História Questões & Debates, v.66, n.1, 2018.

O QUE O PATRIMÔNIO MUDA? (PARTE 1)/WHAT DOES HERITAGE CHANGES? (PART 1)

Volume 66, número 1, janeiro-junho 2018

EDITORIAL

DOSSIÊ: O QUE O PATRIMÔNIO MUDA (PARTE 1)/WHAT DOES HERITAGE CHANGE? (PART 1)

ARTIGOS

Horizontes Históricos | UFS | 2018

Horizontes Historicos Horizontes Históricos | UFS | 2018

Horizontes Históricos (São Cristóvão, 2018) é uma revista eletrônica ligada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe. O objetivo da revista é congregar textos de pesquisadores a nível de graduados, mestrado e doutorado – inserindo mestrandos e doutorandos – acerca de temas que versem sobre Relações Sociais e de Poder, Cultura, Identidades, bem como os entrelaces entre esses campos.

São aceitos trabalhos de História e áreas afins, explicitadas na área dedicada às submissões dos mesmos. A revista abre uma chamada livre por semestre e um dossiê temático anual, para os quais são recebidos artigos, resenhas críticas e entrevistas. A Revista busca atuar como um veículo difusor e fomentador da produção acadêmica, primeiramente dos pesquisadores locais e, em extensão, da pesquisa científica na área das Ciências Humanas e Sociais em geral.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596 0377

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The Quest for a Moral Compass: A Global History of Ethics | Kenan Malik

A Ética é uma das áreas da filosofia de relevância mais direta para nossa vida cotidiana, chegando mesmo a definir o que alguns filósofos, dentre eles I. Kant, denominaram de ³filosofia prática´. É também por isso mesmo uma de suas áreas mais interdisciplinares, com importantes intersecções com a antropologia, o direito, a sociologia, a ciência política, a história, e as ciências naturais e biológicas, apenas para destacar algumas. Leia Mais

Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) – TRUZZI (FH)

TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016, 137p. Resenha de: SUDATTI NETO, Reinaldo. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.349-355, jan./jun., 2018.

Oswaldo Maia Serra Truzzi nasceu em Campinas em 1958 e, atualmente, atua como historiador titular na Universidade Federal de São Carlos, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Engenharia de Produção. Possui trabalhos na área de Sociologia relacionados ao tema das imigrações, envolvendo a história social das imigrações, não somente a italiana, mas também a síria e libanesa. Além de obras de relevância como Roteiro de fontes sobre a imigração internacional em São Paulo (1850- 1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), lançado pela Editora Unesp em 2016, é apontado, no prefácio do historiador Ângelo Trento, como uma obra que procura levantar uma discussão inovadora no meio acadêmico, a saber: a formação de uma identidade étnica, envolvendo os imigrantes italianos no interior paulista, em um período precedente à construção identitária ocorrida na Itália.2 Em tempo, discute as circunstâncias que auxiliaram e prejudicaram essa construção, ocorrida entre os anos de 1880 e 1950.

O livro inicia-se tomando como referência os estudos de Philippe Poutignat (2008) e Jocelyne Streiff-Fenart que abordaram as concepções teóricas acerca do processo de construção das identidades culturais dos povos, quando confrontados com uma nova sociedade. Deve-se, aqui fazer uma ressalva a respeito do conceito de etnia, o qual não deve ser tomado como superioridade racial e, sim, como um conceito que permite refletir sobre o tema da identidade de si mesmo e sua constituição, a partir do contato entre grupos culturais.

Partindo dessa análise, o autor dirige-se ao mote da composição identitária. Para tanto, embasa-se no estudo de Benedict Anderson (2008) sobre as origens das noções de pertencimento no interior de comunidades construídas de forma heterogênea.

Acrescenta-se, ainda, as reflexões de Maurice Halbwalchs (2006) a respeito da ativação das memórias individuais e coletivas e, dos fatores que se cruzam, entre essas lembranças, criando uma noção de identidade cultural. Com isso, o autor busca reforçar sua tese de que houve um sentimento agregador de italianidade e de pertencimento, nascido primeiro no Brasil, e depois na Itália.

Como recurso teórico para analisar a formação da identidade italiana no Brasil, Oswaldo Truzzi se apoia nos estudos de Pierre Bourdieu (1996) e de Paula Beiguelman (2005), que enfatizam a relação de alteridade construída entre grupos culturais distintos.

Essa relação de alteridade teria fomentado o início da formação da identidade entre os imigrantes italianos que passaram a habitar o interior paulista, entre os anos finais do século XIX e o começo do XX.

Com o objetivo de ratificar a sua tese de uma identidade italiana surgida primeiro no Brasil, o historiador faz uso das tabelas contidas nas obras dos pesquisadores Zuleika Alvim (1986), Angelo Trento (1989) e na análise do demógrafo italiano Giorgio Mortara (1950), cujos dados indicam os números de entrada e saída dos imigrantes, grupos envolvidos nessas correntes migratórias e destinos dessas pessoas na nova terra.

Em seguida, Oswaldo Truzzi passa a descrever o contexto da Itália e do Brasil, em fins do século XIX, evidenciando os motivos que levaram à saída dos imigrantes italianos em direção ao Brasil; a partir de suas constatações e com base nos estudos de Nugent (1995), o autor concluiu que haveria uma dificuldade em afirmar uma italianidade trazida pelos imigrantes da sua terra natal, por outro lado, seria possível analisar uma italianidade construída aqui, no Brasil.

Com base nos estudos sobre a construção da identidade italiana, o autor segue para a diferenciação que se estabelecia entre os ambientes rurais e urbanos. Sobre os primeiros, destacou o modo de trabalho vigente nas fazendas, nas quais os imigrantes foram submetidos à mentalidade escravocrata e a impossibilidade de locomoção, bem como aos maus tratos que levavam às revoltas e resistências. Entretanto o autor avaliou as causas do pouco número de resistências e, valendo-se das análises do historiador Cliford Welch (1999), e de autores como Stuart Hall (2008) e Zuleika Alvim, concluiu que o isolamento dos colonos aliado a um baixo nível de educação formal dos imigrantes e de seus filhos foi fundamental para a pouca ocorrência de conflitos. O que não impediu o registro de formas de resistências como a mudança frequente de fazendas ou, até mesmo, a fuga delas, em alguns casos, para centros urbanos.

Outro ponto analisado foram os matrimônios entre pessoas de regiões semelhantes; para tanto, Truzzi se baseou em seus estudos anteriores sobre os casamentos na Cidade de São Carlos, entre 1860-1930, aliando-os aos trabalhos das historiadoras Maria Stella Levi e Julia Scarano (1999) e do pesquisador Angelo Trento.

O autor chega à conclusão que a união entre pessoas de mesma origem, até a Primeira Guerra Mundial, seria algo que facilitaria o retorno à terra natal, pois a estadia no Brasil era vista como temporária. Daí, a questão de tantos casamentos entre pessoas da mesma origem, havendo declínio desse costume após os anos 1930 e 1940, por conta dos desarranjos nas políticas de imigração assim como, o distanciamento dos laços de origem.

Já no meio urbano, o pesquisador faz um contraponto entre os trabalhos do historiador Warren Dean (1977), que apontava uma relação entre a bagagem profissional trazida do país de origem com novas possibilidades de crescimento do imigrante, os estudos da antropóloga Eunice Durham (2004) a respeito da cidade de Descalvado e os estudos da historiadora Flávia Oliveira (2008), na cidade de Jaú, nos quais as autoras ressaltam que a ascensão urbana se dava apenas com algumas famílias, sendo difícil precisar uma única causa.

O movimento associativo é destacado como via de ascensão social, afinal agregava parte da elite de imigrantes. Essas agremiações se constituíram em lugar de comemorações e festas nacionais que lembravam o local de origem, atraindo cada vez mais público. As elites italianas, por sua vez lançavam-se ao trabalho de construir uma unidade cultural e linguística entre os membros da colônia. A discussão sobre os movimentos associativos se amplia com os estudos de Fábio Bertonha (2005), e da socióloga Eunice Durham na cidade de Descalvado, que fazem referência a uma consciência de italianidade que se manifestava na promoção de solidariedade na colônia, na comemoração de datas patrióticas e na organização de atividades assistenciais e recreativas.

Associação de grande importância, a Sociedade Italiana de Beneficência de São Paulo Vitório Emanuel II, fundada na capital paulista, em 1879, é destacada por Truzzi por se constituir no modelo de sociedade para todas as outras que surgiram no Estado (BIONDI, 2011).

Ainda no que tange às associações de imigrantes, são reforçadas as causas que levavam à formação das mesmas (carência e ausência de políticas de amparo aos imigrantes), assim como as questões dos regionalismos trazidos da Itália que ocasionavam certas dificuldades à manutenção dessas agremiações. Tal processo pode ser observado pela visão negativa que os imigrantes do norte e sul da Itália tinham entre si, como exemplo, a tensão entre os vindos da região do Vêneto e da Calábria, ressaltando-se, ainda, o preconceito contra esses últimos por parte do restante dos imigrantes.

Além das rivalidades e diferenças étnicas, que representavam problemas para as associações, Truzzi amparado pelos estudos de Luigi Biondi e Angelo Trento cita outros problemas que levaram as associações a se desestabilizarem. Dentre os motivos estavam os conflitos de agenda dos diretores das associações que precisavam manter os vínculos de identidade dentro da colônia, buscando o reconhecimento da comunidadeMesquita Filho”, UNESP, câmpus de Assis.

de imigrantes da qual faziam parte e, simultaneamente, procuravam vias de integração às elites locais. Essa situação vivenciada pelos dirigentes evidenciava uma ambiguidade entre a cultura interna trazida pelos imigrantes e seus descendentes e a cultura do país de acolhimento, colocando-se como limites a serem extrapolados, segundo os estudos de Robert Foerster (1919).

A questão do fascismo é retratada pelo autor como um meio de ligar novamente a Itália à comunidade de imigrantes. Com base nos estudos de Bertonha sobre a ação fascista junto à comunidade italiana analisa-se a forma como o regime totalitário foi caracterizado no Brasil e como as classes sociais interagiram com ele.

O autor levanta o ponto de vista das elites brasileiras, que viam os recémchegados como pessoas que conheciam seu lugar na sociedade distanciando-se por isso da política e não ameaçando o domínio das elites locais. Visão que se modificou com a Revolução de 1930, e consequente abertura de oportunidades de projeção social e política por meio das associações comerciais, formadas por uma maioria de origem italiana. Por outro lado, o autor observou-se na geração dos filhos de imigrantes um menor pendor a propagandearem a sua filiação étnica, implicando na diminuição da italianidade como critério de legitimação política e social.

Sabemos que o tema sobre o processo imigratório Itália – Brasil é algo muito estudado, parecendo à primeira vista que nada de inovador possa emergir dele. No entanto, lermos o livro citado, podemos verificar como “[…] essa abordagem do tema torna-se a linha mestra de Truzzi”, que pesquisa a formação e construção do sentimento de identidade italiana, no Brasil, antes de ser construído na Itália.

O livro Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) traz, portanto, algo muito inovador e instigante. Essa pesquisa aumenta e revitaliza o entendimento sobre a importância da imigração italiana e identidade cultural, no Brasil, a despeito das diversidades regionais trazidas da Itália, além de permitir a compreensão de como esse processo repercutiu entre seus descendentes, assim como na sociedade de acolhimento, evidenciando a importância das trocas culturais tanto para imigrantes quanto para os brasileiros.

Notas

2 Mesmo após a unificação em 1870, os habitantes da Itália possuíam uma relação de identidade ligada mais ao local de origem do que à nação como um todo, não havendo uma identificação comum, antes e durante a fase que da grande imigração, entre as décadas de 1870 e 1920, período no qual a nação enfrentou instabilidades políticas e sociais, que prejudicaram a construção de uma identidade nacional.

Referências Bibliográficas

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ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre as origens e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008. Trad. Denise Bottman.

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BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: Edi PUCRS, 2001.

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TRUZZI, Oswaldo. Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora UNESP, 2016.

WELCH,Cliford. The Seed Was Planted. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 1999.

Reinaldo Sudatti Neto – Mestrando em história pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Campus de Assis.

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Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil | Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto

RC Destaque post 2 11 Horizontes Históricos | UFS | 2018

Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever. Leia Mais

A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917 – REIS (FH)

REIS, Daniel Aarão. A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: SOUZA, Felipe Alexandre Silva de. Um balanço sereno e crítico das revoluções russas. Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.358-361, jan./jun., 2018.

Independentemente da posição política que se tenha a respeito do fato, dificilmente encontraremos quem negue que a Revolução Russa de 1917 se encontra entre os acontecimentos de maior reverberação do século XX. Entre as diversas publicações que chegaram ao mercado editorial brasileiro no centenário da revolução, destaca-se o livro A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917, escrito por Daniel Aarão Reis, professor aposentado de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense.

Em um volume conciso, o professor conciliou um resgate narrativo dos principais momentos da revolução com diversas problematizações acerca das interpretações mais recorrentes de tão controverso evento — desenvolvendo, assim, um livro de grande valia tanto para leigos quanto para iniciados no assunto.

Ainda que o subtítulo do livro destaque o ano de 1917, Reis propõe uma interpretação de duração mais longa do que ele chama de ciclos das revoluções russas.

Tais ciclos se iniciaram com a Revolução de 1905, as Revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917, as guerras civis travadas entre 1918 e 1921 e, finalmente, a revolução fracassada de Kronstadt (1921). Apenas levando em conta esse processo histórico mais amplo, defende Reis, é que poderemos compreender melhor os elementos fundamentais que impulsionaram e plasmaram o comunismo soviético que viria a ser um dos principais paradigmas societários até sua dissolução entre 1989 e 1991.

O resgate dos eventos menos conhecidos de 1905 e do período entre 1918 e 1921 é um primeiro aspecto que torna o livro valioso. A Revolução de 1905 foi desencadeada em grande parte pela Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), quando o declinante império dos Románov se bateu contra o império japonês pelo controle de áreas de influência na Coreia e na Manchúria. A guerra provocou um grande desgaste nos recursos econômicos e militares da Rússia, levando ao acirramento das contradições sociais e políticas e à eclosão de movimentos grevistas e manifestações contra as deterioradas condições de vida da maioria da população. A partir de então, ao longo daquele ano, houve três grandes ondas de greves políticas (em fevereiro, maio e setembro), exigindo a derrubada da autocracia, a eleição de uma Assembleia Constituinte com vistas à abertura de um regime republicano; movimentos camponeses com suas reivindicações pela nacionalização das terras; e o nacionalismo não-russo, ameaçando a unidade do império então conhecido como “o cárcere dos povos”. Foi em 1905 que surgiu uma organização original: o conselho de deputados operários ou soviete, uma organização com a agilidade e flexibilidade necessárias para enfrentar a repressão tzarista, que rapidamente se difundiu por São Petersburgo e Moscou, com papel central no incentivo e na articulação dos demais movimentos populares urbanos e rurais. Segundo Reis, as experiências de 1905 inspiraram e condicionaram muitas das ações tomadas nas revoluções de fevereiro e outubro de 1917 — não é por nada que 1905 passou posteriormente a ser considerado o ensaio geral de 1917.

Em termos narrativos, as guerras civis entre 1918 e 1921 e a revolução de Kronstadt (1921) são o ponto alto do livro. Ainda que de forma sucinta, Reis expõe toda a complexidade em que as tendências autoritárias dos bolcheviques, observadas já nos eventos da revolução de outubro, se intensificaram por intermédio da centralização política e econômica no Estado, no Partido Bolchevique e no Exército Vermelho, enquanto o poder revolucionário tentava neutralizar a imprensa de oposição e transformar os sindicatos em correias de transmissão do governo. Tais tendências se fortaleceram na medida em que os bolcheviques se viram obrigados a defender a Rússia e a revolução em intricadas guerras civis: em uma primeira frente, contra os Exércitos Brancos, formados principalmente por generais tzaristas e cossacos, apoiados por potências estrangeiras (com destaque para Inglaterra e França) e desejosos de restaurar a antiga ordem; em uma segunda frente, contra outros grupos revolucionários e camponeses que não concordavam com diversas medidas do novo governo e passaram à insurreição aberta; e, finalmente, em uma terceira frente, os movimentos nacionalistas não-russos (e.g. finlandeses, ucranianos e povos islâmicos da Ásia Central). Embora os bolcheviques tenham saído vitoriosos das guerras civis, o resultado não foi apenas uma catástrofe humana em termos de mortos, mutilados, epidemias e fome, mas o estabelecimento de uma […] ditadura política, dotada de uma temível polícia política e de um Exército centralizado e verticalizado. Mesmo os bolcheviques mudaram radicalmente: de uma elite política, atravessada por debates contraditórios, transformaram se num partido de massas centralizado, militarizado, em que não eram mais admitidas dissensões, vistas com desconfiança e suspeição. (REIS, 2017, p.130).

Para Reis, as tendências ao centralismo e à ditadura foram confirmadas na derrota da revolução dos marinheiros de Kronstadt, cidade-base da Marinha de Guerra russa, na ilha de Kotlin, golfo da Finlândia. Além de ser um ponto estrategicamente importante (Kronstadt protegia Petrogrado, com seus fortes e navios, e fiscalizava o tráfego marítimo da região), a base era conhecida por uma tradição política de rebeldia: seus marinheiros participaram com destaque dos levantes de 1905 e fevereiro e outubro de 1917, e Trótski não à toa se referia a eles como “o orgulho e a glória da revolução.” (apud REIS, 2017, p.133). A partir de meados de 1920, tendo estado nas primeiras linhas de combate em defesa do governo revolucionário durante as guerras civis, os homens de Kronstadt começaram a resistir às políticas centralistas e autoritárias dos bolcheviques. Embora fizessem parte de um contexto mais amplo de contestação ao novo regime, Kronstadt não demorou a se encontrar isolada, graças ao apaziguamento dos movimentos de oposição em outros lugares; em março de 1917, a revolução foi derrotada militarmente pelas tropas soviéticas. Segundo Reis, a Kronstadt revolucionária lutava “[…] por um socialismo diferente, em que o produtor fosse senhor da sua produção —os campos para os camponeses, as fábricas para os operários —, dispondo dela livremente e como bem entendessem.” (REIS, 2017, pp.140/141).

Para além da narrativa de reconstrução histórica, o trabalho de Reis, alicerçado tanto em fontes documentais quanto em diversos trabalhos de pesquisadores de renome mundial, problematiza várias interpretações consolidadas sobre a Revolução.

É particularmente importante o questionamento de um superdimensionamento da importância do Partido Bolchevique como mobilizador do povo russo, presente tanto nas pesquisas de cariz liberal quanto na historiografia de esquerda considerada simpática à revolução. Tais interpretações não encontram respaldo nas evidências disponíveis atualmente. Isso se deve, segundo Reis, à tendência das pesquisas em se enquadrarem numa história política, baseada principalmente em documentação partidária. Com isso é atribuída importância insuficiente à participação tanto dos camponeses (em uma época em que 85% da população russa era rural) quanto das mulheres. Em busca de sanar essa lacuna tão comum, Aarão dedica considerável parte do livro aos “atores esquecidos” das revoluções russas, resgatando a agência e as conquistas dos movimentos de mulheres e camponeses.

Outra ideia colocada em xeque é a concepção, difundida especialmente por Trótski, de que durante boa parte de 1917 as relações políticas gerais da Rússia se caracterizaram por uma disputa de forças entre o Governo Provisório advindo da Revolução de Fevereiro e o Soviete de Petrogrado. Com base nas pesquisas do historiador Claudio Ingerflon, Reis defende que essa interpretação se deve a uma aplicação errônea à Rússia do conceito de Estado, elaborado na reflexão de processos sócio históricos específicos da Europa Ocidental. Na Rússia existiam pouquíssimas instituições (aparelhos ministeriais, conselhos, etc.) que mediavam as relações entre a sociedade e o poder imperial. Por isso, a queda da dinastia Románov não deixou um “vácuo de poder” a ser disputado entre Governo Provisório e o Soviete. O que se seguiu foi um processo de profunda desintegração da autoridade, no qual nem o Soviete de Petrogrado nem o Governo Provisório detinham efetivamente os poderes de autoridade que comumente lhes são atribuídos. As evidências apontam para o que Reis chama de “[…] um processo de múltiplos poderes […]” (REIS, 2017, p.60): sindicatos, comitês de fábricas, milícias, comitê de soldados e um sem-número de outras organizações que marcavam sua autonomia e não acatavam ordens externas. Essa tendência centrífuga passou a ser revertida com a predominância dos bolcheviques após Outubro.

Também é digno de nota o resgate que o livro faz de uma antiga controvérsia que perdura até hoje: o que ocorreu em Outubro de 1917 teria sido uma verdadeira revolução ou um golpe bolchevique? Para Reis, quem elaborou a melhor interpretação para o problema foi o historiador francês Marc Ferro: houve um golpe, mas também uma revolução. A perspectiva do golpe era clara desde julho daquele ano, quando os bolcheviques, em seu VI Congresso, abandonaram a proposta dos sovietes como poder alternativo e democrático. No mês seguinte, é tomada a decisão de empreender uma insurreição armada antes das deliberações do II Congresso dos Sovietes. Como justificativa, Lenin teria argumentado que antecipar a insurreição era a única forma de salvar o processo revolucionário, rondado por inúmeros perigos. É sabido, atualmente, que esses perigos não eram reais, devido principalmente à desorganização e conflitos entre os grupos contrarrevolucionários. Todavia, essa informação era desconhecida na época. Além disso, não há como negar que, ainda que entrelaçados com decisões e ações golpistas, os eventos de outubro foram uma verdadeira revolução: As profundas transformações revolucionárias consagradas pelos decretos aprovados no II Congresso (paz e terra) e pelos que viriam depois (controle operário, direito à secessão etc.) certamente mudaram a face e a história daquela sociedade. E mudaram num sentido e com um caráter popular inegáveis. (REIS, 2017, pp.108/109).

O livro se destaca pela serenidade das análises. É fato conhecido que Daniel Aarão Reis é um intelectual inserido indubitavelmente no campo da esquerda, e o livro em questão é claramente simpático aos fins almejados pelo projeto revolucionário, o que não impede que ele apresente conteúdo altamente crítico e atento às contradições de seus protagonistas. Em seu balanço, o professor também realça os inegáveis avanços sociais que a Revolução trouxe aos trabalhadores e demais grupos oprimidos, bem como os aspectos positivos da presença internacional da URSS, que favoreceu as lutas das classes trabalhadoras em âmbito mundial: “Assustadas diante do ‘perigo vermelho’, muitas elites sociais se disporiam a ceder anéis para salvar dedos—e cabeças.” (REIS, 2017, pp.191/192). A própria perspectiva de um socialismo democrático faz com que Reis deixe clara a necessidade de um balanço crítico das experiências comunistas do século XX – das quais a URSS foi um paradigma – caso queiramos que o socialismo triunfe no século XXI. É urgente que se supere a cisão entre socialismo e democracia e liberdade. Só assim, avalia Reis, alcançaremos finalmente uma humanidade verdadeiramente emancipada.

Felipe Alexandre Silva de Souza – Doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília); E-mail: felipesouza1988@gmail.com.

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Estranhos à nossa porta – BAUMAN (FH)

BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2017. 76p. Resenha de: GOMES, Gilvan Figueiredo. “Enquanto escrevo estas palavras, outra tragédia está à espreita”: Bauman e a crise migratória em Estranhos à nossa porta (2017). Faces da História, Assis, v.5, n.1, p.362-365, jan./jun., 2018.

“Crianças afogadas, muros apressadamente erguidos, cercas de arame farpado e campos de concentração superlotados” (BAUMAN, 2017, p. 05) atraíram os olhares do mundo para as fronteiras europeias nos últimos anos. O aumento dos conflitos na África e no Oriente Médio gerados a partir do movimento pró democracia conhecido como Primavera Árabe transformaram-se rapidamente em guerras civis, a repressão por parte de líderes da região como Bashar al-Asad e Muhamad Morsi aliada à atuação de insurgências com diversas bandeiras, acabaram desenvolvendo um novo fluxo migratório massivo na década de 2010. A “crise migratória”, como ficou conhecida, trouxe todo tipo de narrativa e, enquanto os governos se reuniam para discutir uma saída comum, os migrantes chegavam ininterruptamente, processo marcado tanto pela ajuda de grupos humanitários como pelas agressões de militares e civis. Os sobreviventes escancararam como a guerra, a fome e o medo podem levar as pessoas a atitudes extremas.

O cenário chamou a atenção do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), um dos mais reconhecidos intelectuais dos séculos XX e XXI. Grande parte dos seus trabalhos discute a modernidade a partir de sua fluidez, seja no amor, medo, política e sociabilidade, e seu caráter efêmero, passageiro, volátil e imprevisível, enfim, as relações travadas na contemporaneidade são, segundo o autor, líquidas e instáveis.

Combatente de origem judaica na Segunda Guerra Mundial, Bauman, tem suas reflexões voltadas ao futuro permeadas por um sentimento pessimista. Observador de seu presente, escreveu, em 2016, Estranhos à nossa porta, no qual analisa as políticas públicas e as relações sociais a partir das experiências notoriamente trágicas que caracterizaram os grandes afluxos de refugiados nos anos de 2015 e 2016.

As reflexões de Bauman confluem com trabalhos anteriores, como Modernidade Líquida (2001) e Comunidade (2003), nos quais problematizou o conceito de comunidade.

Para o autor, diante do contínuo aumento de estranhos e indesejáveis com os quais as pessoas são forçadas a conviver, se desenvolvem tentativas de fuga dessa sociedade instável, como os condomínios fechados, ou os espaços higienizados – shoppings –, que utilizam o termo comunidade de modo nostálgico, em referência a uma inocência da sociedade que fora corrompida e já não é mais a mesma (BAUMAN, 2001; 2003). Essa distorção da sociedade também foi discutida pelo filósofo francês Alain Badiou, em Notre mal vient de plus loin:penser les tueries du 13 novembre (2016), que desenvolve uma análise do fenômeno “terrorismo” de forma mais profunda, discutindo como a noção de uma sociedade hegemônica pode afetar os excluídos dessa lógica. Para Badiou, o “mal” vem de mais longe pois a violência e a exclusão são problemas diacrônicos, e, em última análise, a motivação para grupos classificados como “terroristas”, como o Estado Islâmico, que defendem a violência embutida em suas práticas, a partir de referências históricas do processo colonial no sudeste asiático e nas resistências nacionalistas e islamistas.

Estranhos à nossa porta foi publicado no Brasil em 2017 pela Editora Zahar – tanto em formato físico como digital – pouco tempo depois da morte de Bauman, em 9 de janeiro do mesmo ano. No formato digital, apresenta variação na diagramação e é composto por 76 páginas divididas em seis breves e ricos capítulos que discutem tanto as políticas adotadas quanto os problemas estruturais das sociedades que recebem os migrantes.

No primeiro capítulo, O pânico migratório e seus (ab)usos, o sociólogo ressalta que o trânsito de refugiados não é um fenômeno recente, contudo o aumento no fluxo de migrantes levanta questões sobre a forma de recebê-los. Para Bauman, o incômodo gerado pela presença desses estranhos – acompanhado, muitas vezes, por maus tratos, violências e abusos – pode ser observado em duas formas: primeiramente, a reação de setores marginalizados da sociedade que identificam mais similaridades nos migrantes do que em seus patrões – indivíduos cuja condição é mais miserável que a sua. Em segundo lugar, o pânico de grupos estabilizados com a possibilidade de perder seu status, “esses nômades […] nos lembram, de modo irritante, exasperante e aterrador a (incurável?) vulnerabilidade de nossa própria posição e a endêmica fragilidade de nosso bem-estar arduamente conquistado.” (BAUMAN, 2017, p. 12).

Pode-se observar nos capítulos 2, Flutuando pela insegurança em busca de uma âncora, e 3, Sobre a trilha de tiranos (ou tiranas), uma discussão sobre as sociedades que recebem os migrantes. Segundo Bauman, a sensação de insegurança aliada à diversidade dos indivíduos dentro do território nacional gera ansiedade e dúvida em relação ao futuro. Nesse contexto, “aspirantes a ditadores”(BAUMAN, 2017, p. 30) não surgem com promessas de combate à desigualdade, mas de enfrentamento dos “estranhos”, reais responsáveis pelo desemprego e falta de moradias para imigrantes, “terroristas em potencial”. Todavia, essas políticas de estigmatização social, afirma o autor, além de cruéis, tendem a favorecer os recrutadores de movimentos terroristas, sempre dispostos a oferecer novas perspectivas de vida para os excluídos (BAUMAN, 2017, p. 23).

Em Juntos e amontoados, o autor parte do desafio do filósofo Kwame Anthony Appiah de substituir a formação pautada na diferença por ideias e instituições que privilegiem a sobrevivência da humanidade.2 Bauman argumenta que para isso seria necessário recolocar a ética e a moral como condicionantes no desenvolvimento de políticas públicas. Entretanto, vale ressaltar que o autor salienta que tais conceitos têm produzido muito mais conflitos do que paz. A saída proposta se pautaria na solidariedade, que só poderia ser alcançada mediante o reconhecimento da humanidade dos migrantes, mas o autor se mantém pessimista diante dos casos de agressão física, humilhação e difamação que, segundo sua ótica, passaram impunes.3 O quinto capítulo, Problemáticos, irritantes, indesejados: inadmissíveis, tem este título em alusão aos adjetivos que refletem, segundo o sociólogo, o tratamento recebido pelos migrantes. Bauman analisa como a questão migratória ganhou importância no cenário político europeu, produzindo discussões não apenas em relação à pouca aceitação dos migrantes, com também sobre as barreiras materiais, muros e cercas, construídos com o objetivo de obstruir a entrada dos migrantes que sobreviveram aos percalços da viagem. Em suma, o autor ressalta a incapacidade das políticas adotadas tanto no atendimento das demandas dos migrantes quanto em relação à contenção de sua entrada.

No sexto e último capítulo, Antropológicas versus temporárias: origens do ódio, Bauman investiga como, na ausência de fatos materiais que comprovem os malefícios causados pelos migrantes, parcela considerável da sociedade acaba por reproduzir as “práticas da maioria”, ou seja, incorporam discursos de intolerância de outros grupos.

Seu ponto privilegiado de análise é o antagonismo entre off-line e online, um mundo incontrolável e submerso nos problemas da sobrevivência contra a paz de ambientes personalizáveis a cada “click”. Porém, fugir do embate gera apenas mais desconforto nos momentos em que o indivíduo é obrigado a se relacionar, as sevícias de outrem tendem a lembrar que não é possível estar online o tempo todo. Superar tal desconforto, para o autor, perpassa pelo incentivo ao diálogo, um caminho sempre criticado e ao mesmo tempo nunca trilhado.

Toda a discussão de Bauman está em torno da questão: constatada a ausência de perspectivas de melhora no pais de origem, ou mesmo a falta de vontade política das nações originárias desses migrantes para a resolução dos problemas político-sociais, como lidar com um fluxo migratório que apresenta um crescimento vertiginoso? Os governantes que sustentam políticas públicas voltadas à construção de fronteiras irão, efetivamente, reduzir o incômodo de olharmos para esses indivíduos à medida que a maioria deles deixará de existir no mundo? Seremos sensíveis ao sofrimento alheio em outros momentos além dos marcados pela comoção extrema? No Brasil, são encontradas questões similares. A sociedade brasileira também é confrontada com a pobreza e a miséria de indesejáveis, oriundos de outros países como Síria e Haiti, bem como dos nativos e migrantes internos, constantemente questionados sobre suas intenções, ideias e projetos de vida. Bauman coloca a necessidade de se reconhecer nesses estranhos e trabalhar em conjunto em prol de uma vida com menos sofrimento, em que a alteridade seja aceita como parte da sociedade e não como a origem “do mal”.

O livro em tela torna evidente a relevância e a contemporaneidade do pensamento de Zygmunt Bauman. Ao debater tanto de modo sincrônico quanto diacrônico a condição dos imigrantes e sua genealogia, o autor apresenta várias temporalidades, lançando luz sobre a construção do conservadorismo e denunciando a desumanização presente em políticas públicas voltadas ao fechamento de fronteiras, sejam estas físicas ou comportamentais. Desse modo, fornece importantes contribuições para discutir o acontecimento de maneira mais profunda, evidenciando a presença de passados que não passam, sempre à nossa porta como um estranho, muitas vezes indesejável.

Notas

2 Cf. APPIAH, K. A. Cosmopolitanism: Ethics in a world ofstrangers, Penguin, 2007.

3 Bauman ressalta principalmente o caso de Katie Hopkins que não foi indiciada por ter chamado os migrantes de baratas em abril de 2015. Disponvel em: <http://www.dailymail.co.uk/news/article-3301963/Katie-Hopkins-not-face-charges-allegations-incited-racial-hatred-article-comparing-migrants-cockroaches.html>, acesso em 10 maio 2018.

Referências

BADIOU, Alain. Notre mal vient de plusloin: penserlestueriesdu 13 novembre. Paris: Fayard, 2016.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003. 141 p.

____________. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2017. 76 p.

____________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. 278 p.

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo; Tradução Fernando Coelho, Fabrício Coelho. – Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. 344 p.

Gilvan Figueiredo Gomes – Mestrando no Programa de Pós Graduação em História da UDESC.

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Health Equity in Brazil: Intersections of Gender/Race/and Policy | Kia Lilly Caldwell

No livro Health Equity in Brazil: Intersections of Gender, Race, and Policy (Equidade em saúde no Brasil: intersecções de gênero, raça, e política Pública), Kia Caldwell, professora da Universidade da Carolina do Norte, procura analisar como fatores estruturais e institucionais contribuíram e continuam a contribuir para a precarização da saúde de milhares de mulheres e homens negros. Caldwell chama a atenção para o insucesso do Brasil em desenvolver políticas que resolvam as questões de saúde que impactam desproporcionalmente a população negra até o início do século XXI. Ela enfatiza, ainda, o fato de o país não apresentar longa tradição de pesquisas ou de políticas em saúde focadas nas desigualdades raciais ou étnicas. Discorre, por um lado, sobre os esforços do Brasil no que se refere ao enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS, e, por outro, sobre os desafios para assegurar equidade em saúde para a população afrodescendente. No que se refere à questão da garantia de saúde de qualidade para seus cidadãos, em particular para negras e negros, Caldwell examina o fato de o país ter sido bem-sucedido em certos desafios, mas ter falhado em confrontar outros. Leia Mais

Espanca | Luz Ribeiro

Um novo fenômeno de poesia oral e performática cresce no mundo contemporâneo: são os chamados slams — competições ou batalhas de poesias que dão vez e voz a poetas da periferia, os quais versam sobre as adversidades do seu cotidiano, abordando temas como racismo, violência, drogas, machismo, sexismo, sempre de teor crítico e engajado, que requerem a escuta, a reflexão e a politização do seu público-ouvinte.1 Leia Mais

Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras | Djaimilia Pereira de Almeida

Esse cabelo: a tragicomédia de um cabelo crespo que cruza fronteiras. Rio de Janeiro: Leya, 2017. 144 p. A minha mãe cortou-me o cabelo pela primeira vez aos seis meses. O cabelo, que segundo vários testemunhos e escassas fotografias era liso, renasceu crespo e seco. Não sei se isto resume a minha vida, ainda curta. […] Nasce daquele primeiro corte a biografia do meu cabelo. […] A verdade é que a história do meu cabelo crespo cruza a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indireta da relação entre vários continentes: uma geopolítica. (p. 9) Leia Mais

Disputa de un cristiano con un gentil sobre la fe cristiana | Gilberto Crispino

A História se faz com documentos. O ensinamento deixado há algumas décadas por Henri-Irénée Marrou é um dos fundamentos do ofício de historiador. Portanto, na lida cotidiana com estes vestígios do passado, somos responsáveis por trazer a lume algo a respeito das experiências de homens e mulheres de outrora. Infelizmente, por negligência ou simples desconhecimento, tal premissa está a se desbotar sobre as mesas de trabalho de muitos destes profissionais. Cada vez mais, do ensino à pesquisa, as fontes secundárias ampliam seus domínios e ganham ar de autoridades definitivas. São recorrentes os artigos, dissertações e teses nos quais um rosário bibliográfico se abre e se sobrepõe ao contato direto com a documentação histórica.

No caso dos medievalistas da América do Sul, e dos brasileiros em específico, tal situação se agrava em função da escassez de boas bibliotecas com seções dedicadas à Europa medieval e arquivos minimamente organizados. Ainda que a Internet tenha amenizado muitos dos problemas e encurtado as distâncias quase intransponíveis em um passado recente, o quadro requer cuidados. Infelizmente, não podemos fechar os olhos para a realidade: um oceano continua a nos separar literalmente dos bons centros de pesquisa europeus e de seus acervos quase sempre fartos e atualizados (alguns, com invejável rapidez para nós sul-americanos de boa vontade). Dos que iniciam suas pesquisas aos mais experientes, as viagens periódicas de atualização para o Velho Mundo e a importação de material bibliográfico de ponta, sobretudo boas edições críticas, continuam a se impor. Leia Mais

Acessibilidade cultural no Brasil: narrativas e vivências em ambientes sociais | Francisco Nilton Gomes de Oliveira, Gerda de Souza Holanda, Patrícia Silva Dorneles, Juliana Valéria de Melo

De início, torna-se importante destacar que esta publicação foi gestada por discentes e docentes da segunda turma do curso de especialização em acessibilidade cultural, promovido pelo Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em convênio com o Ministério da Cultura (MinC). Trata-se de coletânea de artigos, organizada por Francisco Nilton Gomes de Oliveira, terapeuta ocupacional e professor adjunto da UFRJ; Gerda de Souza Holanda, pedagoga; Patrícia Silva Dorneles, professora adjunta da UFRJ, terapeuta ocupacional e coordenadora do curso de especialização em acessibilidade cultural; e Juliana Valéria de Melo, terapeuta ocupacional e professora assistente da UFRJ. Leia Mais

Das Amazônias | UFAC | 2018

Das Amazonias Horizontes Históricos | UFS | 2018

Das Amazônias – Revista Discente do Curso de História da Universidade Federal do Acre (Rio Branco, 2018-) é vinculada a área de História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (CFCH/UFAC).

Tem por objetivo mobilizar e envolver pesquisadores, professores e estudantes de graduação e pós-graduação das áreas de Ciências Humanas, Educação e Linguagens, bem como manter relações com as experiências de professores da educação básica e de movimentos sociais das florestas e cidades amazônico-andinas.

As contribuições, na forma de artigos, entrevistas, resumos e resenhas, poderão ser livres ou vinculadas a dossiês temáticos organizados por profissionais dos cursos de História da UFAC e outras instituições.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 2674-5968 (Eletrônico)

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Mulheres/ Violência e Justiça no século XIX | Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues

Mulheres, Violência e Justiça no século XIX (2016) tem como objetivo introduzir os leitores a uma temática histórica inovadora e complexa. Resultado da tese de doutorado da historiadora Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues, o livro trabalha com questões de violências e justiça no cotidiano imperial, numa província pouco explorada pela economia na época e também pela historiografia, o Mato Grosso (1830-1889). A historiadora aborda em sua tese as convivências sociais e os múltiplos fatores que levavam essas violências (físicas e simbólicas) aos gêneros femininos e masculinos na região do sul do Mato Grosso durante o segundo período imperial. Para isso, Rodrigues utilizou de fontes diversas, incluindo inventários, documentos jurídicos e de viajantes para tentar compreender a complexidade cultural e social que a região possuía na época.

Como metodologia de análise histórica, a historiadora recorre à interdisciplinaridade acerca do conhecimento empírico e noções teórico/metodológicas de outras ciências (medicina legal, legislação) para compreensão, por exemplo, de violências sexuais. Ademais, enfatiza as relações de gêneros enquanto relações de poder exercidas pelas dominações masculinas, resistências e das próprias instituições legais como produtoras de formas específicas de poder (2016, p. 26). Leia Mais

História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso | Jean-Jacques Courtine e CArlos Piovezani

A fala pública foi, no decorrer da história, um lugar privilegiado do exercício da autoridade e influência sobre as mais diversas sociedades. Seguindo a premissa proposta por Michel Foucault – de que o discurso não é tão somente o veículo, mas sim o objeto do desejo, aquilo pelo que se luta2 – os autores Carlos Piovezani, da Universidade Federal de São Carlos, e JeanJacques Courtine, das Universidades de Auckland, da Califórnia e da Sorbonne Nouvelle, organizaram o livro “História da fala pública: uma arqueologia dos poderes do discurso.”

Trata-se de uma obra coletiva com uma proposta ambiciosa que, como indicamos nas páginas abaixo, esbarra em limitações práticas. O livro é dividido em onze capítulos (contando-se a introdução escrita pelos dois organizadores) e três partes que definem os recortes temporais trabalhados. A obra reúne textos de dez autores, sendo três deles professores de universidades brasileiras e os demais atuantes no exterior. O livro opta por uma abordagem interdisciplinar, pelo aporte dos estudos históricos, linguísticos e literários. Leia Mais

Revista TEL. Irati, v.8, n.2, 2017.

Dossiê – Ensino de História e produção de conhecimento histórico-escolar

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Dossiê | Special Issue | Dossier

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Publicado: 2018-02-01

História – Ensino / Vozes Pretérito & Devir / 2018

O século XX trouxe grandes questionamentos e reformulações para a ciência histórica que a afetaram não somente do ponte de vista de sua maturação epistemológica, a História em si, mas também seus modos de socialização. Desta forma, percebemos que o ensino de história passou a constituir um campo rico em discussões teóricas, filosóficas, metodológicas, éticas e estéticas (KARNAL, 2007). O fazer pedagógico, assim como o próprio conhecimento historiográfico é entendido como uma prática social, exercida em sala de aula, suscetível a mudanças no tempo e no espaço. Isto posto, verificamos a importância de uma crítica sobre as formas como foram sendo construídas, as práticas e representações em torno do ensino de história, e como elas se relacionam com as demandas contemporâneas de formação da cidadania (GOMES, 2015).

Entretanto, na contramão dos avanços nas produções intelectuais relacionadas ao ensino de História, percebemos que muitas das inovações proporcionadas pelas novas abordagens historiográficas estão longe de fazerem parte do cotidiano das salas de aula do ensino básico. Alguns procedimentos adotados pelos professores chegam mesmo a contradizer aquilo que vem sendo discutido nas universidades, no que se refere às últimas décadas. Outro ponto a ser considerado é o desinteresse dos alunos pela disciplina de História, os quais, em sua maioria, ao não perceber uma aplicação prática, no plano quotidiano, para tal disciplina e por isso mesmo não sabe pra que serviria a História (MORAES, 2006).

Portanto, precisamos tratar com muita complexidade as questões relacionadas à escolha do que deve ser ensinado na disciplina de história: como devemos proceder em relação à seleção de conteúdos? Quais podem ser mais atraentes e garantir uma formação adequada? Além disso, precisamos também estar atentos para a utilização de diferentes linguagens e abordagens na sala de aula. De acordo com Ribeiro (20013, p. 1):

No que se refere ao ensino de história, é importante observar que a construção do currículo não pode se limitar a um enfoque meramente disciplinar, pois, estudar o passado significa fazer referência às múltiplas experiências dos seres humanos no tempo, que são, antes de tudo, permeadas por um conjunto de conhecimentos e aspectos que não podem ser reduzidos a um recorte disciplinar.

Todo este quadro se torna ainda mais complexo diante das questões colocadas pela lei nº 13.415 / 17 que instituiu a Reforma do Ensino Médio. Entre as mudanças estabelecidas destacamos que a disciplina de História deixa de ser obrigatória e passa a ser eletiva. Embora ainda não seja possível dimensionar com precisão os prejuízos advindos desta não obrigatoriedade da disciplina e da consequente não oferta da mesma em muitas escolas públicas é necessário nos prepararmos para o que está por vir.

Também contribui para a problemática do ensino em nossa sociedade o projeto de lei 867 / 2015, apresentado à Câmara dos Deputados, e o projeto de lei 193 / 2016, apresentado ao Senado. Figura entre as propostas destes projetos a inclusão, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o chamado “Programa Escola Sem Partido”.

Atrelado a outras propostas polêmicas para a Educação, o Escola Sem Partido opera na desconstrução das ideias de democracia e justiça social; as ideologias propostas por ele têm sido construídas ao longo de uma década, por seus protagonistas, na grande mídia e, com isso, tem se consolidado um discurso de invalidação do conhecimento científico e de perseguição a perspectivas históricas e políticas distintas. A tentativa de inviabilizar, ao mesmo tempo, a produção e a socialização de conhecimento para uma educação antirracista e o objetivo de minar toda e qualquer possibilidade dessa discussão é, mais uma vez, uma tentativa de silenciamento e de perseguição, colocada pelo Escola Sem Partido, por via da judicialização da ação docente, dos poucos profissionais que operam para a reflexão sobre as injustiças sociais de modo a desvelar a história oficial para ouvir seus agentes silenciados. (FREITAS; BALDAN, 2017, p. 3-4)

Foi pensando nos desafios que o ensino de História vem enfrentando no mundo contemporâneo que resolvemos dedicar o dossiê da presente edição da Revista de História da Uespi: “Vozes, Pretério e Devir”, à discussão deste assunto. Abrimos nosso dossiê com uma reflexão em torno dos limites que o fator tempo tem colocado, historicamente, à atuação dos professores no exercício de suas funções e na constituição de suas identidades profissionais. Na sequência apresentamos um artigo que analisa as orientações teórico-metodológicas voltadas para o ensino de história presentes na revista “Escola Secundária” que circulou no Brasil entre os anos de 1957 e 1963. Também contamos com uma análise sobre a constituição do ensino em escolas primárias no Brasil Republicano que nos é apresentada através da autobiografia de Paschoal Lemme.

Continuando nosso dossiê temos uma análise sobre o uso das TDICs no ensino de história e de como as mesmas podem auxiliar professores e alunos no processo de ensino-aprendizagem. Outro artigo visa compartilhar experiências de transposição didática de pesquisas ligadas à temática da migração. Em sequencia, é possível apreciar uma abordagem voltada a “história e imagem” relacionando a representação do negro em quadros do século XIX, esta questão se torna ponto de partida para pensar a relevância do ensino de História África e Cultura afro-brasileira no ensino básico. Finalizando o dossiê contamos com um artigo que se propõe a analisar as políticas voltadas para a formação continuada dos professores de História.

Dos das produções textuais que constitui o dossiê temático, também contamos na composição desta edição, a publicação de artigos livres, os quais trazem os mais variados temas, como por exemplo, a mercantilização da terra no Brasil colonial, passando pelas problematização das artes de cura, da escravidão e das representações escatológicas no sertão do Piauí. Por fim, o conteúdo da mesma se da por findado ao expor um resumo expandido de monografia que trata do ciberativismo e o jogo político do Brasil contemporâneo.

Referências

FREITAS, Nivaldo Alexandre de; BALDAN, Merilin. Dossiê Escola Sem Partido e formação humana. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro – Junho de 2017 Vol.14 Ano XIV nº 1 ISSN: 1807-6971

GOMES, Gustavo Manoel da Silva. Historiografia e ensino de História para a descolonização do conceito de cultura afro-brasileira: articulando ciência, ensino, cultura e política. Bananeiras-PB: Revista Lugares de Educação [RLE], Bananeiras-PB, v. 5, n. 10, p. 93-111, Jan-Jul., 2015 ISSN 2237-1451.

KARNAL, Leandro. (org.) História na Sala de Aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2007.

MORAES, Airton de. Historiografia e ensino de história: algumas reflexões sobre o ensino fundamental. Londrina-PR: História & Ensino, v. 12, p. 9-34 ago. 2006.

RIBEIRO, Jonatas Roque. História e ensino de História: perspectivas e abordagens. Educação em Foco, Edição nº: 07, Mês / Ano: 09 / 2013, Páginas: 1-7

Marta Rochelly Ribeiro Gondinho – Doutora

Felipe da Cunha Lopes – Mestre


GONDINHO, Marta Rochelly Ribeiro; LOPES, Felipe da Cunha. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.8, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Crenças e Representações Religiosas na Cultura Contemporânea / Revista Mosaico / 2018

Há espaço para crenças religiosas no mundo contemporâneo? Pergunta evidentemente retórica, pois basta abrir os olhos e direcionar os ouvidos para ver e ouvir a multiplicidade de crenças religiosas, presentes em templos, procissões, rituais, programas radiofônicos e televisivos, cursos de graduação e pós-graduação etc., que estão à nossa volta e / ou fazem parte da nossa vida. Contudo, essa efervescência religiosa não era o esperado pelos grandes nomes das ciências sociais do século XIX. Para Marx, a religião iria simplesmente desaparecer na sociedade comunista, juntamente com todas as outras formas de alienação humana. Augusto Comte e, em menor escala Émile Durkheim, acreditavam que a religião iria se racionalizar, tornando-se explícito o fato de ser meramente uma construção humana. Max Weber nunca afirmou que a religião iria desaparecer, mas com a sua famosa análise sobre o desencantamento do mundo, depreende-se que a fé religiosa se refugiaria nos recônditos da vida privada.

A despeito dessas análises dos fundadores das ciências sociais, o contexto do início do século XXI demonstra claramente que as crenças religiosas não desapareceram nem se tornaram mais racionalizadas. Pelo contrário, o que se percebe é o vigor de práticas religiosas seculares que se perpetuam e desenvolvem às margens das religiões institucionalizadas. O poder, o dinheiro e a organização hierárquica das grandes religiões não conseguiram sufocar a espontaneidade das diversas formas de religiosidade. O leque é amplo, e as práticas e os conteúdos englobam matizes populares e alternativas, bem como conservadoras e tradicionais ‘modernizadas’.

Em um mundo marcado por tecnologias inovadoras, por um domínio avassalador da economia de mercado e por uma sociedade altamente urbanizada e individualizada, os indivíduos podem encontrar espaços de relativa autonomia para cultuar seus santos devocionais, participar de rituais antigos, organizar procissões e manter suas crenças ancestrais. A racionalidade científica não se mostrou incompatível com a fé religiosa, pois conhecer os fundamentos básicos da física, da biologia, da astronomia e das ciências humanas não resulta, necessariamente, na ampliação do ateísmo. Ainda há espaço para a crença no milagre, para os rituais simbólicos de preces coletivas, para as práticas ancestrais. Contudo, nesse ‘caldo’ há também espaço para o mercado da fé, da remodelação hierárquico-institucional de rituais, de ‘domesticação’ do que poderia se tornar expressão autônoma de fé e religiosidade.

O Brasil, nesse contexto, constitui um grande laboratório para o estudo da religiosidade, especificamente popular. Apesar de ser um país de referência do vigor das religiões institucionalizadas, como o catolicismo, o protestantismo e o espiritismo kadercista, pululam várias manifestações religiosas populares. Religiosidade popular é aquela que não é plenamente institucionalizada, que se localiza nas margens, que se mantém pela tradição oral, que não obedece plenamente a hierarquia sacerdotal. Portanto, há numerosos exemplos de festas, rituais, movimentos devocionais e espiritualidades que emergiram dentro, nas fronteiras ou nas margens da liturgia oficial dos cultos religiosos institucionalmente dominantes. Assim, tanto o catolicismo romano, como o protestantismo histórico, no contato com as crenças e práticas religiosas de origem africanas ou ameríndias, sofreram alterações ou adaptações litúrgicas acarretadas pela especificidade do meio cultural brasileiro.

Marx, Weber, Comte e Durkheim, apesar da indiscutível genialidade analítica, como sempre subestimaram o vigor das práticas e das representações populares. O mundo contemporâneo não se tornou inteiramente secular e racionalizado. Assim, pode-se construir e observar espaços para a multiplicidade, para o colorido, para a sonoridade, para as ambiguidades das crenças populares. A existência desse dossiê é uma tentativa de mapear essa complexa existência e efervescência de crenças e expressões religiosas no Brasil, em fragmentos de sua diversidade.

Vários foram os textos submetidos à Revista Mosaico, respondendo à Chamada deste Dossiê Temático. Autoras e autores de diversos lugares e experiências compartilharam parte de seus resultados de pesquisa. Pareceristas foram convidados(as) a participar deste trabalho, fizeram suas avaliações, comentários e sugestões. Nossa gratidão a cada qual por tudo isto!

Os artigos, aqui apresentados, dão uma resposta à pergunta colocada no início. Haverão outras, mas que não chegaram a nós. Aqui, trata-se de perspectivas de experiências e expressões do catolicismo popular e de algumas oriundas do mundo evangélico e neoesotérico. Acolhemos uma contribuição que trata de representações de gênero na cultura musical, que, afinal, também reflete concepções religiosas, às vezes muito distantes daquilo que almejamos para um mundo mais justo em suas relações nas mais diversas esferas.

Josimar Faria Duarte, em Festa de Devoção a Santa Rita de Cássia, em Viçosa / MG, analisa memórias e identidades regionais por meio da religiosidade popular e eclesial, que reúne grande parte da população da cidade e suas autoridades civis e religiosas. A festa e seus rituais permitiram observar as relações sociais em termos de agregação e de memória coletiva, fazendo parte da construção de uma identidade cultural popular coletiva.

Saindo de Minas para Tocantins, antigo norte goiano, Weberson Ferreira Dias, Maria de Fátima Oliveira apresentam parte da historiografia regional das comemorações religiosas, em artigo intitulado Revisitando a Historiografia sobre Festas Religiosas na Região do antigo Norte de Goiás. Tratam especificamente da Romaria do Senhor do Bonfim, em Natividade (TO), que permeia cultura e cotidiano de moradores(as), dando sustentação social para superação de dificuldades cotidianas. Desta forma, experiência religiosa fornece subsídios para análise histórica das relações socioculturais.

Seguindo a viagem, com Márcio Douglas de Carvalho e Silva chegamos ao Piauí, em O Sagrado e o Profano na Dança de São Gonçalo: etnografia de um ritual de pagamento de promessa. O ambiente rural, no município de Campo Maior, apresenta-se por meio da dança e dos cânticos em forma de ritual, no qual se fez possível analisar elementos sagrados e profanos como parte deste ato religioso, bem como compreender melhor as agruras sofridas pelos campesinos.

Voltando das cantigas e danças nordestinas, retornamos a Goiás, numa perspectiva histórica sobre A Congregação do Santíssimo Redentor em Goiás (1894-1925), de Andréia Márcia de Castro Galvão. Apresenta e analisa a vinda dos Redentoristas a Goiás, no final do século XIX, como estratégia para enfrentar mudanças legislativas e para controlar as práticas leigas que mesclavam expressões religiosas medievais e mágicas com elementos portugueses, africanos e indígenas. O fortalecimento do poder clerical e a sacralização dos locais de cultos católicos faziam parte do projeto ultramontano, que investia em missões e comunicação na propagação da sua fé, diminuindo o poder das irmandades leigas.

Desta dinâmica faz parte a representação simbólica de Deus-Pai, na Festa ao Divino Pai Eterno: representações do patriarcalismo em Panamá (GO), de Eloane Aparecida Rodrigues Carvalho. Preceitos católicos doutrinais entrelaçam-se com hábitos cotidianos de quem participa desta festa religiosa por meio de novenas, confissões, procissões, batismos e missas. Compreender indícios e resquícios do patriarcalismo presente nos elementos simbólicos e ritualísticos é o objetivo do artigo.

Entre catolicismo tradicional e popular, desponta a missão e a estratégia da Igreja Assembléia de Deus no contexto quilombola no norte de Goiás, em Minaçu, apresentadas por Lusinaide Cordeiro de Sales Lima Marques, em seu artigo A atuação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Minaçu, no Quilombo do Riachão. Tecendo elementos históricos da comunidade e das instituições religiosas, a adesão à ‘nova fé’ pentecostal foi vista em perspectiva identitária como processo de tradução cultural. Destaca-se expressões e percepções de pertencimento da comunidade a essa outra experiência de fé.

Adentrando a capital brasileira, no centro de Goiás, nova dinâmica de crença e religiosidade é tematizada por Pepita de Souza Afiune, em seu artigo Do Oriente ao Ocidente: a Sociedade Teosófica Brasileira e o Neoesoterismo em Brasília. Do contexto histórico do surgimento do Orientalismo e da Nova Era, ela adentra o século XX com o estudo da Sociedade Teosófica Brasileira e justifica sua sede em Brasília por causa das várias crenças de caráter utópico e mí(s)tico atribuídas à fundação da nova capital brasileira. Entrelaçando mudanças culturais e socioeconômicas e profecia do pé. Dom Bosco, apresenta novas religiosidades que ali se fixam por causa da crença de terem encontrado a terra prometida.

Encerramos esta viagem, fechamos o dossiê com artigo que, mesmo não tratando diretamente de Crenças e Representações Religiosas, apresenta algo do que está no âmago de muitas práticas aqui apresentadas: culturas patriarcais que, mesmo sendo reelaboradas, não conseguiram superar relações assimétricas de poder. As autoras Alexandra Ferreira Martins Ribeiro, Rebeca Oliveira Araújo e Beatriz Polidori Zechlinski tratam de ROSA: as representações de gênero na composição de Pixinguina. Composta na década de 1920, a letra da música contém representações de gênero que referem práticas culturais em relação ao amor, ao casamento e à ordem social e apresentam Rosa como a mulher ideal em pureza, calma, maternidade, beleza e rainha do lar, boa dona de casa. Também isso é bastante característico das expressões religiosas apresentadas neste dossiê.

Religião como sistema de crenças e valores e religiosidades como expressão do mesmo são contextualmente experimentadas e vivenciadas. As percepções de que as novas manifestações de religiosidades desafiam e questionam antigas e fixas instituições religiosas precisam ser aprofundadas com uma crítica que ultrapassa fronteiras temporais e que, dizendo respeito a culturas, também se ocupa com culturas religiosas. Estas estão em todos os lugares e espaços de conhecimento, e podem ser transformadas, pois não são estáticas ou naturais. Haverá de se ir além da crítica aos clássicos cientistas sociais. Haverá de se transpor as justificativas legitimadoras e muitas vezes ingênuas para o surgimento de novas religiosidades e suas práticas. Haverá de se buscar perceber se e em que proporções estas mesmas contribuem para superação de injustiças, violências, conservadorismos e desrespeitos em busca de construirmos um mundo heterotópico, onde diferenças não são desqualificadas e assimetrias são transformadas em justas porções de uma caminhada de construção de culturas de paz que brota da justiça.

Neste sentido, de partilha e desafio, de inconformismo e alento, de perplexidades e completudes, desejamos a você, que agora se ocupa conosco, uma leitura proveitosa, de reflexão e prospecção!

Ivoni Richter Reimer – Pós- doutora em Ciências Humanas (UFSC). Doutora em Filosofia / Teologia (Universität Kassel). Docente na PUC Goiás. E-mail: ivonirr@gmail.com

Eliézer Cardoso De Oliveira – Pós-doutor pelo Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás. Doutor em Sociologia (UnB). Professor no curso de História e no Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da UEG em Anápolis (GO). Bolsista do Programa de Incentivo a Pesquisa da UEG. E-mail: ezi@uol.com.br


REIMER, Ivoni Richter; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.11, n.1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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Fronteiras, Culturas e Deslocamentos Populacionais / Aedos / 2018

“O objeto da história é, por natureza, o homem.

Digamos melhor: os homens. Mais que o singular,

favorável à abstração, o plural, que é o modo

gramatical da relatividade”.

Marc Bloch (2001, p. 54)

Marc Bloch, na epigrafe acima, discorre sobre o objeto da história pautado a partir da presença dos homens no tempo, ou seja, a pesquisa histórica eles são próprios sujeitos sociais. Decerto, “o tempo da história, ao contrário, é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como lugar de sua inteligibilidade” (BLOCH, 2001, p. 55). Nesse sentido, os fenômenos são acionados através da própria realidade concreta.

No livro Apologia a História, Bloch enfatiza que “a história não é uma relojoaria ou uma marcenaria. É um esforço para conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento” (BLOCH, 2001, p. 46). Nesse esforço de compreensão, hodiernamente, faz-se necessário estabelecer novos diálogos e / ou conexões a fim de ter em mãos novos modelos explicativos.

Seguindo essa linha de pensamento, Certeau (2011, p. 47) frisou que “toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural”. O lugar social, portanto, é para o pesquisador campo fértil e é ao mesmo tempo espaço de luta em torno do que será pesquisado. O autor advoga que para isso, “tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira […] na realidade, ela consiste em produzir tais documentos”.

Nesse caso, os estudos sobre os deslocamentos populacionais, na contemporaneidade, têm se mostrado um campo profícuo nas Ciências Humanas e Sociais. Estudos que trazem a tona novas abordagens e novas perspectivas teórico-metodológicas, tais como: fronteiras, migração (internacional e nacional), refugiados, inserção sociocultural dos migrantes no lugar de destino, relações e tensões societárias (familiares, gênero, xenofobia, empregabilidade, educação, saúde), bem como a atuação do Estado e entidades não governamentais frente a este complexo e multifacetado fenômeno presente no contexto das migrações.

Vale destacar que, os Estados-nações são criações globais, relativamente recentes (HOBSBAWN, 1990), os quais há discrepâncias entre os “nacionais” e os “estrangeiros”. Discrepâncias que são criadas culturalmente e sedimentadas nas leis, com seleção da entrada destes nas fronteiras. A migração de pessoas ultrapassando fronteiras nacionais desses Estados é fenômeno global e multifacetado. Por conseguinte, pensam-se as migrações internacionais, por exemplo, a partir do fluxo de pessoas no globo já que essa condição é regida e limitada por legislações locais dos países soberanos.

No século XVIII o filósofo iluminista Kant propôs, na obra “A Paz Perpétua” uma sociedade universal de paz, com respeito unívoco pelos direitos humanos em um mundo com hospitalidade universal e sem exércitos, pois estes fazem “implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado)” (2008, p. 6). Entretanto, não há um direito global de migrar. Entretanto, o artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que “todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar” (ONU, 2009), mas não há força vinculante dessa norma internacional nos países, sendo norma meramente programática (ACCIOLY, SILVA, CASELLA, 2012, p. 497; PORTELA, 2010, p. 647).

Posto isso, o dossiê Fronteiras, Culturas e Deslocamentos Populacionais, trazido nesse número, conta com seis artigos, os quais trazem como panorama a questão do deslocamento populacional como fio conduto sobre o fenômeno migratório (inter)nacional.

O primeiro artigo é “Identidades, transnacionalidade e violência: o caso dos brasileiros no Japão”. Nele o fenômeno da imigração brasileira para o Japão é apresentado como um tipo de expulsão que é característica do capitalismo neoliberal. Destaca-se que o ponto de partida do artigo é discussão de dois acontecimentos – o discurso do deputado federal Jair Bolsonaro proferido em abril de 2017, onde o político ataca minorias étnicas e apresenta brasileiros de origem japonesa como “uma minoria exemplar”; e o assassinato da enfermeira japonesa Rika Okada, ocorrido no Japão, março de 2014, no qual a nipo-brasileira Kate Yuri Oishi foi apontada como culpada após entregar-se para as autoridades. Nesse caso, o segundo acontecimento, apesar de extremo, não representa uma exceção no sentido de que os brasileiros de origem japonesa, por vezes vistos como “exemplares” no Brasil, encontram-se em geral bastante marginalizados no contexto social japonês.

Já o segundo, “A História em espiral: compreendendo a receptividade brasileira à imigração haitiana a partir de suas determinações”, discute o mito que descreve o Brasil como um país acolhedor e receptivo à imigração, para tal, toma-se como campo analítico a imigração haitiana, no qual a autora busca demonstrar que essa ideia de pais acolhedor omite questões como os preconceitos e a xenofobia que dificultam a inserção do migrante no lugar de destino.

O terceiro texto, “Migração Venezuelana ao Brasil: discurso político e xenofobia no contexto atual” apresenta o estado de Roraima como principal rota para de entrada dos migrantes venezuelanos. A partir dessa realidade as autoras analisam as narrativas que permeia a Ação Civil Originária 3121, na qual o governo de Roraima solicita que o Supremo Tribunal Federal (STF) determine que a União assuma efetivamente o controle policial e sanitário na entrada do Brasil, inclusive com o fechamento temporário da fronteira. Além disso, procuram demonstrar como o recurso a essa retórica discriminatória atende a interesses políticos e de grupos específicos, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos migrantes e dificultando sobremaneira sua integração.

O texto “Do imigrante ao nacional regenerado: a busca pelo trabalhador perfeito” traz o contexto imigratório para a cidade de São Paulo, no último quartel do século XIX, sendo que a maior parte desses migrantes vieram da Europa. Essa realidade, na concepção do autor, alimentou a mentalidade da elite brasileira em relação ao um novo regime de trabalho já que os imigrantes iriam contribuir com a economia paulista. Consequentemente, os imigrantes carregavam consigo a tarefa de “regenerar” a população brasileira, sobretudo a de ascendência africana, vista como uma população degenerada e inferior. Desta feita, o autor problematiza a importância da ação da escola no início do século XX a fim de regenerar o indivíduo.

Em “Da partida à saudade: as representações de migrantes do Nordeste na obra de Luiz Gonzaga”, é discutido o fenômeno da migração de trabalhadores nordestinos, entre as décadas de 1950 a 1970, para as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro através da obra musical do compositor e intérprete Luiz Gonzaga. Nesse caso a música é utilizada pelo autor para discutir a diversidade dos tipos de migrantes representados na obra do “Rei do Baião”.

Já o último artigo a compor o dossiê “Arranchar-se do outro lado do Atlântico: açorianos na freguesia de Taquari (sul da América portuguesa, 1750-1800)” demonstra os aspectos da migração de casais açorianos para o que hoje definido como Rio Grande do Sul a partir da freguesia de Taquari. Para isso, a autora investiga as condições de acesso à terra, bem como sua ocupação deste a chegada até as últimas décadas do século XVIII.

Francisco Marcos Mendes Nogueira – Doutorando em História pela UFRGS. Mestre em Sociedade e Fronteiras pela UFRR. Historiador (B / L) pela UFRR.

Alan Robson Alexandrino Ramos – Doutorando em Ciências Ambientais pela UFRR. Mestre em Sociedade e Fronteiras pela UFRR. Especialista em Segurança Pública e Cidadania pela UFRR. Bacharel em Direito pela UFC e em Filosofia pela Universidade Sul de Santa Catarina. Delegado de Polícia Federal lotado em Roraima.


NOGUEIRA, Francisco Marcos Mendes; RAMOS, Alan Robson Alexandrino. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 10, n. 22, Ago, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Para que votar? História do voto e das eleições no Brasil / Aedos / 2018

Pensar as motivações do voto em um momento em que a maioria da população brasileira é movida por um sentimento de descrença nos políticos e mesmo de rejeição à política se faz necessário para compreender o complexo jogo de representação e de expressão da vontade popular nas mais diversas conjunturas históricas e políticas da República brasileira. Enquanto o Brasil experimentava um processo eleitoral dramático, os editores da revista Aedos trabalhavam no dossiê Para que votar? História do voto e das eleições no Brasil, que teve como objetivo reunir trabalhos que abordassem a temática das eleições e do sistema eleitoral no Brasil Republicano e, sobretudo, que refletissem sobre o sentido do voto e da representação política.

Em virtude da complexidade da experiência republicana, marcada por regimes políticos e legislações eleitorais distintas que vigoraram no período, convidamos os pesquisadores a contribuírem no estudo da dinâmica dos processos eleitorais, da história do voto e da representação política nesse recorte temporal, buscando reunir trabalhos que, a partir do estudos de casos ou dinâmicas específicas, proporcionassem reflexões sobre os diferentes sentidos do voto e os diferentes papéis das eleições no jogo político ao longo da República. O objetivo do dossiê também foi o de reunir trabalhos que questionassem a relação estabelecida entre representante e representado na legitimação da autoridade política e na construção democrática do exercício do poder.

No centro desse debate, sobre os regimes representativos, encontram-se os partidos políticos, que ao mesmo tempo que se constituem em instrumento de aproximação e articulação entre os diversos segmentos sociais, também representam demandas particulares e aspirações universais. Durante os processos eleitorais, as siglas partidárias se empenham para promover a personificação das aspirações sociais na pessoa do seu representante e na desconstrução da imagem e no discurso dos seus adversários, com o propósito de convencerem os eleitores a votarem no seu candidato. Logo, são nesses momentos de competição eleitoral que os representados ganham destaque, são o objeto do discurso político, ao serem chamados a exercerem um direito, o do sufrágio. O voto além de manifestar uma escolha e uma posição, diante de um determinado contexto político, econômico e social, também é um instrumento que vincula o representante ao representado.

O voto como objeto da História Política parte da premissa de que sua implementação como meio de participação política possui uma historicidade a ser pensada: longe de ser um meio natural para tomadas de decisão coletivas, o voto foi historicamente instituído, até mesmo em detrimento de outras formas presentes em um vasto repertório de ação coletiva, e constituído como meio legítimo. É o que apontam reflexões de autores como Bernard Manin (1995), Alain Garrigou (1988), Michel Offerlé (1993; 2011) e os diversos textos da coletânea organizada por Letícia Bicalho Canêdo (2005) no Brasil. Um história do voto se apresenta como um empreendimento capaz de identificar, contextualizar e problematizar as práticas e as concepções que levaram eleitores e eleitoras a se constituírem como tais, a se tornarem eleitores, e a estabelecerem relações entre o ato de votar e a vida cotidiana.

A história do voto e das eleições no Brasil está longe de ser a história de uma evolução linear. Sua trajetória foi acidentada e influenciada pelas contingências de um cenário político com alterações constantes. Da implantação do regime republicano até a promulgação da Constituição de 1988 muitas reformas ocorreram em relação ao direito ao voto, que passaram, paulatinamente, a incluir uma massa de indivíduos (não abastados, mulheres e analfabetos) que outrora tinham negado esse direito e determinaram a mudança do voto facultativo para obrigatório. Os artigos que formam o presente dossiê passam por diversos momentos dessa história, em diferentes fases da República, abordando desde os aspectos legais da representação política até as práticas de partidos políticos, as campanhas eleitorais e a competição política.

Neste dossiê, contamos com um artigo sobre as eleições no período da Primeira República (1889-1930), intitulado As Eleições na Primeira República: Abstenções, Legislação e Controle Eleitoral, de autoria de Carina Martiny. Sobre as articulações visando à eleição presidencial de 1937 temos o artigo Luiz Mário Dantas Burity, “Eis o que me ocorre, por hoje”: a campanha presidencial de 1937 e a candidatura de José Américo de Almeida nas correspondências de Juraci Magalhães e Artur Neiva. O período da experiência democrática (1945-1964) foi contemplado por quatro artigos, sendo dois sobre as eleições no Piauí: Jackson Dantas de Macedo e Marylu Alves de Oliveira são autores de História e política: Fontes documentais como lugares de memória e a análise do processo eleitoral de 1945 no Estado do Piauí; e Ábdon Eres da Silva Neto contribui com o artigo O município e o processo eleitoral de 1954 no Piauí. Sobre a dissidência do PSD no Rio Grande do Sul temos o artigo de Tiago de Moraes Kieffer e Marcos Jovino Asturian, intitulado O Partido Social Democrático Autonomista (PSDA): Apontamentos Preliminares de Pesquisa. Completam o dossiê os artigos de Laila Correa e Silva, O direito ao voto feminino no século XIX brasileiro: a atuação política de Josephina Álvares de Azevedo (1851-1913) e o de Letícia Sabina Wermeier Krilow intitulado Democracia em perspectiva: as representações no Correio da Manhã sobre as eleições gerais de 1958.

Acompanham o dossiê duas entrevistas que realizamos tangenciando o tema do voto e da representação política, gentilmente concedidas pelas professoras Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (UFJF) e Céli Regina Jardim Pinto (UFRGS). A primeira, destacando as novas abordagens que vêm ressignificando o tema da competição política na Primeira República e a segunda trazendo uma reflexão sobre a democracia no Brasil realizada no calor dos resultados eleitorais de 2018.

Referências

CANÊDO, Letícia Bicalho (Org.). O sufrágio universal e a invenção democrática. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.

GARRIGOU, Alain. Le secret de l’isoloir. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 71-72, março 1988.

MANIN, Bernard. As Metamorfoses do Governo Representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34, 1995.

OFFERLÉ, Michel. Un homme, une voix? Histoire du suffrage universel. Paris: Gallimard, 1993.

________________. Perímetros de lo político: contribuiciones a una sócio-historia de la política. Buenos Aires: Antropofagia, 2011.

Douglas Souza Angeli – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. E-mail: douglasangeli@hotmail.com

Paula Vanessa Paz Ribeiro – Professora da EMEB Antônio Saint Pastous de Freitas, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: paulavpaz@gmail.com


ANGELI, Douglas Souza; RIBEIRO, Paula Vanessa Paz. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 10, n. 23, Dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

Chungará. Arica, v.50, n.2, 2018 / v.53, n.2, jun. 2021.

 

Chungara. Arica, v.44, n.3, 2012 / v.50, n.1, 2018.

Aedos. Porto Alegre, v. 10, n. 22, 2018.

Fronteiras, Culturas e Deslocamentos Populacionais | Sumário | Maíra Oliveira dos Santos, Israel Aquino |

Editorial | Maíra Oliveira dos Santos, Israel Aquino, Debora Salvi | | 4-5 |

Apresentação | Francisco Marcos Mendes Nogueira, Alan Robson Alexandrino Ramos |

Dossiê Temático

Artigos

Entrevista com o pesquisador de política externa brasileira Rogério de Souza Farias | Luis Fernando Silva Sandes | | 347-351 | Comunicações |

Teses e Dissertações (2018/1) de discentes do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS | Ãngela Pereira Oliveira, Guilherme Silva Cardoso | | 352-359 |

Ler História. Lisboa, n.72, 2018.

Varia

  • José Vicente Serrão
  • Editorial[Texto integral]

Artigos

Espelho de Clio

Em debate

Recensões

Historicidade e objetividade – DASTON (RBH)

DASTON Lorene By Stijn Debrouwere from London UK wikimedia org Horizontes Históricos | UFS | 2018
Lorraine Daston/Stijn Debrouwere from London UK wikimedia.org.

DASTON L Historicidade e objetividade Horizontes Históricos | UFS | 2018Como notam Tiago Santos Almeida e Francine Iegelski em sua apresentação à edição brasileira de Historicidade e objetividade, de Lorraine Daston, a história da ciência permanece uma especialidade marginalizada na historiografia contemporânea. É sintomático que apenas em 2017 o leitor brasileiro possa tomar conhecimento, em língua portuguesa, dos escritos de Lorraine Daston – e que ainda não possamos ler uma boa tradução de Steven Shapin.1 Dado o crescimento recente dos estudos em história da historiografia, é relativamente espantoso que a história da ciência não tenha servido como uma das interlocutoras privilegiadas. Nesse sentido, a publicação de Historicidade e objetividade começa a preencher uma lacuna enorme, que ainda carece de mais esforços.

Daston trabalha no Instituto Max Planck para a História da Ciência, onde coordena o departamento II (Ideais e Práticas de Racionalidade). Publicou em 2008, com Peter Galison, o livro Objectivity, em que traçam uma história da objetividade enquanto virtude epistêmica nas ciências. No prefácio à edição brasileira, ela define seu trabalho com base na expressão “epistemologia histórica”, definida como “a história das categorias e práticas que são tão fundamentais para as ciências humanas e naturais que parecem muito autoevidentes para ter uma história” (p.9-10). Daston detalha mais a definição à frente, no capítulo “Uma História da Objetividade Científica”, considerando a epistemologia histórica como “a história das categorias que estruturam nosso pensamento, que modelam nossa concepção da argumentação e da prova, que organizam nossas práticas, que validam nossas formas de explicação e que dotam cada uma dessas atividades de um significado simbólico e de um valor afetivo” (p.71).

A similaridade entre essas duas caracterizações e trabalhos como o de Michel Foucault não é acidental. O termo “epistemologia histórica”, de definição pouco clara, aparece com frequência para designar certa tradição epistemológica da qual fazem parte, além de Foucault, nomes como Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, mas Daston faz questão de mencionar que seu uso da expressão difere daquele da tradição francesa.2 Além disso, ela é enfática em recusar as acusações de relativismo que rapidamente surgem contra várias correntes na história e na filosofia das ciências: “o fato de que ideias, práticas e valores tem [sic] histórias, de que tiveram origem em um lugar e época determinados, nada diz sobre sua validade” (p.10); “historicizar categorias como fato, objetividade ou prova não a [sic] debilita, não mais do que a [sic] prejudicaria escrever a história da teoria da relatividade especial … ‘Se histórico, então relativo’ é um non sequitur” (p.124).3

Entre os textos selecionados por Tiago Almeida, organizador do volume, apenas um – “Science Studies e História da Ciência” – destoa do restante, como a própria autora aponta em seu prefácio. Exceção feita, os outros textos ilustram com clareza as longas reflexão e pesquisa empreendidas por Daston em torno do problema da história da objetividade – primeiro na história das ciências da natureza, que culminou na publicação do já mencionado livro Objectivity, com Peter Galison, e, finalmente, nas ciências humanas. É possível acompanhar o trajeto empreendido pela autora conforme as categorias que aparecem no livro ganham forma (por exemplo, a de objetividade mecânica). Aos leitores que a acompanham em língua inglesa, esse percurso talvez possa esclarecer uma curiosidade ou outra acerca do processo de feitura do livro de 2008; aos que ainda não tiveram acesso ao livro (ainda não traduzido), trata-se de uma excelente introdução.

O extenso e difícil trabalho de tradução é meritoso em si; quando se trata de uma autora de vasta erudição como Daston, ainda mais. As possíveis discordâncias com uma ou outra escolha de palavras por parte dos tradutores, assim como os poucos erros que escaparam à revisão, não tiram em nada o brilho da empreitada. Derley Alves e Francine Iegelski fizeram um bom trabalho.

Notas

1. Historiador da ciência, coautor de Leviathan and the Air Pump, um dos livros mais importantes da história da ciência (já não tão) recente, publicado em 1985. The Scientific Life, um de seus livros mais recentes (2008), trouxe grande contribuição às histórias da “ciência encarnada”.

2. GINGRAS (2010) discute os problemas da expressão “epistemologia histórica” no sentido anglo-saxão. 3 Ian Hacking, outro autor frequentemente relacionado às questões da epistemologia histórica anglo-saxã, desenvolve argumento semelhante. Cf. HACKING, 1999, esp. p.67-68.

Referências

GINGRAS, Yves. Naming Without Necessity: On the Genealogy and Uses of the Label “Historical Epistemology”. Revue de Synthèse, Paris, v.131, n.6, p.439-454, 2010.

HACKING, Ian. The Social Construction of What? Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999.

João Rodolfo Munhoz Ohara – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Programa de Pós-Graduação em História. Assis, SP, Brasil. ohara. E-mail: jrm@gmail.com.

 


DASTON, Lorraine. Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017. 143p. Apresentação de Tiago Santos Almeida e Francine Iegelski. Tradução de Derley Menezes Alves e Francine Iegelski. Resenha de: OHARA, João Rodolfo Munhoz. Historicidade e objetividade. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 38, n. 78, p. 269-27, 2018.

Aedos. Porto Alegre, v. 10, n. 23, 2018.

Para que votar? História do voto e das eleições no Brasil

Expediente | Maíra Oliveira dos Santos |

Editorial | Maíra Oliveira dos Santos, Israel Aquino, Debora Salvi |

Apresentação Dossiê | Douglas Souza Angeli, Paula Vanessa Paz Ribeiro |

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

Entrevistas

Comunicações | Teses e Dissertações (2018/2) de discentes do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS | Ângela Pereira Oliveira Balladares, Guilherme da Silva Cardoso |

Malcolm X – Uma vida de reinvenções | Manning Marable

Malcolm X – Uma vida de reinvenções, do historiador William Manning Marable, é uma biografia decisiva – embora não definitiva – para quem deseja entender a trajetória de um dos maiores líderes políticos negros dos EUA: um afro-americano muçulmano com passagem pelo crime, que dedicou sua vida a expor e combater o racismo presente em todas as camadas da sociedade norte-americana.

Com exceção da Autobiografia de Malcolm X, lançada pela editora Record em 1992, Malcolm X – Uma vida de reinvenções foi a primeira biografia a ser trazida para o Brasil, tendo sido traduzida pelo jornalista Berilo Vargas e publicada pela Companhia das Letras em 2013. Existem várias outras biografias, como The Death and Life of Malcolm X, de Peter Goldman, On the Side of My People: A Religious Life of Malcolm X, de Louis A. DeCaro Jr., ou Malcom X: In Our Own Image, de Joe Wood. Leia Mais

Os 130 anos da abolição | Revista Outrora | 2018

“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais.” Talvez essa frase, proferida pelo presidente eleito para conduzir o Brasil durante os próximos quatro anos, nos ajude a pensar em alguns sentidos possíveis para “o que aconteceu com os escravizados e seus descendentes após o dia 13 de maio de 1888?”. Efetivamente, essa é uma pergunta que há longos anos tem despertado a curiosidade investigativa de várias/os pesquisadoras/es pelo Brasil e mundo e consolidado o campo de estudos que, entre outros aspectos, se propõe a reposicionar os sujeitos que experimentaram a escravidão e a liberdade.

Os caminhos que negras e negros trilharam diante da composição da história do Brasil é múltiplo e complexo. Múltiplo, porque seus destinos foram os mais variados possíveis. Complexo, porque toda sorte de dificuldades atravessaram os processos e a vida desses personagens. Essa equação tem ressoado com intenso vigor em muitos estudos e, desde fins dos anos 1990, auxiliado nas explicações relativas à história dos séculos XIX e XX. Diferentemente do que uma clássica tese postula, “depois do 13 de maio, os negros foram largados à própria sorte”, verificamos que “os historiadores vêm tentando resgatar a agência social dos libertos na construção das sociedades pós-abolição, buscando perceber em que medida o evolver das sociedades que atravessaram este processo foi também moldado pelas ações dos próprios libertos” (RIOS; MATTOS, 2004, p. 191). Leia Mais

História da Educação e ensino de História / História em Revista / 2018

Nas últimas décadas observa-se a emergência de dois importantes campos de pesquisa na historiografia brasileira – História da Educação e Ensino de História – cujas efervescências de produções acadêmicas podem ser atestadas pelos inúmeros trabalhos de pós-graduação defendidos no Brasil, pela criação de associações nacionais de pesquisadores, pelos significativos eventos realizados, pelas publicações de / em revistas científicas e pela consolidação de vários grupos de pesquisa.

Nos dois campos ressalta-se o fato de terem sido constituídos em zona de fronteira, no limiar entre a História e a Educação, resultando na emergência de discursos que expressam os diferentes lugares de fala, com abordagens, problemas e metodologias próprias. Em ambos os espaços, a História da Educação e o Ensino de História são áreas de investigação consolidadas e que vem sendo repensados a partir de novos desafios epistemológicos.

Reunimos, neste dossiê, oito artigos resultantes de pesquisas que, de algum modo, refletem essa dimensão do campo, a partir da mediação entre diferentes modos de pensar, conceber e analisar a relação entre a História da Educação e o Ensino de História. Destacamos que ao agregar contribuições destes dois campos, encontraremos textos que se propõem a realizar problematizações em diferentes contextos, bem como a partir de distintas fontes, abordagens temáticas e perspectivas teóricas. Nesse sentido, as pesquisas aqui divulgadas tomam como referências a historicidade dos processos culturais escolarizados e não-escolarizados, as práticas e discursos mobilizados para ensinar e aprender saberes e conhecimentos (históricos), a dinâmica legislativa sobre aspectos educativos em geral e do ensino de História em particular, os agentes intelectuais que pensaram a escola, a educação e o ensino de História, as memórias sobre práticas, normas, regimes e instruções, de modo a constituir significativas e importantes discussões para o campo das Ciências Humanas.

Os diferentes objetos e problematizações, centrados nos dois campos de pesquisa, que os autores dos artigos deste dossiê acionam, evidenciam distintas fontes textuais, bem como demonstram os variados modos com que os pesquisadores operaram conceitualmente. Assim, foram mobilizados conceitos e métodos como representação, cultura escolar, formação de professores, através da análise iconográfica, do discurso e da revisão bibliográfica. Destacando, assim, emergentes temáticas como a história indígena, oficina de educação profissional de meninos, assistência de meninas desvalidas, educação de mulheres, alfabetização de adultos, reforma pedagógica, ensino na educação básica e constituição do sujeito docente de História.

Para abrir o dossiê contamos com texto de Martha Victor Vieira, intitulado A escrita e o ensino da História no século XIX e a representação dos indígenas nas Lições de Joaquim Manuel de Macedo, que analisa a produção da escrita da história do Brasil, dando ênfase ao ensino da história indígena no século XIX. Para a autora, o manual didático Lições de História de Brazil para uso das Escolas de Instrução Primária (1861 / 63), de autoria de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), foi um importante impresso não apenas como material pedagógico para o ensino de História, mas como suporte de enunciação da temática indígena.

Na sequência, o texto de Jeane dos Santos Caldeira e Jezuina Kohls Schwanz, denominado por As representações do Asilo de Órfãs São Benedito na imprensa local pelotense durante a primeira metade do século XX, investiga as representações de um asilo assistencial para meninas órfãs enunciadas nos jornais da cidade de Pelotas / RS. De acordo com as autoras, o conjunto de representações, constituídas em torno da instituição, indicavam principalmente a existência de uma proteção “benevolente” dos membros da sociedade pelotense que colaboravam com a manutenção do asilo, garantindo o amparo e subsídio às meninas negras desvalidas durante a primeira República.

O artigo de Hardalla Santos do Valle, Imagens das oficinas profissionalizantes salesianas na cidade do Rio Grande / RS (1910-1960), se propõe a compreender o processo de educação de meninos e jovens realizado em oficinas profissionalizantes do Liceu Salesiano de Artes e Ofícios Leão XIII na cidade do Rio Grande / RS, na primeira metade do século XX. A autora destaca que o uso de fotografias, associadas à outras fontes como relatórios e jornais locais, possibilitam uma melhor compreensão dos elementos, das práticas e das materialidades da cultura escolar presentes na instituição analisada.

Fernanda Costa Frazão no texto A educação feminina entre a normalização e a resistência: uma análise dos discursos da revista Careta (1914-1918) apresenta uma análise do discurso acerca do processo histórico de educação para meninas e jovens. Tendo como principal objeto de investigação uma série de edições da revista ilustrada e de variedades Careta, publicadas na década de 1910, a autora discorre sobre o processo de normalização e conformação de papéis sociais destinados às mulheres, bem como os possíveis mecanismos de negações e resistências utilizados para enfrentar a regulação e prescrição de condutas pretensamente “desejadas” para o universo feminino.

O texto Da materialidade ao conteúdo: análise do material didático do Movimento Brasileiro de Alfabetização de Leide Rodrigues dos Santos, revela como um dispositivo pedagógico adotado pelo Mobral, na década de 1970, se tornou um importante meio discursivo para propagar valores, ideologias e cultura, podendo, assim, ter sido um instrumento eficiente de reprodução do saber oficial posto por setores do poder e do Estado.

O próximo texto é de Simôni Costa Monteiro Gervasio e Alessandro Carvalho Bica, cujo título é “Educar é construir para o infinito”: análise dos discursos transformadores relativos à reforma de 1971 nos editoriais da Revista do Ensino do Rio Grande do Sul (1972-1974). O artigo descreve como os editorias da Revista de Ensino veiculou ideias, metodologias, propostas, sugestões e conselhos que estavam regulados pela Reforma do Ensino de 1971. Seus autores concluem que a Revista do Ensino funcionou como um canal direto de comunicação entre a Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul e os professores, transmitindo ideias sobre práticas e métodos que deveriam ser implantados na prática dos docentes.

Em O ensino de História e as práticas pedagógicas: os desafios dos professores no Ensino Fundamental, os autores Helena Gouveia da Silva Oliveira, Irlanda do Socorro de Oliveira Mileo e Renato Pinheiro da Costa, examina as práticas pedagógicas de professores da educação básica para o desenvolvimento do ensino de História no estado do Pará. Neste artigo os autores problematizam a preocupação de professores em participarem, cada vez mais, de formações continuadas, por entenderem que estas podem contribuir no aperfeiçoamento das práticas de sala de aula e com o conhecimento de metodologias inovadoras que possibilitem “melhorar” suas práticas docentes.

Encerramos com a reflexão de Felipe Nóbrega Ferreira que, em Nas voltas que a formação em História dá: um relato de experiência sobre o estar coordenador pedagógico na rede básica de ensino, narra a experiência do constituir-se professor de História. A partir de uma reflexão crítica, o autor descreve três momentos de sua formação profissional, sobretudo, na atuação como coordenador pedagógico em uma escola do Rio Grande do Sul, seja os de buscar um saber ambientalizado, a prática apreendida pela documentação e atribuição da mantenedora da instituição em que atua e o desenvolvimento de uma proposta de formação na área de História, a qual denominou como “do ouvir e do falar”.

Por fim, cumpre dizer que ordenamos o dossiê a partir da temporalidade dos objetos que os artigos apresentam. Os oito textos seguem a cronologia ascendente, permitindo a leitura de certa dinâmica entre os campos da História da Educação e do Ensino de História. Neste dossiê, o leitor encontrará uma representativa mostra de investigações que vêm sendo realizadas em diferentes regiões do Brasil, que têm se dedicado a analisar, sob diferentes aspectos e enfoques conceituais e metodológicos os campos da História da Educação e do Ensino de História.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Natal / RN e Pelotas / RS, agosto de 2018.

Magno Santos

Fernando Ripe


SANTOS, Magno; RIPE, Fernando. [História da Educação e do Ensino de História: temas, fontes e problematizações]. História em Revista. Pelotas, v.24, n.1, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Paulo Freire. Santiago, n.19, 2018.

Artículos de Investigación

Schopenhauer e seus discípulos a partir de correspondências – SCHOPENHAUER (V-RIF)

SCHOPENHAUER, A. Carteggio con i discepoli. 2 volumes. Organização e tradução de Domenico M. Fazio. Lecce: Pensa MultiMedia, 2018 (Schopenhaueriana, 12). Resenha de: CIRACÌ, Fabio; DEBONA, Vilmar. Voluntas – Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria, v9, n.1, jan./jun., p.173-179, 2018.

Nos últimos anos a pesquisa internacional sobre o pensamento e a fortuna de Schopenhauer experimenta um momento de fermentação intelectual particularmente flórido, conduzido de forma sábia pelo Prof. Matthias Koßler, presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e da SchopenhauerForschungsstelle de Mainz/Frankfurt am Main. Tal efervescência cultural pode ser notada, por exemplo, pela necessidade de se publicar uma segunda edição, atualizada e melhorada, do Schopenhauer-Handbuch, da Editora Metzler (2018), a menos de quatro anos de sua primeira edição (2014), esgotada. A referida efervescência é confirmada também pela recente edição das Preleções sobre Filosofia geral ou A doutrina da essência do mundo e o espírito humano – Volume 4: Metafísica dos costumes (Meiner Verlag, 2017), assim como do Volume 3: Preleções sobre Filosofia geral: Metafísica do belo, previsto para julho de 2018. Uma ulterior confirmação da vivacidade intelectual da Schopenhauer-Forschung é fornecida não apenas pelo sucesso dos últimos congressos internacionais, como o recente VIII Colóquio Internacional Schopenhauer, organizado pela Seção Brasileira da Schopenhauer-Gesellschaft, em Curitiba, mas também pelas sempre crescentes traduções dos Werke de Schopenhauer em todo o mundo, como a recente e valiosa tradução do Tomo II de O mundo por Eduardo Ribeiro da Fonseca (Editora da UFPR, 2014), bem como aquela, do mesmo livro, empreendida por Jair Barboza (Editora Unesp, 2015). Muito significativa é, enfim, a abertura de uma Seção Espanhola da Sociedade Schopenhauer, conduzida pelo ativo Carlos Javier González Serrano.

Na Itália, pelo incentivo do Prof. Domenico M. Fazio, está em andamento, há mais de dez anos, uma verdadeira Schopenhauer-Renaissance. Tal renascimento teve início com a fundação do Centro interdipartimentale di ricerca su Schopenhauer e la sua scuola da Università del Salento (2005) e com a instalação da Seção Italiana da SchopenhauerGesellschaft (2011). As pesquisas do Centro e da Seção traduziram-se de imediato em numerosas publicações, sobretudo aquelas veiculadas pela prestigiosa Coleção universitária Schopenhaueriana (Pensa MultiMedia, Lecce) que, com o Carteggio con i discepoli (doravante, Correspondências com os discípulos), de A. Schopenhauer, chega ao seu décimo segundo volume. Somente no último ano vieram à luz, na Itália, duas expressivas obras: a fundamental tese de Alessandro Novembre sobre Il giovane Schopenhauer. L’origine della metafisica della volontà (Mimesis, 2018, 624 p.) e o estudo histórico-analítico de Fabio Ciracì sobre La filosofia italiana di fronte a Schopenhauer. La prima ricezione (1857-1914) pela Pensa MultiMedia (650 p.).

A última grande e preciosa colaboração dessas pesquisas à comunidade científica e aos apaixonados por Schopenhauer são justamente os dois volumes de A. Schopenhauer, Correspondências com os discípulos, que consiste na edição e tradução de todas as cartas entre Schopenhauer e seus discípulos, organizada pelo Prof. Domenico M. Fazio, com 960 páginas. Trata-se de um epistolário com um total de 319 cartas. As novidades contidas na publicação dessas correspondências são numerosas e importantes, e terão de ser levadas em conta pelas pesquisas futuras. Em primeiro lugar, preenche-se, com ela, uma lacuna da editoria científica italiana: vem à luz, finalmente, uma tradução completa das correspondências entre Schopenhauer e seus discípulos, inteiramente nova e inédita em língua italiana, com exceção apenas de alguns fragmentos de cartas traduzidos em As Conversações (I Colloqui), organizadas pelo incomparável A. Verrecchia (BUR, Milão, 2000). Além disso, as Correspondências com os discípulos fornecem ao leitor um poderoso conjunto de notas e documentos capaz de corrigir, integrar e completar as edições major publicadas até o momento, inclusive em língua alemã: a edição iniciada por Paul Deussen (1928-1942, com 866 cartas) e completada por Arthur Hübscher (1978, 1987), e a última (a melhor), que foi publicada na terceira edição das cartas (2008) em versão eletrônica para o Schopenhauer im Kontext III. Comparada a todas essas edições, as Correspondências com os discípulos, organizadas por Domenico M. Fazio não apenas são mais completas e precisas, mas também mais ponderadas e atentas em relação às fontes, dado que corrigem os não poucos erros contidos nas edições precedentes, até mesmo os equívocos do histórico presidente da Schopenhauer-Gesellschaft e organizador dos Werke schopenhauerianos, Arthur Hübscher, célebre (talvez equivocadamente) por sua acribia filológica. Mas isso faz parte da lógica do avanço das pesquisas, que se aperfeiçoam de tempos em tempos, em um processo de contínua e gradual melhoria.

Voltemo-nos, então, às Correspondências com os discípulos. Fazio restitui ad integrum, de maneira oportuna e precisa, fontes documentais e referências de naturezas variadas (filosofia, literatura, ciências e artes) sobre as quais Schopenhauer e seus interlocutores discutem nas cartas. Os textos são agilmente reconduzidos aos contextos, uma vez que as referências frequentemente implícitas, às vezes quase ocultas, entre remetente e destinatário são esclarecidas à luz de debates e querelas que o organizador das correspondências, com sabedoria, entrega ao leitor de modo claro, construindo em forma de notas uma espécie de subtexto paralelo, uma robusta urdidura para a densa trama das cartas. Deste ponto de vista, a publicação das correspondências de Schopenhauer com os seus discípulos consiste no complemento, centrado na Escola em sentido estrito, da documentação contida na antologia La Scuola di Schopenhauer: testi e contesti, publicada na Schopenhaueriana, em 2009. A antologia, de fato, apresentava como introdução um longo ensaio do próprio Fazio, no qual foram descritos os contextos relativos à Schopenhauer-Schule, que introduziam pela primeira vez o leitor no pensamento dos maiores Schüler e o instruíam, de forma sistemática, acerca da articulação interna da Escola, entendida em sentido estrito, ou seja, aquela dos alunos conhecidos direta e pessoalmente pelo filósofo de O mundo (apóstolos e evangelistas), ou mesmo da escola em sentido lato, dos metafísicos Eduard von Hartmann, Julius Bahnsen, Philipp Mainländer; ou ainda dos grandes schopenhauerianos heréticos, como Paul Rée, Georg Simmel, Friedrich Nietzsche e Max Horkheimer; e, finalmente, dos guardiões da tradição, como Paul Deussen, Hans Zint, Arthur Hübscher e Rudolf Malter.

Ora, com a mesma acuidade, Fazio introduz as Correspondências com os discípulos com um rico ensaio sobre “a Escola de Schopenhauer através da correspondência com os discípulos”, que soma 137 páginas. Trata-se de uma verdadeira dissertação, na qual Fazio não apenas apresenta os protagonistas das cartas, mas tem presente os numerosos fios temáticos que se desdobram ao longo das correspondências, indicando os principais temas de debate, conduzindo o leitor em meio a um denso epistolário com a familiaridade e a simplicidade de um longo e reflexivo conhecimento da obra e da vida de Schopenhauer.

O aparato contém verdadeiras pérolas, incluindo algumas descobertas interessantes, às quais Fazio chega por meio de um meticuloso trabalho de escavação filológica, servindo-se para tanto, dentre outros instrumentos, dos mais avançados sistemas de pesquisa para a recuperação de fontes de dados na rede. Dentre as referidas descobertas, para ficarmos com alguns exemplos, está a primeira resenha dos Parerga e Paralipomena, publicada em Hamburg em uma revista feminina de moda (para grande surpresa do próprio Schopenhauer); e também encontramos o texto, escrito em 1851 por Frauenstädt, mas revisado e corrigido pelo próprio filósofo de O mundo, para o tópico “Schopenhauer” do célebre Léxico de conversas, de Meyer.

Além disso, Fazio tira do esquecimento histórico algumas personalidades intelectuais de certa expressividade que, embora desconhecidas para a maioria, eram importantes interlocutores do Sábio de Frankfurt. Entre eles, aparecem as figuras de Carl Georg Bähr e Johann August Becker, dois pensadores que teriam privilegiado o caminho marcado por seus estudos do Direito: o primeiro é o autor de uma obra intitulada A filosofia schopenhaueriana em seus traços fundamentais, que Schopenhauer apreciou muito; já o segundo, considerado por Schopenhauer como “o apóstolo mais douto”, é o protagonista de uma densa correspondência que põe o mestre frente a questões problemáticas e a possíveis contradições de sua metafísica e de sua ética. Becker leva um serrado confronto epistolar com o mestre, as suas dubia são expostas de forma tão rigorosa e com profundida teórica que, em um certo momento, Schopenhauer deixa passar as perguntas do estudante talentoso. Além disso, contra a vontade do mestre, entre os discípulos se difunde uma cópia não autorizada das cartas de Becker com Schopenhauer, tamanho o interesse que elas despertavam entre os outros Schüler.

Mas numerosos são os personagens que preenchem as páginas dessa rica correspondência, alguns dos quais muito pitorescos, alguns outros, no limite do grotesco. É o caso do pregador católico Georg Christian Weigelt, “evangelista ativo e fanaticamente fiel”, com as suas aulas populares sobre Schopenhauer. Ou o caso de Carl Grimm, que assina seus epigramas filosóficos com os evocativos noms de plume de Placidus ou Carolus Mirgius. Ou ainda o caso do agricultor Carl Ferdinand Wiesike, seguidor de Schopenhauer, ao qual erigiu uma capela, celebrando uma espécie de missa laica. Sem contar que em volta de Wiesike havia se formado uma “comunidade silenciosa de hereges e santos extravagantes”, sobre a qual Nietzsche também escreverá. Mas aquele que – dentre todos os seguidores, apóstolos, evangelistas ou meros admiradores desta surpreendente Escola – ostenta a maior simpatia é Julius Frauenstädt, incansável promotor das obras do mestre e fiel discípulo: é ele quem segue Schopenhauer ao longo de uma extenuante caminhada por Frankfurt, em busca de respostas sobre o mistério da vontade metafísica. É também ele quem, continuamente, por carta ou pessoalmente, indaga o mestre sobre a natureza do Wille ou sobre a questão da liberdade individual. E é ele quem se documenta quanto às publicações relativas ao mestre, sugere ingenuamente comparações (como aquela entre Schopenhauer e Helmholtz) que não só perturbam Schopenhauer, mas que são motivos de terríveis reprimendas por parte do mestre a Frauenstädt. É o caso das Cartas sobre a filosofia schopenhaueriana (1854), que o bom Frauenstädt publica, emulando as famosas cartas de Karl Leonhard Reinhold sobre Kant. O julgamento que Schopenhauer expressa sobre as Cartas, em sua carta de resposta a Frauenstädt, não permite réplica: após ter nomeado com gratidão o discípulo como Erzevangelist, Schopenhauer passa às críticas: “Já que nada é perfeito, gostaria de mostrar-lhe o que eu gostaria que fosse feito de forma diversa”, e elenca os numerosos defeitos da obra. Finalmente, Schopenhauer envia ao mal compreendido discípulo a sua própria versão do trabalho daquele, glosada e marcada com numerosos corrigenda. Entre altos e baixos, o pobre arque-evangelista tentará arcar com o fardo de cada reprimenda do mestre e, mesmo fazendo de tudo e de todas as formas – por exemplo, procurando um editor para os Parerga, escrevendo artigos e obras in nomine magistri – nunca mais receberá do mestre aquele atestado de estima que o filósofo endereça a outros discípulos, como a Bähr e a Becker. A fidelidade de Frauenstädt a Schopenhauer, no entanto, é exemplar, prossegue mesmo após a morte do mestre, de quem ele passa a ser testamentário para os escritos científicos. Além disso, Frauenstädt providencia o lançamento da primeira edição dos Werke, publica um léxico schopenhaueriano comentado, que permanecerá insuperável por muito tempo. Junto a outro discípulo, o doctor indefatigabilis Ernst Otto Lindner, defende a memória de Schopenhauer da maledicente biografia escrita pelo aluno “apóstata” Wilhelm Gwinner, na qual Schopenhauer é descrito como um pensador misantropo, bizarro e avarento. Uma imagem (a representada por Gwinner) que logrou espaço em uma época e que, com isso, condicionaria a recepção do pensamento schopenhaueriano, obstaculizando a ideia de o Sábio de Frankfurt poder contar com numerosos discípulos e com uma Escola.

O epistolário se encerra com as cartas do jovem Julius Bahnsen a Schopenhauer no ano de sua morte. Encerra-se assim a Escola em sentido estrito, aquela dos discípulos diretos de Schopenhauer, e se abre, de outro modo, aquela dos Schüler metafísicos, à qual o filósofo dinamarquês pertencerá por direito com a publicação das Contribuições à caracterologia (1867) e de A contradição na ciência e na essência do mundo (18801882), passando para a história como o schopenhaueriano metafísico mais radical.

Provavelmente o que mais chama a atenção em Correspondências com os discípulos é o fato de que, contra todas as expectativas, o diálogo contínuo, às vezes serrado com seus discípulos, inclusive sobre questões centrais e relevantes do sistema filosófico (a discussão sobre o pessimismo, a questão da conversão total da voluntas, o problema da liberdade individual etc.) não parece levar Schopenhauer a revisar ou retroceder em sua doutrina filosófica. O filósofo é resoluto. Seu posicionamento pode, eventualmente, mudar em relação ao destinatário – às vezes é mais impetuoso (com Frauenstädt), às vezes mais prudente (com Becker) -, mas isso se deve à estima intelectual atribuída ao interlocutor do momento. No entanto, não há retornos ou redefinições referentes ao seu sistema metafísico ou a algum tema específico.

Mesmo antes de ser admirado como mestre por um grande grupo de discípulos, Schopenhauer havia mitigado algumas de suas proposições metafísicas fundamentais elaboradas na juventude. De fato, lembremos que na primeira edição de O mundo, de 1819, Schopenhauer era um decidido jovem de trinta e poucos anos, que afirma sem titubear ter resolvido o problema de Kant, fazendo a vontade coincidir totalmente com a coisa em si. Com a publicação das Ergänzungen a O mundo, em 1844, entretanto, o filósofo, agora com 56 anos, expressa um posicionamento mais cauteloso: no célebre capítulo 50 de O mundo, intitulado “Epifilosofia”, Schopenhauer imprime uma nova dimensão metafísica e epistemológica à sua filosofia, mais próxima a Kant: o Wille já não coincide de forma irrestrita com a coisa em si, mas torna-se uma espécie de fenômeno primitivo e originário (Urphaenomen), a última portinhola (ou o último véu de Maja) antes do noumenon. Esta mudança de perspectiva se faz inteiramente presente nas cartas, atuando como um verdadeiro escudo hermenêutico. Schopenhauer deixa isso claro para Becker em uma carta de 21 de setembro de 1844: “Aqui estão o caminho e a ponte, a porta que leva para fora do mundo: eu só posso mostrá-la, mas não abri-la para o senhor, nem posso dizer o que há para além dela e o que acontece lá, nem como é, fora do tempo, aquilo que no tempo se apresenta como mudança”. Aliás, de mistério e de presença misteriosa se imantam, com frequência, as respostas que Schopenhauer endereça às questões cada vez mais prementes dos alunos, que reivindicam mais orientações sobre a natureza da vontade, e que apresentam ao mestre, entre prudência e cautela, algumas contradições ou aporias de seu sistema. Schopenhauer, porém, não se abala, colocando-se serenamente no limiar daquela ponte, considerando, sim, as questões, mas sem visar qualquer solução para elas: “Pode-se perguntar – escreve na Epifilosofia – até onde chegam, na essência em si do mundo, as raízes da individualidade”, mas nenhuma resposta afirmativa pode ser dada. Nesse sentido, Schopenhauer pretende consolidar suas conquistas filosóficas, mas certamente não colocá-las em xeque. E é nesses termos que se deve ler também a ideia de Escola por parte de Schopenhauer: não é por acaso que o filósofo de O mundo, fundador da ética laica e ateia, recorre muitas vezes à metáfora religiosa da igreja, composta por apóstolos e evangelistas. Seu objetivo é conquistar à sua causa novos seguidores, possíveis divulgadores de sua filosofia, desde que estes tenham chegado, antes, à verdade. Como em todo culto que se preze – laico ou religioso -, também os dogmas metafísicos da doutrina schopenhaueriana levaram a numerosas heresias: com implicações cátaras, como o Weltdysangelium pessimista de Bahnsen, ou mesmo com os reformadores, como o Inconsciente de Hartmann e a morte de Deus de Mainländer, ou ainda com os verdadeiros heresiarcas, como Nietzsche ou Rée. Mas as sementes heréticas dessas declinações do schopenhauerismo já estavam presentes na Escola em sentido estrito e nas discussões entre discípulos e mestre.

Portanto, quem pretendesse ler as Correspondências com os discípulos esperando encontrar nelas retratações ou revisões de teses sustentadas pelo filósofo nas obras publicadas ficaria desapontado. É claro que às vezes Schopenhauer concede explicações que a um leitor atento podem parecer menos sistemáticas do que em O mundo ou nos escritos sobre Ética. Vez ou outra o filósofo recorre a metáforas, mas é o próprio Schopenhauer quem sempre remete os discípulos às obras, indicando que já havia esclarecido tudo nos escritos publicados. Schopenhauer, por outro lado, busca continuamente as “provas empíricas” de sua metafísica da vontade, mesmo quando se arrisca a incorrer em solenes enganos, como aquele relativo às “mesas giratórias” e ao mesmerismo, todos fenômenos que ele interpreta à luz da vontade na natureza, como confirmado pela presença de um Wille ainda não objetivado em objetos.

No entanto, duas coisas saltam aos olhos do leitor: a primeira é a vastidão dos interesses culturais de Schopenhauer, que transparece em cada uma das páginas das correspondências, sua insaciável Wissensdurst, sua sede de conhecimento para cada ramo do conhecimento, filosofia, arte, ciência ou religião; o segundo é o desejo de ser universalmente reconhecido como filósofo: as cartas testemunham a tentativa inesgotável de ostentada autopromoção, de afirmação das próprias descobertas e méritos, a luta para ser reconhecido como o único e autêntico herdeiro da filosofia crítica de Kant.

Além de ser uma preciosa mina de informação, e além de apresentar-nos uma galeria discreta de personalidades intelectuais, algumas delas muito interessantes, as Correspondências com os discípulos oferecem ao leitor não apenas uma imagem mais nítida do homem Schopenhauer, como também, por meio do espesso diálogo com as notas e as fontes discutidas, o organizador do epistolário recria um universo intelectual e um horizonte histórico que a crítica muitas vezes negligencia. A figura de Schopenhauer resulta certamente menos idealizada, menos associada ao mito do gênio indomável ou à figura do bizarro misantropo, mas a dimensão do pensador resulta enriquecida, assim como revelam-se a profundidade e a vastidão de seu pensamento, e emergem com limpidez a sua extraordinária individualidade, a sua originalidade, a força de suas convicções e a vontade de apresentar sua filosofia como um único pensamento e um pensamento único.

Com efeito, as Correspondências com os discípulos indicam numerosas pistas de pesquisa sobre o pensamento de Schopenhauer e sobre as interpretações de seus primeiros seguidores: para a Schopenhauer-Forschung o epistolário não representa somente um porto da pesquisa italiana e internacional, mas, sobretudo, o cais do qual poderão partir novas e mais longínquas navegações.

Fabio Ciracì – Professor da Università degli Studi del Salento (Lecce). Secretário do Centro Interdipartimentale di ricerca su A. Schopenhauer e la sua Scuola. E-mail: fabio.ciraci77@gmail.com

Vilmar Debona – Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: debonavilmar@gmail.com

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[DR]

 

Paulo Freire. Santiago, n.20, 2018.

Artículos de Investigación

La Vocazione: Storie di gesuiti tra Cinquecento e Seicento | Adriano Prosperi

“Esperemos que Prosperi nos obsequie algún día el libro sobre jesuitas que sólo él es capaz de escribir”,1 decía Carlo Ginzburg en su reseña sobre la obra cumbre de este autor, Tribunali della coscienza: Inquisitori, confessori, missionari. 2 Este deseo se cumplió casi veinte años después, con la publicación de La Vocazione: Storie di gesuiti tra Cinquecento e Seicento (La vocación: historias de jesuitas entre los siglos XVI y XVII), cuyo título es sugestivo, pues al hablar de “historias de jesuitas”, así, en plural, da la impresión de querer mostrar a estos hombres dentro de su diversidad. Y en efecto, con el objetivo de indagar quiénes eran los miembros de la Compañía de Jesús y escribir este libro, Prosperi rescata las memorias individuales que ellos mismos escribieron acerca de su vocación, para analizar las diversas maneras en que contribuyeron a la construcción de una memoria colectiva de la Compañía de Jesús. A partir del estudio de lo que él denomina “autobiografías”,3 el autor explicita que no busca anular a los jesuitas dentro de la historia oficial de la Orden, sino darle valor a cada uno de ellos como parte de una comunidad, vinculados de modo estrecho a la institución de la que formaban parte. Leia Mais

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.1, 2008/ n.21, 2018.

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.21, 2018.

DOSSIÊ DESLOCAMENTOS HUMANOS. CIDADES E MEMÓRIAS

Publicado: 2019-12-20

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.20, 2018.

Dossiê Deslocamentos Humanos. Cultura, decisões e conflitos

Publicado: 2019-12-08

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.19, 2017.

Dimensões do Regime Vargas, v. 2

Publicado: 2019-01-21

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.18, 2017.

Dimensões do Regime Vargas

Publicado: 2018-10-24

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.17, 2016.

A Cidade e a Arquitetura Sacra

Publicado: 2017-08-07

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.16, 2016.

História, Cinema e Política

Publicado: 2016-05-30

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.15, 2015.

História e Cinema

Publicado: 2016-03-07

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.14, 2015.

História: Cidade, Esporte e Lazer

Publicado: 2015-12-26

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.13, 2014.

Mulheres na história, v. 2

Publicado: 2015-04-15

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.12, 2014.

Mulheres na história

Publicado: 2015-01-27

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.11, 2013.

Revoluções, cultura e política na América Latina

Publicado: 2014-06-20

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.10, 2013.

História e Literatura

Publicado: 2013-07-12

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.9, 2012.

Cronistas, Escritores e Literatos

Publicado: 2013-03-25

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.8, 2012.

Comunicação, Modernidade e Arquitetura

Publicado: 2012-12-11

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.7, 2011.

História, Corpo e Saúde

Publicado: 2012-07-27

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, 2011.

História, Arte e Cidades

Publicado: 2012-07-21

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.5, 2010.

Dossiê Irmã Leda

Publicado: 2012-05-21

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.3-4:, 2009/2010.

Séries Urbanas: conflito e memória

Publicado: 2012-05-21

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.2, 2009.

Cidades: Processos Migratórios e Imigratórios

Publicado: 2012-05-21

Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.1, 2008.

Cidade e Linguagens

Publicado: 2012-07-22

Máquinas/dispositivos/ agenciamientos. Arte/afecto y representación | José Luis Barrios

Ante este libro del Dr. José Luis Barrios, resulta problemático acudir a la operación acostumbrada cuando uno hace las veces de reseñista. Aludo, pues, al bosquejo realizado, con más o menos fortuna, en el que uno intenta pergeñar un marco de referencia. Y resulta problemático porque en el libro que nos ocupa el contenido está poniendo en tela de juicio este angosto y manido continente: se apela a una transgresión anatemática de la noción de marco en uno de sus emplazamientos críticos. En concreto, aquel que pone a dialogar la obra de Melanie Smith con la de Kazimir Malevich (Cuadrado rojo, imposible rosa): transgresión que resulta revulsivamente estético-política. En este sentido, quiero que se entienda este, de raíz torpe, conato de acuñar un marco de referencia en la dirección rizomática que plantea el propio libro (esto es, contra sí misma): un marco que es contigüidad copular en lugar de claustro, abertura que –en virtud de la vocación que le es inherente–, desata de modo recursivo las potencias suturantes que, contrarias a su naturaleza desplegada, pudiere albergar hacia noveles flujos semánticos. Leia Mais

Deconstruir el archivo: la historia/ la huella/ la ceniza | Ricardo Nava Murcia

En lo que sigue trataré de presentar el libro de Ricardo Nava Murcia. En primer lugar quiero describir la estructura y el estilo del libro. Después, pretendo exponer en líneas generales el argumento. Terminaré con una pregunta, que trata de señalar lo que considero la debilidad del argumento. Leia Mais

TransVersos. Rio de Janeiro, v. 14, 2018.

TransVersos. Rio de Janeiro, v. 14, 2018.

LGBTTQI. HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E RESISTÊNCIAS

TransVersos. Rio de Janeiro, v. 13, 2018.

HISTÓRIAS E CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS E INDÍGENAS – 10 ANOS DA LEI 11.645/08

TransVersos. Rio de Janeiro, v. 12, 2018.

GRUPO TORTURA NUNCA MAIS DO RIO DE JANEIRO: TRÊS DÉCADAS DE RESISTÊNCIA

Histórias e experiências (entre) cruzadas: sobre a escravidão, relações étnico-raciais e colonialismo / Mnemosine Revista / 2018

No Brasil, temas como escravidão, diáspora africana, colonialismo e relações ético-raciais já se firmaram nas investigações das Ciências Humanas e, de modo específico, dos estudos históricos. Atualmente, na História, inúmeras agendas de pesquisas vêm sendo desenvolvidas em torno desses e de outros temas conexos, entre os quais: história indígena, cidadania, educação, religiosidade, relações de gênero, movimentos sociais, identidade e violência. Tais interrelações temáticas têm tomado como objeto não apenas as relações sociais estabelecidas em nosso país, mas diante de outros recortes espaciais, em especial a partir de América, África e Europa.

Os artigos presentes neste dossiê foram elaborados por pesquisadores (as) que se inserem nesse novo contexto de pesquisas. Marley Antônia Silva da Silva, em seu artigo Do norte da África ao norte da América Portuguesa (1755-1815), destaca as conexões transatlânticas das populações africanas com foco no Grão-Pará e a Alta Guiné, no norte da África. O artigo se apresenta como um guia para adentrarmos as tramas sociais dos interesses e condições históricas que condicionaram dinâmicas escravistas e outras dimensões da diáspora africana forçada, que conformaram as populações das regiões de São Luís e Belém, entre o final do século XVIII e início do século XIX.

Em Para libertar o meu filho: Estratégias utilizadas por forras e escravas ao alforriarem na segunda metade do século XVIII em Minas Gerais, Carlo Guimarães Monti nos apresenta as estratégias de mulheres escravizadas em busca por alforrias. Nesta linha, levantou e avaliou um amplo escopo documental, composto de inventários e testamentos de senhores de escravizados. Sua análise foi constituída com vistas nas redes familiares, pontos fundamentais para os escravizados alcançarem seus intentos de liberdade. Deteve-se também sobre o caráter privado das alforrias, como instrumento fundamental para a tentativa de manutenção da sujeição dos escravizados.

Marcelo Ferreira Lobo, em Para além da alforria: Mobilidade e sobrevivência de Libertos no Brasil (Grão-Pará, 1800-1888), analisa as noções de cidadania e direitos construídas ao longo do século XIX no Grão-Pará. Para isso, lançou mão de problematizações sobre as possibilidades de mobilidade social e liberdade no cotidiano de mulheres e homens alforriados, a partir da análise de testamentos de senhores e libertos. Investigou, desse modo, regiões intermediárias entre a escravidão e a liberdade, onde se fizeram presentes reinvenções do paternalismo, mas também as lutas de negras e negros frente a miséria, insegurança econômica e perseguição das forças de segurança.

Pedro Nicácio Souto, em Escravidão e Pecuária na Paraíba: São João do Cariri (1870-1888), discorre sobre as singularidades das formas de escravidão ocorridas em São João do Cariri – PB, no final do século XIX. São apresentados diferentes aspectos do panorama econômico, social e demográfico local, nas últimas décadas da escravidão. Delineiam-se particularidades da sociedade escravista desta localidade, marcada pela importância da pecuária e da agricultura de subsistência. Souto aborda como as relações sociais em torno da pecuária influenciaram as maneiras como constituídas as experiências dos escravizados e suas relações junto aos senhores.

No artigo Em defesa da classe: Pós-Abolição, racismo e imprensa negra em Campinas e Piracicaba, Willian Robson Soares Lucindo aborda os jornais produzidos nas cidades paulistas de Piracicaba e Campinas no pós-abolição. Apresenta importante chave interpretativa para a compreensão do racialismo e do racismo enquanto fundamentos de criminalização das populações negras. Para tanto, deslinda ações diversas dos grupos dominantes e de mulheres e homens negros subalternizados, ressaltando também a importância da imprensa negra no debate público e na denúncia das concepções preconceituosas em (re)estruturação naquele contexto.

Em A Docência como Missão na América Latina: Reflexões sobre a formação professores e professoras de história na Amazônia Oriental, Maria Clara Sales Carneiro Sampaio efetua um movimento reflexivo sobre sua experiência docente na regência de disciplinas relacionadas a história da América e história indígena, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Sampaio articula experiências vivenciadas na história recente da Amazônia Oriental com realidades mais distantes no espaço e tempo, visando o melhor entendimento das tensões e desafios presentes no contato entre os missionários e os povos indígenas durante a colonização da América.

O dossiê se encerra com o artigo As vozes escritas de Pepetela: identidade angolana, literatura e colonialismo em “Mayombe” e “A geração da utopia”. À luz da hermenêutica e de uma postura etnográfica, João Matias de Oliveira Neto nos apresenta uma análise de dois romances históricos do escritor angolano Pepetela. Tomando como objeto essa literatura, o autor reflete sobre as dinâmicas identitárias e as percepções de diferentes sujeitos sociais, constituídas nos processos colonial e pós-colonial pelos quais passou o atual Estado de Angola. Tais questões se fazem presentes na escrita de Pepetela, a partir das situações históricas experienciadas e refletidas pelos personagens.

Sob os auspícios deste quadro, emoldurado por abordagens em diversas perspectivas, convidamos os(as) leitores(as) a imergirem nessas múltiplas historicidades vivenciadas no Brasil, Angola e outros locais de colonização Ibérica em contextos coloniais e pós-coloniais.

Sérgio Luiz de Souza – Professor Adjunto no Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de Rondônia (UNIR) – Campus Porto Velho, onde atua no Programa de Mestrado em História e Estudos Culturais. Pesquisador associado ao Centro de Estudos das Línguas e Culturas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN) da UNESP / Araraquara. E-mail: srgioluz2@gmail.com

Janailson Macêdo Luiz – Professor Assistente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Campus Marabá. Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. E-mail: janailson@unifesspa.edu.br


SOUZA, Sérgio Luiz de; LUIZ, Janailson Macêdo. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.9, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões – RODRIGUES; AQUIAR (HU)

RODRIGUES, A.F.; AGUIAR, J.O. (org.). História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões. São Paulo: Humanitas, 2016. 490 p. (História Diversa, n. 6). Resenha de CABREIRA, Maria Alda Barbosa. Religiões e religiosidades em debate. História Unisinos 22(1):149-152, Janeiro/Abril 2018.

Estudos relacionados a religiões e religiosidades vêm recebendo cada vez mais interessantes contribuições que ajudam a alargar o debate e o reconhecimento de formas diversas de expressar o religioso, notadamente, na sociedade contemporânea.

A problemática dos fenômenos religiosos, e mesmo das maneiras científicas e acadêmicas de como o universo do sagrado, as religiões e as religiosidades foram interpretadas, é resultante de processos históricos e sociais ligados a relações de privilégios e poder.

Como um conjunto de práticas e doutrinas organizadas em uma cosmologia bem definida, a religião e seu estudo permitem entender o universo cotidiano, as relações sociais, as instituições políticas, as ideias e as formas de expressão religiosa que compõem determinados regimes do crer, como práticas, espiritualidades, filosofias de vida e experiências do sagrado (Arnal, 2000).

Com análise detida destes nuances, a coletânea História, religiões e religiosidade: da Antiguidade aos recortes contemporâneos, novas abordagens e debates sobre religiões, coordenada pelos professores André Figueiredo Rodrigues e José Otávio Aguiar, faz-se presente no debate que analisa as religiões e seu desenvolvimento e discussões históricas ocorridas em diferentes épocas, nos mais diversos povos e nas suas muitas manifestações.

Reunindo 24 capítulos, o livro apresenta quatro divisões temáticas que convidam o leitor a refletir sobre as diversidades humanas na abordagem dos espaços e discursos dedicados ao religioso, em perspectiva ligada principalmente à história cultural. Aliás, do conjunto, 17 textos dedicam-se ao multifacetado universo religioso brasileiro, dominado pela matriz do cristianismo. Observando- -se os dados do Censo demográfico 2010 sobre religião, divulgados pelo IBGE em 29 de junho de 2012, confirmam-se tendências de transformação do campo religioso brasileiro, aceleradas a partir da década de 1980, quando se iniciou o recrudescimento da queda numérica dos fiéis seguidores da fé católica frente à vertiginosa expansão dos pentecostais e das pessoas que se declaravam sem religião. Os números interessam: entre 1980 e 2010, os católicos declinaram de 89,2% para 64,6% da população, queda de 24,6 pontos percentuais; os evangélicos passaram de 6,6% para 22,2% da população, acréscimo de 15,6 pontos percentuais em 30 anos, representando 42,3 milhões de pessoas, sendo a segunda religião com o maior número de adeptos no país. Apesar destes números, o catolicismo ainda se faz predominante, com mais de 123 milhões de pessoas, classificando o Brasil como o maior país católico do mundo em números nominais. No período, o conjunto das outras religiões, incluindo espíritas e cultos afro-brasileiros, também dobrou de tamanho, passando de 2,5% para 5% (Mariano, 2013, p. 119).

De 1980 para cá, a partir dos dados informados, prosperou a diversificação da pertença religiosa e da religiosidade no Brasil, mas se manteve “praticamente intocado seu caráter esmagadoramente cristão” (Mariano, 2013, p. 119).2 As raízes de nossa formação cristã, assim como a análise de aspectos da história religiosa brasileira, vislumbrada naqueles números e nas práticas sagradas católicas, espíritas e protestantes, seguem como eixo articulador dos capítulos relacionados ao universo brasileiro contemporâneo presentes na coletânea.

As manifestações cristãs majoritárias aparecem desde o texto de abertura do livro. Dividida em quatro partes, a obra em sua primeira seção procura reunir reflexões dedicadas aos temas da Antiguidade Clássica ou da recepção de suas produções sociais e históricas em nosso tempo. Sob o título de “Identidades, religiosidades e Antiguidade clássica”, tem-se o capítulo de Aíla Luzia Pinheiro de Andrade (Universidade Católica de Pernambuco e Faculdade Católica de Fortaleza) sobre as expectativas messiânicas no tempo de Jesus Cristo e a sua relação com a identidade cristã, construída a partir de então.

A seguir, Nelson de Paiva Bondioli (professor visitante no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal do Espírito Santo) e Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) analisam, com base nos escritos da época, a figura dos Príncipes Júlio-Claudianos (governantes Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero) e sua posição dentro da hierarquia política e religiosa romana durante o século I da Era Comum para falarem de tradição e de transgressão na religião romana.

Na sequência, Fernando Mattiolli Vieira (Universidade de Pernambuco) apresenta-nos a interessante história da descoberta dos manuscritos de Qumran e as suas condições de produção e recepção. Os documentos estudados por ele foram encontrados em 1947, entre o deserto da Judeia e a orla do mar Morto e próximo às ruínas de um sítio arqueológico conhecido por khirbet Qumran, e representam a maior conquista da arqueologia do século XX, pois neles foram encontrados 930 manuscritos, sendo que deste total 210 documentos reproduzem livros da Bíblia hebraica (chamada pelos cristãos de Antigo Testamento): Salmos, Deuteronômio e o Gênesis. Essa história e os desdobramentos destes achados para o conhecimento e as comprovações empíricas de fatos narrados nos livros sagrados cristãos estão relatados ali por ele.

O último texto desta parte pertence a Haroldo Dutra Dias (juiz de Direito e palestrante espírita) sobre o surgimento da crítica histórica nos estudos sobre a vida de Jesus Cristo e o constructo de sua figura profético- -apocalíptica, assim como sobre a origem do cristianismo.

A segunda parte do livro, Religiões, recepções e impérios ultramarinos, congrega estudos que marcam a presença do catolicismo em terras brasileiras e africanas, notadamente durante o período colonial. Nesta seção, estão presentes as pesquisas de André Figueiredo Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) sobre as religiosidades e as sociabilidades nas relações entre o clero e a sociedade nas Minas Gerais do século XVIII, mostradas a partir das manifestações religiosas católicas instaladas na região desde a chegada dos primeiros buscadores de ouro. Ainda no cenário das Minas Gerais setecentistas, Jeaneth Xavier de Araújo Dias (Universidade do Estado de Minas Gerais) brinda-nos com as histórias das festas e das celebrações religiosas para analisar os ritos, os ornamentos e as decorações feitas para a realização das procissões celebradas durante o Triunfo Eucarístico em Vila Rica no ano de 1733, quando se comemorou a condução triunfal da imagem do Santíssimo Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar.

Já Lúcia Helena Oliveira Silva (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) narra as estratégias de conversão e os processos de negociação entre bagandas e missionários anglicanos ingleses no reino de Uganda no século XIX.

Na continuidade, Joaci Pereira Furtado (Universidade Federal Fluminense) discute a relação entre catolicismo e paganismo na poesia árcade que vicejou durante a segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX entre Portugal e a América portuguesa, destacando a presença de elementos referenciais clássicos remetentes à mitologia e aos deuses gregos e latinos.

Por sua vez, Gustavo Henrique Tuna (doutor em História pela Universidade de São Paulo) discute o gradiente da fé católica (o sagrado e a descristianização) encontrado na biblioteca do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, considerada uma das mais relevantes do período colonial, com 1.576 volumes. Ainda no palco das letras coloniais, Renato da Silva Dias (Universidade Estadual de Montes Claros), em instigante texto, analisa a dimensão do político na esfera discursiva religiosa empreendida pelo clérigo secular Manoel Ribeiro Rocha para justificar o tráfico e a escravização dos africanos no Brasil na obra Ethíope resgatado, de 1758. Rubens Leonardo Panegassi (Universidade Federal de Viçosa) apresenta os hábitos alimentares e a sua relação com o discurso religioso dos primeiros jesuítas quinhentistas que empreenderam missões catequéticas na América portuguesa.

Passando da literatura para a arquitetura de taipa, Paula Ferreira Vermeersch (Universidade Estadual Paulista, campus de Presidente Prudente) examina o patrimônio histórico e a arte sacra encontrada no interior da Igreja Matriz setecentista barroca de Sant’Ana Mestra do Sacramento, localizada na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso.

Nas duas partes seguintes, os capítulos centram-se em análises do diálogo e da recepção de textos antigos e modernos, tanto do Oriente quanto do Ocidente, no universo religioso contemporâneo. A terceira seção, “Universo católico e problemas de história contemporânea”, inicia-se com o interessante texto de Patrícia Teixeira Santos (Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos) sobre as missões do Papa Paulo VI no contexto do catolicismo social, a partir de experiências no Brasil e em Moçambique. A militância católica se faz presente no capítulo de Milton Carlos Costa (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) ao analisar o pensamento e a trajetória intelectual de Jonathas Serrano, um importante batalhador pelos ideais cristãos durante a República Velha no Brasil.

No decurso da oposição ao Estado autoritário brasileiro (1964-1985), a partir da década de 1960, um de seus mais destacados opositores foi a Igreja Católica. Partindo desse contexto, Jorge Miklos (Universidade Paulista) e Adriano Gonçalves Laranjeira (Universidade Paulista) analisam a atuação da imprensa católica paulistana na defesa dos direitos humanos, por meio do resgate da história do semanário O São Paulo, jornal oficial da Arquidiocese de São Paulo, criado em 1956 com o objetivo de difundir os valores católicos entre os fiéis. Porém, a partir de 1970, quando a Arquidiocese de São Paulo é liderada por dom Paulo Evaristo Arns, o jornal sofre uma mudança na sua linha editorial e passa a atuar como crítico ao Estado autoritário.

Já Francisco Cláudio Alves Marques (Universidade Estadual Paulista, campus de Assis) e Esequiel Gomes da Silva (Universidade Federal do Pará, campus de Marajó- Breves), com habilidade e brilhantismo, brindam-nos com interessante análise, a partir de exemplos cantados no repente e estampados nos folhetos de cordel, das condições históricas e sociais que contribuíram para a representação de negros, adeptos de religiões de ascendência africana e protestantes associada à ideia de demônio, bem como das relações sociais que se estabeleceram no sertão nordestino marcado por práticas e crenças medievais, sobretudo nas primeiras décadas do século XX.

Ainda pelo viés da cultura, Elder Maia Alves (Universidade Federal de Alagoas) e Greciene Lopes dos Santos (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Alagoas) elegem como foco de análise de seu texto as interfaces entre a política do patrimônio imaterial, as festas e celebrações religiosas e o turismo religioso no Brasil, apresentando-nos como exemplo a festa do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, uma das maiores celebrações religiosas do mundo, que ocorre todos os anos no segundo domingo do mês de outubro na cidade de Belém, capital do Estado do Pará.

Por sua vez, Gisella de Amorim Serrano (pós- -doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais) analisa as edições de cunho religioso, para se compreender a correlação entre História e identidade nacional, na importante coleção Reconquista do Brasil, editada numa parceria da Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, com a Editora da Universidade de São Paulo, de 1976 a 1984, responsáveis pela impressão de 306 volumes.

Na última parte, “Protestantismo, espiritismo e religiões orientais no presente”, discutem-se assuntos relacionados ao evangelismo, protestantismo e atuação das igrejas reformadas no Brasil. Inicia-se com o capítulo de Iranilson Buriti de Oliveira (Universidade Federal de Campina Grande) e Roseane Alves Britto (mestra em História pela Universidade Federal de Campina Grande) comentando as metáforas de cura no discurso neopentecostal brasileiro. Na sequência, João Marcos Leitão Santos (Universidade Federal de Campina Grande) discorre sobre a crise conceitual sobre o protestantismo na historiografia brasileira.

A história recente do movimento espírita brasileiro aparece analisada nos dois artigos seguintes. O primeiro, de Alexandre Caroli Rocha (doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas), escrutina as repercussões geradas pelo chamado Caso Humberto de Campos, que mostra como um problema que envolvia uma disputa por direitos autorais estava além dos domínios jurídicos. E, depois, José Otávio Aguiar (Universidade Federal de Campina Grande) historia a trajetória do SER, “organização sociorreligiosa espírita recente, ecumênica e dedicada à tradição dos evangelhos em diálogo com a obra psicografada de exegese de Francisco Cândido Xavier” atribuída a diversos espíritos, mas em especial a Emmanuel (p. 10).

Os dois últimos autores dedicam seus escritos aos assuntos relacionados a religiões do Oriente Distante. Maria Lucia Abaurre Gnerre (Universidade Federal da Paraíba) e Gustavo Cesar Ojeda Baez (doutor em História pela Universidade Federal de Campina Grande) abordam em seu capítulo a perspectiva hermenêutica que o historiador das religiões Mircea Eliade desenvolve sobre a tradição do Yoga na Índia enquanto prática de religiosidade. Por último, Deyve Redyson (Universidade Federal da Paraíba) expõe as leituras meditativas do texto budista Sutra do coração e sua relação entre sabedoria e realidade.

Apesar de em seu conjunto os textos apresentarem diversidade temática, eles ilustram no todo a diversificação do campo religioso como fonte de pesquisa e de crença do universo sagrado e religioso multifacetado que se evidencia no dia a dia das pessoas. Tanto assim que, ao surgir da necessidade dos indivíduos se ligarem com o divino, a religião ou a pluralidade religiosa resultante das diversas maneiras de entender e perceber o mundo – e por que também não o homem a si mesmo – se faz presente como eixo articulador da obra, independentemente da época retratada ou das práticas e questões religiosas analisadas.

Os dados religiosos explicitados nos números do Censo 2010 permitem-nos traçar o rico e diverso panorama das “religiões e religiosidade” no Brasil contemporâneo. Guiando-se por essa perspectiva, mas sem esta se fazer explicitamente presente no corpo do livro, conseguimos observar nos capítulos interessantes interpretações da história e dos pressupostos religiosos do catolicismo e das igrejas protestantes – com suas múltiplas diversidades –, do universo espírita, das religiões afro-brasileiras, do sincretismo urdido entre elementos cristãos, afro-brasileiros e indígenas representados na cultura popular, do judaísmo, das religiões orientais e do budismo. Infelizmente faltou o islamismo! No cenário atual, ao propor “novas abordagens e debates sobre religiões”, a obra, plural em todo o seu sentido, revela o quanto assuntos como práticas religiosas e religiosidades desde a “Antiguidade aos recortes contemporâneos” não são temas pacíficos, já que em muitos trechos se evidenciam competições entre religiões, conceituações e personagens. Isto, aliás, permite-nos hoje visualizar a exacerbada quantidade de conflitos, cenas de intolerância e preconceito que se vivenciam na sociedade não só brasileira, mas mundial. No fundo, o livro nos faz refletir sobre a finalidade última das práticas religiosas: propor e transmitir a paz.

Notas

2 Os números do Censo mostram que as religiões no Brasil em 2010 dividiam-se em: Católica Apostólica Romana (123.280.172 = 64,63%), Evangélicas (42.275.440 = 22,16%), Sem religião (15.335.510 = 8,04%), Espírita (3.848.876 = 2,02%), Outras religiosidades cristãs (1.461.495 = 0,77%), Testemunhas de Jeová (1.393.208 = 0,73%), Não determinada e múltiplo pertencimento (643.598 = 0,34%), Umbanda e Candomblé (588.797 = 0,31%), Católica Apostólica Brasileira (560.781 = 0,29%), Budismo (243.966 = 0,13%), Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (226.509 = 0,12%), Não sabe (196.099 = 0,10%), Novas religiões orientais (155.951 = 0,08%), Católica Ortodoxa (131.571 = 0,07%), Judaísmo (107.329 = 0,06%), Tradições esotéricas (74.013 = 0,04%), Tradições indígenas (63.082 = 0,03%), Sem declaração (45.839 = 0,02%), Islamismo (35.167 = 0,02%), Outras religiosidades (11.306 = 0,01%), Hinduísmo (5.675 = 0,00%) (Somain, 2012).

Referências

ARNAL, W.E. 2000. Definition. In: W. BRAUN; R.T. McCUTCHEON (ed.), Guide to the study of religion. London, Continuum, p. 21-34.

MARIANO, R. 2013. Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010. Debates do NER, Porto Alegre, 14(24):119-137. Disponível em: http://oldsociologia.fflch.usp.br/sites/oldsociologia.fflch.usp.br/files/Campo%20religioso%20no%20Censo%202010.pdf Acesso em: 15/12/2017.

SOMAIN, R. 2012. Religiões no Brasil em 2010. Confins: Revista Franco- Brasileira de Geografia, n. 15. Disponível em: http://confins. revues.org/7785. Acesso em: 16/10/2017.

Maria Alda Barbosa Cabreira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Assis. Professora da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (FATEC), unidade de Garça. Av. Presidente Vargas, 2331, 17400-000, Garça, SP, Brasil. E-mail: mabcabreira@yahoo.com.br.

América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções / Albuquerque: Revista de História / 2018

É com satisfação que apresentamos ao público mais um número de Albuquerque: Revista de História. Em sua vigésima edição a revista trás onze artigos produzidos por professores e pesquisadores brasileiros e argentinos, que compõem o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, correspondente ao resultado, ainda que parcial, do projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”.

Desenvolvido entre os anos de 2014 e 2017, sob avaliação e financiamento, no Brasil, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, no caso argentino, pela Secretaria de Políticas Universitárias (SPU), o projeto “Associados de Pós-Graduações Brasil-Argentina (CAFB-BA)”, coordenado na Argentina e no Brasil, respectivamente, pelos professores Sebastián Valverde e Marco Aurélio Machado de Oliveira, buscou interligar, por meio do intercâmbio de pesquisadores desses dois países, o Programa de Pós Graduação em nível de Mestrado em Estudos de Fronteiriços (PPGMEF) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituição de Ensino Superior (IES) na Região Centro-Oeste do Brasil, e da Escola de Pós-graduação de Antropologia e Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires (FFyL-UBA), Cidade Autônoma de Buenos Aires, República Argentina.

O aprofundamento da análise desse projeto aparece no artigo que abre o dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções, intitulado “Experiencias de intercambio entre Brasil y Argentina: contexto socioeconómico, cientificismo y abordajes críticos”, de autoria de Ivana Petz, pesquisadora ligada ao Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires, à Facultad de Filosofía y Letras, ao Instituto de Ciencias Antropológicas e à Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil; María Cecilia Scaglia, professora do Instituto de Ciencias Antropológicas e integrante da Secretaría de Extensión Universitaria y Bienestar Estudiantil da Universidad de Buenos Aires; e Sebastián Valverde, pesquisador do Consejo Nacional de investigaciones Científicas y Técnicas-CONICET / Universidad de Buenos Aires e profesor do Instituto de Ciencias Antropológicas da Universidad Nacional de Luján, Departamento de Ciencias Sociales.

Frisando as diferenças de perfil da Universidade de Buenos Aires (UBA), historicamente mais acadêmico, e do Mestrado em Estudos Frnteiriços (MEF), de caráter profissionalizante, o artigo faz referências às experiências desenvolvidas a partir de pesquisas articuladas com transferência e / ou extensão, como as ações concretizadas no Centro de Inovação e Desenvolvimento para Ação Comunitária (CIDAC) – na zona sul da Cidade de Buenos Aires – ou por meio dos “Projetos de Desenvolvimento Tecnológico e Social (PDTS)”, em contraponto com a análise dos pontos comuns e as diferenças como o MEF-UFMS atua com as instituições que trabalham com os imigrantes na região de fronteira do estado do Mato Grosso do Sul (MS).

O dossiê prossegue com o artigo “Aportes a los estudios de frontera a partir de la valorizacion inmobiliaria reciente el caso del norte grande argentino”, no qual o geógrafo Sergio Iván Braticevic, vinculado ao Instituto Patagónico en Estudios en Humanidades y Ciencias Sociales da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do CONICET-UNCo, apresenta os resultados de uma ampla pesquisa sobre o recente processo de alta dos preços da terra no norte argentino, impulsionado, de acordo com o autor, por fatores econômicos e institucionais, entre os quais destacam-se a expansão da fronteira agropecuária, as atividades turísticas e a especulação imobiliária.

A questão agrária na Argentina também é abordada pelas pesquisadoras do CONICET-UNCo Verónica Trpin e María Daniela Rodríguez, no artigo “Transformaciones territoriales y desigualdades en el norte de la Patagonia: extractivismo y conflictos en áreas agrarias y turísticas”. A partir de trabalho de campo realizado no norte da Patagônia, especificamente nos vales irrigados dos rios Negro e Neuquén e nas zonas de estepe e cordilheira da província de Neuquén, as autoras analisam as transformações territoriais em curso nas áreas agrárias e turísticas dessa região, observando que as dinâmicas dessas transformações se materializam na desapropriação de bens comuns como a terra e a água.

O bloco de três artigos seguintes articula o problema agrário face à questão indígena no Brasil e na Argentina.

No artigo intitulado “Capitalismo dependente empobrecimento indígena no Brasil rural”, o professor e pesquisador da Universidade de Brasília Cristhian Teófilo da Silva parte da premissa de que estudos sobre as formas de desigualdade e pobreza que afetam os povos indígenas contemporâneos devem estar fundamentados em uma perspectiva macro-histórica e micro-sociológica, a fim de que se possa construir uma definição de “pobreza indígena” sensível a sua diversidade e complexidade de manifestações. O autor apóia-se em contribuições etnográficas e denúncias de violação dos direitos humanos dos povos indígenas nas regiões da fronteira Sul do Brasil, bem como na conciliação dos debates sobre o capitalismo dependente e os processos socioeconômicos de integração dos povos indígenas a sistemas coloniais e capitalistas específicos, para demonstrar que tais processos não se desenrolaram de modo idêntico em cada lugar e tampouco de forma inalterada ao longo do tempo.

Em “Despojos de las poblaciones mapuches por parte del Estado Argentino. La frontera bonaerense y el caso de la comunidad mapuche Calfu Lafken de Carhué”, a pesquisadora Sofia Varisco investiga os processos de desapropriação territorial sofridos pelas comunidades indígenas mapuches através das diversas campanhas militares no norte da Patagônia, as quais produziram migrações forçadas e deslocamento de famílias para diferentes regiões do país. Focando sua análise na comunidade Mapuche Calfu Lafken da localidade turística de Carhué, situada no sudoeste da Província de Buenos Aires, a autora destaca de que forma o constante avanço do Estado sobre essa região, definida por alguns analistas argentinos como a “última fronteira bonaerense”, privou a população nativa de seus territórios, o que não só dificultou a comprovação da ocupação ancestral como, em muitos aspectos, tornou invisível a presença de indígenas na referida região.

A problemática da terra articulada à questão indígena na Argentina é retomada no artigo intitulado “Configuraciones espaciales a partir de la intervención estatal en territorios indigenas de Chaco” , no qual Malena Inés Castilla analisa o papel das políticas desenvolvidas pelos organismos governamentais na Província argentina do Chaco, as quais implementam e constroem fronteiras que determinam de forma prejudicial as comunidades étnicas locais. Para tanto, a autora concentra-se em explicar o contexto em que a expansão da fronteira agrária do Chaco foi consolidada durante a década de 1990, e como as ações posteriores das organizações governamentais impactaram as transformações socioeconômicas, territoriais e culturais naquela região.

Sasha Camila Cherñavsky, da Faculdade de Sociologia da Universidade de Buenos Aires, traz sua contribuição ao dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções com uma reflexão sobre a Educação Intercultural Bilíngue (EIB). Partindo do pressuposto de que a Educação Intercultural Bilíngue pode ser localizada no marco do paradigma epistemológico do “Sul” apoiado numa prática descolonizadora, no artigo “La Educación Intercultural Bilingue como aporte a un pensamiento heterárquico” a autora destaca a EIB como uma modalidade educativa, que parte de uma lógica oposta àquela aplicada pela matriz colonial moderna, de caráter cada vez mais discriminador e desigual. Enquanto modalidade educativa marginalizada pela educação tradicional, a Educação Intercultural Bilíngue tem sua gênese, como observa Sasha Cherñavsky a partir de pesquisa realizada com a comunidade Lma Iacia Qom radicada em San Pedro (Província de Missiones), nas demandas e ações levadas a cabo pelos próprios indígenas, com o objetivo de difundir sua cultura ancestral, de buscar o apoio às demandas territoriais, à luta contra a discriminação e à violação de outros direitos, em busca de uma sociedade inter e multicultural.

A questão urbana tem lugar, no presente dossiê, no artigo “Lugares de ciudadanía, experiencias de ciudadanización: investigaciones etnográficas en relación con el derecho a la vivienda en la Ciudad de Buenos Aires”, escrito por Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti, ambas pesquisadoras vinculadas ao CONICET e à Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Nesse artigo as autoras analisam diferentes experiências de “cidadanização” registradas em duas áreas urbano-habitacionais da cidade de Buenos Aires, que se distinguem, entre outros aspectos, por seus contextos históricos de origem e por suas tipologias de construção e modalidades de povoamento: o Conjunto Urbano Soldati, um mega-conjunto residencial localizado no bairro de Vila Soldati proveniente de um processo de produção estatal de habitação social, e o Assentamento La Carbonilla, situado no bairro portenho de La Paternal, resultante de um processo popular de produção social do habitat. Recorrendo a um trabalho de sistematização de fontes e a uma pesquisa de campo de caráter etnográfico, construida em torno de atividades de observação / participação e entrevistas com moradores dos dois espaços urbanos-habitacionais citados, Maria Florencia Girola e Maria Belén Garibotti se dispõem, através do estudo das práticas e experiências ‘nativas’, de materialidades e significados concretos envolvendo sujeitos localizados, a avançar na análise comparativa de processos de conformação de cidadanias, ligados à aquisição do direito à moradia.

Em “Los caminos de la institucionalización de la economía popular en contextos neoliberales: aportes en clave de procesos hegemônicos”, Guadalupe Hindi e Matias Larsen, ambos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, discutem a problemática da economia popular na Argentina como um processo de institucionalização, que se insere em um processo hegemônico neoliberal. Para tanto os autores dividem o texto em dois momentos tratando, primeiramente, dos eventos que se referem ao processo de institucionalização da economia popular, em particular o que diz respeito à sanção e regulamentação da Lei de Emergência Social e dos debates gerados em torno dela para, a partir daí, revisar as formas pelas quais se dá a renovação de um determinado debate em termos da “autonomia” das demandas populares em sua conexão com o Estado. Em contraposição a isso, os autores procuram revisar os eventos posteriores à regulamentação da Lei, com o objetivo de propor marcos de entendimento que localizem no centro da análise menos o consenso do que os sentidos que estão implicados, tanto nas ações do Estado como dos sujeitos organizados.

Os dois artigos finais foram produzidos por professores e pesquisadores brasileiros vinculados a três instituições públicas de ensino superior de Mato Grosso do Sul (UFMS. UFGD e UEMS), todos eles direta ou indiretamente ligados ao Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços, sediado no campus de Corumbá da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Neles a questão da migração na América Latina e os impactos ambientais na fronteira brasileira estão no centro das discussões.

Em “América Latina racionalizada na nova Lei de Migração (Lei nº 13.455 / 17: discursos e legitimidade”, Marco Aurélio Machado de Oliveira, Fábio Machado da Silva e Davi Lopes Campos trazem algumas reflexões relacionadas à imigração na América Latina, nos aspectos envolvendo os discursos e a legitimidade. Partindo da premissa de que é possível pensar a questão migratória nesse espaço dentro de um relacionamento legítimo e discursivo, os autores procuram apresentar algumas discussões teóricas sobre como são desenvolvidos os diálogos discursivos entre os atingidos pela nova lei de migração (lei nº 13.445 / 17), conferindo ou não legitimidade aos atores envolvidos. Dessa forma objetivam analisar criticamente o aspecto prático no discurso dos operadores do direito referente à migração, propondo um debate de como o direito pode limitar ou ampliar a questão social, histórica e cultural da migração na atualidade.

O dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções é encerrado com o artigo intitulado “Os impactos ambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira”, escrito por Camilo Pereira Carneiro, Felipe Pereira Matoso e Katucy Santos. Destacando que o processo de integração sul-americano, que teve início no final do século XX, possibilitou a emergência de iniciativas de aproximação entre os países do subcontinente, com destaque para o MERCOSUL, a UNASUL e a IIRSA-COSIPLAN, os autores propõem uma análise, a partir das Relações Internacionais, dos impactos socioambientais da IIRSA-COSIPLAN no Arco Central da fronteira brasileira. A análise dessa iniciativa em particular justifica-se, segundo os autores, em razão da mesma ter gerado um importante impacto, materializado de modo especial em zonas de fronteira, ainda que os projetos de infraestrutura implementados se caracterizem pela falta de participação das comunidades locais, e a inobservância dos aspectos socioambientais quando da execução das obras tenha efeitos negativos nas esferas ambiental, social, econômica e cultural.

Com a publicação do dossiê América Latina em Perspectiva: Política, Subjetividade e Fricções Albuquerque: Revista de História cumpre mais uma vez sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter inter e transdiscipinar.

Aquidauana, verão de 2019.

Sebastián Valverde

Marco Aurélio Machado de Oliveira

Carlos Martins Junior


VALVERDE, Sebastián; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de; MARTINS JUNIOR, Carlos. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.10, n.20, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Estória do Santo Graal: Livro Português de José de Arimateia | J. C. R. Miranda

Embora tenha sido publicado por Henry Carter há cerca de 50 anos, pode-se dizer que só agora o chamado Livro de José de Arimateia foi de fato posto à disposição dos interessados pela literatura arturiana ibérica. Não há exagero algum na afirmação, pois, sem embargo da existência de edição anterior, a obra permanecia como que inédita: além de raríssima (e quase inacessível a leitores brasileiros), a publicação de 1967 era de consulta extremamente penosa, devido a seu caráter paleográfico1. Tem grande relevância, portanto, o trabalho dado a lume em 2016 por José Carlos Ribeiro Miranda, Simona Ailenii, Isabel Correia, Ana Sofia Laranjinha e Eduarda Rabaçal, pesquisadores ligados ao Seminário Medieval de Literatura, Pensamento e Sociedade (SMELPS), da Universidade do Porto. A edição vem preencher importante lacuna na bibliografia relativa à literatura medieval portuguesa, oferecendo base segura para ampliar a divulgação e o estudo desta obra fundamental.

Espera-se que a partir de agora, de posse do texto, um grupo mais alargado de pesquisadores possa explorar aspectos que até o momento, salvo poucas exceções, têm sido marginalizados pela crítica. Com efeito, a maior parte dos estudos existentes sobre a versão portuguesa do José de Arimateia – ou Estória do Santo Graal (ESG), como seus editores apelidaram o livro, em consonância com os originais franceses dos quais deriva – concentra-se no debate sobre a posição da obra no quadro do desenvolvimento cíclico da Matéria de Bretanha e sobre as informações que sua cópia permite inferir acerca da difusão da literatura arturiana na Península Ibérica. Ainda que o tema suscite controvérsias, como veremos adiante, tradicionalmente considera-se que a ESG seja tradução do ramo inicial do ciclo da Pós-Vulgata, produzido em França entre c. 1230 e 1240, do qual a Demanda do Santo Graal, também vertida para o português, seria a terceira e última parte2. Tais traduções devem remontar a meados do séc. XIII e é provável que tenham sido empreendidas sob o patrocínio de membros da corte de Afonso III, que viveu na França precisamente durante a época em que a Pós-Vulgata era elaborada. Costuma-se atribuir a tradução a Joam Vivas, do qual pouco se sabe, cujo nome é mencionado na própria ESG, bem como na versão castelhana da Demanda3. Leia Mais

Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX | Rocío da Riva e Jordi Vidal

A fines del siglo XIX y principios del XX, en el contexto de una intensa competencia imperialista –entre un pequeño número de Estados europeos (primero Gran Bretaña y Francia, posteriormente Alemania, Bélgica, Italia, Portugal, España y los Países Bajos) y extraeuroepos (Estados Unidos y Japón)– por la apropiación de gran parte de África y de Asia, la subordinación de sus poblaciones y la constitución de un nuevo orden político y económico, tuvo lugar la progresiva institucionalización formal de los estudios antiguo-orientales dentro de los ámbitos académicos occidentales. En efecto, dicho proceso de constitución tuvo por acontecimientos inaugurales tanto la invasión napoleónica en Egipto en 1798 y de Siria-Palestina en 1799 como las primeras empresas de búsquedas y apropiación de materiales arqueológicos a cargo del cónsul francés Émile Botta y del funcionario inglés Austen Henry Layard en Mosul y Nimrud respectivamente (antiguas capitales asirias). Esas actividades llevaron a intensificar las expediciones y excavaciones de sitios antiguos en Egipto y Medio Oriente. Fue así que individuos procedentes de campos y actividades distintas (soldados, funcionarios, viajeros, mercaderes y eruditos) recorrieron diversos paisajes, mostraron un interés estratégico por las así denominadas “maneras” y “costumbres” de los países islámicos, aprendieron los idiomas de las sociedades que los habitaban, descifraron las lenguas y textos de los pueblos desaparecidos y acumularon innumerables objetos de su cultura material (cerámicas, vasijas, cilindro-sellos, tablillas, relieves, papiros, estelas, frontones, estatuillas y estatuas).

Durante el desenvolvimiento de estas distintas, el saqueo de tumbas y sitios para lucrar con su contenido existió por supuesto, al menos en Egipto, y convivió cómodamente con los intentos más “serios”, organizados y sistemáticos de el imperialismo y la dominación colonial posibilitaron el acceso no sólo a múltiples espacios antes desconocidos o apenas imaginados, sino además a nueva información (proporcionada tanto por los restos arqueológicos como por los informantes locales) a partir de la cual fue posible construir una imagen mucho más aproximada –y sustentada empíricamente– de las antiguas sociedades que poblaron la región. Coetáneo a los nuevos hallazgos y actividades, se produjo la progresiva fragmentación y especialización temática dentro del propio orientalismo antiguo, diferenciándose así ciertas subdisciplinas (Egiptología, Asiriología, Siriología, Anatolística y Estudios Bíblicos), como también dos tareas específicas en la labor investigativa: la del arqueólogo (encargado de organizar las excavaciones y recolectar los nuevos materiales) y la del filólogo (preocupado por desentrañar las lenguas antiguas y sus sistemas de escritura a partir de la traducción del material epigráfico). investigaciones arqueológicas. Aun así, es indudable que las prácticas inauguradas por

Considerando lo anteriormente expuesto, es innegable que esta descripción sintetiza una dinámica mucho más compleja y sinuosa de un campo de estudio que, luego de su afianzamiento, creció y expandió, ampliando horizontes y permitiendo avances investigativos significativos para la posteridad sobre las antiguas culturas y sociedades de Egipto, Mesopotamia, Anatolia y la franja sirio-palestina. El libro que el lector tienen entre sus manos, Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX, compilado por Rocío Da Riva y Jordi Vidal, reconocidos profesores españoles y especialistas en arqueología e historia antigua oriental, se ocupa justamente de las historias de algunos de los primeros estudiosos occidentales que trabajaron en la región y que con su multifacética labor contribuyeron al nacimiento de las historiografía y arqueología del Cercano Oriente Antiguo. El volumen compila las intervenciones de la mayoría de los expositores que participaron del workshop llevado a cabo en la Facultad de Geografía e Historia de la Universidad de Barcelona a finales de noviembre de 2013. Dicho evento académico reunió a destacados especialistas en la historia antigua de Egipto y Próximo Oriente y a otros investigadores más preocupados por temas de historiografía con la intención de debatir sobre la formación y evolución de los estudios antiguo-orientales, la definición de subdisciplinas, analizar el accionar de los primeros exploradores y las prácticas científicas de las etapas iniciales con la intención de encontrar afinidades temáticas y establecer futuros proyectos de investigación. El resultado final es una bien lograda compilación de once artículos que más allá de la forma que cada autor escogió para escribirlo y de los enfoques empleados en cada uno de ellos, coinciden en la intención de presentar datos nuevos, informaciones novedosas o revisiones críticas de teorías o ideas ya conocidas.

El libro abre con una acertada introducción sobre el concepto de historiografía y los actuales debates alrededor de esta especialidad a cargo de Jordi Cortadella. Para este autor, el historiador es un profesional que recopila hechos del pasado humano conforme a criterios que suponen una elección de valores y categorías, pero para hacerlo precisa de la intermediación de los testimonios que aquel debe interpretar. En consecuencia, la labor del historiador consiste en la escritura de una Historia no sólo desde su propia perspectiva, sino también a partir de la mirada de otros intérpretes que lo precedieron. Para Cortadella, entonces, la historia de la historiografía se ocupa de definir qué tipos de hechos son los que preocupan a un historiador determinado y cuál es la motivación específica de aquel historiador por estudiar tales hechos en un momento determinado. En otras palabras, se trata de un campo cuya principal premisa pasa por mostrar que cualquier problema histórico posee per se su propia historia. Seguidamente, en una segunda introducción general sobre la historiografía del Próximo Oriente, Jordi Vidal identifica los motivos del escaso interés que han suscitado los estudios de corte historiográfico en el campo del Orientalismo Antiguo así como también algunas tendencias generales que resultan evidentes en los materiales publicados hasta el momento sobre la temática, como por ejemplo la preponderancia de los estudios biográficos, los análisis de casos nacionales y el predominio anglosajón en este tipo de investigaciones. No obstante, el historiador catalán indica que esta última tendencia si bien no puede discutirse, debe ser matizada en la medida que prestigiosos investigadores de otros países –como Alemania, Francia e, incluso, España– han comenzado a incursionar en diversas cuestiones y dimensiones relativas al cultivo y desarrollo de los estudios antiguo-orientales en sus historiografías nacionales.

La sección del libro dedicada a Egipto y Norte de África se inicia con el artículo de Roser Marsal (Universitat Autónoma de Barcelona), el cual expone la historia de los primeros exploradores que recorrieron el Desierto Occidental egipcio a finales del siglo XIX. La historiadora plantea que, en los inicios de las investigaciones egiptológicas, el desierto del Sáhara no constituyó un objeto de interés debido a que las duras condiciones climáticas lo volvían un supuesto terreno inhóspito para el desarrollo de la vida humana. Sin embargo, conforme se iban acumulando nuevas evidencias arqueológicas con cada nueva exploración (como los sedimentos lacustres, algunos restos de cultura material y las pinturas rupestres halladas en Jebel Uweinat, Gilf Kebir, Wadi Sura o la Cueva de los Nadadores), el noreste africano comenzó a suscitar mayor interés entre los estudiosos, ampliando el espectro temporal de sus investigaciones y, consecuentemente, llevándolos a incursionar en las etapas neolíticas. La autora concluye mostrando que tales estudios no sólo gozan de buena salud en la actualidad, sino que también contribuyen a poner de relieve los aportes culturales africanos en la formación de la civilización egipcia. Por su parte, Josep Cervelló (Universitat Autónoma de Barcelona) reconstruye con su estudio las bases de una “historiografía de los orígenes de Egipto” a partir del aporte de Jacques De Morgan, William E. Petrie, James E. Quibell, Frederick W. Green y Émile Amélineau, deteniéndose en las excavaciones que emprendieron en el Alto Egipto a lo largo de la década 1893-1903. A partir de la minuciosa revisión de la labor de estos pioneros de la arqueología egiptológica, Cervelló expone que los materiales exhumados de los sitios de Hieracómpolis, Nagada y Abidos permitieron reconstruir las primeras dinastías faraónicas y sus cementerios, bosquejar un primer panorama histórico y producir una primera cronología de los orígenes prehistóricos de la cultura egipcia.

En su artículo, Juan Carlos Moreno García (CNRS, Université Paris-Sorbonne París IV) analiza la formación y consolidación, en la producción de los egiptólogos de finales del siglo XIX y comienzos del siglo XX, de la imagen de un Egipto antiguo como una civilización “excepcional”, diferente de las otras sociedades del mundo antiguo y transmisora de un importante legado de valores culturales. Se trata de un mito historiográfico que se revelaría sumamente tenaz dentro de los estudios orientales, con prolongaciones hasta nuestros días, cuyas raíces pueden escudriñarse –según el autor– en la crisis de la cultura occidental a finales del siglo XIX. Moreno García señala que el Egipto de los faraones se transformó en una suerte de “paraíso perdido” sobre el cual las distintas burguesías europeas proyectaron sus miedos sociales y ansiedades culturales, agravadas por el auge de los viajes a Oriente, por el desenvolvimiento de una arqueología que oscilaba entre la práctica científica, la aventura romántica y la caza de tesoros y, finalmente, por la creación de una particular versión de la Egiptología por parte de unos profesionales con formación bíblica y unos valores políticos precisos. El estudio de Francisco Gracia Alonso (Universitat de Barcelona) sigue el accionar de algunos de los más destacados representantes de la arqueología británica de la Segunda Guerra Mundial –como Mortimer Wheeler, Leonard Woolley, John Bryan Ward-Parkins y Geoffrey S. Kirk– que, en el marco de los combates entre las tropas del Eje y el Octavo Ejército Británico entre 1940 y 1943, participaron de las tareas de protección del patrimonio arqueológico de Egipto, Libia y Túnez puesto en peligro por las operaciones militares. El autor indica que el servicio que prestó este elenco de arqueólogos, helenistas e historiadores de la Antigüedad en las filas del Ejército Británico durante las campañas del Egeo y el norte de África implicó dos dimensiones: por un lado, la protección y salvamento de los yacimientos arqueológicos y, en segundo lugar, su utilización como arma propagandística de las destrucciones ocasionadas por la guerra.

La sección dedicada a Oriente Próximo se abre con el trabajo de Juan José Ibánez (CSIC) y Jesús Emilio González Urquijo (Universidad de Cantabria) alrededor de la figura del sacerdote cántabro González Echegaray, precursor en los estudios de la etapa neolítica del Cercano Oriente dentro del ámbito ibérico. Los autores examinan las excavaciones del yacimiento de El Khiam (Desierto de Judea, Palestina) que este pionero dirigió en 1962 y resaltan su contribución teórica a la comprensión de la transición hacia el Neolítico en el Levante Mediterráneo a través de la definición del denominado “periodo Khiamiense”. En el segundo trabajo de esta sección, Juan Muñiz y Valentín Álvarez (Misión Arqueológica Española de Jebel Mutawwaq) se ocupan de identificar las primeras referencias a los monumentos megalíticos en Transjordania que aparecían desperdigadas en las páginas de diversas obras, diarios de exploración o trabajo de campo etnográfico de viajeros y eruditos del siglo XIX que se desplazaban a Tierra Santa seducidos por los relatos románticos de peregrinaciones, innumerables ruinas de grandes civilizaciones abandonadas, tesoros ocultos, etc. Seguidamente, Jordi Vidal (Universitat Autónoma de Barcelona) considera la manera tradicional de relatar el hallazgo de la antigua ciudad de Ugarit (actual Ras Shamra). El investigador plantea que dicho relato “canónico” se encuentra atravesado por una perspectiva marcadamente eurocéntrica, manifiesta en la subvaloración u omisión tanto de las contribuciones locales al hallazgo del yacimiento como de la participación otomana en dicho acontecimiento, ocurrida mucho antes del arribo de los arqueólogos franceses al sitio.

En su artículo, María Eugenia Aubet (Universitat Pompeu Fabra de Barcelona) examina el proceso de “redescubrimiento” arqueológico de la cultura fenicia y el papel que la monumental obra de Ernest Renan, Mission de Phénicie (1864-1874), tuvo respecto al respecto. La arqueóloga señala que este particular escrito motivó las primeras exploraciones en las regiones de Libia y Siria luego de la Primera Guerra Mundial con la intención de recuperar un importante cúmulo de artefactos hoy desaparecidos (como esculturas, monumentos funerarios y epígrafes procedentes de Biblos, Saïda y Oum el-Awamid, cerca de Tiro), pero de los que tenemos conocimiento en la actualidad debido a los excelentes grabados y planimetrías que pueblan las páginas del informe que compuso este polémico intelectual francés durante su célebre expedición a Fenicia en 1960 y 1961. A su turno, Rocío Da Riva (Universitat de Barcelona) incursiona en la vida y obra del arqueólogo alemán Robert Koldewey. Enmarcando su trabajo en un estudio del rol de la arqueología en el Imperio Alemán durante el siglo XIX, la investigadora madrileña reseña los diferentes trabajos que el renombrado Koldewey realizó en Babilonia y detalla con minuciosidad sus aportes empíricos e innovaciones metodológicas al campo de la asiriología –aún en formación– y a la arqueología de la arquitectura, así como la incidencia de su labor en la prensa española contemporánea.

Como cierre del libro, Carles Buenacasa (Universitat de Barcelona) nos lega un artículo en el que ensaya un conjunto de argumentos y reflexiones a propósito de los 200 años del “redescubrimiento” de la ciudad de Petra –capital del antiguo pueblo ismaelita (localizada a 80 km al sudeste del mar Muerto)– por el suizo Jean Louis Burckhardt, un profundo conocedor de la lengua árabe y de la religión islámica que, haciéndose pasar por un mercader árabe, viajó por el Oriente Próximo y Nubia. El pormenorizado examen del autor le permite identificar en el relato oficial de este episodio de la arqueología de principios del siglo XX –y su celebración bicentenaria– una suerte de memoria historiográfica del “hallazgo” pensada desde y para Occidente, orientada a remarcar la figura del explorador europeo como único responsable y, en paralelo, a invisibilizar la colaboración que algunos pobladores locales brindaron al explorador europeo, oficiando las veces de guías debido al detallado conocimiento que poseían del terreno. Como pone de manifiesto Buenacasa a lo largo del texto, se trata de una percepción historiográfica eurocéntrica que además desconoce, tanto en el pasado como en el presente, el hecho de que la antigua capital de los nabateos, esa ciudad de época clásica tan original y poco convencional nunca estuvo “extraviada” para los jordanos.

Al finalizar la lectura de los distintos artículos que integran la compilación, el lector habrá comprobado que ha accedido a diversos y singulares modos de configurar enfoques, metodologías e interpretaciones acerca del primer momento historiográfico de los estudios antiguo orientales que con gran éxito han logrado conjugar los compiladores en un solo volumen. No dudamos al aseverar que dicha característica es, quizás, una de las virtudes más significativas del libro. Sin embargo, no queremos dejar de destacar otras dos características sobresalientes. En primer lugar, la compilación muestra que las prácticas “científicas” que marcaron la génesis de los estudios históricos sobre las culturas antiguas del Próximo Oriente no pueden separarse de la situación geopolítica, los intereses económicos y los imaginarios culturales en un mundo integrado (y fragmentado) por el mercado capitalista y la expansión imperialista, en el cual diferentes agentes, motivaciones e intereses recuperan un lugar que la historiografía nacida en el mismo del siglo XIX invisibilizó con las biografías de los grandes precursores y la épica del progreso de la ciencia. Y en segundo lugar, se trata de una obra intrépida, en tanto deja al desnudo que mientras las sociedades antiguas del Cercano Oriente fueron “redescubiertas” y retratadas, desde un tamiz ontológico eurocéntrico, colonialista y racista impuesto por la dominación imperialista, como parte de un pasado exótico, maravilloso y monumental, a los pueblos que habitaban dichas regiones se les reservó el indulgente lugar de la degradación o inexistencia contemporánea.

En efecto, en una época en que las teorías racistas estaban al orden del día, los exploradores y colonizadores europeos no reconocieron a los diversos grupos étnicos con los que entraron en contacto como herederos de las prósperas civilizaciones de Oriente, considerando que se trataba de poblaciones “salvajes” y “bárbaras” sin historia, ajenas a dichas tradiciones culturales, incapaces de imitar en inteligencia y refinamiento a los creadores de antaño y, por tanto, de reconocer la riqueza de los grandes descubrimientos arqueológicos. Ello nos recuerda un dato bastante infeliz: que no sólo infinidad de objetos hicieron un viaje sin retorno a Europa a partir de la idea de que Occidente tenía la misión insoslayable de salvar esos tesoros de la supuesta ignorancia y vandalismo de los beduinos, sino que además esta misión de rescate pasó a justificar las innumerables usurpaciones, saqueos y robos cometidos, el despojo de tierras de los grupos locales, su sumisión, explotación y, en casos extremos, pero demasiado frecuentes, su exterminio; todos actos cometidos en nombre de la conservación de un patrimonio del cual las sociedades occidentales se sentían únicas y legítimas herederas. Se trata de un aspecto que, como latinoamericanos, haríamos mal en subestimar, pues ese mismo tipo de representación específica del pasado –de carácter más mítico y preconcebido antes que histórico y documentado–, que provee los parámetros ontológicos y epistemológicos para la comprensión del mundo desde una matriz occidentocéntrica, es la misma forma de percepción de la cultura histórica que, desde fines del siglo XIX, incidió precisamente en la invención de nuestras tradiciones historiográficas nacionales. Y, en tal dirección, la compilación se presenta como una necesaria y saludable invitación para que, desde nuestras periferias científicas, reflexionemos sobre los agentes, paradigmas y contextos locales que animaron el surgimiento y expansión de los equipos y/o centros de investigación dedicados al estudio de las culturas preclásicas del Cercano Oriente en Brasil, Argentina y otros países de América Latina.

Horacio Miguel Hernán Zapata – Docente-Investigador. Universidad Nacional del Chaco Austral (UNCAus)/Universidad Nacional del Nordeste (UNNE)/Instituto de Investigaciones en Ciencias Sociales (ICSOH)-Consejo de Investigaciones de la Universidad Nacional de Salta (CIUNSa), Argentina. Correo electrónico: horazapatajotinsky@hotmail.com.

DA RIVA, Rocío y VIDAL, Jordi (Eds.). Descubriendo el Antiguo Oriente. Pioneros y arqueólogos de Mesopotamia y Egipto a finales del S. XIX y principios del S. XX. Barcelona: Ediciones Bellaterra, 2015. 318 p. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Egregios, práticas “científicas” y cultura material en la institucionalización de los estúdios de Antiguo Oriente a fines del siglo XIX y princípios del XX. Revista Ágora. Vitória, n.28, p.260-266, 2018. Acessar publicação original [IF].

Lima Barreto: Triste Visionário | Lilia Mouritz Schwarcz

Importante historiadora de nossa atualidade, Lilia Moritz Schwarcz, desde os tempos de mestrado, se debruçou a estudar o período do século XIX e todas as questões que envolvem a abolição da escravidão e o cotidiano dos sujeitos escravizados. Professora de Antropologia da Universidade de São Paulo, é também docente visitante na Universidade de Princeton e editora da Companhia das Letras, onde coordena a seção de livros de não ficção e por onde foram publicadas todas as suas obras. Autora de livros como O espetáculo das Raças, Retrato em Branco e Negro e Brasil: uma biografia, Schwarcz lançou em 2017 o livro fruto de sua pesquisa dos últimos anos, cujo protagonismo ficou a cargo de um personagem que já aparecera antes em sua trajetória profissional, mas que nunca antes pudera se deter estudando: Lima Barreto.

Na época de escrever sua tese de doutorado, Schwarcz estudou a questão do darwinismo social – teoria debatida no início do século XX que afirmava a existência de diferenças profundas entre as raças humanas – onde surgiu a figura do romancista brasileiro como uma voz contrária à própria teoria, tirando todo o credo daquele que se tornaria um dos argumentos científicos em torno do surgimento do racismo. O contexto em que se fala é o da Primeira República brasileira, momento em que se prometeu a igualdade, mas também entregou a exclusão social de largas partes da população. Assim, o período tornou-se palco para muitas revoltas e manifestações a favor dos direitos sociais e civis, possibilitando a presença de indivíduos como Lima Barreto, que opinava, criticava, clamava por igualdade e por justiça, em nome de si mesmo e de todos os outros. O livro, cujo título ficou Lima Barreto: Triste Visionário, editado pela Companhia das Letras, foi lançado no início do segundo semestre de 2017, cuja data coincidiu com a ocorrência da Festa Literária de Paraty, importante evento do ramo editorial brasileiro e onde o autor homenageado na edição era Lima Barreto. Lilia Schwarcz e Lázaro Ramos, ator global, estavam presentes, debatendo e fazendo leituras sobre os escritos do romancista [1].

Tal qual se supõe uma biografia, Schwarcz sobrevoa toda a vida e trajetória do romancista, que viveu na passagem do século XIX para o XX e por meio de suas palavras, assumiu uma postura crítica diante da situação que o Brasil se encontrava. Desta forma, é logo na introdução que a autora realiza um trabalho cuidadoso, ao se postar, como pesquisadora, diante de seu objeto. Com uma linguagem capaz de transportar o leitor para o período em questão, Schwarcz narra as primeiras relações com Lima Barreto, tecendo os caminhos que levaram ela a querer escrever a obra. A maneira com a qual a mesma se coloca é quase que uma relação de amizade, pelo simples fato de querer entender a figura de Lima Barreto em todas as suas facetas. Não obstante, a pesquisadora deixa claro saber da existência da primeira e uma das principais biografias existente sobre Lima Barreto, publicada em 1952 com a autoria de Francisco de Assis. Nesse sentido, coloca o seu trabalho como fruto de suas indagações contemporâneas, em virtude da eclosão dos direitos civis e diferença na igualdade, além da presença de raça, questões já presentes nos escritos de Barreto em sua época. Consequentemente, faz uma relação com o fazer historiográfico, dizendo que o historiador desenvolve suas pesquisas com base nas perguntas de seu presente, tal qual afirmação de Lucien Febvre, citado por Schwarcz [2], onde o mesmo diz que a História é filha do seu tempo.

Triste e visionário: são os termos utilizados pela autora para caracterizar Barreto, e é nessa dualidade que a mesma vai desenvolvendo sua escrita. Utilizando-se de uma linguagem de fácil entendimento, possível de ser compreendida por estudiosos da área, mas também por leitores não acadêmicos, Schwarcz constrói a figura de Barreto como contraditória. Desse modo, afasta-o de uma possível heroicização, tornando-o apenas um homem de seu tempo. Narrando desde o seu nascimento até sua morte, a autora destaca, ao longo de dezessete capítulos, momentos e fases da vida do carioca. E nesse processo explora a atuação de Barreto nos mais diversos campos: desde a vida pessoal até mesmo a literatura e a política. Juntamente a isso, a historiadora procura tecer um contexto histórico, sempre partindo do cotidiano do autor, de tal modo a poder embasar o seu papel em meio a tudo aquilo. Logo, o leitor é convidado a realizar uma viagem pelo Brasil na passagem do século XIX para o século, num período de queda da monarquia e instauração de um novo regime. Por um lado, toda a expectativa pelo que um novo governo poderia trazer, incluindo mudanças na estrutura das cidades e o surgimento de novas práticas sociais e culturais. Mas, ao mesmo tempo, os problemas que a monarquia colocara e ainda persistiam no período republicano, dentre eles a própria questão dos sujeitos livres, mas que até pouco tempo eram escravizados.

Todo esse panorama é acompanhado de imagens e trechos de fontes da época, como jornais, incluindo crônicas, notícias, dando destaque muitas vezes aquelas escritas por Barreto. Deste modo, ao invés de tecer longos comentários e análises sobre, Schwarcz opta que o romancista fale, com suas próprias palavras, em momentos que julga necessário e relevante. Para facilitar ainda mais a leitura, cabe ressaltar o esforço no que tange o trabalho gráfico por parte da edição do livro, tornando a leitura ainda mais fluida e aprazível para o leitor.

A atuação de Lima Barreto, como já foi citado anteriormente, se deu por meio de colunas, romances e até a criação de periódicos, como é o caso do Floreal, que chegou às mãos de público carioca em outubro de 1907 e cujo diretor era Lima Barreto. Apresentava um formato pequeno e vinha com o objetivo de disputar o gosto dos leitores da cidade. O periódico refletia a postura crítica de seus membros, incluindo o próprio Barreto, diante da imprensa do período. Para os mesmos, os jornais em circulação no período atendiam a um público específico, sendo ele a burguesia, logo eram sensacionalistas. Dessa forma, não tinha preocupações mercantis e procurava apresentar as notícias de modo mais isento e próximo da população em geral. Isso acabou refletindo na trajetória do periódico, uma vez que não conseguia disputar espaço com os grandes impressos, sendo eles mais bem diagramados e que possuíam fotos, ilustrações, caricaturas e um projeto gráfico bem produzido. Outro alvo declarado era a Academia Brasileira de Letras, criada no período e que respeitava apenas uma “literatura muito pautada por regras gramaticais distantes da linguagem do povo” [3]. Apesar disso, é importante destacar que Lima Barreto tentara entrar algumas vezes na sociedade, não tendo sucesso em nenhuma delas.

A literatura foi outro ponto forte de sua atuação. Segundo Lilia Schwarcz, e que segue as análises de Francisco de Assis Barbosa, Lima Barreto tinha outros livros em preparo, mas decidiu lançar Recordações do escrivão Isaías Caminha com o objetivo de escandalizar. O romance narra a história do jovem Isaías, que chega à cidade grande cheio de esperanças de tornar-se doutor, mas acaba se deparando com o preconceito, a humilhação e a tristeza. É na narrativa que o autor representa algo que ele chamava de “’negrismo’: qual seja, uma projeção para o Brasil do movimento internacional de pan-africanos que, naquele momento, internacionalmente lidava com as dificuldades enfrentadas pela população negra no pós-abolição”[4]. Dessa forma, expõe com detalhes a cor de seus personagens, bem como o universo de constrangimentos que fazia parte do dia-a-dia dessas populações. Apesar do argumento envolvido no livro ser forte, o texto não foi recebido como era o esperado, também não se tornando um sucesso de crítica. Em vez de se deter na forte denúncia racial, presente em diversos momentos da obra, os críticos da época preferiram abordar a maneira como o livro tratou o jornalismo e as formas de sociabilidades literárias, e mais nitidamente, os periódicos. Tal postura “do contra”[5] acabou se repetindo ao longo de seus outros livros, sempre com um mesmo cunho: romance de crítica social. Lima Barreto queria provocar a intelectualidade carioca do período, e conseguiu tal feito.

Um terceiro campo de atuação que influenciou alguns outros foi a política, quando Lima Barreto se aproximou do anarquismo e das novas correntes libertárias, presentes no Brasil nas décadas de 1900 e 1910. Apesar de não ter se filiado, abertamente, a grupos ou clubes anarquistas, Barreto demonstrou interesse com as teorias que influenciavam colegas de geração e passou a veiculá-las em muitos de seus artigos. É nesse período que surge a tão lembrada sátira à Primeira República: Bruzundanga, que deu origem a um livro de mesmo nome, publicado após a morte de Lima Barreto. Na narrativa, o autor constrói um país fictício com diversos problemas sociais, culturais e econômicos, em que os ricos e incautos acumulam títulos acadêmicos e têm fama de eruditos.

Lilia Schwarcz sobrevoa a vida do escritor, destacando seus altos e baixos, seus feitos e suas polêmicas. A relação com a bebida, com os modernistas que vieram no mesmo período, com Monteiro Lobato e Machado de Assis e indo além até o seu triste fim, conforme palavras da própria historiadora, mostrando toda a construção posterior em torno de sua figura, o papel de Francisco de Assis Barbosa, primeiro biógrafo de Barreto são todos pontos destacados no desenrolar da escrita. Dessa maneira, dá um enfoque especial entre a relação entre Assis e Barreto, que se torna próxima, onde a imagem de ambos acaba se misturando. Isso se dá após a morte de Assis, quando sua esposa, d. Yolanda, doa a coleção de seu marido a José Mindlin, um grande bibliófilo brasileiro, e que por meio dela que Schwarcz tem acesso a boa parcela dos documentos de Barreto. É aqui que a autora traz a discussão de Pierre Nora, sobre lugares de memória, quando afirma que “qualquer objeto, qualquer documento, (…) só ganham sentido se incluirmos neles nossas lembranças e afetos”[6]. E de tal modo em que se teve o ganho de sentido entre Francisco de Assis Barbosa e Lima Barreto, teve-se o mesmo para com Lilia Schwarcz e seus protagonistas. Escrever um livro desses em tempos de discussões sobre preconceito e racismo levanta questionamentos que começaram no início do século XX e que permeiam a nossa sociedade atual. E que a partir da tomada de uma reflexão crítica sobre alguns pontos, podem dizer muito sobre nosso futuro. Desse modo, a impressão que se tem ao ler o livro é que a autora presta uma homenagem a um personagem tão importante na História de nosso país, deixando que o mesmo tenha um protagonismo e um reconhecimento tal qual deveria ser: triste e visionário.

Notas

1. Para ver mais: Acesso em: 16 nov 2017.

2. SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p.16

3. Ibid., p.195.

4. Ibid., p.218.

5. Ibid., p.2345.

6. Ibid., p.508.

Lucas Krammer Orsi –  Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. E-mail: lucaskorsi@gmail.com


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: ORSI, Lucas Krammer. Lima Barreto em três tempos: passado, presente e futuro. Cantareira. Niterói, n.28, p. 231 – 234, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

What is Global History?

Um dos temas mais discutidos nos departamentos de humanidades ultimamente é a História Global. Nos Estados Unidos e no mundo anglo-saxão em geral, tem havido uma proliferação de trabalhos que procuram adotar a história global seja como uma perspectiva, seja como um objeto de estudo. Centros de pesquisa como o Center for Global history na Universidade de Oxford, o Institute for Global and Transnational History na Universidade de Shandong (China) e o centro para História global da Freie Universitat Berlin; publicações como o Global History Journal e o New Global Studies Journal [1] e ainda redes de pesquisadores tal qual a Global History Collaborative e a European Network in Universal and Global History demonstram o crescente interesse pela temática que aqui tratamos [2].

Para o historiador Sebastian Conrad, a História global nasceu da convicção de que os instrumentos que os historiadores vinham utilizando para explicar o passado já não eram mais suficientes. Há duas razões para isso, dois pecados originais das ciências humanas que foram formadas no século XIX. Primeiro, elas foram fundadas a partir de uma ideia de estado-nação, de um “nacionalismo metodológico”, isto é, uma tendência a considerar o Estado-Nação como unidade fundamental de análise. E o segundo pecado original seria o eurocentrismo, ou seja, a tendência das ciências humanas de ver a Europa como o motor da história mundial.

No entanto, não é possível dizer que os historiadores globais foram os primeiros a reagirem a essas limitações. Modelos de História-Mundo já existiam desde Heródoto, Sima Qian e Ibn Khaldun, pois eles produziram narrativas que pensavam a história de seus próprios povos mas também a de outros, mesmo que fossem para constratar civilização com barbárie. Mais recentemente, a História comparada, as teorias de sistema-mundo e os estudos pós-coloniais já desafiavam a compartimentalização arbitrária do passado.

Assim, se temos consciência das origens remotas das formas de pensar globalmente o passado, resta saber o que distingue a Global History dessas outras abordagens? O que, afinal, é a História Global? Essa é a questão que o livro de Sebastian Conrad busca responder.

Sebastian Conrad é professor de História na Freie Universität Berlin, interessado em abordagens de História global e transnacional, em História da Europa Ocidental, da Alemanha e do Japão. Outras publicações conhecidas suas são German Colonialism: A Short History e Globalisation and the Nation in Imperial Germany. Desde 2006, ao menos, o autor vêm publicando artigos, capítulos e livros de cunho teórico-metodológico sobre História global, como o que aqui tratamos, What is Global History?.

No primeiro e introdutório capítulo deste livro, o autor contextualiza brevemente o surgimento dessa abordagem, afinal, provavelmente não haveria História global sem globalização, e disserta sobre o por quê a maneira como os historiadores reconstrõem o passado está mudando, na medida da crescente integração do mundo presente. Além disso, ele aponta três variedades de História Global, a ver: História de Tudo, História das Conexões e História baseada no conceito de Integração.

Na sequência, em “A short history of thinking globally”, ele reconstitui a trajetória das formas de pensar a história para além das fronteiras nacionais, desde as narrativas ecumênicas na Antiguidade e Idade Média, na Época Moderna, a partir da hegemonia ocidental no século XIX, chegando até a World History do Pós-Guerra.

No terceiro capítulo, Conrad mostra como diferentes abordagens mais recentes contribuiram para construir visões do passado que ultrapassam a fronteira do Estado-Nação. Uma delas, a História Comparada, que busca olhar para similitudes e diferenças entre dois ou mais casos, bem como estabelecer conexões entre eles sempre que possível. Ainda, há a História Transnacional, surgida na década de 90, e que pode ser considerada uma mãe da Global History, pois já procurava abertamente transcender a o Estado-Nação. Adicionamos a teoria dos sistemas-mundo que não busca ver a nação, mas blocos regionais e sistemas como unidades primeiras de análise, enfatizando a integração de mercados (economia-mundo) e a integração política em extensos territórios (império-mundo). E, enfim, os estudos pós-coloniais e as modernidades múltiplas que contribuiram, cada um a sua maneira, para crítica ao eurocentrismo.

No capítulo 4, Sebastian Conrad finalmente oferece ao leitor uma definição de História Global enquanto uma perspectiva particular, distinta dos estudos pós-coloniais, da História Comparada e das modernidades múltiplas. Para ele, há um foco nos contatos e interações que marcam os trabalhos dessa corrente. A palavra-chave mais associada a essa linha é a “conexão”, porém a busca por redes e nexos globais não é suficiente para delimitar o que é História global. A Global History, além disso, explora espacialidades alternativas (parte de uma “spatial turn”), busca entender unidades históricas (civilização, nação, família, etc) sempre em relação a outras e é crítica, ou pelo menos auto-reflexiva, quanto à questão do eurocentrismo. No mais, os historiadores globais se distinguem pelo exame de transformações estruturais em larga escala e pela tentativa de rastrear cadeias causais a nível global. Essas são algumas mudança heurísticas que marcam a passagem dos antigos modelos de História-mundo para a atual História Global.

No quinto capítulo, o autor trata da relação entre História e integração global. Deve-se lembrar que História Global não é uma história da globalização, mas a integração global é o contexto em que o historiador, com essa perspectiva, trabalhará. Obviamente, o impacto das conexões a serem estudadas depende do grau de integração de sua época.

Na parte seguinte, Conrad disserta, em dois capítulos, a respeito do espaço e do tempo. Em primeiro lugar, existem algumas espacialidades privilegiadas para historiadores globais. Os oceanos, por exemplo, permitiram interconexões econômicas, políticas e culturais por toda história humana e as redes, enquanto partes amplas de estruturas de poder, são objetos comuns nesses estudos. Mas nem sempre história global quer dizer narrativas planetárias, é possível fazer uma micro- história do global, se quisermos olhar como processos amplos se manifestam localmente. Dessa maneira, uma consequência imediata de se transcender as fronteiras nacionais é ter que adotar uma outra periodização, é preciso periodizar o passado não só localmente, como também globalmente.

Nos três últimos capítulos, o autor se debruça sobre a questão dos “lugares de fala”, ao observar que, mesmo que historiadores queiram contar uma história global, eles sempre o fazem de uma origem geográfica em particular. Além disso, ele mergulha na noção de “world-making” do filósofo Nelson Goodman. E conclui, num dos capítulos mais interessantes do livro, fazendo uma sociologia da Global History, ponderando os seus impactos políticos, seus desafios e horizontes.

Um dos méritos do trabalho de Sebastian Conrad é encontrar a originalidade de cada abordagem que ele trata, sem perder de vista as semelhanças entre cada uma delas. Como é comum nos bons trabalhos de historiografia e História intelectual, ele consegue estabelecer a relação entre os objetivos de cada escolha metodológica (seu programa) e seus resultados nas obras mais representativas de cada uma, às vezes lançando mão de críticas e apontando os limites de algumas perspectivas.

Ademais, Conrad faz um percurso que coloca a História Global ao lado de suas antecessoras, a insere em seu contexto acadêmico e político e a distingue de outras correntes históricas também avessas ao “nacionalismo metodológico”. Neste sentido, podemos dizer que o autor responde a pergunta do livro “ O que é História Global?” tanto diacronicamente, ao investigar as raízes da Global History até as narrativas ecumênicas de Heródoto e de outros, bem como sincronicamente, ao destaca-la de outras formas contemporâneas de narrativas transnacionais.

Por fim, o autor considera e analisa as diferente maneiras de se fazer História Global, na longa e curta duração, na ampla e pequena espacialidade. Ele enxerga a Global History não como uma tentativa de se fazer uma história de tudo, em escala planetária, mas como um perspectiva que não necessariamente exclui outras abordagens históricas como a marxista, a micro- história, os estudos pós-coloniais, etc. Justamente por ser um paradigma abrangente, talvez a História Global possa se consolidar nos meios acadêmicos do Brasil e do mundo. Como Conrad afirmou em tom otimista no final de seu livro: “O gradual desaparecimento da retórica do global irá então, paradoxalmente, assinalar a vitória da História Global como um paradigma” (p.235).

Notas

1. Além disso, revistas importantes como a American Historical Review e a Past & Present têm cada vez mais publicado artigos nesse campo.

2. Nos Estados Unidos, por exemplo, a História global vem respondendo a demandas de inclusão étnica no âmbito do ensino de História tanto nos níveis escolares quanto no superior. As tentativas (nem sempre sem reações) de substituição de cursos de “Civilização Ocidental” e “História dos Estados Unidos” por cursos de “História Global” vão no sentido de construir narrativas que dêem voz a todo o conjunto de imigrantes que construiram o país. Para um panorama desse debate, ver: ÁVILA, A. L. “A quem pertence o passado norte-americano?: A controvérsia sobre os National History Standards nos Estados Unidos (1994-1996)”, Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p.29-53, jul. 2015.

Filipe Robles – Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: filiperobles@id.uff.br


CONRAD, Sebastian. What is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016. Resenha de: ROBLES, Filipe. Escrevendo e pensando a História globalmente. Cantareira. Niterói, n.28, p. 235-237, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

 

A Aprendizagem Histórica e os usos de Narrativas (Auto) biográficas / História Revista / 2018

A interpretação histórica desemboca em uma forma de saber, na qual a factividade do acontecimento passado se torna narrável; ou seja, estende‐se na forma de apresentação de uma história. As duas coisas não podem ser separadas, exata e absolutamente, em sua sequência.

Jörn Rüsen

O dossiê A Aprendizagem Histórica e os usos de Narrativas (Auto)biográficas, da revista da Faculdade de História e do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, História Revista, reúne artigos relacionados com a aprendizagem histórica, em suas diversas vertentes teórico‐metodológicas, e os usos de narrativas (auto)biográficas, seja na formação de professores de história, seja na práxis escolar na educação básica. Narrativas (auto)biográficas ou narrativas de vida devem ser entendidas para além dos limites da autobiografia escrita, pois o conhecimento não pode ser reduzido a uma representação total ou atomizada de um sujeito, mas sempre como conhecimento de si a partir da inserção em fenômenos sociais coletivos. A experiência de ensino e aprendizagem de história envolve necessariamente as experiências de formação docente, as experiências e práxis escolares, assim como a experiência escolar e a formação discente.

“Nas sociedades desenvolvidas, a escolarização, atualmente, faz parte de toda a experiência de vida. Ela visa primeiramente socializar e desenvolver as capacidades dos indivíduos: nisso ela produz, simultaneamente, o mesmo e o diferente” (BERTAUX, 2010, p. 55). Portanto, neste dossiê da História Revista foram admitidos artigos relacionados com a formação docente baseada em narrativas de si enquanto projetos de formação, assim como relatos de práticas de ensino de história e aprendizagem histórica. Todos ancorados em práticas do uso de histórias de vida – biografias, autobiografias, diários, memórias, etc. – como instrumentos e contextos formativos, analíticos e interpretativos, pois “mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um ‘não eu’ se reconhece como a ‘si própria’.” (FREIRE, 1996, p. 18). Esta estratégia de aprendizagem, que relaciona o ensino de história, a aprendizagem histórica e os usos de narrativas (auto)biográficas, apresenta‐se como necessária nos tempos presentes da modernidade capitalista e conservadora, que naturaliza os conceitos e práticas educativas como instrumental objetivo de construção de um ‘não humano’ – previsível, individualista, consumista –, e portanto infeliz, pela não consciência de si e consequente inacessibilidade à consciência histórica.

O primeiro artigo, intitulado Reminiscências do tempo de escola no ensino de história da educação: autobiografias, memórias e acervos familiares, de autoria de Terciane Ângela Luchese, tem como objetivo pensar o ensino de História da Educação, analisando uma vivência metodológica que se inscreve como inovação pedagógica ao relacionar (auto)biografias, memórias, história oral e acervos familiares com história no campo da educação. O texto resulta de uma experiência realizada pela autora nos últimos cinco anos, que sistematicamente tem trabalhado com o ensino de História da Educação na formação de professores em cursos de graduação em pedagogia, onde a disciplina é obrigatória. As análises dos materiais didáticos e dos registros produzidos nessa experiência docente constituem o campo empírico do artigo que, ancorado nos referenciais da História Cultural, reflete e analisa as potencialidades e os limites do ensino da disciplina de História da Educação. A distância entre a produção de pesquisas no campo da História da Educação e as práticas de ensino inspiradas nesses novos referenciais constitui ponto de reflexão que buscam instigar os acadêmicos e mobilizá‐los intelectualmente para aprender História da Educação com o objetivo de provocar efeitos na qualidade do ensino escolar a partir da experiência formativa narrada e pensada.

Blasius Silvano Debald, é o autor do artigo intitulado Docência e currículo de história por competências: aprendizagem significativa e protagonismo estudantil. O estudo, do qual resultou este trabalho, averiguou a organização curricular por competências do curso de história no Centro Universitário União das Américas, na cidade de Foz do Iguaçú/Paraná, primeira instituição brasileira a aplicar as Metodologias Ativas de Aprendizagem no ensino superior. A problemática investigativa teve como questão norteadora compreender de que forma estrutura‐se o currículo por competências no Curso de História.    A opção metodológica orientou‐se pelos estudos e aplicações no campo educacional da narrativa autobiográfica a partir de pesquisadores considerados clássicos e reconhecidos epistêmica‐ metodologicamente como Gaston Pineau, Daniel Bertaux, Antônio Nóvoa e Maria da Conceição Passeggi, entre outros. Os resultados apresentados indicaram que o currículo por competência centra‐se em conhecimentos que terão aplicabilidade no campo profissional. A produção de aprendizagens significativas e o protagonismo estudantil contribuem para o desenvolvimento da autonomia, rompendo com a dualidade teoria‐prática. As conclusões apresentadas no artigo demonstraram que o estudante que aprende por competências tem maior compreensão das particularidades da profissão escolhida.

Com o título Narrativa, História de Vida e Aprendizagem Histórica, Sandro Luis Fernandes e Maria Auxiliadora Schmidt apresentam o trabalho que tem como foco a análise desenvolvida nas produções de narrativas de uma turma de oitavo ano de Escola da Cidade Industrial de Curitiba (CIC): região ocupada por migrantes a partir dos anos 1970. Um estudo exploratório considerado como a primeira fase da pesquisa ação, detectou a ausência de relações entre a história da localidade e as memórias individuais e coletivas dos alunos. A partir dos resultados obtidos foi dada continuidade à pesquisa ação, adotando‐se estratégias como narrativas autobiográficas, produção de árvore genealógica, entrevistas e pesquisa documental. Elementos obtidos no resultado final indicam a importância de narrativas autobiográficas como referência para o trabalho da aula histórica, cujo objetivo é a formação da consciência histórica, isto é, o autoconhecimento dos alunos, bem como sua relação com a memória e a construção de identidades, para dentro, isto é, a relação consigo mesmo e, para fora, a relação com o outro, na perspectiva da orientação temporal do presente, passado e futuro.

Adriane Sobanski e Rita de Cássia Santos, autoras do artigo Experiências de professores, Ensino de História e o desenvolvimento do conhecimento histórico, discutem teoricamente o papel do professor e de como ele utiliza o seu conhecimento do passado para se desenvolver enquanto professor pesquisador. O texto apresenta discussões teóricas, a partir de aportes bibliográficos e empíricos sobre o desenvolvimento do professor pesquisador e do papel da sua experiência autobiográfica. Além de debater a formação deste profissional e como a perspectiva da Educação Histórica auxilia o desenvolvimento da consciência histórica de alunos, tendo como ponto de partida o reconhecimento de que o professor e suas experiências estão intrinsicamente ligados a um trabalho pedagógico bem desenvolvido. Trata‐se de uma apresentação do resultado de trabalho empírico, realizado pelas autoras, junto a professores da rede estadual de ensino do Estado do Paraná; interpretado teoricamente a partir da produção de autores como Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca, Jörn Rüsen, Peter Lee, entre outros.

Sob o título A cultura histórica como possibilidade investigativa a partir de histórias em quadrinhos (auto)biográficas com personagens históricos latino‐americanos, Marcelo Fronza apresenta um estudo que investiga como a cultura histórica latino‐americana está relacionada com a forma como os jovens tomam o conhecimento para si a partir de histórias em quadrinhos (auto)biográficas. A investigação é estruturada nas relações entre a cultura jovem, as histórias em quadrinhos e a cultura histórica de uma sociedade. Parte da preocupação de compreender os processos históricos vinculados à relação entre a interculturalidade e o novo humanismo, desenvolvido pelo teórico da Educação Histórica Jörn Rüsen; e o princípio da burdening history, proposto por Bodo von Borries, na divulgação dos resultados de suas pesquisas relacionadas com o ensino de história, o qual propõe que o fardo da história pode ser superado pela interpretação multiperspectivada instauradora de controvérsia provida pela autocrítica na teoria da história.  No transcorrer do texto analisam‐ se histórias em quadrinhos que narram experiências (auto)biográficas de sujeitos que enfrentaram e resistiram à escravidão, à violência política e ao racismo na América Latina e participaram dos processos revolucionários de Cuba. O autor, Marcelo Fronza, considera que o gênero (auto)biográfico nos quadrinhos é fundamental para a compreensão da imagem pública dos sujeitos.

Autobiografia, carência de orientação e produção historiográfica: um exercício de meta‐narrativa é o artigo de autoria de Gilmar Arruda, que afirma que uma boa parte da produção historiográfica contemporânea admite a influência da subjetividade do historiador na construção do conhecimento histórico e considera que a autobiografia está sempre presente na formulação das perguntas, métodos, narrativas e explicações no processo de construção do pensamento histórico‐científico. Com base nesse pressuposto, o artigo pretende, em primeiro lugar, ser uma análise de como a autobiografia influenciou a construção da produção de um determinado pensamento histórico‐cientifico a partir da análise de uma tese de doutoramento de 1997; e, em segundo lugar, como o tempo presente do próprio personagem da autobiografia, orientou a análise atual da relação entre autobiografia e pensamento histórico‐científico. O autor pretende demonstrar que a autobiografia é fundamental para compreender a construção do pensamento histórico‐ científico e a aprendizagem histórica dos historiadores, considerando, também, que o artigo é, portanto, uma meta‐narrativa sobre a autobiografia.

Como conclusão do dossiê A Aprendizagem Histórica e os usos de Narrativas (Auto)biográficas, é apresentada a Entrevista com Bodo von Borries, Universidade de Hamburgo – Alemanha (Interview mit Bodo von Borries, Universität Hamburg – Deutschland), realizada e traduzida por Jorge Luiz da Cunha, em setembro de 2016. Bodo von Borries, considerado um dos mais importantes pesquisadores do campo da Didática da História, marca sua produção intelectual e suas práxis de formação de professores a partir da Aprendizagem Histórica, por meio do levantamento e interpretação hermenêutica de narrativas autobiográficas. Trata‐se de importante registro da produção científica e conceitual, relacionada e experienciada pelo entrevistado, entre os conceitos teórico‐ metodológicos do ensino e aprendizagem histórica e as narrativas autobiográficas, como fonte de pesquisa e significação e como metodologia estratégica e transformadora: “História não é ‘passado’, mas ‘a exigência por relatos reais sobre acontecimentos passados, processos, mudanças, desenvolvimentos, que ainda hoje são relevantes para a atualidade e para o futuro” (Bodo von Borries).

As Narrativas (Auto)biográficas são exercício de significação da realidade, em todos os seus contextos, especialmente os históricos. Sendo assim, fazem parte da educação de todos os sujeitos, discentes e docentes, e são fundamentais para a Aprendizagem Histórica – estratégia política de manutenção da condição humana, através da autonomia garantida pela Consciência Histórica. Uma “opção epistêmico‐política, ancorada na pesquisa (auto)biográfica de formação e pesquisa, tem possibilitado entender a formação como uma disposição centrada no sujeito que aprende a partir de suas próprias histórias e trajetórias de vida‐formação, entendendo a formação como uma construção de sentido” (SOUZA, 2018, p. 109).

Referências

BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. Tradução Zuleide Alves Cardoso Cavalcante, Denise Maria Gurgel Lavallée. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

SOUZA, Elizeu Clementino de. Autobiografia como acontecimento: vida, pesquisa e formação. In: ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto et al. (Orgs.). A nova aventura (auto)biográfica. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2018.

Jorge Luiz da Cunha –  Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. E-mail: jlcunha11@yahoo.com.br 

Maria da Conceição Silva –  Universidade Federal de Goiás – UFG.  E-mail: mariacsgo@yahoo.com.br


CUNHA, Jorge Luiz da; SILVA, Maria da Conceição. Apresentação. História Revista, Goiânia- GO, v. 21, v. 23, n. 2, mai/ago, 2018. Acessar publicação original [DR]

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A emergência da escola | José Gonçalves Gondra

José Gonçalves Gondra é professor titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com Mestrado e Doutorado em Educação. Pesquisador na área de História da Educação, escreveu “A emergência da escola” como resultado de uma pesquisa realizada no âmbito do Núcleo de Ensino e Pesquisa em História da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEPHE/UERJ), integrado pelos pesquisadores Marina Natsume Uekane, Giselle Baptista Teixeira, Daniel Cavalcanti de Albuquerque Lemos, Pedro Paulo Hausmann Tavares, Pollyanna Gomes Pinho, Inára Garcia e Angélica Borges, citados como coautores do texto.

O livro é dividido em 5 capítulos. O primeiro deles é intitulado “O governo das multidões”; o segundo, “A instrução reformada”; o terceiro trata do “Governo dos professores”; o quarto do “Governo das aulas”; e, por fim, o quinto capítulo que tem como título “Um governo para si”. Cabe ainda destacar a transcrição literal de documentos em anexo, podendo servir para futuras pesquisas na área de História da Educação. Trata-se do Regulamento da Província do Espírito Santo (1848), o Regulamento da Província do Rio de Janeiro (1849), o Regulamento da Corte (1854), Cartas do professor da roça (1864) e Manifesto dos Professores Públicos da Instrução Primária da Corte (1871). Leia Mais

Contribuição à crítica da historiografia revisionista – SENA JÚNIOR (RTF)

SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de; MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto Grassi (Org.). Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017. 380 p. Resenha de: CASA GRANDE, Dirceu Junior. “Boa memória” e “conciliação”: a crítica da historiografia revisionista no Brasil. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 1, jan.-jul., 2018.

A História e a memória não se equilibram mais entre a lembrança e o esquecimento. Tomadas de assalto nos dias atuais, lutam agora contra um espectro ainda mais obsedante, o silenciamento. O livro organizado por Carlos Zacarias de Sena Júnior, Demian Bezerra de Melo e Gilberto Grassi Calil, Contribuição à crítica da historiografia revisionista, publicado pela Consequência Editora em 2017, é mais um esforço de resistência às tentativas de amordaçar a História. Avessos a ideia de “conciliação” e construção da “boa memória”, o tema do revisionismo historiográfico é abordado por autores que escolheram combater aqueles que trabalham para apropriar-se do ofício de lembrar e impor versões definitivas para fatos e acontecimentos polêmicos e conflituosos.

Esta nova obra é o desdobramento de um trabalho anterior de crítica historiográfica, que reuniu textos de inúmeros historiadores no livro, A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo, organizado por Demian Bezerra de Melo, publicado 2014. O novo conjunto de textos deu sequência às críticas historiográficas e aos debates em torno das apropriações do passado propostas por “revisões” de caráter meramente apologéticos. Não pode haver “conciliação”, assim como não existe a “boa” ou a “melhor” memória. As “revisões” apologéticas não passam de impulsos ideológicos que tem como objetivo habilitar ou reabilitar versões que não possuem nenhuma base teórico-metodológica viável ou qualquer proposição inovadora. Como alertou Virginia Fontes no prefácio da obra, “vivemos tempos em que se propõe ‘escolas sem partido’, impondo uma pretensa neutralidade para aniquilar o formidável conhecimento sobre a historicidade humana, a democracia e a revolução” (2017, p. 15).

O primeiro artigo do livro, intitulado “Revisão e Revisionismo”, foi escrito pelo historiador italiano Enzo Traverso. Em seu texto, o autor estabeleceu uma tensão entre ambos os conceitos e o ofício do historiador. O objetivo é refutar o perspectivismo, as tendências apologéticas e os usos públicos e inconsequentes das narrativas historiográficas. Conforme avaliou Traverso, o ofício do historiador consiste em criticar os fatos e os acontecimentos e revisar as versões com base na descoberta de novas fontes e documentos desconhecidos ou inexplorados. A crítica avalia o trabalho empreendido pelos pares e a revisão abre novas possibilidades de compreensão da História – com seus métodos e procedimentos – e do passado.

As conclusões das críticas e revisões historiográficas devem contribuir para ampliar os conhecimentos históricos, não silenciá-los. Quando porém, os historiadores relativizam aquilo que sabemos sobre um evento histórico com o objetivo de estabelecer uma nova perspectiva sobre ele ou direcioná-lo para usos públicos específicos como a ação política, ultrapassam os limites da pesquisa e da elaboração do conhecimento histórico-científico, incorrendo naquilo que Traverso denominou “revisionismos”.

Nesses processos, os revisionistas nunca utilizam uma nova fonte ou um documento inédito. Via de regra, promovem uma “viragem étnico-política” (p. 32) nos modos de enxergar e lidar com um fato ou acontecimento e elaboram narrativas com “tendências apologéticas” bem demarcadas. Os objetivos são o convencimento de indivíduos, a formação de públicos cativos, a imposição de versões pretensamente definitivas ou hegemônicas e a desconstrução inadvertida das teses marxistas.

Os revisionistas ignoram que os conhecimentos que possuímos do passado são sempre frágeis e temporários, dadas as características precárias e instáveis da História.

As críticas e revisões historiográficas normalmente suprem essas fragilidades dirimindo conflitos, desfazendo equívocos, esclarecendo e ampliando o conhecimento histórico.

Nesses casos, os trabalhos de revisão dão conta de atender expectativas de conhecimento e abrir novas possibilidades de análise, tornando a História mais fecunda. Na contra mão desses processos, as “revisões” apresentam, em suma, duas características marcantes em relação aos seus “métodos” e “conteúdos”: ou são inteiramente discutíveis ou inevitavelmente nefastos.

Mas, assim como o historiador conhece os limites e as possibilidades do seu trabalho e as implicações que suas teses podem produzir, os “revisionistas” conhecem perfeitamente os objetivos que desejam atingir e os caminhos que precisam percorrer para impor suas perspectivas. O primeiro passo é a afirmação de uma ortodoxia, de uma crença inabalável ou uma ideia fixa sobre um conjunto de fatos e acontecimentos. O segundo passo é a eliminação do diálogo e da discussão mediante o uso deliberado de práticas inquisitoriais ou estratagemas para vencer um debate sem ter razão. O terceiro passo consiste na excomunhão dos divergentes e na eliminação daqueles que defendem o caráter fecundo da História. Esses são os expedientes que dão voz e “razão” tanto aos historiadores oficiais quanto aos revisionistas. Ambos agem ideologicamente para partidarizar a História e polarizar as discussões sem trazer, no entanto, nada de novo para o debate.

As estratégias dos “revisionistas” consistem essencialmente em projetar para o primeiro plano lembranças vagas do passado e introduzir aspectos difusos da memória coletiva como instrumentos de avaliação dos acontecimentos, não de análise. O objetivo é acumular “vantagens” no debate público e obter a primazia do lembrar e do revelar.

Os métodos historiográficos são sumariamente descartados em favor de interpretações ideológicas, partidárias e relativistas. O que prevalece são falas generalizantes e radicalizadas que celebram ficções, reabilitam indivíduos, restituem ações ou validam versões e perspectivas detestáveis. O resultado são versões apologéticas cujas cores revelam os matizes de uma “ordem” falsamente estabelecida e supostamente inquestionável ou “novas verdades”, aparentemente revigorantes e esclarecedoras.

O livro conta com o prefácio de Virginia Fontes e uma introdução redigida pelos organizadores da obra, além de outros dez capítulos. Os três primeiros textos estão agrupados em uma parte denominada, “Ditadura e Democracia”. Outros quatro artigos foram reunidos em uma parte chamada “Revolução e Contrarrevolução”. E finalmente, os três últimos capítulos compõem uma parte que recebeu o título de “Capitalismo e Luta de Classes”. Nos referidos textos, os autores avaliaram as versões revisionistas sobre o golpe de 1964 e o período ditatorial que ele inaugurou, as revoluções portuguesa e russa e as teses do revisionismo conservador sobre o totalitarismo e o fascismo. Na terceira parte, revolução industrial, capitalismo e luta de classes, segregação urbana, criminalidade e banditismo são os temas dos últimos capítulos do livro.

No primeiro capítulo do livro, A “boa memória”: algumas questões sobre o revisionismo na historiografia brasileira contemporânea, Carlos Zacarias de Sena Junior aponta para a existência de uma “guerra de memória” (p. 63). Mais uma vez, as “revisões” apologéticas, ao insistirem na relativização do golpe de 1964, propõem um perspectivismo sutil para discutir temas singularmente polêmicos. Nessa dinâmica, a historiografia sobre o golpe e a ditadura que se seguiu, passaram a figurar entre os objetos preferidos dos “revisionistas”, empenhados na ressignificação dos eventos. Não por acaso, assim como ocorreu com outros temas polêmicos da História, como as revoluções francesa, portuguesa e russa, o resultado das versões seletivas sobre 1964 revelam reminiscências e ideologias políticas, mas não contribuem com a fecundidade do conhecimento histórico. Isso é o que facilita sua absorção pelos leitores desavisados ou pelos ouvintes cativos, bem como, favorece a consequente condenação de todas as teses que contrariam as expectativas dos adeptos das “revisões”.

Para Gilberto Grassi Calil, que escreveu o capítulo intitulado Elio Gaspari e a ditadura brasileira, o jornalista foi capaz de converter conspiradores, golpistas e torturadores em lideranças políticas bem intencionadas e austeras, além de transformar vítimas em culpados. Em uma perspectiva ainda mais apologética e centrada na ação de grandes personagens como o ex-presidente Ernesto Geisel e o General Golbery, o jornalista Elio Gaspari nos revelou uma visão suavizada da ditadura. Sua amizade com os personagens demonstram como a intimidade do autor com os atores de uma trama podem contaminar irremediavelmente a narrativa. Gaspari promoveu um abrandamento descarado da ditadura, restringindo-a temporalmente, absolvendo atores importantes, como o empresariado e os agentes norte-americanos, atribuindo à esquerda parte da culpa pelos rumos que os acontecimentos tomaram, elaborando uma versão parcial dos fatos sem qualquer tipo de apoio documental mais robusto.

Quando a paixão dirige o trabalho historiográfico, os resultados são “vertiginosas piruetas intelectuais” (p. 113), penduradas em tentativas para produzir conciliações e consensos políticos ou justificar atos de violência ostensiva. Eurelino Coelho analisou o trabalho de Ângela Castro Gomes e Jorge Ferreira, O livro de 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Na tentativa de compreender a vitória dos golpistas civis e militares, os autores utilizaram um tempo verbal estranho ao trabalho do historiador, argumentando que, “se os personagens históricos tivessem se comportado de outra maneira… outra teria sido a história” (p. 117). Como é possível realizar uma revisão historiográfica no futuro do pretérito, questiona Eurelino? Mesmo existindo alternativas à disposição dos atores, eles fazem suas escolhas. Portanto, a história que deve ser contada é essa, centrada nas escolhas dos atores e não em possibilidades remotas do que poderia ter sido, e não foi.

A obra avança e os demais artigos do livro discutem amplamente as ideias e contextos de temas como Revolução e Contrarrevolução. Manuel Loff e Luciana Soutelo descrevem como as revisões sobre esses temas promoveram a suspensão do conceito de revolução e igualaram o fascismo e o comunismo para atribuir aos regimes totalitários um viés exclusivamente de esquerda. O objetivo dessas revisões, esclarecem os autores, é a legitimação do liberalismo ocidental, sua desideologização e naturalização históricas. As ressignificações do fascismo, a negação dos conflitos de classes e o abrandamento das ações da direita conservadora abriram caminho para a permanência dos discursos fascistas na sociedade atual. Ao analisar o que foi escrito pela imprensa nos períodos de transição da ditadura para a democracia, Carla Luciana Silva descreveu as atitudes e práticas totalitárias que resistiram ao fim dos períodos autoritários e permanecem virtualmente cativantes atualmente, tal como ocorreu em Portugal e Espanha pós-Salazar e pós-Franco, respectivamente.

Tatiana Figueiredo, por sua vez, avaliou o “revisionismo” histórico a partir da relativização do conceito de revolução, o qual passou a ser identificado pelos “revisionistas” como um caminho para a servidão e o terror, menosprezando conteúdos políticos, além da vontade e da participação popular nesses eventos. A autora criticou a elaboração de arquétipos e constatou que os movimentos que derrotaram a opressão e o terror, logo foram classificados da mesma forma. Na avaliação de Figueiredo, os revisionistas obscureceram o caráter antiautoritário das revoluções para promover novas formas de organização social e política, justificar atos extremos de violência, isentar de culpa empresários, políticos e intelectuais, além dos grandes monopólios empresariais, tal como ocorreu com os colaboradores do nazismo na Alemanha do pósguerra.

Na última parte do livro, “Capitalismo e Luta de Classes”, os autores destacam que o fortalecimento das teses “revisionistas” não geraram somente prejuízos para historiografia e para o conhecimento histórico. O predomínio dessas perspectivas com seus abrandamentos, reducionismos, generalizações e pregações otimistas sobre os avanços e o desempenho da democracia e da economia de mercado, escondem problemas mais sérios como as desigualdades sociais, a segregação urbana, a criminalidade, o banditismo e a violência. O empenho desses revisionistas, agrupados no que se convencionou chamar de “escola otimista”, reforçou as teses conformistas e a ideologia da sociedade de uma “classe só”, como sublinha Igor Gomes no último capítulo do livro (p. 331). De acordo com os autores do livro, paira sobre a História, suas pesquisas e narrativas, uma imensa nuvem de silêncios, todos discutíveis e nefastos.

Dirceu Junior Casa Grande – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP-Assis-SP e Docente da área de Ciência Humanas e Sociais da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR-Câmpus Cornélio Procópio-PR. Endereço profissional: AV. Alberto Carazzai, 1640 – Cornélio Procópio-PR – CEP-86300-000. E-mail: dirceujunior@utfpr.edu.br.

O longo século XIX e as estratégias em economia, política e sociabilidades / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2018

A CLIO: Revista de Pesquisa Histórica tem uma longa tradição na publicação de estudos sobre os oitocentos, e recebemos sempre artigos livres sobre o período. Neste volume, apresentamos aos leitores alguns artigos recebidos que tem em comum o estudo do século XIX, abordando estudos sobre economia e crédito, sobre política liberal e sobre sociabilidades. De uma forma não tão sutil, o leitor verá que os estudos se imbricam em várias questões, como a escravidão e a discussão sobre o trabalho, as estratégias do mercado para conseguir capitais que financiassem atividades econômicas para além da economia de exportação, tudo isso permeado pela discussão política na qual o liberalismo aparece como matriz ideológica, apesar da diversidade de posições que poderia encetar.

Nesse sentido, apresentamos aos leitores o artigo de Andréa Lisly Gonçalves, As “várias Independências”: a contrarrevolução em Portugal e em Pernambuco e os conflitos antilusitanos no período do constitucionalismo (1821-1824), no qual objetiva refletir sobre a complexidade das opções políticas, na província de Pernambuco, tomando como recorte temporal a conjuntura da Independência do Brasil. Andrea argumenta que as ações e debates ocorridos em Pernambuco “não se esgotam com o debate historiográfico sobre o alinhamento com Lisboa (“a outra independência”) ou com o Rio de Janeiro (“a mesma independência”)”, estimulando, assim, os estudos e pesquisas para compreender como os atores políticos definem suas estratégias a partir de conjuntura e interesses específicos e locais.

O artigo de Leonardo Milanez de Lima e Leandro Renato Leite Marcondes, “Capital nativo e estruturação produtiva na praça do Recife: crédito hipotecário entre 1865 e 1914”, tem como ponto de partida a questão sobre como se financiavam as atividadeseconômicas no Recife frente à diminuição do ritmo de crescimento da economia pernambucana, com a perda do mercado consumidor de açúcar e algodão. Ao compulsarem uma vasta documentação sobre contratos de hipoteca registrados em cartórios do Recife, buscam compreender a dinâmica e as características do crédito hipotecário recifense.

O artigo demonstra que o crédito foi disponibilizado majoritariamente a partir de poupanças nativas, que deram suporte à expansão da rede de serviços públicos da cidade, mantiveram o funcionamento do comércio e financiaram indústrias. A mesma questão foi proposta por Vitória Schettini de Andrade, em seu artigo, “A alocação da riqueza na zona da mata mineira. São Paulo do Muriahé, 1846-1888.”. A fim de entender essa região de forma mais complexa, o artigo objetiva analisar a alocação da riqueza produzida em São Paulo do Muriahé, durante meados a finais do século XIX, momento em que a autora constata na documentação consultada, principalmente inventários, um crescimento econômico, baseado, sobretudo na produção de gêneros agrícolas, como milho, cana de açúcar e mais tarde o café. Estes produtos foram fundamentais para o acúmulo de capital e o ingresso de Muriahé numa economia mais dinâmica. O estudo demonstra as estratégias de outras aplicações monetárias que são percebidas ao final da escravidão, o que nos projeta para uma sociedade em franca mudança e crescimento.

As estratégias também são perceptíveis no estudo de Gabriel Navarro de Barros, “Muito além do abandono: infâncias perigosas e a “justiça tutelar em Pernambuco (1888-1892).”. O estudo tem por objetivos analisar a atuação da justiça tutelar diante do universo de meninas e meninos compreendidos pelo Estado como “potencialmente perigosos”, em Pernambuco. Ao analisar as fontes jurídicas e jornais, o autor sugere uma reflexão sobre o conceito de abandono, muitas vezes aplicado de forma estratégica. Nesse sentido, o artigo permite compreender a diversidade de categorias de infantes na época, reconhecidas pela justiça e por instituições assistenciais a fim de identificar uma variedade de meninos e meninas como “riscos sociais”. Uma forma de manter controle sobre a mão de obra? Estratégias também parece ser o conceito que explica o estudo de Ipojucan Dias Campos, no artigo “Divórcio, conjugações acusatórias e laços de solidariedade (Belém, 1895-1900).”. O autor demonstra como laços de solidariedade e de conjugações acusatórias, ao analisar processos de divórcio em Belém, foram estratégias centrais nessas ações. As reflexões concentraram-se em descortinar como pessoas próximas aos divorciandos se posicionavam no seio dos desarranjos conjugais, formando laços de solidariedade e, ao mesmo tempo, corroborando à formação de conjugações acusatórias. Assim sendo, amigos, parentes, vizinhos foram convidados, recorrentemente, a darem suas versões a respeito da vida a dois de seus conhecidos.

Uma pequena amostra da complexidade que perpassa os oitocentos, e que não deixam de instigar novas pesquisas.

Isabel Guillen

Augusto Neves

Isabel Guillen – Editora da Revista. Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: icmg59@gmail.com

Augusto Neves – Vice-editor da Revista. Professor da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: augustonev@gmail.com


GUILLEN, Isabel; NEVES, Augusto. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.36, n.1, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Discursos políticos na Época Moderna: produção, circulação e recepção / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2018

O homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon) [1], conforme afirmou Aristóteles em uma célebre passagem do capítulo II, do livro I da Política. A principal razão da natureza política do homem reside em sua capacidade de se comunicar através das palavras, ainda de acordo com o filósofo grego. Enquanto outros animais, como por exemplo as abelhas, são capazes de expressar dor ou prazer, os homens, graças à sua habilidade de fazer uso das palavras, podem ir muito além desta expressão rudimentar de sensações básicas e compor discursos que servem para “tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” [2]. Finalmente, é a capacidade unicamente humana de discernir entre justo / injusto e bem / mal que possibilita a existência da família e da cidade, estágios prévios da existência da comunidade política. Assim, na concepção aristotélica, é a associação direta entre política e discurso que compõe um dos traços mais fundamentais da natureza humana. Através do discurso, os homens comunicam ideias, valores, ideologias, interesses, projetos, sonhos e utopias. Através do discurso, os homens geram consensos ou dissensos, ambos vias essenciais de concretização da vida política. A temática geral deste dossiê é precisamente a diversidade de abordagens e análises do discurso político na Época Moderna.

E o que os homens comunicam em seus discursos políticos? Quais são os assuntos tratados nestes discursos? A reflexão filosófica entende como temas clássicos da política as estruturas e as formas de governo, as fontes de poder, a legitimidade do governo, os direitos e os deveres dos membros de uma comunidade, o caráter das leis, a natureza e os limites da liberdade, a obrigação política e a natureza da justiça. Em suma, são temas essencialmente políticos todas as problemáticas suscitadas pela organização dos seres humanos em sociedade, especialmente, aquelas diretamente relacionadas às causas, às razões e à legitimidade do arbítrio de um grupo de homens sobre os outros. Contudo, o próprio campo da reflexão filosófica é célere em afirmar o quão tênues são os limites que separam a política de outras áreas de investigação como as questões éticas, morais, sociais, econômicas e de antropologia filosófica. Essa frágil demarcação acerca de assuntos de ordem política multiplica a existência de temas que podem ser legitimamente considerados de caráter iminentemente político [3].

A reabilitação da história política pela historiografia[4], operada na década de 1980, deu-se exatamente a partir da flexibilização do entendimento do que configuraria o terreno dos fenômenos políticos por excelência. O âmbito da história política dilatou-se em diversas direções, indo muito além dos recortes tradicionais como, por exemplo, a história dos grandes personagens e a história da diplomacia, temas clássicos da velha história política que vinha sendo rechaçada desde os momentos inicias do surgimento da Escola dos Annales na França [5]. Vários movimentos confluíram para alcançar este resultado nos anos 1980 e, sem dúvida, merece destaque o papel exercido pela reflexão foucaultiana acerca da natureza fluída e polimórfica do poder [6] que contribuiu inquestionavelmente para a expansão das fronteiras da História, bem como para a compreensão da diversidade das experiências humanas ao longo dos tempos. Convém, contudo, recordar aqui a crítica precisa, feita por Emília Viotti da Costa, de que algumas análises, oriundas de uma interpretação simplificada e parcial da obra de Foucault, falharam em esclarecer os mecanismos através dos quais o poder se institui, se perpetua e se transforma, apesar de identificarem a multiplicidade de lócus a partir dos quais o poder é exercido, pois, afinal, “Quando o poder está em toda parte, acaba por não estar em lugar nenhum” [7].

Os signos da vida política passaram a ser localizados onde antes não eram percebidos e, assim, os historiadores passaram a estar cientes da presença do elemento político a despeito do assunto investigado. Esse movimento só pôde ser efetuado porque a realidade social foi compreendida a partir de seu polimorfismo político. Entretanto, não somente a uma ampliação de temas se deve a renovação da história política, mas também ao diálogo estabelecido com outras disciplinas, sobretudo a antropologia [8], e outras vertentes historiográficas, como a microhistória, a history from bellow e a história social. Destes colóquios interdisciplinares resultaram novas técnicas e metodologias aplicadas agora a velhos e novos temas. No campo da História Moderna – seara de pesquisa a qual se dedicam os artigos que compõe esse dossiê – essas mutações da história política originaram toda uma nova concepção da vida política na época Moderna, da gênese do Estado Moderno e das revoltas e revoluções que permearam o período [9] . Estas novas concepções dos fenômenos políticos modernos ensejaram igualmente a necessidade de outras abordagens teórico-metodológicas das quais algumas possibilidades em voga são: o emprego do método prosopográfico para o estudo das elites e das redes de compadrio – em alta nos estudos coloniais –, as análises sobre a cultura política de um grupo ou de uma determinada região e, finalmente, as investigações acerca dos discursos políticos.

A proposta teórico-metodológica mais corriqueira acerca da análise dos discursos políticos é aquela identificada com os pressupostos formulados pela chamada Escola de Cambridge, rebatizada por Quentin Skinner de enfoque collingwoodiano [10]. O enfoque collingwoodiano, do qual são autores emblemáticos Quentin Skinner e John Pocock, beneficiouse de um profícuo intercâmbio com a filosofia da linguagem de Wittgenstein e com a teoria dos atos de fala de Austin. A partir de então, os autores definiram o contexto em sua especificidade linguística, na qual importa interpretar as proposições da teoria social e política produzidas ao longo da história. Todavia, é claro que as propostas de análise do discurso político não foram e não são fomentadas apenas em língua inglesa, tampouco esgotam suas possibilidades de concretização em torno do enfoque collingwoodiano, como bem o comprovam os artigos presentes nesse dossiê, que adotam variados modelos de percepção, análise e interpretação dos discursos políticos.

Os trabalhos aqui reunidos podem ser agrupados em cinco eixos temáticos distintos: 1) as controvérsias teológico-jurídicas, 2) a publicística e a disputa pela opinião pública, 3) a circulação de textos e a cultura impressa, 4) o vocabulário político e suas transformações semânticas e, finalmente, 5) a dimensão política da escrita da história. Em relação ao recorte espaço-temporal, os textos se organizam em três grupos: o conturbado contexto britânico e de sua colônia americana no século XVII, assunto ainda pouco desbravado pela historiografia brasileira; a América portuguesa nos séculos XVII, XVIII e XIX; e o agitado Portugal do século XVII. Salta aos olhos o fato de que, em um total de oito artigos, seis sejam circunscritos ao século XVII, o século que suscitou, e ainda suscita, um acalorado debate sobre a crise na Europa [11], o século da convulsionada cultura do Barroco tão magistralmente descrita por José António Maravall [12], igualmente alvo de polêmicas. Querelas historiográficas à parte, o século XVII de fato vivenciou uma série de alterações que modificaram os arranjos político-institucionais, os estilos de comunicação política, o vocabulário e a semântica política e as formas de participação na vida política. Todas estas facetas foram diligentemente contempladas nos artigos aqui reunidos.

Assim, Carlos Ziller Camenietzki, em um belo exercício de história intelectual, aborda as transformações nos arranjos político-institucionais ao longo dos seiscentos, ao examinar as tensões inerentes à formação do Estado Moderno em Portugal, através da análise de uma controvérsia teológico-jurídica. Os diversos estilos de comunicação política – que apontam para relevantes matérias como a publicística moderna e a fulcral questão da existência de uma esfera pública para além dos moldes habermasianos – são contemplados nos artigos de Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro e Daniel Saraiva. Este último também efetiva uma importante reflexão sobre a participação das camadas populares na vida política de Portugal. Já Verônica Calsoni Lima, ainda dentro do universo dos estilos de comunicação política, explora o universo da cultura escrita seiscentista ao analisar o trânsito de correspondências, a publicação e a circulação de livros dos dois lados do Atlântico, entre a Velha e a Nova Inglaterra. Coube a Jaime Fernando dos Santos Junior esquadrinhar, no âmbito britânico seiscentista, as mudanças no vocabulário e na semântica política, ao investigar a historicidade e as disputas em torno do conceito de Commonwealth que mais do que uma mera disputa semântica, representavam a defesa de distintos projetos políticos, como esclarece Santos Júnior. Concluindo as reflexões sobre os aspectos políticos do século XVII, temos o artigo de Bruno Boto Martins Leite, o qual examina a reflexão teórica sobre a escrita da história do fidalgo português Francisco Manuel de Melo. Sublinhando o panorama ilustrado por Melo acerca das diversas possibilidades cabíveis à escrita da história de seu tempo, Leite afirma que para o erudito português o discurso histórico apenas ganharia pleno sentido em sua acepção como instrumento de uso político.

As diversas facetas políticas da escrita da história na América Portuguesa reúnem os dois derradeiros artigos deste dossiê. Kleber Clementino examina as múltiplas temporalidades presentes na obra historiográfica de Varnhagen, com ênfase no contraste de diferentes modelos historiográficos em vigência nos séculos XVI e XVII, especificamente: a história perfeita renascentista e a história política associada às teorias da razão de Estado. O exame da obra de Varnhagen é utilizado como pretexto, por Clementino, para compor sua tese sobre a história da histografia na Época Moderna, sustentando que Varnhagen não representaria o início da moderna historiografia crítica no Brasil e, tampouco, a origem da história da historiografia no Ocidente poderia ser situada no oitocentos. Marcone Zimmerle Lins Aroucha, ao investigar duas licenças presentes na História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, indica a fisionomia composta da escrita da história no mundo português do século XVIII, sugerindo que esta fisionomia deve-se ao embate entre paradigmas narrativos e teóricos distintos. Aroucha, incorporando a dimensão política da escrita da História na época moderna, avalia conteúdo e forma da obra de Rocha Pitta a fim de averiguar a instrumentalização política da mesma. Ambos os artigos – bem como o trabalho de Verônica Calsoni Lima – transitam com fluidez entre os universos intelectuais que se constituem dos dois lados do Atlântico. Este livre trânsito sinaliza um aspecto caro à historiografia contemporânea que, no ímpeto de libertar-se das amarras de uma narrativa nacionalista, coloca ênfase na circulação não apenas de bens e pessoas, mas também de ideias, comportamentos e valores. Circulação esta que se daria em constante processo de retroalimentação, estando apta a alterar tanto os contextos europeus quanto os contextos americanos, como afirma Carlos Zeron [13].

Desejamos que a leitura deste dossiê forneça informações sobre os contextos e conteúdos analisados, da mesma maneira que suscite questionamentos sobre as temáticas apresentadas, conduzindo assim ao fomento de novas investigações. Na cena política contemporânea, em que assistimos à progressiva banalização e ao esvaziamento intelectual dos discursos políticos, esperamos que as análises aqui reunidas sirvam de contraste e recordem a afirmação basilar de Aristóteles sobre um dos aspectos cruciais da natureza humana ser precisamente a capacidade de comunicação política. Aproveitamos também para agradecer a todos e todas envolvidos na elaboração deste dossiê, especialmente aos autores e aos pareceristas. Boa leitura!

Notas

1. A tradução bilíngue que utilizamos emprega a palavra “político”, ao invés de “social”. A justificativa é que a palavra político representa melhor a inserção de todo ser humano na polis, a mais abrangente e superior forma de vida comunitária. Conforme, nota do tradutor: “O termo político (politikon) deve ser tomado na estrita acepção de “cívico”, isto é “participante da vida da cidade”, e não no sentido demasiado lato e fluído de “social”. In: ARISTÓTELES. Política; edição bilíngue. Tradução: António Campelo Amaral e Carlos Gomes. Lisboa: Vega, 1998. p. 595.

2. Ibidem, p. 55.

3. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

4. É certo que não devemos ser ingênuos e acreditar que apesar de um boom da história social e econômica, especialmente na França e na Inglaterra, a história política tenha sido completamente alijada da atenção historiográfica.

5. A coletânea organizada por René Rémond é um forte indício desse movimento. Ver: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

6. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão Roberto Machado, 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

7. COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida: 1960-1990. In: COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: Editora da Unesp, 2014. p. 15.

8. O diálogo com a antropologia propiciou um entendimento diferenciado acerca do que pode ser compreendido como cultura. Esta compreensão foi fundamental para o campo de investigação da cultura política.

9. Cf. GIL PUJOL, Xavier. Tiempo de Política; Perspectivas historiográficas sobre la Europa Moderna. Barcelona: Publicacions i Edicions, Universitat de Barcelona, 2006.

10. JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual. In: JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs). História dos Conceitos: Debates e perspectivas. Rio de janeiro: Editora PUC- Rio, Edições Loyola, IUPERJ, 2006, pp. 09-38, p. 11.

11. ASTON, Trevor (ed.). Crisis in Europe; 1560 – 1660. New York: Routledge, 2011.

12. MARAVALL, José Antonio. La Cultura del Barroco. Barcelona: Ariel, 1990.

13. Cf. ZERON, Carlos. Prefácio. In: GALERA, B.; SOALHEIRO, B.; SALGUEIRO, F.; VELLOSO, G.; SAENS, L.; LARA, L.; TORIGOE, L.; BERNABÉ, R. Exercícios de metodologia da pesquisa histórica. São Paulo: Casa & Palavras, 2015.

Camila Corrêa e Silva de Freitas

Rachel Saint Williams

Camila Corrêa e Silva de Freitas – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: camilacorreaesilva@gmail.com

Rachel Saint Williams – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou Pós-doutoramento pelo programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo. E-mail: lwllsrachel@yahoo.com.br


FREITAS, Camila Corrêa e Silva de; WILLIAMS, Rachel Saint. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.36, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Variedades de História do Trabalho | Mundos do Trabalho | 2018

Esta edição especial de Mundos do Trabalho reúne artigos e resenhas que elucidam, cada um a seu modo, a vitalidade e os caminhos recentes da história e da historiograia do trabalho. As contribuições (algumas delas apresentadas no V Seminário Internacional Mundos do Trabalho – “Trabalho, democracia e direitos”, realizado em Porto Alegre entre 25 e 28 de setembro de 2018) demarcam, inequivocamente, um discurso histórico crítico e engajado, que pauta o dossiê “Variedades de História do Trabalho”. Afora a diversidade de temas explorados em cada artigo, o dossiê convida-nos a reletir seriamente sobre os desaios políticos, sociais e teóricos que se impõem à construção de abordagens mais sensíveis às diferenças e desigualdades raciais, de gênero, de classe e suas interrelações (experiências que constituem o alvo privilegiado de um campo da ciência histórica preocupado com o social, sendo este o elemento a caracterizar uma prática historiográica genuinamente crítica1 ), sem perder de vista a enredada problemática do global, das escalas e suas conigurações na abrangência da dinâmica espaço-temporal. Leia Mais

Poder, trabajo y rebelión en el mundo rural del siglo XIX | Claves – Revista de Historia | 2018

En este tema central se propuso reunir colaboraciones que abordaran las relaciones entre las formas de ejercicio del poder y la autoridad en diferentes medios rurales durante el siglo XIX, considerando las transformaciones que se produjeron en las formas de trabajo y las manifestaciones de rebeldía, cuestionamiento e impugnación que se produjeron entre las poblaciones campesinas. Sabíamos que una convocatoria de este tenor implicaba afrontar varios desafíos, sobre todo porque suponía atender a muy distintas perspectivas desarrolladas desde la historia económica, la historia política, la historia de la justicia o la antropología histórica, entre otras. También, porque implicaba reconsiderar desde nuevas miradas y conocimientos algunos problemas clásicos de la historia social.

Sabido es que los estudios históricos de los mundos rurales iberoamericanos pasaron por diversas fases, cada una de las cuales no solo aportó un bagaje creciente de conocimientos, sino que también abrió nuevos interrogantes. Sin embargo, un repaso de la abundante bibliografía de las últimas décadas permite advertir que esos estudios cobraron mayor densidad e incidencia en otros campos del saber histórico cuando convirtieron al análisis local o regional en su primordial escala de observación. Las implicancias de ese cambio de perspectivas analíticas fueron vastas. Entre ellas no puede dejar de mencionarse que los enfoques generales, que uniformaban y simplificaban realidades y transformaciones extremadamente diversas, fueron siendo desplazados para iluminar un variopinto espectro de situaciones y procesos de cambio irreductibles dentro de un esquema interpretativo unidireccional. También, que el foco de atención fue dejando de estar centrado casi exclusivamente en el análisis de las grandes explotaciones agrarias, un capítulo central y decisivo en el desarrollo de la historia agraria durante las décadas de 1960 y 1970.1 Leia Mais

Trabalho doméstico: sujeitos, experiências e lutas | Mundos do Trabalho | 2018

Nas últimas décadas, muito foi discutido, entre historiadores sociais brasileiros e estrangeiros, sobre as renovações ocorridas no campo da História Social do Trabalho. Em já conhecidos balanços historiográicos reconheceu-se o fato de que, após um período de crise nos anos 1990, os estudos acadêmicos reunidos em torno da História do Trabalho, no Brasil e no mundo, aumentaram em termos de pesquisas e publicações e passaram por signiicativas mudanças nas primeiras décadas do século XXI.1 De modo geral, tais transformações foram marcadas por uma ampliação de temas e problemas e por uma abertura para novos métodos e abordagens. No Brasil, até os anos 1980, aproximadamente, pode-se dizer que se predominou o interesse pelo movimento operário e pelas relações dos trabalhadores organizados com o patronato e o Estado, a partir daquele momento, a historiograia do trabalho passou a abranger também outras dimensões das experiências dos trabalhadores, as quais envolvem, por exemplo, o cotidiano de vida e de trabalho e todo o universo da cultura operária.

Um dos aspectos mais evidentes desse processo de renovação na História do Trabalho é a mudança de perspectiva em relação ao seu objeto, que, inequivocamente, deixou de ser a história do operariado fabril (branco, masculino, imigrante, urbano e organizado). Conforme apontaram Alexandre Fortes e John French, “a exploração da complexidade da formação da classe, com atenção para a diversidade de culturas e identidades entre os trabalhadores” e “a redeinição do campo através de um esforço consciente para incluir aqueles que estão fora do mundo urbano-industrial”, implicou em “um recuo no tempo para incluir o trabalho escravo e outras formas não assalariadas de trabalho”.2 Leia Mais

Museus, sujeitos e itinerários | Anais do Museu Histórico Nacional | 2018

O dossiê “Museus, sujeitos e itinerários” reúne estudos que investigam as relações entre sujeitos, seus itinerários biográficos e profissionais e os museus, especialmente em perspectiva histórica. Campo, intelectual, mediador e rede de sociabilidade são algumas das categorias operacionais utilizadas na bibliografia brasileira e internacional sobre museus e Museologia, oferecendo oportunidades de conhecer as ideias e práticas de indivíduos no âmbito da formação de coleções, do funcionamento dos museus e na conformação disciplinar da Museologia.

Naturalistas, artistas, historiadores, arquitetos, conservadores de museus, educadores, escritores, advogados, entre outros povoam esse universo no Brasil. Entretanto, alguns personagens são constantemente visitados pelos pesquisadores, a ponto de haver identificação entre as instituições museológicas e seus gestores. Isso decorre de uma história dos museus que privilegia a atuação de seus diretores, majoritariamente homens. E como é característico das operações da memória, na visibilidade de determinados sujeitos, outros são deixados na penumbra. Leia Mais

Dia-Logos. Rio de Janeiro, v.12, n. 1 , 2018.

Expediente

Artigos

Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez / Revista Brasileira do Caribe / 2018

Neste primeiro número de 2018, a Revista Brasileira do Caribe (RBC) convidou ao professor Dernival Venâncio Ramos Junior que organizou em 2017 uma jornada intitulada “Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez. Leituras 50 anos depois”, evento ocorrido no Campus de Araguaína da Universidade Federal do Tocantins, e que deu nome ao dossiê. A RBC, volume 18, No.36, de janeiro a junho de 2018 oferece aos leitores um dossiê temático composto por cinco artigos, além de três colaborações livres.

Em 2017, Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez completou cinqüenta anos de publicação. Desde o seu lançamento em 1967, o livro foi lido e relido a partir de diversos pontos de vista, o histórico, o político, o sociológico, o cultural, o literário e o filosófico. Essa riqueza da fortuna crítica indica uma obra multifacetada e de difícil apreensão por um viés disciplinar. Por isso, convidaram-se pesquisadores de diversas áreas (História, Lingüística, Arquitetura, Filosofia, Geografia e Crítica literária) a participar da seguinte edição. As perguntas feitas, tanto no evento quanto no dossiê foram: Como as novas gerações de leitores e leitoras, críticos e críticas leram a obra Cem Anos de Solidão? O que ainda falta dizer sobre ela, que apenas as novas gerações podem dizer? O que as traduções da obra ajudam a dizer sobre ela e sobre a fortuna crítica? O que precisa ser dito sobre as linhas interpretativas clássicas sobre essa obra? Qual o lugar dessa obra na atual cultura caribenha, latino-americana e ocidental? Sabemos que essas perguntas são difíceis de responder, mas acreditamos que elas estarão sempre no horizonte das gerações e gerações de leitores dessa obra clássica da literatura colombiana e caribenha. Afinal, o clássico é o que se relê, que se relê, que se relê… O clássico sempre coloca respostas novas a velhas perguntas ou perguntas novas a consolidadas respostas.

Abre o dossiê o artigo “Cem anos de Solidão: resistências, invenção e decolonialidade” de Pláblio Marcos Martins Desidério e Ludmila Brandão que problematizam a obra de Gabriel Garcia Márquez a partir da decolonialidade. Afirmam que a obra Cem Anos de Solidão pertence a “zonas pelágias” e procuram problematizar a forma como a crítica e os leitores europeus classificaram o romance como “realismo mágico.” Também propõem mostrar como o autor colombiano escapa da hegemonia eurocêntrica, pois ele indica caminhos para fugir da abissalidade atribuída pela colonialidade.

Em seguida, Olivia Cormieiro e Euclides Antunes de Medeiros em “Caminhos entre imaginação e método historiográfico na obra Cem Anos de Solidão” trabalham na interface entre Literatura e História, propondo-se descrever as relações entre a dimensão metodológica da pesquisa histórica e a dimensão imaginativa das obras ficcionais. Questões como memória, escrita, invenção e sensibilidade, presentes nas obras literárias, se pode transformar em mecanismos úteis ao trabalho de pesquisa dos historiadores. Articulado à História, mas escrito por uma semioticista, o artigo “Das engrenagens da leitura e do tempo em Cem anos de solidão” de Luiza Helena da Silva aborda o romance a partir de dois aspectos: primeiro, privilegia o caráter propriamente textual e descreve a sua poética; depois, discorre sobre o episódio do massacre dos trabalhadores em greve problematizando a circularidade da narrativa e a história mesma, para iluminar os mecanismos que incidem sobre o binômio memória e esquecimento, tanto em textos ficcionais, quanto na história social da América Latina e Caribe. Nessa mesma linha temática, Marcio de Araújo Melo escreveu “Não esquecer.” O autor centra sua reflexão em um momento de Cem anos de Solidão, qual seja, a peste da insônia e seus desdobramentos como o esquecimento, problematizando-a a partir da etiquetação de objetos e animais com seus nomes, funções e sentimentos, numa tentativa de preservar seus usos práticos, nas leituras do passado através do baralho por Pilar Ternera e, por fim, através do “dicionário giratório”, a máquina que traria os conhecimentos elementares para os cidadãos de Macondo. Assim, o autor discute as formas da memória, das mais simples às mais complexas, destacando o esforço humano por não se deixar ser sugado e destruído pelo esquecimento.

Fecha o dossiê o texto “Macondo: o espaço de existência em Gabriel García Márquez” de Jean Carlo Rodrigues, o autor, propõe pensar a obra a partir da concepção de “vida virtual” de Susanne Langer e “terrae incognitae” de John Wright, tentando mostrar como o espaço imaginado, em obras literárias e poéticas é uma instigante forma para a compreensão da relação homem e espaço e por isso propõe, como hipótese geral, que o direito à arte, à subjetividade e à imaginação sejam resguardados dos ataques positivistas.

Os artigos, assim, a partir de diversos pontos de vista disciplinar e interdisciplinar produzem uma rica leitura da obra magistral de Gabriel García Marquez. Esperamos que o resultados desse esforço coletivo se desdobre em interesse das novas gerações e que essas, ao lê-lo, encontrem respostas as inquietações de seu tempo, mas sobretudo encontrem novas perguntas.

Os três artigos seguintes fazem parte da seção “Outros Artigos” da RBC. Em “Gestionando la identidad:el cabello como capital”, Kristell Villarreal Benítez enfatiza como o cabelo é usado por parte de um grupo de mulheres afrocolombianas, pertencentes ao Caribe colombiano e à cidade de Bogotá, como um capital racial que lhes permite desenhar estrategias para a gestão e negociação de sua identidade em seus contextos específicos. No artigo seguinte: “Bolero, samba-canção e sambolero: matrizes, nomadismo e hibridismo de gêneros musicais latino-americanos no Brasil, anos 1940 e 1950” de Raphael Fernandes Lopes Farias, o autor analisa o encontro do gênero musical caribenho do bolero com o samba-canção no Brasil, ocorrido a partir dos anos 1940 e com forte presença nas mídias sonoras até a década seguinte.

Para tanto, o autor levou em consideração o caminho percorrido pelo bolero e suas afinidades com o samba-canção e com o cenário brasileiro. O autor conclui de “que tanto o sambacanção quanto a Bossa Nova, encontraram no bolero protagonismos, antagonismos e práticas musicais que compõe a identidade da música brasileira”.

No último artigo que encerra este número da Revista Brasileira do Caribe, Danny Armando González Cueto apresenta “La representación visual y las versiones sobre el Carnaval de Barranquilla: de las tres culturas a la fiesta contemporânea”. O autor apresenta as maneiras como se olha para o Carnaval de Barranquilla, levando em consideração “que a diferencia de muitos outros carnavais no mundo, o seu componente cultural se deve em grande medida ao cruzamento de culturas”.

Agradecemos a todos os que viabilizaram o lançamento deste novo número da Revista Brasileira do Caribe, especialmente, à Pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão, a Editora e gráfica da Universidade Federal do Maranhão e a todos os pareceristas que participaram com o seu trabalho e generosidade na avaliação dos artigos recebidos.

Agradecemos também à Superintendência de Comunicação (Sucom) da Universidade Federal do Tocantins pela disponibilização da arte do evento para usarmos como capa deste número da revista.

Convidamos a todos os leitores a percorrer as páginas desta nova edição da Revista Brasileira do Caribe que nos apresenta diversos pontos de vista da produção historiográfica sobre o Caribe.

Dernival Venâncio Ramos Júnior – Organizador do Dossiê temático e Editor Adjunto da RBC.

Isabel Ibarra Cabrera – Editora da Revista Brasileira do Caribe.


VENACIO, Dernival. Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.19, n.36, p.4-6, jan./jun., 2018. Acessar publicação original. [IF].

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Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo” – PARANHOS (H-Unesp)

PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/CNPq/Fapemig, 2015. 172p. Resenha de: BUSETTO, Áureo. Sambas e bambas sem o breque do Estado Novo. História v.37  Assis/Franca  2018.

Na década de 1980, o samba andava em baixa na indústria fonográfica, no rádio e na televisão. A mídia promovia larga e amplamente outros ritmos musicais. Muitos vaticinavam o fim do samba. Em reação a tal cantilena, Paulinho da Viola em Eu canto samba, integrado ao seu premiado disco homônimo lançado em 1989, canta que ele há muito tempo escutava “o papo furado dizendo que o samba acabou”, ao que ementa resposta irônica: “só se for quando o dia clareou”. Enfim, o sambista, com maestria e temperança, pontuava que não era porque o samba seguia preterido ou vitimado por alterações impostas pelos interesses comerciais da mídia que ele havia deixado de existir, alegar a vida e falar das coisas dos sambistas e admiradores do gênero, bem como de ser cantado e dançado nas rodas de samba em fundos de quintais.

Ainda naquela década, na historiografia era assinalado que sambistas durante o Estado Novo, então, empenhado em alçar o samba urbano carioca à tradução musical da nacionalidade, tinham submetido suas canções totalmente aos valores políticos e sociais calcados na ideologia trabalhista idealizada e difundida por aquele regime ditatorial, via o vigilante serviço do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado no final de 1939 e atuante até o fim do regime, em 1945 (PEDRO, 1980GOMES, 1982VASCONCELLOS e SUZUKI JR., 1984).

Ainda que pretendesse revelar a censura sofrida e os esquemas de aliciamento do DIP investidos ao universo do samba, aquela historiografia caracteriza como dócil e passiva a adesão dos sambistas à ideologia estado-novista, mesmo essa se opondo radicalmente a elementos constituinte do samba urbano carioca, como, por exemplo, a malandragem e a boemia. Interpretação que, ademais, reforça a imagem de que o Estado Novo fora hegemônico, absoluto na vida cotidiana e mesmo na dimensão cultural, além de potencializar a mítica do líder máximo do trabalhismo, Getúlio Vargas.

Mas agora, com ampla e acurada pesquisa histórica, perpassada de igual sensibilidade e respeito com que Paulinho da Viola canta a gente e as coisas do mundo do samba, Adalberto Paranhos revela, em seu livro Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”, sambistas valeram-se em suas canções de “linhas de fuga” às investidas do DIP contra práticas e representações próprias do mundo do samba. Assim, o historiador assinala que bambas não foram somente sambistas que primavam pela qualidade do samba, mas, também, por saberem ou intuírem que nele apenas se podia admitir um tipo de breque, qual seja: aquela pausa do acompanhamento acentuadamente sincopado para intervenção declamatória do intérprete do samba. Enfim, se depreende da análise de Paranhos que, calcada em seu expressivo e firme conhecimento histórico e musical, as tentativas de doutrinação do trabalhismo varguista sobre o riscado do samba foram recebidas de maneira parecida à recepção dispensada a uma inautêntica baiana ao tentar entrar na roda de samba; valendo-se aqui de cena caracterizada pela letra do samba Falsa baiana, da autoria de Geraldo Pereira, lançado em 1944, na voz de Ciro Monteiro.

Na letra do seu samba, Geraldo Pereira narra que a impostura da falsa baiana se revela ao pessoal da roda de samba por ela não saber mexer, remexer e dar nó nas cadeiras. No seu livro, Paranhos evidencia que as intenções do Estado Novo em “higienizar a poética do samba”, em conformidade com a ideologia trabalhista, fora sentida e percebida por bambas como embuste em relação às coisas que nutriam e, mesmo, alegravam a vida de sambistas e do mundo a sua volta. Afinal, aquela imposição oficial era obra da elite, coisa de gente que sequer tinha patente para tirar samba – condição cultuada e defendida no meio sambista – e que imaginava, de maneira prepotente, bambas apenas dançassem conforme a música tocada. Completo desconhecimento da criatividade escapole dos que nasciam e queriam morrer com o samba, os quais em seu cotidiano tiravam de letra adversidades sociais impingidas pelos agentes do mando por meio da vigilância e força policiais. Dribles dados tanto aos apertos da subsistência, à época, amplamente pautada pelo desemprego e subemprego, quanto à ordem imposta que invariavelmente serviam de motes às letras de seus sambas, caracterizando o elo entre experiências de vida e a composição de suas canções, as quais, costumeiramente, ganhavam a aderência do seu típico público.

Na tentativa da falsa baiana entrar no samba, prossegue a letra de Geraldo Pereira, ninguém bate palmas, grita oba ou abre a roda para ela. As investidas do DIP para “higienizar” o samba, revelam as páginas de Os desafinados…, receberam por parte de bambas parecida recepção. E se eles, vez ou outra, aplaudiram, lançaram vivas ou abriram espaço em seus sambas aos valores políticos e sociais impostos pelo Estado Novo, não o fizeram por aquiescência própria e, mais ainda, não os dotaram necessariamente de igual sentido ao desejado por aquele regime. Se houve, conclui Adalberto Paranhos, a existência de uma plêiade de compositores e composições populares que se prestaram a enaltecer e exaltar o ideário estado-novista, fosse por meio de aliciamento ou de censura do DIP, o coro de sambistas descontentes com valores estado-novistas não deixou de se fazer presente no cenário musical, ainda que de maneira sútil e segundo as circunstâncias.

Não há como deixar de registar que Adalberto Paranhos lega um livro que expressa o cume da pesquisa na área de História, uma vez que enfoca tema e vale-se de fontes já tratados pela historiografia anterior, porém, fornecendo original e acurada interpretação deles por meio de abordagem inovadora. Com sua pesquisa, o historiador trata de um velho tema da história política – o poder do Estado na sociedade – e uma temática enfocada pela historiografia nas últimas décadas – o Estado Novo e a construção da nacionalidade – por um ângulo muito pouco tratado na área de História – o samba. Assim, a pesquisa e o livro de Paranhos se desenrolam com base na compreensão do entrelaçamento das dimensões da cultura, política e do social vigentes no Estado Novo, sem, contudo, desafinar quer nas notas necessárias para compreender as especificidades históricas de cada uma daquelas dimensões, quer nas dispensadas ao tratamento histórico das interseções entre elas. E como resultado final oferece novos e acurados acordes ao conhecimento historiográfico sobre as relações entre política e samba durante a ditadura varguista, os quais não poderão ser prescindidos em futuros estudos históricos sobre a política, sociedade e cultura na ditadura do Estado Novo, assim como nos voltados para história do samba, sob o risco de o pesquisador que agir ao contrário desafinar em suas conclusões.

Tomando o samba, ao mesmo tempo, como objeto e fonte de sua pesquisa, Paranhos transcende a limitada e arriscada análise centrada na letra ou partitura do documento canção. Ao valer-se de registros fonográficos gravados à época estudada, o historiador, por entender que a canção não existe em abstrato e o (re)interpretar também é compor, empreende, com grande acuidade, uma análise sobre a realização sonora da canção, englobando desde a orquestração musical à interpretação vocal, posto defender que tais expedientes são portadores de significações. É nesse diapasão que o autor revela que o emprego do breque em vários sambas da época funcionara para o intérprete se distanciar, ironizar, debochar e, mesmo, negar o que foi cantado na parte anterior da letra.

E quando da análise das letras dos sambas, Paranhos destaca palavras e expressões muito próprias às representações de criadores e cultores do gênero no período enfocado, dotando-as de historicidade, como, por exemplo, o faz com as palavras ‘batucada’ e ‘orgia’. Paranhos nos elucida que ‘batuque’ ou ‘batucada’ expressavam, ao mesmo tempo e paulatinamente a partir dos anos 1930, sinônimo ou referência de samba e elementos constituidores dele, sobremaneira quando se procurava dar ênfase na autenticidade do gênero e no seu valor como representante musical do povo brasileiro. Embora, saliente

que ambos os termos pudessem ser empregados quando se intencionava detratar o samba, segundo apreciações de lugares e comportamentos ligados ao gênero, isto é, os da população negra, mestiça e marginalizada. Em relação à ‘orgia’, nos ensina que a palavra expressava, nos sambas dos anos de 1930, o sentido de festa ou diversão pândega, logo, não se prendendo à conotação sexual que o termo pode suscitar, contudo, expressando ação oposta ao penar do mundo do trabalho, ainda que, dependendo do samba, a labuta com o trabalho pudesse oscilar entre honradez e humilhação.

Ademais, o livro de Adalberto Paranhos serve como dínamo a novos estudos históricos. Qual popular samba enredo após desfilar pela avenida, o conhecimento trazido pelo livro tende a ficar batucando na cabeça de atentos leitores sobre possibilidades de pesquisas ocupadas com as relações samba/política em outros períodos, bem como as de outras manifestações da cultura popular com o Estado e políticas governamentais. Batucada possível de se apossar da mente do leitor já nas páginas da introdução – intitulada sabiamente como Palavra Prima – e nas integradas ao primeiro capítulo do livro.

Com a leitura de ambas as partes, os leitores podem vislumbrar o rigor das reflexões sobre o saber historiográfico e elementos teórico-conceituais que Paranhos investiu à elaboração de sua temática de estudo, assim como o seu empenho na consecução da sua ampla e acurada pesquisa documental. Somam-se a isto férteis reflexões do historiador acerca do estatuto das variadas fontes consultadas (discos, jornais, revistas e conteúdos de programas de rádio, depoimentos), além de detalhes sobre a busca por elas, tarefa que envolveu dificuldades tanto da ordem de localização quanto de acesso. Registro que, ao mesmo tempo, facilita e estimula novas pesquisas com a documentação levantada. Louvável generosidade do autor para com a comunidade de pesquisadores interessados em estudos históricos sobre o Estado Novo e o samba.

No primeiro capítulo do livro, Paranhos apresenta um balanço reflexivo sobre as perspectivas teóricas que alicerçaram anteriores interpretações historiográficas ocupadas com a análise do Estado Novo e a dimensão do poder desse regime. Nessa direção, conceitos como hegemonia, dominação, resistência, apropriação e ressignificação, bem como questões teóricas centrais ligadas a eles, são enfocados, discutidos e refletidos pelo autor para definir e substanciar, de maneira objetiva e firme, a sua adesão à perspectiva da ‘história vista de baixo’. Capítulo que muito se distancia das partes introdutórias usualmente constantes em trabalhos acadêmicos e livros de difusão da pesquisa em História, posto que expressa diálogo ativo e reflexivo do pesquisador com referenciais teórico e historiográficos convergentes ou divergentes à perspectiva de análise e interpretação por ele compostas.

Longe de encerrar sua pesquisa sob a perspectiva de análise que tudo concede ao poder do Estado e centra-se na busca por marcar o império dos projetos de dominação estatal, Paranhos enceta uma abordagem que lhe possibilitou apreender os conflitos, as contradições, enfim, “o caráter dialético da dominação”. Para tanto, parte de elementos teóricos engendrados por Pierre Bourdieu (2002) e Michel Foucault (19771979)- votados à análise de práticas e dispositivos das disputas encontráveis nas relações de poder que atravessam os diferentes domínios sociais que compõem a sociedade – e de E.P. Thompson (1998) e Raymond Willians (1992) – ocupados em conhecer e analisar forças de lutas e resistências contra-hegemônicas.

Com tal foco analítico investido à plêiade de fontes pesquisadas, Paranhos evidencia, nos dois capítulos seguintes, como sambistas conseguiam, ao mesmo tempo, desempenhar, em meio à sua afirmação social, papel decisivo na incorporação do samba à galeria de símbolos nacionais e registrarem composições e interpretações dissonantes aos valores políticos e sociais ditados pelo Estado Novo, burlando as tentativas do DIP em “regenerar” o temário do gênero, extirpando desse representações sociais de mundo tidas como inconvenientes ao trabalhismo.

Dentro desse quadro, bambas investiram aos seus sambas, não sem sucesso, uma linguagem e/ou sonoridade prenhes de sentidos ambíguos, transpondo ao seu universo musical expediente tão comum no cotidiano da malandragem, geralmente empregado para despistar pequenos ilícitos e contravenções diante dos agentes da ordem. Nessa direção, bambas, como bem estabelece Paranhos, desenrolavam “linhas de fuga em relação à palavra estatal”, incorporando seus sambas às disputas de representações sobre o trabalho e o trabalhador, as quais, consonantes às experiências dos sambistas, podem ser sintetizadas pela letra de um samba da época: “o trabalho não dá camisa ao trabalhador”.

Mas Paranhos também capta a reação de bambas às investidas do Estado Novo em regular as relações de gênero, decorrência do entendimento dos ideólogos do regime que desajustes do mundo do trabalho contribuíam à manutenção de conflitos de gênero. Acentua que sambas com motes relativos às relações de gênero repercutiam as tratativas acerca do estabelecimento do Estatuto da Família entre o final dos anos de 1930 e o início da década seguinte. Apresenta como sambistas cantavam, de um lado, as insatisfações das mulheres no desempenho da função de provedoras do lar, em decorrência de seus maridos ou companheiros não assumirem ou negligenciarem aquele compromisso social – o que, aliás, como destacada o historiador, sambas que “não deixavam de retratar a sobrevivência de figuras masculinas que voltavam as costas ao trabalho”-, e, de outro, entoavam os lamentos de homens por conta de suas mulheres não se submeterem ao esperado papel social de dona de casa, preferindo elas a diversão. Assim, enfatiza o historiador, sambistas mesmo que admitissem a intromissão oficial na moral conjugal, mantiveram brechas em seus sambas para discordar e, mesmo, desprezar o ideário das relações de gênero difundido pelo regime estado-novista.

Há ainda que se considerar que os dois últimos capítulos iluminam ainda mais o que se conhece sobre a estrutura e dinâmica da indústria fonográfica e do rádio nos tempos do Estado Novo (CABRAL,1990LAGO,1977), enfatizando ou revelando práticas e representações próprias de agentes integrados naquelas mídias, fossem em termos da programação musical de maneira geral, fossem em relação ao samba. Sem deixar de demarcar precisamente as interseções entre aquelas duas mídias eletrônicas e a imprensa no tratamento tanto das manifestações culturais populares/samba quanto das populações identificadas com elas.

Sem dúvida, Os desafinados… se inscreve como livro original e inovador na historiografia sobre o Estado Novo e o samba, mas, também, como um ótimo guia a todos os interessados em melhor ouvir, sentir e compreender historicamente o amplo repertório dos bambas em tempos da ditadura varguista.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. [ Links ]

CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petropólis: Vozes, 1977. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. [ Links ]

GOMES, Angela Maria de Castro. A construção do homem novo: o trabalhador brasileiro. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELOSO, Mônica Pimenta; GOMES, Angela de Castro. Estado novo: ideologia e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. [ Links ]

LAGO, Mário. Na rolança do tempo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [ Links ]

PEDRO, Antonio (Tota). Samba da legalidade. Dissertação (Mestrado em História) – USP, São Paulo, 1980. [ Links ]

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]

VASCONCELLOS, Gilberto; SUZUKI, JR. Matinas. A malandragem e a formação da música popular brasileira. In: FAUSTO, Boris (dir.). História geral da civilização brasileira – III – O Brasil republicano (Economia e cultura: 1930-1964). 3.ed. São Paulo: Difel, 1984. [ Links ]

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. [ Links ]

Áureo Busetto. Professor Doutor. Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, UNESP. Av. Dom Antônio, 2100, Parque Universitário, Assis, 19.806-900 SP, Brasil. E-mail: aureohis@assis.unesp.br.

Memória: questões teórico-metodológicas nas pesquisas historiográficas / Caminhos da História / 2018

Prezadas (os) leitoras(es),

É com enorme satisfação que publicamos o segundo número do volume 23 da Caminhos da História, Periódico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG). Nesta edição, contamos com a presença de um dossiê. Apesar disso, não abrimos mão de uma seção livre, onde artigos que exploram diferentes temas caros à História possam ser contemplados. Nossa finalidade, com esse formato, é proporcionar números temáticos que apresentem maior evidência aos artigos que os compõem, bem como às suas autoras e aos seus autores.

No atual número, assim, apresentamos o dossiê “Memória: questões teórico-metodológicas nas pesquisas historiográficas”, organizado pelos pesquisadores Rejane Meireles Amaral Rodrigues (Unimontes) e Gilberto Cezar de Noronha (UFU). Com a intenção de congregar trabalhos produtos de estudos que exploram fontes, temáticas e enfoques teórico-metodológicos diferentes, o dossiê trava diálogo com discussões da história e da historiografia interessada na problemática da memória, dos saberes e das relações de poder / submissão / subversão nos usos políticos do passado; a gestão dos sentimentos e das paixões sociais; a construção de racionalidades, os afetos e sensibilidades, a alteridade e as subjetividades envolvidas no ato de lembrar e esquecer; questões epistemológicas relacionadas às tênues fronteiras entre memória e história e ao próprio estatuto do conhecimento histórico, em suas diversas orientações teóricas. A proposta deste dossiê, enfim, é abrir o diálogo e a possibilidade de repensar as formas, as escalas, a duração e a espacialização dos jogos de poder que instituem as relações sociais e os processos de subjetivação que envolvem a gestão da lembrança e do esquecimento.

Para ilustrar a edição deste relevante dossiê, a Caminhos da História conta com a ilustração de Salvador Dalí. Nativo de Figueres, o pintor espanhol apresenta, em sua trajetória, admiráveis contribuições por meio de sua arte surrealista. A espantosa e admirável pintura que ilustra nossa capa recebe o título de La persistencia de la memoria (1931). “Toda a minha ambição no campo pictórico é materializar as imagens da irracionalidade concreta com a mais imperialista fúria da precisão”. Esta citação de Dalí sintetiza a pintura em questão; os elementos ilusórios – relógios derretidos – embaralham-se com figuras familiares aos olhos humanos, cunhando uma impressão de que eles realmente estão ali. Ao fundo, podemos observar um penhasco e o mar no horizonte. Esse cenário é a imagem do lugar onde Dalí vivia.

A edição conta ainda com artigos livres, que perpassam o debate sobre a introdução do futebol no estado do Rio de Janeiro, a trajetória profissional de mulheres na medicina em Montes Claros-MG e sobre o processo de transformação econômica no governo de Salvador Allende, no Chile.

Atenciosamente,

Ester Liberato Pereira,

Rafael Dias de Castro,

e Comissão Editorial


PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Editorial. Caminhos da História, Montes Claros, v.23, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Crítica Histórica. Maceió, v.9, n.17, 2018 / v.9, n.18, 2019.

Crítica Histórica. Maceió, v.9 n. 18 (2018): Dossiê Abertura política e redemocratização: igrejas, movimentos sociais e partidos políticos

Publicado: 28/02/2019

Apresentação

Crítica Histórica. Maceió, v.9 n. 17 (2018): Dossiê História Social do Crime

Publicado: 14/07/2018

Apresentação

Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932) – GÁRATE (A-EN)

GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. Resenha de: MORALES, Hernán. América Latina em alguns itinerários e cruzamentos. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.1, jan./apr. 2018.

Yo evito el testimonio real, porque me desagradan los confesionarios y esa objetividad eclesiástica del periodismo acusete. Pero tampoco podría negar mi origen y lo evoco en la escritura, travestido, multiplicado en un tornasol engañador. La verdad no me interesa: es paja estancada y filosófica. Como dice Serrat: la verdad no tiene remedio. (LEMEBEL In: SCHAFFER, 1998, p. 58)

(…) Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rostro de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rostro. (BUARQUE, 1991, p. 7)

Em um artigo publicado sob o título de La crónica, una mirada extrema2, que poderia servir como preâmbulo a esta resenha, Martín Caparrós reflete sobre esse gênero que complexifica não somente a literatura – mas as artes em geral – e em especial a literatura latino-americana, em função de tensões e desencontros da Modernidade. América é crônica, sustenta Caparrós, vinculando seu olhar a tensões assinaladas por Cornejo Polar, Rama, Pizarro e Santiago a propósito de um espaço de definição que alterna a adaptação entre o conhecido e o não-conhecido, evidenciando matrizes conflituosas. A crônica é um exercício recorrente de estranheza que marcou o processo identitário dos habitantes destas latitudes. Por isso as vozes que nela se manifestam “não mostram mas, antes, evocam, refletem, constroem, sugerem”, gerando um estado de crise. Trata-se de textualidades polimorfas que evidenciam as vantagens de recriar modos de contar e formas singulares de perceber o entorno, em um exercício que tem a intenção de “despertar” o leitor. São discursos nos quais o olhar se detém em um objeto configurado como busca, porque a escrita converte-se numa prática dos limites que transcende o foco jornalístico e consegue trazer para o primeiro plano o que normalmente fica oculto, o que não se vê à primeira vista e necessita ser nomeado. Parece tratar-se de uma reinvenção do espaço latino-americano que em alguns narradores contemporâneos (como Alma Gillermopietro, Elena Poniatowska, Juan Villoro, Pedro Lemebel, Carlos Monsiváis, entre outros), torna-se uma obsessão, marcada pelo exercício político que supõe a confrontação entre o sujeito e seu entorno.

Por essa razão, não é estranho que Miriam Gárate recorra ao liminar expresso pela preposição “entre”, com o objetivo de estudar as relações fundadoras do cinematógrafo com a literatura e a imprensa na América Latina, propondo um olhar que se debruça sobre as crônicas que circularam no México, no Chile, no Brasil, no Peru e na Argentina, entre outros países, em finais do século XIX e princípios do XX. Ao longo de mais de 200 páginas, a autora oferece, por meio de uma ensaística impecável, sustentada com grande rigor crítico, uma abordagem das relações imbricadas no discurso de recepção do cinema, que privilegia o gênero crônica no período delimitado pelo título (1896-1932), evidenciando o interesse em revisar o impacto causado pelo novo espetáculo. A partir dessa perspectiva singular, Entre a letra e a tela conecta a literatura, a imprensa e o cinema revisitando o olhar perscrutador dos cronistas, reenviando ao endereçamento do olhar destacado por Caparrós enquanto característica fundamental da crônica por contraposição à notícia.

Através da “retórica do passeio” (RAMOS, 1989), o leitor é convidado a participar de um percurso que, na Introdução, demarca um posicionamento baseado no estudo minucioso da circulação dos modos de percepção do cinematógrafo, expressos em jornais e revistas das áreas geo-culturais recortadas. É um tipo de análise, segundo frisa Miriam Gárate, que toma distância a respeito da aproximação “literatura – cinema” com foco no problema da adaptação, tradicionalmente centrado no jogo entre “fidelidade/infidelidade”. Em vez disso, na viagem proposta, aborda-se um fenômeno que é simultaneamente jornalístico, estético e literário, cifrado pela crônica, esse gênero que, pode-se dizer, está na base do processo de formação cultural das nações americanas.

No primero capítulo, “Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo”, a forma de modelar os materiais se consolida através do substrato: retórica da viagem, por isso a referência a Ramos e o resgate de vozes centrais como as de Manuel González Prada (Peru), José Martí (Cuba), Manuel Gutierrez Nájera (México), Luis Urbina (México-Espanha), Coelho Neto (Brasil), Olavo Bilac (Brasil), Ruben Darío (Nicaragua), Amado Nervo (México), José Juan Tablada (México-EEUU), Enrique Gómez Carillo (Guatemala-França), João do Rio (Brasil), para mencionar somente alguns. Neles, Gárate observa a recriação de uma estilística que evidencia o deslocamento das crônicas do jornalístico para o literário, daí o entre-lugar, fato que também influi no nascimento de um novo profissional que se consolida ao mesmo tempo que os textos que recriam o impacto suscitado pelo cinematógrafo: o repórter. Destaca-se, nesse sentido, algo que já fora assinalado por outros estudiosos: “a cultura moderna foi ‘cinematográfica’ antes do cinema”; e talvez seja por esse motivo que o olhar dos cronistas pôde transitar rapidamente do assombro para a reflexão crítica.

Nas crônicas examinadas no primeiro capítulo, acompanhamos as primeiras viagens. “El cinematógrafo” (1896), de Urbina, e “Moléstia de época” (1906), de Olavo Bilac, descrevem a percepção do fenômeno cinematográfico por meio de construções discursivas que patenteiam o fascínio exercido, através de referências à “máquina milagrosa” ou ao “aparato prodigioso”, deslumbramento que se reitera na crônica do mexicano José Juan Tablada, “México sugestionado: el espectáculo de moda” (1906) e em “En el cine” (1913), de Ramón López Velarde. São essas considerações que desdobram, no segundo capítulo, as reflexões críticas sobre a linguagem cinematográfica, envolvendo relações com outros gêneros como o teatro e o romance.

Em “Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema”, segundo capítulo, Miriam Gárate enfatiza o interesse das primeiras críticas/crônicas pelo cinema narrativo e os diversos modos de lê-lo. Desponta, então, uma questão muito estudada – por isso a recuperação de vários teóricos do cinema, dentre os quais Béla Balázs -, de modo a desvelar como os filmes se constroem e as características da linguagem cinematográfica do período. Como afirma Gárate, “a linguagem cinematográfica transparente (Xavier, 1984) disputa com as outras artes a expressão de uma subjetividade inicialmente reservada [imaginariamente reservada] à palavra” (GÁRATE, 2017, p. 10). As relações com outras práticas artísticas como o teatro são evidencia disso. Em “Da ‘estética da ação’ à estética da subjetivação”, subtítulo de uma das seções do segundo capítulo, delineia-se um percurso que elucida as unidades imbricadas na linguagem em processo de construção e, simultaneamente, a individualização que afasta o cinema das outras artes: o primeiro plano, o enquadramento, a montagem. A autora contrapõe a visão preconceituosa de Urbina, para quem “o cinema jamais nutrirá a cultura nem aperfeiçoará o espírito como o faz o livro”, à perspectiva de Torres Bodet, para quem a câmera em A última gargalhada (1924) de Murnau é um “objeto pensante”, pois “sonha”, ou, nas palavras de Bálaz, dá forma a um “pensamento ótico”. O contraponto põe em cena o debate entre espetáculo/cultura e refrata as tensões descobertas nessa viagem.

O terceiro capítulo, “O retorno do pleito mimético”, recupera as discussões suscitadas a respeito das transformações nas práticas culturais e sociais produzidas pelo cinema. São relembrados aspectos negativos, percebidos pelos cronistas em relação à possível influência dos filmes que encenam crimes. Para alguns deles, “o efeito pernicioso do novo espetáculo reside na vivacidade das peripécias que mostram [ensinam] os meios e modos de delinquir” (GÁRATE, 2017, p. 99). Daí a proibição aos jovens de frequentar filmes que pudessem levá-los a copiar tais atos, defendida em numerosos escritos. As crônicas revelam em seus títulos essa crença arraigada. “Moralidad, criminología… Lo de siempre. La Razón contra el cinematógrafo” (1919). Repercutem, assim, frases dos próprios jornais, como: “Não acreditamos que a fita torne melhores ou piores os criminosos, mas sim acreditamos que lhes forneça lições e os prepare para o delito, dado que a exibição cinematográfica estimula e exalta a imaginação” (La Razón, 1919, apud GÁRATE, 2017, p. 100). Ao mesmo tempo, e com base no mesmo pressuposto mimético, o cinema se torna um meio de instrução através do qual se oferecem uma formação moral, uma escola do bom gosto e uma “educação pelo olhar”, como é possível ler na crônica de Horacio Quiroga, “El cine en la escuela: sus apologistas” (Caras y Caretas, 1920). Um fato que transforma algumas salas, como a Fémina, de Lima, em lugares destinados à instrução de garotas e senhoras, fenômeno referido em crônica recuperada por Ricardo Bedoya, estudioso do cinema peruano, citado por Gárate. Por outro lado, o cinema também se torna o espaço da sedução e das paixões, como atestam alguns escritos de Urbina (“El cine y el delito”, 1916), de Lima Barreto (“Amor, cinema e telefone”, 1920) ou de Francisco Zamora (“El cine y la moralidad”, 1919), todas amostragens dessa dúbia pulsão didática, que se evidencia ainda com mais clareza em “El cine y las costumbres” (1931), do argentino Roberto Arlt, ou nas menções aos “problemas entre os sexos” feitas pelo mexicano Carlos Nogueira Hope em “Vanidad de vanidades” (1919).

No capítulo “Os ‘latinos’ viajam a Hollywood”, a autora aborda a experiência de viagem à cidade cinematográfica por antonomásia como dado significativo que acompanha, entre os anos de 1920-1930, o desenvolvimento da cinematografia estadunidense. Para focar esse aspecto, são escolhidas as narrações “Una aventura de amor” (1918), publicada com o pseudônimo de Boy, “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” (1919) de Horacio Quiroga, “Che Ferrati, inventor” (1923) de Carlos Nogueira Hope e “Hollywood: novela da vida real” (1932) de Olympio Guilherme. Sustenta Gárate:

são narrativas que se estruturam ao redor desse motivo [a viagem a Hollywood], assim como una série de outros tópicos comuns: o desvendamento das regras que vigoram nos grandes estúdios bem como de pormenores técnicos e truques de rodagem; o retrato de tipos que se consolidam por esses anos (a flapper, o latino sedutor, o rastaquera); a relação mimética das personagens com modelos propostos pelo cinema (aparência física, atitudes, sentimentos); o enredo amoroso (também ele estreitamente vinculado ao imaginário cinematográfico, o que resulta no entrelaçamento e no revezamento constantes dos registros da ‘vida’ e do ‘filme’); o vínculo afetivo espectador-estrela; o tema do doublê” (GÁRATE, 2017, p. 127).

Nos dois primeiros títulos (“Una aventura de amor” e “Miss Dorothy Phillips) , encena-se uma experiência que propicia o “cancelamento provisório da realidade imediata”, estabelecendo a viagem não apenas como deslocamento à capital hollywoodiana, mas como translação da vida diurna à da fantasia provocada pela escuridão da sala e pela construção da linguagem fílmica. Isso permite estabelecer uma analogia com o par vigília/sonho, desenvolvido pela autora com o auxílio das teorizações de Mauerhofer (1966), Jean-Louis Baudry (1970) e Christian Metz (1979).

As personagens que povoam esse conjunto de relatos cristalizam uma galeria de estereótipos que reenvia ao jogo instaurado entre ficcional e “real”. Nela, exibem-se os latinos que se lançaram à vida cinematográfica estadunidense: o pobre-diabo representado pelo argentino Guilhermo Grant, o mexicano Federico Granados no papel do latino fogoso, etc. Muitos deles são contemplados nesse quarto capítulo do livro, seguindo um percurso no qual a autora mostra como se configuram nas narrativas as operações que fazem parte da linguagem cinematográfica e implicam uma transferência de códigos para o texto escrito: o recurso gráfico à linha de pontos enquanto sucedâneo do corte/montagem invisível na narrativa de Quiroga, a fórmula fade in para intitular as palavras preliminares no romance de Guilherme, etc. Tais procedimentos são examinados ao longo de “Os latinos viajam a Hollywood” por meio de uma análise que evidencia a perspicácia com que Gárate consegue suturar ambas as linguagens.

Por fim, no quinto e último capítulo do livro, intitulado “Documentários de papel/Crônicas de celuloide”, a autora retoma a problemática demarcada inicialmente, com base na hipótese de que durante as últimas décadas do século XIX e princípios do XX, os escritores latino-americanos estabeleceram uma relação estreita e conflituosa com a imprensa tendo na crônica uma de suas manifestações mais significantes. Isso conduz Gárate a enfocar algumas realizações experimentais, entendidas como a cristalização vanguardista das relações exploradas ao longo de seu texto: as crônicas de Antônio de Alcântara Machado reunidas em Pathé-Baby (1926) e o filme de Alberto Cavalcanti, Rien que les heures (1926). A autora recupera, então, o eixo principal de seu percurso: a retórica do passeio, sustentando que a aparição do cinema propiciou uma triangulação entre imprensa, crônica e cinema, dando lugar ao nascimento de expressões híbridas tais como as Atualidades cinematográficas, as Cine-revistas e os Cine-jornais, por um lado, e a adoção de títulos como Kinetoscópio, Cinematógrafo, Vitascópio ou Cinema da vida em colunas cronísticas, por outro. Miriam Gárate também destaca o papel assumido pelo cinema clássico no século XX enquanto “máquina de contar histórias”, espécie de permutação ou troca de funções desempenhadas pela literatura do século XIX e pelo romance-folhetim. A exposição revela o interesse em desentranhar como se processa uma mudança radical nos textos da época, decorrente de deslocamentos nos âmbitos do jornalismo, da crônica, do romance e do cinema, sinalizando uma ruptura de categorias de gênero na qual primam as tensões. Por isso, compreende-se que Gárate se pergunte no final do volume, aludindo à imagem da “vendedora de jornais” estampada na capa do livro, e como um modo de ecoar sua reflexão, tentando descobrir o que está além da lente do olho mágico: “Rien que les heures: uma crônica de celuloide?”

Referências

BUARQUE, Chico. Estorvo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1991. [ Links ]

CAPARRÓS, Martín. La crónica: una mirada extrema. Diario La Nación, setembro de 2007. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/943086-la-cronica-una-mirada-extrema>. [ Links ]

GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017. [ Links ]

RAMOS, Julio. Desencuentros de la modernidad en América Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. [ Links ]

SCHAFFER, M. Pedro Lemebel. La yegua silenciada. Revista Hoy, n. 1072, fevereiro de 1998. Disponível em: <http://www.memoriachilena.cl/archivos2/pdfs/MC0044778.pdf>. [ Links ]

Notas

1 Resenha de: GÁRATE, Miriam. Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (1896-1932). Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2017.

2 Em: <http://www.lanacion.com.ar/943086-la-cronica-una-mirada-extrema>.

Hernán Morales. Professor na Universidad Nacional de Mar del Plata. Seus temas de pesquisa são a música e a literatura hispano-americana e brasileira, com uma ampla participação em livros e revistas acadêmicas da área. E-mail: hhjjmorales@gmail.com.

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Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español – SÁNCHEZ ZAPATERO; MARÍN ESCRIBÀ (A-EN)

SÁNCHEZ ZAPATERO, Javier; MARTÍN ESCRIBÀ, Àlex. Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español. Barcelona: Alrevés, 2017. Resenha de MARTÍNEZ, Nora Rodríguez. arrativa serial y ficción policiaca: notas sobre Continuará… sagas litera-rias en el género negro y policiaco español, de Javier Sánchez Zapatero y Àlex Martín Escribà. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.1, jan./apr. 2018.

Javier Sánchez Zapatero y Àlex Martín Escribà han publicado en la Editorial Alrevés una nueva obra, fundamental en el estudio del género policiaco en España: Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español. En ella se abordan las principales características de la narrativa serial, así como su influencia en la evolución de la ficción policiaca.

El libro está dividido en tres partes. En la primera, “Las sagas en la novela negra y policiaca universal”, se hace una breve, pero esencial, revisión de la historia del género a nivel internacional, a la luz serial, desde sus orígenes hasta la época actual. En la segunda, titulada “Las sagas en la novela negra y policiaca española”, se ofrece un panorama completo de los principales autores y personajes que han marcado el desarrollo del género en España. Y en la tercera y última parte del libro, “Tres paradigmas seriales”, se estudian tres casos paradigmáticos de autores y sus respectivas sagas policiacas que, aunque han asumido ciertos estereotipos, han introducido innovaciones notables en sus obras: Eugenio Fuentes, Alicia Giménez Bartlett y Lorenzo Silva. Cada estudio monográfico es acompañado de una útil y esclarecedora entrevista a los escritores.

Así pues, en la primera parte, “Las sagas en la novela negra y policiaca universal”, Sánchez Zapatero y Martín Escribà explican que el desarrollo de series novelescas con un protagonista fijo, cuya presencia facilita su identificación por el público, ha sido una de las características básicas de la novela policiaca desde su implantación como género en el siglo XIX. En este sentido, señalan que Auguste Dupin, el primigenio detective creado por Edgar Allan Poe, no solo protagonizó Los crímenes de la calle Morgue (1841), sino también El misterio de Marie Roget (1843) y La carta robada (1884). Utilizando un esquema narrativo muy similar, Arthur Conan Doyle creó en 1887 al legendario detective Sherlock Holmes y a su sempiterno acompañante Watson. Además de estos casos iniciales, destacan en la literatura policiaca fundacional las sagas de Joseph Rouletabille (Gaston Leorux), el Padre Brown (Gilbert K. Chesterton), el comisario Jules Maigret (Georges Simenon), Hercule Poirot y Miss Marple (Agatha Christie), Philo Vance (S. S. Van Dine) o Nero Wolf (Rex Stout); y también del agente de la Continental y de Sam Spade (Dashiell Hammett), Philip Marlowe (Raymond Chandler) y Lew Archer (Ross Macdonal), habitualmente considerados hitos iniciadores de la novela negra. De esta forma, como bien exponen los autores de esta obra, a pesar del cambio en las circunstancias de publicación y de las modificaciones en las características temáticas y formales del género, “la adecuación al modelo de continuidad y la importancia determinante de los protagonistas continúan siendo dos de las constantes de la literatura policiaca universal” (p. 29).

La segunda parte, “Las sagas en la novela negra y policiaca española”, se subdivide en: “Parodias e imitaciones (1900-1971)”, “Detectives y desencanto (1972-1993)” y “Eclosión y diversidad (1994-2016)”.

En primer lugar, Sánchez Zapatero y Martín Escribà demuestran como durante los tres primeros cuartos del siglo XX la importancia del género quedó reducida a su valor paródico e imitativo respecto a los modelos internacionales. Esta situación dio lugar a la identificación exclusiva de la literatura policiaca con la literatura popular, erróneamente asociada a la literatura de baja calidad, y al consiguiente desprecio del género, no sólo por la crítica, sino también por parte de los escritores que no querían ser relacionados con él. Así pues, por un lado, se editaron infinidad de traducciones, se escribieron cientos de obras imitativas (publicadas por colecciones populares especializadas) y se consolidó un grupo de público lector numeroso y, por otro, no se pudo desarrollar una tradición nacional que presentara características propias. De hecho, en esta época, la mayoría de los autores firmaba sus obras con pseudónimos, bien porque no deseaban ver sus nombres asociados a un género ínfimamente considerado, bien para tratar de evitar la censura, dadas las vinculaciones políticas de muchos escritores, o simplemente, porque, al ubicar las tramas en escenarios extranjeros, sus obras resultaban más creíbles si aparecían firmadas con nombres de resonancias exóticas. Es en este contexto que aparece la saga de Plinio, de la pluma de Francisco García Pavón, protagonizada por el jefe de la Policía Municipal de Tomelloso, Manuel González, alias Plinio, y su ayudante, el doctor Lotario, que fueron la primera pareja de investigadores autóctonos creados sin copiar directamente los modelos de otras literaturas.

En segundo lugar, los autores de esta obra explican que, tras la muerte del dictador, la libertad de expresión, el fin de la censura y la llegada de traducciones y de libros de exiliados hasta entonces prohibidos, unidos a la progresiva revitalización del género en la década de los 70, dieron lugar a la creación de una verdadera tradición de novela negra en español. Entre la gran nómina de escritores de este boom de la literatura policiaca, es imprescindible destacar a Vázquez Montalbán y a su detective Carvalho, cuya “saga se convirtió, en efecto, en una de las más adecuadas formas literarias para establecer la crónica de la evolución, de España después del franquismo y para entender el cambio de mentalidad generacional que se produjo en el país” (p. 61). Tampoco podemos olvidar a Juan Madrid, con el exboxeador Toni Romano y con Manuel el gitano Flores; a Francisco González Ledesma, con el inspector Ricardo Méndez; y a Andreu Martín, que también ha utilizado personajes fijos en muchas de sus obras, entre ellos Javier Lallana. Por último, entre la gran cantidad de títulos que supuso la eclosión del género durante la Transición también pueden encontrarse ejemplos de parodias y sagas humorísticas entre las que se destaca la protagonizada por Gay Flower, personaje creado por José García Martínez-Calín, que firmaba como PGarcía, así como la serie de Eduardo de Mendoza, con su detective loco e innominado, y la de Jorge Martínez Reverte, que creó al periodista Julio Gálvez, ambas protagonizadas por investigadores ocasionales, cuyas andanzas se presentan en tono humorístico.

En tercer lugar, aunque a principios de los 90 se da un nuevo parón en el desarrollo de la literatura policiaca en España. Sánchez Zapatero y Martín Escribà explican cómo el vacío de aquellos años fue progresivamente superado con la aparición de una segunda generación de autores y de sagas literarias que terminaron por consolidar las bases del género en nuestro país. Se inicia pues “un periodo de gran éxito, vigente hasta nuestros días, en el que la novela negra ha pasado a ser la novela moderna por excelencia” (p. 88). Así, dentro de la diversidad que caracteriza a la novela negra española de los últimos años es destacable el uso reiterativo del personaje policial que “vincula a casi todas estas sagas con la variante procedimental de la literatura negra y policiaca, caracterizada por su afán en mostrar, con todo lujo de detalles, los procedimientos oficiales […] y la cotidianidad del trabajo policial, tanto la que se refiere a la actividad burocrática […] como la de sus pesquisas” (p. 97). Sin embargo, frente a la relevancia adquirida por los personajes policiales, el detective, personaje investigador por excelencia, continúa representado en la actualidad del género negro español. Por otro lado, desde un punto de vista geográfico, pese a que Barcelona y Madrid, centros políticos y culturales del país, siguen siendo los escenarios más frecuentados en la novela negra y policiaca actual, se ha producido un proceso de “descentralización” de los escenarios policiacos ya que “las sagas del nuevo milenio aportan una visión mucho más globalizada en la que hay lugar para barrios periféricos y zonas habitualmente no utilizadas como escenario literario” (p. 107). Así pues, lejos de responder a un único patrón o de adscribirse a una única tendencia, la actualidad y el incremento de sagas de la narrativa negra y policiaca revelan una importante y destacable variedad que, en muchos casos, ha llevado a la hibridación. En este sentido, los autores de esta obra resaltan el papel fundacional de novelas como El nombre de la rosa (1980), que llevó a Umberto Eco a inaugurar “un nuevo género narrativo al que habitualmente se le ha denominado “intriga histórica” (p. 111), pero advierten que el carácter híbrido que presentan muchas de las narraciones vinculadas a lo policial redunda en el problema de que, aunque el género es un concepto en permanente evolución, “se corre el riesgo de que el género negro se convierta en un “macrogénero”, una especie de cajón de sastre en el que se aglutinen todas las narraciones que, de forma superflua, presenten características análogas al género (p. 116-117).

En la tercera y última parte de la obra, “Tres paradigmas seriales”, Sánchez Zapatero y Martín Escribà prestan atención a las obras de tres autores imprescindibles en el desarrollo del género en España y, especialmente, a las características que han hecho de sus series referentes del género policiaco en nuestro país.

La serie “Cupido” de Eugenio Fuentes (Cáceres, 1958) está integrada por siete novelas: El nacimiento de Cupido (1994), El interior del bosque (1999), La sangre de los ángeles (2001), Las manos del pianista (2003), Cuerpo a cuerpo (2007), Contrarreloj (2009) y Mistralia (2015). Llama la atención por su concepción del misterio y del dolor como señas de identidad del género, así como por la combinación entre el marco urbano, casi pueblerino de Breda, universo diegético ficcional, y los parajes naturales de sus alrededores, que hacen que el escenario habitual de la serie esté a medio camino entre lo urbano y lo rural, dicotomía ya presente en Tomelloso de García Pavón. Además, la figura del detective privado Ricardo Cupido, que basa su trabajo en su capacidad de reflexión y observación del comportamiento humano, tal y como ya hiciera el Maigret de Simenon, provoca, entre otras cosas, que sus novelas se adscriban a la variante psicológica-costumbrista del género. De esta manera, “más que saber la identidad del asesino o descubrir el modo en que actuó, lo que realmente importa […] es descubrir las razones que llevan a quitar la vida a alguien. Por encima del “quién” y del “como” siempre está, por tanto, el “por qué” (p. 135).

Alicia Giménez Bartlett (Albacete, 1951) con la serie “Delicado”, compuesta por nueve novelas: Ritos de muerte (1996), Día de perros (1997), Mensajeros en la oscuridad (1999), Muertos de papel (2000), Serpientes en el paraíso (2002), Un barco cargado de arroz (2004), Nido vacío (2007), El silencio de los claustros (2009) y Nadie quiere saber (2013), y un compendio de relatos, Crímenes que no olvidaré (2015), se adscribe a la variante de la novela procedimental, con la añadida originalidad de incluir un personaje femenino como protagonista, algo usual en la actualidad pero excepcional aún en la década que comenzó a escribir la autora. Otra de las innovaciones de la serie radica en que la inspectora de policía Petra Delicado y el subinspector Fermín Garzón, su compañero, son una pareja invertida en relación con los cánones tradicionales del género. También subvierte la autora los tópicos con respecto al espacio geográfico, inaugurando otra forma de enfocar la ciudad, al presentar una nueva visión del espacio menos detallada y minuciosa, que “supone una de las primeras ocasiones en que se rompe con los clásicos estereotipos espaciales barceloneses -las Ramblas, el Raval o el barrio Gótico, entre otros, que continúan apareciendo pero con mucha menor importancia que antaño- y ahonda en nuevos barrios y lugares” (p. 157). Por último, es destacable que esta saga tiene un interés humanista, más que una intención crónica y hace uso del humor y la ironía, tanto a través de la voz con la que la narradora homodiegética reconstruye el mundo, como en muchos de los diálogos que mantiene, fundamentalmente con Garzón, ya que la confrontación entre dos caracteres tan diferentes explota el contraste entre ambos de forma humorística.

Lorenzo Silva (Madrid, 1966), con la serie “Bevilacqua”, compuesta por ocho novelas: El lejano país de los estanques (1998), El alquimista impaciente (2000), La niebla y la doncella (2002), La reina sin espejo (2005), La estrategia del agua (2010), La marca del meridiano (2012), Los cuerpos extraños (2014) y Donde los escorpiones (2016), y la colección de relatos Nadie vale más que otro (2004), se ha convertido en un hito de la novela policiaca española contemporánea. Si hay algo que identifica a estas obras es la condición de agentes de la Guardia Civil de sus protagonistas: Rubén Bevilacqua, narrador homodiegético, y su compañera Virginia Chamorro, que van envejeciendo y cambiando a lo largo de las novelas. Así, por un lado, el autor da verosimilitud a su obra, adscribiéndola a la variante procedimental (aunque Silva ha acuñado el término “novela benemérita”), que hace que los protagonistas no tengan una zona geográfica de acción fija, sino que han de trasladarse por todo el territorio nacional y, por otro, presenta una imagen del Cuerpo renovada, ya libre de la negativa imagen que tenía durante el franquismo. Tampoco se puede obviar la segunda variante de la novela policiaca a la que se vincula esta serie, la denominada “psicológica costumbrista”, que tiene en las historias de Simenon, protagonizadas por el inspector Maigret, su principal referente en el ámbito de la literatura universal, y a Plinio de García Pavón en el ámbito nacional. Por último, cabría señalar que las novelas de la serie tienen una vocación de retrato histórico, por cuanto pueden ser interpretadas como una crónica crítica de la contemporaneidad española. Así se entiende que “leída en conjunto la serie puede ser interpretada, además de como una buena muestra de novelas policiacas, como una crónica de la España del siglo XXI vista a través del punto de vista de un peculiar guardia civil (p. 192).

En suma, Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español no es sólo una obra primordial para el estudio y el análisis del género policiaco y negro en España desde sus orígenes hasta la más inmediata actualidad, sino que es, también, por la gran cantidad de autores y obras sobre los que incide y aporta nuevas ideas, y los innumerables y valiosísimos ejemplos que evidencian todo lo expuesto, un libro apasionante a la vez que de indudable interés teórico-crítico. Tal y como ya afirmaba Georges Tyras en el prólogo, Javier Sánchez Zapatero y Àlex Martín Escribà “son autores ya de una verdadera saga crítica, de la que esperamos con ansiedad el episodio siguiente. Continuarán…” (p. 19).

Referências

CONGRESO DE NOVELA Y CINE NEGRO. Universidad de Salamanca. Disponible en: <http://www.congresonegro.com/>. [ Links ]

SÁNCHEZ ZAPATERO, Javier; MARTÍN ESCRIBÀ, Àlex. Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español. Barcelona: Alrevés, 2017. [ Links ]

TYRAS, Georges. Prólogo. In: SÁNCHEZ ZAPATERO, Javier; MARTÍN ESCRIBÀ, Àlex. Continuará… Sagas literarias en el género negro y policiaco español. Barcelona: Alrevés , 2017. [ Links ]

Nora Rodríguez Martínez. Licenciada em Filologia Hispânica e Mestre em Ensino Secundário, Bacharelado, Formação Profissional e Ensino de Linguagem, pela Universidade de Sevilha. Atualmente está cursando o Doutorado no Programa de Estudos Filológicos da Universidade de Sevilha na linha da Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Colaborador Honorário do Departamento de Língua Espanhola, Linguística e Teoria da Literatura da Universidade de Sevilha e membro do Grupo de Pesquisa Teoria Linguístico-Literária da mesma Universidade. Desenvolve pesquisas focadas no tema da narrativa policial contemporânea. E-mail: nora_escarlata@hotmail.com

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Rap e política. Percepções da vida social brasileira | Roberto Camargos

Originalmente escrita como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, Rap e política é resultado de intensa pesquisa, que mereceu mais de um prêmio antes mesmo de ser publicado. Seu autor, Roberto Camargos, é, atualmente, doutorando na Universidade Federal de Uberlândia, a mesma universidade em que fez a graduação e o mestrado. Para a pesquisa que resultou nesta publicação, pesquisou centenas de músicas daquele gênero, gravadas entre 1990 e 2005, num trabalho que demandou muita pesquisa e apuro crítico.

O autor começa discordando das posições críticas que desautorizam o rap como arte, expressão cultural, comportamento etc., afirmando que é necessário Leia Mais

África e Brasil. História e Cultura | Eduardo D’Amorim

Passados quinze anos da lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino sobre a história e a cultura afrobrasileira, a questão ainda é tida como desafiadora por muitos professores e gestores escolares. Um dos principais motivos relatados pelos profissionais das áreas de educação é a ausência de materiais que abordem a temática com a qualidade esperada, e que privilegiem com correção as múltiplas dimensões socioculturais africanas, assim como as conexões entre esse continente e o Brasil.

O livro África e Brasil. História e Cultura, de Eduardo D’Amorim, está comprometido em suprir uma importante carência do mercado editorial brasileiro. A publicação, que recebeu a primeira colocação na 59º edição do Prêmio Jabuti, categoria Didático e Paradidático (2017), tem escrita clara, apurada organização dos capítulos e trabalho gráfico e editorial de altíssima qualidade. Tais elementos contribuem para uma leitura prazerosa e muito esclarecedora sobre a temática. Sendo útil para aos mais variados tipos de leitores que desejem debruçar-se sobre o assunto, e que tenha interesse em conhecer mais sobre a importância da história da África e da contribuição dos africanos na formação da cultura e da sociedade brasileira. Leia Mais

Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália | Denise Rollemberg Cruz

É bastante perceptível o fascínio que a experiência nazifascista e a Segunda Guerra Mundial exercem no público – especializado ou não – de história no Brasil. Se os motivos para tal não cabem em uma resenha, vale ao menos mencionar que o amplo alcance tem seus bônus e ônus. Apesar de ser um contexto com ampla e consolidada bibliografia, em muitos espaços parecem persistir análises há muito relativizados pela historiografia acadêmica. Existe um claro embate narrativo que dificulta muito o estabelecimento desses discursos fora das universidades. E mesmo dentro delas.

É no sentido de contribuir para o rompimento dessa barreira que a obra Resistência: memória da ocupação nazista na França e Itália, fruto de pesquisa pós-doutoral de Denise Rollemberg da Cruz, se propõe a atuar. A autora, professora de História Contemporânea do Instituto de História e do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), tem a carreira bastante associada aos estudos sobre a ditadura militar brasileira, mas há algum tempo dedica-se também ao contexto europeu, em particular sobre os regimes autoritários da primeira metade do século XX. Existe um diálogo teórico basilar entre os eventos históricos que muito parece ter auxiliado a autora em suas reflexões: tratam-se de experiências traumáticas, que expõem indivíduos a situações-limite e colocam em questionamento projetos políticos que veiculam ideias de harmonia social. Mais do que isso, a historiografia está constantemente empenhada em “mexer no vespeiro” desses eventos, tão embrenhados no debate das relações entre memória e história nos dias atuais. Se a Europa é palco privilegiado do livro, ficam evidentes também as marcas da trajetória pregressa da autora nas linhas que o compõem.

A aposta de Rollemberg está, então, em promover uma discussão conceitual e uma abordagem metodológica que dê conta de exibir, nos casos francês e italiano, uma mostra material dessa tensão mnemônica relativa à ocupação nazista, sobretudo a partir dos discursos museológicos produzidos pelos estados em questão, esmerados em cristalizar determinadas abordagens sobre os eventos históricos que dão nome às instituições. Desde a apresentação, ela já nos apresenta um importante diagnóstico: foi a partir da glorificação da Resistência que começaram a surgir museus e memoriais da mesma (p.12). Importa destacar que a obra não versa apenas sobre o museu: um capítulo é dedicado a escrita epistolar, e o último, ainda que reflita sobre um museu, tem como eixo os usos da memória sobre um evento ocorrido na Itália. Trata-se, portanto, das relações entre história e memória.

O livro é dividido em cinco capítulos. O Capítulo 1 dedica-se ao debate teórico relativo à conceituação de “Resistência”2. Nele, fica evidente a complexidade do problema. Em cada uma das realidades analisadas – França, Itália e Alemanha – há um debate particular, e a mesma dificuldade em encontrar uma definição hegemônica. A fluidez polissêmica é o tom da questão, sempre mediada por interesses políticos e disputas discursivas. Se cada caso é um, parece à autora que as décadas de 1970 e 1980 foram comumente decisivas no sentido de serem o marco das transformações sociais que terminaram por acarretar no pensar sobre as Resistências. Distância temporal, acesso aos arquivos, interesses de geração, enfim, inúmeras circunstâncias propiciaram essa evidente mudança que, ao fim e ao cabo, irá acirrar as tensões memorialísticas sobre os eventos.

Na competente discussão historiográfica trazida pela historiadora, fica evidente uma espécie de fórmula para o desenrolar da reflexão conceitual em cada país: quanto mais autoritário o regime, mais elástico o conceito parece se tornar – e assim abraçar uma variedade ainda maior de comportamentos. Assim, para os franceses resistir é agir diante de um inimigo externo. Com os italianos, o debate se aprofunda, uma vez que uma questão se impõe: a resistência teria se dado em relação a Mussolini (então, desde a década de 1920) ou no contexto da capitulação da Itália, da ocupação alemã e da República de Saló (1943)? E no caso alemão, em que o país não foi invadido? Haveria espaço para resistir? O que seria resistir naquele contexto?

Há ainda outros imperativos que dialogam diretamente com cada realidade nacional. Por exemplo, aquilo que envolve a coletividade ou individualidade da agência. No caso francês, a ação é primariamente coletiva (ainda que algumas atitudes individuais sejam consideradas também atos de resistência), enquanto na Alemanha a individualidade se impõe. O mesmo contraste se observa em relação à legalidade: enquanto na França a ilegalidade é condição mandatória para o ato de resistir, na Alemanha os resistentes são encontrados dentro dos signos das leis de então (funcionários de Estado, generais e outros militares, por exemplo que, em suas atividades, conseguiram de alguma forma apoiar o combate ao nazismo). Aqui a escolha da autora em comparar as distintas experiências se mostra um grande acerto, pois fica evidente essa ocasionalidade que conforma o conceito. No Estado invadido pode haver essa associação com a coletividade porque essa – a princípio – é contrária à barbárie nazista3, enquanto no outro a resistência tem que ser individual porque a coletividade é o inimigo. Na primeira agir ilegalmente é enfrentar o autoritarismo; na segunda, é necessário buscar a partir da legalidade a prátia resistente.

À essa pequena amostra da complexidade do debate somamos as cores locais de cada caso analisado. O que cada autor (e fontes, nos capítulos seguintes) considera ser resistência. Isso também varia, e muito, ao longo do tempo e de acordo com as subjetividades e escolhas políticas. Rollemberg destaca a importância de trabalhos como os de Henri Michel na década de 1960 e de Robert Paxton na seguinte (p. 23-25) para promover o repensar sobre o papel da França e dos franceses na Segunda Guerra Mundial. Ao fim e ao cabo, a variante que torna a conceitualização de “resistência” tão difícil é justamente a vida humana, tão prenhe de inconsistências e desvios que marcam uma trajetória individual. Nas discussões analisadas pela historiadora, é crucial considerar o que Primo Levi chamou de “zona cinzenta”, que escancara a insuficiência da oposição “resistente” versus “colaborador”, como se somente existisse a possibilidade de ser um ou outro. O termo, como disse Levi em Os Afogados e os Sobreviventes (2004), refere-se a uma zona de contornos mal definidos, da qual bem e mal, culpa e inocência fundem-se nos comportamentos do campo, impedindo qualquer tentativa de racionalizar a experiência concentracionária. Extrapolar o uso do termo da experiência dos campos para as vivências em territórios ocupados ou governados pelos fascismos é, para essa historiografia, ser capaz de observar a multiplicidade de comportamentos e a imensa dificuldade em atingir o consenso. Rollemberg, nesse sentido, comenta que mais importante do que encontrar essa definição harmônica é observar justamente as tensões e limites do uso da palavra (p.67).

Importa, por fim, destacar nesse capítulo que a autora comenta também sobre outros conceitos que rodeiam o de resistência, como os de oposição, resiliência, dissensão, entre outros. Os tais múltiplos comportamentos que destacam a vida na zona cinzenta, repetimos, são difíceis de serem aceitos dentro das rédeas de uma definição.

Sem que esse debate se feche, ele ganha novos e intrincados contornos, quando confrontados diante da temporalidade e dos usos políticos do passado. Isso fica gritante ao final do capítulo, quando a historiadora nos atenta para uma importante tensão entre memória e história: há um evidente descolamento narrativo no que envolve a questão étnica e racial e a luta contra a extrema-direita nesse momento analisado. O aspecto racial dos fascismos não importava muito para a ação resistente4. Por outro lado, ele é crucial para o esforço de memória. Não foi o gatilho das resistências, mas é a tônica da lembrança sobre elas.

É com esse olhar que Rollemberg analisa os Museus e memoriais da Resistência no restante do livro. A parte 1, composta pelos capítulos 2 e 3, dedica-se ao caso francês. No capítulo 2, a autora enfoca um rico conjunto de cerca de 60 museus ao longo de todo o território nacional. Ao observar tão ampla gama de lugares de memória (e aqui devemos a Pierre Nora o aparato teórico para a discussão), a historiadora chega a algumas conclusões interessantes. Existem, é claro, especificidades para cada instituição, relativas a questões de acervo, iluminação, uso de som, recursos audiovisuais, a grandiloquência do local, a cenografia, entre outros aspectos. No entanto, também parece claro a ela um certo apego a determinados modelos. Charles de Gaulle e Jean Moulin, lideranças da Resistência (externa e interna) Francesa, são figuras onipresentes, que têm destacadas as suas ações heroicas durante o conflito, enquanto são deixados de lado aspectos que poderiam ser contraditórios (mesmo no Museu Jean Moulin, em Paris)5.

Em termos narrativos, visualiza a repetição daqueles lugares comuns que apostam na cronologia mais simples para tratar da ascensão da extrema direita no período entreguerras até o estopim do conflito mundial e a experiência concentracionária. Há um certo apagamento das regionalidades de cada museu em nome dessa narrativa única e da função pedagógica que lhes cabem (p.125). A autora observa que existem poucos relatos de sobreviventes de campos de trabalho nos museus, e de nenhum relativo aos colaboradores. Ora, isso seria escancarar as inconsistências, a zona cinzenta, e a participação ativa do estado francês no genocídio (p.122). Um desserviço ao esforço de pacificação do passado proposto pelos museus.

Aqui apresenta-se o argumento mais forte desse capítulo, que é justamente a percepção de que há uma sobreposição da memória em relação à história nas narrativas museológicas. Diz a autora:

Sendo os museus históricos – informativos ou comemorativos – lugares de memória, são por natureza do campo da memória, não da história. Em outras palavras, nasceram reféns da memória. A crítica, já existente em muitos museus da Resistência, encontra aí seus limites. Ela se realiza plenamente quando faz dos museus objeto da história. (p.97)

Justifica-se, assim, a relevância do estudo materializado no livro da autora. O museu possui a dupla função comemorativa e informativa. Precisa produzir conhecimento e provocar emoção. Em nome disso, escolhas são feitas, e silenciamentos promovidos sem muito pudor. A vocação maior do museu é a celebração, e não a crítica. Daí a escolha dos temas da perseguição e da deportação, mesmo que não tenham por muitas vezes sido a motivação primeira dos movimentos da Resistência celebrados no espaço museológico. Daí a renovação historiográfica que acompanha os estudos sobre o período desde a década de 1970 ser incorporada timidamente naqueles espaços de memória. Daí a potência de um discurso que valoriza um coletivo imaginado: nós resistentes enfrentamos ele (indivíduo) colaborador.

O terceiro capítulo dedica-se à análise da escrita epistolar numa situação extrema: indivíduos que, resistentes ou reféns, receberam o aviso de que seriam fuzilados. Diante da certeza da morte, dentro de poucas horas, vinha a última missão de resumir uma trajetória e enviar a última mensagem aos entes queridos em algumas linhas. O número de indivíduos que passou por essa experiência não foi desprezível: cerca de 4.020 pessoas (p.172).

Denise Rollemberg esmiúça a morfologia de um conjunto de centenas dessas cartas e observa que, da situação-limite nasce uma escrita-limite (p.182). Os autores, provenientes dos mais distintos grupos sociais, regiões e convicções políticas e religiosas recorrem, muitas vezes, a temáticas e argumentos semelhantes quando estão a se despedir da vida. Em geral, parece que prevalece a ideia do “bem morrer”: uma postura de tranquilidade em relação ao final de suas trajetórias. Claro que a autora leva em consideração que as cartas possuem o objetivo de tranquilizar parentes e companheiros, e por isso imprimir um tom de serenidade pode ser importante para aquelas pessoas. Além disso, não se pode desprezar que essas cartas passaram pela censura (seja alemã, seja francesa) antes de chegar aos destinatários. Outras que contivessem informações consideradas problemáticas jamais conheceriam o seu destino.

Outros apontamentos são dignos de menção. Reforçando a ideia presente no primeiro capítulo sobre a clivagem entre história e memória, ela observa que, no íntimo, o judaísmo não é a força motriz desses indivíduos. São raras as menções à rotina judaica, ainda que o elo com valores cristãos seja bastante presente (p.189). Isso, aliás, é um argumento interessante da autora, que observa a prevalência dos valores da família, religião e tradição nas cartas. Ora, a tríade é bastante próxima do lema da França de Vichy: trabalho, família, pátria (p.199). A ela, parece então que os valores dos condenados são bastante conservadores, ao ponto de se confundirem com aqueles dos colaboracionistas.

Se algo parece revolucionário à autora, é na questão dos condenados com suas esposas. Mesmo diante da pressão de uma sociedade católica e conservadora, quase sempre sugeriam que suas mulheres buscassem a felicidade em novos relacionamentos. Isso, talvez, esteja de acordo com aquilo que subjaz a esse tipo de escrita: as cartas de despedida são, no limite, cartas para si. São expressões da imagem que aquelas pessoas queriam deixar para a posteridade, como gostariam que fossem lembrados. É, de alguma forma, a curadoria de uma memória individual.

A Parte II do livro analisa o caso italiano. No capítulo 4, Rollemberg estuda dezesseis museus e suas construções memorialísticas. Convencionou-se no discurso museológico que a resistência no país teria início em 8 de setembro de 1943, quando do armistício italiano. Esses museus escrevem uma história da Itália até abril de 1945, quando termina a ocupação estrangeira do país. A escolha narrativa, então, fica clara: trata-se do combate contra a Alemanha, e não ao fascismo de Mussolini, que demandaria um recuo temporal maior. Dessa forma, também elencam indivíduos do partido fascista como heróis da Resistência nos museus e memoriais.

Ao mesmo tempo, há um sutil deslocamento temporal do antifascismo na Itália, como se ele fosse dominante desde a década de 1930, e não somente após a crise do regime de Mussolini depois de 1940. O esforço de silenciar o passado fascista é bem claro. É por isso, também, que os museus italianos, diferente dos franceses, apostam mais nas histórias locais em suas representações. É mais um artifício para afastar-se do coletivo, uma vez que o governo italiano era fascista ao início do conflito.

O caso mais curioso destacado pela autora nesse capítulo é o da Piazzale Loreto, em Milão, onde ocorreu a famosa efeméride na qual os corpos de Mussolini, sua amante Clara Petacci e outros fascistas foram pendurados num posto de gasolina e ficaram expostos para a população local. Da cena, restam pouco mais que vestígios. O posto não está lá, o matagal cobre o memorial existente no local… O passado embaraçoso foi sendo recalcado, e tentou-se imprimir, a partir da Resistência, a visão oposta, a do júbilo pela morte gloriosa, diretamente associada ao martírio cristão.

O capítulo final discorre sobre uma das grandes histórias da resistência italiana, a dos Sette Fratelli. Na região da Emilia-Romagna, em 28 de dezembro de 1943, sete irmãos, trabalhadores rurais, foram fuzilados. Faziam parte de uma família que, ali, fazia oposição ferrenha ao regime fascista (o irmão mais velho era do Partido Comunista) e, quando da Ocupação, auxiliava em ações clandestinas para proteger outros membros da oposição ao regime. Centenas de estrangeiros passaram pela fazenda da família e encontraram abrigo e proteção. Não poderia haver narrativa mais conveniente a um esforço de memória sobre a Resistência.

A autora destaca a potência dessa história familiar aos esforços de memória, e mapeia as variações narrativas sofridas pela mesma. O cortejo dos corpos, acompanhado por uma multidão, ganhou status de celebração da liberdade somente quatro anos depois de ocorrido. E foi em 1953, quando Ítalo Calvino escreveu dois textos sobre o acontecido – o que por si só já é uma amostra do alcance da história – ela parece se estabelecer no imaginário social, inspirando outras obras literárias, pinturas e o cinema, através de documentários e um filme. A casa da família, naturalmente, tornou-se um museu. Aqui, não parece haver espaço para a historiografia. Calvino comete um equívoco (intencional ou não), situando a formação do grupo resistente após o armistício e não no contexto anterior, quando de fato ocorreu, e é essa narrativa que se cristaliza. Uma vez mais, como diz Rollemberg, “a memória inventa o passado” (p.345).

Resistência parece cumprir uma dupla função no debate acadêmico brasileiro. Por um lado, é mais um expoente da hoje consolidada discussão acerca das relações entre história e memória, presente em parte relevante de teses e dissertações produzidas nos últimos anos. Traz à cena uma bibliografia mais ampla sobre um debate que nos tem sido tão caro. Ao mesmo tempo, esse panorama conceitual e metodológico propicia novas visões sobre os fascismos e sobre a guerra, que devem ser levadas em conta em novas publicações sobre o tema.

Notas

2. A história dos conceitos, como sabemos, ganhou bastante corpo sobretudo a partir dos estudos de Reinhart Koselleck. Lembremos com o autor (mesmo que não tenha sido citado por Rollemberg) da ideia de que um conceito é também um ato – uma vez que colabora com uma prática ou ação no tempo histórico, e não apenas o nomeia. Isso fica muito claro com o conceito de Resistência.

3. É muito importante destacar que aqui pensamos dentro da perspectiva das narrativas construídas sobre os eventos e que foram centrais nas discussões conceituais sobre a “Resistência”. Dizemos isso por conta da experiência colaboracionista francesa, encarnada na França de Vichy, que a autora também destaca e analisa em seu livro.

4. O antissemitismo, por exemplo, não fazia parte dos discursos e práticas políticas de Mussolini na Itália. Na França, a maioria dos movimentos que compôs a M.U.R. (Movimentos Unidos da Resistência) não tinha a luta racial como pauta.

5. Na própria apresentação do livro a autora destaca a homossexualidade de Jean Moulin, que não aparece em nenhuma narrativa museológica, já que o grande mártir da Resistência não poderia, dentro de uma perspectiva conservadora de sociedade, estar associado a esse aspecto de sua intimidade. Lembremos também da problemática presidência de De Gaulle no contexto pós-guerra, entre 1959 e 1969.

Jougi Guimarães Yamashita – Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Ensino Fundamental da Escola Municipal Albert Einstein-RJ. E-mail: jougihist@gmail.com  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3686-4500


CRUZ, Denise Rollemberg. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Ed. Alameda, 2016. Resenha de: YAMASHITA, Jougi Guimarães. As resistências à história nas narrativas museológicas francesas e italianas. Caminhos da História. Montes Claros, v. 23, n.1, p.118-124, jan./jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

Espírito Santo Indígena: Conquista, trabalho, territorialidade e autogoverno dos índios, 1798-1860 | Vânia Maria L. Moreira

Li com muito interesse – e fiquei encantado com o que li – o livro Espírito Santo indígena. Até porque ele nos dá pistas importantes daquilo que chamo da construção imaginária da sociedade capixaba, da sua identidade e do papel relativo de cada etnia neste contexto.

O livro, afirmo, é de leitura indispensável para os que querem compreender melhor a construção histórica da nossa sociedade. Seu nome expressa muito: Espírito Santo Indígena: conquista, trabalho, territorialidade e autogoverno dos índios, 1798-1860. Leia Mais

History of Education in Latin America | UFRN | 2018

Histtela2 Horizontes Históricos | UFS | 2018

A revista History of Education in Latin America – HistELA (Natal, 2018-) é um periódico vinculado ao Grupo de Pesquisa História da Educação, Literatura e Gênero do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, exclusivamente eletrônico, de acesso aberto e publicação contínua de pesquisas com temas associados à história e à historiografia da educação.

A revista aceita manuscritos do tipo artigos, resenhas, entrevistas e documentos em português, francês, espanhol e inglês na área de história da educação e áreas correlatas.

[Periodicidade anual].

[Acesso livre].

ISSN 2596-0113

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Guayrá | Marco Aurélio Cremasco

Marco Aurélio Cremasco é um escritor paranaense, engenheiro químico de formação e professor da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Como escritor de literatura já publicou cinco livros de poesia: Vampisales (1984), Viola caipira (1985), A criação (1997), Fromlndiana e as coisas de João Flores (2000); um livro de contos: Histórias prováveis (2004); e um romance: Santo Reis da luz divina (2007), com o qual foi Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti. Leia Mais

Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil | Flávio Gomes dos Santos

Flávio dos Santos Gomes é doutor em história, professor dos programas de pós-graduação em arqueologia (Museu Nacional/UFRJ) e em história comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Publicou livros, coletâneas e artigos em revistas nacionais e internacionais com os temas Brasil colonial e pós-colonial, escravidão, Amazônia, fronteiras e campesinato.

A obra está organizada em 13 capítulos, sendo eles: Um fenômeno hemisférico; Formação; Ataque e defesa; Família, mulheres e culturas; Aquilombados, negociações e conflitos; Misturas étnicas; Nas fronteiras com as Guianas; Formas camponesas coloniais e pós-coloniais; Em torno de Palmares; Outros quilombos coloniais; Histórias de quilombolas e mocambeiros e Remanescentes e simbologias dos vários quilombos do Brasil. Leia Mais

História Social da Arte / História, histórias / 2018

Apresentação

Este dossiê reúne artigos que analisam criações artísticas (visuais e literárias) de acordo com os pressupostos teórico-metodológicos da História Social da Arte, cujo princípio fundamental é a indissociabilidade do estudo da obra de arte, do artista e da sociedade na qual, ou para a qual, foi concebida. Os sete textos que compõem o presente dossiê cobrem, juntos, um extenso período histórico: do século XVI ao XXI.

O artigo de Maria Leonor Garcia da Cruz apresenta reflexões sobre o pensamento político, social e espiritual do século XVI a partir do cruzamento de criações das belas-artes e das belas-letras, tendo como fontes de pesquisa obras de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), Hans Holbein, o Moço (1497/98-1543), César Ripa (c.1555/60-1622), Alciato (1492-1550), Gil Vicente (1460/70-c.1536), Thomas More (1478-1535) e Maquiavel (1469-1527). Considerando que “o homem do século XVI é naturalmente crente”, a autora investiga os discursos quinhentistas – principalmente as criações textuais e visuais de cunho sarcástico e irônico – destacando os seguintes aspectos: a) a soberba e a ambição voraz , “ou seja, a opção pelo fraudulento e efêmero, em lugar de uma elevação da alma e de conduta ética, moral e política”; b) “a arbitrariedade do governante, contrapondo a tal conduta objectivos que lhe são superiores, limites morais e práticos, das modalidades de escolha ao uso do conselho e de outras técnicas de governo”; c) a “crueldade do exercício da justiça e sobretudo o desvio (não por incapacidade, mas intencional) de uma prática regulada por lei, sussobrante a subornos e favoritismos”. Seu estudo demonstra que a prédica do período, seja por meio da ironia, da idealização, ou mesmo da utopia, esforça-se “por endireitar um mundo que parece irremediavelmente invertido”.

Sabrina Mara Sant’Anna examina em seu artigo a importância do decoro do sacrário eucarístico no Bispado de Mariana, verticalizando a investigação de casos ocorridos entre 1745 e 1779 em que o Santíssimo Sacramento precisou ser transferido para uma casa provisória por estar a sua casa indecente. Debruçando-se sobre a legislação eclesiástica americana portuguesa, as cartas provenientes de visitas pastorais e a documentação confrarial setecentista, a autora apresenta “a teia de relações que envolvia os devotos, os artistas/artífices, as autoridades eclesiásticas e o padroado régio” quando o assunto era a fatura de um altar-retábulo com sacrário destinado ao armazenamento da reserva eucarística. Nos três casos analisados no artigo – Matriz do Ribeirão do Carmo (elevada à Catedral de Mariana em 1745), Matriz de Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara e Matriz das Congonhas do Campo – Sabrina verifica a indispensabilidade do decoro da casa do Santíssimo, “inclusive quando a referida casa era apenas provisória (normalmente um sacrário de altar confrarial localizado na nave dos templos usado enquanto o tabernáculo eucarístico estava impedido, isto é, em obras, ou indecente e precisando de obras)”.

Camila Fernandes Guimarães Santiago analisa em seu artigo a produção do Missal Romano e suas estampas editados em Portugal a partir 1760, época em que as políticas econômicas protecionistas adotadas pela coroa favoreciam as concessões de privilégios de impressão aos naturais do reino e proibia a importação de missais estrangeiros, sobretudo os advindos de casas tipográficas localizadas em Veneza e Antuérpia. O primeiro beneficiário foi o editor lisboeta Francisco Gonçalves Marques, cuja concessão foi renovada três vezes desde de 1760 até que, por decreto da rainha D. Maria I, em 1779 o monopólio foi transferido para a Regia Officina Typpographica. A autora destaca que na Capitania das Minas, região interiorana da América Portuguesa, a política de reserva de mercado operada pela coroa ocasionou a predominância dos missais editados após 1780, “o que interferiu, por sua vez, no universo de insinuações artísticas europeias ali disponíveis, uma vez que suas estampas apresentavam pendores classicizantes, de origem italiana”.

O artigo de Roselene de Souza Ferrante apresenta um estudo sobre Pasquale De Chirico, escultor italiano que se formou na Real Academia de Belas Artes de Nápoles e que imigrou para o Brasil durante a Primeira República. A ele atribui-se a primeira fundição artística de São Paulo, cidade onde morou e realizou bustos e estátuas públicas de José Bonifácio (em Santos), Coronel José Joaquim (em São João da Boa Vista) e Nossa Senhora da Conceição (fachada da antiga Catedral em Aparecida do Norte). Em Salvador, onde passou a residir a partir de 1905, Pasquale de Chirico executou diversos conjuntos de estatuária pública: Barão do Rio Branco, Visconde de Cairú, Dom Pedro II, Conde dos Arcos, Padre Manoel da Nóbrega e Castro Alves, além de lecionar escultura na Escola de Belas Artes da Bahia e contribuir, portanto, para a formação de artista locais. Também foi na Bahia que o imigrado italiano realizou em 1936 uma exposição apresentando o negro como objeto artístico. Embora os estudos raciais estivessem na pauta de discussão dos intelectuais brasileiros, inclusive na Faculdade de Medicina e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Roselene enfatiza que “em Pasquale De Chirico não há o desejo de retratar o tipo negro como um dado científico. Existe interesse em registrar o sujeito cotidiano, possivelmente, o que lhe parecia exótico”.

Em seu artigo Dagmar Manieri analisa a estrutura mitológica de Macunaíma – romance de autoria do modernista Mário de Andrade – tendo como referência os estudos de Lévi-Strauss e o contexto histórico, social e político do Brasil na década de 1920. Discorrendo sobre as razões da dissidência ocorrida no interior do Partido Republicano Paulista (PRP) e a consequente formação do Partido Democrático (PD), Dagmar destaca a atuação de Mário de Andrade como líder cultural dessa nova elite política que se opunha ao modelo de modernização urbana implementado no Rio de Janeiro, capital federal à época. O PD defendia a renovação democrática (tanto do pensamento político, quanto dos grupos dirigentes), a participação popular e, sobretudo, “a difusão do ensino em todos os graus”, pois só assim o Brasil se tornaria de fato moderno. Para Dagmar Manieiri o romance que Mário de Andrade publicou no final da década de 1920 sob o título Macunaíma “deve ser entendido como parte de uma reação ao modelo de modernização autoritária executada na Presidência de Rodrigues Alves (1902-1906) na Capital Federal”.

O artigo de Liszt Vianna Neto destaca a carência de pesquisas sobre a influência de artistas modernistas imigrados de países de língua alemã na gênese do modernismo carioca e apresenta um estudo sobre a trajetória e a produção artística de Leo Putz, pintor austro-húngaro que chegou ao Brasil em 1929 já sexagenário. Liszt discute a reforma modernizante implementada na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) no início da década de 1930 pelo então diretor Lúcio Costa e as críticas nacionalistas que recaíram sobre sua atuação, agravadas ainda mais pela contratação de três professores estrangeiros, entre eles Leo Putz. A admissão deste reconhecido mestre da pintura moderna alemã como professor de Composição na ENBA foi apoiada e defendida por Cândido Portinari, Hernani de Irajá e José Marianno Filho. Durante os quatro anos em que esteve no Brasil (passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia) Putz se entregou “ao basbaque e à maravilha da natureza e da luminosidade dos trópicos”, alterando completamente sua paleta de cores. Em 1933 ele voltou para a Alemanha, onde faleceu em 1940. Sua passagem pela ENBA, conforme destaca o autor, contribuiu para a formação da primeira geração de modernista cariocas.

O artigo de Sandra de Cássia Araújo Pelegrini e Gustavo Batista Gregio apresenta investigação sobre o engajamento artístico e social na obra de Vik Muniz, tendo como objeto principal de estudo as séries de retratos The Sugar Children (Crianças de Açúcar) e Pictures of Garbage (Retratos do Lixo) realizadas respectivamente em 1996 e 2008. Os autores discutem a influência da Pop Art na obra de Vik Muniz, em especial a produção artística de Andy Warhol que criticava “o consumismo exacerbado da sociedade contemporânea”. Para os autores, “artistas como Andy Warhol ou Vik Muniz devem ser abarcados como agentes sociais que interagem e dialogam com suas realidades, representando suas próprias visões de mundo em uma linguagem própria”. Sandra e Gustavo consideram que para Vik Muniz “a arte tem como ‘função’ interferir no cotidiano das pessoas” e modificar a perspectiva delas em relação a si mesmos e aos outros e é exatamente isso que os autores discutem ao analisarem as séries The Sugar Children e Pictures of Garbage. Na primeira o artista utilizou o açúcar para retratar a “doçura pueril” de crianças, cujos pais trabalhavam em canaviais localizados no Caribe, chegando a jornadas exaustivas de mais de 16 horas e, na segunda, usando de material reciclado, retratou sete catadores de lixo do maior aterro sanitário da América Latina: o Jardim Gramacho.

Na esperança que este dossiê inspire novas pesquisas e contribua para o avanço da História Social da Arte, subscrevo-me desejando a todos uma boa leitura.

Prof ª Drª Sabrina Mara Sant’Anna

Setembro de 2018.

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Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.11, n.1. 2018.

DOSSIÊ

HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO

Os Dois Lados da Guerra Civil: análise histórica e filosófica do maior conflito entre super-heróis | Bruno Andreotti

Este texto visa resenhar o livro Os dois lados da Guerra Civil: análise histórica e filosófica do maior conflito entre super-heróis, lançado em março de 2016 pela editora paulista Criativo. Escrito pelos “Quadrinheiros”, grupo formado por Adriano Marangoni, Bruno Andreotti, Iberê Moreno e Maurício Zanolini, o livro aborda a saga quadrinística da Guerra Civil, lançada pela editora Marvel entre os anos de 2006 e 2007, e trazendo, como o próprio título sugere, uma discussão historiográfica em torno das conexões culturais, políticas e sociais trazidas pela saga, cuja temática envolve um conflito entre super-heróis americanos decorrente de uma medida governamental exigindo o registro compulsório dos mesmos junto ao governo, que dividiu os heróis.

O livro, em suas 207 páginas, está dividido em seis capítulos principais, uma introdução e uma conclusão, e em alguns chamados “extras”, incluindo um glossário e uma interessante análise estética do traço dos desenhistas da saga. Um prefácio do professor Antonio Pedro Tota (PUC/SP) introduz a obra, apresentando os autores e os temas que serão abordados no livro. Leia Mais

III Seminário Internacional História do Tempo Presente – III / Tempo e Argumento / 2018

A revista Tempo e Argumento, neste dossiê especial, com grande satisfação, traz um conjunto de artigos apresentados durante o III Seminário Internacional de História do Tempo Presente, que ocorreu entre os dias 25 e 27 de outubro de 2017, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O evento, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), desde a sua primeira edição, em 2011, tem dois objetivos principais: estimular o debate acerca da produção historiográfica sobre a história do tempo presente, em nível nacional e internacional, do ponto de vista da construção das narrativas e das questões de ordem teórico-metodológicas; divulgar para o público acadêmico da graduação e pós-graduação, pesquisadores e profissionais de diferentes áreas e para os / as docentes das redes de ensino fundamental, médio e superior os resultados das produções do referido campo de conhecimento.

O III Seminário Internacional de História do Tempo Presente contou com três conferências, quatro mesas redondas, dez simpósios temáticos e lançamento de livros. Os debates historiográficos, a preocupação com questões advindas das demandas políticas, sociais e econômicas e a perspectiva da interdisciplinaridade nortearam em grande parte essas distintas atividades que tiveram como público 364 participantes entre discentes, docentes e pesquisadores. O evento teve apoio institucional da UDESC, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC). A comissão organizadora do evento foi composta por seis docentes do PPGH: Cristiani Bereta da Silva, Luiz Felipe Falcão, Mariana Joffily (coordenadora geral), Rafael Rosa Hagemeyer, Silvia Maria Fávero Arend e Viviane Trindade Borges; pelas pesquisadoras Juliana Sayuri Ogassawara e Nashla Aline Dahas Gomozias que realizam estágio pós-doutoral; e pelos doutorandos Daniel Lopes Saraiva e Yomara Feitosa Caetano de Oliveira Fagionato, ambos do PPGH. Além deste dossiê, o evento publicou os anais eletrônicos, com 145 textos apresentados nos simpósios temáticos, que podem ser acessados no seguinte endereço: http: / / www.seminariotempopresente.faed.udesc.br / index.php / 2013-11-03-15- 03-56.

Este dossiê especial é composto por doze artigos, sendo dois deles produto das conferências realizadas pelos professores Christian Delacroix e João Quartim de Moraes. Os outros dez artigos foram apresentados nas quatro mesas redondas. Os artigos da conferencista Liz Sevcenko, professora da Columbia University (Estados Unidos da América), e de Rafael Rosa Hagemeyer e Silvia Maria Fávero Arend, ambos docentes da UDESC, serão publicados em outros periódicos.

O artigo de Christian Delacroix, pesquisador do Institut d’Histoire du Temp Présent (IHTP) e professor da Universidade Paris Est Marne-La-Vallée, intitulado “A história do tempo presente, uma história (realmente) como as outras?”, tem como temática a emergência e consolidação da História do Tempo Presente enquanto um campo de estudos. O autor aborda questões de ordem epistemológicas e relativas às fontes documentais que referendam essa proposta historiográfica. A tradução do texto para a língua portuguesa foi realizada pelos pesquisadores Fernando Coelho e Silvia Maria Fávero Arend.

Marieta Morais Ferreira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no artigo “Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil”, descreve o percurso transcorrido em relação à introdução e consolidação da história do tempo presente no Brasil desde os anos de 1980, enfatizando o papel assumido nesse processo pela história oral e pelos eventos relativos à justiça de transição ocorridos no país. Já Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, no artigo “Cultura política e ditadura: um debate teórico e historiográfico”, apresenta inicialmente uma discussão de caráter epistemológico a respeito do conceito de culturas políticas para, posteriormente, abordar as possiblidades de utilização do mencionado Editorial Silvia Maria Fávero Arend, Luiz Felipe Falcão referencial teórico na análise de fenômenos da sociedade brasileira. Esses dois artigos foram apresentados na mesa redonda “Consolidação da História do Tempo Presente no Brasil”, que foi composta pelos dois pesquisadores e por Silvia Maria Fávero Arend.

A docente da Universidad Nacional de San Martín (Argentina), Marina Franco, no artigo “La última dictadura argentina en el centro de los debates y las tensiones historiográficas recientes”, apresenta uma análise do atual “cenário” relativo à escrita da história da ditadura militar na Argentina. Já a historiadora Verónica Valdívia, docente da Universidad Diego Portales (Chile), no artigo “Gritos, susurros y silencios dictatoriales. La historiografía chilena y la dictadura pinochetista”, realiza também um balanço historiográfico sobre o tema da ditadura no Chile. A docente da UDESC, Mariana Joffily, no artigo “Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas”, tendo em vista as efemérides relacionadas ao golpe de Estado ocorrido no Brasil em 1964, discute a produção de narrativas sobre a ditadura e suas repercussões nos campos historiográfico e político. Esses três textos foram apresentados na mesa redonda “Ditaduras do Cone Sul: Debates e Implicações Política”.

Ana Maria Maud, professora da Universidade Federal Fluminense, no artigo “Imagens em fuga: considerações sobre espaço público visual no tempo presente”, analisa os usos da fotografia pública histórica nos circuitos sociais e políticos. Ricardo Santhiago, docente da Universidade Federal de São Paulo, no artigo “História pública e autorreflexividade: Da prescrição ao processo”, apresenta inicialmente como se deu a emergência e consolidação da história pública, para, ulteriormente, apresentar um estudo de caso sobre mulheres e história oral. De sua parte, Viviane Trindade Borges , docente da UDESC, no artigo “Memória pública e patrimônio prisional: questões do tempo presente”, discute os problemas vigentes nos processos de patrimonialização dos espaços prisionais tendo em vista os casos do Brasil, França, Portugal e Estados Unidos da América. Esses três artigos foram debatidos na mesa redonda “História Pública e Tempo Presente: Interfaces e Perspectivas”.

Javier Campo, docente da Universidad Nacional del Centro de la Província de Buenos Aires (Argentina), no artigo “¿Cine + sociedad? El caso del documental político entre las narrativas revolucionarias y las democrático humanitárias”, aborda questões caráter epistemológico presentes na relação entre a história e os documentários a partir da produção cinematográfica argentina produzidos entre 1968 e 1989. Marcelo Teó, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas, no artigo “Desequilíbrio de história Parte I: um problema do campo das humanidades (?)”, apresenta um conjunto de reflexões acerca da produção de narrativas audiovisuais em consonância com os debates feitos no campo das ciências humanas. Esses dois artigos foram debatidos na mesa redonda “Mídias Audiovisuais e Imaginação Histórica”, que contou também com a presença de Rafael Rosa Hagemeyer, docente da UDESC.

Por fim, o professor da Universidade de Estadual de Campinas, João Quartim de Moraes, no artigo “A revolução de Outubro na história do século XX”, apresenta um panorama de como a temática da revolução russa de 1917 foi tratada por um conjunto de autores, sobretudo, do campo das esquerdas.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Silvia Maria Fávero Arend

Luiz Felipe Falcão

Editores


AREND, Silvia Maria Fávero; FALCÃO, Luiz Felipe. Editorial. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.23, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Reflexões teóricas e narrativas históricas no Tempo Presente / Tempo e Argumento / 2018

E a história hoje…

O dossiê – Reflexões teóricas e narrativas históricas no tempo presente – reúne artigos que se dedicam a um duplo-esforço: o de pensar o mundo contemporâneo, e isso a partir da preocupação com a diferença, ou ainda, com todo e qualquer modo de ser ou perspectiva que venha despontando, com especial destaque para as discussões que articulam narrativas históricas no tempo presente. Em linhas gerais, se trata do que temos chamado de uma tendência (ou giro) ético-política no interior da teoria da história, da história da historiografia, da disciplina em geral.

A qualidade específica da disciplina história é a de constituir compreensões acerca de passados, no entanto, o que temos percebido é que temos tido nas últimas décadas um interesse crescente por parte de historiadores e historiadoras em (também) pensar problemas próprios ao nosso presente, o que tem sido feito a partir de uma abertura temporal capaz de reconhecer passados que não passaram, irrupções e insurgências, bem como usos e apropriações do passado. Neste sentido, podemos dizer que esse interesse está diretamente relacionado com algo mais geral, com o próprio horizonte histórico atual, com suas demandas, pontos de saturação e problemas contemporâneos.

Tais demandas e intervenções têm se constituído a partir de uma forte tensão com o que podemos chamar, de um lado, democratização, e, por outro lado, certo conservantismo comprometido com uma perspectiva mais homogênea e mesmo tradicional da realidade. Uma tensão, precisamos sublinhar, que se constitui a partir de uma intimidade significativa de certo caráter técnico do saber, ou ainda, com um modo de ser e um ritmo marcado pela necessidade constante (algumas vezes sem sentido) de produção e produtividade com fins nem sempre qualitativos.

Desse modo, se, por um lado, o nosso horizonte histórico está num momento crítico, decisivo, o que temos, por outro, é uma preocupação mais geral e crescente no interior das humanidades em participar desse momento crucial, especialmente a partir de um cuidado especial com isso, que é a diferença, e com a democratização. Nesse contexto, a disciplina história tem se esforçado e tem tido um papel expressivo a partir de um diálogo profundo com a filosofia, literatura, antropologia etc., re-tematizando insistentemente determinados passados e se esforçando no sentido de constituir atmosferas próprias à retenção da tensão no interior do espaço público.

No que pese a desqualificação do exercício de reflexão histórica, parece fundamental abrirmos o tempo atual às múltiplas temporalidades, desnaturalizar o presente, acenar para novas abordagens e problemas do contemporâneo. Este dossiê é um exercício de imersão nesse campo de disputas. A partir da reflexão de historiadoras e historiadores, convida ao debate sobre os limites e potencialidades da narrativa histórica no tempo presente.

Ao propormos este dossiê para a revista Tempo e Argumento, não esperávamos pelo número de quase 40 artigos submetidos. A partir da avaliação ad hoc, selecionamos 11 textos. Acreditamos que são representativos da diversidade teórica e metodológica da história em tempos recentes, assim como da possibilidade de intervenção nas questões que afligem as humanidades, e a história em particular.

Esperamos que os leitores não deixem os artigos caírem na vala comum das milhares de produções científicas que circulam na internet, ou seja, que leiam, critiquem e debatam entre colegas e alunos. Que se posicionem sobre as reflexões propostas e, com isso, intervenham nas discussões do nosso tempo.

Marcelo de Mello Rangel

Rogério Rosa Rodrigues

(Organizadores)


RANGEL, Marcelo de Mello; RODRIGUES, Rogério Rosa. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Memória e usos políticos do passado: 130 anos da abolição e pós-abolição / Tempo e Argumento / 2018

13 de maio de 2018. Há 130 anos foi promulgada a Lei Áurea, que aboliu definitivamente a escravidão em todo o Brasil. A evocação dessa data assume para todos nós a indicação de uma efeméride. Mas o que são efemérides? Mais do que a celebração de um acontecimento ou fato importante assinalado em determinada data, são pontas de icebergs, emergem da “relação inextricável entre o acontecimento, que elas fixam com a sua simplicidade aritmética, e a polifonia do tempo social, do tempo cultural, do tempo corporal, que pulsa sob a linha de superfície dos eventos”.1 As efemérides, com todos os seus significados, usos e apropriações sociais, políticas e culturais, provocam reflexões. Desafiam-nos ao exame crítico. Assim, elas são balizas importantes para os historiadores e cientistas sociais de modo geral. Há muito do passado no presente desta nação. Não se pode dizer que tudo é uma decorrência da escravidão, mas devemos ponderar como o Brasil, o último dos países das Américas a abolir o regime de cativeiro, foi marcado pela experiência da escravidão, cujos legados (sociais, políticos, culturais e simbólicos) não podem ser esquecidos. Ao contrário, devem fazer parte da agenda nacional.

Conforme assinalam Maria Helena Machado e Lilia Schwarcz, os movimentos de emancipação nas Américas traduziram conjuntos de processos históricos de larga amplitude, os quais recolocaram, em novas perspectivas, desafios e dilemas antigos, mas atualizados a partir de novos cenários: “a questão do trabalho, do lugar social dos africanos e afrodescendentes nas sociedades sem escravidão, o problema da raça e da mestiçagem nos quadros dos emergentes Estados nacionais e de uma ciência comprometida com a construção de sistemas de classificação e exclusão, a questão da imagem e da formação de estereótipos e políticas de representação pós-coloniais”. As autoras ressaltam, igualmente, o papel das relações de gênero como marcador social da diferença, influenciando e intersecionando as experiências de homens e mulheres nos limiares das invenções da liberdade. Quando colocados em relação, “esses diferentes marcadores – como raça, etnia, região, gênero, classe – revelam panoramas diferenciados, mas ao mesmo tempo persistentes na determinação e preservação de processos de exclusão social” na nossa sociedade. 2

Este dossiê tem por finalidade apresentar pesquisas atuais sobre a história da abolição e pós-abolição no Brasil, conferindo atenção especial aos usos públicos e políticos da memória e suas implicações sociais, culturais, políticas e identitárias em suas diferentes manifestações numa sociedade marcada pelas heranças ressignificadas do cativeiro. A iniciativa de organizar este dossiê também respondeu ao crescente (e renovado) interesse pela temática.

São oito artigos selecionados. Como ponto de partida, Francisco Assis Nascimento e Túlio Henrique Pereira analisam as formas pelas quais o corpo humano foi representado em duas imagens publicadas no impresso baiano A Coisa e em uma imagem publicada na revista norte-americana Verdict. O argumento dos autores é que essas imagens, colocadas em circulação pela imprensa ilustrada entre o final do Império e a Primeira República no Brasil, conferem visualidades para esses corpos, ao mesmo tempo em que veiculam discursos raciais, culturais, sociais e políticos. No artigo seguinte, Karla Leandro Rascke examina a produção e difusão da chamada imprensa negra em Florianópolis, nas primeiras décadas após a Abolição. Mostra como os “homens de cor” letrados da capital catarinense se mobilizaram em prol de direitos, valendo-se, para tanto, de jornais, que vocalizavam seus projetos de ascensão social e de cidadania.

Já Petrônio Domingues investiga a presença do jazz no meio negro de São Paulo na década de 1920, demonstrando como o estilo de origem afro-diaspórica impactou a vida daquele segmento populacional, influenciando suas experiências culturais relacionadas especialmente aos estilos modernos e cosmopolitas. No artigo posterior, Yussef Daibert Salomão de Campos discute como a Constituição brasileira de 1988 trata os direitos quilombolas e indígenas, tanto em relação à terra quanto à cultura. Seu argumento é que a Carta Magna é incoerente, na medida em que separou o binômio lugar e território das práticas e bens culturais classificados como patrimônio. A seu ver, essa separação, que aparece no texto legal, só pode ser compreendida à luz do jogo político.

Ao reconstituir a trajetória dos Cazumbás na Bahia, José Bento Rosa da Silva examina em seu artigo como uma família de descendentes de africanos, desde o século XIX, mantém o sobrenome familiar e como isto tem implicações nas questões relacionadas à identidade, história e memória dos Cazumbás. Na sequência, Fernanda Barros dos Santos lança seu olhar para a relação entre Estado e movimentos sociais negros no Brasil contemporâneo. Além de comparar como os governos de José Sarney (1985-1990), Fernando Henrique Cardoso (1995- 2003) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) lidaram com a questão racial, a autora esquadrinha o surgimento da Fundação Cultural Palmares (1988) e da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2010.

Luís Fernando Cerri e Rubia Caroline Janz, por sua vez, abordam a implantação da lei n. 10.639 / 2003, a qual tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação básica, por meio de elementos da aprendizagem e das opiniões de estudantes. No artigo, são analisados como os estudantes do Ensino Médio da cidade de Ponta Grossa, no Paraná, concebem questões relativas à escravidão, práticas de resistência e o processo de abolição do cativeiro. Já Gustavo de Andrade Durão, no artigo derradeiro desse dossiê, perscruta alguns aspectos do conceito de pan-africanismo como meio de se conectar ao debate pós-colonial. Enfocando análises transnacionais de pensadores importantes como Edward Blyden, Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois, o autor procura mapear as perspectivas pelas quais tais pensadores se debruçaram para constituir as definições de pan-africanismo e do pós-colonial, um debate atual e desafiador para os estudos afro-diaspóricos.

Os artigos aprofundam análises e discussões cujo eixo gira em torno de escolhas temáticas, objetos, abordagens, cronologias e universos empíricos que interseccionam o pósabolição e as questões contemporâneas emergentes. O objetivo foi reunir pesquisas centradas em processos históricos multifacetados – experiências, ideias, narrativas, agências, contextos, movimentos, instituições e seus protagonistas. O dossiê oferece ao leitor um rico e instigante painel do que vem sendo produzido sobre a história, a memória e as políticas raciais a respeito do Brasil na era das emancipações e do pós-abolição, o que certamente contribuirá para a ampliação do conhecimento sobre o campo.

Marc Bloch define a história – “ciência dos homens no tempo” – a partir de dois atributos: o seu caráter humano e as relações dialógicas entre passado e presente. Com relação a este último aspecto, chamou a atenção para a importância de compreender o “presente pelo passado” e o “passado pelo presente”, nunca pelas vias de um trajeto linear, mas levando em conta as influências mútuas (rupturas e continuidades). Bloch ressalta que a visão de um mesmo passado se altera conforme as transformações de longa, media e curta duração. O historiador é um sujeito de seu tempo.3 As questões próprias de sua época demandam revisões constantes sobre o passado que, por seu turno, sugerem novas questões e novas formas de investigação que culminam na reescrita da história.

A história da abolição e pós-abolição no Brasil está sendo (re)escrita, em permanente diálogo com as questões do tempo presente. Se é verdade que, apesar de passados 130 anos da Lei Áurea, os egressos do cativeiro e / ou seus descendentes ainda enfrentam uma série de desafios na esfera do reconhecimento, dos direitos e do exercício da cidadania no seio da nação, não é menos verdade que vem sendo crescente a sensibilização do Estado e da sociedade civil às políticas de reparações, ações afirmativas etc. A história e a memória são arenas de disputas e embates de projetos de nação. Nesse contexto, “lembrar”, argumentam Lilia Schwarcz e Flávio Gomes, é um “exercício de rebeldia; de não deixar passar e de ficar para contar”.4 A história da escravidão à liberdade já foi tecida, ao passo que a da liberdade à igualdade ainda faz parte dos horizontes de expectativas. Que um dia as marcas do passado escravista, atualizadas sob o selo das desigualdades raciais, deixem de atormentar o país.

Notas

1 BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 19.

2 MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz. Apresentação. In: MACHADO, Maria H. P. Toledo e SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs). Emancipação, inclusão e exclusão: desafios do passado e do presente. São Paulo: Edusp, 2018, p. 11-12.

3 BLOCH, Marc. Introdução à História. Mira-Sintra; Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997 [Edição revista, aumentada e criticada por Etienne Bloch].

4 SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio. Apresentação. In: SCHWARCZ, Lilia e GOMES, Flávio (orgs). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 19.

Petrônio Domingues

(Organizador)


DOMINGUES, Petrônio. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino | Catité, v.1, n.1, 2018 / v. 2 n. 6, 2020.

Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 2 n. 6, 2020.

HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL NO BRASIL: PESQUISA E PRÁTICA DE ENSINO

EDITORIAL

DOSSIÊ TEMÁTICO

  • Dossie | Alexandre Galvão Carvalho, Fábio de Souza Lessa, Márcia Cristina Lacerda Ribeiro

ARTIGOS


Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 1, n. 5, 2020.

Educação, Cultura e Identidade em perspectiva

EDITORIAL

  • EDITORIAL | Márcia Cristina Lacerda Ribeiro, Antonieta Miguel

ARTIGOS

ENTREVISTA


Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 2 n. 2, 2019.

Domínios Teóricos da História Social e da Educação Histórica

PÁGINAS INICIAIS

EDITORIAL

ARTIGOS

ENTREVISTA

Entrevista com o Professor Doutor Dermeval Saviani | Sidnay Fernandes dos Santos


Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 1, n. 3, 2019.

História e memória da educação

PÁGINAS INICIAIS

EDITORIAL

  • Editorial | Genilson Ferreira da Silva, Márcia Cristina Lacerda Ribeiro

DOSSIÊ TEMÁTICO


Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 1, n. 2, 2018.

“Tempo presente: História, Educação e Educação Histórica”

PÁGINAS INICIAIS

EDITORIAL

DOSSIÊ TEMÁTICO

ARTIGOS

ENTREVISTA

RESENHA


Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Catité, v. 1, n. 1, 2018.

PÁGINAS INICIAIS

EDITORIAL

DOSSIÊ TEMÁTICO

ARTIGOS

ENTREVISTA

RESENHA

A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas – AQUIAR; DOURADO (RF)

AGUIAR, Márcia Angela da S.; DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. [Livro eletrônico]. Recife: Anpae, 2018. Resenha de: RODRIGUES Luiz Alberto Ribeiro. REVASF, Petrolina, vol. 8, n.15, p. 164-168, jan./abr., 2018.

Esta obra, publicada pela Associação Nacional de Políticas e Administração da Educação (Anpae), reúne uma série de oito artigos produzidos por pesquisadores das áreas de política educacional e currículo, em que discutem o significado do processo que tem gerado a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seus desdobramentos frente ao PNE 2014-2024.

São apresentados elementos que têm caracterizado a BNCC, construída em três distintas versões, sendo a primeira elaborada por especialistas no MEC e submetida a apreciação pública, recendo contribuições, em grande parte individualizada; a segunda versão, apresentada por componentes curriculares, foi discutida em seminários em todo o país, coordenados pela Undime e Consed. A terceira versão incorporou contribuições definidas por um grupo gestor instituído pelo MEC e excluiu a etapa do ensino médio.

Toda essa trajetória e as características que assumem cada versão deve ser compreendida a partir do contexto no qual a BNCC vem sendo instituída, ou seja, um tumultuado contexto político em torno da composição do governo central, na figura do presidente Michel Temer, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e que, a partir 2016 vem provocando um desmonte das conquistas democráticas e populares, sobretudo no que diz respeito aos avanços efetivados nas últimas décadas quanto ao direito à educação e às políticas educacionais. No âmbito educacional, posto em ação uma contrarreforma da Educação Básica, que impôs por meio de Medida Provisória, a reforma do ensino médio.

O contexto da contrarreforma da educação em curso apresenta-se bastante conservador e privatista, sobretudo porque veio acompanhada por um amplo processo de (des)regulação da educação, que favorece a expansão privada mercantil. Assim, questiona-se a ausência de um marco de referência, capaz de indicar princípios educacionais, concepções, utopias, sonhos, os desejados definidos coletivamente, no sentido de subsidiar as decisões em torno da BNCC. Lembrou-se ainda que no Brasil documentos semelhantes já foram lançados, a exemplo dos “Guias Curriculares” nos anos 1980, os “Parâmetros Curriculares” nos anos 90 e as “Diretrizes Curriculares Nacionais” em 2001.

Contesta-se nesta obra a anseio da BNCC em fixar mínimos curriculares nacionais ou engessar a ação pedagógica com objetivos de aprendizagem dissociados do desenvolvimento integral do estudante. Argumenta-se que esta pretensão limita o direito a educação e a aprendizagem. Defende-se ao contrário, a garantia dos princípios constitucionais de liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, bem como o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Em defesa do currículo, põe-se em questão pressupostos que simplificam o debate pedagógico sobre o tema, tais como o vínculo imediato entre educação e desenvolvimento econômico, a redução da educação a níveis de aprendizagem, a restrição da crítica teórica à BNCC ao registro ideológico, a suposição de que os docentes não sabem o que fazer nas escolas sem uma orientação curricular comum.

Além disso, sustenta esta obra, a BNCC fere o princípio de valorização das experiências extraescolares; afronta o princípio da gestão democrática das escolas públicas; atenta contra a organicidade da Educação Básica necessária à existência de um Sistema Nacional de Educação (SNE).

Rebatem os autores a pretensão de que, para garantir metas de aprendizagem, todas escolas precisam da mesma proposta curricular e da mesma orientação pedagógica. Em assim sendo, esconde-se a problemática da desigualdade social associada à educação, o fator investimento diferenciado na carreira do professor e nas condições de trabalho nas escolas, além do peso das condições de vida das famílias e das condições de estudo dos estudantes. Nesse sentido, defende-se que não é necessário que o currículo seja igual em todo país, até porque, na prática isso não seria possível.

Ainda na linha do currículo, contesta os autores a auto determinação da Base como currículo prescrito e como norteador da avaliação. Afirma-se no debate, a ideia de que a BNCC resulta em uma listagem de competências, não podendo ser considerado currículo. Aponta-se, à luz de experiências nacionais e internacionais, a ausência de fatores fundamentais para o êxito de políticas desta natureza, tais como o formato de intervenção descentralizada via currículos, a valorização dos professores, o financiamento inadequado para a educação.

Foi identificada ainda que no bojo de seu conteúdo, falta à BNCC a articulação referente à concepção e diretrizes da Educação Básica, tendo em vista a construção de uma educação formadora do ser humano, cidadão, capaz de influir nos rumos políticos e econômicos do país, capaz de criar novos conhecimentos, de criar novas direções para o nosso futuro comum.

Em meio a esse momento de crise da política brasileira, ganham força na definição de políticas curriculares que estabeleceu o último formato da BNCC, algumas organizações privadas, assumindo um papel condutor e indutor de sua aprovação e disseminação. Realce para a Fundação Lemann associada ao Cenpec, Instituto Natura, Instituto Ayrton Senna, Instituto Unibanco, Fundação SM, Insper e Instituto Fernando Henrique Cardoso.

Os autores analisam esse contexto e apontam para a existência de uma nova configuração de poder que se vai se afirmando no âmbito do MEC e a consequente alteração na correlação de forças do CNE, na perspectiva de fortalecer políticas que, no limite, apresentam um forte viés privatista favorecendo interesses do mercado.

Ressalta esta obra que as políticas materializam-se em estratégias de privatização e incidem em três dimensões estratégicas, didaticamente consideradas em separado: oferta educativa; gestão educacional e sobre o currículo.

Alerta-se ainda para outros passos que poderão ocorrer em decorrência da BNCC, entre as quais a avaliação em larga escala, que terminam por legitimar determinados saberes e ampliar ainda mais a seletividade da educação, prejudicando grupos sociais menos favorecidos e elevando a desigualdade educacional.

Mas afinal, o que tem justificado então a BNCC? No contexto desta obra há indicações de que os interesses imediatos do mercado pautam a possível criação de um mercado para livros didáticos, ambientes instrucionais informatizados, cursos para capacitação de professores, consultorias na formulação dos “currículos em ação” nos municípios; seminários envolvendo instituições estrangeiras com vistas à formação de professores; movimentos das diversas fundações no sentido de produção de material e capacitação.

Interessante crítica nesta obra sobre o significado que ganha a BNCC, como um artifício que pode ser chamado de “apostilagem dos processos pedagógicos”, ou seja, os problemas da educação são apropriados por fundações privadas, inúmeras delas ligadas a bancos, e são dadas soluções que entendem ser as ‘indispensáveis’, porque “mais rápidas e mais fáceis”. Recorda o texto que essas fundações têm sido buscadas por gestores públicos, em nível estadual e municipal, com objetivos de indicar aos professores como devem atuar, a partir de períodos curtos de formação, com a criação de material didático que devem seguir à risca – o que dar em que dia, em que hora, ou seja, verdadeiras “apostilas” – e com um controle do que fazem em sala de aula.

Lembra os autores tratar-se de uma falsa aí inclusa, pensar que tudo estará resolvido, se os docentes forem obedientes, aplicando em seus estudantes estas fórmulas mágicas. Como ocorrem em outros países, esse tipo de intervenção não tem dado certo, não considera a realidade complexa onde a escola se encontra. Tendem ser portanto, soluções insuficientes e a culpa voltará aos docentes, por “não executarem” o processo indicado e ainda reforça um discurso culpabilizando-se as universidades pela má formação dada aos docentes.

Também se reconhece que, apesar dos equívocos quanto a tentativa de imposição da BNCC como um currículo, de sua vinculação à processos de avaliação em larga escala, ao mercado de livros e material didático, há um contraponto a ser considerado: a autonomia na gestão pedagógica, garantida aos sistemas de ensino, nos estados e município, e materializada nos projetos políticos pedagógicos (PPP).

Além disso, recordam os autores de processos de resistências observados neste período histórico, em que surgiram movimentos com ideias que mobilizam estudantes e seus docentes em torno do que significam e como devem ser as escolas que querem e que estão dispostos a fazer funcionar porque atendem às suas necessidades. Nesse sentido são mencionados a força de resistência expressa em movimentos, como os “Ocupa”, que foi sendo produzido nas salas de aulas, por seus docentes e discentes nestes últimos anos. Ressalta esta obra, não é possível quebrar os sonhos de milhares de docentes e de milhões de estudantes por escolas melhores dos quais eles são muito bons conhecedores.

Expressam ainda os autores a necessidade de reconhecer, nas realidades cotidianas, mais práticas educativas do que as de obediência subserviente às normas autoritárias. Assim, expressam a necessidade de reconhecer que não estivemos e não estamos parados, que a luta pela escola pública e por propostas curriculares respeitosas com os sujeitos da escola e plurais epistemológica e culturalmente, vale a pena e já está em andamento.

A contribuição de reconhecidos pesquisadores na área, tais como seus organizadores somados aos demais autores, Alice Casimiro Lopes; Elizabeth Macedo; Erasto Fortes Mendonça; João Ferreira de Oliveira; Inês Barbosa de Oliveira; Nilda Alves; Theresa Adrião e Vera Peroni, faz dessa obra um registro crítico necessário para construir horizontes de superação dos limites em que foram impostos a atual política educacional no Brasil. Trata-se portando de uma obra recomendada aos educadores e pesquisadores da educação que buscam examinar a política da educação no Brasil e reconstruir os novos rumos para uma formação cidadã, a partir de uma educação pública e de qualidade social referenciada.

Referências

AGUIAR, M. A. da S. e DOURADO, L. F. (Orgs). A BNCC na contramão do PNE 2014- 2024: avaliação e perspectivas. [Livro Eletrônico]. Recife: ANPAE, 2018.

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues – Professor Adjunto da UPE, Doutor em Educação pela UFPE Membro do Colegiado do Programa de Mestrado Profissional em Educação. E-mail: luiz.rodrigues@upe.br

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Grupos de Pesquisa sobre Formação de Professores no Brasil (I) / Formação Docente / 2018

Revista Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores (RBPFP) – é uma publicação do Grupo de Trabalho Formação de Professores (GT8), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) publicada em parceria da Autêntica Editora. Esta publicação refere-se ao número 18, o primeiro número do volume 10 que abrange a periodicidade de janeiro-Julho de 2018.

O Conselho editorial executivo da revista tomou a decisão de publicar nos dois números de 2018, um dossiê divulgando um retrato/perfil dos grupos de pesquisa sobre Formação de Professores no Brasil, elaborados pelos grupos que participaram do III Simpósio de Grupos de Pesquisas nesse campo do conhecimento na área da Educação e Ensino, realizado em Guarulhos em Outubro de 2016 e no qual participaram 42 Grupos de Pesquisa. Desta forma os dois números do volume 10 retratam uma fotografia da pesquisa em grupos consolidados sobre a temática.

Pela lavra de experientes pesquisadores do campo, o núcleo duro de sustentação do GT 08 da Anped, os textos aqui veiculados indicam como os grupos vêm desenvolvendo suas pesquisas, tema e subtemas, o quadro teórico sob qual orientam suas pesquisas, a natureza da investigação, as contribuições para o campo da formação de professores e as perspectivas teórico-metodológicas. Esse volume demonstra o acumulo do conhecimento sobre a Formação de Professores e, em especial, revelam uma grande rede de pesquisa no país sobre esse campo de conhecimento.

Os números 18 e 19 que compõem o volume 10 comemoram os 10 anos de criação do periódico – Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre a Formação de Professores (RBPFP) publicada pelo GT 08 – Formação de Professores da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação em parceria com a Editora Autêntica.

Duas novidades aparecem a partir dos números do volume 10: a) os artigos sairão com o indicativo do DOI (Digital Object Identifier) fundamentais para a identificação dos artigos de acesso aberto; b) Mudança no layout da capa da revista. Decisão tomada pela comissão editorial para adequação as necessidades de edição no sistema SEER/OJS.

Agradecemos atenção do leitor e o convidamos a leitura da presente edição.

José Rubens Lima Jardilino


JARDILINO, José Robens Lima. Apresentação.  Revista Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores. Belo Horizonte, v.10, n.18, p.9, jan./jul. 2018. Acessar publicação original [IF]

Perspectivas latinoamericanas e históricas sobre la educación estética y de las sensibilidades / Revista Brasileira de História da Educação / 2018

Historia y educación de las sensibilidades. Estéticas y cuerpos en los procesos latinoamericanos

El presente dossier se ha preparado siguiendo la búsqueda de un abordaje conceptual que historice la educación estética en tanto ciencia de la sensibilidad, así como la presencia de las emociones, afectos y sensibilidades en la consolidación, puesta en crisis y renovación por la que transitan las instituciones formadoras, los propósitos generales de escolarización y la vida cotidiana de los sistemas educativos.

La investigación histórico-educativa sobre estéticas y sensibilidades tiene un desarrollo reciente pero de una gran riqueza, y está logrando constituirse en condición de posibilidad para indagaciones profundas de grandes y clásicos interrogantes sobre la construcción dominante, la producción de subjetividades y las posiciones de sujeto. Desde la reveladora formulación de Sigmund Freud acerca de que el lazo social es un lazo libidinal, hasta las teorizaciones más recientes, va haciéndose más evidente que la relación entre significación y afecto es íntima. Y siguiendo la reflexión de Chantal Mouffe para las sociedades contemporáneas, en la etapa “[…] del capitalismo postfordista el terreno cultural ocupa una posición estratégica ya que la producción de afectos desempeña un rol cada vez más importante. Al ser vital para el proceso de valorización capitalista, este terreno debería constituir un lugar crucial para las prácticas contrahegemónicas” (Mouffe, 2014, p. 18).

Estudiar las emociones es fundamentalmente entender “[…] cómo las personas articulan, entienden y representan qué es lo que sienten […]”, sostiene Barbara Rosenwein (2010, p. 11). A la vez, el afecto no es algo que exista por sí solo, independientemente de los lenguajes, sino que sólo se constituye a través de la catexia [1] diferencial de una cadena de significación, como afirma Ernesto Laclau (2005) y a esto le podemos llamar investidura. Si una entidad se convierte en el objeto de una investidura, ese investimiento pertenece necesariamente al orden del afecto. Por ello, los discursos que en este Dossier se analizan en su devenir histórico serían ininteligibles sin el componente afectivo y por ello toda construcción social es resultado de una articulación indisociable entre la dimensión de significación y la dimensión afectiva.

PASIONES EN DEVENIR

En el transcurso de nuestro estudio de la Historia de la Educación, la dimensión estética del proceso de escolarización se nos fue presentando como una variable central para comprender la educación, y por ello lo hemos tomado como el objeto de estudio de investigaciones específicas y de largo aliento. Así, nos hemos propuesto tematizar el problema de las sensibilidades y de la construcción colectiva de los deseos, el problema de lo común vinculado con una política de los afectos.

El pasaje del positivismo al idealismo moral, la producción de un orden pedagógico que involucra la regulación de la conducta vía el aprendizaje, la reverencialidad, la disposición de los cuerpos, la introducción de normas flexibles son –sólo algunas– experiencias a las que resulta productivo acercarse integrando un análisis político-estético y educativo.

Nuestro punto de partida respecto de la conceptualización de lo político remite a la dimensión del antagonismo constitutivo de las sociedades y diferenciado de la política, como el conjunto de prácticas e instituciones a través de las cuales se crea un determinado orden, organizando la coexistencia humana en el contexto de la conflictividad derivada de lo político. Pensar la estética como ‘constructo’ histórico-cultural posibilita poner el foco en cómo se constituye en uno de los campos de lucha por la imposición de formas de entender / concebir / actuar en el mundo y la jerarquización de unos repertorios sobre otros.

Siguiendo a Rancière, asumimos que “[…] la política es un asunto estético, una reconfiguración del reparto de los lugares y de los tiempos, de la palabra y el silencio, de lo visible y de lo invisible” (Rancière, 2011, p. 198). Uno y otro ámbito, el de la política y el de la estética, el de las disposiciones para expresar sensibilidades, el de las instancias para decir, hacer o pensar, se articulan de manera compleja. Esto es así porque la estética es un modo de configuración sensible, un reparto de lugares y cuerpos cuya ruptura o emergencia determina la ‘cosa misma’ de la política. Por ende, ello no concierne a la validez moral o política del mensaje transmitido por el dispositivo escolar, sino al dispositivo mismo. Consiste antes que nada en disposiciones de los cuerpos, en recortes de espacios y de tiempos singulares que definen maneras de estar juntos o separados. Es decir, consiste en los modos de subjetivación política socio-culturalmente legitimados. Jacques Rancière llama la división policial de lo sensible a “[…] la existencia de una relación ‘armoniosa’ entre una ocupación y un equipamiento, entre el hecho de estar en un tiempo y un espacio específicos, de ejercer en ellos ocupaciones definidas y de estar dotado de las capacidades de sentir, de decir y de hacer adecuadas a esas capacidades” (Rancière, 2011, p. 46, destacado del autor).

En ese marco nos interesa explorar el trabajo formativo fuera y dentro de lo escolar en el marco de una reconfiguración de los datos sensibles por la subjetivación política, en la reconfiguración del tejido de la experiencia común producidos por el discurso político-pedagógico de distintos períodos históricos.

RESITUAR LOS AFECTOS, LAS ESTÉTICAS Y LOS CUERPOS EN LOS PROCESOS HISTÓRICOS LATINOAMERICANOS

Los textos que componen el dossier ‘Perspectivas latinoamericanas e históricas sobre la educación estética y de las sensibilidades’ proponen una mirada particular del problema que venimos planteando. Con sus singularidades, cada uno de los escritos presenta características de los contextos abordados: de esta manera, la materialidad transnacional de una sensibilidad que pasa por Brasil, la exhibición de cuerpos y movimientos patrióticos en el Uruguay, los modelos didácticos para la formación de profesores chilenos o los discursos sobre la afectividad que giran en torno a la profesionalización de maestros en Argentina arrojan elementos para pensar lo local, lo regional y lo global respecto de la historia de cómo se educaron las subjetividades. Con esto queremos indicar el carácter transitivo y contingente de la propuesta: pensar lo latinoamericano no supone reflexionar sobre algo estrictamente nuevo o disruptivo, sino más bien lo distintivo ‘dentro de’ sus generalidades y recurrencias. Es decir, los artículos exponen particularidades distintas que permiten, en el juego de lo propio y ajeno de cada contexto, comprender las continuidades y las rupturas, en ‘su’ interior, pero también en ‘su’ exterior.

A su vez, se destaca que lo histórico está en evidencia en un doble sentido por demás interesante. En primer lugar, porque lo histórico permite pensar lo político, y con ello lo legítimo, no para reafirmarlo sino para desentrañar cómo se constituyó. Esto es, así como las fronteras entre lo particular microcontextual y lo general macropolítico son difusas, haciendo que lo que ocurrió en un territorio pueda arrojar elementos para pensar otros, en todos los textos se exponen casos en los cuales también las líneas divisorias entre lo que pasó y lo que pasa se configuran como porosas. Es que las propuestas de los autores constituyen ejemplos históricos pero que por su relación con lo político no se presentan como ‘pasados’.

En segundo término, si tal como planteaba Karl Marx la naturalización es el efecto del olvido de la génesis de un proceso, entonces puede comprenderse por qué pensar la historia de la educación de las sensibilidades implica recordar aquello que damos por natural. Y en este sentido puede encuadrarse una de las posibles razones por las cuales interpelar las pasiones y los afectos parece ‘necesariamente’ obligarnos a referirnos a lo corporal, modernamente entendido como sinónimo de naturaleza. De allí que no es casual que atraviese la cuestión del cuerpo como tema transversal en las relaciones entre subjetividad y sensibilidad. Vale preguntarse entonces si es posible pensar la educación de las emociones sin pensar la regulación de los cuerpos, o en todo caso si la formación de las sensibilidades es un subtópico de la educación de los cuerpos, o viceversa. Quizás esto puede ser explicado a través de Theodor Adorno y Max Horkheimer, quienes sostenían que por debajo de la historia conocida corre una historia subterránea, que es “[…] la historia de la suerte de los instintos y las pasiones humanas reprimidos o desfigurados por la civilización”, que es en definitiva la historia del interés por el cuerpo [2] (1998, p. 277).

Los artículos de Pablo Toro y Ana Abramowski coinciden en transitar dos caminos, uno acerca del objeto histórico de estudio y otro acerca de sus posicionamientos frente a las emociones para el primero y de los afectos para la segunda. En el caso de Toro, observa las sensibilidades en estudiantes chilenos hacia finales de la década de 1920 a partir de una crítica teórica de los conceptos de ‘emocionología’ de Peter Starns y de ‘comunidad emocional’ de Barbara Rosenwein, para coincidir con la perspectiva de los ‘regímenes emocionales’ de William Reddy, en tanto que Abramowski reflexiona acerca de la afectividad de docentes argentinos de primeria entre 1870 y 1970, particularmente a partir de interpelar el “eros pedagógico” como una manera de ser que combina vigilancia, amor, disciplina, saber, escolarización y familiaridad.

Por su parte, Katya Braghini aborda un tópico central en la problemática de la educación histórica de las sensibilidades que no debiera ser obviado: la materialidad de la estética. Si partimos de seguir el posicionamiento foucaultiano – en boga en los estudios actuales– que indica que la estética es la relación con las cosas, y si entendemos el peso central para la modernidad de lo presente y lo material como vías de acceso a la belleza, entonces es posible pensar por qué representa una relevancia destacable el estudio de un objeto material producido para generar una sensibilidad sobre esa cosa, transmitir un sentido unificado. Es que eso hace la condición material de la estética: procurando fijar las ideas o las palabras en las cosas, buscando delimitar las significaciones a los límites sedimentados del objeto. Dicho de otro modo, el objeto que Braghini analiza –la mujer transparente de Dresden– muestra una legitimada belleza moderna, transformada en un juguete científico, en donde la belleza está asociada a la juventud como sinónimo de belleza del pueblo, la higiene del cuerpo ‘transparente’ como la ciencia, a lo científico como perspectiva futurista. Puede pensarse que el trabajo de Katya aporta también en otra dirección: la estética del objeto femenino, y su relación con la sensibilidad, cuestión generalmente ligada a las mujeres por su proximidad con la naturaleza. Es que para la autora hay en la producción material de un objeto la posibilidad de producir efectos estéticos, y con ello la posibilidad de modelar aquello que nos constituye como sujetos.

Hay en este punto una posible relación con el texto que presentan Virginia Alonso, Leticia Corvo, Jimena González, Lucía Mato y Raumar Rodríguez Giménez, cuando esbozan su análisis sobre las exhibiciones gimnásticas masivas en eventos deportivos, particularmente a través de los sentidos estatales sobre la Educación Física como método para transmitir sentidos sobre higiene ‘científica’ de los cuerpos. En este registro es interesante el esfuerzo teórico de los autores por retomar la dimensión estética en relación con lo político, y cómo a través de un dispositivo pedagógico específico –como fueron las exhibiciones gimnásticas durante la dictadura cívico-militar en el Uruguay entre los años 1973 y 1985– se transmitieron legitimados sentidos sobre las sensibilidades. Es que cuerpo y movimiento son históricamente recursos de la educación escolarizada para formar la percepción del mundo y establecer juicios de valor consagrados, especialmente a través de una homogeneización liberal que, antes de estar preocupada por que ‘todos sean iguales’, se ocupa de ‘mantener la igualdad de las cosas’, el ‘statu-quo’.

Por su parte, Pablo Pineau esboza en su escrito otra trayectoria, que no está ligada al estudio de un objeto material o histórico específico, sino más bien a una lectura trasversal sobre las miradas latinoamericanas acerca de la educación de las sensibilidades. En un trabajo epistémico con tono ensayístico que se propone recuperar los principales debates acerca de las emociones, las sensibilidades y la estética, el autor despliega un interesante estado de la cuestión de las principales teorías que en este sentido vienen desarrollándose en Europa y en Estados Unidos en las últimas dos décadas, y una particular lectura de cómo viene formulándose el diálogo teórico con América Latina, especialmente para la prescripción de una ‘estética escolar’ reproducida a través de los sistemas educativos latinoamericanos.

Es posible ver en este recorrido transversal por los textos que, si bien el debate por la educación de las sensibilidades interpela sus usos políticos, las disputas teóricas en torno a la conceptualización de los afectos, las pasiones, las emociones, los sentidos, los sentimientos o las sensibilidades no son excluyentemente una cuestión academicista, sino que también implica posicionamientos respecto de las relaciones entre los sujetos, el mundo y los cuerpos. A su vez, una última cuestión: hay en la base de todo este recorrido un trasfondo inteligible que reparte lo sensible, que distingue qué es lo colectivo y qué lo individual, qué lo público y qué lo privado, qué lo externo y qué lo interno, qué lo natural y qué lo cultural.

LO COMÚN Y LO PARTICULAR

La tradición del pensamiento racionalista y la praxis política de la democracia liberal o consensual en la que nos hemos formado predominantemente, ha desarrollado una serie de preconceptos que han dado como resultado la marginación de los afectos y la dimensión sensible, de la tematización de la ciencia social. Por ejemplo, la presencia de los afectos en la política ha sido frecuentemente analizada como un signo de debilidad y atraso, más que como parte de una consolidada institucionalidad política. Contrariamente, quisiéramos subrayar que se trata de problemas estético-políticos [3], una dimensión sensible que se pone en juego en relación a constituir sensibilidades populares, formas de sentir común (Cadahia, 2015), que obnubilan ocultando –nunca totalmente– lo subjetivo tras el manto de lo colectivo. El conocimiento estético, para Baumgarten [4] (1758), se ubicaría entre la generalidad de la razón y la particularidad de los sentidos.

En el terreno de las pasiones el espacio de la política emerge exactamente cuando lo público deja de operar con sus requisitos habituales. La democracia debe entenderse entonces como la constitución de un sujeto político en una manifestación o en una demostración de una injusticia o de un equívoco. “La política empieza con la existencia de sujetos que no son ‘nada’, que son un exceso respecto al recuento de partes de la población […]” “[…] no hay política hasta que no hay una capacidad de universalización de lo que está en cuestión en una u otra situación” (Rancière, 2011, p. 73, destacado del autor, 112).

Por ser la estética una forma de apropiarse del mundo y actuar sobre él, inevitablemente se desliza hacia la ética, y por añadidura a la política. Lo que parece bello resulta, además, correcto. Y luego, un ideal de lucha. La estética se vuelve entonces un campo de debate político y de producción de proyectos de alto impacto social. Es impensable que esta lógica no haya estado encarnada por las instituciones formadoras. Justamente por ello entendemos que el valor de los textos que este Dossier compone radica en la potencialidad de desentrañar, al decir ‘con’ Bourdieu, tanto el cuerpo en lo social, como lo social en el cuerpo. 3 Conviene recordar que lo político remite a la dimensión antagónica que es inherente a todas las sociedades humanas.

Notas

1. Según Freud, el sujeto puede dirigir su energía pulsional hacia un objeto o una representación e impregnarlo, cargarlo o cubrirlo de parte de ella. Se llaman catexias a estas descargas de energía psíquica. A partir de la experiencia de catetización, el objeto cargado ya no le resulta indiferente al sujeto, más bien tendrá para él una halo o colorido peculiar.

2. Precisamente se titula ‘Interés por el cuerpo’ al apartado incluido en Dialéctica de la ilustración.

3. Conviene recordar que lo político remite a la dimensión antagónica que es inherente a todas las sociedades humanas.

4. Recordemos que se le asigna a Alexander Baumgarten, el nacimiento de la estética como disciplina filosófica que se ocupa de la belleza como saber específico y autónomo, al que considera la intuición sensible como un conocimiento que no es inferior a la razón, sino como un tipo diferente de conocimiento.

Referências

ADORNO, T. W., & Horkheimer, M. (1998). Dialéctica de la ilustración: fragmentos filosóficos. Madrid: Trotta.

BAUMGARTEN, A. (1758). Aesthetica. Hildesheim: Georg Olms.

CADAHIA, L. (2015). Podemos y el despertar de la sensibilidad colectiva. Debates y Combates, 8(5), 151-168.

LACLAU, E. (2005). La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.

MOUFFE, C. (2014). Agonística: pensar el mundo políticamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.

RANCIÈRE, J. (2011). El tiempo de la igualdad: diálogos sobre política y estética. Barcelona: Herder.

ROSENWEIN, B. (2010). Problems and methods in the history of emotions. Passions in Context, 1(1), 1-32.

Myriam Southwell – Doctora por la Universidad de Essex (Inglaterra), magister en Ciencias Sociales con orientación en Educación (FLACSO Argentina), profesora y licenciada en Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de La Plata. Directora del Doctorado en Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de La Plata e investigadora independiente del CONICET. Es miembro del Comité Ejecutivo de ISCHE (International Standard Conference on History of Education) Fue secretaria académica de FLACSO Argentina (2011-2015) y presidenta de la Sociedad Argentina de Historia de la Educación entre 2008 y 2012. E-mail: islaesmeralda@gmail.com orcid.org / 0000-0001-5392-6606

Eduardo Lautaro Galak – es profesor en Educación Física, Magíster en Educación Corporal y Doctor en Ciencias Sociales por la Universidad Nacional de La Plata (Argentina), con post-doctorado en Educação, Conhecimento e Integração Social (UFMGBrasil). En la actualidad es Investigador Asistente del CONICET (Argentina). Ejerce la docencia actuando en grado y posgrados. Es autor del libro “Educar los cuerpos al servicio de la política. Cultura física, higienismo, raza y eugenesia en Argentina y Brasil” (2016) y compilador de “Cuerpo y Educación Física. Perspectivas latinoamericanas para pensar la educación de los cuerpos” (2013) y “Cuerpo, Educación, Política: tensiones epistémicas, históricas y prácticas” (2015), así también como de diversos artículos y capítulos de libro en los que trabaja la relación entre educación del cuerpo y (re)producción política, principalmente a través de analizar genealógicamente discursos referidos a la formación profesional, a la estética, al cine, al cientificismo, a la salud e higiene públicas y al mejoramiento de la raza. E-mail: eduardogalak@gmail.com orcid.org / 0000-0002-0684-121X.


SOUTHWELL, Myriam; GALAK, Eduardo Lautaro. [Perspectivas latinoamericanas e históricas sobre la educación estética y de las sensibilidades]. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 18, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Magistério oitocentista: contribuições da história da educação na problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo docente / Revista Brasileira de História da Educação / 2018

Este dossiê é composto por quatro artigos sobre professores oitocentistas com recortes que contemplam diferentes regiões, períodos e questões [1]. O intuito desse conjunto de reflexões consiste em trazer contribuições da história da educação para a problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo no exercício do magistério, considerando as singularidades regionais do território, em um período determinado da história brasileira, o Oitocentos.

A docência constitui parte imprescindível dos processos educacionais previstos nos projetos de civilização, progresso e ordenação de sociedades no século XIX, concebidos por agências governamentais ou não. O magistério público, em tais circunstâncias, confere ao ofício a particularidade de atuar em nome do Estado, mas também de ser peculiarmente afetado por ele. Da mesma maneira, atua na sociedade e é afetado por ela e por suas demandas sociais, ainda que algumas sejam configuradas como bandeiras de determinados grupos. Ambas as condições provocam continuamente os professores a se posicionarem com gradações de maior ou menor conformismo ou insubordinação, tornando-se atores de uma agenda que são convocados a cumprir.

Ao longo do Oitocentos, o ofício foi significativamente regulado por leis e por costumes oficiosos marcados pelas diversidades regionais, imperativos e urgências que, somados às experiências docentes (Schueler, 2001; Munhoz, 2012), conferem diferentes matizes aos processos de constituição da profissão. Também sinalizam os problemas e os efeitos do processo de inculcação de valores, de conformação e de adesão da população, via educação, a um projeto de governamentalidade, em que pesem os recorrentes movimentos insurgentes ao longo do Império.

Compreender e analisar tais aspectos permitem desnaturalizar ideias e imagens produzidas em torno do ofício de professor, bem como desconstruir crenças arraigadas e difundidas por muito tempo no próprio meio acadêmico. A persistência do tema da docência na composição dos eixos dos congressos da área como o Congresso Brasileiro de História da Educação e o Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação e o quantitativo expressivo de trabalhos remetem à emergência de novas abordagens, mas também sinalizam que a temática continua sendo importante objeto de estudos da história da educação e do campo da educação.

Os artigos que compõem o dossiê, no que se refere aos recortes temporais, abordam desde experiências iniciadas na década de 1820 avançando até o fim do século XIX. A maior concentração de estudos na segunda metade do século se relaciona com a ampliação da escolarização e da cultura escrita, abertura de escolas, instituições formadoras e criação de periódicos. Este crescimento incrementou a produção de registros que são tomados como fontes das pesquisas. Neste período, algumas medidas governamentais relativas à Instrução Pública, como a lei de 15 de outubro de 1827 e o ato de 1834 (adicional à Constituição de 1824), desencadearam um significativo crescimento da malha escolar e dos docentes. Marcos internos à história da educação – tanto da esfera central como estes citados, quanto provinciais – balizam as periodizações, assim como os eventos da história política das regiões e do Império do Brasil.

Assim, são analisadas trajetórias docentes vividas em regiões com diferentes características, ‘centrais’ e ‘periféricas’, imersas em ritmos sociais e econômicos distintos. São locais centrais – como a Corte – ou mais distantes geograficamente do poder imperial como a província da Parahyba do Norte. A Corte apresentava grande urbanização e era a mais populosa entre as localidades recortadas; São Paulo era uma capital pouca urbanizada, mas estava entre as regiões mais populosas da província. A vila de Cotia, servindo de contraponto, apresenta um contexto cultural caipira de uma região da província de São Paulo.

Fernanda Moraes, no artigo intitulado ‘Professores e professoras públicas de Primeiras Letras em Cotia (SP, 1870-1885): trajetórias docentes e estratégias do oficio de ensinar’, analisou a atuação de docentes de primeiras letras em Cotia – município vizinho à capital paulista, entre os anos de 1870 e 1885. Ao rastrear a vida pública de 14 professores, a autora identificou a presença deles em cargos públicos e / ou em funções diversas, concomitantes ou não ao exercício do magistério. Foram sujeitos que atuaram, sobretudo, no último quartel do século numa localidade periférica – Cotia – geograficamente próxima à capital paulista, mas distante do crescimento econômico que se assistia em outras regiões da província. Enquanto muitas localidades paulistas vivenciavam o desenvolvimento econômico propiciado pela cultura do café e instalação da linha férrea, Cotia vivia um processo de retrocesso justamente por ser um ponto importante do tropeirismo que decaiu com a ferrovia. Fernanda Moraes destacou que, a despeito da estagnação econômica, a escolarização foi ampliada na região e ressaltou a importância da ambiência familiar e das relações entre masculino e femininona configuração do magistério no XIX.

Angélica Borges, no texto intitulado ‘Lugares do magistério na Corte Imperial: o protagonismo do professor Candido Matheus de Faria Pardal’, apresenta uma reflexão acerca da trajetória de um professor que lecionou e circulou por diferentes espaços escolares, mas também por espaços religiosos, recreativos, sociais e políticos, na capital do governo imperial, a localidade mais urbanizada no período. Candido Matheus de Faria Pardal (1818-1888) exerceu o magistério por pelo menos 42 anos – no ensino primário, secundário e profissional – em instituições públicas e particulares, para meninos e meninas. O professor também atuou como examinador e escreveu compêndios. Angélica Borges destacou como Pardal extrapolou os limites da escola em diversas associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico, e em diferentes cargos públicos, estabelecendo uma série de relações a partir da escola com professores, governantes, famílias dos alunos, vizinhança, a cidade e o mundo estrangeiro, em um momento de intensificação do processo de escolarização na sociedade da Corte – por mais de quatro décadas – atravessando três quartéis do XIX. Por meio do recorte da trajetória prolongada de um professor numa localidade central, a autora refletiu sobre as diferentes relações estabelecidas entre magistério, escolarização e cidade.

A partir de um recorte provincial, Surya Aaronovich Pombo de Barros, no artigo intitulado ‘Graciliano Fontino Lordão: um professor ‘de côr’ na Parahyba do Norte’ destaca à luz da história da educação da população negra no Brasil a trajetória do professor Lordão (1844-1906), filho de uma mulher negra de quem se tem poucas informações e de um frei católico, que era professor e detinha relativa proeminência na sociedade local. Surya Barros acompanha a trajetória de escolarização, o exercício do magistério (como professor particular e público de primeiras letras e de latim) e a atuação política de Lordão como deputado provincial / estadual por quatro mandatos, além de dirigente do Partido Liberal. A autora questiona o impacto que a presença de um professor negro pode ter representado para os alunos e a possível relação entre pertencimento racial e algumas de suas práticas docentes como ter um aluno que era filho de uma escrava ou abrir uma aula noturna para adultos. Seu objetivo é destacar a possibilidade de ascensão social que a instrução podia representar para a população negra sem desconsiderar os obstáculos, a exclusão e a precariedade vivida por estes sujeitos.

Fabiana Garcia Munhoz, no artigo intitulado ‘Para além das prendas domésticas: a trajetória da mestra Benedita da Trindade no magistério feminino paulista’, aborda a trajetória da professora pública de primeiras letras pioneira da cidade de São Paulo, Benedita da Trindade do Lado de Christo. A autora interpreta questões que perpassaram o magistério feminino nesta província problematizando a legislação que criou as aulas públicas de primeiras letras para meninas e, a partir da trajetória da mestra Benedita, destaca a questão dos saberes específicos previstos pela lei (as prendas domésticas) retomando estudos anteriores (Hilsdorf, 1997; Rodrigues, 1962) e a interpretação desta historiografia de que a mestra resistia em ensinar as prendas domésticas previstas pela lei. Operando numa perspectiva micro-histórica, Fabiana Munhoz analisa o ingresso no magistério com a novidade representada pelos concursos públicos entre a população feminina; destaca a atuação de professoras como examinadoras das novas candidatas e estabelece algumas relações entre as experiências das mestras e os lugares que ocuparam – ou buscaram ocupar – na instrução feminina e transmissão do magistério entre mulheres na cidade de São Paulo em meados do XIX.

Os artigos do dossiê dão cor à heterogeneidade da docência – e da escolarização – ao longo do Oitocentos. Foram três abordagens com recortes locais e uma provincial. Em um cenário de contexto caipira, como o da vila de Cotia, observamos uma rede de professores em atividade e a ampliação da malha escolar. Acompanhamos os sujeitos professores – homens e mulheres – em suas relações, cooperações e conflitos para efetivar as aulas de primeiras letras numa localidade pouco populosa e urbanizada e com uma economia próxima da subsistência. Quase meio século antes, há alguns quilômetros da pequena vila de Cotia, na capital da província de São Paulo (uma cidade pouco urbanizada no período, mas capital de província), o magistério feminino era inaugurado e exercido por uma professora que conviveu com outras mestras, alunas e famílias, vereadores, inspetores e presidentes de província e lidou com questões relativas ao ingresso, exames, saberes das aulas femininas e transmissão do magistério. À modesta urbanização da província de São Paulo, onde acompanhamos uma experiência feminina, contrapõese o dinâmico cenário da Corte. Além dos contrastes regionais e do espaçamento do tempo, pesa a diferença de gênero nas experiências docentes dos sujeitos investigados.

A diversificada trajetória do professor Pardal atravessa e é atravessada por múltiplos espaços da cidade do Rio de Janeiro. Por ser homem, a vida pública do mestre foi bastante movimentada (e registrada em fontes) em associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico. Sua experiência indicia um caráter urbano do magistério na medida em que professor e seus alunos adentraram e abriram as escolas para estes espaços. No mesmo Império do Brasil, numa província do Norte do Império [2], bastante distante da Corte e com uma economia alicerçada na produção agrícola (açúcar e algodão), pecuária e no trabalho escravo combinado à mão de obra livre, acompanhamos a trajetória de um professor negro e os impactos de sua atuação num país onde a escravidão era legalmente permitida e fonte de produção da riqueza que se concentrava nas mãos de uma minoria da população.

Às diferenças regionais soma-se a diversidade temática das investigações. Como já destacamos, houve uma variedade de objetos – desde a circulação de professores e sua presença em outros espaços da cidade exercendo um protagonismo docente, relações familiares, transmissão do magistério até a questão racial e de gênero. Para subsidiar as análises, foi mobilizado um repertório diversificado de fontes. As interpretações são construídas a partir de cuidadoso trabalho de pesquisa em arquivos e de sistematização. Entre as fontes, destacam-se os documentos manuscritos da Instrução Pública de arquivos estaduais; imprensa oitocentista; relatórios de inspetores da Instrução e de presidentes de província; relatórios oficiais e legislação educacional.

Os artigos do dossiê trazem contribuições da história da educação para as reflexões sobre o magistério oitocentista e evidenciam as diferentes possibilidades de enfoque em torno da docência. Pardal, Lordão, Benedita da Trindade e os diversos professores de Cotia protagonizaram histórias de negociação e conformação diante das condicionantes impostas, e também de resistência, ousadia e luta para inserção e intervenção na sociedade por meio do magistério. Cada qual à sua maneira, a partir das possibilidades, de sua condição regional, de gênero ou de etnia, deixou seu quinhão de contribuição para compreendermos e constituirmos as multifacetadas páginas da docência na história da educação brasileira.

Notas

1. Os artigos que compõem este dossiê foram apresentados no formato de Comunicação Coordenada intitulada ‘Magistério oitocentista: singularidades regionais, de gênero e raça em trajetórias docentes’, no IX Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em 2017, em João Pessoa-PB, no eixo temático ‘Formação e Profissão Docente’.

2. Durante o século XIX, as expressões ‘províncias do norte’ e ‘do sul’ eram utilizadas, mas sem organização oficial. O que se denominava de região Norte dizia respeito aos atuais norte e nordeste (Gregório, 2012).

Referências

GREGÓRIO, V. M. (2012). Dividindo as províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado nacional brasileiro (1826-1854). São Paulo, SP: USP.

HILSDORF, M. L. S. (1997). Mestra Benedita ensina primeiras letras em São Paulo. São Paulo, SP: Plêiade.

MUNHOZ, F. G. (2012). Experiência docente no século XIX: trajetórias de professores de primeiras letras da 5ª comarca da Província de São Paulo e da Província do Paraná (Dissertação de Mestrado em educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Rodrigues, L. M. (1962). A instrução feminina em São Paulo. São Paulo, SP: Escolas Profissionais Salesianas.

SCHUELER, A. F. M. de (2001). Culturas escolares e experiências docentes na cidade do Rio de Janeiro (1854-1889) (Tese de Doutorado em educação). Faculdade de Educação da UFF, Niterói.

Fabiana Garcia Munhoz – Historiadora e pedagoga pela Universidade de São Paulo (2002, 2008). Mestra (2012) e doutora (2018) em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Suas investigações na área da História da educação dedicam-se ao estudo sobre o magistério oitocentista com foco na história social do trabalho docente, história social das mulheres e relações de gênero. Participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHEFEUSP) desde 2007. É professora de Educação básica da cidade de Rio Claro – SP / BR desde 2013. E-mail: fgmunhoz@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-0198-4924

Angélica Borges – Graduada em Pedagogia e mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2014). Professora adjunta do Departamento de Ciências e Fundamentos da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Duque de Caxias (FEBF-UERJ), e professora da educação básica na Rede Municipal de Duque de Caxias (RJ). Integrante do grupo de pesquisa EHELO- FEBF (Estudos de História da Educação Local). E-mail: angelicaborgesrj@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0003-0207- 943X


MUNHOZ, Fabiana Garcia; BORGES, Angélica. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR. Maringá, v. 18, 2018. Acessar publicação original [DR]

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História e Educação: narrativas, práticas e sensibilidades / Ágora / 2018

Ao finalizar a organização do Dossiê “História e Educação: narrativas, práticas e sensibilidades”, vem-nos a certeza de que alcançamos os objetivos propostos, uma vez que congregamos textos que foram resultados de investigações realizadas no sentido de contribuir para os debates acerca das interfaces possíveis entre História e Educação, considerando tanto sua contribuição para a pesquisa quanto para a formação do historiador e do educador.

Dessa forma, oferecemos ao leitor um painel sobre as questões que podem, atualmente, sintetizar e orientar os estudos que se esforçam em relacionar História e Educação, considerando, especificamente, formas de narrativas, diversidade de práticas e as sensibilidades aí presentes.

Ora, a questão das sensibilidades na História, destacada por Lucien Febvre, não está limitada às fontes, mas diz respeito à própria compreensão da História e das durações. As formas de narrativas, nesse sentido, contribuem para as diferentes possibilidades de leitura das inscrições com as quais práticas do sensível marcam o tempo.

Assim, Leonardo Querino B. F. dos Santos, reflete, em seu texto A educação como problema médico: a pena de Belisário no debate sobre os males do Brasil (1912 – 1933), sobre as representações construídas por Belisário Pena sobre educação e saúde, priorizando fontes epistolares e a imprensa comum. Dessa forma, analisa como educação e saúde foram amalgamadas em uma representação de solução nacional, assim como discute sobre os debates que, naquele contexto específico, erigiram uma representação de “males brasileiros” a partir do paradigma médico. Conclui que, para Belisário, uma educação curativa e redentora só poderia ocorrer em três eixos unidos pelo referencial higienista: instrução, educação sanitária e cuidados com a saúde.

Por sua vez, Hadassa A. Costa estudou a arquitetura escolar em Campina Grande (PB) no início do século XX. No artigo intitulado A modernidade no corpo e no espaço: Práticas de Subjetivação, Higiene Moderna e Arquitetura Escolar, a autora analisa as influências das ideias de modernização no cotidiano escolar, especificamente a simbologia que a arquitetura moderna imprimia à escola. Nesse sentido, ao considerar a digestão do ambiente escolar como partícipe do aprendizado, analisa também os elementos que compuseram a construção da subjetividade daqueles alunos.

Entre o coletivo e o individual: memórias de um professor de História de escola pública é um, texto que reflete sobre o papel do educador considerando as urgências dos dias atuais. Assim, a autora Simone dos Santos Pereira analisa a narrativa de um professor de História sobre sua trajetória de vida e vivências na profissão docente entre o último quarto do século XX e a primeira década do século XXI. O olhar sensível sobre a fala desse professor permitiu à autora analisar diacronicamente as condições de sua permanência na docência considerando: sua paixão pela disciplina lecionada, seu engajamento político e seu reconhecimento como ser histórico, refletindo sobre seu papel social.

As práticas educativas efetivadas por docentes e discentes em uma determinada comunidade escolar é o tema do artigo de Janielly Souza dos Santos intitulado Não NEGO minha história: sou paraíba, sim senhor! Trata-se de um relato de experiência a partir da concepção de um ensino de História baseado no cotidiano dos alunos. História e Educação imbricam-se, assim, a partir da narrativa de práticas educativas fruto das sensibilidades produzidas pelos sujeitos que encenaram reflexões sobre história local e sobre suas próprias histórias.

Giuslane Francisca da Silva apresenta um trabalho sobre a atuação das chamadas Irmãs Azuis na educação escolar em Mato Grosso. Evangelizar, rezar e educar: a atuação da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Castres no campo educacional em Mato Grosso (1904-1971). Para tanto, analisa o percurso da instalação da Congregação no Brasil para além de seu intuito de fundar colégios. Focaliza, dessa forma, priorizando os arquivos da Congregação e textos produzidos também pelas freiras, as sociabilidades estabelecidas entre as Irmãse os que estavam sob seus encargos, construindo uma narrativa que dá visibilidade aos sujeitos envolvidos.

Agilidade, destreza e resistência adquiridas na infância: jogos e brincadeiras nas aulas de educação física da Paraíba (1920-1945)é um artigo de autoria de Alexandro dos Santos e Azemar dos Santos Soares Jr. Utilizando como fontes impressos que circularam na Paraíba durante a primeira metade do século XX, analisam, nesses veículos midiáticos, o valor educativo atribuído aos brinquedos, jogos e brincadeiras nas aulas de Educação Física como meio para a medicalização e disciplinarização do corpo dos alunos.

Este conjunto se oferece à leitura em momento oportuno, quando vemos educação e ensino de História ameaçados em suas práticas e sentidos, em nome de uma política puramente mercadológica que esvazia os sujeitos do processo educacional. Faz-se, hoje, urgente, uma reflexão histórica sobre práticas e sentidos da educação, visando a compreendermos o como e o porquê representações hegemônicas em um determinado contexto constituíram práticas educativas que ainda perduram e alimentam outras representações.

Juçara Luzia Leite

Iranilson Buriti de Oliveira

Organizadores.

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40 anos da Lei da Anistia: movimentos – narrativas – história / Ágora / 2018

O conceituado historiador francês Marc Bloch definiu, em um de seus principais livros, que o objeto da histórica “o homem no tempo”. Assim, para o historiador francês, o que deve mobilizar o historiador são as questões do presente, e, nesse sentido, a história passa a ser compreendida como um poderoso instrumento por meio do qual nós, homens da contemporaneidade, procuramos dirimir problemas que encontram-se contemporaneidade, incluindo aqueles que estão subscritos em um passado que não passa, parafraseando Reinhart Koselleck.

Considerando tal assertiva, o objeto sobre o qual os colaboradores do presente dossiê se debruçam é a Lei de Anistia, editada em 28 de agosto de 1979, e que tem sido tema de diversas pesquisas e reflexões de variados historiadores, sociólogos, juristas e cientistas políticos – que produziram uma literatura relativamente variada a respeito da temática em nível nacional. E próximo de completar 40 anos desde sua instauração, a referida Lei tem sido revisitada nas últimas décadas, e revista sob múltiplas temáticas que o assunto acaba por ensejar. Nos últimos anos, os debates sobre os legados da Lei da Anistia ganharam numerosas abordagens, interpretações e críticas, especialmente após a criação da Comissão Nacional da Verdade, com vistas a se apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro no contexto do regime autoritário decorrente do Golpe de 1964.

E o presente dossiê encontra-se inserido exatamente nesse conjunto de preocupações e, dessa forma, procura cotejar diversas sub-temáticas, o que é feito com a generosa colaboração de vários estudiosos. Assim, diante da pluralidade de temáticas, o dossiê apresenta um conjunto de artigos que dialogam com inúmeras questões em torno dos legados da Lei da Anistia. Essa diversidade, em certa medida, reflete as diversas possibilidades de abordagens das questões ligadas a redemocratização e ao modelo de Justiça de Transição no Brasil.

Assim, o conjunto de textos que compõe esta edição aponta para diversas dimensões Da Lai da Anistia, o que nos remete a pensar, num espectro mais abrangente, acerca da própria democracia brasileira fundada e decorrente dela, e os dilemas em torno da própria da sua consolidação, em um momento em que seus marcos vêm sofrendo importante ameaças, diante da onda conservadora pela qual passa o país na atual conjuntura. Deste modo, buscamos, com o dossiê, além de fomentar o debate em um momento em que, mais uma vez, a temática que retorna para o centro atenções, aliar o exercício reflexivo para a compreensão dos mecanismos por meio dos quais se forjam a natureza e as características da Democracia Brasileira.

Pedro Ernesto Fagundes

Ueber José de Oliveira

Organizadores

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Banalidade de Heidegger – NANCY (C)

NANCY, Jean-Luc- Banalidade de Heidegger. Trad. De Fernando Bernardo e Victor Maia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 1, Jan/Abr, 2018.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião – área de concentração: Filosofia da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com bolsa de financiamento Capes. Mestre em Ciências da Religião e licenciado em Filosofia pela PUC-Campinas. E-mail: lgproviatto@hotmail.com

Acesso somente pelo link original

 

Catholic orientalism: Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries) – XAVIER; ŽUPANOV (RH-USP)

XAVIER, Ângela Barreto; ŽUPANOV, Inês G.. Catholic orientalism. Empire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015. 416 pp. Resenha de: GONÇALVES, Margareth Almeida. “Orientalismos” e arquivos esquecidos da época moderna. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Catholic orientalism, publicado 37 anos após a edição princeps Orientalism por Edward Said, é um livro seminal aos estudos sobre a construção da(s) alteridade(s) indiana(s) na primeira mundialização ocidental através da grade do catolicismo, percorrendo percursos de teoria e metodologia distintos do pensador palestino. A contribuição de Catholic orientalism insere-se no amplo esteio de estudos críticos das últimas décadas à perspectiva saideana de imutabilidade e congelamento das relações de dominação. Tal abordagem ignora tanto as ambivalências das relações de poder quanto o componente de agência do “dominando”, sucessivamente subtraído da análise no complexo quadro dos processos de circulação e apropriação de conhecimento e informação dos encontros culturais. Das páginas de Catholic orientalism adquirem espessura epistemológica os repertórios de escrita do primeiro orientalismo, na ideia de construção e imaginação europeias sobre o Oriente por um dossel do catolicismo de Portugal e Roma papal na Época Moderna. Trata-se de uma renovação às análises da produção de saberes sobre a Índia, propiciadora de inflexões ao campo de conhecimento da historiografia do Império português, com desdobramentos mais amplos no rompimento de consensos reducionistas das conexões entre Ocidente e Oriente providos pelas versões do orientalismo francês e anglo-saxônico do final dos Setecentos. O conceito de “orientalismo católico” introduzido pelas autoras, Ângela Barreto Xavier e Inês Županov, evoca da invisibilidade um vasto arquivo documental de saberes e de práticas de conhecimento compostos no âmbito do Império português sobre a Índia. Esse conjunto de saberes foi remetido ao esquecimento no triunfo das abordagens atravessadas pelo crivo da razão da ciência moderna, paradigma dominante a partir do século XVIII. Redesenhar o mapa dos saberes católicos – os lugares de produção e as operações escriturárias – configurados em escala global à Época Moderna organiza as três seções de Catholic orientalism, em que sobressaem sensíveis percursos intelectuais por vasta historiografia, na combinação de sofisticado debate teórico e de metodologias heterodoxas das perspetivas foucaultinas e da chamada “grounded theory”. Entre os séculos XVI e XVIII, perscrutam-se grades de conhecimento e relações de poder sobre a Índia simultaneamente nas perspetivas do micro e macro, do local e global, por meio dos roteiros do catolicismo. De maneira distinta dos orientalismos dos Oitocentos, o orientalismo católico caracteriza-se pela natureza fracionada das instituições, dos conhecimentos e arquivos assinalados pela dispersão da produção. A fragmentação contribuiu ao apagamento de corpora dos conhecimentos orientalistas produzidos pelo catolicismo imperial de Portugal e igualmente da Roma papalina, importante centro produtor de abordagens sobre o Oriente na crescente sistematização de saberes asiáticos na fundação da congregação de Propaganda Fide, em 1622, com irradiações nos Seiscentos e séculos ulteriores. O livro propõe uma periodização do catolicismo entre os séculos XVI e XVIII, balizamentos entre os capítulos primeiro e oitavo. Uma das inúmeras qualidades da estrutura do livro está no eixo comparativo da análise seja com os espaços do Atlântico português, seja com a América espanhola. Destaca-se, por sua vez, em oferecer excelentes insights a futuras investigações e estudos de caso em torno do que podemos denominar intuitivamente de um “americanismo católico”, em desdobramentos a perspectivas já trilhadas por Serge Gruzinski e Jorge Cañizares-Esguerra, ambos citados em segmentos variados do livro.

Dentre a vasta produção das autoras, marcada por um acúmulo de investigação e erudição, salientam-se as obras sobre os jesuítas e franciscanos na Índia, respectivamente Disputed missions: Jesuit experiments and Brahmanical knowledge in seventeenth century India (1999) de Inês Županov, e A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII (2008) de Ângela Barreto Xavier. Catholic orientalism resulta da interlocução desafiante entre duas imponentes especialistas de presenças portuguesa, italiana e francesa na Ásia à Época Moderna, em que ganha o leitor, constantemente desafiado pelo fluxo narrativo vertiginoso de intensa pesquisa e interlocuções historiográficas cerradas.

A primeira seção, Imperial itineraries, consta de três capítulos. O primeiro, Making India classic: exotic and oriental, reflete as condições de emergência de saberes sobre a Índia por uma geração dos Quinhentos que orientalizou a Índia e fabricou Portugal mimetizado na Antiguidade romana. Duas categorias fulcrais à formação de corpora escriturários da Índia na primeira Época Moderna são expostas: orientalismo e classicismo. Delineia-se a imaginação cultural e política de Portugal no Oriente no eixo de similitude entre Portugal e o Império romano – a apropriação e ressignificação da Antiguidade pela expansão marítima, o protagonismo dos portugueses e a simbologia da nova Idade de Ouro. Tal conexão articula João de Barros (1496-1570), o Lívio português, e João de Castro (1500-48), o Cipião africano, ao universo dos Quinhentos. A associação entre o humanista, feitor da Casa da Índia, e o vice-rei do Estado da Índia permite às autoras a análise fecunda de conexões entre texto e imagética, como na referência à invenção da Índia na composição de Ásia na prodigiosa tapeçaria em estilo flamengo, ilustrando a vitória no segundo cerco de Diu (1546) e a entrada triunfal de João de Castro em Goa, atualmente no Kunsthistorisches Museum em Viena.

A formulação de modalidades de compreensão e narração sobre o sul asiático no século XVI estriba um primeiro período assinalado pela fragmentação da informação, em que predominam o controle e a hegemonia dos agentes das comunidades locais. A segunda metade dos Quinhentos distingue-se pela expansiva relevância política e a complexidade da produção de conhecimento sobre a Índia em compilações como o tratado de Garcia de Orta (Os colóquios dos simples e drogas da Índia, 1563), a geografia de Fernão Vaz Dourado (Atlas, 1571), as narrativas históricas de Fernão Lopes de Castanheda (História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, 1551) em ampliação do legado de João de Barros (Da Asia, 1552). Incluem-se ainda o poema épico de Camões (Os Lusíadas, 1578) e o relato de aventuras de Fernão Mendes Pinto (Peregrinaçam, primeira edição em 1664).

O segundo capítulo, Empire and the village, avança na análise da montagem de uma ciência da administração, suporte das práticas de governança. Na esteira das abordagens de Christopher Barly e Bernard S. Cohn para o Império britânico destaca-se a gênese da formulação de conhecimentos específicos da prática de governação na formação de uma proto-burocracia de funcionários, em que as autoras oferecem uma revisão à historiografia sobre a Índia na Alta Idade Moderna e a produção do que denominam conhecimento útil e pragmático. Assinalam o papel das populações nativas na produção de uma ciência da administração nos espaços coloniais na Índia. São abundantes as informações propiciadas por fontes como o Foral de Mexia de 1526 no mapeamento da população e dos territórios goeses, suprindo o centro do Império de informações obtidas da interação entre colonizados e agentes régios. O capítulo tangencia políticas de governo dos vice-reis, no exemplo de d. João de Castro (1545-1548) que, na esteira do governador Martim Afonso de Souza (1542-1545), articulou poder político e construção de memória, geradora de saberes sobre os territórios. Anteriores às imagens publicadas pelo insigne livro do neerlandês Jan Huygen van Linschoten (1563-1611) ao final do século XVI, as ilustrações de variados costumes das partes dos mundos portugueses além do cabo da Boa Esperança que constam do Codex Casanatense foram produzidas durante o governo de d. João de Castro, desvelando um manancial de surpreendente colorido dos súditos orientais do monarca português. Outros conjuntos documentais relevantes integram o arquivo colonial entre os quais a compilação da comunicação entre autoridade régia e o vice-rei em Goa, que compõe o Livro das Monções, no recurso ao vocábulo de alusão aos circuitos sazonais que condicionaram os deslocamentos entre Ásia e o Atlântico dos Quinhentos ao século XVIII. A riqueza do volume de fontes, embora disperso, da primeira mundialização europeia combina a escala local à global nos processos de decision-making imperial. A primeira seção do livro encerra a ampliação da análise do Império dos trópicos no foco dos atores em ação na posse da natureza na enunciação de uma história natural: médicos, mercadores e missionários.

O terceiro capítulo, Natural history: physicians, merchants, and missionaries, inicia pela menção ao médico cristão novo Garcia Orta em um percurso através de obras variadas que projetam o acúmulo de conhecimento sobre a natureza dos espaços do Leste por meio da disciplina de história natural conformando o mapeamento dos lugares de produção e dos produtores de saberes de botânica, farmacologia, das artes médicas de curar. Incluem-se conhecimentos relacionados à história natural que integraram interesses fragmentados de flora e fauna locais, como também de drogas e especiarias medicinais aplicadas a doenças. Esses escritos projetam tópicas semelhantes aos da literatura de viagem identificada à presença portuguesa na Ásia e Brasil. Xavier e Županov incluem a parte do Atlântico e da América portuguesa na montagem de arquivos de história natural em que a concepção de utilidade foi central no modus operandi português; adquire curso a positivação da experiência direta.

Catholic meridian, título do segundo segmento do livro, unifica três capítulos na consolidação de regimes de saberes do catolicismo acerca da sociedade e religiões locais pelos poderes interativos e competitivos de disputa de conhecimento e território entre monarquias ibéricas, papado e a França. Distribuídos pelos centros emissores da rede de missionários, os agentes foram jesuítas, franciscanos e religiosos vinculados à ação da Propaganda Fide. Segundo as autoras, o orientalismo católico transformou-se em uma entidade compósita e cosmopolita no ambiente de disputas da Europa católica no sul da Ásia.

Em Religion and civility in “Brahmanism”: Jesuit experiments, quarto capítulo e primeiro da segunda unidade, o protagonismo está nos missionários da Companhia de Jesus, em que a produção discursiva segmenta religião e ritos civis. A longa tradição dos jesuítas na valorização do estudo das línguas locais concretizou-se na produção de gramáticas e vocabulários. A opção jesuítica pelo “diálogo cultural” através de uma estratégia evangelizadora fundada no método da acomodação influiu sobremaneira a redefinição da idolatria pelo traço civilizacional indiano, defendida por alguns jesuítas nos episódios da controvérsia dos ritos malabares. A interação com os especialistas religiosos indianos intervém nas etnografias e descrições do corpus textual jesuítico. De acordo com Xavier e Županov, a controvérsia dos ritos e costumes no sul da Índia constitui um dos momentos fundadores do orientalismo católico como “ciência do outro” no manejo dos interesses europeus. Também a metodologia dos missionários católicos, expurgada dos fins soteriológicos, aproxima-se dos preceitos de sustentação científica do orientalismo britânico desenvolvido pela Asian Society em Calcutá, fundada nos moldes da Royal Society de Londres por William Jones (1726-1794).

Franciscan orientalism é o título do capítulo seguinte, nos termos das autoras, um guia do orientalismo franciscano nos séculos XVII e XVIII. Embora disperso e não unificado como o corpus documental jesuítico, centralizado em Roma, o arquivo escriturário franciscano manifesta extraordinária fortuna de textos de corografia e história, em que o preceito teológico e de letramento do medievo de valorização do contato com o mundo natural e das práticas de coleta perdura em obras escritas por franciscanos da Índia. Segundo as autoras, as práticas e os regimes de escrita orientalistas implicados nas obras de franciscanos amoldaram a construção da Índia portuguesa. O percurso através de bibliotecas diversas de franciscanos em Lisboa desvela acervos de manuscritos e impressos do orientalismo franciscano em coleções de títulos de línguas orientais, documentos sobre a Índia em memórias, textos de filosofia, história, “ciências”, que apontam para um diverso cânone orientalista. Por sua vez, os franciscanos da Índia representam perspectivas crioulas que vindicaram com tenacidade o pertencimento ao Império português. Conquista espiritual do Oriente (1636), tratado em três volumes de Paulo da Trindade (1570-1651), franciscano macaense da província de São Tomé da Índia da Regular Observância, inscreve-se no repertório da escrita de uma história geral da ordem e incorpora ademais a tese da anterioridade dos frades menores na Ásia frente aos jesuítas e a concomitante defesa de autonomia dos franciscanos da Índia em relação aos do Reino. Nesse mesmo horizonte intelectual, está Relação defensiva dos filhos da Índia oriental (1640) de frei Miguel da Purificação, confrade de Paulo Trindade. Originário de Tarapor na Índia, Purificação, em périplo globalizado, frequentou a cúria romana de Urbano VIII e a corte Habsburgo de Filipe IV nos anos de 1630. Note-se no capítulo a variedade da escrita franciscana no pertencimento a distintas comunidades imaginárias de conhecimento dirigidas por sua vez a audiências diferentes. Muitas formas de pensar e tematizar o orientalismo. A associação entre orientalismo e imperialismo português observa um traço indelével do regime da escrita franciscana de poder. Diferenças entre a escrita de leigos e religiosos, de obras produzidas na metrópole e na colônia e das formas de apropriação das tradições grega e romana forjam parâmetros do repertório escriturário não somente de franciscanos, mas extensivo ao espectro textual dos orientalismos na historiografia da Época Moderna.

O sexto capítulo encerra a segunda parte do livro no percurso por inúmeras gramáticas, vocabulários produzidos por traduções de missionários jesuítas e franciscanos. As autoras exploram a variedade e riqueza de trabalho linguístico seminal ao orientalismo católico, posteriormente base dos novos orientalismos francês e britânico.

A terceira e última seção – Contested knowledge – reúne dois capítulos que analisam a consolidação da dominação imperial portuguesa e a fase derradeira do primeiro orientalismo. O sétimo capítulo discorre acerca das disputas pelo lugar de ancestralidade do cristianismo na Índia entre as elites locais brâmane e charodo, na condição de descendentes únicos de Noé e do rei Gaspar, um dos três reis magos da tradição cristã. Nas primeiras décadas dos Setecentos, na trilha fundadora do que as autoras designam por “orientalismo de dentro”, inaugurada anteriormente por Mateus de Castro (1594-1677) no breve tratado Espelho de brâmanes – a notável expressão da voz bramânica -, ampliam-se os escritos redigidos por membros emergentes do clero nativo nos exemplos de Auréola dos índios (1702) de Antônio João José Frias e na letra de Leonardo Paes no Promptuario de deffinições indicas (1713). No mesmo diapasão de um regime de escrita orientalista de autoria dos grupos nativos situa-se o tratado Espada de David contra o Golias do bramanismo (c. 1710) de João da Cunha Jacques que exalta o contributo dos charodos à Índia cristã. A singularidade desses grupos desponta no controle da linguagem do colonizador, alentando escritas imaginativas que atendem interesses de grupos de estratos superiores nativos. Na argumentação do capítulo, destaca-se a relevância atribuída ao componente de agência aos grupos superiores autóctones no fortalecimento das posições internas da hierarquia de poderes locais na perpetuação da dominação imperial portuguesa.

O oitavo capítulo, Archives and the end of Catholic orientalism, expõe a fase derradeira do orientalismo católico. As autoras delineiam três itinerários do conhecimento orientalista no ocaso do século XVIII. Por breve período, Roma tornou-se o centro do orientalismo católico europeu – destaca-se a análise do percurso da produção intelectual do carmelita descalço croata Paulinus a S. Bartholomaeo (1748-1806). Um segundo itinerário tem por foco a constituição do orientalismo por Paris em que cabe atentar ao lugar dos acervos jesuítas na Índia francesa de Pondicherry no mercado de obras sobre o Oriente no período anterior à supressão da Companhia de Jesus entre 1759, em Portugal, e 1773, afinal em Roma, arquivos que assinalam a fundação dos estudos de indologia na França. E, o terceiro itinerário, da Índia e Londres britânicas, em que o orientalismo católico, misturado e baseado no conhecimento local, foi apropriado e invisibilizado pela nova composição imperialista.

O epílogo do livro encerra o opróbio do orientalismo católico no recurso a uma análise fina e densa da cidade de Goa do vice-reinado de Francisco de Assis de Távora (1750-1754). Viceja-se o ápice do esplendor da corte do marquês de Távora em Goa e do anúncio paradoxal do declínio do orientalismo católico. A presença de tópicas em torno de Alexandre o Grande no imaginário português repete-se no universo goês, uma espécie do que as autoras nomeiam de “novo totemismo”. A conclusão de Catholic orientalism, na reflexão da conexão entre orientalismo e o universo da ópera à época dos Távora em Goa – exibição das peças operísticas Tragédia de Poro e Adolonimo de Sidonia durante as festas de aclamação do rei d. José I em dezembro de 1751 na cidade de Goa -, persevera no registro a Edward Said, agora em Cultura e imperialismo. O futuro drama dos Távora, condenados por regicídio e executados em 1759, constitui uma metáfora da agonia do Portugal pré-moderno durante o consulado pombalino e pari passu ao deslocamento do orientalismo português dos séculos anteriores à pecha de saber menor, contestado.

À glosa de encerramento da leitura, nos defrontamos com um livro da envergadura de um clássico, de leitura inescapável aos estudos sobre a Índia em que o catolicismo foi parte insuperável na produção do Oriente na Europa e do Oriente filtrado pelo catolicismo dos indianos na Época Moderna. Há muito que aprender na análise primorosa de Xavier e Županov em perspectiva que evita estereótipos e amplia sobremaneira horizontes através de debates sobre os impérios ibéricos, o papado e a produção de saberes sobre a Índia na Época Moderna, sombreados pelos orientalismos francês e britânico do final dos Setecentos e século XIX.

Referências

XAVIER, Ângela Barreto & ŽUPANOV, Inês G. Catholic orientalismEmpire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015, 416 p. [ Links ]

1Resenha do livro: XAVIER, Ângela Barreto & ŽUPANOV, Inês G.Catholic orientalismEmpire, Indian knowledge (16th-18th centuries). Nova Deli: Oxford University Press, 2015, 416 p.

Margareth Almeida Gonçalves – Margareth de Almeida Gonçalves é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, 2002). É professora associada do Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História – PPHR da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail: mdagoncalves@gmail.com.

Festival culture in the world of the Spanish Habsburgs – CREMADES; FERNÁNDEZ-GONZALEZ (RH-USP)

CREMADES, Fernando Checa; FERNÁNDEZ-GONZALEZ, Laura. Festival culture in the world of the Spanish Habsburgs. Nova York: Routledge, 2016. (Primeira publicação em 2015 por Ashgate Publishing). Resenha de: SOUTTO MAYOR, Mariana. Representações de poder, mediações do Império: festas e cerimoniais na monarquia dos Habsburgo. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Os cerimoniais e festividades da Idade Moderna têm sido objeto de análise de pesquisadores de diversas áreas nos últimos anos. Os estudos clássicos de Jacob Burckhardt e as análises de Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Ernest Kantorowicz, Victor Turner, José Maravall e José Diez Borque fortaleceram a criação de um campo específico de estudos e abriram novas perspectivas para analisar os múltiplos significados presentes nas práticas representacionais que compõem um acontecimento festivo.

O livro aqui apresentado, organizado por Fernando Checa Cremades, professor da Universidade Complutense de Madri, e Laura Fernández-Gonzalez, professora da Universidade de Lincoln, dialoga com essa tradição de estudos e revela novos olhares para a análise da cultura festiva, especificamente na monarquia dos Habsburgo, através de artigos de especialistas em diversas áreas.

O trabalho surgiu de uma conferência internacional que Laura González organizou na Universidade de Edimburgo, na Escócia, sobre festividades europeias da Idade Moderna, com especial atenção ao mundo hispânico. Porém, esta edição configura um passo além da publicação de trabalhos apresentados no simpósio; o livro apresenta excelentes estudos sobre a cultura festiva da monarquia dos Habsburgo, organizados de forma a contemplar diversos aspectos das festividades modernas, sublinhando a necessidade de uma perspectiva interdisciplinar.

Os estudos contidos na publicação abrangem o amplo sistema cultural criado e desenvolvido na monarquia dos Habsburgo considerando as dinâmicas, muitas vezes complexas e contraditórias, entre as formas culturais e formações sociais.1 Os reflexos e mediações de estruturas militares, econômicas, religiosas e políticas do poderoso império que se formou no século XVI são investigados ao longo de 12 artigos.

O livro, dividido em quatro partes, ganha qualidade dando foco às particularidades da monarquia dos Habsburgo com análises de festivais em Castela, mas também em outras partes do império, como nos reinos italianos, em Portugal, nas colônias americanas, contemplando diferentes períodos históricos. Um dos pontos fortes dessa publicação está na organização dos temas em capítulos e partes, criando mediações para o leitor ao tratar de tantas questões que envolvem as festividades e cerimoniais no Império espanhol.

Outro aspecto importante, destacado pelos organizadores na introdução, é o fato de a publicação ser em inglês. Essa escolha seria estratégica do ponto de vista do alcance que o próprio livro poderia ter: se comparado aos estudos de festividades de outras monarquias europeias, há menos estudos sobre a monarquia hispânica. O livro, portanto, seria uma forma de divulgação para estimular jovens pesquisadores de todo mundo.

Para nós, brasileiros, que temos uma importante bibliografia sobre festas na América portuguesa,2 a publicação tem especial valor por afirmar a necessidade de estudos comparativos e interdisciplinares sobre festividades na Idade Moderna, como também os textos publicados nos servem de modelos de análise, complementando estudos já existentes.

A primeira parte do livro é dedicada à cultura visual, com o estudo de tapeçarias e pinturas no ambiente de corte. A escolha do tema chama a atenção pelo fato de que, em festividades públicas, a maior parte da produção de artes visuais consistia em “arte efêmera”: era produzida especialmente para o evento, não necessariamente sendo reutilizada ou reaproveitada em outras datas comemorativas. Daí a dificuldade do estudo dessas formas artísticas, pois o que chegou às nossas mãos são documentos, como gravuras e esboços, que reproduzem, com mediações, o que foi criado.

As tapeçarias, ao contrário, são objetos de arte permanentes, o que as fazem fonte primária de estudo. O primeiro artigo, intitulado “The language of triumph: images of war and victory in two early modern tapestry series, de Fernando Checa Cremades, analisa duas séries de tapeçarias que narram campanhas militares espanholas no norte da África, do final do século XV a primeira metade do XVI, na perspectiva de suas formas e funções em cerimoniais na corte.

Para Checa, as tapeçarias The conquest of Asilah and Tangiers by Afonso V of Portugal (1475) e The conquest of Tunis (1546-1553) podem revelar o desenvolvimento da linguagem da tapeçaria na Idade Moderna. A forma “tapeçaria” surge no final da Idade Média, imitando o gênero literário das crônicas históricas. Na transposição do texto para a criação de imagens, houve o desenvolvimento de uma forma mais complexa, que se apropriou inclusive da linguagem do “triunfo militar”. Não à toa o título do artigo faz menção à forma triunfo, relacionando as tapeçarias com a representação das vitórias militares e imagens de guerra na corte dos Habsburgo.

Nas palavras de Checa, os diversos usos das tapeçarias sinalizam “a importância simbólica e representativa dada a elas”. As duas tapeçarias serviam à monarquia não só no ambiente da corte, para decorar quartos e salas de palácios, como também em festivais e celebrações de todo tipo, enquanto grandioso ornamento arquitetônico urbano. Esse uso, além de levar o ambiente de corte para a cidade, constituiu a forma moderna do “triunfo”, ao reiterar a força militar do reino e o poderio da monarquia dos Habsburgo. O estudo mais detalhado feito pelo autor será sobre a segunda tapeçaria, The conquest of Tunis, criada sob o reinado de Carlos V. O monarca soube aproveitar essa linguagem para construir e legitimar sua imagem imperial como conquistador de seus inimigos e, ao mesmo tempo, como “senhor de si e de suas paixões” – seguindo a filosofia estóica, de acordo com Checa.

O segundo texto “The cerimonial decoration of the Alcázar in Madrid: the use of tapestries and paitings in Habsburgs festivities”, de Miguel A. Zalama Rodriguez, debate o valor da tapeçaria na corte em relação com a novidade da pintura como forma de representação visual. Diferentemente de outras cortes, na monarquia hispânica, a pintura tomou o lugar da tapeçaria somente no século XVII.

Zalama narra alguns episódios da cultura da corte dos Habsburgo que nos ajudam a compreender a importância e as funções da tapeçaria nesse momento histórico como parte das coleções reais. E a partir de descrições de cronistas, Zalama oferece ferramentas para a análise do comportamento e etiquetas da corte dos Habsburgo.

Se a primeira parte do livro com o estudo das tapeçarias volta-se mais para o ambiente da corte, a segunda parte continua a investigar a linguagem do triunfo com o olhar para entradas, jornadas e suas relações com espaços urbanos na monarquia dos Habsburgo, através de cinco análises de festividades públicas em diferentes localidades do Império espanhol.

O artigo “Festival interventions in the urban space of Habsburg Madrid”, de David Sánchez Cano, através do estudo de documentos de conselhos municipais castelhanos e instruções reais, faz uma análise muito interessante sobre as transformações urbanas realizadas para as festas públicas e as conflituosas relações entre os conselhos e a corte, e entre habitantes da cidade e os poderes locais e reais.

Para que as entradas triunfais ocorressem na cidade seguindo suas formas pré-estabelecidas, era necessário a decoração da cidade, a construção dos arcos triunfais e adornos. Mas era necessário também uma infraestrutura que muitas vezes não estava de acordo com a arquitetura da cidade. O conselho ordenava então a pavimentação, fechamento e alargamento de ruas, a reforma ou demolição de casas, o reparo de fontes públicas, a construção de plateias para os espectadores, palcos para representações. Inclusive, em meados do século XVII, iniciou-se a prática de construir barreiras para separar o público da procissão principal, deixando clara a regulação do espaço público para disciplinar seus sujeitos.

O quarto capítulo, escrito por Laura Fernández-González , intitulado “Negotiating terms: king Philip I of Portugal and the cerimonial entry of 1581 into Lisbon”, faz uma ótima análise das imagens do monarca Felipe II como rei de Portugal, através do estudo de sua entrada triunfal em Lisboa em 1581.

A festividade teve grande importância nesse momento histórico para Felipe II, dada a recente conquista militar e política do reino português. Felipe II necessitava construir uma imagem para seus súditos portugueses de rei pacífico e justo e, ao mesmo tempo, poderoso e “hábil para destruir seus inimigos, incluindo, especialmente, aqueles dentro do seu reino”.

Um grande investimento foi feito para se organizar uma entrada triunfal que refletisse e construísse a imagem do monarca para o reino recém-conquistado. Mas González evidencia ao longo do texto as tensões e disputas existentes entre o monarca e os interesses das autoridades e habitantes lisboetas. Houve uma grande negociação para a organização da festa, para limitação dos gastos e, inclusive, para se decidir o estilo da celebração. Os portugueses queriam mostrar sua própria cultura festiva e, se houvesse brechas nas arquiteturas e artes efêmeras, criar discursos de contestação e protestos ao próprio monarca.

O quinto capítulo do livro, escrito por Maria Ines Aliverti, dedica-se à análise da entrada de Margarida, arquiduquesa da Áustria e rainha da Espanha, a Cremona, ducado de Milão. A autora desenvolve no texto a questão da cidade italiana que, mesmo não sendo capital de um estado territorial, conseguiu organizar uma grande festividade. A partir desse problema, Aliverti localiza Cremona como uma cidade estratégica geográfica e economicamente, seu esforço de construir uma imagem de cittá nobilíssima, e analisa a festividade a partir da história de um manuscrito e gravuras de aparatos criados por artistas locais sobre a celebração, que iriam ser publicados na forma de um livreto.

O sexto capítulo também investiga as entradas de Margarida da Áustria pelos reinos italianos, da perspectiva de sua viagem pelo estado de Milão entre 1598 e 1599. Através de uma série de documentos, como cartas e notificações oficiais, a autora, Franca Varallo, exemplifica as tensões entre as autoridades régias, as autoridades locais e os cidadãos na organização da festividade, a partir do estudo de caso da entrada de Margarida em Pavia. Varallo cria perspectivas interessantes no estudo das festas, ao materializar para o leitor as dificuldades, custos e tensões que haviam na organização das celebrações.

O artigo seguinte, “Routes and triumphs of Habsburgs power in Colonial America”, de Victor Mínguez Cornelles, faz o estudo das entradas triunfais de vice-reis no México. O autor estuda as transformações da forma triunfo desde a Roma antiga e suas funções na Idade Moderna, principalmente em relação à importância das representações do monarca em partes de seu reino onde ele nunca havia estado.

Os vice-reis, representantes do poder real na colônia, utilizavam essas entradas para criar representações de si perante os colonos. O autor analisa os processos de mudanças na criação dessas imagens. Durante os séculos XVI e XVII, aparecem nas festividades analogias entre a imagem do vice-rei com deuses e semideuses como Apolo, Atlas, Júpiter, Mercúrio e Prometeu e com heróis clássicos antigos como Hércules, Ulisses e Cadmo. O interessante é que em algumas festividades do século XVII, a associação é feita com reis mexicanos da América pré-hispânica, como Acamapichli, Quauhtemoc, Huitzlihuitl e Chimalpopocatzin.

A terceira parte do livro trata das relações fundamentais entre catolicismo e a monarquia dos Habsburgo, intitulada “Religion and empire: Processions, funerals and the Spanich monarchy”. O primeiro artigo, de Alejandra B. Osorio, examina as exéquias e proclamações de reis celebradas nos vice-reinos do México e Peru como confirmação simbólica da manutenção do poder real, mesmo que distante, através da linha sucessória, com o surgimento de um novo monarca.

Osorio evoca aqui a metáfora do corpo político para situar a colônia como parte do corpo do império e reitera a importância dos cerimoniais e festividades na América colonial para a construção de simulacros, representações e, por conseguinte, legitimação da cabeça do império: o monarca. A autora elenca alguns elementos fundamentais para o estudo das exéquias e proclamações de reis na América espanhola como, por exemplo, a escolha do espaço para realização do evento – que deveria necessariamente ser também um espaço simbólico; as relações entre autoridades locais e Coroa, através das ordenações régias; a publicação das relaciones, como parte importante para a construção da memória e propaganda da festa; a construção dos cadafalsos para serem expostos durante a procissão, que seriam espaços de memória e representação da imagem do novo monarca e de seus ancestrais, e cita exemplos de festividades na cidade de Lima, importantes como estudos de caso.

O texto seguinte, de autoria de Juan Luis González Garcia, aprofunda outras questões referentes às festas religiosas e à monarquia dos Habsburgo, a partir do estudo de celebrações hagiográficas na cidade de Madri. A imagem e a vida dos santos considerados “nacionais”, que eram propagadas nas festividades, constituíram-se formas importantes para a construção de uma moral e códigos coletivos, assim como para legitimar a monarquia católica e a imagem do monarca e da corte espanhola, formando a chamada Pietas austríaca. O autor exemplifica essas relações através da análise das festas públicas de beatificação de Ignácio de Loyola e Teresa de Jesus, que tinham também o interesse em canonizações futuras.

No décimo capítulo do livro, Sabina de Cavi analisa a construção dos aparatos efêmeros nas festas de Corpus Christi de Palermo, na Sicília, através do estudo do patronato do Senado e principalmente do vice-rei, Juan Francisco Pacheco, duque de Uceda, na organização da festividade pública, e da atuação do arquiteto Giacomo Amato (1642-1732). A partir do estudo de quatro gravuras do arquiteto de corte, a autora aponta elementos para o estudo da arquitetura barroca tardia na Sicília e suas relações com as formas espanholas.

A última parte do livro é dedicada às práticas artísticas desenvolvidas nas celebrações a serviço da monarquia dos Habsburgo, com um estudo sobre a importância da música nas atividades da Archícofradía de la Santíssima Resurrección, de Roma, em especial em procissões e celebrações de Corpus Christi, Páscoa e dias de santos. A análise feita por Noel O’Reagan, baseada em listas de gastos e pagamentos de instituições religiosas, chama a atenção para o investimento feito na contratação de trompetistas, organistas, violinistas, tenores, contraltos, baixos etc. O autor, através do estudo de relações de festividade, investiga as funções e importância dada aos músicos nas procissões.

O último artigo do livro, intitulado “Royal festivals in mid-seventeenth century Naples: the image of the Spanish Habsburg kings in the work of Italian and Spanish artists”, de Ida Mauro, explora o significado de imagens decorativas e as particularidades de suas criações nas festividades de Nápoles, sob o domínio de vice-reis espanhóis. A análise se volta para a imagem dos monarcas espanhóis projetada em cadafalsos e decorações efêmeras. Num reino em disputa, as festividades promovidas pelo vice-reinado seriam formas de legitimação e propagandística do poder real e do domínio espanhol.

Ao final da leitura, o leitor sai com um amplo panorama da cultura festiva na monarquia dos Habsburgo e com a imaginação aguçada pelas imagens e discussões presentes no livro. Obviamente, a publicação não se encerra em si mesma e nem possui a pretensão de trazer todas as discussões possíveis sobre festividades ou abranger todo o território do vasto Império espanhol. A proposta dos organizadores é realizada de forma estimulante para seus leitores, pois traz sérios estudos multidisciplinares que abarcam o complexo sistema cultural da monarquia dos Habsburgo, com o olhar focado em uma das práticas culturais mais interessantes e contraditórias da Idade Moderna: as festividades públicas e cerimoniais de corte.

Referências

JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Iris. Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, vol. I e II. São Paulo: Edusp, Hucitec, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. [ Links ]

WILLIANS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

1 Raymond Willians no livro Cultura aborda, de modo amplo, diversos aspectos que compõem um estudo de sociologia da cultura. Entre eles, Willians chama a atenção para as “formas sociais da arte” e a ideia de que a arte media elementos sociais e processos históricos. WILLIANS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 25.

2Desde o final da década de 1980, temos uma profusão de estudos acadêmicos nas áreas de história, arquitetura, antropologia, economia, música, artes plásticas e artes cênicas sobre festas coloniais. Em 2001, foram publicados os dois volumes do livro Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, organizados por István Jancsó e Iris Kantor, que possuem cerca de 50 estudos de especialistas brasileiros e portugueses sobre diversos aspectos das festividades na colônia. JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Iris. Festa, cultura e sociabilidade na América portuguesa, vol. I e II. São Paulo: Edusp, Hucitec, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001. E não podemos esquecer de estudos clássicos como os de Affonso Ávila, José Aderaldo Castello e Curt Lange.

Mariana Soutto Mayor – Doutoranda em Teoria e Prática do Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade – Lits. E-mail: marianasoutto@gmail.com.

Ocean of trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850 – MACHADO (RH-USP)

MACHADO, Pedro. Ocean of trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. 315 pp. Resenha de: FOLADOR, Thiago de Araujo. Os africanos escolhem o que vão levar: os tecidos indianos no comércio de marfim e escravos. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Quem visita Moçambique não deixa de ser seduzido pelas capulanas, tecidos estampados e coloridos que se tornaram quase sinônimo do país. Estes tecidos são encontrados à venda em muitas ruas da capital, Maputo, são usados no dia a dia dos moçambicanos, principalmente pelas mulheres, e também são bastante cobiçados pelos turistas em busca de lembranças e souvenires. Comercializadas por árabes, indianos e moçambicanos, as capulanas caracterizam uma cultura secular do consumo de tecidos na região; seu papel foi central nas relações comerciais do oceano Índico, em especial de escravos e marfim durante os séculos XVIII e XIX.2

Em uma abordagem sobre essas dinâmicas comerciais, Pedro Machado em Ocean trade: South Asian merchants, Africa and the Indian Ocean, c. 1750-1850, propõe uma leitura a partir das aproximações entre africanos e indianos no canal de Moçambique. O livro discute a expansão e a atividade dos mercadores vaniyas (ou banias) da região de Gujarate, em especial Diu e Damão, cujo negócio de tecidos tornou-se peça fundamental para o desenvolvimento da empresa comercial escravista entre 1750 e 1850. O retrato que apresenta sobre os comerciantes indianos vaniyas de Gujarate fundamenta-se numa leitura que se aproxima das perspectivas sobre uma história dos oceanos, ao apresentar a circulação entre as diferentes costas, as interconexões comerciais, a produção e, principalmente, as relações de demanda de consumo.

Pedro Machado, nascido na África do Sul, é atualmente professor assistente do Departamento de História na Universidade de Indiana. Ocean trade é seu primeiro livro publicado, baseado na sua tese de doutorado defendida na School of Oriental and African Studies, University of London (2005). Nos últimos anos tem se dedicado às pesquisas sobre a história do cultivo do eucalipto, a atuação colonial do império atlântico português nas relações comerciais, industriais e impactos ambientais com o oceano Índico. Importante registrar sua relação com as pesquisas do Indian Ocean World Center (IOWC), estabelecido na Universidade de McGill no Canadá. Esse centro de estudos, sob direção de Gwyn Campbell, possui entre seus quadros importantes pesquisadores que têm se dedicado ao estudo da África Oriental, Oriente Médio, Sul da Ásia e Oceania em suas interconexões. Neste sentido, é possível compreender o caminho percorrido pelo professor Machado, cujos estudos contribuem para expansão das pesquisas sobre o oceano Índico, na senda dos pressupostos defendidos anteriormente por Fernand Braudel.3

Na década de 1970, em um momento de expansão dos próprios estudos africanos, o tema da escravidão na costa oriental africana mobilizou diversos pesquisadores que chamaram a atenção para as relações entre Ásia e África e para o tráfico com destino às ilhas do Índico.4 A argumentação da historiografia passa por uma discussão na qual a África é percebida em um espaço de interconexões não apenas sob influência europeia, mas nas relações com outros espaços à borda do Índico. Assim os estudos sobre a África Oriental alcançaram uma importante expansão nos últimos trinta anos, na qual Machado está inserido.

Em Ocean trade, Pedro Machado faz um aguçado trabalho apoiado em uma significativa produção histórica e na bibliografia atual sobre o oceano Índico. Além de autores voltados aos estudos sobre o Atlântico, especialmente das escolas inglesas e norte-americanas, o pesquisador trabalha também com a produção de historiadores indianos e, em alguma medida, os de língua portuguesa. O domínio da historiografia e das fontes, à semelhança de um tecelão ao fazer seus tecidos, demonstra a capacidade do autor em fiar as tramas dos acontecimentos, entrelaçando-os com conceitos e questões historiográficas pertinentes à produção sobre África e o Índico. Machado tece, assim, uma sólida e instigante narrativa.

No tocante à historiografia, o leitor entrará em contato com uma vertente da história dos oceanos especificamente a relacionada com o Índico que tem sido empregada nas últimas décadas por autores como S. Bose (2002), M. Pearson (2003), G. Campbell (2005, 2006), M. Vink (2007) e E. Alpers (2009). Nesse sentido, alguns pontos importantes podem ser observados como a questão da circulação de mercadorias e de pessoas a partir da ideia de uma “arena inter-regional” de trocas, conceito empregado pelo historiador indiano S. Bose para dar conta das interações econômicas, políticas e culturais. Desse modo, é possível abordar o oceano Índico como um espaço próprio de um processo histórico e privilegiar as conexões entre suas diferentes margens sem se limitar às áreas de estudos canônicas.

Ao abordar o Índico, Machado compreende como os processos de circulação dependiam do conhecimento específico da navegação e do domínio dos fluxos das águas e ventos das monções. Assim, observa como as próprias condições materiais da circulação proporcionaram a proeminência dos mercadores de Gujarate no comércio índico do período estudado, seja na produção de embarcações ou nas condições de financiamento das viagens. O oceano, bem como o processo de travessia, está integrado em sua argumentação, tomando sentidos outros que não apenas o de vazio entre as fronteiras.

As perspectivas dessa circulação permitem ao autor discutir o funcionamento de uma rede de relações economicamente interconectadas na dinâmica entre a região de Gujarate e o sudeste africano, especialmente o canal de Moçambique. A aquisição de marfim e escravos dependia de trocas comerciais com africanos e, nesta troca, os tecidos desempenhavam papel fundamental. Na medida em que os indianos eram capazes de compreender as demandas por tecidos por parte dos africanos, garantiam destaque nas relações comerciais e isso repercutiu no crescimento de uma produção manufatureira dos tecidos e tinturarias na Índia para atender especificamente a esse comércio.

Assim, ao discutir a expansão e o crescimento da atividade comercial dos mercadores indianos nas relações do oceano Índico na sua porção a oeste, o estudo descentraliza a figura do europeu no funcionamento das dinâmicas econômicas e sociais naquela parte do continente africano. Machado mostra como os comerciantes vaniyas estavam inseridos, via comércio de escravos, no funcionamento do sistema econômico mundial, nas relações que envolviam o fornecimento de tecidos, a prata originária da América do Sul e as plantações brasileiras, consumidoras de cativos.

O livro inicia com um relato de um comerciante vaniya, Laxmichand Motichand, que “estava entranhado em um mundo em movimento” (p. 1, tradução minha). A experiência de Motichand descrita na introdução reflete a própria trajetória da pesquisa em seus caminhos narrativos e metodológicos. Com amplo trabalho junto às fontes nos arquivos da Índia, Moçambique, Portugal e Inglaterra, o autor reconstrói laços de circulação entre a costa do sudeste africano e a região de Gujarate. Nesse sentido, Machado procura discutir ao longo de cinco capítulos como os comerciantes indianos se estabeleceram e expandiram suas relações no Índico.

O primeiro capítulo apresenta o cenário da expansão da atividade dos mercadores vaniyas na costa africana do oceano Índico, identificando o funcionamento das redes comerciais entre Gujarate e Moçambique e a sua vinculação com o comércio de escravos. Identifica como as relações de parentesco estabelecidas nas duas pontas do oceano favoreciam os negócios, bem como a atuação dos intermediários (patamares e vashambazi) com as regiões do interior. Isso se somava às formas de transferências de capitais (hundis, sarrafs) que tornaram os mercadores vaniyas indispensáveis para a esfera comercial portuguesa.

No segundo capítulo discute a circulação dos vaniyas provenientes das regiões de Diu e Damão. Retoma um ponto importante da história dos oceanos, qual seja, a própria navegação. A região possuía uma tripulação experiente na navegação pelo Índico, uma significativa independência no transporte marítimo e nas estruturas de serviços de seguro marítimo e capital especulativo. Logo, o controle do tempo de circulação e as relações estabelecidas nas duas pontas do oceano permitiam a manutenção do ritmo da atividade comercial. Dominar os mares também era fundamental para dominar o comércio.

Com os espaços e as condições de circulação traçados, o autor parte para discutir um de seus argumentos mais instigantes no terceiro capítulo em que trata sobre o consumo de tecidos na costa sudoeste da África. Demonstra que os comerciantes vaniyas tornaram-se fundamentais para as negociações na região, uma vez que compreendiam que os africanos, com quem negociavam marfim e escravos, possuíam preferências e gostos particulares no que diz respeito aos tecidos. Com os seus intermediários na costa africana, os comerciantes indianos conseguiam atender às demandas de tecidos na região de Moçambique. Assim possuíam uma vantagem comercial em relação aos europeus que ignoravam as preferências do consumo africano.

Discutida a importância do mercado de tecidos e sua relação com o mercado africano, o autor concentra-se, em seus últimos capítulos, na participação dos vaniyas no comércio de marfim (cap. IV) e no de escravos (cap. V). Os produtos têxteis teriam, na análise de Machado, sustentado consideravelmente ambos os negócios. O consumo de marfim entre os indianos contribuiu para a presença dos comerciantes na costa africana, onde adquiriram grandes quantidades do produto, comércio substancialmente alimentado pelas caravanas de longa distância, principalmente as das populações yao (ou wayao). Já no comércio de escravos, o papel dos vaniyas se dava por meios indiretos, isto é, na venda de tecidos para traficantes portugueses, franceses e brasileiros, financiada com prata sul-americana que se tornou um importante capital para os comerciantes indianos e para o Índico no geral.

Ocean tradetorna-se, portanto, uma leitura instigante para o historiador brasileiro à medida que dialoga com uma preocupação presente em nossa historiografia ao observar a atuação de “atores aparentemente marginais à operação global na economia oceânica da escravidão” (p. 267, tradução minha). Machado deslinda as maneiras pelas quais os mercadores indianos e seus parceiros estabelecidos na costa africana constituíam um fluxo de informações sobre as preferências por estilos de tecidos, que seguiam o próprio tempo das monções. Assim, os indianos garantiam o abastecimento do mercado de Moçambique. Acompanhando as formas pelas quais osvaniyasse inseriram nas relações comerciais do Índico, o autor demonstra como eles operavam no interior do sistema escravista no âmbito regional, ao atender as demandas africanas, mas também no âmbito global, garantindo com a produção têxtil o funcionamento do mercado escravista tanto do Índico como do Atlântico. A circulação de tecidos “ligava o sul da Ásia à costa africana, as ilhas e o interior, aproximando os consumidores africanos de produtores sul-asiáticos em uma íntima e complexa conexão oceânica das histórias materiais” (p. 120, tradução minha). Assim, a obra em questão permite ampliar nossa escala de entendimento dos processos históricos existentes entre Atlântico e Índico e fornece uma importante contribuição para o pesquisador preocupado no estudo da diáspora africana da África Oriental, mais especificamente da região de Moçambique, incluindo o tráfico para o Brasil.

Além disso, ao prestar atenção a outros focos econômicos e sociais, o autor consegue ampliar a leitura sobre a história africana questionando uma perspectiva meramente eurocêntrica ao buscar a participação dos agentes indianos e entendê-los dentro da dinâmica comercial escravista africana e, nela, a expansão dos comerciantes vaniyas ao longo do século XVIII e início do XIX, bem como suas habilidades em considerar as demandas e as preferências regionais dos africanos por determinados tipos de tecidos. Para além da dicotomia africanos e europeus, Ocean trade permite entender a profundidade e a amplitude dos processos históricos, em especial para estudiosos sobre África.

Referências

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BOSE, Sugata. Space and time on the Indian Ocean rim: theory and history. In: FAWAZ, Leila Tarnzi & BAYLY, C. A. (ed.). Modernity and culture from Mediterranean to the Indian Ocean. Nova York: Columbia University Press, 2002, p. 365-386. [ Links ]

CAMPBELL, Gwyn (ed.). Abolition and its aftermath in Indian Ocean Africa and Asia. Londres: Frank Class, 2005. [ Links ]

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2Sobre o consumo de tecidos e seu papel nas relações sociais e de gênero em Moçambique cf. ZIMBA, Benigna. O papel da mulher no consumo de tecido importado no norte e no sul de Moçambique, entre os finais do século XVIII e os meados do século XX. In: NASCIMENTO, Augusto; ROCHA, Aurélio; RODRIGUES, Eugénia (org.).Moçambique: relações históricas regionais e com países da CPLP.Maputo: Ed. Alcance, 2011, p. 15-38.

3Os primeiros trabalhos a abordarem essa perspectiva foram os estudos clássicos de TOUSSAINT, AugusteHistoire de l’ocean Indien. Paris: Presses Universitaries de France, 1961; e CHAUDHURI, Kirti NarayanTrade and civilization in the Indian ocean: an economic history from the rise of Islam to 1750. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

4Nesse sentido destacam-se os encontros organizados pela Unesco na década de 1970 sobre a escravidão na qual a temática no oceano Índico é objeto de discussão na conferência de Port-Louis, em Maurício (Unesco, 1974).

Thiago de Araujo Folador – Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestrando em História Social pela mesma instituição. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: tfolador@hotmail.com.

Italianidade no interior paulista – TRUZZI (RH-USP)

TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Italianidade no interior paulista – percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016. Resenha de: ALMEIDA, Geraissati Castro de. Identidade étnica ou identidades étnicas? Italianidade em Oswaldo Truzzi. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Entre os anos de 1881 e 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram à América no período classificado como o das grandes migrações.2 Estes deslocamentos ensejaram contatos entre pessoas de diferentes formações culturais que tornaram a construção de uma identificação de si um fenômeno recorrente ao longo dos séculos XIX e XX.

Inserido na produção que analisa essa conjuntura está o livro publicado em 2016, Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950), pelo professor da Universidade Federal de São Carlos, Oswaldo Truzzi. Seu objetivo é compreender como se deu o processo de estruturação de uma identidade étnica do grupo de indivíduos que emigraram da Itália no recorte temporal que abrange os anos de 1880 a 1950. O espaço geográfico privilegiado em sua análise é o interior paulista, pertencente ao estado que possuiu o maior afluxo migratório brasileiro neste contexto; do total de imigrantes que vieram ao Brasil, 57,7% optaram por São Paulo.3

O pesquisador é formado em Engenharia de Produção pela Universidade de São Paulo (1979), mestre em administração de empresas com a dissertação Café e indústria (1850-1950) – o caso de São Carlos pela Fundação Getúlio Vargas, SP (1985) e doutor em Ciências Sociais com o estudo Patrícios – sírios e libaneses em São Paulo pela Universidade Estadual de Campinas (1993). Sua tese de doutorado elucidou o processo da integração entre migração e imigração e salientou que há contextos específicos tanto na pátria de origem quanto na que os recepciona que possibilitam a estes indivíduos permanecerem em locais por vezes com costumes diversos.

Também autor do livro Sírios e libaneses: narrativa de história e cultura (2005), Truzzi propõe, por meio de uma análise quantitativa, uma periodização para as levas migratórias deste grupo. É coautor de livros que sistematizam informações sobre a imigração como Atlas da imigração internacional em São Paulo (1850-1950)Roteiro de fontes sobre a imigração em São Paulo (1850-1950) e Repertório da legislação brasileira e paulista referente à imigração, todos publicados em 2008 pela Editora Unesp. Entre os anos de 1990 e 2002, foi pesquisador do grupo de História Social da Imigração do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp) que visava a preencher a lacuna sobre a imigração de caráter urbano. Sua trajetória acadêmica e sua inserção em grupos como a Red de Estudios Migratorios Transatlánticos indicam sua importância no tema.

O livro, dividido em cinco capítulos, principia por apresentar quais foram as concepções teórico-metodológicas utilizadas para estruturar sua noção de identidade. No primeiro capítulo, “à guisa de uma introdução teórica”, o autor propõe que a identidade étnica é essencialmente uma fronteira social, produto da relação entre o imigrante, seu próprio grupo e sua sociedade receptora. Ao perscrutar as diversas camadas sobrepostas na identidade italiana, visa mostrá-la como um processo histórico constantemente negociado, em que ora ocorre a aceitação, ora a resistência à assimilação. Dessa forma, ao migrarem, inevitavelmente as culturas tradicionais passam por alterações (p. 17). Truzzi entende que a experiência social destes imigrantes se localiza em uma zona de intersecção entre background social, econômico e cultural de sua terra de origem, contexto político e econômico de ambas as nações no período de migração e condicionantes de inserção na nova terra com suas oportunidades de mobilidade (p. 20).

Para a construção da “italianidade”, uma forma de identificação a partir de uma experiência social heterogênea, o pesquisador se referencia na noção de comunidade imaginada proposta por Benedict Anderson que consiste em um sentimento de pertencimento a uma identidade nacional forjada. Entretanto, ao longo das páginas seguintes, demonstra que as primeiras levas migratórias advindas de uma Itália recém unificada possuíam vinculações com suas regiões de origem, identificando-se como calabreses, vênetos, dentre outros, e não com o Estado-nação italiano, algo que leva o leitor a indagar-se ao longo do livro se será possível emergir de fato a “italianidade”.

No capítulo “A profusão de italianos no interior paulista”, é reafirmada a importância do tema ao compilar bibliografia que analisa a imigração advinda da Itália: as cifras atestam que 57% dos imigrantes aportados no Brasil entre 1886 e 1900 provinham dessas regiões. Para possíveis questionamentos quanto ao recorte centrar-se no interior paulista, o autor retoma Thomas Holloway que estima que, nos anos 1893-1910, nove entre dez imigrantes que deixaram a hospedaria do Brás se dirigiram ao oeste paulista, sobretudo próximos à Ferrovia Paulista (São Carlos) e à Ferrovia Mogiana (Ribeirão Preto) (p. 23).

Para compreender o percurso que foi desenvolvido pela “italianidade” no interior paulista, o sociólogo elenca três ocasiões que se constituíram em marcos para uma mudança neste sentimento. São elas: os momentos iniciais da imigração e a construção da “italianidade” fora da Itália, isto é, forjada na sociedade de acolhimento; a emergência do fascismo na Itália e sua tentativa de revigorar um sentimento nacional; e o Estado Novo e a campanha de nacionalização encetada por Vargas. Os meandros desses processos e os argumentos do autor serão elencados a seguir.

O capítulo “Uma italianidade construída em São Paulo” aponta que inicialmente, ao migrarem, estes sujeitos não possuíam uma “italianidade”. Para corroborar esta afirmação o autor cita que Hobsbawm estimou que apenas 2,5% falavam italiano na época em que a Itália foi unificada (p.36). Logo, a designação “italiano” foi cunhada em solo brasileiro pela própria sociedade receptora que, assim, denominava a todos os advindos deste mesmo espaço geográfico. Apesar de haver sido criada de maneira exógena, o autor acredita que esta circunstância promoveu consequências na formação de uma identidade comum dentro desta comunidade. A relação com outros, cujas fronteiras identitárias nacionais e raciais já estavam bem demarcadas, a exemplo dos negros, propiciou a criação de um reconhecimento de si por contraste. O grupo se afirmou enquanto branco e vinculado a uma valorização da ética do trabalho, de caráter preponderantemente individualista (p. 41). Apesar de trazer este contexto como o momento inicial de sua identificação enquanto grupo, Truzzi destaca que houve desafios para sua consolidação tanto em virtude dos regionalismos, que se faziam presentes na trajetória destes imigrantes, quanto em função de sua progressiva diferenciação social ao gerar reconhecimentos de classe que superavam a identificação étnica.

Nos capítulos “No meio rural” e “No meio urbano” o autor pontua episódios que foram relevantes na trajetória destes sujeitos e que impactaram na formação de um sentimento de pertencimento a uma mesma comunidade. Entre eles, a proibição em 1902 pelo governo italiano das passagens subsidiadas em função das precárias condições de trabalho nas fazendas de café. Esta promoveu a queda dos fluxos migratórios de italianos que foram substituídos por espanhóis e portugueses (p. 55-56), fato que enfraqueceu as possibilidades da formação da “italianidade”.

Truzzi afirma que, para tentar articular estes indivíduos, a ação da imprensa, das escolas étnicas e das sociedades de auxílio mútuo desempenharam um papel significativo ao realizarem esforços para acomodar, em uma mesma instituição, indivíduos com credos e ideologias distintas. Contudo, a arregimentação e o entendimento entre estratos de uma colônia com diferenças de origem muito acentuadas foram árduos (p. 87) e pareceram se prestar mais aos interesses de uma camada bastante específica desta colônia. O autor tangencia o argumento de que uma “italianidade” ocorreu em função dos esforços de uma elite étnica que, ao integrar essas associações, visava se legitimar enquanto representante de uma numerosa coletividade e assim adquirir um prestígio que lhe outorgasse espaço nas oligarquias locais.

A efetivação da “italianidade” parece adquirir expressão a partir dos anos de 1920 com a emergência do fascismo na Itália. Ao propor uma vinculação direta entre regime e nação, o governo italiano entendia a comunidade dos emigrados como um importante representante e propagandista de seus interesses políticos e econômicos. Todavia, o autor destaca que a queda dos fluxos migratórios debilitava a adesão ao fascismo e que os filhos de imigrantes já se consideravam brasileiros e estavam mais propensos ao integralismo. Logo, o fascismo obteve impacto apenas entre os imigrantes que ascenderam socialmente e aspiravam se desvincular de sua aldeia de origem, e entre os comerciantes que viajavam para a Itália com frequência (p. 106). Para as classes subalternas essas questões permaneceram difusas e a condição de classe se fez mais presente que a étnica.

Por fim, o golpe final dado na tentativa da formação da “italianidade” foi perpetrado pelo Estado Novo que, com uma forte política nacionalista, reprimiu as escolas, imprensa e associações étnicas, ato que segundo o sociólogo fez com que o capital étnico migrasse para o social e político. Em fins dos anos de 1930 e especialmente no pós-Segunda Guerra, a “italianidade” não servia mais como legitimidade na comunidade já que a distância do processo migratório esvaziava o sentido de invocar essa noção (p. 120).

Ao fim do livro restam algumas indagações: afirmar a italianidade como uma comunidade imaginada, limitada e soberana aos moldes de Anderson não pressuporia especificidades em comum destes indivíduos? Atribuí-la a uma diferenciação com relação aos negros e ao fato de serem estrangeiros dentro de uma comunidade com costumes diferentes pode ser proposto a todas as comunidades de imigrantes. Indicar que a construção deste sentimento esbarrou em diferenças de formação social e histórica das diversas regiões da Itália implicaria que, para estes indivíduos, a noção de comunidade limitada nunca se fez presente.

Afirmar o protagonismo do imigrante no comércio e na indústria tanto como empresário quanto como empregado (p. 68), sem destacar todas as tensões que envolviam sua inserção na sociedade, oblitera um aspecto que foi relevante na formação destes indivíduos. Os imigrantes se tornaram a maior parte da população e exerceram inúmeras funções no campo e na cidade, o que gerou insegurança sobre como lidar com esse enorme contingente. No período abordado pelo autor, eram correntes os embates tensos entre a “assimilação” ou a “aculturação” destes indivíduos.4 Longe de embates que tensionavam constituírem uma população naturalizada no cotidiano, as crônicas e jornais demonstram que sua presença era percebida e incômoda. Foram criados estereótipos para as diferentes colônias que aqui aportaram, denotando uma insatisfação com a sua presença e demarcando-as como “o outro” na cidade. A respeito dos italianos houve a criação da imagem do “carcamano”, termo pejorativo para designar os comerciantes.

A imagem de São Paulo como um local de convivência harmoniosa foi forjada ao longo dos anos, a partir de um discurso que tentava imprimir marcas cosmopolitas à cidade e ao estado. Os imigrantes que enriqueceram e os operários que participaram de movimentos políticos não foram vistos com bons olhos pelas famílias tradicionais. O suposto cosmopolitismo possuiu outras faces, nas quais o incentivo à imigração se inseriu em virtude do fim da outrora lucrativa escravidão e da política de embranquecimento atrelada à ideia de modernidade. Em decorrência desse projeto nem todos os imigrantes eram bem-vindos e, como propõe Sevcenko, a capital estava mais para um “Cativeiro da Babilônia” que para uma “Babel invertida”, como sugeriu um cronista da época.5

Quanto ao fato de os imigrantes que adentraram na política não manejarem o capital étnico ao se colocarem como estrangeiros, pode-se indagar se isto não decorre da tentativa de ocupar espaços junto às oligarquias locais, tornando invisíveis suas origens para não parecerem uma ameaça aos nacionais. Para a historiadora Raquel Glezer a gênese da interpretação do passado colonial como um período glorioso foi cunhada neste momento em função da elite intelectual entender os imigrantes como uma ameaça constante que, uma vez trazidos para trabalhar na lavoura, impactaram a transformação do território.6 Logo, a análise de Truzzi não pontua alguns momentos relevantes na política e na legislação da cidade, necessários para pensar a inserção e as possíveis identidades manejadas pelos imigrantes ao atuarem nestes espaços.

Em termos metodológicos, em seus artigos mais recentes, tal como “Redes em processos migratórios”,7 o sociólogo defende enfoques que caminhem no sentido de recuperar o papel do agente e de sua rede, fator decisivo na escolha dos locais de destino. Na abordagem proposta por Truzzi, visa-se dar ao imigrante um papel de agente racional, privilegiando o viés da micro-história na expectativa de encontrar a ação social e informações que se perderam nas escalas macroscópicas. Neste livro, apesar de realizar breves menções a imigrantes que atuaram nas cidades analisadas, não são consideradas suas trajetórias, usadas apenas para ilustrar algumas de suas proposições. Verifica-se tal procedimento ao versar sobre os imigrantes que, de forma precoce, adquiriram uma inserção privilegiada na sociedade de destino (p. 77). São citados alguns nomes e breves informações que não demonstram os meandros dessas ascensões sociais, gerando a heroicização desses self-made-men, uma vez que não há a significação e a problematização de suas trajetórias. Metodologia similar ocorre em relação à abordagem da iconografia que é utilizada ao longo do livro para corroborar suas afirmações, sem merecer maiores explanações.

A pertinência de Italianidade no interior paulista: percursos e descaminhos de uma identidade étnica (1880-1950) está em historicizar o termo “italianidade” mostrando seus desafios e particularidades em diferentes temporalidades. Contudo, o leitor ao fim do livro, percebe que ocorreram múltiplas criações de identidades étnicas, frutos de uma ação ativa destes indivíduos. Porém, não fica convencido da equivalência entre identidade étnica e “italianidade”. A última parece nunca ter se efetivado para além de um projeto criado fora do grupo pela sociedade receptora e que, posteriormente, foi reapropriado por setores desta colônia que desejavam erigir seu poder simbólico.

Referências

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2 KLEIN, Herbert. Migrações internacionais na história da América. In: FAUSTO, Boris. Fazer a América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 23.

3 OLIVEIRA, Lúcia LippiO Brasil dos imigrantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 22.

4 GORELIK, Ádrian. A aldeia na cidade. Ecos urbanos de um debate antropológico. In: LANNA, Ana Lucia Duarte; LIRA, José Tavares Correia de; PEIXOTO, Fernanda Arêas; SAMPAIO, Maria Ruth Amaral. São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. São Paulo: Alameda Editorial, 2011; SEYFERTH, Giralda. Cartas e narrativas biográficas no estudo da imigração. In: DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri & TRUZZI, Oswaldo Mário Serra. Estudos migratórios: perspectivas metodológicas. São Paulo: EdUFSCar, 2005; PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.

5SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 37.

6GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo: Ed. Alameda, 2007, p. 179.

7TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Redes em processos migratórios. Tempo Social (USP. Impresso), vol. 20, p. 199-218, 2008. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/12567. Acesso em: 6 jun. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702008000100010.

Renata Geraissati Castro de Almeida – Doutoranda no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: rgeraissati@gmail.com.

Imprensa e escravidão: Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850) – YOUSSEF (RH-USP)

YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão. Política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeios/ Fapesp, 2016. Resenha de: OLIVEIRA, Felipe Garcia de. A escravidão na imprensa: política antiescravista. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

O debate em torno das políticas e ações que levaram ao fim o tráfico negreiro e decretaram a abolição ainda é um tema caro aos historiadores da atualidade. Não à toa, nos últimos anos, foram publicados alguns livros que refletem sobre a importância da lei de 1831, a atuação dos abolicionistas, bem como sobre a pressão inglesa e a agência escrava no século XIX para o fim do tráfico por meio das revoltas e das ações judiciais.

É dentro destas discussões que o livro ora resenhado se insere. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850), é resultado da pesquisa de dissertação de mestrado (de 2010) de Alain Youssef apresentado à Universidade de São Paulo (USP). O autor buscou, a partir do uso sistemático de jornais, panfletos e obras políticas, discutir e apresentar os embates que o trato negreiro e a escravidão ocuparam na imprensa do Rio de Janeiro no período entre 1822 e 1850. Defendendo que a imprensa se apresentou como lócus privilegiado para a questão, Youssef comprova que, ao contrário do consenso de que o tráfico e a escravidão não teriam sido temas nos periódicos, o assunto foi abertamente debatido. A questão não somente foi alvo de debate como também de atuação política, à medida que ideias eram apresentadas primeiramente no parlamento, depois amplamente defendidas e divulgadas na imprensa e, por fim, lidas e discutidas nos espaços de sociabilidade.

O livro é dividido em cinco capítulos, cuja narrativa é clara e demonstra os movimentos políticos e suas modificações. Os capítulos apresentam a exposição de muitas das fontes consultadas, o que permite ao leitor um contato maior com as mesmas.

No primeiro capítulo, o autor localiza seu objeto de interesse dentro de um cenário mundial de transformações que ocorreram na segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX, no sistema atlântico do noroeste europeu.2 O livro, de início, faz uma apresentação minuciosa, demonstrando as particularidades de cada unidade de análise e as conexões entre elas. Neste sentido, demonstra como na Grã-Bretanha, França, Espanha e Portugal, o questionamento acerca do trato negreiro e mesmo da escravidão, ainda que com suas particularidades, esteve vinculado ao desenvolvimento da imprensa e da emergência de novas formas de sociabilidade. Ele analisa, igualmente, como estas reverberaram nos espaços coloniais dos mencionados impérios – Estados Unidos, Haiti, Cuba e América portuguesa -, abordando, então, como os vários agentes sociais utilizaram a imprensa para colocar em pauta o tema da escravidão e do tráfico de africanos. O autor busca dar conta de um universo amplo de informações sem, contudo, desconectar os distintos processos históricos que ocorreram nos vários espaços que estavam interligados entre si e com a América portuguesa.

Ao focar sua análise em seu objeto de estudo propriamente dito, o Rio de Janeiro, o autor destaca que a imprensa não era “um corpo estranho” no espaço colonial (p. 56). Foi, no entanto, a partir do impacto que a chegada da família real trouxe para as práticas culturais de leitura e da criação da imprensa régia, ponto de mudança importante em sua análise, que ocorreu o desenvolvimento da mesma. Ainda naquele momento, a censura promovida pela imprensa régia impossibilitou a criação de uma opinião pública de tipo moderno (p. 66), algo que mudou com o constitucionalismo vintista português introduzindo a liberdade de imprensa em todo o Império. Assim, o número de periódicos passou a crescer tanto em Portugal como no território da América portuguesa, implicando em uma maior circulação de periódicos e de ideias dentro e entre estes espaços. A partir desse alargamento ocorreram condições para o emergir e a legitimação de uma opinião pública ainda que marcada pelo hibridismo. Somente a partir disso, a escravidão passou a ser politizada a tal ponto que a revolta de São Domingos foi utilizada e apresentada nos periódicos de forma diversa tanto pelos que eram favoráveis ao retorno do monarca português quanto por aqueles que queriam sua permanência.

O segundo capítulo tem o recorte que vai da independência do Brasil em 1822 até a promulgação da lei de 1831 (primeira lei de proibição do tráfico negreiro). O autor demonstra que o primeiro texto que abriu o debate defendendo que a escravidão deveria ser extinta de forma gradual foi publicado no final de 1822. Ainda naquele período era pequeno o número de periódicos que defendiam o fim do tráfico e da escravidão. Para Youssef, a explicação estaria na atuação política de José Bonifácio que, por meio da imprensa, buscava convencer e mesmo preparar o público para o debate em torno da escravidão que aconteceria na Assembleia Constituinte.

Novamente, ao buscar estabelecer conexões entre os espaços, o autor menciona o impacto da Revolta de Demerara (1823) levando os abolicionistas britânicos a defender no parlamento e na imprensa da Grã-Bretanha o fim da escravidão. Este momento de intensificação, por sua vez, reverberou no Brasil, culminando na assinatura do tratado antiescravista de 1826-1827. A partir das fontes, constata-se que os textos sobre este tratado tiveram amplo espaço na imprensa brasileira e que, se num primeiro momento foi visto com bons olhos, após sua assinatura passou a ser uma via de crítica contra d. Pedro I. Nesse sentido, os jornais passaram a estar cada vez mais imbricados com a política, acompanhando em suas publicações a “lógica interna do parlamento” (p. 101). Para o autor, até a abdicação, as diversas críticas direcionadas ao monarca, intensificadas após 1826, e as poucas publicações em sua defesa podem asseverar que a assinatura do tratado foi um dos motivos que contribuiu para sua perda de apoio político. Retomando um debate ainda importante da historiografia do século XIX, alinhado a autores como Beatriz Mamigonian e Tâmis Parron, o autor defende a impossibilidade em tomar a lei de 1831 como “lei para inglês ver”, pois, considerando que os periódicos passaram a colocar em pauta projetos que abordaram o que deveria ser feito após a extinção do tráfico e mesmo com o possível fim da escravidão, haveria uma certeza de que o tráfico acabaria.

O terceiro capítulo aborda o período pós abdicação até 1835. Os primeiros anos da regência são marcados pela euforia política e pelo alargamento dos espaços públicos, na medida em que ocorreu a fundação de várias associações e jornais fundamentais para os debates, para a conquista de público e mesmo para a definição de atuação política dos grupos de oposição ao monarca. Naquele momento, tais grupos eram os partidos dos liberais moderados, liberais exaltados e restauradores (caramurus). Ao assumirem o poder, os liberais moderados empreenderam medidas para dar fim ao tráfico e, embora não fossem capazes de acabar com ele, tais medidas não podem ser vistas como um fracasso completo. Uma delas foi a descentralização do Judiciário concedendo mais poder ao juiz de paz que passaria a dar liberdade aos africanos escravizados ilegalmente e a punir os responsáveis.

Reavaliando o impacto da Revolução de São Domingos no Brasil, Youssef destacou que, diferentemente dos efeitos que ocorreram em outros países escravistas – Estados Unidos e Cuba -, o haitianismo era muito mais uma retórica utilizada para fins políticos de defesa ou oposição aos moderados. Ao longo do capítulo, o autor tenta perceber o impacto de algumas revoltas do período. Analisando o levante dos malês (1835) conclui que, de fato, ele foi capaz de reacender as ideias antiescravistas, mas que foi por um período curto, não perdurando mais que quatro ou cinco meses (p. 168). No mais, este evento não teria servido como impulso político para que um grupo tomasse medidas eficientes contra o trato negreiro, ainda que propostas fossem apresentadas em âmbito municipal e nacional.

Para o autor, o levante dos malês e os boatos de várias revoltas escravas possibilitaram um temor mais concreto em relação ao haitianismo. No entanto, dado o clima político, estes eventos deram base para a formulação de críticas a uma ala dos moderados, pois a política empreendida por Feijó e Evaristo estaria, segundo os críticos, levando o país à ruina (p. 169). Vale ressaltar que não somente os adversários tiraram proveito da situação; os partidários utilizaram o discurso de medo do haitianismo para defender suas posições, o que fez com que os oposicionistas acabassem abandonando a retórica. Neste sentido, os eventos e mesmo o temor que era espalhado passou da crítica à propaganda política, sendo uma “peça no jogo político” (p. 174). O autor conclui, portanto, que a imprensa teve um peso importante para a propagação desse medo do haitianismo neste momento regencial, propagação esta que, segundo suas hipóteses, teria contribuído para a vitória de Feijó.

Até 1834, nenhum jornal defendia a continuidade do tráfico. Entretanto, o autor demonstra que a defesa do trato negreiro e da escravidão passou aos poucos a ocorrer quando o campo cafeeiro ganhou força, momento em que a economia mundial estava se reorganizando, e, também, com as dissidências e disputas políticas dentro dos partidos. No final de 1834, Feijó escreveu um artigo defendendo abertamente, pela primeira vez, a continuidade da escravidão e a revogação da lei de 1831, o que mais tarde ganhou força e ajudou em sua eleição. Neste sentido, as modificações na configuração econômica e política propiciaram o retorno da defesa do tráfico e da escravidão, ponto analisado com mais afinco na sequência.

O quarto capítulo aborda o período de 1835 a 1840, discutindo como a imprensa teve papel fundamental na propagação das ideias regressistas para a reabertura do tráfico. Após a posse de Feijó, as medidas contra a escravidão permaneceram baseadas na política moderada, apesar de este ter defendido a revogação da lei de 1831 durante a campanha. Os regressistas colocaram em pauta a reforma do código do processo criminal de 1832, a reinterpretação do ato adicional de 1834 e a revogação da lei de 1831. Segundo o autor, as duas primeiras questões incidiam em uma tentativa de maior centralização diretamente sobre o Judiciário.

Para conseguir suas pautas, parte dos regressistas atuou politicamente por meio da imprensa, principalmente na implementação de uma política do contrabando negreiro (p. 182). Neste sentido, articulados com os fazendeiros, defendiam a entrada de africanos e a proteção da posse ilegal dos que por lei eram livres. Foi na imprensa, como já mencionado, que a agenda dos regressistas trouxe a continuidade do trato negreiro a partir de 1835. Com a saída de alguns periódicos que eram contra a continuidade do tráfico e com o avanço das publicações a favor, a opinião dos regressistas aliados aos fazendeiros avançou, ao ponto de, após 1836, a oposição ficar em silêncio. Assim, eles utilizaram a imprensa para publicizar suas propostas de reabertura do tráfico e para informar medidas que relaxavam as punições contra os traficantes. Os periódicos teriam, segundo o autor, possibilitado que a letra da lei contra o tráfico fosse considerada morta. A lei, apesar de não ser abolida, não era obedecida. Desse modo, o contrabando passou a operar em nível sistêmico (p. 201).

O autor questiona a ideia historiográfica de que a continuidade do tráfico ilegal pode ser explicada a partir das políticas liberais de descentralização do Judiciário, à medida que muitas vezes os juízes de paz – eleitos – eram fazendeiros e, portanto, teriam atuado pela continuidade, ponto que tem sua origem entre os coevos do século XIX. Para o autor estas análises baseadas principalmente em âmbito local ou na atuação do juiz de paz não conseguem responder completamente à pergunta. Em sua perspectiva, um exame mais amplo das dinâmicas econômicas, sociais e políticas daria respostas melhores e ajudaria a entender porque o tráfico atingiu seu maior número logo após a medida de centralização dos conservadores. Desse modo, ele acredita que, apesar de não podermos deixar de lado a questão local, os processos amplos que possibilitaram o surto cafeeiro e a continuidade do tráfico precisam considerar a articulação na imprensa e no parlamento dos políticos regressistas com os fazendeiros.

Ao verificar a importante função que a imprensa possuía já no século XIX, Youssef questiona a noção historiográfica que colocou no Estado ou na Coroa o papel principal de conformador da sociedade Ele aponta que, apesar de não ter dados empíricos para verificar a formação de uma classe social de fazendeiros que usou a Coroa para seus fins, havia uma relação forte entre os políticos e plantadores do centro-sul do país que informou a continuidade do tráfico e sua defesa. Considerando a imprensa como “umas das organizações privadas” que constitui a sociedade, ele afirma que ela foi importante para a direção e defesa do Regresso.

O quinto e último capítulo aborda o papel da imprensa no período de 1841 até 1850. Discutindo o peso das posições acerca do tráfico negreiro na “diferenciação e na consolidação dos dois partidos durante os primeiros anos do Segundo Reinado” (p. 241), o autor aponta que as críticas feitas nos periódicos ajudaram na consolidação e na diferenciação, ocorrendo em um momento de crescimento maior da produção de café, ao mesmo tempo em que a pressão inglesa aumentou. O autor defende que a pressão britânica foi fundamental para que o debate do tráfico viesse à tona na década de 1840. Momentos como o vencimento de acordos feitos ainda no Primeiro Reinado (1840) fizeram emergir propostas e críticas contra a possibilidade de novos acordos com os ingleses; a bill Aberdeen (1845), apesar de eficaz no início, não conseguiu acabar com o tráfico e foi utilizada pelos saquaremas para retomar suas ideias escravistas; e, por fim, a abolição do tráfico reativou as discussões diplomáticas entre brasileiros e britânicos por conta da bill Aberdeen.

Em sua análise, o autor aponta que as revoltas e as conspirações escravas tiveram papel importante para reacender o debate acerca do tráfico na imprensa, ainda que por pouco tempo. Em vista disso, ele defende, reafirmando uma ideia já apresentada na historiografia, que não foi a agência escrava ou a febre amarela, mas “só a intensificação da pressão britânica foi capaz de impelir as Saquaremas rumo à abolição” (p. 279). Argumentou que um dos mais importantes jornais saquaremas publicou propostas para uma gradual abolição e para a regulamentação dos africanos escravizados ilegalmente após 1831, o que informava aos senhores de escravos que, com o fim do trato, o número de escravos não seria reduzido.

Neste momento próximo ao fim do trato, conservadores e liberais buscaram defender que suas ideias políticas contra ou a favor do tráfico e da escravidão fossem formuladas a partir da “opinião pública”. Ao postularem a ideia de “opinião pública”, os saquaremas acabaram despolitizando a defesa que faziam do contrabando, relegando a culpabilidade por quase 20 anos de escravidão ilegal à “opinião pública”, algo que foi acolhido pela historiografia do século XIX, mas que o livro, de forma incisiva, cuidadosa e brilhantemente matiza por meio dos jornais, demonstrando como os saquaremas tiveram papel na reabertura, no fim do trato negreiro e, mesmo, no projeto de um Brasil com sistema escravista, como permaneceu.

O livro é denso e muito bem escrito. Sua narrativa consegue apresentar a relação da sua unidade principal de análise com as outras. No mais, sua leitura evidencia o quanto a imprensa, desde há muito, é utilizada como palco político.

Referências

BERBEL, Marcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, Tâmis. Escravidão e política. Brasil e Cuba, c.1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010. [ Links ]

2 BERBEL, Marcia Regina; MARQUESE, Rafael de Bivar; PARRON, TâmisEscravidão e políticaBrasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.

Felipe Garcia de Oliveira – Mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo. Email: f.g.o.410@hotmail.com.

Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (RH-USP)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. Resenha de: SECCO, Lincoln. Marcello Caetano: o ethos intelectual e as artimanhas do poder. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Portugal sobreviveu na periferia europeia às forças mais poderosas que sacudiram o século XX: as guerras mundiais, as ditaduras e a descolonização. A narrativa desses processos já seria um desafio imponente. Mais difícil, porém, é filtrá-los pelas lentes de uma vida singular, ainda que a de um homem que viria a desempenhar papel de relevo na política de seu país.

Em 600 páginas, com estilo límpido, o historiador Francisco Carlos Palomanes Martinho compôs uma obra que já é referência. Dez capítulos impecavelmente equilibrados, com introdução explicativa e conclusões em cada um deles, e que findam amiúde com um convite à leitura do próximo capítulo. Uma narrativa por vezes em suspense que não perde por isso nada do rigor acadêmico, provado na destreza com que coletou, selecionou e analisou suas fontes e ampla bibliografia, com destaque para a consulta da epistolografia, de notícias de jornais, manuscritos e outros documentos inéditos.

O historiador não poderia, entretanto, projetar no jovem jornalista católico ou no professor de Direito e ideólogo do corporativismo o futuro presidente do Conselho de Ministros. Francisco Martinho evita muito bem as armadilhas com as quais o gênero biográfico costuma apanhar aqueles que desconhecem o ofício do historiador. Não nos apresenta um Marcello Caetano pronto e acabado. Ao contrário, vemos um homem por vezes indeciso entre a tradição e a modernidade, mas que ao fim de tudo se aferra a uma concepção messiânica da história do seu país.

À indagação que se lhe poderia fazer, se esta é uma biografia intelectual ou política, o historiador antecipa-se muito bem já no título: Marcelo Caetano: Uma biografia. A sua narrativa foi feliz em encontrar a unidade no diverso.

A vida de Marcelo Caetano aqui apresentada é plena de ambivalências. Martinho nos revela um filho de família despossuída, mas não pobre; um católico que finda a vida agnóstico; o monárquico que abandonou os círculos monarquistas à própria sorte; o salazarista marcado por sucessivas desavenças com Salazar; o direitista a quem a direita se opôs; a esperança liberal que frustrou a transição a um novo sistema.

Caetano viveu uma revolução com o apego à solenidade ritual do cargo. Foi um patriota exilado. Alguém que queimou os seus navios, porém manteve profundas ligações epistolares com o seu país. O homem sisudo que, no exílio carioca, descobre um amor outonal; um fim trágico, porém envolto em tertúlias prazerosas.

De todas os paradoxos que emergem da leitura dessa biografia, o que mais se evidencia é o ethos intelectual mobilizado pelas conveniências da política. É certo que o mais oportunista dos políticos ainda traz em si princípios bem ou mal delineados, conscientemente ou não. Da mesma forma, lideranças marcadas por fortes posicionamentos de princípio não deixam de ceder, em muitos momentos decisivos, às artimanhas do poder. O que importa é definir o lado para o qual pende a balança.

Marcello Caetano construiu a imagem do professor de Direito por profissão e do historiador por vocação. Um homem das letras provisoriamente convocado pela política. Ele pavimentou assim o seu caminho ao poder. E fez parte de sua expertise a permanente reafirmação como intelectual cioso das prerrogativas da autonomia universitária. Restrita, por certo, aos limites pré-estabelecidos pelo regime a que servia.

Não deixa de ser notável a fina análise que o autor tece da crise universitária de 1962 que levou Caetano a se demitir da reitoria da Universidade de Lisboa. O historiador, diante das representações à direita e à esquerda, das justificativas do seu próprio personagem, escolhe a releitura das fontes e desvela um comportamento que não se enquadra fácil. Que é nuançado, pontilhado por motivações pessoais e por princípios corporativos que se confundem (deliberadamente?) com discretas tendências liberais.

A marca do doutrinarismo intelectual foi o que de mais permanente houve na vida de Marcello Caetano, mas como o autor comprova em inúmeras passagens da sua obra, era um doutrinarismo flexível o suficiente para reconhecer as imposições da conjuntura, aceitar os interesses dos homens (sim, eram obviamente todos homens) com os quais precisava concertar uma ação política. Eis uma tese que emerge não de repente, mas de sucessivas linhas que o autor tece para apreender a totalidade de uma trajetória pública, intelectual, engajada e que molda a própria família e a intimidade marcada pelo distanciamento e pelo recato.

São um índice da complexidade do personagem reconstituído por Martinho as atitudes dele como presidente do Conselho de Ministros a partir de 1968, após a inabilitação e posterior morte de Salazar. O equilibrista que este sempre fora entre facções do regime é substituído por um governante mais duro e que se mostra incapaz de perceber os movimentos econômicos que lançavam Portugal na integração europeia.

Diga-se o que se quiser, Salazar soube manter perto de si os extremos aceitáveis de sua época. A começar pela sua insistência em ter o próprio Marcello Caetano em funções e cargos afetos ao regime. Caetano, que já ascendia sob a desconfiança dos velhos salazaristas, não soube se entender com os novos. Ele não aceitou os valores democráticos e nem as demandas crescentes das classes médias e trabalhadoras, ainda que seu governo introduzisse mudanças na legislação trabalhista. Ele se agarrou à ideia de um império colonial condenado, embora na juventude tivesse defendido uma autonomia relativa das colônias.

Em certo sentido, conta-nos Martinho, Caetano era moderno. Ao contrário de Salazar, aceitava a urbanização, o industrialismo e se preocupava com a política educacional. Mas de forma diferente do seu líder, no governo frustrou tanto as facções que o consideravam liberal quanto a extrema direita apegada ao passado. Terminou sozinho porque o juste milieu tornara-se um caminho impossível. Era a conjuntura aguda do fim do colonialismo a não mais permitir uma “evolução na continuidade”. O tempo perdido das reformas exigia a coragem dos rompimentos.

Ao fim, apegou-se ao que havia de mais nuclear no sistema que ele apoiou a vida toda: a suposta supremacia civilizacional do homem branco na governação de povos negros, tidos como incapazes de autonomia plena.

Mais doutrinário que Salazar e mais ideólogo que expert, como sustenta o seu biógrafo, Caetano também persistiu obstinado na ideia de que os governos têm uma “função retificadora da sociedade”, mesmo que durante o salazarismo muitas vezes opusesse a atitudes despóticas do chefe a necessidade de convencimento social para a legitimação do poder. Era cioso das hierarquias e tradições. Mostrou-o quando defendeu os ornamentos e distinções do cargo que passou a ocupar nos anos 1950: o de comissário geral da Câmara Corporativa, um órgão meramente consultivo.

Conta-se que, no 25 de abril, uma vez cercado no quartel do Carmo pelas tropas do capitão Salgueiro Maia, Caetano sentiu-se desconfortável em estabelecer tratativas com um oficial de baixa patente. Perguntou pelos chefes e, finalmente, aceitou render-se ao general Spínola, afirmando: “assim o poder não cai na rua”.

Domados pelas paixões do nosso tempo, é inescapável julgar deletério o seu papel na vida política de Portugal. Mas sem prejuízo de nossos valores, não deixa de nos intrigar a sua fleuma, aquela frieza inabalável que não provinha simplesmente do cargo. Conforme ele escreveu, resultava do decoro exterior que as instituições nos impõem. Não a todos, mas apenas aos que se apegam a elas com princípios. E ele os tinha, ainda que não os aceitemos.

Decerto, Martinho viveu um bom pedaço de sua vida ao lado de seu biografado. Foram anos a fio entre aulas, viagens e arquivos. Frequentou-lhe as cartas, as fotografias de família, os amigos, os livros e a memória que se construiu em torno dele (tão magnificamente tratada no primeiro capítulo dessa biografia).

O professor da Universidade de São Paulo se sentiu melhor ao lado do colega da Universidade de Lisboa do que diante do político do Estado Novo. Independente disso, o leitor é conduzido a um fim moderadamente triste. O tempo arrefece os ódios e o biógrafo, se não busca salvar o político que Marcello Caetano foi, evita “a exagerada superficialidade da desqualificação”.

No 25 de abril, o ditador cedeu lugar ao professor que ele jamais deixou de ser durante toda a vida. A ambos o historiador não julga, compreende.

Referências

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

1Resenha do livro: MARTINHO, Francisco Carlos PalomanesMarcello Caetano: Uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016.

Lincoln Secco – Professor no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. E-mail: lsecco@usp.br.

História dos crimes e da violência no Brasil – PRIORE; MÜLLER (RH-USP)

PRIORE, Mary del; MÜLLER, Angélica. História dos crimes e da violência no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: SANTOS, Fernando de Oliveira dos. Diversidade e perenidade da violência no Brasil. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

O lançamento desta coletânea de ensaios, organizada por duas prestigiadas historiadoras, não poderia ter chegado em um contexto mais fecundo. A dimensão que o problema da criminalidade urbana violenta tem alcançado nos últimos anos tem incitado estudiosos de diferentes áreas a buscarem explicações para tal fenômeno. Nesse sentido, essa obra deve ser percebida como uma importante contribuição para refletirmos sobre essa candente temática a partir de uma perspectiva histórica.

Os dezesseis capítulos reunidos nesta antologia têm como mote a análise de vários crimes, abrangendo diversas modalidades de violência, desde os primórdios do período colonial até a época hodierna. Assim, os artigos abordam eventos históricos nos quais diferentes formas de delito e violência se expressaram. Seja no âmbito público ou privado, as duas esferas onde sempre se notou uma relação porosa, crimes envolvendo homofobia, intolerância religiosa, violência estatal, corrupção, entre outros, são examinados. Os autores dos artigos possuem formação em diversas áreas (Direito, Sociologia, Educação Física, Antropologia, Psicologia e História). No entanto, a maioria dos pesquisadores que participaram dessa obra são historiadores.

Não obstante o fato dos ensaios tangenciarem eventos e situações em diferentes espaços e temporalidades da história do Brasil, as organizadoras da coletânea admitem que haja um eixo analítico comum para enfocar os diversos casos narrados. Para elas “O fio condutor está centrado na ideia de como o crime e o emprego da violência fizeram e fazem parte da nossa sociedade” (p. 8). Assim, pretende-se descrever de forma sucinta os aspectos essenciais dos 16 capítulos com o intuito de, ao final, refletir criticamente sobre o fio condutor da obra na perspectiva das autoras.

No primeiro capítulo, o historiador Paulo de Assunção narra um dos episódios mais sangrentos e nefastos envolvendo o empreendimento de catequização da América portuguesa pela Companhia de Jesus. O contexto histórico remete ao Concílio de Trento (1548-1563) e às acirradas disputas entre católicos e protestantes desencadeadas tanto no “Velho” quanto no Novo Mundo. Em 1570, um grupo de quarenta jesuítas liderados pelo padre português Inácio de Azevedo partiu para as “terras do Brasil” para evangelizar os povos ameríndios. Contudo, ainda na região das ilhas Canárias, a embarcação Santiago foi interceptada e atacada por calvinistas franceses.

Um dos aspectos mais destacados no texto é a extrema violência empregada pelos corsários franceses após abordarem o barco dos jesuítas e dominarem rapidamente todos os missionários. A superioridade bélica e numérica foi preponderante para a vitória dos calvinistas. Eles estavam distribuídos numa frota composta por cinco embarcações, somando cerca de trezentos homens munidos de canhões, capacetes, espadas e outros artefatos bélicos. Por outro lado, apesar da valentia, os parcos armamentos dos portugueses impossibilitavam qualquer chance de resistência. Assim, “A crueldade preponderou. Muitos, trespassados por espadas, agonizavam no convés até serem lançados no mar” (p. 23). Além disso, tomados por uma intensa cólera, os protestantes ainda destruíram todos os objetos devocionais católicos como imagens, breviários e outros objetos. Esta agressividade extremada, segundo Gonçalves, evidenciava “(…) a aversão dos calvinistas aos jesuítas, em parte devido à atuação da Companhia de Jesus na perseguição aos protestantes no território europeu” (p. 25).

No segundo capítulo, Luiz Mott conta o desfecho de duas devassas envolvendo um índio e um jovem escravo acusados de cometerem sodomia, ambas no século XVII. Esses dois episódios, conforme o autor, podem ser entendidos como a gênese da homofobia no Brasil. O primeiro caso ocorreu no contexto da fundação da França Equinocial no Maranhão. Em 1613, um índio tupinambá foi condenado à morte na boca de um canhão após ser incriminado por capuchinhos franceses pela prática de homoerotismo. Após ser denunciado e capturado, o ameríndio reconheceu publicamente que cometeu o pecado da sodomia. Com isso, procedeu-se ao julgamento na presença dos missionários franceses e também dos indígenas e, logo em seguida foi aplicada a sentença. O nativo foi colocado na boca de um canhão que foi disparado por um algoz da própria tribo. Com o tiro, seu corpo foi dividido em duas partes, caindo uma ao pé da muralha e outra no mar.

O segundo caso, ocorreu no Sergipe em 1678, quando um moleque escravo foi açoitado até a morte por seu senhor. Esse fato aconteceu após o capitão Pedro Gomes, muito conhecido na região por ter relações homossexuais com vários cativos, ter solicitado a seu vizinho Luís Gomes um escravo para certa jornada. Todavia, quando retornaram, o proprietário notou que seu moleque estava diferente, pois vestia umas ceroulas. Ao questioná-lo, supondo que seu escravo havia furtado essas peças, o negro não quis responder. Por esse motivo, seu senhor mandou açoitá-lo e durante o suplício o jovem escravo confessou que ganhou aquelas ceroulas do capitão Pedro Gomes como “recompensa” após ter com ele relações homoeróticas. A partir de então, o proprietário intensificou o martírio contra seu cativo levando-o a morte.

Segundo Mott, a extrema crueldade verificada em ambos os casos sinaliza o alto grau de homofobia que impregnava o imaginário coletivo. O homoerotismo era severamente combatido pela doutrina cristã, entre outros motivos, porque “(…) além de desperdiçar a semente da tão necessária reprodução dos novos cristãos, tinha como incontrolável consequência a efeminação de seus praticantes, enfraquecendo sua valorizada virilidade” (p. 47).

No terceiro capítulo, Randolpho Corrêa e Jonis Freire recuperam vários elementos da legislação penal brasileira em vigor no século XIX, revelando a cotidianidade dos crimes violentos. Conforme os autores, nesta sociedade escravista “Homicídios, suicídios, infanticídios, roubos, estupros, castigos físicos e outros tipos de violência física foram muitos comuns” (p. 66). Os dois historiadores demonstram o quanto a sociedade era permeada por conflitos e tensões que ocorriam tanto de forma vertical quanto horizontal no âmbito rural ou urbano. Assim, eles procuram descontruir a equivocada percepção de que os crimes e a violência neste contexto se restringiam a senhores e escravos.

No quarto capítulo, Vitor Izecksohn, tendo como pano de fundo a Guerra do Paraguai (1864-1870), aborda os percalços e as dificuldades enfrentadas pelas autoridades imperiais durante o processo de recrutamento de tropas. Neste contexto, os investimentos empregados pelo Estado brasileiro para provisões, equipamentos e alojamentos eram insuficientes para atender a todas as demandas. Este quadro desolador desestimulava o engajamento de potenciais voluntários. Diante disso, o governo solicitou o apoio das autoridades particulares locais para promover o recrutamento forçado de seus clientes e protegidos. Entretanto, conforme o autor, essa medida foi interpretada por muitos como uma atitude invasiva do governo imperial, provocando resistências e gerando reações hostis ao trabalho dos recrutadores.

O prolongamento inesperado do tempo da guerra e a inexistência de um aparato de vigilância adequado motivaram inúmeros ataques violentos às cadeias com o objetivo de resgatar presos, muitas vezes com apoio dos chefes locais.

No quinto capítulo, o historiador Vitor Melo disseca o processo de desenvolvimento das touradas e do turfe no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX. Ele explica como os espetáculos públicos em torno dessas modalidades esportivas engendravam tensões e conflitos de diversas ordens. O autor identifica os fatores que instigavam os espectadores, especialmente dos segmentos mais pobres, a depredarem as instalações da arena, provocando em seguida atritos com as forças policiais. É destacado como o processo de estigmatização das corridas de touros estava relacionado ao aumento das preocupações com a cena pública, já que essa prática desportiva “(…) cada vez mais era considerada inadequada para uma cidade que alguns pretendiam ver civilizada” (p. 124).

No sexto capítulo, Daniel Faria analisa a temática do crime na literatura brasileira a partir de duas obras nacionais produzidas nos anos 1930 durante a era Vargas: Angústia (1936) de Graciliano Ramos e Os ratos (1935) de Dyonélio Machado. O historiador identifica os fatores que explicam a incorporação do crime ao campo literário. Ele pontua que este mote está umbilicalmente associado à expansão da urbanização. Dentro dessa nova configuração social o crime destaca-se por uma questão de toda trama narrativa: ele proporciona fascínio, pois “(…) traz um elemento de surpresa, choque, que coloca o enredo em movimento, dando-lhe dramaticidade” (p. 155).

Em relação ao estilo da escrita de Graciliano Ramos, Faria considera que sua obra literária se caracteriza por uma espécie de investigação psicológica. Para ele, fica nítida em Angústia a preocupação do escritor em revelar as sutilezas psíquicas dos personagens. Outro aspecto marcante é sua predileção por enredos que contemplam casos extremos como violências, loucuras, alucinações etc. Este tipo de narrativa proporciona o “gozo espiritual” ao leitor, na medida em que o torna “(…) capaz de viver essas vidas alucinadas e criminosas, padecendo com elas – à distância” (p. 159).

Já na obra Os ratos de Dyonélio, o foco central de sua abordagem é a natureza do homicídio. Fundamentado na “psicologia do homem primitivo” o escritor defende a tese de que mesmo na modernidade o comportamento dos homicidas seria semelhante ao dos indivíduos de épocas primitivas. Na percepção de Dyonélio, segundo Daniel Faria, o crime “seria o resultado de que alguns indivíduos falhavam no caminho da civilização, desejando retornar ao estágio primitivo, quando não havia o conceito de delitos” (p. 168).

No sétimo capítulo, Wagner Pereira nos apresenta um painel muito detalhado do processo de apropriação da temática do crime pela mídia brasileira no período de 1961 a 2016. O historiador faz uma interessante digressão aos primórdios da TV no Brasil para explicar como, desde cedo, os crimes violentos foram sendo incorporados e manejados nas telenovelas com o intuito de cativar os telespectadores, garantindo elevados índices de audiência. Para o autor, no decorrer da trajetória da teledramaturgia, percebe-se a gestação de uma “cultura de mídia” que passa a ser massivamente consumida pela sociedade.

O telejornalismo foi o outro gênero televisivo esquadrinhado pelo autor em seu ensaio. Wagner Pereira analisa detidamente a influência dos programas “sensacionalistas” na construção das representações coletivas ao promover a “espetacularização da violência”. Para ele “(…) os discursos dos telejornais policialescos acabam criando a ideia de que quem defende a população são as pessoas que agem com truculência, violência e arbitrariedade” (p. 230).

No oitavo capítulo, Angélica Müller analisa os desdobramentos da morte do estudante Edson Luís em 1968. Ela revela como este evento tornou-se um ponto de inflexão no percurso da ditadura militar. Um dos fatos destacados após o ocorrido foi a disputa pelo corpo do secundarista entre as autoridades do Estado de um lado e os estudantes da UNE de outro – situação que, a partir de então, seria recorrente neste período.

Outro momento examinado pela historiadora foi o das cenas impactantes que marcaram o velório de Edson Luís que contou com a participação de milhares de estudantes. Ela sublinha que a exposição do corpo ferido e a camiseta manchada de sangue aludiam à própria representação do suplício de Cristo. Além disso, nesta cerimônia fúnebre, verificavam-se objetos e símbolos representando não apenas um ritual religioso, mas também político. A bandeira nacional enrolada no caixão e os inúmeros cartazes nas mãos dos estudantes e em cima do corpo do estudante evidenciavam esta atmosfera.

As incontáveis manifestações que irromperam em várias capitais e cidades do país, assim com a truculenta repressão policial, também foram abordadas. Segundo Müller, a morte do estudante em março de 1968 teve como principal desfecho o decreto do Ato Institucional (AI-5) em dezembro do mesmo ano. A partir de então “(…) os dispositivos de violência do Estado que já estavam sendo aprimorados foram acionados em sua máxima: a tortura institucionalizou-se como política para todos aqueles que praticassem atos contra o regime” (p. 244).

No nono capítulo, José César Coimbra nos apresenta um panorama bastante detalhado e atualizado sobre o combate a violência doméstica, examinando tanto o cenário nacional quanto o internacional. Entre outros enfoques, o psicólogo procura problematizar e responder questões candentes como as seguintes: O que se pode entender por violência contra mulher? Com a Lei Maria da Penha o que mudou nas possibilidades de garantia de direitos e responsabilização? Como a sociedade percebe o fenômeno da violência doméstica?

O autor observa como uma série de fenômenos no contexto hodierno tem contribuído para o aumento da sensibilidade social no que tange a essa temática. Ele sublinha o papel da mídia, especialmente das redes sociais, na tarefa de conscientização, denúncia e também na divulgação dos movimentos sociais. Todavia, apesar da crescente indignação da sociedade, Coimbra percebe um importante paradoxo: “maior visibilidade, ampliação, aperfeiçoamento do sistema de garantia de direitos e possibilidades de responsabilização e, no entanto, continuidade de tipos de violência e desigualdade que atravessam gerações” (p. 257).

No décimo capítulo, o assassinato da missionária Dorothy Stang em 2005 é o escopo da análise de Marcelo Timotheo da Costa. Ele insere este evento singular dentro de um quadro mais amplo para descortinar os fatores estruturais e históricos que condicionaram inúmeros homicídios na região norte e nordeste do Brasil.

Segundo o autor, o ativismo de Stang centrava-se na busca de soluções para três graves problemas estruturais na região norte: o da concentração de terras, o do trabalho semiescravo e o da exploração predatória do meio ambiente. Assim, ao defender com afinco ideias como a redistribuição de terras da União para a reforma agrária e criar o audacioso Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), a missionária passou a incomodar a elite local. Segundo Costa, a ideia do PDS “(…) com sua reivindicação da reforma na estrutura agrária e também por seu zelo ecológico – agregou inimigos de peso: latifundiários, proprietários de madeireiras e até comerciantes” (p. 294).

No décimo primeiro capítulo, a intolerância religiosa no Brasil é o tema do ensaio de Quézia Brandão. Ela nos apresenta um panorama dos embates e polêmicas em torno deste problema social que tem afetado com maior recorrência os praticantes das religiões afro-brasileiras. Um dos tópicos mais fecundos do artigo é “Entre templos e terreiros: a construção da intolerância” em que a pesquisadora versa sobre as origens históricas do preconceito, discriminação e intolerância religiosa no Brasil. Brandão faz uma incursão ao período colonial para examinar a construção do imaginário e das representações coletivas, indicando neste processo a supremacia do catolicismo sobre as religiões de matriz africana e indígena, não obstante o sincretismo que se verificou no decorrer do tempo.

No décimo segundo capítulo, a historiadora Viven Ishac e a jurista Carolina de Campos Melo focalizam o desaparecimento de Rubens Paiva em janeiro de 1971, tendo como lastro as conclusões obtidas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Este órgão foi instalado em 16 de maio de 2012 e encerrou seus trabalhos em 16 de dezembro de 2014. Sua principal incumbência foi investigar minuciosamente e esclarecer os crimes que atentavam contra os direitos humanos no período de 1946 a 1988.

A partir dos dados fornecidos pela CNV, as autoras elucidaram as circunstâncias que motivaram os agentes da ditadura a prenderem ilegalmente o deputado federal, um dos mais ferrenhos opositores ao regime. Elas revelaram como as múltiplas formas de tortura perpetradas contra Rubens Paiva provocaram sua morte e como seu corpo foi ocultado pelas instituições militares. Mais do que dissecar um caso particular isolado, o ensaio reconstitui toda uma conjuntura histórica marcada por graves violações dos direitos humanos, legitimadas por uma política de Estado. Assim, demonstrou-se que a crueldade cometida contra os presos políticos nos interrogatórios, os assassinatos e as falsas versões sobre o desaparecimento das vítimas do regime eram todas práticas institucionalizadas, amparadas pela “(…) participação coordenada de agentes em diferentes níveis hierárquicos e no exercício de funções distintas, organizadas sob a forma de cadeias de comando” (p. 340).

No décimo terceiro capítulo, Vitor de Angelo aborda a corrupção no Brasil, problematizando o modo como a população percebe este fenômeno. O horizonte de investigação fundamenta-se no diagnóstico de pesquisas recentes apontando que a corrupção é vista como o maior problema do Brasil. Segundo o sociólogo, este entendimento indica uma crescente indignação da sociedade com este problema e isso relaciona-se ao fato de que nos últimos anos, o combate a corrupção tem dominado a agenda da mídia, das instituições políticas e da sociedade civil organizada. A premissa do autor é que “(…) muitos podem ter a sensação de que esse é um problema recente, que começou há pouco tempo ou que se reduz ao governo e ao partido que está no poder” (p. 347). Assim, o cientista social procura demonstrar que a corrupção vigora no Brasil desde épocas remotas, estando presente não apenas no campo político, mas também em toda a esfera pública e privada.

No décimo quarto capítulo, Mauricio Murad analisa os escândalos de corrupção no futebol, especialmente envolvendo instituições como a Fifa e a CBF. O sociólogo investiga a influência das redes que articulam os interesses de várias entidades e atores em torno do futebol, abrangendo grandes corporações, empresários, dirigentes de clubes, federações, confederações etc. A constatação mais relevante de Murad refere-se a interface entre os diversos crimes praticados no âmbito do futebol e aqueles que são cometidos no contexto mais amplo da nossa sociedade. Crimes como sonegação, desvios, propinas, fraudes fiscais e eleitorais, lavagem de dinheiro, entre outros, permeiam toda nossa vida coletiva. “Portanto, os ilícitos no futebol brasileiro têm muita relação com a história e a cultura dos ilícitos de nossa sociedade. Os crimes que ocorrem no universo do futebol apontam para os crimes que ocorrem no conjunto da sociedade” (p. 389).

No décimo quinto capítulo, Marcelo Crespo disserta sobre a história dos crimes digitais no Brasil. O jurista nos apresenta um excelente panorama das diversas modalidades de delitos desta natureza no cenário contemporâneo. Ele também procura desconstruir a percepção amplamente compartilhada, segundo a qual não existem leis eficientes para punir os crimes digitais no Brasil. O autor apresenta as inúmeras ilegalidades enquadradas nesta categoria e demonstra como tais delitos “(…) já eram crimes constantes do ordenamento jurídico brasileiro, apesar dos meios tecnológicos empregados” (p. 416). Ou seja, o Brasil está apto a punir a maioria dos crimes digitais com base no Código Penal vigente criado em 1940. O jurista também postulou que o cerne do problema em torno da punição não é a insuficiência ou caráter das leis existentes, mas sim as condições estruturais para executá-las.

No último capítulo da obra, Sérgio Adorno e Camila Nunes Dias atualizam o debate em torno do sistema prisional. Os sociólogos procuram evidenciar que os modelos teóricos clássicos tornaram-se insuficientes para explicar a complexa dinâmica de funcionamento das cadeias na atualidade, caracterizadas pelo entrelaçamento de atores, mercadorias e serviços dentro e fora dos estabelecimentos penitenciários. Assim, eles esboçam os principais paradigmas explicativos da “sociologia das prisões” para demonstrar a predominância de uma percepção comum entre essas teorias: a ideia de que o espaço prisional e a sociedade mais ampla são universos estanques e dicotômicos, rigidamente delimitados física, moral, social, política e culturalmente.

Este modelo hegemônico influenciou enormemente os cientistas sociais brasileiros durante toda a segunda metade do século XX. Todavia, nos últimos anos, importantes transformações tecnológicas e sociais modificaram radicalmente a relação entre o mundo prisional e a sociedade, tornando o paradigma clássico inapropriado para abordar este tema, pelo menos no Brasil. Segundo os autores, dois fatores foram preponderantes para tal modificação: o desenvolvimento dos meios de comunicação e o surgimento do crime organizado. O acesso aos aparelhos celulares dentro dos presídios, por exemplo, possibilitou o “(…) estabelecimento de vínculos duradouros entre indivíduos e grupos situados dentro e fora da prisão e a constituição de redes sociais consistentes” (p. 455). Desde então, estes universos sociais passaram a se influenciar reciprocamente.

Procuramos descrever sucintamente os aspectos essenciais abordados nos dezesseis capítulos que compõem a obra História dos crimes e da violência no Brasil. Contudo, ainda é necessário refletirmos criticamente se o conteúdo apresentado na coletânea está em consonância com o título e o fio condutor indicado pelas autoras. Conforme mencionamos, para elas “O fio condutor está centrado na ideia de como o crime e o emprego da violência fizeram e fazem parte da nossa sociedade” (p. 8).

Ao examinar os capítulos do livro e suas respectivas temáticas, percebe-se certa coerência nesta assertiva, na medida em que se verifica de fato a existência de várias modalidades de crimes e de práticas violentas perpassando toda a história do Brasil. Entretanto, não podemos consentir inteiramente com a ideia de que a perenidade destes fenômenos apontada pelas autoras constitua por si só um fio condutor. Isso porque a obra não dispõe de nenhum capítulo dedicado a uma discussão historiográfica mais abrangente, capaz de explicar o encadeamento de todos os eventos narrados e/ou também apresentar teorias gerais para se pensar os fatores da criminalidade e da violência.

Além disso, a compreensão da criminalidade no Brasil demandaria necessariamente uma abordagem mais crítica sobre o papel do Estado na criminalização do comportamento social. Seria preciso verificar em que medida a preservação de uma ordem social pacífica, em diferentes conjunturas, atendia aos interesses das elites. Ou, de que maneira a legislação penal vigente refletia as demandas dos estratos dominantes, como a vigilância e o controle dos segmentos subalternos. E, também, como as autoridades estatais deixavam impunes ou, no limite, aplicavam punições mais brandas aos membros dos grupos dirigentes. Na direção contrária, caberia ainda, problematizar o viés interpretativo clássico, que relaciona criminalidade e pobreza, tal como fez o sociólogo Michel Misse.2

Por outro lado, não obstante os limites que apontamos, a coletânea oferece contribuições fecundas ao campo historiográfico, entre as quais, destacamos três. Em primeiro lugar, o simples fato de tratar de uma temática que, no limite, recebeu pouca atenção da historiografia nacional, sendo mote privilegiado das ciências sociais. Em segundo lugar, deve-se valorizar seu caráter interdisciplinar, pois as autoras selecionaram pesquisadores de diferentes áreas, que produziram estudos de reconhecida qualidade e de extrema atualidade. Por fim, ligado a isso, a investigação de um conjunto de crimes e atos violentos situados em diversos espaços e temporalidades, proporciona ao leitor uma perspectiva multifocal ampliada para abordar esses fenômenos sociais e históricos.

Referências

MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. [ Links ]

2MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.14-18.

Fernando de Oliveira dos Santos – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis. Área de concentração: História e Sociedade; linha de pesquisa: Cultura, Historiografia e Patrimônio. E-mail: fernandobraudel@hotmail.com.

Sergio Magalhães e suas trincheiras – SILVA (RH-USP)

SILVA, Roberto Bitencourt da. Sergio Magalhães e suas trincheiras: nacionalismo, trabalhismo e anti-imperialismo – uma biografia política. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: MALDONADO, Luccas Eduardo Castilho. Lutas e batalhas de Sergio Magalhães: um intelectual orgânico nos trópicos. Revista de História (São Paulo) n.177 São Paulo  2018.

Paul Ricoeur é um conhecido autor por dissertar sobre as aproximações e os distanciamentos existentes entre a memória, a ciência histórica e o esquecimento. No tecer de seus argumentos, o escritor alerta: independentemente da forma de se conhecer o passado, seja a história, seja a memória, ela sempre será uma expressão do “caráter inelutavelmente seletivo da narrativa”. Assim sendo, por serem o que são, por optarem e omitir sincronicamente, os usos da memória e da história “são, de saída, abusos do esquecimento”.2 Jacques Lee Goff defendeu posições semelhantes, porém expande o raciocínio a ponderar também a realidade objetiva: “De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores”.3 Tais leituras revelam uma perspectiva muito importante para o ofício do historiador: por haver formas de seleção dentro e fora do controle do escritor e por ser um discurso sobre a concepção dos grupos sociais a respeito do passado, o exercício histórico sempre será uma prática política no cerne das disputas ideológicas.

Em grande medida, a recente publicação do livro Sergio Magalhães e suas trincheiras: nacionalismo, trabalhismo e anti-imperialismo – uma biografia política é um movimento capaz de ser ponderado dentro dessa realidade de seleções, inclusive no âmbito do esquecimento porquanto trata-se de um trabalho histórico responsável por ir à contramão do obscurantismo sedimentado sobre a figura de Sergio Magalhães. O seu autor, Roberto Bitencourt da Silva, ao analisar um qualitativo conjunto documental, revelou diversos aspectos da trajetória de um homem que, nas décadas de 1950 e 1960, empreendeu um expressivo papel na construção e na defesa de um projeto nacional de desenvolvimento econômico autônomo e, na contemporaneidade, conquanto a sua importância histórica, se caracteriza por ser pouco rememorada.

Silva é um pesquisador que há poucos anos defendeu o seu doutorado, um estudo sobre a biografia e o pensamento de Alberto Pasqualini, publicado como livro pela editora da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2013,4 e que, desde então, aprofunda ainda mais a sua contribuição ao pensamento acadêmico brasileiro. Toda a sua carreira na pós-graduação é marcada pela exploração de uma temática central: o trabalhismo. Desde seu mestrado até os seus últimos estudos, tal assunto foi tangido de alguma forma. Nesse sentido, uma das características mais interessantes, expressiva de muitos dos seus predicados de trabalho, encontra-se no grupo de pensamento por Silva frequentado. O seu orientador de doutorado, o professor Jorge Ferreira, é um dos principais nomes, dentre uma reunião de pesquisadores, que está a problematizar e a revelar diversas perspectivas e informações a respeito do trabalhismo e da Quarta República nos últimos anos.

A última obra de Silva, “Sergio Magalhães …”, é um significativo estudo resultado de um pós-doutorado a respeito da biografia e do pensamento do três vezes deputado federal, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Sergio Nunes de Magalhães Jr. Mais precisamente, materializa-se em papel o (re)descobrir de como um dos políticos mais preocupados com a economia brasileira construiu uma carreira dentro do serviço público carioca, foi eleito para o Legislativo federal, projetou e aprovou uma das leis mais polêmicas de sua época, concorreu contra Carlos Lacerda em um pleito para um cargo executivo e foi cassado pelos militares no primeiro Ato Institucional.

Esses e outros caminhos por Silva buscados e explorados engatilham-se em uma crítica que a obra, junto de outros livros lançados nos últimos anos, visa constituir ao paradigma explicativo denominado populismo.5 Categoria responsável por conquistar uma expressiva influência no final do século passado, um exemplo desse prestígio foi o manejo constante por muitos autores de materiais didáticos que, ao se referirem ao período entre o Estado Novo e a Ditadura Militar, optaram pelo termo “República Populista”. Assim, Silva reforça uma posição contrária, referente em grande medida às formas expostas por Francisco Weffort em O populismo na política brasileira6 e Octavio Ianni em O colapso do populismo no Brasil,7 quanto ao caráter explicativo do conceito populismo. Para ele e outros acadêmicos, a generalidade e a amplitude da formulação, a ir de Eurico Gaspar Dutra, a passar por Getúlio Vargas e a chegar em Jânio Quadros e João Goulart, para citar apenas os presidentes, acaba por ser demasiadamente vaga e, por conseguinte, simplificadora de uma série de relações muito mais complexas na realidade histórica.

A biografia de Sergio Magalhães, lançada no primeiro semestre de 2017, conta com cinco capítulos, cada um a desenvolver funções mais ou menos precisas no sentido de exploração temática. As suas notas de rodapé são particularmente interessantes, pois revelam o conjunto documental consultado por Silva: um acervo variado de jornais, livros autorais de Magalhães e entrevistas com familiares e próximos do deputado.

No primeiro capítulo da obra, “‘Um dos que melhor conhece os nossos problemas’: o fascínio pelo sertão, o reconhecimento e os combates parlamentares” (p. 23-60), o autor realiza um movimento descritivo de três tempos que, resumidamente, principia na vida e origem familiar em Pernambuco, passa pelos trabalhos dentro das instituições estatais no Rio de Janeiro e se encerra com a dissertação ao alto dos projetos intentados por Sergio Magalhães dentro da Câmara dos Deputados entre 1955 e 1964. Trata-se de um trecho, apesar de não se afirmar como tal, introdutório para o assunto que será desdobrado com maior profundidade nos textos posteriores, uma vez que oferece uma narrativa diacrônica da trajetória do personagem e dos seus principais projetos políticos, porém sem aprofundá-los significativamente.

Após o primeiro capítulo, principia-se “‘O Brasil virou um quintal do imperialismo’: o pensamento político e econômico de Sergio Magalhães” (p. 61-104), passagem na qual Silva realiza um conjunto de movimentos descritivos e duas exposições das matrizes conceituais balizadoras do seu trabalho.

Na exploração das categorias, o escritor afirma uma opção pela filiação a uma perspectiva contextualista, nas acepções de John Pocock e Quentin Skinner, posição que, no desenvolvimento científico, significa dar grande importância ao contexto intelectual e histórico quando se analisa uma obra ou uma trajetória de um pensador. Tal arranjo, todavia, não corresponde à desconsideração das possibilidades criadoras de um personagem, mas propõe-se a ponderá-las dentro de um universo múltiplo e em um tempo específico.8 A outra chave analítica para o trabalho é a orientação do conceito intelectual assumido para estudar a trajetória de Magalhães. Após apresentar e explorar algumas de suas acepções, originárias de pensadores como Zygmunt Bauman, Salete Cara, Norberto Bobbio e Lucien Goldmann, o autor evoca a forma cunhada pelo socialista italiano Antonio Gramsci como norteadora. Dessa forma, no seu entender, Magalhães corresponderia à expressão de um intelectual orgânico na realidade brasileira; quer dizer, a deslocar-se na linha de raciocínio do escritor dos Cadernos do cárcere, o acadêmico trata o parlamentar trabalhista como um indivíduo que, inserido em uma conjuntura específica, expressa uma consciência do papel a ser praticado por grupos e/ou classes sociais nos terrenos da política, cultura e economia.9 No caso de Magalhães, tal orientação dar-se-ia principalmente no sentido das relações econômicas enviesadas pelas bandeiras do nacionalismo e do anti-imperialismo.

A parte descritiva do capítulo centra-se na realização de dois atos preliminares de exposição en passant: da conjuntura política entre o ano 1945 e a década de 1960 e da reflexão de um acervo de pensadores que trataram a problemática do desenvolvimento econômico brasileiro, como Caio Prado Júnior, Guerreiro Ramos, Roland Corbisier, entre outros. Tais desdobramentos, na prática, executam um exercício preparatório, a partir de um prisma contextualista, para a entrada no centro da questão investigada, constituindo a forma como Sergio Magalhães concebia o seu pensamento econômico sobre o Brasil e as relações comerciais internacionais

O terceiro capítulo da obra, “‘Contra a sangria das riquezas nacionais’: a limitação das transferências dos lucros do capital estrangeiro no centro do debate público” (p. 105-164), organiza-se em uma linha expositiva sustentada, por causa de suas significativas semelhanças, na conexão histórica entre dois projetos econômicos, um de Getúlio Vargas e outro de Sergio Magalhães, destinados a legislar sobre as relações comerciais internacionais de empresas estrangeiras no território brasileiro. Mais precisamente, o foco está nas reações a respeito das leis de remessas de lucros que, em períodos distintos, cada um empreendeu no interior do sistema político brasileiro, além – no estudo do deputado trabalhista – de outros projetos alvitrados dentro do parlamento. Todo o exercício analítico foi elaborado fundamentalmente a partir dos textos jornalísticos originários de: O Globo, Imprensa Popular e Novos Rumos – o primeiro, um tradicional veículo conservador, e os dois últimos, publicações ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).10 Sobre esse conjunto documental é que as premissas de trabalho de Silva sustentam-se a partir de tal ponto no livro, transição marcada pelo aumento do manejo desse tipo de fonte, pois oferece sentido à forma concebida pelo autor de História da imprensa, posição correspondente ao ato concomitante de reconstrução de um processo e análise da atuação dos periódicos no interior da esfera pública (p. 110).

No primeiro momento deste capítulo, apresenta-se a recepção ao decreto nº 30.363/1952 de 3 de janeiro de 1952, do então presidente da República Getúlio Vargas – medida que regulara o limite máximo de 8% nas remessas de lucros originários de capital estrangeiro investido no país para o exterior. As reações dos jornais são apresentadas e, em grande medida, é possível observar que, naquele período, os nuances ideológicos aparentemente não estavam tão acirrados dentro da imprensa. O tradicional O Globo passou de uma posição elogiosa no primeiro momento para uma postura contida, a ponderar a iniciativa do Executivo e a problemática da possível redução da atratividade brasileira aos investimentos exógenos, conquanto constantemente o editorial disponibilizasse espaços para os apologistas da livre circulação de divisas como o grupo norte-americano Esso, investidor na área petroquímica. Por sua vez, a publicação comunista Imprensa Popular, a refletir a estratégia exposta no Manifesto de agosto de 1950, posicionou-se fixamente de maneira resistente ao projeto, porque, na compreensão dos militantes, a iniciativa seria uma ação oportunista do presidente uma vez que, na prática, nada mudaria devido à limitação de sua ação.

Após expor as reações ao plano de Vargas, o pesquisador foca sua análise nas manifestações sobre os projetos econômicos de Magalhães, esses semelhantes ao decreto que o antigo presidente rubricara, caracterizados por uma perspectiva da defesa da economia nacional. Com o escopo de construir esse ideal por sua ação como legislador dentro da Câmara dos Deputados, Magalhães encontraria reflexos nos mesmos espectros ideológicos os quais haviam ponderado a respeito da legislação de Vargas. De posição favorável e contida anos antes, o editorial da família Marinho em O Globo manifestou-se intensamente crítico e contrário às intenções do deputado petebista, especialmente contra a sua lei de remessas de lucros. Da mesma forma, a apresentar transformações na sua visão, o Partido Comunista, embora naquele período utilizando outro veículo, Novos Rumos, cambiou a sua leitura de um oposicionista para um aliado – movimento derivado da estratégia partidária de 1958, exposta na Declaração de março.

Nesse capítulo, Silva revela um movimento interessante no interior da sociedade, a reforçar uma leitura mais ampla, e acentua a interpretação de uma pesquisadora. No primeiro caso, a análise mostra-se capaz de revelar como as posições estabelecidas a respeito de um projeto político tornam-se cada vez mais díspares dentro de três periódicos da época. Há limites dimensionais de quanto tal contraste pode ser generalizado para outras expressões da realidade social, por causa do conjunto documental manuseado pelo autor de Sergio Magalhães. No entanto, esse sentido não está desconexo de uma parte do conjunto bibliográfico produzido nos últimos tempos, pois obras formuladas por meio de outros acervos são consoantes a respeito do acirramento das oposições ideológicos no pré-1964 e, por conseguinte, condizendo com a perspectiva de Silva.11 No segundo, o pesquisador corrobora a conclusão interpretativa de Lucília de Almeida Neves Delgado, docente da Universidade de Brasília (UnB), que, no seu livro PTB – do getulismo ao reformismo, defende a hipótese da paulatina aproximação de projetos e estratégias entre as legendas PTB e PCB ao longo da Quarta República.12

No quarto capítulo, “‘O estuário das aspirações progressistas na Guanabara’: o combate a Lacerda na campanha eleitoral de 1960” (p. 165-212), o foco está em um dos momentos mais interessantes na trajetória política de Sergio Magalhães: na sua disputa eleitoral com Carlos Lacerda para o governo do estado da Guanabara. Em 1960, após a construção e a inauguração de Brasília, ocorreu uma fundamental transformação no caráter político do Rio de Janeiro. Por ser a capital federal da República até então, o município não contara com eleições diretas para o seu representante executivo. Na prática, tal cargo fora de nomeação direta do presidente, situação que se transformou devido à promulgação de eleições diretas para a posição. Naquele pleito, houve quatro candidatos a disputar: Tenório Cavalcanti (PRT), Mendes de Morais (PSD), Carlos Lacerda (UDN) e Sergio Magalhães (PTB).

No decorrer do período eleitoral, intensificaram-se as oposições entre projetos, à semelhança do descrito no capítulo anterior, manifestando-se materializadas nas pessoas dos concorrentes Magalhães e Lacerda, assim, a reforçar e a expandir o argumento manejado pelo pesquisador. Com o manejo da mesma forma documental, porém nessa passagem a partir dos periódicos O Globo e Última Hora – o segundo conhecido pelo seu notório caráter nacionalista e defensor dos projetos petebistas -, o autor segue a expor expressões do acirramento político-ideológico que caracterizaram o país nos períodos anteriores à ruptura institucional.

O contraste entre Lacerda e Magalhães expressar-se-ia de diversas maneiras, contudo, de maneira geral, as diferenças sintetizavam-se em um desarranjo de projetos de país. A visão do udenista era marcada por uma perspectiva conservadora, despreocupada com as questões sociais e nacionais; diferentemente, Magalhães mostrava-se profundamente voltado para uma apologia do desenvolvimento econômico nacional autônomo e da construção de uma sociedade com menores desigualdades sociais. As próprias posturas dos aspirantes, aliás, a respeito do conjunto de favelas instalado no Rio de Janeiro, refletiam a inadequação de suas ideias, pois, enquanto Lacerda entendia-as somente como problema, Magalhães concebia-as como uma problemática social a ser tratada pelo Estado. O período final da campanha aumentou ainda mais o conflito ideológico entre as partes, porquanto uma série de acusações foi trocada com o acirramento da competição, essas marcadas pelo uso de adjetivos como “comunistas” e “nazistas”.

No capítulo final do livro, “‘Um período crítico’: esperanças, preocupações, derrotas e dissabores” (p. 213-269), os últimos momentos da carreira política de Sergio Magalhães são analisados. Tratou-se de compreender como nos primeiros anos da década de 1960 os caminhos do deputado trabalhista, marcados por uma série de processos e crises, no último deles, resultaram no seu ostracismo político. Nessa passagem da pesquisa, toda a descrição constituída por Silva manejou dois periódicos de caráter trabalhista que, na época, contavam com considerável circulação e importância: o já citado Última Hora e O Semanário.

A última parte do livro preserva, entre as suas virtudes, a problematização, a partir do manejo das posições colocadas por Magalhães, de dois processos essenciais do fim daquele período democrático responsáveis por mobilizarem debates acadêmicos. O primeiro compreende a crise política de 1961: antes de completar um ano de mandato e nas proximidades do pleito para o Legislativo federal, o presidente Jânio Quadros renunciou e instalou uma condição de profundo desequilíbrio entre as forças políticas do país, devido a um setor, mobilizado pelas forças conservadoras, ser contrário à posse do vice João Goulart e outro, de forças legalistas, defender a manutenção do rito constitucional. Naquela conflagração de poderes, Magalhães, na época presidente da Câmara dos Deputados, tomou uma posição assertiva e resistente em prol de Goulart. Porém, apesar da apologia pela manutenção do processo demarcado pela Constituição, a tendência do deputado trabalhista seria derrotada e uma solução conciliadora instituiu o parlamentarismo via Senado.

O segundo desdobramento foi o golpe de 1964. Reeleito deputado em 1962, em campanha no Rio de Janeiro que dividiu as atenções e os votos com o correligionário Leonel Brizola, Magalhães posicionar-se-ia sobre diversas questões vitais até a instalação do general Castelo Branco na cadeira da presidência: por exemplo, sua postura crítica ao Plano Trienal, formulado pelo ministro da Fazenda San Tiago Dantas e pelo ministro do Planejamento Celso Furtado. Aliás, o primeiro cultivava conflitos com Magalhães desde 1961, quando o responsável pela gestão econômica do Poder Executivo junto com setores da oposição e estratos mais à direta dentro do PTB tentaram afastá-lo da presidência da Câmara. Silva explorou uma pontual expressão de disputa e desacordo dentro do Partido Trabalhista Brasileiro. Temática interessante capaz de revelar os limites da coesão e organicidade desse importante partido da Quarta República, mas que ainda requer maiores explorações; é um nuance revelado a ser inserido e considerado em um plano mais amplo. As iniciativas pelo avanço das reformas de base e pela prática de fato de sua lei de remessas de lucro, não obstante adulterada por um substitutivo parlamentar, também estariam na sua agenda política. A fundação da Frente de Mobilização Popular, mobilizada principalmente por Brizola, instituição da qual era um dos principais formulares e atores, foi a principal medida desenvolvida pelo deputado trabalhista para esse fim. Juntamente com tal orientação, também emplacava uma severa oposição ao governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que o vencera anos antes.

Todavia, mesmo com os seus esforços dentro e fora do parlamento, entre eles os discursos proferidos após o presidente do Senado Auro de Moura Andrade declarar a vacância do Poder Executivo federal, Sergio Magalhães não conseguiria ver o avanço e a constituição de seu projeto de país. Sendo cassado pelo primeiro Ato Institucional em 10 de abril de 1964, seu número, na lista de 102 cidadãos que tiveram seus direitos políticos suspensos pela ditadura, foi o de 88. Era o epílogo da carreira política de Sergio Magalhães.

Roberto Bitencourt da Silva realizou um trabalho significativo com a construção da biografia de Sergio Magalhães. A obra conta com muitos méritos. O principal dentre eles situa-se na conjunta tentativa de retirar do esquecimento a figura de Magalhães e, a partir da trajetória do personagem, revelar nuances macros do Brasil da época, como o trabalhismo, a ruptura institucional de 1964 e os distintos projetos político-econômicos vigentes. Portanto, apresenta-se um trabalho que, dentre as noções de seleção de informação e construção da narrativa ponderados por Le Goff e Ricoeur, revela aspectos de um indivíduo situado nas margens nebulosas da historiografia e da memória, que começa a ser alçado mais ao centro das concepções a respeito do passado e, por conseguinte, escopo de análise e objeto de disputa ideológico. Para os pesquisadores interessados, a trajetória de Magalhães está longe de ser esgotada no sentido de investigações científicas, pois Silva manejou apenas uma parte do conjunto documental disponível a respeito do personagem, a existirem ainda outros jornais como o Diário de Notícias e o Correio da Manhã para serem explorados – além de outras fontes possíveis. Tal particularidade não corresponde a uma redução do valor qualitativo da obra, porém, diferentemente, confere uma virtude: Sergio Magalhães e suas trincheiras: nacionalismo, trabalhismo e anti-imperialismo – uma biografia política foi o exercício pioneiro e assim abriu caminhos para futuras e novas pesquisas.

Referências

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2 RICOEUR, PaulA história, a memória, o esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007, p. 455.

3 LE GOFF, JacquesHistória e memória. 7ª edição. Campinas: Ed. Unicamp, 2013, p. 485.

4SILVA, Roberto Bitencourt da. Alberto Pasqualini: trajetória política e pensamento trabalhista. Niterói: Ed. da UFF, 2013.

5O livro de Jorge FerreiraJoão Goulart: uma biografia, e a coletânea por ele organizado, O populismo e sua história: debate e crítica, são duas expressões recentes de um acervo de textos que constituem uma crítica ao conceito. Há também o mais antigo, porém, revisto e atualizado, O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964, de Luiz Alberto Moniz Bandeira.

6WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

7IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

8 SKINNER, QuentinRazão e retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Unesp, 1999; IdemMaquiavel. Porto Alegre: L&PM, 2010; POCOCK, John G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

9GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

10O Partido Comunista do Brasil mudou seu nome para Partido Comunista Brasileiro na transição da década de 1950 para 1960. Nesta resenha, optou-se pela segunda denominação independentemente do período histórico.

11 Marcos Napolitano sustenta a existência de “um ambiente de polarização ideológica radicalizada e de disputa por afirmação de projetos autoexcludentes para a sociedade e para a nação”. NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014, p. 66.

12DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB – do getulismo ao reformismo. São Paulo: Marco Zero, 1989.

Luccas Eduardo Castilho Maldonado – Graduando no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. E-mail: luccas_eduardo@hotmail.com.

A Short History of Migration – LIVI-BACCI (PR)

LIVI-BACCI, Massimo. A Short History of Migration. Cambridge: Polity Press, 212. 157p. Resenha de: SALAMANCA RODRÍGUEZ, A. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.189-192, 2018.

A Short History of Migration is not only a history book: it is also a thought-provoking analysis of the present and future of migration which includes some policy suggestions and interesting reflections about the evolution of migration policies and demographics in Europe from a longue durée perspective. Almost a decade after its publication, the predictions of the book are still up-to-date and relevant to the current debates on migration in Europe. The author, Massimo Livi-Bacci (b. 1936) is one of the leading voices in the field of demography and a Professor Emeritus of Demography in the University of Florence. During his prolific career, he has published books and articles about the historical demographic evolution of colonial America, Mediterranean countries such as Italy and Spain, as well as introductory handbooks to global historic demography such as A Concise History of the World Population.

The main argument of A Short History of Migration is that migration is not a problem or an exceptional situation, but rather, a common strategy to improve one’s living conditions as well as a force that contributes to global economic development. Illegal migration is, according to Livi-Bacci, the result of inadequate migration policies, which normally regard migration as a temporary fix to a labour shortage. A Short History of Migration is “an attempt to bring together reflections, insights and notes” (p. x) that Livi-Bacci has collected during his career. The disparate origins of the different chapters of the book can be noticed, as the style and content differs significantly, though they are satisfactorily connected.

The book is divided into nine chapters. In the three initial chapters, Livi-Bacci offers some theoretical background. In the following three, he explores the migratory history of Europe in the last five centuries. The three final chapters examine the link between migration and globalization and offer some reflections on migratory policies and how migration is commonly perceived, as well as suggestions to improve the effectiveness of such policies. The first chapter analyses briefly some of the causes, circumstances, and consequences of the early human expansion and waves of organized migration like the German Drang nach Osten, the colonization of North America, and the settlement of Asiatic Russia. According to Livi-Bacci, these migrations were not caused by scarcity in their places of origin, but by the favourable conditions and the advantages settlers would find in the new lands.

In the second chapter, the author introduces the concept of “reproductive fitness” (p. 15), a mathematical formula that combines mortality, fertility, and population flows to assess the Evolution groups. Groups like the French Canadians were particularly successful thanks to the “settler effect” (p. 18): migrant families in rural areas tended to produce numerous offspring (pioneer couples had, on average, 28 grandchildren) that allowed them to claim more land and expand the colony. The third chapter explores the efforts of polities to promote migration in order to expand or protect their territory, offering examples from Medieval and Early-Modern Europe.

Chapter four covers the “consistent flow of transoceanic migration” (p. 35) between Europe and America from the beginning of European colonization 1500 until the Industrial Revolution (1800), as well as other movements of population within Europe, that had become a “significant exporter of human resources” (p. 43). Improvements in the speed, frequency and security of transportation by land and sea increased mobility and facilitated the emergence of seasonal labour markets. Cities in Europe attracted migrants from rural areas, and the number and percentage of urban population in the continent rose significantly. Even though the impact of European migration in America was dramatic, numerically it was “modest” (p. 44): only one million per century.

In the fifth chapter, Livi-Bacci narrates the great European flow to the Americas, which started in the nineteenth century, and lasted until the First World War (1914). More than 50 million Europeans crossed the Atlantic during the period. The three interconnected and “fundamental forces” explaining this process are “demographic growth, agricultural revolution, and globalization” (p. 52): improvements in agricultural productivity and the decline of mortality rates caused a surplus of impoverished rural population who, thanks to the improvement of transportation, sought a better life in cities, other regions of Europe, and overseas. In the following chapter, the author explains how this trend reversed between 1914 and 2010. The demographic transition ended, and Europe entered a period of low fertility and low mortality. “Differential paths of development” (p. 68) in the continent created economic and demographic disparities in the continent that encouraged internal migration from East to West, and from South to North. The demand for unskilled labour caused an increase of immigration from poorer Third World countries since the 1980s. Its impact has been significant, preventing European countries from economic stagnation and demographic decline.

Chapter seven analyses the three phases of globalization and its impact on the population of the Americas, which correspond roughly with the chronology of the three previous chapters: the early phase of colonialism, the Industrial Revolution of the nineteenth century, and the period from the end of World War II to the present. Livi-Bacci presents migration as one of the spheres of globalization. In colonial America it took three different shapes: political (elites), economic (merchants, settlers and adventurers), and forced labour (slaves). In the nineteenth century, Europeans migrated to the Americas mostly as urban workers. Slowly, the United States and other American countries implemented policies to supervise, channel, restrict, and control emigration, especially after the First World War. The Americas attracted European migrants up until the 1970s, when the Southern European economies caught up with their South American counterparts. The eighth chapter reflects on the present circumstances of immigration to Europe by looking at the role that migration has played historically in globalization, the current demographic situation in Europe, and the “political and philosophical bases” (p. 90) of immigration policies. According to Livi-Bacci, the period of history characterized by “active policies to attract immigrants” (p. 89) has ended. Contrarily, migration today is seen as a “phenomenon to limit and regulate” (p. 90), “an uncontrollable agent of social change” (p.89). The author proposes his own solutions, which we will briefly discuss below. The last chapter reviews in detail some of the policies that wealthy countries have enforced in the last fifty years to limit and regulate migration. Most of these policies are directed towards facilitating the presence of temporary workers while preventing permanent migration. Livi-Bacci thinks these measures are doomed to fail, as migrants would try to find a way to stay, either legally or illegally. He provides some historical examples of this, as the “Bracero Program” (p. 114) implemented in the 1940s between US and Mexico, or the situation of Turkish guest workers in Germany. Finally, Livi- Bacci lists some of the international organizations that address migration (the International Global Migration Facility and the International Organization of Migration, among others), and explains why they are, in his opinion, ineffective. He proposes the creation of a World Migration Organization to protect the rights of the migrants and to prevent deaths at sea, abuses and misinformation, although he considers this possibility somewhat “utopian,” despite being “urgent” (p. 123).

A Short History of Migration is a concise, stimulating, and readable book. It has considerable strengths that make it an indispensable work for all those who are interested in demography, migration, and European and American history. Certainly, the reader needs to have some essential background knowledge of late-modern Western history in order not to get lost with all the historical references. Nevertheless, Livi-Bacci’s lively and straightforward style make A Short History of Migration an accessible book even for non-specialized audiences. The last two chapters address the effectiveness of current migration policies and are also an interesting read for everybody concerned with politics and migration.

The author offers a long-term perspective that allows us to comprehend the different phases of the migration flows from, within, and to Europe, written in a way that is both detailed and succinct. This analytical longue durée approach is supported by extensive, varied, and up-to-date bibliographical references, a consistent use of figures and statistics, and by the introduction of some theoretical tools and concepts explained in a clear and simple manner. These formulas and concepts can be useful for scholars and researchers who want to analyse movements of population. The nine tables included in an appendix are especially helpful for history students and researchers, allowing the readers to extract their own conclusions and make connections for further investigation.

Livi-Bacci provides riveting comparisons between the causes and consequences of modern migrations and European emigration in the nineteenth century. This allows him to draw interesting conclusions about the interconnection of economic globalization, migration, and development: the gap between rich and poor countries encourages migration, but “social and educational advance” (p. 93) push in the opposite direction, as they increase the perceived indirect costs of migration. Another eye-opening comparison is between the death-rate of slaves in the Transatlantic routes during colonial times and the migrants trying to cross the Mediterranean to reach Europe: two percent. The figure is meant to emphasize the necessity to regulate migration in a way that protects the rights and dignity of the migrants, whose deaths at sea could be easily avoided.

A Short History of Migration does not only narrate and investigate the past: it offers interesting reflections on how migration is perceived by the European public and how migration policies are designed and implemented. Most interestingly, in the last two chapters the author analyses the present demographic and migratory landscape in Europe and proposes alternatives and possible solutions. Livi-Bacci is not an idealist, he thinks migration needs to be controlled. However, he advocates for a change in philosophy: Europe should not regard migrants as temporary workers who would cover gaps in the labour market, but rather as integral members of society whose well-being should be assured. Migration policies thus need not to only evaluate working qualifications, but also to assess the human qualities of the future newcomers that “favour inclusion in the long term” (p. 105). Immigration of foreign students, particularly, should be encouraged, as it provides a reserve labour supply. Livi-Bacci is also worried about the rights and dignity of the migrants. He proposes changes in migration policies, not only to better Europe and prevent demographic decline, but also to protect migrants from misinformation, human trafficking, and death.

The main problem with A Short History of Migration is the title. Livi-Bacci does not claim anywhere in the book that his intention is to provide a coherent and consistent summary of the global history of migration. Instead, he synthesizes brilliantly the migratory history of Europe and the colonial Americas. The Eurocentrism of the book is deliberate and intentional. However, the back cover suggests that the book “provides a succinct and masterly overview of the history of migration, from the earliest movements of human beings out of Africa into Asia and Europe to the present day.” This may disappoint those readers who are indeed looking for a global migration history book. The attention paid to the different groups of population who migrated to the Americas is distributed unequally: Europeans receive more coverage than African slaves or Asian indentured workers. The absence of a bibliography at the end of the book is another error of the editors, which is an essential section in any history book, especially if it is an introductory text, as readers may want to expand their knowledge.

Another potential limitation of the book is its macro-historical perspective. Even though such approach is enjoyable and intriguing for readers who already have some background knowledge in History, it may alienate the general public. Livi-Bacci’s narrative leaves no space for anecdotes, particular examples, or personal accounts that could engage the non-specialized reader. The author is a demographer, so he is accustomed to talk about population as numbers and figures. This style risks de-humanizing migrants, whose individual lives, decisions, and constraints are lost in the stream of statistics. Additionally, even though Livi-Bacci’s policy suggestions are appealing and well-argued, he could be accused of being politically biased. “Conservatives are unlikely to embrace these proposals” (p. 106), he explains in the eighth chapter. As a result, his work could be discarded by other academics or policy-makers just because he appears to be left-leaning. Finally, A Short History of Migration appears to be a collection of essays rather than a coherent history book. Livi-Bacci does an excellent job in linking some of the topics addressed in the different chapters to a certain extent, but the style and content of the first three chapters and the two latter ones differs greatly. Whereas the book begins with a set of theoretical tools for historical research, it ends with an analysis of the present policies of the migration receiving countries. The connection between the beginning and the end of the book is rather loose, though the condensed and systematic exploration of Europe’s migratory history in the central chapters offers several associations.

In relation with other recent historical accounts of migration in the market, the main difference between them and A Short History of Migration is Livi-Bacci’s analytical approach. Works like Patrick Manning’s Migration in World History (Routledge, 2005) or Michael H. Fisher’s Migration: A World History (Oxford University Press, 2014) follow a chronological style, without the theoretical introduction or the reflections about current events and policies present in Livi-Bacci’s book. Those two books, however, explore migration history from the Prehistory to the present, beyond the Euroamerican context, offering a broader, global overview, both temporally and spatially. On the contrary, Christiane Harzig and Dirk Hoerder’s What is Migration History? (Polity, 2009) offers a shorter history of migration but a more extensive theoretical section, comparing the different understandings of migration by historians in the last century, as it serves as an introduction to the field to prospective history students. Livi-Bacci does not systematically analyse the development of the field of migration history, but he offers a good synthesis of the writings of other authors throughout his book, quoting select paragraphs.

On the whole, A Short History of Migration is a remarkable book, combining both theories and historical facts, offering revealing connections between past and present, and providing a diagnosis of the shortcomings of current migration policies. Unfortunately, the title of the book is misleading, as it focuses mostly on the history of European trans-Atlantic migration in the last five centuries. If it was called A Short History of Modern European Migration, it would deliver exactly what it promises. In spite of this, Livi-Bacci’s book is an interesting and engaging read, offering in less than 125 pages valuable theoretical insights, a well-written synthesis of Europe’s migratory history supported by numerical and statistical data, and a perceptive interpretation of the role of migration in today’s Europe.

Alejandro Salamanca Rodríguez – Carl von Ossietzky Universität Oldenburg.

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Castillos de Teruel. Historia y Patrimonio – ARCT (C-HHT)

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Castillo de Mora de Rubielos./ Imagen cedida por Shutterstock. https://www.lugaresconhistoria.com/

ASOCIACION 2018 Castillos de Teruel1 Horizontes Históricos | UFS | 2018ASOCIACIÓN para la Recuperación de los Castillos Turolenses [ARTC]. Castillos de Teruel. Historia y Patrimonio. (Actas de las I Jornadas Castillos de Teruel: de la puesta en valor a la didáctica). Mora de Rubielos:  Qualcina, 2018. 95p. Resenha de: JIMÉNEZ, Miguel Ángel Pallarés. Clío – History and History Teaching, Zaragoza, n.44, 2018.

La provincia de Teruel, la más meridional de las tres que conforman la Comunidad Autónoma de Aragón, ha sido escenario de numerosos conflictos bélicos desde la Alta Edad Media hasta la última Guerra Civil, por lo que la arquitectura defensiva ha sido una constante de su paisaje humano; de hecho, están documentadosen su territorioalrededor de 600 puntos fortificados datados entre el siglo X al XIX, desde la época andalusí hasta las Guerras Carlistas. Son por tanto uno de los elementos más característicos del patrimonio histórico y cultural turolense, y en su restauración y conservación se ha realizado un gran esfuerzo en las últimas décadas, con vistas a su preservación y a su rentabilización como recurso económico, dado el interés que estas construcciones suscitan en la sociedad actual.

De ahí que la Asociación para la Recuperación de los Castillos Turolenses (ARCATUR), Qualcina. Arqueología, Cultura y Patrimonio, y Acrótera Gestión del Patrimonio, promovieran las “I Jornadas Castillos de Teruel”, celebradas en la fortaleza de Mora de Rubielos los días 19 y 20 de octubre de 2018, para tratar sobre la puesta en valor de estos edificios, que suponen los principales recursos turístico-culturales de las localidades donde se levantan; de manera muy acertada, las actas de dicho encuentro fueron distribuidas allí entre los asistentes, de manera que éstos pudieron contar in situ con el material expuesto en las ponencias, reunido en el libro que aquí reseñamos. Esto es algo muy a tener en cuenta, puesto que estamos acostumbrados a que los trabajos presentados a coloquios o congresos relacionados con las Ciencias Sociales tarden en ser publicados un tiempo(a veces más dilatado que lo que sería recomendable), por lo que se pierde frescura y novedad cuando pueden ser por fin leídos.

Además, Castillos de Teruel. Historia y Patrimonio, libro que recoge dichas actas yque ha sido editado con la ayuda del Gobierno de Aragón, la Diputación de Teruel, el Grupo de Investigación ARGOS de la Universidad de Zaragoza y los distintos entes municipales que poseen fortificaciones y aparecen en el libro, cuenta con un formato muy manejable y atractivo, con una tipografía amable y un destacado apartado gráfico, con numerosas fotografías actuales a color, mapas de situación del Instituto Geográfico Nacional; y cartografía base, planos y plantas de las distintas fortalezas, materiales que en algunas ocasiones son antiguos, como lo son algunos grabados y fotografías en blanco y negro que se incluyen. Para una mayor utilidad de la publicación, se han incluido al final de cada capítulo dos prácticos apartados: “Para saber más”, donde se cita una sucinta bibliografía relacionada con cada castillo; e “Información útil”, donde se muestran los horarios de apertura para visitar dichos edificios y los teléfonos de contacto de quienes se encargan de mostrarlos.

Tras una breve presentación a cargo de Rubén Sáez Abad, presidente de ARCATUR, donde se advierte del variado origen y tipología de la arquitectura castral turolense, y se confirma la aspiración de que sean motor de desarrollo en los lugares donde se asientan; se da paso a una visión de conjunto firmada por dicho autor, Jesús Franco y Javier Ibáñez, profesores de Didáctica de las Ciencias Sociales e Historia del Arte de la Universidad de Zaragoza, respectivamente; en este capítulo se hace un repaso de las distintas fortificaciones turolenses, agrupados por comarcas, según la relación de castillos y su localización, registrada en la Orden de 17 de abril de 2006 del Departamento de Educación, Cultura y Deporte del Gobierno de Aragón.

Se ofrece a continuación una visión actualizada de la información histórica, patrimonial y turística de nueve fortalezas punteras de la provincia, que tienen en común que son visitables tras dicho esfuerzo restaurador y el pertinente acondicionamiento de sus instalaciones: a cargo del citado Javier Ibáñez, los castillos de Mora de Rubielos y Alcalá de la Selva, en el segundo caso en colaboración de José F. Casabona; el dePuertomingalvo, de estos dos autores y Ruben Sáez; el de Castellote, firmado por Casabona; el de Albarracín, de Antonio Jiménez Martínez; el de Peracense, de Jesús Franco y Antonio Hernández Pardos; el de Alcañiz, de José Antonio Benavente; el de Albalate del Arzobispo, de Marta Clavería; y el de Valderrobres, de Manuel Siurana.

Cierra el libro un capítulo que redondea la obra, “Interpretación y didáctica en recintos fortificados”, escrito por Jesús Franco y Darío Español, también profesor de Didáctica de las Ciencias Sociales de la Universidad de Zaragoza. Exponen estos autores que se lleva un tiempo trabajando en la dinamización de una serie de castillos de Teruel y, para que el esfuerzo sea óptimo, el patrimonio ha de ser gestionado correctamente (sea desde ámbitos públicos o privados), sin perder el hilo de la definición de los objetivos que se pretenden, a saber: la investigación, la conservación y la comunicación global del patrimonio, punto último que pretende la notoriedad (que nos conozcan y sepan qué actividades realizamos), influir en la imagen mental que los demás tienen de nuestro patrimonio y un interés comercial.

Aparte del esfuerzo divulgador, que no asegura la asimilación de la información, la educación patrimonial tiene que basarse en la interpretación y la didáctica. El hecho de poder visitar una de estas fortalezas ya tiene un potencial didáctico muy potente,pero no suficiente, por lo que se deberían establecer actividades interpretativas que permitieran ampliar conocimientos, a la vez que aportaran valores de conservación y respeto al patrimonio; de hecho, los recursos informativos pasivos (paneles, maquetas, visitas o recursos audiovisuales o informáticos en lo que no hay opción de interacción) son mucho menos efectivos que los activos (talleres, recreación de procesos, juegos de simulación, representaciones, realidad virtual, etc.). Por ello, Franco y Español proponen dos de los activos como herramientas poderosas de dinamización e interpretación de los recintos fortificados turolenses: la recreación histórica (o “reenactment”) y los recursos digitales, que permitan la reconstrucción de escenas históricas, la recreación y restitución de espacios patrimoniales, geolocalizadores, etc.; siguiendo el modelo estadounidense de los museos al aire libre, que fue adoptado muy pronto en Centroeuropa. Para los autores, la didáctica del patrimonio tiene que considerar a los castillos una fuente primaria a analizar, con una carga de valores identitarios y empáticos vinculada a la localidad donde se halla, lo que es palpable en el territorio turolense; siendo la interpretación el instrumento adecuado para decodificar la realidad patrimonial. Si los modelos son adecuados y creativos, bien diseñado el programa didáctico y la difusión, la atracción turística estaría asegurada, además de servir de acicate a la investigación y divulgación de la historia de dichos castillos y su territorio.

Miguel Ángel Pallarés Jiménez – Universidad de Zaragoza, Grupo de investigación ARGOS. E-mail: miguelap@unizar.es

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O nascimento do Brasil e outros ensaios – OLIVEIRA (Tempo)

OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Resenha de GARCIA, Elisa Frühauf. O nascimento do Brasil e outros ensaios. Tempo, v.24, n.1, Niterói jan./abr. 2018.

Em O nascimento do Brasil e outros ensaios, João Pacheco de Oliveira reúne nove textos elaborados nos últimos anos, originalmente publicados como artigos em coletâneas e periódicos ou apresentados em congressos e afins. Organizados em formato de livro, discutem temas relacionados aos povos indígenas que, em alguma medida, representam a trajetória do autor e suas opções epistemológicas. Professor titular de antropologia do Museu Nacional (UFRJ) desde 1997 e um dos mais influentes antropólogos de sua geração, João Pacheco começou seu percurso profissional realizando pesquisa de campo entre os Ticuna na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). Dedicou-se também ao estudo de políticas públicas e, desde meados da década de 1990, vem desenvolvendo pesquisas sobre os povos indígenas do Nordeste. Lançado em 2016, o livro recebeu da ANPOCS em 2017 o prêmio de Melhor Obra Científica.

Os capítulos refletem as preocupações que o autor demonstrou já no início de sua trajetória com o estudo da condição indígena a partir do colonialismo e das interações entre os diferentes segmentos sociais. O colonialismo, neste caso, não se restringe ao sentido mais utilizado pelos historiadores, referindo-se ao período no qual o Brasil foi parte do império português. Trata-se de uma discussão mais ampla sobre a relação do Estado com os povos indígenas, marcada por diferentes recursos jurídicos e administrativos que limitavam a capacidade civil dos nativos. Tais dispositivos vigoraram oficialmente até a extinção da tutela pela Constituição de 1988. A implementação da mudança, contudo, encontrou uma série de entraves. Como demonstrado no capítulo 8, “Sem a tutela, uma nova moldura de nação”, os marcos legais não substituem facilmente culturas institucionais arraigadas. Alguns órgãos administrativos, sobretudo a Funai, mantiveram na prática a vigência de categorias e percepções tributárias da tutela.

A análise da atuação dos órgãos relacionados à questão indígena, considerando a legislação vigente, as culturas administrativas e as ações de funcionários orientadas pelo senso comum, nos conduz a uma questão central, a definição de quem é índio. O tema é complexo: a condição indígena no país está marcada não apenas por diferenças culturais dos povos entre si e destes em relação à sociedade envolvente, mas por aspectos históricos. Se o tema perpassa toda a trajetória de João Pacheco, foi com o trabalho sobre os povos indígenas do Nordeste que suas reflexões nesta linha adquiriram maior centralidade e densidade conceitual. O capítulo 5, “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, é uma referência imprescindível nos estudos de antropólogos e historiadores sobre a temática indígena. Fruto de uma conferência originalmente apresentada no concurso para professor titular no Museu Nacional e já publicado em outras ocasiões, contribuiu para a construção de um campo de pesquisa que vem se desenvolvendo com bastante vivacidade desde então (Oliveira, 1999 e 2011).

Ao abordar os povos indígenas do Nordeste, João Pacheco enfrentou o desafio teórico-metodológico de trabalhar com uma população cujo contato com a sociedade envolvente remete aos primórdios da construção do Brasil colonial no século XVI. Suas interações com grupos de diversas origens, tanto europeias quanto africanas, foram constantes desde então e eles não se enquadram na definição de índio caracterizada por uma alteridade cultural radical. Com frequência, pesquisadores e agentes estatais alegavam sua condição de “misturados” como desqualificadora de reivindicações políticas e de sua legitimidade como um objeto de pesquisa etnológica. Diante disso, o autor optou por problematizar a trajetória dessas populações. Apresentou os diferentes “momentos de mistura” gerados pelas políticas administrativas implementadas em um primeiro momento pelo Estado colonial português e, já no século XIX, pelo Império do Brasil. Evitou, assim, a condição indígena entendida como uma essência e forneceu os elementos conceituais para que ela fosse percebida em sua historicidade, relacionada a situações específicas.

O autor elenca três momentos fundamentais de “mistura”: os aldeamentos promovidos pelo Estado português a partir de meados do século XVI; a aplicação da legislação pombalina iniciada na década de 1750 e a dissolução das aldeias no século XIX. No primeiro momento, os índios foram sujeitos a uma política administrativa que lhes adjudicou um determinado território onde deveriam passar a viver após a inserção na sociedade colonial: as aldeias missionárias. João Pacheco não interpreta tais espaços apenas como ambientes que ameaçavam, ou mesmo extinguiam, a condição indígena a partir da “aculturação”, como então se pensava nos estudos históricos desenvolvidos no país. As aldeias são apresentadas como propulsoras da formação de novas identidades, explicadas a partir da noção de “territorialização”. Conceito-chave para os estudos nessa linha, remete ao processo pelo qual os índios, objeto de uma política colonial que os circunscreve a determinado espaço, se apropriam daquele ambiente, reformulando suas políticas identitárias em uma situação específica. O conceito fez parte das reflexões que possibilitaram uma mudança fundamental na perspectiva sobre as aldeias missionárias no Brasil colonial, cujo trabalho mais influente no âmbito historiográfico foi o de Maria Regina Celestino de Almeida (2003).

Suas reflexões a partir de uma antropologia histórica o levaram também a enfocar a questão indígena em uma perspectiva de longa duração. Para tanto, articula a análise das diversas imagens que hoje manejamos sobre o tema, em geral desencontradas e idealizadas, com seus usos e construções em momentos específicos. Os dois primeiros capítulos, “O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico” e “As mortes do indígena no Império do Brasil: o indianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos”, abordam visões estabelecidas sobre o lugar das populações nativas em nossa história. Retomando os diferentes momentos das relações dos índios com os europeus no século XVI e analisando os processos artísticos do indianismo do século XIX, a ideia é entender e questionar a consolidação de uma percepção da história do Brasil que deliberadamente desconsiderou os povos nativos. Como demonstra o autor, a mudança recente de paradigma, com sua inclusão como agentes importantes, decisivos em vários contextos, é fundamental para explicarmos que foi a apropriação violenta de seus recursos (sua força de trabalho, suas terras e seus conhecimentos) que possibilitou a construção do Brasil. Esse processo, por sua vez, não desencadeou a extinção física e cultural dos índios, mas sua incorporação à sociedade envolvente em uma condição subordinada. Tal lógica não está restrita aos primeiros contatos, ela se reproduziu ao longo do tempo em diferentes situações à medida que se avançava “sertão adentro”.

A expansão da sociedade envolvente sobre os territórios indígenas articula-se a uma noção fundamental para a história do Brasil: a fronteira. Nos capítulos três e quatro, “A conquista do vale amazônico: fronteira, mercado internacional e modalidades de trabalho compulsório” e “Narrativas e imagens sobre povos indígenas e Amazônia: uma perspectiva processual de fronteira”, o autor analisa tal expansão vinculada à extração da borracha. Para tanto, evita a ideia de uma fronteira naturalizada, que refletiria uma determinada realidade. Ao contrário, utiliza o termo como uma categoria analítica para pensar a subordinação daquela região específica a interesses econômicos externos, com grande peso internacional. Enfatiza como as análises anteriores desconsideraram a presença e a perspectiva dos povos indígenas que habitavam aqueles espaços, especialmente sua atuação em determinados tipos de seringais. A proposta é interpretar a história da região partindo das relações concretas que lá existiam, considerando sobretudo os impactos do “apogeu” da extração da borracha nas dinâmicas locais.

A ausência dos índios nas narrativas históricas, apresentados como meros “remanescentes” que seriam inexoravelmente “extintos” pela expansão da sociedade envolvente, ou seja, não teriam um futuro como um grupo diferenciado dentro da “nação” brasileira, foi questionada pelos resultados dos últimos censos. Verificou-se, especialmente a partir do realizado no ano 2000, um crescimento do número de índios muito superior aos demais segmentos da população (IBGE, 2005). Porém, como demonstrado no capítulo seis, “Mensurando alteridades, estabelecendo direitos: práticas e saberes governamentais na criação das fronteiras étnicas”, os resultados dos últimos recenseamentos devem ser interpretados em perspectiva histórica. Longe de serem um mero reflexo da composição demográfica do Brasil, refletem paradigmas e configurações de poder específicos. A mudança nas últimas contagens espelha, entre outros aspectos, as disputas no campo indigenista e as iniciativas desenvolvidas pelos próprios índios. Em grande parte, foram seus vínculos identitários e suas ações políticas que questionaram os prognósticos sobre seu “desaparecimento” iminente. Relacionam-se, também, à disputa por direitos, pois os dados oficiais são documentos fundamentais na elaboração de políticas públicas e na distribuição de recursos.

O livro termina com a abordagem de uma categoria muito empregada em diferentes contextos na relação do Estado com as populações indígenas: a “pacificação”. A reflexão foi ocasionada pelas políticas de segurança pública desenvolvidas no Rio de Janeiro a partir de 2008. Na ocasião, uma operação militar na comunidade Santa Marta era apresentada como o início de uma “nova” presença do Estado nestes espaços, com promessas de combate ao tráfico e do estabelecimento de uma série de serviços de atendimento à população. O autor parte de um desconforto compartilhado por todos aqueles que conhecem minimamente a longa e controversa história da categoria “pacificação”, utilizada em diferentes contextos, desde o período colonial, para lidar com a alteridade indígena de maneira subalterna. A opção por sua recuperação na contemporaneidade em um contexto urbano revela a permanência de um paradigma estigmatizador das populações que habitam as comunidades na construção das políticas públicas de segurança. Denota ainda a presença de antigas práticas como referencial para iniciativas apresentadas como “novas” e nos leva a suspeitar em que medida elas representam de fato uma ruptura com um passado desairoso.

Os capítulos, produzidos em diferentes ocasiões, como já mencionado, foram articulados por um prefácio esclarecedor, no qual o autor retoma suas principais preocupações e contextualiza a leitura. Trata-se de uma publicação que deve ser lida por todos aqueles interessados na história no Brasil. Os temas tratados e a metodologia utilizada nos recordam que a história não é linear desde nenhuma perspectiva. Os povos indígenas do Brasil não têm uma trajetória única, e o que eles são hoje se vincula à maneira como se relacionaram, e foram afetados, pelas políticas estatais e pelas ações de diferentes agentes sociais. Vincula-se, ainda, às suas expectativas de futuro e às possibilidades apresentadas pelo tratamento que o Estado e a sociedade civil dão ao tema. Afinal, como João Pacheco enfatiza ao longo do livro, a questão indígena está intrinsecamente relacionada às discussões sobre a formação da “nação brasileira” e de suas hierarquias sociais. Ao não nos questionarmos sobre as origens das interpretações e das categorias que utilizamos, corremos o risco de naturalizarmos os projetos e sentidos daqueles que, baseados em seus próprios interesses e convicções, desenharam uma história do Brasil ancorada no eurocentrismo.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. [ Links ]

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000. Rio de Janeiro, 2005. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. [ Links ]

OLIVEIRA, João Pacheco (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contracapa , 2011. [ Links ]

Elisa Frühauf Garcia – Instituto de História, Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: elisa.fruhauf.garcia@gmail.br.

Cidade do século XVIII / Urbana / 2018

Nas histórias da arte, da arquitetura e da cidade, toda denominação que se caracterize por uma identificação temporal ou estilística corre o risco de ser generalista e superficial. Assim, há algumas décadas, temos consciência dos proveitos mas também dos limites de algumas classificações como: a “cidade medieval”, a “cidade ideal”, a “cidade barroca”, a “cidade iluminista” etc., tanto pelo que resta excluído do nome quanto pelo que pode vir a residir dentro dele, quase sempre arbitrariamente. Acrescente-se, ainda, que uma denominação geralmente não oferece uma identidade semântica homogênea ou unívoca, uma concordância absoluta de entendimento para aqueles que se interessam por ela – essa cidade reificada por um epíteto ou pelo número de um século que, a bem da verdade e do rigor, só tem começo e fim nos calendários.

Advertência epistemológica necessária. Nada mais complexo e irredutível que a cidade, em que tantas são suas ciências, suas geografias, seus contextos, seus olhares. Assim, este Dossiê sobre a cidade do século XVIII buscou se esquivar daqueles lugares metodológicos tradicionais, conquanto tenham sido fundamentais para a historiografia há mais de um século. Em vez de se encerrar no nome, ilusoriamente satisfeito pela comodidade positiva de uma classificação, procuramos nos abrir para uma diversidade representativa de abordagens, abrigadas sob um arco temporal notoriamente organizacional; sobretudo em se tratando do século XVIII, um período marcado por transformações em todos os âmbitos mais relevantes da civilização: ciência, política, religião, filosofia, estética, artes, tecnologia etc., transformações essas que não começaram nem terminaram dentro de suas fronteiras temporais. Ademais, as dinâmicas constitutivas da cidade compreendem processos de longa duração, principalmente antes da modernização industrial; o que implica, muitas das vezes, ter que reconhecer e que considerar modelos, práticas e conceitos vigentes muito antes de seu tempo estrito ou que dele se tornaram contemporâneos por sua eficácia e sua adequação.

Desta feita, um dossiê sobre a cidade do século XVIII não se fez apenas oportuno, quanto também desafiador. Poucos períodos da história apresentam cidades e pensamentos sobre a arte de edificá-las tão diversos quanto o período em tela. Isto nos conduziu a uma premissa: mostrar a diversidade desse conjunto de empresas e histórias setecentistas, congregando pesquisas recentes e reflexões que nos permitissem almejar não o esgotamento de sua representação, mas a evidência de sua rica e imensa complexidade.

Nas últimas décadas, a história da cidade no século XVIII recebeu uma contribuição bastante significativa. Várias foram as circunstâncias desse crescimento, especialmente em nosso ambiente científico: o crescimento e a consolidação da pós-graduação em áreas de arquitetura e urbanismo, história, geografia etc., a realização frequente dos Seminários sobre história da cidade e do urbanismo (SHCU) desde 1990, as pesquisas sobre a arte e a cidade dita “barroca” nos anos de 1980 e 1990, impulsionadas pela Revista Barroco e também pela tradição das pesquisas do IPHAN sobre a arquitetura e as cidades coloniais, a comemoração das navegações e expansões portuguesas (SCDP), em que se empreenderam várias pesquisas e publicações individuais e coletivas, uma conexão maior e mais efetiva entre pesquisadores do Brasil, da Europa e também de outros países americanos, uma maior acessibilidade a arquivos e documentos históricos, tratados, atas, termos, ordens régias, mapas e desenhos, aqui e alhures.

Favorecidas por essas circunstâncias, muitas pesquisas recentes dialogaram com estudos anteriores sobre a urbanização setecentista luso-brasileira, como aqueles de Murillo Marx, Nestor Goulart Reis Filho, Sylvio de Vasconcellos, Paulo Santos e outros. Durante o século XX, passamos de um diagnóstico inicial de “desleixo”, “espontaneidade”, “irregularidade” e “desordem”, assim como se encontravam nas teorias de Sérgio Buarque de Holanda, Robert Smith e seguidores, para uma compreensão que não apenas reviu e apontou críticas a esses diagnósticos, como também soube reconhecer virtudes várias de conveniência, adequação, decoro, formosura, comodidade, ordem e regularidade correspondentes ao tempo mesmo daquelas cidades. E conseguimos, afinal, superar uma compreensão histórica que dependia de uma visão moderna de desenho e “planejamento urbano” assentes quase que exclusivamente em traçados geométricos estritamente retilíneos.

Assim, chegamos ao século XXI podendo confirmar virtudes de uma escola portuguesa (ou já luso-brasileira) de urbanismo que primava antes por “princípios”, nas palavras de Eduardo Horta Correia, do que por regras e modelos fixos distanciados das circunstâncias efetivas de ocupação e assentamento; uma escola povoadora de construção e participação coletivas, dinamizada por procedimentos e preceitos que eram levados a cabo por uma rica e diversa coleção de “agentes povoadores: desde letrados que haviam frequentado as aulas de arquitetura e engenharia militar na metrópole e na colônia, passando por oficiais da administração pública como governadores, vereadores, juízes, arruadores do conselho, ouvidores etc., até os mestres e artífices que compartilhavam saberes e práticas consolidados em costumes construtivos seculares – todos eles dedicados, entre outras providências públicas, ao aumento e à conservação de povoações.

Há algum tempo, a Revista Urbana vem organizando uma série de dossiês temáticos destinados a contemplar a complexidade de pensamentos, práticas, problemas, projetos e princípios que nortearam a compreensão e a construção das cidades. Um empreendimento admirável, facilitado pelo acesso eletrônico com o qual se disponibiliza a revista, que vem dando frutos importantes para a ciência do urbanismo em nossos ambientes de discussão.

Este novo dossiê traz textos diversos e muito interessantes para a compreensão das cidades no século XVIII. Há aqueles que se dedicaram a objetos urbanos muito precisos, como a povoação de Cabo Verde, no artigo de Carolina de Almeida e Renata Baesso, ou aos projetos de reforma e aumento da cidade de Madri, no texto de Concepción Aparicio; houve quem reavivasse a discussão com objetos tradicionais: historiadores, como no texto de Sabrina Melo sobre Robert Smith, ou conjuntos urbanos de fato, como no artigo de Simona Costa sobre as vilas de Minas Gerais; ou apontasse renovações metodológicas a partir de fontes primárias como as das décimas urbanas e dos censos, como na pesquisa coletiva de Beatriz Bueno, Nádia de Moura, Esdras Arraes e Diogo Borsoi, cotejando-as em várias povoações. Rodrigo Baeta recuperou a discussão sobre a cidade hispano-americana e Sérgio Fagerlande contemplou a vida urbana em torno às casas de ópera na cidade do Rio de Janeiro.

Como era nosso intuito, desde a chamada de trabalhos, o dossiê que o leitor tem agora à sua disposição é uma amostragem rica e representativa do inelutável processo de compreensão da urbanização setecentista, um dos meios possíveis de se habitar a história e também aquelas cidades. Oxalá seja o primeiro de muitos. Boa leitura!

Rodrigo Almeida Bastos – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: rodrigobastos.arq@gmail.com


BASTOS, Rodrigo Almeida. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.1, jan / abr, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Não é só a torcida organizada: o que os torcedores organizados têm a dizer sobre a violência no futebol? | Marcelo Fadori Soares Palhares e Gisele Maria Schwartz

Introdução

A violência no futebol tem sido um dos principais temas de pesquisas acadêmicas nas áreas das ciências humanas e sociais dos últimos vinte anos no Brasil, sobretudo no que se refere aos confrontos envolvendo torcedores organizados. 5 Alguns trabalhos e autores se tornaram referência nesse tema, por exemplo, a produção de Maurício Murad e Luiz Henrique de Toledo. Na esteira de um tema com grande potencial, Marcelo Palhares e Gisele Schwartz apresentam o livro Não é só a torcida organizada: o que os torcedores organizados têm a dizer sobre a violência no futebol?

Nesta pesquisa, os autores apresentam novas perspectivas acerca do estudo desta relação tensa entre o torcer e a violência, a fim de destacar as motivações destes agentes para tal ocorrência 6. Para isso, Palhares e Schwartz descarregam grande esforço na coleta de informações referentes aos episódios envolvendo violência nos estádios, aplicando uma metodologia embasada em depoimentos retirados de entrevistas envolvendo membros de algumas torcidas organizadas do São Paulo Futebol Clube7 que visa detectar aspectos linguísticos regulares que tipificam a definição de “violência no futebol brasileiro”8. Com efeito, o intuito das entrevistas e das demais ferramentas apresentadas para interpretação das falas dos entrevistados (ricamente aplicada no decorrer do livro) é identificar quais embasamentos e táticas argumentativas estão presentes nas falas dos torcedores para poder, enfim, compreender o que é violência para determinado grupo. Leia Mais

La educación histórica ante el reto de las competencias. Métodos, recursos y enfoques de enseñanza – MIRALLES MARTÍNEZ; GÓMEZ CARRASCO (C-HHT)

MIRALLES MARTÍNEZ, Pedro; GÓMEZ CARRASCO, Cosme Jesús (coords.). La educación histórica ante el reto de las competencias. Métodos, recursos y enfoques de enseñanza. Barcelona: Octaedro, colección Universidad, 2018. Resenha de: VALLESPÍN DOMÍNGUEZ, Enrique N. Clío – History and History Teaching, Zaragoza, n.44, 2018.

Desde la definición de competencias básicas o competencias clave (key competences) realizada por la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE) en 2003, los profesionales de la educación han reflexionado y escrito abundantemente sobre esta cuestión considerada fundamental para el ejercicio de la ciudadanía. Más allá de las competencias básicas, las reflexiones sobre la propia naturaleza del pensamiento histórico y la función de la historia escolar como motor del desarrollo de destrezas propias de este pensamiento histórico impulsadas desde el ámbito estadounidense y canadiense, la reflexión sobre la creación de la memoria y la conciencia histórica y el tratamiento de los temas conflictivos o controvertidos en el aula, aspectos trabajados desde el ámbito europeo, etc. han llevado en los últimos años a considerar una serie de competencias especificas vinculadas al aprendizaje de la historia. La multicausalidad, el cambio y la permanencia, la relevancia y significación histórica, la comprensión del contexto o perspectiva… son entre otras, competencias que se desarrollan mediante el aprendizaje de la historia.

La obra trata de recoger ambos enfoques de las competencias, tanto básicas como específicas, adecuándose al debate y líneas de investigación y trabajo existentes en este momento en la comunidad académica de especialistas en didáctica de la historia a nivel internacional.

En el libro se recogen doce trabajos, principalmente aportaciones de profesorado de universidades españolas con aportaciones también desde universidades latinoamericanas. En buena medida es fruto del desarrollo del proyecto de investigación Este trabajo es resultado del Proyecto de Investigación «La evaluación de las competencias y el desarrollo de capacidades cognitivas sobre historia en Educación Secundaria Obligatoria» (EDU2015-65621-C3-2-R), subvencionado por el Ministerio de Economía y Competitividad de España y cofinanciado con fondos FEDER de la UE, si bien el libro incorpora muchas aportaciones de investigadores que no han formado parte del proyecto, dado que trata de exponer una perspectiva amplia desde el punto de vista de especialistas que están trabajando en estos momentos sobre la cuestión de la adquisición por parte de los estudiantes de las competencias específicas del pensamiento histórico.

Los primeros capítulos se relacionan con el desarrollo desde las clases de historia de algunas de las competencias básicas definidas en 2003 y recogidas en la actual legislación educativa española. Se abordan la competencia lingüística a través de la narrativa histórica (María López, Jorge Sáiz y Ramón López Facal), la competencia digital a través de videojuegos, gamificación digital o flipped classroom (Álex Ibáñez, Iratxe Gillate y José María Cuenca; y María Feliu y Ramón Cózar), y las competencias sociales y cívicas, vinculadas a la conciencia y expresiones culturales (Merchán y García; y Martínez y Sánchez). En este punto se abordan temas especialmente interesantes como el tratamiento en el aula de los patrimonios controvertidos: la categorización del patrimonio que realizan Estepa y Martín constituye una aportación particularmente destacada e interesante tanto para la investigación en educación patrimonial como para el profesorado.

Un segundo bloque de capítulos se caracteriza por analizar cómo se realiza esa educación competencial en diferentes niveles educativos, presentando resultados de investigaciones empíricas de diferente naturaleza. Se analizan diferentes casos en los Grados de Magisterio de Infantil y de Primaria (Miralles, Sánchez, Rivas); en el máster de Formación del profesorado en la especialidad de Geografía e Historia realizando una comparativa entre dos universidades españolas, Zaragoza y Murcia (Rivero y Molina); en la Educación Secundaria Obligatoria, analizando las pruebas de evaluación (Monteagudo y Trigueros), la aplicación de metodologías innovadoras (Gómez y Sobrino) o los libros de texto utilizados (Valls y Parra); y en el nivel de doctorado, analizando un amplio conjunto de tesis doctorales presentadas cuya temática está en relación con el desarrollo competencial ligado al aprendizaje de la historia (Rodríguez y Moreno).

Esta publicación refleja que el profesorado y los investigadores han asumido la necesidad de superar el enfoque de competencia vinculada a competitividad, como proponía hace cinco años López Facal, entre otros y el afianzamiento de las competencias como referencia fundamental en el ámbito educativo pero no limitada a las básicas definidas en 2003, sino ampliadas desde la perspectiva de las didácticas aplicadas –en esta caso la didáctica de las ciencias sociales o la didáctica de la historia-. La vinculación entre desarrollo competencial y pensamiento histórico constituye el eje vertebrador de la obra, asumiéndose la defensa de desarrollar el pensamiento crítico a través de las clases de Ciencias Sociales y de incorporar el método del historiador/a al aula para facilitar ese pensamiento crítico, que permita pensar desde diferentes perspectivas, reflexionar sobre las causas y consecuencias, valorar la significación histórica de los diferentes hechos o fenómenos… a la definitiva, asumiendo el alto valor formativo competencial del pensamiento histórico.

Enrique N. Vallespín Domínguez – Universidad de Zaragoza, Grupo de investigación ARGOS (S50_17R, Gobierno de Aragón). E-mail: envalles@unizar.es

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La enseñanza de la historia en el Siglo XXI. Desarrollo y evaluación de competencias históricas para una ciudadanía democrática – MIRALLES MARTÍNEZ et al (C-HHT)

MIRALLES MARTÍNEZ, P.; GÓMEZ CARRASCO, C. J.; RODRÍGUEZ PÉREZ, R. A. La enseñanza de la historia en el Siglo XXI. Desarrollo y evaluación de competencias históricas para una ciudadanía democrática (1). Editum. Ediciones de la Universidad de Murcia, 2017. 273p. Resenha de: RODRÍGUEZ, Tania Riveiro. Clío – History and History Teaching, Zaragoza, n.44, 2018.

La enseñanza de la historia en el Siglo XXI. Desarrollo y evaluación de competencias históricas para una ciudadanía democrática es un trabajo coordinado por la Universidad de Murcia. Con todo, desde el punto de vista de la filiación profesional de los autores es un trabajo mucho más diverso. En él colabora profesorado de varias universidades españolas (Universidad de Valencia; Universidad de Murcia; Universidad de Barcelona; Universidad de Extremadura, Universidad de Santiago de Compostela), de la Universidadedo Minho (PT), de la University College of London – Instituteof Education (GB), de la Università degli Studi di Bari Aldo Moro (IT), así como del Servicio de Innovación y Formación del Profesorado, Consejería de Educación y Universidades de la Región de Murcia.

El libro cuenta con una introducción y 13 capítulos. Tanto la introducción como el índice permiten orientarse cómodamente por sus páginas. Con todo, cabe destacar que el libro tiene dos grandes bloques temáticos. Los seis primeros trabajos se relacionan con el desarrollo de destrezas en el alumnado, vinculadas con la enseñanza de la historia y las ciencias sociales. Los seis siguientes se relacionan con la educación patrimonial. El último aborda el diseño de programas de mejora para la enseñanza.

Con un carácter divulgativo y didáctico, se da una visión panorámica de los retos de la educación histórica y la educación patrimonial en sus ámbitos formal, no formal e informal. Si bien la primera impresión del libro, causada por su portada, no traslada al lector al S.XXI, su contenido sí goza de interés para entender mejor el mundo educativo.

El primer bloque lo inicia el profesor Xose Manuel Souto González. En “La formación del profesorado de Geografía e Historia. Balance y perspectivas desde el máster de formación del profesorado de educación secundaria” reflexiona sobre el MAES. Se centra tanto en el caso valenciano como en el de otras universidades españolas. Remarca la función social del máster y el desarrollo alcanzado en los últimos años. Así mismo, partiendo de limitaciones actuales, plantea retos futuros. Entre ellos, la necesidad de mayor coordinación entre los centros de secundaria y las facultades, clave para garantizar una mayor profesionalización del alumnado.

Por su parte, Cosme Carrasco, Pedro Miralles y Arthur Chapman, en su capítulo “Las competencias históricas en los procesos de evaluación” realizan un estudio comparativo España-Inglaterra en torno a la presencia de competencias históricas en el proceso de evaluación. Educar en competencias obliga a una evaluación formativa que amplíe la gama de pruebas de evaluación. Se trata de un estudio a distintos niveles en busca del significado del aprendizaje de la historia y cómo se puede evaluar correctamente. Si bien las competencias históricas están bien definidas en el sistema británico, en el caso español son más difusas al confundirse con otras de carácter generalista.

La profesora Concepción Fuentes Moreno en “Desarrollo de la formación sociopolítica para la ciudadanía democrática: diseño e implementación de materiales didácticos en ciencias sociales” hace una propuesta didáctica de historia. El objetivo de la unidad presentada es el de reforzar la ciudadanía y las responsabilidades cívicas del alumnado. Sus instrumentos nacen en torno a tres elementos: el tratamiento de género, el empleo de las TIC y el aprendizaje por descubrimiento. Sus propuestas están orientadas hacia la adquisición de competencias generalistas, así como otras de carácter histórico.

El cuarto trabajo tiene como autor al profesor Josué Molina-Neira. Este, en “Formar una ciudadanía crítica desde la enseñanza y el aprendizaje de la historia: método, estrategias y contenidos clave” reflexiona sobre el significado de una ciudadanía crítica, tanto en el ámbito anglosajón como en el mundo hispano. La enseñanza de la historia, sus métodos, estrategias y contenidos deben orientarse hacia la consecución de un alumnado más comprometido y activo socialmente. Sin embargo, ese mayor compromiso del alumnado requiere de un aprendizaje crítico de la historia que necesita, a su vez, de un método científico, estrategias de aula participativas y una reducción de los contenidos actuales, mucho más flexibles e interdisciplinares.

Por su parte, Víctor Marín Navarro, en “La enseñanza de la historia y la construcción de una ciudadanía crítica” se centra también en la importancia de una ciudadanía activa. El objetivo principal de la enseñanza de la historia sería que el alumnado defendiese los derechos fundamentales en contra de las injusticias sociales. Para ello, el proceso de enseñanza debe apoyarse en metodologías más actuales como el ABP (Aprendizaje Basado en Proyectos). Este ha demostrado ser de gran utilidad para trabajar la historia desde un mayor compromiso, reforzando competencias disciplinares para ello.

El último trabajo del primer bloque es el del profesor Juan Antonio Inarejos Muñoz, “La reflexión sobre las competencias de pensamiento histórico en la formación del profesorado de educación primaria”. Revisa las representaciones de alumnado universitario extremeño sobre los acontecimientos más relevantes en su región a lo largo del tiempo. Compartimentan la historia en grandes edades, aunque sin mencionar rasgos generales; hay anacronismos; una escasa reflexión causal o un protagonismo de grandes personajes. Los datos hablan de la necesidad de trabajar la historia críticamente, conectándola al presente.

Elena Musci y Raquel Sánchez en “Aprende, juega e investiga en Castel del Monte. Una propuesta didáctica para la enseñanza de la historia” inician el bloque de educación patrimonial. Su comparación entre la educación patrimonial en Italia y España deja atrás la visión reduccionista del patrimonio dada en la escuela, con un carácter artístico y eurocéntrico común en los libros de texto. Para contrarrestar esto, comparten una experiencia en torno a un paisaje histórico local. Un juego de pistas en un castillo permitirá al alumnado trabajar distintas fuentes. Se trata de una actividad interdisciplinar que evita limitarse al estudio descriptivo del lugar.

La profesora Glória Solé, en “Educação histórica e educação patrimonial: desafios da investigação em Portugal” revisa las últimas investigaciones que vinculan la educación histórica y la patrimonial. Destaca el papel del museo y el patrimonio local. A través de dos experiencias pedagógicas en Braga y Tomar el patrimonio adquiere relevancia histórica al ser la expresión de una comunidad, su cultura y, por tanto, un factor identitario para el alumnado. Ambas experiencias permiten trabajar la competencia temporal de la historia, así como ideas de segundo orden. Su fuerte potencial educativo favorece la diversidad y la comprensión del espacio próximo.

Belén Castro Fernández y Ramón López Facal en “La educación patrimonial al servicio de la ciudadanía” reflexionan sobre la capacidad educativa de la educación patrimonial. En trabajo en el aula sobre la importancia de la conservación del patrimonio como un bien de memoria e identidad favorece procesos de apropiación de espacios cotidianos, Advierten, sin embargo, de los peligros que puede suponer banalizar su estudio. Se centran en Santiago de Compostela. Ahí revisan distintos discursos en torno al patrimonio, habiendo unos culturalmente dominantes y otros marginados.

Tània Martínez Gil, en “La didáctica del patrimonio arqueológico y la enseñanza del método científico en la educación secundaria” reflexiona sobre la arqueología como apoyo al estudio de la historia. Su potencial didáctico, basado en parte en su popularidad social, reside en su capacidad de favorecer un pensamiento científico de gran transversalidad. Cada vez más, una parte del profesorado emplea estrategias participativas basadas en el descubrimiento, la motivación y las TIC. En esa línea, se presentan los labcase, pequeños laboratorios portátiles que tienen en cuenta fases, procedimientos y metodologías empleadas en una campaña arqueológica.

Sebastián Molina Puche y María Fernández-Rufete Navarro en “El patrimonio en el desarrollo de competencias históricas: la visión del profesorado de la región de Murcia” resaltan la capacidad didáctica del patrimonio. Pese a su escasa presencia en los currículos, se apuesta por su trabajo en el aula como algo indisociable de actitudes responsables, de un aprendizaje más crítico y vivencial. Como fuente primaria favorece la memoria colectiva, la apropiación de espacios y la construcción de identidades. Pero, ¿lo entiende así el profesorado? Este parece conocer las posibilidades del patrimonio local-regional. No obstante, este enfoque en el aula es todavía minoritario.

Belén Castro Fernández y Ramón López Facalen “De lo percibido y lo invisible: el paisaje urbano como elemento patrimonial” reflexionan sobre la percepción objetiva y/o subjetiva del paisaje en relación al papel que juegan en él las emociones. En el caso del paisaje urbano sería interesante identificar sus elementos básicos, comprender su transformación histórica o establecer diferencias y similitudes con otras culturas de cara a comprender los valores que ese espacio ha heredado, cómo se pueden conservar y transmitir. El paisaje es así un espacio de aprendizaje, lo que se ejemplifica en una actividad que trabaja mapas mentales de alumnado sobre la ciudad de Santiago.

Por último, Ana Belén Mirete Ruiz, en “Evaluación del diseño de programas para la mejora de la inclusión y el rendimiento académico” analiza en conjunto el proceso de enseñanza y de aprendizaje e incide en la importancia de evaluar los programas presentados en las aulas como camino hacia la mejora. La importancia de una evaluación inicial, de desarrollo, de resultados y una metaevaluación final confieren mayor rigor a la enseñanza, especialmente cuando se trata de una enseñanza interdisciplinar.

Nota

(1) Este trabajo forma parte de las investigaciones financiadas por el Ministerio de Economía y Competitividad y con fondos FEDER de la UE, y EDU2014-51720-REDT Red 14, financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad.

© Proyecto Clío

Tania Riveiro Rodríguez – Universidad de Santiago de Compostela. E-mail: tania.riveiro@usc.es.

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Áfricas: um continente, múltiplos olhares | Ars Historica | 2018

A área de História da África cresceu muito nos últimos anos no Brasil. Aqueles que, como eu, pesquisam e são docentes nesse campo há mais de duas décadas podem com certeza reconhecer a expansão vivida e o adensamento das pesquisas e debates. A legislação incidindo sobre o currículo de História na Educação Básica e nos cursos de formação de professores contribuiu de forma inegável, com a lei 10.639/2003 e as diretrizes curriculares originadas no parecer do Conselho Nacional de Educação (2004). Mas, também concorreu para tal a ampliação das demandas e interesses do público estudantil, reivindicando cursos menos eurocêntricos e a inserção de temas e discussões que trouxessem referências sobre a história da África e da diáspora africana, bem como leituras da produção intelectual daquele continente. O movimento negro, em suas diversas formas de expressão, agente fundamental nesse processo, junto aos NEAB (Núcleos de Estudos Afro-brasileiros) e, em tempos mais recentes, os coletivos negros estudantis, se tornaram uma força de pressão positiva que veio a intensificar esse crescimento. E a continuidade dessa demanda, com a consequente sofisticação e diversificação do universo temático das pesquisas, a qualidade da produção científica no campo e o vigor dos debates, fizeram com que o campo de estudos se afirmasse e se consolidasse cada vez mais no nosso espaço acadêmico. Leia Mais

Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos | Ludmila Costhek Abílio

O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões. Leia Mais

Familias en el Viejo y el Nuevo Mundo – CASTELÃO; COWEN (LH)

CASTELAO, Ofelia Rey; COWEN, Pablo (eds). Familias en el Viejo y el Nuevo Mundo. La Plata: Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, 2017, 471 pp. Resenha de: VILATA, María José. Ler história, 72, p. 235-238, 2018.

1 Tres cuestiones resultan fundamentales para dar cuenta del sentido, importancia e interés de esta publicación: adscripción, contenido y justificación científica. Vamos por partes. La primera tiene que ver con la inclusión de este volumen en la Colección de Monografías HisMundI, enmarcada en la Red Interuniversitaria de Historia del Mundo Ibérico: del Antiguo Régimen a las Independencias (Red y colección HisMundI), a partir de una iniciativa compartida entre historiadoras e historiadores de las universidades argentinas de La Plata, Rosario y Mar del Plata, y de las españolas de Cantabria y País Vasco. Precedido por un volumen anterior editado también en 2017,1 se trata del inicio de una andadura ambiciosa que pretende profundizar en los procesos históricos que definieron las sociedades ibéricas en época colonial a uno y otro lado del Atlántico, primando una perspectiva comparativa. Cada libro resultante se presenta en formato digital y acceso abierto, opción que, dada la complejidad y los costes implicados en los circuitos de distribución clásicos, resulta muy pertinente y de gran utilidad para compartir y difundir con inmediatez nuevo conocimiento científico.2

2 La segunda cuestión concierne a los contenidos. Estamos frente a una nueva y valiosa compilación de estudios, articulados a través del eje de la organización familiar como problema de investigación. Al inicio, en la presentación, Maria Marta Lobo de Araújo define con una precisa palabra la perspectiva que caracteriza el libro: “una mirada”. Es decir: sale a la luz pública un nuevo referente singular a añadir al avance y consolidación de esta muy importante trayectoria de investigación. Se presenta, pues, una obra que reúne tres tipos de aportaciones diferentes: primero, una justificación científica de la edición a manera de introducción (Ofelia Rey Castelao y Pablo Cowen); segundo, un interesante estado de la cuestión y de la bibliografía reciente sobre el tema, ejercicio complejo y siempre de gran valor, tanto para público en general, como y principalmente, para quienes compartimos esta línea de trabajo (Francisco García González y Francisco Javier Crespo Sánchez), y, tercero, trece trabajos de investigación inéditos, a cargo (por orden de aparición) de Rocío Sánchez Rubio, Isabel Testón Núñez, Alberto Angulo Morales, Francisco Andújar Castillo, Enrique Soria Mesa, María Luisa Candau Chacón, Ángela Atienza López, José Luis Betrán Moya, Fernando Suárez Golán, Bibiana Andreucci, Carlos María Birocco, Cristina Beatriz Fernández, Josefina Mallo, Osvaldo Otero y María Cecilia Rossi, cuyas variadas temáticas, enfoques, problemas y conclusiones se sintetizan en las páginas introductorias (pp. 10-20 y 36-41). La diversidad de los asuntos tratados en la recopilación se puede concretar, en síntesis, en cuestiones como movilidad social, formas de sociabilidad (correspondencia, sentimientos, objetos cotidianos), matrimonio, estrategias familiares, redes clientelares y de poder, composición étnica y social de la migración a Indias, transmisión de patrimonios y el papel de la mujer. El tratamiento de cada uno de los artículos pretende, por un lado, hilvanar las relaciones a uno y otro lado del Atlántico y, por otro, recordar que todos los contenidos se entrecruzan en los diferentes textos, a fin de avanzar en la delimitación de los problemas multifactoriales que subyacen en la investigación sobre la vida en familia. La finalidad implícita, por consiguiente, persigue abordar “de forma muy diversa procesos de funcionamiento, cambio, implantación y valorización de las familias del Viejo y del Nuevo Mundo, mostrando lógicas de supervivencia, redes de solidaridades y complicidades, pero también de afirmación y de pujanza social” (p. 20).

3 El tercer objetivo a enfatizar aquí tiene que ver con la justificación científica. Los editores han optado por un planteamiento a dos bandas que deriva de la misma propuesta de título del libro. En primer lugar, partimos de las familias del Viejo Mundo para adentrarnos en una “breve perspectiva historiográfica sobre España”. En este ámbito, Ofelia Rey Castelao presenta una breve, pero clarificadora síntesis donde se remarca la importancia de una trayectoria que partió de la demografía histórica, usando como guía y con intensidades desiguales los diferentes modelos europeos, en especial los siempre referenciales francés e inglés, para adentrarse, luego, a partir de la exploración de documentación considerablemente diversa, en sendas muy variadas que se han constituido en fundamento imprescindible de la construcción de la historia social ibérica a lo largo de los siglos xvi al xix.

4 A renglón seguido, viajamos hacia el Nuevo Mundo y, allí, Pablo Cowen sitúa los problemas sustanciales de lo que denomina como una “arqueología” de las formaciones familiares (actuales) en el Río de La Plata. Plantea reflexiones que surgen a partir de los datos y los análisis propuestos en relación al virreinato de más tardía fundación y organización, tarea que permite comprobar su validez como un interesante punto de referencia respecto a lo acontecido en América central y del sur en el tiempo largo que va desde las diversas fases de la colonización hasta el triunfo de las Independencias. Es significativa, en este sentido, la conflictiva coexistencia-confrontación, cuando menos, de dos modelos familiares: el tradicional colonial (en su infinita complejidad) y el que las nuevas leyes republicanas impulsaron y defendieron. La exploración de esta dualidad y sus implicaciones profundas se suma a una ya larga tradición de investigación que, en Argentina, reúne a varios grupos destacados3 que se agregan a las tareas en auge en el conjunto de América Latina y a los proyectos en intercambio y colaboración con grupos radicados en la península ibérica.

5 ¿Qué se desprende, en fin, de este volumen? ¿Cuáles son sus principales logros? Primero, se debe subrayar la aportación de nuevo conocimiento a partir de investigaciones que se incardinan en una iniciativa coordinada en equipos agrupados en redes, difundida en formato digital y acceso abierto a fin de facilitar la comunicación y el intercambio científico. Segundo, es preciso señalar que se ha añadido un peldaño más para avanzar en la reflexión sobre las estructuras articuladas bajo el polisémico concepto de “familia”, que sirve de puente para el análisis de la estática y la dinámica del conflicto social, a través de la indagación sobre los entramados privados y públicos en los que se desarrolla la vida de las personas en cualquier tiempo y lugar. Familia se consolida, en consecuencia, como fundamento imprescindible de la historia social, siempre en construcción, como recordó el maestro Pierre Vilar. Tercero, la heterogeneidad de las aportaciones invita a una consideración sobre perspectivas de futuro. No sólo “parece imperioso pasar de la historia de la familia a la historia de las familias” (p. 33), sino que quizás será necesario delimitar, en proyectos y publicaciones posteriores, los diferentes ámbitos que alberga el enorme caparazón protector que ofrece el concepto, tal y como se propone, por ejemplo, en la “panorámica temática” en cuatro bloques presentada en el estado de la cuestión.4

6 Y esto es así en tres sentidos principales: uno, en la diversidad de asuntos a tratar, ya comentada y puesta de manifiesto al exponer el contenido del libro; dos, en la necesidad de plantearlos teniendo en cuenta los factores diferenciales derivados de los entrecruzamientos de etnia y clase social, aspecto de crucial importancia en América Latina, y, tres, en la relevancia de la amplitud y heterogeneidad territorial que está implícita en una mirada a ambos lados del Atlántico, puesto que si bien es bien cierto que las dos metrópolis radicadas en la península definieron normas y pautas de conducta de forma incesante, todavía lo es más que, a medida que avanzaron y se normativizaron las variantes del asentamiento de norte a sur, la realidad americana devino incontestablemente diversa respecto al modelo de partida y, por ello, singular y autónoma en su organización propia.

Notas

1 Susana Truchuelo y Emir Reitano (eds), Las fronteras en el mundo atlántico (siglos XVI-XIX). La P (…)

2 El libro digital completo de esta reseña se encuentra disponible en: http://www.libros.fahce.unlp (…)

3 Resulta interesante destacar aquí los trabajos recientes reunidos por otro potente equipo investi (…)

4 Los ámbitos prioritarios de agrupación de las investigaciones se concretan, siguiendo la propuest (…)

María José Vilalta – Departament d’Història de l’Art i Història Social, Universitat de Lleida, Catalunya. E-mail:  vilalta@hahs.udl.cat

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