabelecesse qual é o “sistema de signos” (FOUCAULT, 2016, p. 118) que funciona no interior de uma obra literária. Isso é importante, uma vez que a Literatura não se realiza com beleza e sentimentos, mas com ideias e linguagem. Foucault faz o leitor pensar o literário a partir de uma combinação de signos verbais à maneira de Saussure. Que signos seriam esses? São, antes de tudo, signos de escrita aqui entendidos como “certas palavras ditas nobres” (FOUCAULT, 2016, p. 119), constituindo-se, também, em espécies de estruturas linguísticas caracterizadas por certa configuração e por uma narrativa literária que lhe são próprias. São esses signos e estruturas significantes que ajudam o crítico literário a diferenciar Proust de Balzac, por exemplo. Em outras palavras, os signos dão uma identidade à obra literária. Capitalizam as mobilidades léxicas. Restauram heranças verbais. Exprimem um pensamento individual. A Literatura nasce, enfim, dessas misturas heterogêneas e complexas.

O terceiro capítulo, Conferência sobre Sade, contém duas sessões de uma palestra proferida por Foucault na Universidade do Estado de Nova Iorque, em Buffalo. A primeira sessão examina a relação entre desejo e verdade na obra do Marquês de Sade. Tendo como mote La Nouvelle Justine, Foucault envereda-se pela escrita labiríntica sadiana e, percorrendo-a, explica que ela se situa do início ao fim sob o “signo da verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 141). A verdade, na Literatura francesa do século XVIII, era uma tradição usada como procedimento de autenticação da história narrada. Mas, que tipo de verdade é essa?  Essa verdade, segundo o filósofo, “não pode absolutamente ser tomada ao pé da letra” (FOUCAULT, 2016, p. 144). A realidade ontológica da escrita sadiana está posta no centro do debate. Difícil saber o quanto Foucault terá tentado seguir o conselho de Georges Bataille, pensador da transgressão e do erotismo1. O fato, entretanto, é que para discutir a função da verdade sadiana, noção repleta de problemas epistemológicos, foi-lhe necessário não apenas mergulhar no pensamento de Bataille, a quem admirava2, mas também atravessar sua análise com referências implícitas ao autor de Histoire de l’oeil. Para Foucault, a função da ‘verdade” em Sade é sobrecarregar o texto, redobrá-lo e exasperá-lo ou, em outras palavras, “fazer aparecer no exercício da dominação, da selvageria e do assassinato alguma coisa que seja uma verdade” (FOUCAULT, 2016, p. 145). Entretanto, pelo caráter essencial que preside essa verdade, a escrita de Sade está, desde já, destinada a auxiliar o erotismo, a sexualidade e a fantasmagoria individual. Ocorre, dentro desse contexto, uma espécie de junção entre imaginação e escrita que confere aos personagens seu caráter de degradação. Ora, onde reside essa verdade? Na técnica de escrita do libertino que Foucault passa a analisar. Como esquema geral, pode-se afirmar que essa escrita atua como “elemento intermediário entre o imaginário e o real” (FOUCAULT, 2016, p. 153). Somente quando posta no papel é que a imaginação ganha ares de realidade. Tal escrita é, portanto, um procedimento que conduz ao real, na medida em que repele a imaginação do escritor. Ela comporta regras específicas. Faz sua historicidade específica. Produz sua unidade a partir do pensamento. Essa situação se redobra em uma outra, que dela é indissociável para o leitor: que papel desempenha essa escrita? Para Foucault, a escrita sadiana possui quatro funções: afastar a porosa fronteira entre realidade e imaginação; apagar os limites do tempo no intuito de liberar a repetição; permitir à imaginação superar seus limites; e, por fim, colocar o escritor em uma espécie de singularidade na qual as fantasias, os limites, o tempo, as normas e os costumes não mais exercerão influência em seu corpo.

A segunda sessão analisa o significado da alternância entre discursos teóricos e cenas eróticas presentes na obra de Sade. Essa alternância é uma verdadeira obsessão ou, para ser mais exato, uma espécie de “regularidade mecânica” (FOUCAULT, 2016, p. 163) na qual cada cena de sexo é precedida de um discurso teórico. Que conclusão tirar daí? Seguindo a pista dada por Foucault, isso seria consequência de um desejo de representar teatralmente e justificar o que será encenado. Esse discurso não objetiva, como muitos tendem a acreditar, explicar o que é a sexualidade. Na verdade, para Foucault, os discursos de Sade “não falam da sexualidade” (FOUCAULT, 2016, p. 164); discorrem acerca de Deus, do contrato social, do conceito de crime, da natureza humana, da transgressão. A segunda consequência que se pode tirar é que o discurso serve para “construir o teatro onde a cena se desenrolará” (FOUCAULT, 2016, p. 165). Inteiramente ligado à trama, o discurso teórico de Sade possui uma ligação com a excitação sexual. Ele estreita as ligações entre os parceiros sexuais, atua frequentemente como elemento estimulante e, por essa via, ajuda no desenvolvimento da encenação. As palavras são, portanto, o motor do desejo, seu princípio, sua mecânica e seu eixo. É uma espécie de escrita que altera o corpo ao mesmo tempo em que edifica o discurso. Os termos dessa equação se equivalem e, portanto, se reiteram. Por isso, discurso e desejo se encadeiam um no outro.

Comparado a um poliedro de quatro faces, o discurso sadiano possui em sua base quatro teses de inexistência: primeiro, constata-se que Deus não existe, uma vez que ele é contraditório, impotente e mau; segundo, afirma-se que a alma não existe porque, estando submetida ao corpo, é material, sendo, portanto, perecível; terceiro, depreende-se que onde “não há lei, não há crime” (FOUCAULT, 2016, p. 168), uma vez que se uma lei não proíbe algo esse “algo” não existe enquanto ato criminoso; por fim, nota-se que a natureza não existe ou, se existe, é apenas sob o signo da destruição, o que significa afirmar que é a natureza que destrói a si mesma. Que tipo de indivíduo assimila esse tipo de discurso? O libertino, sujeito que não está ligado a nenhuma eternidade, que não reconhece nenhuma soberania acima dele (Deus, alma, lei, natureza, etc.), que não reconhece nenhuma norma e que possui existência irregular.

Foucault se questiona para que servem esses discursos. Que função exercem no texto? Afirma o filósofo que, em primeiro lugar, elas objetivam aniquilar todos os limites que o desejo talvez possa encontrar, posto que o homem nunca pode renunciar a seus desejos, ainda que, para isso, tenha que sacrificar o desejo do outro. Esse discurso tende a opor-se ao discurso religioso e teológico que é, em relação à escrita sadiana, um “discurso castrador” (FOUCAULT, 2016, p. 170), que visa à renúncia, à negação e à ordem. A segunda função é servir de brasão, ou seja, de signo de reconhecimento, uma vez que a escrita de Sade busca, em sua essência, distinguir os libertinos e as vítimas, duas categorias de indivíduos completamente opostas. Os primeiros encontram-se no interior do discurso e são eles que aceitam as quatro teses da inexistência, tomando seus corpos enquanto objetos usados para o prazer. Os segundos encontram-se no exterior do discurso e são eles que morrem, são torturados, estuprados e violados ao longo da trama. A terceira função refere-se ao que Foucault chama de “função de destinação” (FOUCAULT, 2016, p. 180). Caracterizada pela ideia de que Deus não existe, Sade constantemente afirma em seus escritos que a alma, a natureza e o Divino são quimeras e, portanto, “a inexistência de Deus se consuma a cada instante no discurso e no desejo” (FOUCAULT, 2016, p. 188). A quarta função refere-se à rivalidade: a escrita faz surgir uma pluralidade de sistemas que versa acerca das relações entre os homens, das obrigações, das sanções e do contrato social. Destacam-se, portanto, as noções de desigualdade e violência além do caráter destrutivo da natureza. A escrita sadiana deseja acima de tudo destacar a irregularidade dos indivíduos dentro desse sistema que favorece apenas os libertinos. A última função: “expor o libertino à morte” (FOUCAULT, 2016, p. 193). Todavia, esta morte é algo maravilhoso, uma vez que, para o libertino, a alma não é imortal, Deus não existe e não há crime verdadeiro. Assim, por que o libertino teria medo da morte? Foucault consegue compreender a base da escrita de Sade. São essas funções que, vistas de forma panorâmica, conseguem explicar o edifício completo das obras sadianas.

Dessa forma, literatura, loucura e desejo formam o tripé de A grande estrangeira. Para Foucault, era importante dedicar-se aos volteios da linguagem que – insistente e sutil – tece considerações de ordem existencial, exerce sua influência no cotidiano, produz heróis, relativiza a morte, fornece modelos, cria sistemas e projeta ideais. A literatura é, para Foucault, essa “estrangeira”, esse enigma que precisa de decifração. Seguindo evoluções definidas por novas configurações, a escrita foucaultiana é atravessada por alusões aos sistemas, aos códigos, aos esquemas perceptivos e às técnicas da literatura. Trata-se de um aprofundamento das ideias defendidas em As palavras e as coisas. O estudo dessa tensão entre escrita e vontade, entre palavra e desejo vai habitar toda a extensão dessa obra que se preocupa, quase sempre, em apoderar-se da literatura enquanto estratégia de análise. O leitor, seduzido por esse emaranhado de releituras, se vê perplexo diante dessas problemáticas. Acompanhar a complexidade teórica de Foucault, pleitear sua leitura e avaliar suas análises são procedimentos que, ainda hoje, se continua a fazer. E, ao que tudo indica, essas dificuldades analíticas ainda vão perdurar por muito tempo.

Referências

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

FOUCAULT, Michel. Presentation. In: BATAILLE, Georges. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1970.

_____. A grande estrangeira: sobre literatura. Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

Notas 1 Bataille afirmava que nada seria mais vão que ler a obra de Sade “ao pé da letra” (BATAILLE, 2015. p. 105).

2 Michel Foucault descreveu Bataille como “um dos mais importantes escritores do nosso século”, uma vez que “a ele devemos em grande parte o momento onde estamos”. (FOUCAULT, 1970. p. 5).

Wallas Jefferson de Lima – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, vinculado a linha de Pesquisa “Espaço e Sociabilidades“.

Temas de História e Cultura Indígena em Sergipe – MONTEIRO; RODRIGUES (PL)

As linhas escritas aqui compõem uma breve resenha do livro Temas de História e Cultura indígena em Sergipe, organizado pelos professores Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues e publicado em 2016, pela Infographics, Aracaju, Sergipe. A publicação está organizada em três partes, a primeira composta por dois textos, “Ser índio no Brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema”, da autoria de Clarice Novaes Mota, e “História de grupos indígenas e fontes escritas: o caso de Sergipe”, da autoria de Beatriz Góis Dantas.

A segunda parte da obra também é composta por dois capítulos, “Relação nominal dos índios de Sergipe Del Rey, 1825”, escrito por Luiz Roberto Mott, e “Alienação das terras indígenas em Sergipe no século XIX”, da lavra de Pedro Abelardo de Santana. A terceira parte contém mais dois artigos, “Os desafios pós-demarcatórios da territorialidade Xokó na terra indígena Caiçara / Ilha de São Pedro”, de Avelar Santos Araújo e Guiomar Inez Germani; “As representações sobre os índios no Ensino de História contemporâneo: como a comunidade escolar sergipana observa os indígenas nos livros didáticos”, escrito pelos organizadores, Diogo Francisco Cruz Monteiro e Kléber Rodrigues. Leia Mais

Fronteiras, integração e paradiplomacia | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2017

As relações internacionais são permeáveis a mudanças. Consequentemente, a análise do comportamento dos atores internacionais não pode ficar resumida a uma única visão de mundo ou de um único modelo proposto.

Acompanhando as mudanças globais ocorridas nas últimas décadas, novos atores se beneficiam das ações cooperativas internacionais, dos novos ambientes decisórios e de políticas públicas nacionais que buscam a inserção e a indução nestes novos espaços. Desta maneira, as entidades subnacionais têm-se qualificado cada vez mais para participar das oportunidades ofertadas neste cenário, a descentralização das ações e a ampliação o rol de atores desta relação. Leia Mais

História ambiental e ensino / Revista do LHISTE / 2017

Meio ambiente na aula de História: Interações entre ensino de história, história ambiental e educação ambiental

A questão ambiental vem se tornando, nas últimas décadas, debate incontornável na esfera pública, a partir da ocorrência de desastres socioambientais, das reivindicações dos movimentos ambientalistas, da realização de conferências internacionais, da apreensão gerada pelos impactos do desenvolvimento tecnocientífico, e da percepção cada vez mais difundida de uma crise de proporções planetárias. Desde os anos 1970, essas questões passaram a ser discutidas também no âmbito da educação e do ensino. Surgia a educação ambiental, como campo de conhecimento dedicado à formação de cidadãos aptos a uma atuação política, capazes de reivindicar “justiça social, cidadania nacional e planetária, auto-gestão e ética nas relações sociais e com a natureza” (REIGOTA, 2006, p. 10). Também a história passou a incorporar o estudo sobre as interações entre seres humanos e natureza ao longo da história, por meio da história ambiental. Essa área de conhecimento trata do papel e do lugar da natureza na vida humana (WORSTER, 1991).

Dada a urgência e importância do tema, o ensino de história não poderia abster-se de abordá-lo. Como bem colocou Circe Bittencourt (2003, p. 42), “a manipulação da natureza pelo homem possui uma longa história, com variações em intensidade e brutalidade”, que precisa estar presente nas aulas de história. Mais do que isso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) preveem o tratamento da temática de forma transversal na Educação Básica.

Entre outras possibilidades, Gerhardt e Nodari (2010) apresentam algumas sugestões de como o meio ambiente pode ser alvo das aulas de história, por meio do estudo da história local, da toponímia e de fontes visuais e arquivísticas. Os relatos de viajantes que percorreram o território brasileiro ao longo dos períodos colonial e imperial podem ser alvo de investigação que interliga ensino de história e história ambiental, pois contém descrições da flora e fauna que podem ser comparadas com a situação atual de ecossistemas.

Este dossiê se propõe a unir textos que revelam como seus autores percebem as discussões atuais em torno da questão ambiental no ensino de história. Alguns trabalham em cima de suas próprias experiências em sala de aula, outros apresentam balanços históricos e historiográficos, em regiões delimitadas, e, um terceiro grupo apresenta desafios e perspectivas inovadoras para trabalhar o tema. Em função dessa subdivisão temática, o dossiê está organizado em três grupos que totalizam 10 artigos. Além disso, dois textos discutem o tema dos desastres ambientais, na seção Painel. Conta também com duas entrevistas, uma com historiador, outra com educador, ambos autores de obras referenciais nas áreas de história ambiental e educação ambiental.

No primeiro grupo de artigos, Experiências de Ensino, o primeiro texto, de Ely Bergo de Carvalho, busca refletir sobre as dificuldades de se trabalhar a educação ambiental na formação inicial de historiadores. A partir de suas pesquisas e experiências pessoais, o autor considera que essa dificuldade, entre outras razões, está no paradigma de pensamento hegemônico no mundo ocidental, fundado na disjunção sociedade / natureza que, por sua vez, condiciona o viés antropocêntrico com que as ciências humanas têm sido concebidas, ao longo da história.

Na sequência, Ana Marcela França apresenta uma proposta de curso universitário que conjuga história ambiental e história da arte. Além de discussão teórica sobre as duas áreas do conhecimento e sobre o conceito de paisagem, a autora acrescenta exemplos de análises de imagens a partir da interação entre as duas disciplinas.

O artigo de Wesley Kettle procura analisar de que maneira os professores e professoras de história da rede pública da cidade de Ananindeua-PA incorporam o tema do meio ambiente em suas práticas pedagógicas. A partir da realização de entrevistas, o autor percebe alguns problemas derivados da formação dos docentes, o que leva a um descompasso entre a história ensinada em sala de aula e os resultados das investigações oriundas dos programas de pós-graduação e projetos de pesquisa desenvolvidos nas universidades brasileiras.

No texto que fecha essa primeira parte do dossiê, Elenita Malta Pereira e Antônio Dias Prestes apresentam as discussões que foram objeto em aulas de História Ambiental ministradas pelos autores no curso de História da UFRGS, em 2012 e 2013. Além de expor a sequência dos conteúdos e temáticas abordados naquelas experiências, o artigo argumenta pela necessidade de aprofundamento da questão ambiental nas disciplinas voltadas à formação de professores de história, sem prejuízo de sua presença de forma transversal em todas as demais que compõem os cursos formadores.

No segundo grupo de textos que compõem o dossiê, História e historiografia, o artigo de Carla Oliveira de Lima apresenta um balanço historiográfico – não exaustivo – sobre abordagens que tematizaram sobre as interações entre o homem e o mundo natural no contexto da Amazônia brasileira. A autora defende que os trabalhos orientados pela história ambiental conseguem superar o determinismo geográfico e oferecem interpretações mais aprofundadas da região.

Fabiano Quadros Rückert, no segundo artigo da seção, constrói uma narrativa da história da educação ambiental na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. O texto aborda iniciativas individuais, a partir da atuação precursora de Henrique Roessler, bem como a atuação da sociedade civil em organizações ambientalistas e comitês de bacias.

No último artigo dessa seção, Bread Soares Estevam analisa o contexto de emergência da Educação Ambiental e da História Ambiental, como resultado do processo de busca por novos paradigmas para a superação da crise socioecológica configurada a partir da década de 1970. O autor defende a profunda conexão entre as duas disciplinas e oferece sugestões de eixos temáticos que podem ser trabalhados nas aulas de história, de forma a contribuir para a educação ambiental dos estudantes.

A terceira seção do dossiê, Desafios e Perspectivas, é aberta com o artigo de Jó Klanovicz, no qual o autor discute o impacto da política estadual de Educação Ambiental do Paraná no redimensionamento das matrizes curriculares dos cursos de graduação em História das universidades estaduais paranaenses. O artigo argumenta que a implementação da História Ambiental ocorre muito mais no âmbito da pesquisa do que do ensino, em função das especificidades desse campo do conhecimento histórico e de dificuldades no âmbito político das universidades estaduais.

Na sequência, o artigo de Rodrigo Barchi apresenta o discurso ecologista presente em um movimento (anti) musical chamado grindcore, surgido nos anos 80 e que se caracteriza tanto pela grande velocidade quanto pelo alto ruído de suas composições. A proposta do autor é, a partir do conceito de “saberes insurrectos” e das verdades construídas pelas pessoas infames, desvelar um pouco mais as ecologias e educações “menores” construídas por grupos menores e / ou marginais.

Encerrando a terceira seção, o artigo de Denis Fiuza traz uma proposta de análise de fontes impressas no ensino e na pesquisa em história, como periódicos, jornais e revistas relacionados à preservação ambiental, com o objetivo de aprofundar os debates sobre a ecologia e instrumentalizar os professores e estudantes em relação a essa temática, a partir do referencial teórico da ecocrítica.

O dossiê conta também com dois textos na seção Painel, que abordam o tema dos desastres socioambientais. O primeiro, escrito por Haruf Salmen Espindola e Cláudio Bueno Guerra, realiza um esforço no sentido de facilitar o entendimento do desastre socioambiental que abateu sobre o Rio Doce, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, oferecendo elementos para se discutir criticamente riscos, impactos e desastres ligados aos grandes investimentos de capital. No segundo texto, Marcos Aurélio Espindola discute a importância de se abordar a temática dos desastres socioambientais no ensino de história, a partir de um ponto de vista não-antropocêntrico.

Encerram o dossiê duas entrevistas com professores que atuam intensamente pela interação da temática ambiental no Ensino de História a partir de suas respectivas áreas: Paulo Henrique Martinez, na história ambiental, e Marcos Reigota, na educação ambiental.

O dossiê, portanto, abriga artigos e entrevistas que trazem diferentes olhares e perspectivas para pensarmos a abordagem da questão ambiental no Ensino de História. Que frutifique e colabore para multiplicar as análises sobre o tema e, mais importante, que possa contribuir para qualificar a atuação docente no dia-a-dia da sala de aula. Dessa forma, quem sabe, o dossiê mesmo possa ser um instrumento de Educação Ambiental, ajudando a superar a disjunção sociedade-natureza, de forma a construir um ensino de história menos antropocêntrico.

Referências

BITTENCOURT, C. M. F. Meio ambiente e ensino de História. História & Ensino, Londrina, v. 9, p. 63-96, 2003.

GERHARDT, M.; NODARI, E. S. Aproximações entre História Ambiental, Ensino de História e Educação Ambiental. In: BARROSO, V. L. M. et al. Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST, 2010.

REIGOTA, M. O que é educação ambiental. São Paulo: Brasiliense, 2006.

WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 198-215, 1991.

Elenita Malta Pereira – Doutora em História (UFRGS). Professora no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A organizadora


PEREIRA, Elenita Malta. Editorial. Revista do LHISTE. Porto Alegre, v.4, n.6, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Imaginarios geográficos/ prácticas y discursos de frontera Aisén-Patagonia desde el texto de la nación | Andrés Núñez, Enrique Aliste, Alvaro Bello e Mauricio Osorio

La obra editada bajo el título “Imaginarios geográficos, prácticas y discursos de frontera Aisén1-Patagonia desde el texto de la nación”, está organizada en tres ejes que reúnen grupos de trabajos de investigación articulados en torno a una serie de problemáticas vinculadas a los estudios fronterizos en Patagonia, las cuales resultan de crucial tratamiento para las ciencias sociales, invitando al diálogo, reflexión y debate interdisciplinario. Es un libro que admite la lectura conjunta e individual de cada capítulo, sin perder riqueza en el análisis dado que en cada capítulo es posible observar la preocupación por la rigurosidad teórica-metodológica enmarcados en los debates actuales de los estudios de fronteras a nivel internacional y regional. Aquí la frontera no sólo es el escenario donde transcurren historias que poseen cambios y continuidades, sino también posibilidades tanto desde las concepciones nacionalistas de los modelos decimonónicos, como los conservacionistas ambientales que también reflejan la complejidad que adquiere el análisis del espacio fronterizo en la actualidad.

El hecho de que la obra esté dedicada a quien dejara un vasto legado historiográfico en el análisis de la frontera: el historiador argentino Pedro Navarro Floria, es una de las muestras de reconocimiento y diálogo con académicos que desde Argentina consideran la frontera chileno-argentino como una unidad de análisis que es necesario abordar en conjunto más allá de los límites estatales. Tal como se proyecta en todos los artículos aquí presentes, donde también se derriban las fronteras internas de Chile, apostando a la colaboración con académicos de Aisén, y la edición conjunta con Niñe Negro, una editorial regional con trayectoria en publicaciones regionales. Leia Mais

Empire in Waves: a Political History of Surfing – LADERMAN (Topoi)

LADERMAN, Scott. Empire in Waves: a Political History of Surfing. Berkeley: University of California Press, 2014. Resenha de: FORTES, Rafael. Surfe, política e relações internacionais. Topoi v.18 n.35 Rio de Janeiro July/Dec. 2017.

A obra do professor da Universidade de Minnesota, Duluth (Estados Unidos) constrói uma história política do surfe entre o fim do século XIX e o presente. Para tanto, explora um universo amplo e variado de fontes, pesquisadas, sobretudo, nos Estados Unidos. A descrição e a análise das fontes são entremeadas por uma boa contextualização realizada a partir de diálogo com a bibliografia, ao que se soma a perspicácia dos comentários e das problematizações apresentadas. O livro tem trechos saborosos de ler, seja pelo conteúdo das fontes ou pela análise acurada e, às vezes, mordaz.

No plano historiográfico, afirmações como a de que o prazer, intimamente associado ao ato de surfar, é também político, podem soar óbvias para aqueles familiarizados com os movimentos feministas do século XX, mas significam um avanço na história política do esporte e na história do surfe. No primeiro caso, Laderman acrescenta uma nova perspectiva a uma vertente quase sempre preocupada com políticas estatais, ou com o uso do esporte como ferramenta de mobilização e luta por movimentos sociais (de independência, de trabalhadores, identitários etc.).1 O autor aborda diacronicamente as relações entre uma modalidade e a política, cobrindo um período extenso, o que, salvo raras exceções – como o futebol (Brasil) e o futebol americano e o beisebol (nos Estados Unidos) -, permanece algo por fazer na história do esporte. Sua obra contribui para os estudos do surfe ao evitar a ênfase na história cultural ou no desenvolvimento das pranchas, comuns nos trabalhos sobre a modalidade.

O primeiro capítulo aborda o surfe no Havaí entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX, período que inclui um golpe de estado (1893) e a anexação pelos Estados Unidos (1898). As restrições à prática impostas por governantes estrangeiros e missionários cristãos integraram o processo de colonização do território e de subjuga-ção da população nativa. Nas primeiras décadas do século XX, o surfe é ressignificado pelos interesses imperialistas, tornando-se um dos principais elementos de promoção do arquipélago como destino turístico. Laderman explora fontes como panfletos, livros, revistas, pôsteres e cartões postais e, mais importante, realiza uma releitura de fontes conhecidas – como revistas2 e autores famosos da literatura memorialística sobre o surfe3 -, discutindo tais obras e a trajetória de seus autores a partir de articulações, pressupostos e objetivos políticos. Isto lhe permite contrariar a literatura jornalística, que situa a exploração comercial do surfe a partir dos anos 1970.

O capítulo dois enfoca as “viagens, a diplomacia cultural e as políticas de exploração do surfe” entre as décadas de 1940 e 1970 (p. 41). Em outras palavras, dá-se atenção à “globalização da cultura do surfe no pós-guerra”, estimulada pelas trajetórias de viajantes que se tornariam célebres, bem como ao fato de “as indústrias culturais dos Estados Unidos abraçarem o esporte”: via produções cinematográficas como Maldosamente Ingênua (Gidget) e Alegria de Verão (The Endless Summer); indústria fonográfica, com artistas como Beach Boys e Jan and Dean; e programas televisivos (p. 41-42).

O capítulo três aborda a construção da Indonésia como um destino paradisíaco, com a destacada promoção do surfe na política de divulgação turística levada a cabo pela ditadura de Suharto, nos anos 1970, a qual contou com intensa “colaboração dos surfistas com as autoridades indonésias” (p. 5). Em meados da década, Bali, promovida em revistas e filmes de surfe, tornou-se o principal destino turístico da modalidade fora dos Estados Unidos. A construção da ilha como um “paraíso” ignorou os cerca de 80 mil balineses assassinados pela repressão política após setembro de 1965, bem como o apoio dos Estados Unidos à matança em outras ilhas.4 De acordo com Laderman, “o primeiro campeonato internacional de surfe profissional realizado na Indonésia”, em 1980, contou com discursos de um general, de um ministro e do governador de Bali; e com uma parada de surfistas acompanhando a banda militar, na mesma época em que o governo do país executava um genocídio em Timor Leste (p. 77).

Este capítulo é o de maior densidade, discutindo os acontecimentos a partir de sua relação com a cultura do surfe, com a política interna da Indonésia e com os contatos desse país com os Estados Unidos. Frases como: “a história do surfe, como o próprio surfe, com muita frequência se situa numa bolha ideológica” (p. 63); e “para os surfistas que viajavam ao redor do globo, levar em consideração a realidade política dos lugares que visitavam significava o risco de poluir a transcendência da experiência de descer ondas” evidenciam o ponto de vista do autor, para quem a postura de ignorar questões políticas está relacionada com as próprias características e valores do surfe moderno. Isto tornava possível à cultura do surfe tanto ignorar os banhos de sangue quanto referir-se repetidamente ao espírito pacífico dos indonésios.

O capítulo quatro trata do surfe e do boicote esportivo à África do Sul devido ao apartheid. O assunto aparecia intermitentemente em revistas de surfe estadunidenses e australianas desde a década de 1960. Contudo, em 1985, quando três atletas profissionais de ponta decidem boicotar as competições em território sul-africano, o movimento ganha força e repercussão na modalidade. O texto se beneficia da grande variedade de fontes, incluindo filmes, livros e revistas da Austrália e da África do Sul.

O último capítulo foca a indústria do surfe e a “mercadorização da experiência”. Uma das principais contribuições é a análise da participação da indústria do surfe na “competição global estimulada por corporações multinacionais para reduzir salários, enfraquecer condições de trabalho e diluir proteções ambientais”, algo muito distinto da imagem positiva e ecológica que boa parte dos adeptos e do público geral nutrem em relação à modalidade (p. 147). Por outro lado, parece-me pouco produtiva a discussão sobre se é ou não contraditório o fato de o surfe ter se desenvolvido de tal maneira, se isto é inevitável etc. Neste ponto, a narrativa se distancia de um bom trabalho de interpretação histórica e flerta com uma visão essencialista do esporte.

Em suma, o livro problematiza uma série de elementos presentes na cultura do surfe e estabelece uma mirada interessante para a relação entre esporte e política. Contudo, como qualquer obra, tem limites. Aponto três.

Primeiro, ao afirmar que o surfe é “uma força cultural nascida no império (…), basea­da no poder do Ocidente e inserida no capitalismo neoliberal” (p. 7), o autor fornece a chave para se compreender o foco central, mas também um limite fundamental de seu trabalho: trata-se de uma história política do surfe relativa à política externa dos Estados Unidos, e não de uma história política (geral) deste esporte, como o título sugere. Para ser justo: esta grandiosidade nos títulos é comum na historiografia de países como Grã-Bretanha, França e Estados Unidos.

Segundo, o uso de fontes e de bibliografia exclusivamente em língua inglesa limita a análise e as perspectivas apresentadas. Como é comum entre autores anglófonos, Laderman não reconhece o problema. Em dado momento, afirma não ser possível saber se os vietnamitas surfavam durante a guerra com os Estados Unidos. Ora, por que não é possível saber? Pela inexistência de fontes? Ou pela impossibilidade de acessá-las, já que não estão em inglês? Uma pesquisa de história oral que consulte surfistas do Vietnã atual poderia trazer informações sobre a prática do surfe durante a guerra – ou sobre sua inexistência. Trata-se de uma postura relativamente comum: ignorar, como possibilidade de acesso ao conhecimento, tudo que pode haver de fontes e de historiografia sobre o surfe em outros idiomas. Não se reconhece, assim, a limitação estrutural que o desconhecimento de outros idiomas impõe ao desenvolvimento da pesquisa histórica.

Terceiro, a narrativa dos acontecimentos recentes e a crítica à atuação das empresas (capítulo cinco) é, do ponto de vista científico, o ponto mais frágil: desaparece o olhar historiográfico, e a narrativa se limita a enfileirar frases remetendo a fontes. Pessoal e politicamente, concordo com muitas afirmações e críticas do autor, mas às vezes elas são pouco rigorosas e generalizantes, como ao dizer que os surfistas tendem a pensar desta ou daquela maneira, ou que a empresa de surfwear X é vista da forma Y pelo conjunto dos surfistas. Ademais, o capítulo apresenta, em maior grau, um traço que permeia o livro: para cada período histórico (ao que corresponde, mais ou menos, cada capítulo), o autor escolhe um assunto e uma questão – o que, em si, não é um problema. Contudo, acaba deixando em segundo plano o diálogo entre os capítulos e entre os períodos estudados. Desta forma, no último, ignora discussões dos anteriores que poderiam trazer densidade à análise: a disseminação global do surfe, a criação de um circuito mundial profissional, as mitologias em torno do Havaí e a emergência de mercados importantes como Brasil e Japão. No mesmo sentido, o capítulo crítica (com razão) a participação das multinacionais do surfe na selvageria promovida pelo neoliberalismo. Contudo, pouco responsabiliza as empresas pela conivência com regimes autoritários (tema do capítulo três), ou pelas representações estereotipadas e imperialistas, em peças publicitárias, de cidadãos de diversas regiões do mundo (o que permitiria dialogar com os quatro primeiros capítulos).

Não obstante tais limites, trata-se de uma contribuição sólida para a história do esporte, por inserir na história política uma modalidade quase sempre abordada pelo viés da história cultural, e por fazê-lo adotando uma perspectiva que busca transcender as fronteiras do nacional (ainda que limitada às políticas interna e externa dos Estados Unidos). Destaque-se também o fato de a obra mobilizar um imenso volume e variedade de fontes (embora, como apontei, num único idioma), num subcampo ainda muito dependente dos veículos impressos, particularmente os jornais diários. Trata-se de mais um título de história do esporte que mereceria ser objeto de tradução para o português, algo que ainda parece interessar pouco às editoras, inclusive às universitárias.

1Isto para não falar das frequentemente repetitivas pesquisas sobre Jogos Olímpicos, Copas do Mundo de futebol e identidade nacional.

2Como Surfer’s Journal.

3Como a autobiografia de Duke Kahanamoku, escritos diversos (cartas, reportagens e artigos) de Alexander Hume Ford e os livros dos jornalistas Drew Kampion e Matt Warshaw sobre história do surfe. Cf. KAHANAMOKU, Duke; BRENNAN, Joe. Duke Kahanamoku’s World of Surfing: Nova York: Grosset & Dunlap Publishers, 1968. KAMPION, Drew. Stoked: a History of Surf Culture. Salt Lake City: Gibbs Smith, 2003. WARSHAW, Matt. The History of Surfing. San Francisco: Chronicle Books, 2010.

4Os assassinatos em massa foram um dos principais métodos de repressão política do regime de Suharto.

Rafael Fortes – Doutor em Comunicação com graduação e pós-doutorado em História. Professor adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.

Relatar lo Ocurrido como Invención: Una Introducción a la Filosofía de la Ficción Contemporánea – GARCÍA-CARPINTETRO (M)

GARCÍA-CARPINTERO, Manuel. Relatar lo Ocurrido como Invención: Una Introducción a la Filosofía de la Ficción Contemporánea. Madrid: Ediciones Cátedra, 2016. Resenha de: AZEVEDO, Gustavo de. Manuscrito, Campinas, v.40 n.3 July/Sept. 2017.

Had we made a list of the most philosophically problematic entities, fictional objects would surely have been among them. Many discussions on Metaphysics and the Philosophy of Language, Mind and Mathematics have at some points involved such entities. Currently there are three main families of theories about fictional objects, namely, possibilism, neo-meinongianism and creationism. Notwithstanding the subtitle of the book, Relatar lo Ocurrido como Invención goes further than a mere introduction to the Philosophy of Fiction. In this book García-Carpintero puts foward his own set of theses about the theme. Moreover, it is not only concerned with the epistemology of fiction, as one would assume from the title. All fundamental problems involving fiction1 are addressed in detail there, from the most basic to the most complex topics until Chapter 5 which is, like the epilogue, written in the form of a literary essay. In the first two chapters, he introduces the most important speech acts theories and applies them to fictional speech (or writing) acts. In Chapter 3, there is a discussion over fictional worlds qua possible worlds. After that, in Chapter 4, the lengthiest one, he states how two ways of reference occur, namely, from a non-fictional world to a fictional one and vice-versa.

Firstly, with the intent of establishing a background thesis of speech acts, García-Carpintero makes an analysis of Austin’s, Grice and Strawson’s, and Williamson’s ideas about this point. Austin’s theory appears in order to distinguish the illocutionary force from the propositional content of an utterance, which can be found in every occurrence of a speech act, although the first semantic aspect is essentially related to institutions, conventions or common practice, while the second constitutes the truth conditions for enunciative utterances. That is, every illocutionary act expresses a proposition, even if the same proposition may be expressed by sentences with different illocutionary force. Similarly, acts with the same illocutionary force may represent different propositions.

Grice and Strawson claim that illocutionary acts are not fundamentally connected to conventions, but to communicative intentions instead. Such a conception, according to García-Carpintero, is imbued in a psychological analysis of linguistic actions that are constituted by two intentions: primary and procedural. The first intention concerns a propositional attitude, whilst the second looks for the satisfaction of the first intention by an inference reached via the recognition of the primary intention. Besides that, García-Carpintero explains the Gricean theory of conversational implicatures with the goal of pointing out that there is more to be considered in an utterance than its literal meaning.

None of the conceptions explored in the first two sections of the first chapter (the ones I have talked about in the last two paragraphs) are adopted in the book. The background thesis we should have in mind to read the subsequent chapters is based on the following rule: (KT) “Asserting that p is correct if and only if, she who asserts that p puts her audience in a position to know p” (p. 42). This is the knowledge transmission rule, which, in contrast to a psychological-descriptive conception, is normative. García-Carpintero, following a theory adduced by Williamson, argues that neither conventions nor intentions are sufficient to provide a correct account of assertive acts. The former is not sufficient because asserting is not a convention, although the use of certain expressions in assertions is conventional. And the latter is also not sufficient because there are utterances which one asserts without the intention of doing such.

Section 2.1 gives an explanation of Searle’s ideas about assertion in fiction. Two main points are made: (i) speech acts in fiction are pretended; (ii) there are two types of norms ruling speech acts, which are vertical and horizontal. The first relates language to the world and the second involves extralinguistic conventions. Linguistic acts in fiction are ruled by the second type. Section 2.2 is dedicated to defend the claim that imagination is a de se propositional act which is immune to error through misidentification. This kind of propositional act is essential to the construction of fiction (here recognized as pretense). The idea introduced in Section 2.2 is further developed in Section 2.3 through the analysis of Walton’s and Currie’s theses. Walton proposes that sentences in fiction are pretended and must be analyzed within the scope of a fictional operator, since the propositions expressed by these sentences cannot be true simpliciter. Currie defends the claim that a fictional work is characterized by the author’s communicative intention that some proposition should be imagined by the audience. That is to say, every fiction author concocts her work with the intention of leading the audience on an imaginative process of propositions by the means of recognizing this very same intention.

Chapter 3 is dedicated to an analysis and criticism of a conception due to Lewis, and states a normative proposal about the fictional discourse. After explaining which idea of possible worlds2 he is adopting, García-Carpintero exposes two interpretations of the Lewisian theory of fiction. Both interpretations assume that assertions contained in fiction are pretended. Nonetheless, the first restricts the accessibility relation to the actual world, while the second does not have such a restriction. Here are the two interpretations: AN1 – “A sentence of the form Ff (P) is true if and only if P is true at the closest possible world to the actual world where the pretended assertions which constitute f are known by the pretended narrator” (p. 79); AN2 – “A sentence of the form Ff (P) is true if and only if, if w is a possible world in which the propositions which constitutes the context of f are true, P is true at the closest possible world to w in which the pretended assertions which constitutes f are known by the pretended narrator”(p. 81). F is a fictional operator, f is an indicator of the fiction we are talking about, and P is a proposition.

Section 3.2 discusses three main objections to Lewis’ theory. (1) It cannot deal with impossible propositions in fiction since possible worlds must be consistent. For instance, there are, intentionally or not, stories that contain contradictory propositions. According to García-Carpintero’s interpretation of Lewis, each contradictory proposition is true in one fiction but not their conjunction, which calls into question the intentions of some authors; (2) Some fictional truths are derived from the conventions related to the literary genre (e.g., comedy, drama etc.) and not directly from the standard meaning of the sentences expressed in the text. For example, a movie character may have scopophobia, while the actor who plays that character has been filmed all the time; (3) Some of the narrator’s assertions are not true in the story and some truths in the story are not asserted by its narrator. There are cases in which the narrator tries to deceive the audience by non-trustworthy assertions. And there are also truths that the audience should infer from the narrator’s assertions. This is because some parafictional truths are not true in worlds closest to the one in which the narrator knows what she is saying.

García-Carpintero explains his own ideas Sections 3.4 and 3.5. The normative analysis does not exclude the relevance of communicative intentions since, after all, these intentions determine that the assertion norms are not applied to fiction, but to the norms of fictionalizing (make-fiction), which make an invitation to imagine certain propositional contents3. More precisely, the rule adopted by García-Carpintero is: “(F) Fictionalizing p is correct if, and only if, one puts her expected audience in a position of imagining p and p deserves to be imagined by such audience.” (p. 89). Insofar as we can, and in fact do, imagine contradictions, this rule accommodates contradictory stories. It also deals well with truths derived from genre conventions. If the screenplay invites us to imagine a scopophobic character, it does not matter if the actor representing the character was in front of a lot of cameras. Thus, the truth of a sentence of the form F f (P) depends on the author’s success in attracting the expected audience to imagine P. Otherwise, a story like Kafka’s The Metamorphosis could be criticized in the wrong way. When he wrote that a man turns into an insect, he did not imply that there is a possible world where a human being can become an insect4, this is just an invitation to imagine such transformation.

Another problem concerning the Lewisian idea is that the storytelling act is also part of the story, but if a fiction asks us to imagine a world without rational beings, this would be impossible, since the narrator herself is a rational being telling the story. Hence, F deals better with such a story, since the fiction asks us to consider as true the fictional proposition that there are not rational beings in this world. That is, if we adopt F, we do not need to consider such a story to be inconsistent, withal, it does not exclude the real author from fictional analysis. García-Carpintero claims that we should take into account the author’s intentions, even if the author’s context does not determine the content of the story. That is to say, the details of the author’s biography must not be counted as part of the fictional content, even though they determine which speech acts were used. Thus, only data from the author’s work are relevant to its interpretation, although the author’s communicative intentions are relevant to determine the content of the work.

Section 4.1 exposes the classical quarrel involving descriptivist and Millian theories of proper names. (In Section 4.2 García-Carpintero manifests preference for a version of the former.) Nothing new concerning the well-known Fregean theory of reference is presented on this section, but the characterization of this theory is precise and more than sufficient for the proposals of the book. The same comment should be made about the Millian theory, which includes Kripke’s modal argument against descriptivism. This argument, according to García-Carpintero, cannot show that there are no descriptive elements in proper names, although it shows that proper names are rigid designators, while definite descriptions usually are not. He argues that demonstratives and indexicals have descriptive contents, even though they are rigid designators. Therefore, no necessary relation between rigid designation and descriptive content can be established. At this point, García-Carpintero starts a long explanation about indexicals.

Indexical terms have two kinds of meanings. One relates to their rule of use and the other to each use of them. For example, on the one hand, the indexical “I” has a rule of use, namely, it refers to the person who makes the utterance. On the other hand, each time “I” is used, it refers to a different person if used by different speakers. So indexicals have a common and a specific meaning for all and each occurrence, respectively. García-Carpintero’s suggestion is to extend this analysis of indexicals to other referential terms, but the challenge is to maintain that there is a descriptive content associated to these terms without sustaining that they are synonymous (referential terms and its associated descriptive content). From this point on, he makes use of Stalnaker’s pragmatic presuppositions theory in order to meet this challenge. Inasmuch as descriptive content is part of a presupposed proposition, it is not part of the asserted proposition. This derives from the claim that some presuppositions, instead of being part of semantic content, are pragmatically presupposed. He addresses Kripke’s modal argument with the very same conception which avoids treating definite descriptions as part of the asserted content of referential terms. If definite descriptions are, as adduced by García-Carpintero, only part of presupposed content, then claiming that they are not rigid designators does not dismiss definite descriptions as part of the content of referential terms.

In Section 4.3 García-Carpintero develops some consequences of a fregean theory of reference regarding fictions. He advocates that names of fictional characters are disguised descriptions. Moreover, such terms do not work as rigid designators, since they denote different objects in different possible worlds compatible with fictional truths of the work of fiction. This supposedly occurs because fictional objects are incomplete and there are many possible worlds compatible with all fictional truths in a fictional work.

Also, García-Carpintero advocates the thesis that we should put a fictional operator in front of any fictional truth. That is, “Sherlock Holmes is a detective” is false, while “Fsh (Sherlock Holmes is a detective)” is true (sh indicates one of Sherlock Holmes stories). Thus, if one asserts that Sherlock Holmes exists, she is saying something false, while it is true that Fsh (Sherlock Holmes exists). Appealing to fictional operators avoids commitment to the existence of fictional objects. There are three problems for this strategy: (i) Ironic sentences inside a fictional work cannot have the correct treatment; (ii) Transfictional sentences whose truth are independent from fiction like “Sherlock Holmes is more famous than any real detective”, cannot be read with the fictional operator and remain true; (iii) As a consequence of (ii), the two readings problem remains (against simplicity). In spite of the mentioned thesis being simpler than neomeinongians theories, that can hardly be seen as a real advantage since neomeinongians theories make use of extraneous distinction between properties or property relations and have no concern with simplicity.

Section 5.1 addresses problems (i) and (ii). García-Carpintero5 states that, if we utter the sentence appearing in (ii) as a metaphor, we were doing nothing but proposing to imagine Sherlock Holmes as an actual object of reference. After all, it is possible to assert the proposition expressed by the sentence appearing in quotation marks at (ii) without referring to any fictional object, viz., we could assert it via a paraphrase which would only contain assertions about fictional works. However, such an answer does not help with problem (i) because ironic statements inside fiction cannot be seen as a metaphoric use of the singular reference apparatus. Hence, the appeal must fall back over presuppositions. Wherefore, the main theses presented in this book are:

  1. Speech acts of fiction construction are pretended, and García-Carpintero calls these speech acts “presuppositions generators”. These presuppositions generators produce propositions whereby we imagine what is true in a fiction;
  2. Such propositions must be interpreted with a fictional operator Ff , where f indicates the work of fiction in analysis;
  3. Fictional discourse does not commit one to the existence of with fictional objects.

Why does that sort of pretending speech acts matter? Section 5.2 sketches an answer, which is better developed in the epilogue. Fictions are not only able to trigger emotions, they also provide knowledge, which may be propositional, experiential (by putting yourself in someone’s shoes), and practical (know-how), although García-Carpintero is only concerned with propositional knowledge is this book. He argues that the differences between fiction and reality at the ontological and illocutionary levels do not imply that we cannot acquire knowledge from fiction, since there are many fictions that talk about reality. That is to say, some fictional work contains true propositions about reality, even though fictions are not under the aegis of truth.6 However, there is an epistemic disparity between fiction and reality. An author of fiction intends to bring about imaginative acts about propositions. On the other hand, someone who writes a non-fictional piece, e.g., a scientific paper, must have the intention to sustain her ideas. Although he considers this a strong objection, García-Carpintero (p. 186) thinks that we can acquire knowledge from fiction in a similar way than we acquire knowledge from testimony7. If we were authorized to import propositions about the real world into fiction, we could, likewise, be authorized to infer propositions about the real world from fiction. In the conclusion of Section 5.2, García-Carpintero defends the view that, besides being a source of knowledge, fiction matters because it triggers emotions in the following way: being engaged in a fictional game is pretending that some propositions are true, therefore the emotions felt from fiction are equally pretended, i.e., the fear we feel when watching a movie is, actually, fearf, although these two reactions (fear and fearf) remain indistinguishable regarding their phenomenal features.

Lastly, Section 5.3 is dedicated to the fictional aspect of visual arts and music. Pictorial representations express propositions as well as linguistic representations. If an appropriate pictorial representation of p is made, she who perceives such representation will imagine herself as seeing that p. So, differently from linguistic representation, the pictorial one is about what a spectator sees. In other words, the truths are the product of de se fictional propositions about what someone sees from a representation. Abstract painting is not a hindrance to the thesis above. It is produced with the same intention to cause some visual imaginative experience on a spectator as non-abstract painting is also produced. How about music? A musical oeuvre generates fictional propositions. Thus, a musical piece expresses fictional truths via melodic, harmonic and rhythmic structures listened by an appropriate spectator. This spectator can feel fictional emotions provided by her imaginative act similarly to the fictional literature engagement.

Relatar lo Ocurrido como Invención is probably the most complete introductory book ever written about philosophy of fiction. Nevertheless, its main theses, (1), (2) and (3), would need further explanation. It seems to this reviewer that the answers to problems (ii) and (iii) regarding (2) are unsatisfactory and (i) is not even addressed. Thesis (1) and (2) seem to subsume each other, which jeopardizes the alleged simplicity of García-Carpintero’s theory. The same goes for the distinction between two kinds of emotions. Why postulate entities like fear f if it is numerically identical to fear?. It is also hard to be convinced by the combination of the thesis that we should not be committed to the existence of fictional entities with the thesis that some metafictive sentences are true. The book is full of very interesting examples, but sometimes some of them seem to be meant rather as exercises of literary criticism than as support for the arguments. The claim that some sentences containing fictional names must be seen inside the scope of a fictional operator, while others must be paraphrased (in order to avoid ontological commitments), seems a bit arbitrary. Nonetheless, Carpintero’s theory has many advantages over artifactualists and neo-meinongian theories. Had he renounced the use of the fictional operator in favor of paraphrases,7 he could still avoid the ontological commitment via the claim that fiction is an invitation to imagine propositions. It could be hard to obtain these paraphrases, but the strategy would preserve his nice version of descriptivism. Moreover, this would not preclude that sentences inside fiction refer to reality nor that a fictional work can be a source of knowledge. Summarazing, in the view of this reviewer, the book has two merits, namely, exposing the most recent debate about fiction and exhibiting a fair fregean theory over fictional objects, which makes it a mandatory reading for those interest on the philosophy of fiction.

References

GARCÍA-CARPINTERO, Manuel. Relatar lo Ocurrido como Invención: Una Introducción a la Filosofía de la Ficción Contemporánea. Madrid: Ediciones Cátedra, 2016. [ Links ]

Notas

1Including the three families of theories mentioned before.

2Parafctional truths.

3Propositions are structures composed of properties and objects.

4Supposedly all human beings are necessarily human beings.

5(iii) is not addressed. It is a consequence of García-Carpintero’s thesis choice.

6This lack of compromising with truth is the illocutive difference. The ontological difference is obvious.

7In spite of claiming fictional objects are artefacts (p. 168), the rest of his argumentation shows another direction.

Gustavo de Azevedo – University of Campinas. Department of Philosophy. Campinas, SP. Brazil. E-mail: deazevedogustavo@gmail.com

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Protestantismos e História: a propósito dos 500 anos da Reforma Protestante / Fronteiras – Revista de História / 2017

No mês de outubro de 2017 foram realizadas, em diversas partes do mundo, celebrações alusivas aos 500 anos da Reforma Luterana, comumente chamada de Reforma Protestante. O centro das comemorações foi a pequena cidade alemã de Wittenberg, atualmente com pouco mais de 50 mil habitantes e que abriga a Igreja do Castelo de Wittenberg, local onde em 31 de outubro de 1517 o monge Martinho Lutero afixou suas 95 teses com críticas à Igreja Católica. Esse ato foi considerado como o desencadeador dos movimentos que provocaram a maior divisão institucional no interior do cristianismo romano.

Os movimentos contestadores e reformistas subsequentes a Lutero, tais como: o calvinista, o anglicano, os anabatistas, entre outros, provocaram profundas mudanças na vida religiosa na Europa e, posteriormente, em outras partes do mundo. Mais do que a crítica institucional, burocrática, clerical, os tempos posteriores a Lutero apontaram para uma nova posição religiosa do cristão para com o sagrado, o divino. Sem as intermediações dos agentes cultos e letrados, os fiéis passaram a ter acesso direto ao divino por meio da leitura devocional dos textos bíblicos. A tradução da Bíblia para o alemão pode ser considerado o ápice da quebra do monopólio do sagrado por parte da Igreja romana. E essa necessidade, esse imperativo para a leitura da Bíblia, marcou profundamente a identidade desses grupos religiosos e também direcionou a fundação e atuação das novas confissões eclesiásticas que investiam na alfabetização de seus novos membros. No Brasil, a partir do século XIX, algumas igrejas protestantes que por aqui chegaram por meio das missões adotaram a máxima “em cada igreja, uma escola”. Leia Mais

História, Natureza e Espaço. Rio de Janeiro, v.6, n.2, 2017.

DÉCIMA PRIMEIRA EDIÇÃO

Nesta edição publicamos, também, uma entrevista com a professora e pesquisadora do NIESBF, Drª Lorena Lopes Pereira Bonomo, que, dentre outros temas, aborda o ensino de geografia e as recentes manifestações sociais.

Artigos Científicos

História Cultural  | SÆCULUM – Revista de História | 2017

 

Organizadores

Carla Mary S. Oliveira – UFPB.

André Cabral Honor – Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. E-Mail:  cabral.historia@gmail.com


Referências

[História Cultural]. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa, n. 37, jul./ dez. 2017. Acessar dossiê [DR]

 

The Varieties of Self-Knowledge – COLIVA (M)

COLIVA, Annalisa. The Varieties of Self-Knowledge. London: Palgrave Macmillan, 2016. 288p. Resenha de: BORBA, Alexandre. Manuscrito, Campinas, v.40 n.3 July/Sept. 2017.

Annalisa Coliva’s recent monograph, The Varieties of Self-Knowledge, is, if not the major, one of the greatest contributions of the decade to the subject of self-knowledge in philosophy. In it, the philosopher defends the original thesis that the acquisition of knowledge about our own mental states admits a plurality of methods. In this review, I will focus on an idea that Coliva brings up in her work and explores in detail. More precisely, I will focus here on the criteria that, according to Coliva, demarcate the territory of the so-called “first-personal self-knowledge”, as opposed to the third-personal self-knowledge-i.e., those instances of knowledge about oneself acquired by publicly accessible methods. According to Coliva, transparency, authority and groundlessness are necessary and a priori aspects of first-personal self-knowledge (COLIVA, 2016, p. 6). Before we proceed, let us make a general overview of the work.

The first chapter is an introductory chapter, in which the innovative thesis of the work is stated and there is a brief exposition of the content that we will have throughout the reading. The second chapter is dedicated to demarcate the territory of mental states, from sensations and perceptions, passing through the so-called “propositional” attitudes and ending in the emotions. Coliva provides us a geography of the mental states in which she will operate successfully. She sets aside, however, states of the mind such as moods and character traits-and this is, I think, justifiable in the context of philosophy because of the lack of a deeper literature on the subject. One of the major merits of this chapter is the fact that Coliva draws the distinction, widely retracted throughout the book, between propositional attitudes as dispositions and as commitments. With this distinction in mind, Coliva succeeds, already in chapter 7, following the philosopher Akeel Bilgrami, illuminating the phenomenon of self-deception, as well as, in the appendix of the work, illuminating what is possible and what is paradoxical in Moore’s paradox. It is, therefore, one of the most important distinctions outlined in the monograph.

The third chapter discusses the varieties of self-knowledge, distinguishing between two kinds of self-knowledge, namely, the first-personal self-knowledge and the third-personal one. It is here that Coliva demarcates the territory of first-personal self-knowledge as necessarily involving groundlessness, transparency, and authority. Coliva is convincing in proposing that the knowledge we have of our own mental states, being theses as varied as the previous chapter pointed out, I say, that self-knowledge admits different methodologies. Some cases of self-knowledge are acquired by inference, or observation, or any other method involving some minimal epistemic effort. However, Coliva proposes that cases of first-personal self-knowledge are not necessarily instances of cognitive achievement. Yet, this proposal forces us to take the theories that Coliva calls “epistemically robust accounts” of first-personal self-knowledge as false. In this way, Coliva seems to reject already in advance the accuracy of theories such as the inner sense theory, the inferentialist theory, and the simulation theory, which are explored in the fourth chapter.

The fourth chapter is dedicated precisely to the epistemically robust accounts of first-personal self-knowledge, in which the inner sense, the inferentialist, and the simulation theories are presented. These theories state that the knowledge we have about our own mental states can be acquired by introspection, observation, inference to the best explanation, simulation, etc. The fifth chapter deals with the so-called epistemically weak accounts of first-personal self-knowledge, which include theories such as Peacocke’s rational internalism, Burge’s rational externalism, and Evans’s transparency method, later developed in different ways by Fernández and Moran.

The sixth chapter presents the so-called expressivism, the result of some interpretations of Wittgenstein’s work. It is in expressivism that for the first time we see the statement that first-personal self-knowledge is not exactly a kind of knowledge since it does not fit the Wittgensteinian criteria of knowledge self-ascription1. The seventh chapter presents the so-called constitutivism, whose main representatives are Shoemaker, Wright, Bilgrami, and Coliva herself. As in expressivism, constitutivists declare that first-personal self-knowledge is not exactly the result of a sui generis epistemic achievement, and since it is not based on anything, we should conclude that to call it “knowledge” is a misunderstanding (p. 163). In contrast to expressivism, however, constitutivism appeals to metaphysical theses2.

Finally, the eighth chapter is the chapter in which Coliva exposes pluralism about self-knowledge. According to her, the limits of constitutivism involve the scope of propositional attitudes as commitments. Concerning the basic emotions, sensations, and perceptions, Coliva promotes a meeting between constitutivism and expressivism. Finally, the knowledge we have of our complex emotions and our propositional attitudes as dispositions are genuine cases of knowledge that we obtain by methods that are publicly accessible-Coliva also includes in this scope the knowledge we acquire about our own personality3. The appendix deals with Moore’s paradox.

The point I want to focus on in this review is the criteria that Coliva presents to demarcate the territory of first-personal self-knowledge. They are three: groundlessness, transparency, and authority. Both admit a weak and another strong variant. In a weak characterization, groundlessness admits some epistemic ground, although it dispenses the foundation as being of an observational or inferential kind. The so-called epistemically weak accounts, such as rational internalism and externalism, of Peacocke and Burge respectively, or even Evans’s transparency method, such as developed by Moran, satisfy this criterion. It was not clear, however, how the transparency method as developed by Fernández satisfies weak groundlessness, since, in Fernández’s account, a self-ascription of, let’s say, a belief, is based on the same evidence of the first-order belief which is the object of the self-ascribed belief. If this is the case, then the self-ascription of a first-order belief based inferentially is based on the same kind of evidence of the first-order belief, a consequence which would hurt weak groundlessness.

Strong groundlessness holds that cases of first-personal self-knowledge are simply not grounded in anything. As stated by Coliva, strong groundlessness can be described as the idea that first-personal self-knowledge is neither observational nor inferential, nor is it epistemologically based on one’s previous awareness of one’s ongoing mental states. If this is the case, then first-personal self-knowledge is not exactly an instance of knowledge and, therefore, it is a terminological error to call it “knowledge” after all. Coliva ends up adopting exactly this perspective, which is consistent both with expressivism and constitutivism.

Weak transparency consists in the idea that if one has a given mental state M, then one is aware of it, i.e., the mental state M is phenomenologically salient to the subject. Coliva gives us reasons to prefer strong transparency over weak transparency. This preferred variant of transparency states that, given C-conditions, which include concepts’ possession, cognitive well-functioning, alertness and attentiveness, and to the exclusion of unconscious and purely dispositional mental states, if one has a given mental state M, then one will be in a position to judge or believe (or both) that one has it. I highlighted “be in a position to” passage because, as I think, it is subject to different interpretations, as I will explore next.

Finally, weak authority states the idea that, given C-conditions (including concepts’ possession, cognitive well-functioning, alertness, and attentiveness), if one judges to have a mental state M (save for dispositional ones or for the dispositional elements of some mental states), one will usually have it. On the other hand, strong authority is the idea that, given C-conditions, if one judges to have a mental state M (save for dispositional ones or for the dispositional elements of some mental states), one will always have it.

I begin with the passage, in the description of strong transparency, according to which, given C-conditions, if one has a given mental state M, one will be in a position to judge that one has it. As I think, this passage allows three possible interpretations, which I will call the Wittgensteinian interpretation; the metaphysical interpretation; and the epistemic interpretation. The Wittgensteinian one is the interpretation according to which “to be in a position to” judge that one has a mental state M is a feature of the grammar we have, the option that has inspired expressivism. The metaphysical interpretation is another option, which has its roots in constitutivism, according to which “to be in a position to” judge that one has a mental state M is a feature of the kind of metaphysical relation we have with M. Finally, the epistemic interpretation, which can be identified in some epistemic accounts of first-personal self-knowledge, states that transparency consists in an epistemic relation between oneself and M.

Here, I will explore the third option, i.e., the idea that transparency is a feature of the kind of epistemic relation we have with some of our own mental states, such as sensations, intentions-as-commitments, and beliefs-as-commitments, in an attempt to save weak epistemic accounts of first-personal self-knowledge. What follows is the idea that one knows that one is feeling ψ, intending to φ or believing that p based on the transparency of ψ-sensation, φ-intention or the belief that p is the case. In this view, transparency is seen as playing the epistemic role in our self-ascriptions of some of our own mental states-precisely, those that are transparent to us. I am not sure, however, if the epistemic relation we have with our own mental states involves the kind of normativity that accompanies characteristic instances of knowledge.

The present view is not inconsistent with Wittgensteinian criteria for knowledge self-ascription. To see why, we need to consider the pragmatics of self-ascription. Consider questions such as “how do you know that you feel ψ / believe that p?” In ordinary conversation, we assume, in cases of first-personal self-knowledge, the authority of the first person. My bet is that such questions-and the answers that would be appropriate to them-would hurt two elements of cooperative conversational practices, namely, informativeness and relevance. They hurt the element of informativeness that is expected in a conversation because the most immediate answer to such questions no longer tells you what is already assumed in the question: “I know that I feel ψ because I am feeling!”, or “I know that I believe that p because I believe!”. Therefore, it is also not relevant to ask someone with questions such as these. The strangeness with which we would react to such questions is explained by factors of the order of pragmatics. What follows is the idea that the presumption of the first-person authority is explained by cooperative conversational practices, i.e., the normal operation of a cooperative conversation. I highlighted “presumption of the first-person authority” because this is not an explanation about first-person authority itself, but about its recognitional conditions. This is because, in my view, first-person authority itself depends ontologically on the transparency of the mental states, which, as I maintain, is a feature of the kind of epistemic relation we have with some of our own mental states.

Before ending my review of this incredible monograph, I need to comment a question that remains unanswered: cases of first-personal self-knowledge are accompanied by the characteristic normativity present in cases of knowledge? If “no”, the consequence of this view is that epistemic normativity is not a necessary condition for knowledge, because there are cases of knowledge, namely, first-personal self-knowledge, without epistemic normativity. If “yes”, then this normativity needs to be explained. Maybe the person’s conceptual mastery and its cognitive state of alertness, attentiveness, etc. can be the explanation of the epistemic normativity present in cases of first-personal self-knowledge. And if this is so, then the present weak epistemic account is consistent only with weak authority, because only weak authority allows the possibility of error in judging that we have a mental state M-and normativity in general, as I think it is plausible to assume, presupposes the possibility of error.

Notas

1See p. 140.

2See p. 164.

3See p. 239.

Alexandre de Borba – Federal University of Santa Maria. Department of Philosophy. Santa Maria, RS. Brazil. azdeborda@gmail.com

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Questão agrária/ cooperação e agroecologia | Henrique Novaes, Ângelo Diogo Mazin e Laís Santos

Questão agrária, cooperação e agroecologia é uma obra coletiva que reúne textos de 25 autores com formações sólidas e diversas, nas mais destacadas instituições de ensino do país. São pesquisadores, professores, intelectuais militantes e assentados que desenvolveram seus estudos em Ciências Econômicas, Ciências Sociais, Engenharia Agronômica, Engenharia de Alimentos, Geografia, História, Pedagogia e Psicologia Social. A coletânea é organizada pelo trio composto pelo doutor Henrique Tahan Novaes, docente da Faculdade de Filosofia e Ciências – Unesp de Marília – e do Programa de Pós-Graduação em Educação, pela sua ex-orientanda Laís Ribeiro dos Santos, graduada em Pedagogia e mestre em Educação na linha de pesquisa “Políticas educacionais, gestão de sistemas e organizações, trabalho e movimentos sociais”, e pelo historiador Ângelo Diogo Mazin, mestrando em Geografia e assentado no Projeto de Assentamento Luiz Beltrame, em Gália, São Paulo.

O livro congrega capítulos de membros dos grupos de pesquisa Organizações & Democracia (Unesp, Marília) e Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos (Ibec, São Paulo), assim como de autores convidados e especialistas. É produto de um projeto mais amplo, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, que previu a oferta de um curso técnico em Agroecologia para jovens assentados de São Paulo. O conjunto dos textos trata, sobretudo, da realidade agrária e fundiária brasileira e está dividido em quatro partes: Questão agrária no Brasil; História da cooperação, cooperativismo e associativismo rural; Produção destrutiva e agroecologia; Mundialização, trabalho, gênero e juventude do campo. Leia Mais

História Questões & Debates, v.65, n.2, 2017.

Histórias da Moda

Volume 65, número 2, julho-dezembro 2017

DOSSIÊ: HISTÓRIAS DA MODA

ARTIGOS

RESENHAS

Tenho algo a dizer: memórias da UNESP na ditadura civil militar (1964-1985) | Maria R. Valle, Clodoaldo M. Cardoso, Antonio C. Ferreira e Ana Maria M. Corrêa

A obra Tenho algo a dizer faz parte de um projeto desenvolvido pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) buscou rememorar a sua fundação, as conjunturas políticas e sociais dos anos da Ditadura Civil Militar.

O livro foi lançado no ano de 2014, ano em que se completou 50 anos do Golpe Civil-Militar no Brasil. Através de sua leitura, o leitor é apresentado como o sistema universitário foi burocratizado e perseguido ao longo dos anos do regime de exceção instaurados a partir de 1964. Ao mesmo tempo que eram vítimas deste sistema, as universidades buscaram fazer sua resistência a partir das lutas pela redemocratização dentro da sua comunidade acadêmica. Leia Mais

Gênero e Negritude / Revista Mosaico / 2017

Nesse dossiê estão presente análises que refletem as experiências históricas provenientes dos processos de escravização dos africanos e as formas cotidianas como se desenrolaram seus modos de sociabilidades que se constituíram por meio dos modos de ser e fazer de diferentes grupos sociais, cruzados e mediados pelos gênero, negritudes e / ou processos de racialização.

Desse modo, o texto assinado por Poliene Soares dos Santos Bicalho, Maria Cristina Campos Ribeiro A História e a identidade dos africanos e seus descendentes na Terra Brasilis: da escravidão ao movimento negro, rediscute o processo histórico de construção da identidade do negro no Brasil desde a sua chegada como escravo até a atualidade, perpassando diferentes momentos e perspectivas; bem como observa e analisa as bases do racismo e como a academia / educação abordou tais questões.

Perseguindo a compreensão do caminho construído pelos descendentes dos africanos aqui no Brasil, o artigo “Filhos do cativeiro – crianças ingênuas em Villa Bella de Morrinhos (Goiás, 1872-1888)”, de Pedro Luiz do Nascimento, demonstra a permanência da família escrava na região sul de Goiás bem como a participação de mulheres cativas no desenvolvimento econômico regional.

A participação das mulheres negras no processo formativo econômico das cidades brasileiras é marca de exemplaridade do papel exercido por elas e é demonstrado na escrita do artigo de Martha Maria Brito Nogueira, intitulado “Empoderamento das mulheres negras: cultura, tradição e protagonismo de Dona Dió do acarajé na ‘lavagem do beco’”, o artigo inspirado na perspectiva da história cultural contribui para desconstruir as ideologias racistas e sexistas que invisibilizam a presença das mulheres negras nos diversos espaços da sociedade, em especial no campo cultural, procurando mostrar a suas ações para promover e estabelecer novos posicionamentos. Para tanto, analisa a trajetória de Dona Dió do Acarajé, mulher negra, de descendência quilombola que sobressaiu em várias manifestações populares na cidade de Vitória da Conquista nas últimas décadas do século XX, tornando-se símbolo da cultura negra.

As reflexões trazidas no artigo acima colocam em evidência a discussão presente no texto “Educação em Direitos Humanos: história, gênero e etnia”, de Maria Cláudia Machado Barros, propõe estabelecer uma consciência histórica para a abordagem de promoção dos valores e relações que promovam o reconhecimento do outro, na promoção da igualdade de direitos, associados ao reconhecimento da diversidade.

Os artigos aqui apresentados são contribuições que levantam questões epistemológicas e políticas; elaboram maneiras e perspectiva de ampliação dos estudos da história social e cultural das redes em que os sujeitos estão envolvidos.


MOREIRA, Núbia Regina. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.10, n.2, jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo

Alípio da Silva Leme Filho – Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Professor Titular de Cargo da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e Coordenador na Escola Estadual Reverendo José Borges dos Santos Júnior. E-mail: alipio.filho@educacao.sp.gov.br


MAFRA, Janson Ferreira. A ditadura espelhada: conservadorismo e crítica na memória didática dos anos de chumbo. São Paulo: BT Acadêmica/Brasília: Liber Livro, 2014. Resenha de: LEME FILHO, Alípio da Silva.  Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 9, n. 18, p. 225-228, jul./dez., 2017.

Acesso apenas pelo link original [DR]

Ler História. Lisboa, n.71, 2017.

Varia

  • José Vicente Serrão
  • Editorial[Texto integral]

Género e Violência na Península Ibérica (Época Moderna)

Mobilidade Internacional dos Estudantes Europeus

Outros Artigos

Espelho de Clio

Recensões

História e literatura (13ª Jornada de História Cultural) / História em Revista / 2017

Prezado (a) leitor (a),

É com satisfação que disponibilizamos aos leitores da História em Revista, publicação do Núcleo de Documentação Histórica da Universidade Federal de Pelotas, os trabalhos apresentados na 13ª Jornada de História Cultural – História e Literatura. O evento, organizado pela Gestão 2016-18 do GT História Cultural RS [1], vinculado à ANPUH em sua Seção RS, foi realizado em Porto Alegre em 31 de agosto e 01 de setembro de 2017, no Santander Cultural.

O presente dossiê temático é fruto de uma primeira e muito bem-vinda parceria entre o GT História Cultural RS e a revista do NDH da UFPel. Uma parceria que agradecemos e que almejamos seja repetida futuramente, permitindo, como agora, que as pesquisas apresentadas pelos estudantes de pós-graduação e pesquisadores pós-graduados de diferentes universidades brasileiras possam ser socializadas, ampliando o acesso público aos conhecimentos produzidos na academia e incrementando os diálogos multidisciplinares.

Este tem sido um dos objetivos da Jornada de História Cultural, evento bienal cuja primeira edição ocorreu em 1997, ano da fundação do GT História Cultural RS, que está comemorando vinte anos de atividades. As Jornadas têm sido empreendidas visando-se aprofundar uma temática previamente escolhida. A programação integra uma conferência, uma mesa-redonda e mesas de comunicações, oportunizando a divulgação e discussão das investigações. Especialistas na temática do evento são convidados para apresentar suas produções e reflexões. Neste ano de 2017, dedicamos o encontro à exploração das relações entre a História e a Literatura. A conferência de abertura foi proferida pela Profª Drª. Luciana Murari (PUCRS). Já a mesa redonda de encerramento contou com as palestras dos professores Dr. Mauro Nicola Póvoas (FURG) e o Dr. Charles Monteiro (PUCRS).

O presente dossiê, que é aberto com a conferência da Profa. Luciana, reúne onze das quinze comunicações apresentadas no evento, mantendo-se a organização original das exposições. Para a publicação, elas foram desenvolvidas e ampliadas para o formato artigo, possibilitando aos autores uma melhor elaboração das preocupações, metodologias de trabalho e resultados das suas pesquisas.

Os trabalhos selecionados investigam e problematizam as relações entre a História e a Literatura em suas diferentes possibilidades. O eixo que mais motivou estudos foi a apropriação da literatura pela história como objeto ou fonte, com suas implicações teórico-metodológicas. Outra questão que perpassou diversos trabalhos foi a do entrecruzamento dos discursos histórico e literário no âmbito de diferentes gêneros: a produção literária de conteúdo histórico, a literatura como objeto cultural e a história como matéria literária. Em boa parte das pesquisas, as reflexões sobre as relações entre o ficcional, o literário e o histórico foram motivadas por indagações relacionadas à identidade, ao imaginário e à memória. O estudo da história do livro, da impressão e da leitura, ou das práticas de produção, circulação e apropriação dos objetos e narrativas literárias, também marca presença no dossiê, contribuindo com as investigações pautadas pela percepção da literatura como fenômeno histórico e sistema de criação, produção e consumo das obras e visões de mundo. Os estudos mais instigantes e motivadores são aqueles que se situam justamente no entrecruzamento das diferentes problemáticas e linhas de pesquisa elencadas, dando conta da potencialidade dos diálogos entre a História e a Literatura para o melhor conhecimento e reflexão sobre a sociedade, em sua história e dinâmica.

Nosso intento é contribuir, mediante a aproximação com novos parceiros, para a constante reformulação dos problemas, temáticas e objetos da História Cultural, considerando-se as relações entre os historiadores e as fontes e objetos literários, bem como entre os profissionais das áreas de Letras e de História, de modo que suas práticas investigativas possam ser aperfeiçoadas e novos conhecimentos possam ser produzidos a partir de tais experiências.

Desejamos a todos uma profícua leitura!

Nota

1. Constituem a Coordenação do GT História Cultural RS em sua Gestão 2016-18: Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Alice D. Trusz; Vice-coordenadora: Prof.ª Dr.ª Carmem A. Ribeiro; 1º Secretário: Prof.ª Dr. Eduardo R. J. Knack; 2ª Secretária: Prof.ª Dr.ª Viviane V. Herchmann. Contato: GTHISTORIACULTURAL@ANPUH-RS.ORG.BR Site: HTTP: / / WWW.UFRGS.BR / GTHISTORIACULTURALRS / INDEX.HTM Facebook: HTTPS: / / WWW.FACEBOOK.COM / GTHISTORIACULTURALRS

Alice Dubina Trusz – Historiadora, Coordenadora do GT História Cultural RS – Gestão 2016-18.


TRUSZ, Alice Dubina. [História e literatura (13ª Jornada de História Cultural) ]. História em Revista. Pelotas, v.23, 2017. Acessar publicação original [DR]

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História e Correspondências / Mnemosine Revista / 2017

História e Correspondência: “vestígios de estranha civilização”?

(…) “Sábios em vão

Tentarão decifrar

O eco de antigas palavras Fragmentos de cartas, (…)

Vestígios de estranha civilização” (…)

(Futuros amantes – Chico Buarque, Paratodos, 1993)

Em um mundo de comunicação instantânea possibilitada pelas tecnologias da informação e comunicação, talvez soe estranho o interesse de historiadores pelas correspondências em seus mais variados estilos e épocas. Distância e ausência são, até os dias atuais, motivos para a efetivação do ato de escrever cartas, de se corresponder. As cartas, como os e-mail’s e mensagens enviadas por aplicativos como o whatssap, movem-se entre a presença e ausência, ao mesmo tempo em que à distância, mantemos os vínculos. Forma utópica da conversa, registro particular do mundo, a troca de cartas, cuja origem se perde na antiguidade, atingiu o auge na Europa Ocidental, como forma de escrita pessoal, durante os séculos XVIII e XIX, e como consequência do processo maciço de alfabetização.

Cartas são necessariamente escritas para um destinatário, seja uma única e particular pessoa, seja um conjunto maior de leitores, conhecido ou não pelo remetente que, por sua vez, também pode ser um indivíduo ou um coletivo. De maneira geral, cartas são escritas para serem lidas por certa pessoa, selando um “pacto epistolar” abarcando assuntos variados e até íntimos e um pouco secretos. Nesses casos, elas podem ser cuidadosamente guardadas pelo destinatário, como um bem de valor afetivo incomensurável, como um “objeto de memória”. Contudo, não é incomum que, justamente pelas mesmas razões, elas sejam destruídas (até a pedido do remetente) ou sejam mantidas a distância de qualquer outro leitor, como se uma aproximação indevida pudesse implicar invasão de privacidade, não importando a distância decorrida entre o momento da escrita da carta e o da leitura efetuada.

A concepção desse dossiê surgiu a partir de nossos interesses em articular História e Correspondência, por ser este um campo em que temos atuado, por considerarmos bastante profícuo para a compreensão da produção Intelectual. Campo que vem sendo bastante praticado, sobretudo contemporaneamente, na academia a partir da disponibilização dos acervos privados de intelectuais que mantiveram a prática epistolar. No entanto, ressalte-se que a prática epistolar pode ser localizada já nas sociedades do antigo Oriente Próximo, na Grécia Helênica, no império Romano, no medievo romano-germânico, etc. Há, sem dúvida, uma vasta documentação que se apresenta ao historiador interessado em produzir biografias privadas, intelectuais, políticas, dentre as muitas outras dimensões que este tipo de fonte congrega.

Assim, o dossiê teve como objetivo maior juntar artigos e pesquisadores que focalizem o contato entre História e correspondência, propondo-se, portanto, a explorar os múltiplos aspectos da correspondência, a partir dos resultados de investigações que aprofundem o uso dessa fonte como objeto da produção historiográfica.

O primeiro artigo que compõe o dossiê, “Meu caro freguês dos domingos”: cartas de Monteiro Lobato a Anísio Teixeira, de autoria de Emerson Tin, aborda a leitura da correspondência mantida entre Monteiro Lobato e Anísio Teixeira nos permitindo não apenas reconstruir as relações de admiração e afeto mantida entre esses dois importantes intelectuais da primeira metade do século XX, mas também refletir sobre o papel da imprensa na história do Brasil, a partir da reconstrução do curioso caso “Miss Brasil”, narrado por Lobato a Anísio Teixeira.

O segundo artigo “Cumpro meu destino de porteiro-apresentador neste Nordeste”: a correspondência de Luís da Câmara Cascudo e José Américo de Almeida (1922-1978), Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira busca demonstrar que Cascudo, mesmo tendo estabelecido uma rede de sociabilidade intelectual “modernista”, não deixou de estabelecer contatos com uma rede de sociabilidade intelectual “regionalista”. Embora a respectiva correspondência com José Américo de Almeida não estabeleça um circuito fechado de diálogos e ideias, é possível, por intermédio de um cotejamento minucioso das fontes, remontarmos aspectos dessa experiência e de sua relevância para a formação intelectual de Luís da Câmara Cascudo.

O terceiro artigo, Acuidade miraculosa do poeta nada: Câmara Cascudo entre cartas, ensaios e poemas, Marcos Silva problematiza a condição ensaísta de Luís da Câmara Cascudo nos campos de literatura e cultura com maior atenção para sua poesia e correspondência. Este texto comenta o estudo de Dácio Galvão sobre a Poesia de Câmara Cascudo presente no corpo da correspondência estabelecida com Mário de Andrade e realça seus diálogos com aqueles outros gêneros textuais.

No quarto artigo, Entre amigos: diálogo epistolar entre Vingtun Rosado e Raimundo Nonato da Silva Paula Rejane Fernandes e Hélia Costa Morais exploram e analisam a correspondência trocada entre os intelectuais Jerônimo Vingt-un Rosado Maia e Raimundo Nonato da Silva. Por meio das correspondências, as autoras acreditam que podemos ler a respeitos das pesquisas que vinham realizando e, principalmente, sobre as formas como os dois intelectuais mobilizavam forças para publicar suas obras e o modo como a troca de cartas auxiliou neste processo.

No quinto artigo, O Governo provisório de Getúlio Vargas e as lideranças políticas do Rio Grande do Sul e de São Paulo (1930-1932) Antônio Manoel Elíbio Júnior, pretende discutir as articulações das elites políticas do Rio Grande do Sul e de São Paulo, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, arregimentadas em torno do Partido Republicano Riograndense – PRR, Partido Libertador – PL, Frente Única Gaúcha – FUG, Partido Republicano Paulista e Frente Única Paulista – FUP. Após a “Revolução de 1930” as lideranças políticas destes dois estados procuraram mobilizar inúmeros artifícios e estratégias para viabilizar suas demandas e interesses junto ao Governo Vargas. Assim, o que se analisa, principalmente a partir das correspondências trocadas pelas elites partidárias, são os embates acerca da participação das alianças na esfera de poder do executivo federal.

O sexto artigo, Para Serem Atendidas: cartas ao Interventor Magalhães Barata, Pará (1930-1935), escrito por Michele Rocha da Silva apresenta como diversos segmentos sociais, pela ótica de seus efeitos, em diálogo com o Governo, vivenciaram a experiência política em seu cotidiano frente às propostas reformistas da primeira Interventoria de Magalhães Barata (1930-1935) no Pará. Para tanto, investigou-se as cartas que homens e mulheres enviavam ao Interventor. Com bases nos suportes teóricos da história social e cultural, essa pesquisa buscou compreender que ideias, crenças, valores, identidades culturais, próprios dos missivistas e construídos em meio as suas experiências e vivências culturais, econômicas e políticas, foram fatores determinantes para a reinterpretação do discurso do Governo de Intervenção e, nos limites de suas possibilidades, permitiram a negociação com o mesmo.

No sétimo artigo, Dos Leitores: cartas ao jornal “O Estado de São Paulo” (1961-1964), Vitor Arzani Martins busca a problematização das correspondências entre público leitor e jornal ao passo que discute os procedimentos metodológicos para a análise deste tipo de fonte. Levanta hipóteses acerca da seleção, publicação e diagramação das cartas e seus significados, bem como problematiza a veracidade de tais documentos.

No oitavo artigo, Escritos e deslocamentos Literatura epistolar no processo de e / imigração portuguesa (São Paulo-Portugal 1890-1950) Maria Izilda Santos de Matos investiga a presença dos e / imigrantes portugueses em São Paulo (1890 e 1950). Entre várias questões abordadas, buscando recuperar as redes constituídas, as sociedades de saídas e de acolhimento, os preparativos para viagens, desejos de reunificação familiar e sensibilidades envoltos nesse processo. O texto encontra-se assentado numa ampla documentação epistolar, as cartas analisadas foram localizadas na antiga Hospedaria dos Imigrantes (atualmente depositadas no Arquivo Público do Estado de SP-APESP) e em Arquivos Distritais portugueses.

No nono artigo, Cartas e descobertas: o território paulista nos escritos de Taunay (1865-1866), Airton José Cavenaghi analisa a produção epistrográfica de Alfredo de Taunay (1865-1866), durante sua jornada na região do conflito da Guerra do Paraguai, quando atravessou o território da Província de São Paulo. Procura compreender os aspectos narrativos e etnográficos desta produção textual, associando-a as percepções do caminho e ao território da jornada, a recepção recebida nos lugares de hospedagem, bem como a análise e recuperação de narrativas associadas aos processos constituintes do setor de serviços de hospitalidade, nesse momento histórico específico. Além disso, apresenta a relação entre a produção das narrativas de Taunay, associando-a a outras produções documentais de outros personagens, presentes ou não, nas suas narrativas originais.

No décimo artigo, Comunica-me as ocorrências da casa: o Padre Ibiapina e as minorias segregadas do século XIX, Noemia Dayana de Oliveira e João Marcos Leitão Santos a luz das categorias de instituições e minorias oferecem importante chave analítica para compreender processos socioculturais do Nordeste do século XIX. Principalmente a partir da intervenção do padre Ibiapina que geria as Casas de Caridade através de cartas, como se evidencia de forma mais precisa nas correspondências dirigidas a irmã superiora Demásia de Pocinhos / PB. Ao recolher essas cartas e observá-las amiúde os autores problematizam as relações institucionais travadas entre o idealizador desse projeto expressivo em termos sociais e culturais, além da significativa extensão territorial, e as mulheres responsáveis pela organização e manutenção desses espaços. Igualmente, interroga-se o discurso do padre que se direciona a defesa dos pobres e miseráveis, sem perder de vista a importância de colaborar para a transformação do cotidiano de muitos homens e mulheres em situação de pobreza que caracterizava a sociedade do Nordeste oitocentista.

O último artigo que compõe o respectivo dossiê, Carta a Proba, de Santo Agostinho, Marinalva Vilar de Lima analisa a carta-resposta de Agostinho a Proba; cujos temas, da valorização da beatitude, da felicidade, da vida bem-aventurada, do cuidado com as ilusões provocadas pela riqueza material, pelos deleites e pelos desejos carnais, constituem a base de sua argumentação. Carta que, a priori, foi destinada à viúva Proba, mas que posteriormente integra o hall da produção agostiniana em sua vontade de edificação e defesa do credo cristão, projetando a “vida eterna” em detrimento da “vida no tempo”.

Por fim os artigos aqui apresentados, nos mostra que caberá ao historiador decidir o que irá buscar nesses documentos, fazendo deles fontes ou objeto de História da Literatura, da Educação, da Cultura, etc. Ao consideramos as cartas como fontes de pesquisa, é nos solicitado todos os procedimentos de crítica documental que são usualmente empregados a toda documentação escrita, acrescida da preocupação baseada no seu caráter subjetivo anteriormente mencionado. As considerações feitas sobre essa dimensão da “escrita de si” remete à constatação que as informações nelas contidas serão sempre versões individuais ou coletivamente construídas sobre determinados fatos e acontecimentos. Esperamos que esta coletânea venha a estimular esse profícuo debate.

Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira – Professor Doutor (Bolsista PNPD-CAPES / PPGH / UFCG

Marinalva Vilar de Lima – Professora Doutora (UAHis / PPGH / UFCG)


OLIVEIRA, Giuseppe Roncalli Ponce Leon de; LIMA, Marinalva Vilar de. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.8, n.3, jul / set, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Invento/ luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015) | Elzbieta Sklodwska

Poucos países passaram, em tão pouco tempo, por mudanças tão intensas e profundas como Cuba, na segunda metade do século passado. Em menos de cinco décadas, o país vivenciou uma transformação que inseriu a ilha num processo de transição socialista, alinhado ao modelo soviético, atingindo todas as esferas da vida social e as relações políticas, econômicas, sociais e culturais.

Quando tal processo parecia se estabilizar, a derrocada do campo socialista e o desaparecimento da URSS, na última década do século XX, conduziram à ilha caribenha a mais profunda crise econômica e social de sua história, com efeitos que ainda persistem, apesar da recuperação de certos indicadores e foi denominado, oficialmente, de “Período Especial em Tempos de Paz”.

Sobre tal período, apesar de uma relativa quantidade de publicações literárias e acadêmicas ainda persistem inúmeros debates, questões e lacunas que merecem ser aprofundadas, por todos aqueles que se debruçam sobre a ilha caribenha. Neste sentido, podem ser analisados a validade (ou não) de tal denominação, o período exato de sua duração ou sua continuidade e, principalmente, a necessidade de construção de um quadro abrangente desta etapa, que incorpore as diversas dimensões e impactos na vida social (política, cultural, social, religiosa, populacional, …) e que se constitui na possibilidade de compreensão, adequada, da sociedade cubana contemporânea.

Disto decorre duas constatações fundamentais sobre o “Período Especial em Tempos de Paz”. Primeiro, toda a política e a sociedade cubana foi marcada pela ‘lógica da sobrevivência’, evidenciada nas mudanças econômicas e na reinserção internacional do país e foi marcado por profundas transformações. Desde então, o país vive numa transição que procura se adequar à nova realidade mundial e reorganizar o tecido social local. Além disto, a segunda constatação se refere ao fato de que, apesar das dificuldades intensas no momento inicial, uma narrativa multidimensional, da academia à literatura e as artes, vem emergindo e, apesar de sua diversidade, possibilita a compreensão de como os cubanos lidaram com tal situação, com drama, criatividade e, inclusive, senso de humor, apresentando inúmeras possibilidades de leitura, de reflexão e pesquisa sobre tal etapa.

Neste sentido, esta obra torna-se uma leitura fundamental, pois a partir dos estudos culturais, procura construir um quadro abrangente, envolvendo a noção ampla de cultura, que busca compreender a dinâmica e os impactos de tal período no dia-a-dia dos cubanos e seu reflexo no campo cultural, bem como a atuação dos principais autores e coletivos culturais que atuaram na ilha nas últimas três décadas.

A obra reflete o trabalho e a perspicácia da autora, Elzbieta Sklodowska, que se formou como latino-americanista nos EUA, com uma tese sobre o testemunho hispano-americano, e na Polônia, com uma tese sobre a paródia na narrativa hispano-americana, e, desde então, vem se dedicando aos estudos culturais e literários, com ênfase na literatura latino-americana e, principalmente, a narrativa caribenha dos séculos XIX e XX e a literatura e cultura cubana nos últimos dois séculos3.

A obra, fundamentada na abordagem dos estudos culturais, incorpora conceitos e abordagens de diferentes disciplinas das ciências humanas, desenvolvendo uma aproximação sócio-crítica do discurso social, oficial (e outros), e procura explorar as diversas perspectivas e formas que a literatura, as artes e o cinema cubano refletiram sobre tal período e os impactos na vida social das mudanças enfrentadas pelo fim do bloco soviético e a profunda crise que a ilha se viu submergida. Para tanto, o trabalho está organizado, além dos elementos introdutórios, em seis capítulos.

O primeiro capítulo, intitulado “Pretérito imperfecto: las metáforas del Período Especial”, oferece uma visão panorâmica sobre os aspectos mais representativos do período, discutindo a história política, social e econômica dos anos de 1990 e repassando os debates sobre sua denominação e duração. A partir de poemas, de Reina M. Rodríguez e Carlos A.

Alfonso Barroso, e a produção artística, de René de la Nuez e Eduardo A. Guirola, dentre outros, apresenta como a década foi marcada pelo catastrofismo, niilismo e desamparo, pela migração interna e como a estratégia de sobrevivência se tornou fundamental no dia-a-dia dos cubanos (‘la lucha’).

O segundo capítulo, denominado de “Sin pan, pero con palabras: escribir (en) el Período Especial”, discute, a partir da noção de ‘neofala’ de Michael Glowinski, a recriação paródica do discurso oficial, apontando uma resistência crítica de certos círculos intelectuais, como observados no compêndio, paródico, “No hay que llorar”, que apresenta uma reflexão sobre o impacto afetivo da crise.

O terceiro capítulo, com o título “Temas y anatemas: la revolución y la administración del hambre”, discute, evidentemente, o tema da fome nos anos de 1990. Neste sentido, analisa a origem e a evolução da ‘libreta’, a presença de tal temática na literatura, em obras como “Paisaje de Otoño” de Leonardo Padura (um dos principais escritores cubanos na atualidade), desenvolve uma análise linguística de livros e folhetos editados pelo editorial Verde Olivo (“Con nuestros propios esfuerzos” e “El libro de la família” e do programa televisivo de Nitza Villapol (‘Cocina al minuto’), demonstrando como eles contribuíram para a redefinição, cultural, do que seria comestível ou não.

O quarto capítulo, denominado de “Sin guarniciones: (re) invenciones gastronómicas y la (re) creación artística”, reflete sobre os testemunhos de tal período, discutindo a luta diária por sobrevivência de vários setores, as tensões entre a carência e as promessas e a ‘criatividade’ gastronômica da ilha. Neste sentido, analisa, dentre outros, o trabalho de Antonio José Ponte (Las comidas profundas”), de Alberto Pedro Torriente (“Manteca”) e a performance “Ping Pong” da dupla Luis Garciga Romay e Miguel Moya.

O quinto capítulo, intitulado “Entre lo sublime y lo abyecto: el Período Especial a través del lente de género”, analisa, a partir da temática de gênero, a inserção da mulher em tal período e como seu papel tradicional, de dona de casa, foi um dos mais afetados e politizados. Além disto, discute a emergência das ‘jineteras’ e os debates derivados de tal prática, analisando o alcance e os limites da perspectiva de que tal prática se constitui numa forma de empoderamento feminino, que nem sempre se fundamenta na realidade, ao discutir os maus tratos que este papel traz a mulher. Neste sentido, analisa, dentre outros, o filme ‘La película de Ana’ (de Daniel Díaz Torres), o trabalho híbrido de Reina Maria Rodríguez (“Variedades de Galiano”) e o relato de Damaris Calderón (‘Angelillo’).

Finalmente, o último capítulo, denominado de “Reinventar la rueda: el archivo material del Período Especial”, discute como o interesse pela cultura material tem emergido no caso cubano e como isto afeta a auto-produção e a reinvenção de objetos de uso cotidiano, diante do cenário de escassez material. Neste sentido, revela a emergência de uma ‘desobediência tecnológica’, de apropriação e ressignificação do uso de certos objetos, discutindo as obras de Laidi F. de Juan, do editorial artesanal Vigía, de Daniel V. Rodríguez (“De Buzos, leones y tanqueros”) e, principalmente, a obra dos integrantes do coletivo “Los Carpinteros”, que desenvolveram trabalhos de repercussão mundial.

Desta forma, a obra se constitui numa leitura instigante para a compreensão do período especial e se destaca pela perspicácia, abrangência e diversidade dos temas desenvolvidos e pela contraposição entre o discurso oficial e a experiência vivida (a ‘realidade’) envolvendo inúmeros atores do campo artístico. Neste sentido, a produção cultural que analisa inclui diversas manifestações como a literatura (poesia, contos, romances, teatro e narrativas), os meios audiovisuais (cinema e artes plásticas), a comida, performances artísticas e a cultura material.

Além disto, o trabalho possibilita a compreensão de que, até mesmo os tempos de crise e penúria material, podem servir de ‘inspiração’ e estímulo para o trabalho artístico e a inserção social e apresenta a extraordinária criatividade dos cubanos, persistente até os nossos dias e nos mais variados campos, para a (re) invenção e a resistência, como sugere o título.

Desta forma, se os problemas enfrentados, nos anos de 1990, determinaram o imaginário estético cubano, tal determinação não limitou a imaginação e a criatividade da população, e dos artistas, do país.

Outro elemento fundamental que pode ser inferido desta leitura, é que o ‘Período especial em tempos de Paz’ também pode ser compreendido como uma experiência e metáfora de toda a América Latina. Neste sentido, vale destacar que, embora a região tenha vivenciado, nos anos de 1980, a chamada “década perdida” (devido ao endividamento e a crise econômica e social), continua persistindo uma enorme dívida com amplos setores da população latinoamericana que são marcados pela carência, exclusão e marginalidade e, ainda, a região (assim como a maior das Antilhas) ainda não conseguiu se reinserir no mundo globalizado, de forma autônoma e ativa, possibilitando o desenvolvimento com equidade. Enfim, tal experiência e metáfora parece ser um componente da realidade latino-americana, adaptando-se as especificidades nacionais.

Apesar disto, a obra apresenta algumas limitações, que não desqualificam sua importância, mas se constituem em elementos que poderiam ser aprofundados. Em primeiro lugar, pode-se destacar que não realiza tal abordagem em direção a outras manifestações culturais que poderiam ser, igualmente, instigantes como a música, a linguagem corporal e os murais ou grafites, dentre outras. Além disto, poderia incorporar os processos que se passam em outros campos, como no religioso, e como em tal período ocorre um ‘reencantamento’ da ilha e ressurgimento de inúmeras práticas religiosas e seus efeitos culturais e materiais.

Também poderia ser explorado, tanto em termos de nostalgia como de continuidade nos processos culturais e na cultura material, a complexa e mal resolvida relação com a URSS.

Por fim, a abordagem, por vezes, idealiza a realidade cubana e analisa a atuação governamental como sendo somente ilusória ou negativa desconectada desta, o que acaba por desconsiderar os esforços, no sentido de superação de tal estado, e, principalmente, não considera a complexidade e a ambivalência de tal período, para além da dicotomia entre o discurso oficial e artístico.

De toda forma, trata-se de uma obra importante que, além de sua importância fundamental no campo dos estudos culturais e na excelente compilação sobre tal período, demonstra a necessidade de continuidade de pesquisas e reflexões sobre o “Período Especial em Tempos de Paz” em Cuba, tanto no que se refere a outros campos e produções artísticas (música, escultura, linguagem corporal, murais,…) como em outras dimensões da vida (social, política e econômica) que continuam desafiando as ciências sociais, incluindo a história, latino-americanas. Boa leitura!!

Marcos Antonio da Silva – Universidade Federal da Grande Dourados, Brasil.


SKLODWSKA, Elzbieta. Invento, luego resisto: El Período Especial en Cuba como experiencia y metáfora (1990-2015). Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006. 499p. Resenha de: SILVA, Marcos Antonio da. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.35, p.165-169, jul./dez., 2017. Acessar publicação original. [IF]

 

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Quais são os caminhos para o estudo de África para além da lusofonia? Existe espaço para a publicação e pesquisa de temas distantes dos países de língua portuguesa? A pergunta anteriormente enunciada revela não somente o itinerário dos estudos africanos no Brasil, como nos deixam pistas de leitura para o texto da historiadora Raquel Gomes. Leia Mais

Revoluções e movimento operário no século XX | Escrita da História | 2017

O ano de 2017 apresenta importantes efemérides para a compreensão do século XX no que se refere ao protagonismo dos trabalhadores, acentuando a necessidade da História como ciência fundamental para a análise do desenvolvimento objetivo dos fatos.

Neste sentido, a miríade de congressos, colóquios e cursos promovidos intensamente no âmbito da academia e de livros e revistas que se propuseram a elucidar os meandros dos acontecimentos de 1917, contribuiu não para uma simples e rasa comemoração centenária, mas para uma árdua discussão historiográfica. É nesta engrenagem que se insere a Revista Escrita da História com o dossiê Revoluções e movimento operário no século XX, destacando em seu número oito o centenário da Revolução Russa de 1917, da Revolução Mexicana (considerando a enorme polêmica em torno de sua data, 1910, 1917 ou ainda o seu período tardio, durante a década de 1930) e da Greve Geral de 1917 no Brasil. Leia Mais

Recôncavo – Revista de História da UNIABEU | Belford Roxo, v.7, n.13, 2017.


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ARA VICTORIAE: A CONSTRUÇÃO DE UMA “PAISAGEM RELIGIOSA” NA RELATIO III DE QUINTO AURÉLIO SÍMACO | Carlos Eduardo Schmitt | PDF

 

As Artes de Curar em um Manuscrito Inédito de Setecentos: O Paraguay Natural Ilustrado do Padre José Sánchez Labrador (1771-1776) | Eliane Cristina Deckmann Fleck

O livro As artes de curar em um manuscrito jesuítico inédito do setecentos é fruto do trabalho de Eliane Cristina Deckmann Fleck e seus colaboradores, no âmbito do projeto “As ‘artes de curar’ em dois manuscritos jesuíticos inéditos do século XVIII”. O volume em questão constitui-se em duas partes distintas. Ocupando lugar central, está a transcrição de parte substancial da obra Paraguay Natural Ilustrado escrita pelo padre jesuíta José Sánchez Labrador, entre 1771 e 1776. Junto ao documento histórico transcrito encontra-se uma introdução, na forma de um longo artigo analítico. Esta resenha ocupar-se-á de ambos os elementos, abordando-os de forma crítica, tanto em seus aspectos formais como analíticos. Sendo assim, esta análise será composta de duas partes. Primeiro, um resumo descritivo do conteúdo da obra. Depois, uma breve análise, na qual se procurará fazer um balanço a respeito da contribuição por ela oferecida, principalmente em relação ao campo de estudos da História da Ciência. Leia Mais

A cien años de la revolución rusa: comunismo y anticomunismo en América Latina | Claves – Revista de Historia | 2017

Desde su concreción en 1917 la Revolución Rusa fue una referencia para fuerzas políticas y sociales de izquierda y de derecha en todo el mundo. Mientras sus partidarios adoptaron y adaptaron modelos, ideas y actitudes de la primera revolución socialista triunfante de la historia, sus detractores la transformaron en un espejo no deseado y temido, por lo general sobredimensionando su influencia en las distintas realidades locales.

En América Latina, el comunismo se fue expandiendo a través de la formación de partidos y de su incidencia en movimientos sindicales, sociales y culturales y en la atracción que generó entre jóvenes intelectuales. Desde la perspectiva de sus adversarios, a partir de las décadas de 1920 y 1930 este se transformó en un “peligro real” y fue su fuerza (auténtica e imaginada) la que originó el anticomunismo como movimiento organizado en el que participaron muy diversos actores sociales. En adelante la díada comunismo-anticomunismo estructuró gran parte de los conflictos del siglo XX, tornándose central en el contexto de la guerra fría. Leia Mais

Dia-Logos. Rio de Janeiro, v.11, n. 2 , 2017.

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