Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a distância. São Paulo, v.7, 2008.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

 

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a distância. São Paulo, v.6, 2007.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

 

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a distância. São Paulo, v.3, 2004.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância. São Paulo, v.5, 2006.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

 

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância. São Paulo, v.4, 2005.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância. São Paulo, v.2, 2003.

Publicado: 2018-05-24

Artigos

Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 19, n.2, 2018.

Artigos

Publicado: 2018-05-23

Revista Outrora. Rio de Janeiro, v.1, n.1, jan./jul. 2018.

Capa: Lenes Alves

Apresentação

Editorial

Entrevistas – A Sapucaí volta a ser ácida

Resenhas

Publicado: 22/05/2018

Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a Distância. São Paulo, v.1, 2002.

Publicado: 2018-05-21

Artigos

 

Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 17 n. 1, 2018.

Editorial

Dossiê: Manuais escolares, mediações tecnológico-pedagógicas da Escola Moderna

Artigos

Resenha

Publicado: 2018-05-16

Jamaxi. Rio Branco, v.2, n.2, 2018.

Publicado: 2018-11-15

ARTIGO

 

Diálogos sobre a Modernidade | Vitória, n.1, 2018.

I Ciclo de Palestras do Grupo de Estudos Modernidade Ibérica

  • Patrícia Maria da Silva Merlo, Lucas Onorato Braga |  PDF

Artigos

Publicado: 2018-05-06

Corporativismo e neocorporativismo / Estudos Históricos / 2018

Surgido em meio à ampliação da participação dos setores sociais subalternos na política e à consolidação do capitalismo industrial, o corporativismo foi apresentado por seus defensores como uma modalidade de representação de interesses e de organização societal e estatal alternativa tanto à democracia liberal quanto ao socialismo. Propondo-se garantir estabilidade social pela conciliação de classes, o corporativismo irradiou-se da Europa para o restante do mundo (e a América Latina foi-lhe um terreno fértil) nas primeiras décadas do século passado. Tema prestigiado pela historiografia e pela ciência política, tem conhecido, no último decênio, um interesse renovado, que tem gerado livros, artigos e eventos acadêmicos no Brasil e no exterior. Um dos traços marcantes da nova produção sobre o corporativismo é o debate sobre sua relação com regimes autoritários e democráticos. Arriscaríamos a afirmar que a posição dominante, atualmente, entre os estudiosos é de recusa de uma associação necessária entre corporativismo e autoritarismo. Entre os argumentos mobilizados pelos acadêmicos que comungam de tal posição está o exemplo escandinavo, que adotou formas corporativas para implementar, em um ambiente político democrático, Estados de bem-estar social.

O presente número de Estudos Históricos dispõe-se, assim, a contribuir para aprofundar a reflexão em torno das experiências do corporativismo histórico (anterior à Segunda Guerra) e do neocorporativismo (posterior à Segunda Guerra) no Brasil e na Europa. No primeiro artigo da edição, Miguel Ángel Martínez investiga a introdução, por meio da Assembleia Nacional Consultiva, da representação política de inspiração corporativa na Espanha da década de 1920, durante a ditadura de Primo de Rivera. O segundo artigo, de autoria de Valerio Torreggiani, estuda a presença da modalidade corporativa de representação de interesses no repertório político britânico da primeira metade do século XX. Em seguida, Paula Borges dos Santos ilumina o debate em torno de soluções corporativas, nos âmbitos econômico e social, durante a elaboração da Constituição portuguesa de 1933. Álvaro Garrido também trata do corporativismo português, examinando o (frágil) aparato de seguridade social instaurado pela ditadura salazarista. Por sua vez, Irene Stolzi acompanha o corporativismo no ordenamento jurídico italiano, tanto no contexto fascista quanto no democrático dos anos 1980 e 1990.

Na seção Ensaio bibliográfico, Cláudia Viscardi recenseia a produção contemporânea sobre corporativismo, em diálogo com a literatura clássica sobre o tema. Na seção Colaboração especial, Péter Zachar explora a elaboração de um projeto, informado parcialmente pelo ideário corporativo, de reforma social, econômica e política na Hungria do entreguerras. E Miguel Ángel Perfecto traça uma genealogia das propostas corporativas na Espanha, ao mesmo tempo que investiga sua implementação no país a partir da década de 1920.

O número encerra-se com uma entrevista concedida a Estudos Históricos por Renato Boschi, um dos mais importantes estudiosos do corporativismo no Brasil.

Referências

SCHMITTER, Philippe. Still the century of corporatism?. The Review of Politics, v. 36, n. 1, 1974.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: angelamoreirads@gmail.com

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: marco.vannucchi@fgv.br

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: paulo.fontes@fgv.br

Os editores.


SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.64, maio / ago.2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (RFA)

DOMINGUES, Ivan. Filosofia no Brasil: Legados & perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Editora da Unesp, 2017. Resenha de: PERINE, Marcelo. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.30, n.50, p.540-546, maio/ago., 2018.

Um livro de filosofia apresenta especiais dificuldades para ser resenhado porque, segundo Eric Weil, ele só se torna plenamente compreensível na segunda leitura. Resenhar, após a primeira leitura, um livro de filosofia comum segundo subtítulo de ensaios metafilosóficos é particularmente difícil, a começar pelo seu enquadramento no gênero ensaio. Dicionarizado na rubrica literatura, o ensaio é definido no Aurélio como “prosa livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo, reunindo dissertações menores, menos definitivas que as de um tratado formal, feito em profundidade”. A definição não se aplica rigorosamente aos seis passos que compõem o livro em pauta. Com efeito, a sua prosa, embora verse sobre um tema específico, não é uma prosa livre, mas firmemente atada ao propósito demonstrativo que caracterizou o discurso filosófico desde as suas origens gregas. É verdade que o autor não pretende esgotar o tema vastíssimo expresso no título do livro. O primeiro subtítulo o atesta: legado é, ao mesmo tempo, algo que se recebe e que se transmite; perspectiva é um modo de ver até onde os olhos alcançam, é uma prospectiva, mas é também um sentimento de esperança, uma expectativa. Ademais, o volume reúne dissertações de diferentes dimensões, que não alimentam a pretensão de serem definitivas, como podem ser os tratados formais em alguns campos do saber. A decisão de imprimir às suas reflexões a forma do ensaio filosófico permitiu ao autor escolher “a provisoriedade dos resultados, a aventura do pensamento não objetual e a abertura de picadas ou de caminhos das tentativas, pois ensaiar é tentar, como viu Montaigne, que o inaugurou em filosofia” (p. 2). A escolha se revelou acertada, pois em filosofia a profundidade não se mede pela extensão. Um aforismo de Heráclito é infinitamente mais profundo do que carradas de razões que pululam no tom superior que recentemente ecoou de novo na filosofia, para falar como Kant.

Mas os legados e perspectivas da reflexão sobre o problema filosófico da existência ou não de uma filosofia no Brasil se apresentam na forma de ensaios metafilosóficos. Estamos, portanto, diante de um livro de filosofia da filosofia no Brasil, o que acrescenta um segundo nível de dificuldade ao resenhista de primeira leitura, pela eventual necessidade de uma terceira leitura. Não foi o caso! A legitimidade da primeira leitura foi assegurada pelo próprio autor: “[…] entendo que ninguém em filosofia está obrigado a fazer história da filosofia nem a se livrar dela para fazer a verdadeira filosofia: simplesmente, cada um de nós pode tentar ser ‘filósofo por sua conta’, procurando as mais diferentes companhias […]” (p. 28). A senha dada pelo autor autoriza tanto a diversidade de leituras filosóficas como as diferentes perspectivas de compreensão dos legados da história intelectual do Brasil, que é também a história dos intelectuais no Brasil, como parte do grande mosaico da história da cultura, das ideias e da filosofia.

O livro não é de exegese filosófica, nem de historiografia da filosofia. Se algo se pode apreender já na primeira leitura é que o exercício metafilosófico do autor, mesmo tendo percorrido e recorrido ao fio do tempo cronológico para evidenciar legados e ensaiar perspectivas, se configurou como o exercício de escolher aqueles antepassados que lhe permitissem compreender o exercício da filosofia no Brasil. Sem ter a veleidade de “capturar tudo do real empírico e da nossa história”, o interesse do autor pela história produziu “um livro de ensaios sobre as diferentes experiências do filosofar em nossas terras”. A história, portanto, foi tomada pelo autor como “meio e fonte, não como objeto ou objetivo da pesquisa” (p. 3 et seq.).

Seis ensaios filosóficos compõem o livro, “dispostos em passos argumentativos com unidade temática”, dedicando-se o primeiro ao:

delineamento do argumento metafilosófico da filosofia nacional e seus recortes temporais, em que o propósito dos ensaios é debatido e a metodologia justificada, e consagrando-se os cinco restantes a cada um dos recortes e seus temas específicos, em que o núcleo duro da argumentação é apresentado e desenvolvido (p. 10).

O segundo passo analisa “o passado colonial e seus legados: o intelectual orgânico da Igreja”, cujo modelo ou tipo, em sentido quase-weberiano, é o Pe. Antônio Vieira. A necessidade de fornecer o contexto social mais amplo, apoiado em autoridades como Serafim Leite, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, produziu o ensaio mais longo (137 páginas) e mais documentado do volume. O terceiro passo, “Independência, Império e República Velha: o intelectual estrangeirado”, é o segundo em extensão (125 páginas), também amplamente documentado a partir dos autores de referência já citados, aos quais se acrescentam Raymundo Faoro e Celso Furtado, entre outros, e, no que se refere à filosofia e à história das ideias no Brasil, particularmente Cruz Costa. Os intelectuais estrangeirados que tipificam o período são Joaquim Nabuco, Bonifácio de Andrada, Ruy Barbosa e Euclides da Cunha e, na filosofia, Tobias Barreto.

A partir do quarto passo — “Os anos 1930-1960 e a instauração do aparato institucional da filosofia: os fundadores, a transplantação do scholar e do humanista intelectual público” — a reflexão do autor perde em extensão (94 páginas), mas ganha em acuidade. O ensaio mostra que o verdadeiro começo da filosofia autônoma no Brasil está ancorado na instauração de um aparato institucional em diferentes níveis: a criação de universidades públicas reais, não apenas nominais, como foi a Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920, mais tarde renomeada Universidade do Brasil (1937); de universidades católicas, sendo pioneira a PUC-Rio, fundada pelos jesuítas sob a liderança do Pe. Leonel Franca em 1941; de institutos de estudos e pesquisas, como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), criado em 1954; de revistas filosóficas, como a pioneiríssima Kriterion, da UFMG, fundada em 1947 por Arthur Versiani Vellôso, seguida da Revista Brasileira de Filosofia, fundada em 1951 por Miguel Reale, no âmbito do Instituto Brasileiro de Filosofia, assim como a criação de órgãos federais de fomento como a CAPES e o CNPq em 1951, cujos efeitos se mostrarão notórios no próximo passo/ensaio.

Esse período, com sua “galeria de heróis-fundadores” (p. 398), forjou duas novas figuras intelectuais. Amparado no conhecido estudo de Paulo Arantes, o autor desenha a primeira como a do scholar/erudito, gerado pela atuação da Missão Francesa que fez da Faculdade de Filosofia da USP um “Departamento francês de ultramar”. Aproveito a ocasião para sinalizar ao leitor que, ao exemplificar o que seria o erudito virtuose especialista atual na filosofia (p. 416), há uma informação equivocada sobre Francisco Benjamin de Souza Netto, conhecido como Dom Estevão: o ano de seu nascimento é 1937 e até o momento está vivo, embora com a saúde muito debilitada. A segunda figura da intelligentsia brasileira nesse período é a do humanista intelectual público. O autor afirma que “O único filósofo candidato a filósofo brasileiro e intelectual público nos anos 1930-1960 é, no entender de muitos, Álvaro Vieira Pinto” (p. 423). Sobre a controvertida figura do “chefe do departamento de filosofia do Iseb”, que “colocou a filosofia a serviço do projeto nacional-desenvolvimentista” (p. 427), o autor observa que, já no primeiro passo/ensaio do livro em pauta, procurou “remediar a recepção de Álvaro Vieira Pinto, reconhecendo a dureza e a ingratidão de seus pares, além da relevância de suas posteriores contribuições importantes para a inteligência nacional, longe do Iseb, no campo da filosofia da tecnologia” (p. 426). No final do ensaio o autor dá o passo ao quinto passo/ensaio da obra, afirmando que “como no caso do scholar brasileiro, será preciso esperar pelos anos 1960-1970 para que o intelectual público entrasse em cena” (p. 427).

A tarefa do quinto passo/ensaio — “Os últimos 50 anos: o sistema de obras filosóficas, os scholars brasileiros e os filósofos intelectuais públicos” — foi realizada com ainda maior concisão pelo autor. Em 72 densas páginas, partindo da grande virada dos anos 1960, quando “a filosofia brasileira finalmente ganha autonomia”, e “diante do fato novo de se estar diante de uma positividade — o sistema de obras filosóficas — e a necessidade de interpretá-la com as lentes e as ferramentas da filosofia”, o autor se vê obrigado a “introduzir algumas modificações no esquema até agora desenvolvido (p. 431). A primeira delas é que o foco não será mais a criação do arcabouço institucional da filosofia, mas a implantação do sistema nacional de pós-graduação por obra da Capes nos anos 1970. Em segundo lugar, a análise comparativa não será mais com as ciências humanas e sociais, mas da filosofia consigo mesma, destacando as mudanças qualitativas e de escala. Não se falará mais de heróis-fundadores, com a única exceção de Oswaldo Porchat (p. 466 et seq.), mas de virtuoses de ofício e, finalmente, “mantido o tema da paisagem filosófica, das matrizes de pensamento e dos principais nomes”, o autor se arriscará a justificar a escolha de três nomes, a saber, Giannotti, Marilena Chaui e padre Vaz, “que lograram ocupar o espaço público ou a cena pública, ao se transformarem em verdadeiros intelectuais públicos” (p. 432).

Permito-me aqui chamar a atenção para uma ausência no elenco de nomes que ilustram as seis “matrizes de pensamento” dos últimos 50 anos, propostas pelo autor (epistemológica, metafísica, histórico-filosófica, exegética, ético-política e cultural). Na matriz exegética, cujos exemplos são José Henrique Santos sobre Hegel, Raul Landim sobre São Tomás e Descartes, Marilena Chaui sobre Espinosa, Ernildo Stein sobre Heidegger, junto com Franklin Leopoldo e seus trabalhos sobre filosofia francesa, Paulo Margutti e seus estudos sobre Wittgenstein, Roberto Machado sobre Foucault e Deleuze, Giacoia e Scarlett sobre Nietzsche e Porchat sobre o ceticismo, penso que seria fazer justiça a Luís Alberto de Boni e a Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento, nomeá-los também nesta matriz em reconhecimento ao pioneirismo que exerceram no campo dos estudos de filosofia medieval no Brasil. Carlos Arthur foi, provavelmente, o primeiro brasileiro a obter um PhD em Sciences Médiévales, em 1976, pelo Instituto de Estudos Medievais da Universidade de Montreal no Canadá, e destacou-se em nossa academia não só pela exegese de textos de Tomás de Aquino, Roger Bacon e Galileu, mas também por notáveis traduções de autores medievais. De Boni, doutor em teologia pela Universidade de Münster, sob a orientação do renomado teólogo Johann Baptist Metz, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval e, junto com Carlos Arthur, é dos principais promotores dos estudos filosóficos medievais no Brasil.

Seria ocioso desvelar aqui os fatos e as razões pelos quais o autor indicou padre Vaz, Giannotti e Marilena Chaui como filósofos brasileiros que souberam “unir as perspectivas da ação e do intelecto”, pelos quais a filosofia é levada ao máximo de suas possibilidades como experiência e elaboração da cultura, e por isso mesmo poderá lograr o máximo de relevância social e mesmo política, com todos os riscos que a ação pública comporta para o trabalho intelectual – inclusive a traição da filosofia e o suicídio do intelecto (p. 432).

Com essa instigante sugestão, remeto o leitor às páginas 481-492 em que os fatos e as razões são expostos. Faço uma única observação a essas páginas: quando se desenha, com muita precisão, o perfil de Marilena Chaui como exemplo do intelectual público brasileiro, faltou uma referência ao período em que ela foi Secretária de Cultura do município de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). A menção a esse dado da biografia política da filósofa serviria apenas para, como se dizia antigamente, confirmar o sobredito com mais um exemplo!

O sexto e último passo/ensaio quase deixa transparecer a exaustão do autor após o gigantesco esforço analítico dispendido até então. Em 46 páginas opera uma espécie de sondagem do futuro intitulada “Conquistas e perspectivas: os novos mandarins e o intelectual cosmopolita globalizado”. O final do percurso revela que todo o esforço do autor “consistiu em estender para a filosofia o paradigma da formação já em largo uso pelos historiadores, economistas, sociólogos e críticos literários” (p. 506). As conquistas “podem não ter sido muitas ou espetaculares” (p. 511), mas as perspectivas apontam para uma figura de intelectual cosmopolita e globalizado, tipo ideal ainda em construção na filosofia brasileira, cujos traços seriam: [1] “o ascetismo intramundano”, que tem o mundo como campo de ação; [2] “o criticismo” que tem “como aguilhão o sentimento de desconforto provocado por um duplo inconformismo: diante dos males do mundo e diante dos males de seu país”, [3] “a renúncia ao pessoal e aos interesses particulares em favor do engajamento nas causas sociais e coletivas”, [4] “a eleição ou o descortinamento […] da esfera da cultura como campo de ação e de embate do intelectual, tendo como âmbito virtualmente todo o planeta” (p. 548). Segundo o autor, o único brasileiro que cristalizou esse tipo de intelectual foi Machado de Assis. Os seis ensaios metafilosóficos se concluem com uma pergunta que é um desafio e um programa para a filosofia no Brasil: “se já o temos ou tivemos em literatura e em artes, por que não na filosofia e com uma mente privilegiada nascida nestes cantos?” (p. 549).

Tenho informações de que o livro já está sendo preparado para uma segunda edição. Por isso é desnecessário indicar pequenos deslizes de revisão, quase inevitáveis em obra de tal extensão, que certamente serão corrigidos. Para mim, a qualidade da obra e sua inestimável contribuição para a nossa bibliografia filosófica são frutos maduros de um pensador ao qual se pode atribuir a mesma ousadia que ele atribuiu aos experts e aos scholars nesta obra: a ousadia de “correr o risco do pensamento: o risco de pensar, de comparar e de falhar — coisa que ainda nos ameaça e que desde os tempos coloniais nos deixa paralisados e com a mente servilizada” (p. 36).

Marcelo Perine – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Filosofia. E-mail: mperine@gmail.com

Acessar publicação original

[DR]

 

História da Educação Brasileira / Boletim Historiar / 2018

Nosso primeiro lançamento de 2018 abre o ano com o Dossiê “História da Educação Brasileira”, fruto dos trabalhos finais da disciplina de mesmo nome do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe e que foi organizado pelos professores Dr. Joaquim Tavares da Conceição e a Drª. Josefa Eliana Souza.

No primeiro artigo temos Mayra Louyse Rocha Paranhos e Márcia Cristina Rocha Paranhos que fazem uma discussão sobre o uso da educação escolar em políticas governamentais brasileiras, ao final do século XIX e início do XX, ou seja, em um contexto de modernização, que utilizavam de estratégias higienistas com o propósito de incentivar práticas que educassem e civilizassem o corpo. Utilizando do conceito de biopolítica as autoras abordam sobre as tentativas de controlar o corpo para se alcançar uma sociedade civilizada. Em seguida, Caroline de Alencar Barbosa faz uma revisão bibliográfica para observar como os Estados Unidos influenciaram o ensino escolar brasileiro. Analisando o pensamento de alguns intelectuais, tais como, Anísio Teixeira, Tavares Bastos e Miriam Warde, a autora observa como no período do Estado Novo e da Segunda Guerra Mundial haviam trocas culturais entre ambos os países e tentativas de aplicar a ideia de American way for life que influenciaram as ideias sobre a educação brasileira.

Já Wênia Mendonça Silva estuda como a cultura escolar pode sofrer alterações em seu currículo conforme as demandas políticas e sociais de um determinado contexto. Assim, a autora analisa como no período de 1890 à 1945, diante do processo de implementação da República brasileira, gerou-se reformas educacionais que introduziram a educação musical, o Canto Orfeônico, como disciplina obrigatória com propósitos modernizantes. Ainda neste contexto histórico, o texto de Emily Maise Feitosa Aragão, aborda discussões sobre a educação no primeiro jardim de infância de Sergipe entre o final do século XIX e início do século XX. Sua pesquisa tem por objeto de estudo o jardim de infância Augusto Maynnard, o qual possuía um projeto educacional produzido pela Nova Escola brasileira, com inspirações norte-americanas e europeias.

No nosso quinto artigo Ricardo Costa dos Santos refaz o percurso do Ginásio de Aplicação da Faculdade Católica de Sergipe, desde a sua fundação (1959) até o ano de 1969, evidenciando os elementos da cultura escolar, o currículo, bem como a presença da língua francesa. Quanto ao último texto do dossiê, Laís Gois de Araújo analisa o “Manifesto dos pioneiros da Educação Nova”, publicado em 1932, debatendo as suas continuidades e rupturas quanto à concepção de educação popular. Em seguida, a autora apresenta e discute algumas ideias da proposta freiriana.

Por fim, na sessão de artigos livres, no campo da História Comparada, temos o texto de Andrey Augusto Ribeiro dos Santos, no qual realiza um debate sobre este campo historiográfico e sua sistematização metodológica para pesquisas na área de História, apresentando suas especificidades e suas aplicações.

Agradecemos pela colaboração e apoio com submissões de textos e com a frequente divulgação do periódico. Desejamos uma boa leitura a todos.

Os Editores.


Editores. [História da Educação Brasileira]. Boletim Historiar. São Cristóvão, n.22, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem – VOLÓCHINOV (B-RED)

VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, 373p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Poucos duvidam que há muito precisávamos da tradução de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (MFL), feita diretamente do original russo. E é suficiente a observação da referência bibliográfica completa, registrada acima, para constatar estarmos diante de um importante e competente trabalho, e não apenas de uma nova tradução daquela que é, possivelmente, a mais conhecida obra do Círculo de Bakhtin entre nós, brasileiros. Aliás, uma tradução realizada por pesquisadoras brasileiras comprometidas com o pensamento bakhtiniano, conhecidas e reconhecidas na área dos estudos do discurso.

O texto que temos agora responde ampla e muito especialmente a nosso tempo-espaço: são 39 anos depois da primeira edição de MFL, pouco mais de 40 anos que nós, brasileiros, temos contato com a obra do Círculo (Cf. Brait, 2012, p.219). E isso nos deu tempo para buscar compreendê-la em maior profundidade, estudá-la, buscar-lhe a contextualização, dialogar com pesquisadores daqui e de outros espaços que dela também se ocuparam, dialogar mais detidamente com ela e com algumas traduções dela no Ocidente. Tudo isso nos permite afirmar que a recepção de MFL, hoje, é bem diferente daquela da década de 70: não há mais a novidade e a surpresa, ou o impacto causado pelas obras do Círculo que aos poucos foram sendo descobertas pelos primeiros estudiosos brasileiros. Em nossa academia, há muitos pesquisadores que fundamentam seus estudos da linguagem e da literatura, ou mesmo de educação e em outras ciências humanas, no pensamento haurido em fontes bakhtinianas; diferentes grupos de pesquisa que estudam Bakhtin e o Círculo, de norte ao sul do país. Na área dos estudos da linguagem, a Análise Dialógica do Discurso/ADD (Cf. Brait, 2010, p.9-31), de inspiração no pensamento do Círculo, alcança muitos estudiosos, ajudando-nos a compreender o discurso responsivamente. Mais ainda: temos, aqui no Brasil, um periódico acadêmico, bilíngue, cujo foco são os estudos bakhtinianos, de forma específica e em seu diálogo com outras áreas do conhecimento: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Nosso tempo-espaço é outro, e esta tradução responde a muitas das questões que, ao longo dos anos, foram levantadas pela anterior. Não é possível tratar de tudo isso neste texto: escolhemos partir dos dados da referência bibliográfica e fazer algumas comparações entre esta e a anterior. Ao final, trataremos brevemente do Ensaio introdutório, de Sheila Grillo, sem dúvida um texto brilhante e alentado que emoldura1 esta tradução e, por meio dele, permite novas leituras de MFL.

Autoria. Várias questões nos chamam a atenção na referência. Em primeiro lugar, a autoria da obra. Se, na conhecida versão brasileira do francês para o português, cuja primeira edição é de 1979, constava a autoria de Mikhail Bakhtin (V. N. Volochínov), agora temos VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). As tradutoras nos esclarecem: nos originais russos que foram a fonte da tradução (primeira edição de 1929 e segunda de 1930), a autoria é de Valentin Nikoláievtch Volóchinov. Nos parênteses, o Círculo de Bakhtin sinaliza ao leitor o âmbito em que foi produzida a obra, o que ainda nos remete aos variados debates acerca da autoria, sobretudo no Ocidente, desde que os trabalhos bakhtinianos começaram a ser conhecidos na Europa e Américas. Aliás, muito contribuíram para esse debate os textos de Roman Jakobson (e de Marina Yaguello), autores do Prefácio e da Apresentação daquela primeira edição, especialmente a conhecida frase de Jakobson: “Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras … foram na verdade escritos por Bakhtin…” (1981, p.9). Atualmente conhecemos várias das obras e ensaios de Volóchinov, respeitado linguista do grupo, com quem Bakhtin, Medviédev e outros membros certamente dialogaram. A autoria de MFL, colocada dessa forma, parece fazer jus à realidade daquele momento. No final do livro, consta ainda um “Sobre o autor”, com dados biográficos de Volóchinov (1895-1936), que possibilitam ao leitor conhecer um pouco de sua trajetória de vida, na Universidade de Leningrado (atualmente Universidade Estatal de São Petersburgo), no Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV) e no Círculo de Bakhtin, como linguista, crítico de música, de arte e literatura.

Tradução. Voltando à referência inicial, observamos que a tradução, notas e glossário são de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Caso o leitor não as conheça, o livro traz, ao final, um “Sobre as tradutoras”. A primeira – Sheila Grillo, doutora em Linguística pela USP, professora associada da FFLH/USP, tendo realizado pesquisas em diferentes universidades francesas, no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou), em arquivos de Valentín Volóchinov em São Petesbrugo e na Biblioteca Lenin (Moscou); é ela a autora do primoroso Ensaio introdutório. A segunda – Ekaterina Vólkova Américo, também é doutora pela USP, em Língua e Literatura Russa e professora da Universidade Federal Fluminense/UFF. Além das publicações individuais, ambas assinam a tradução de outros trabalhos do Círculo: O método formal nos estudos literários, de Pável Medviédev, e Questões de estilística no ensino da língua, de Mikhail Bakhtin. Na realidade, conhecem profundamente o pensamento bakhtiniano, não apenas a língua russa; e o leitor brasileiro, do qual são parte. Em relação a ele, em artigo que comentam o trabalho de traduções brasileiras de autores do Círculo, Grillo e Américo (2014) reconhecem a tensão entre a fidelidade ao texto russo e o contexto de recepção na língua portuguesa e afirmam:

Temos em mente um leitor estudioso da obra do Círculo de Bakhtin, isto é, um leitor ávido por compreender conceitos produzidos em um contexto intelectual preciso, em um tempo e em uma cultura distantes” (p.82).

Pretendem, assim, uma tradução que evite a “aproximação indevida da teoria do autor com correntes semióticas ocidentais […]” (p.81), mas que esteja atenta ao distanciamento temporal e cultural da produção de MFL. Nessa busca, no cap.2 O problema da relação entre a base e a superestrutura, já observamos muito maior clareza em relação à questão dos gêneros discursivos, preocupação dos membros do Círculo desde a década de 20 e pouco explicitada na tradução anterior, o que se tornou alvo de críticas recorrentes. Se temos ali “A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos ‘atos de fala‘ de toda espécie […]” (1981, p.42), na nova tradução temos “[…] a psicologia social é justamente aquele universo de discursos verbais multiformes que abarca todas as formas […]” (2017, p.107). E adiante: “A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da ‘enunciação’ sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores” (1981, p.42). Na nova tradução: “Na maioria das vezes a psicologia social se realiza nas mais diversas formas de enunciados, sob o modo de pequenos gêneros discursivos, sejam eles internos ou externos, que até o presente momento não foram estudados em absoluto” (2017, p.107). Ou, ainda, o título do capítulo A interação verbal (1981, p.110) é substituído por A interação discursiva, com a justificativa de estar ali presente o mesmo adjetivo russo do famoso texto de Bakhtin – Os gêneros do discurso (2017, p.201). Todos esses cuidados, porém, também respondem a críticas e debates que se seguiram e continuam surgindo em relação aos textos e conceitos elaborados pelos membros do Círculo. Assim, se num primeiro momento, num contexto francês (e depois brasileiro), a obra respondeu às teorias linguísticas daquele momento, com elas dialogando, aquiescendo, complementando, concordando, discordando, agora o diálogo continua, sob novas bases. Como afirma Brait, na orelha da nova tradução, reiterando sua importância e pertinência:

No estágio atual dos estudos bakhtintinianos, as (re)traduções , no Brasil e no exterior, devem-se à consciência de que o pensamento dialógico exige o conhecimento dos contextos de produção e de reprodução, para melhor situar os trabalhos, sua originalidade, seu diálogo polêmico ou não com outras vertentes do conhecimento. Nessa busca, a acessibilidade das fontes russas, arquivos e bibliotecas, possibilita a descoberta de primeiras edições, trabalhos não publicados, esboços preparatórios, documentos que atestam a vida profissional e acadêmica dos autores. […] os (re)tradutores são especialistas que se debruçam sobre as fontes primárias não apenas para divulgar obras e autores, mas para esclarecer a gênese e o alcance do pensamento. E as leituras se ampliam, enveredando por novos caminhos.

Notas. As notas representam, a meu ver, um ganho precioso para o leitor. Fiéis aos originais consultados, são em número bem maior do que aquelas que conhecíamos na primeira tradução: na atual tradução, 163: 107 do autor e 56 das tradutoras; na tradução anterior, 107: 96 notas do autor, 05 trazidas do tradutor do russo para o francês e 06 dos tradutores do francês para o português. No Prólogo na versão anterior, tínhamos apenas uma explicação da tradutora para o francês do que seria o “Skaz”, a partir da tradução francesa de La poétique de Dostoïevski; na correspondente Introdução atual, temos a oportunidade de um rico diálogo com Volóchinov nos comentários que ele mesmo adiciona ao texto principal. Assim, conta-nos que MFL é o “único trabalho marxista sobre a linguagem” que havia até então (1929), na nota de rodapé 1 (p.83); ou nos conta como os “fundadores do marxismo definiram o lugar que a ideologia ocupa na unidade da vida social”, na nota de rodapé 2 (p.84); apresenta sua visão acerca do positivismo e “o culto do ‘fato’ […] como algo inabalável e firme” (p.84), na nota de rodapé 3; ou destaca a pertinência do estudo que propõe na terceira parte – “o problema do enunciado alheio”- como um diálogo com os teóricos da literatura, nota de rodapé 10 (p.88).

As notas de rodapé são ainda um lugar privilegiado de diálogo com as tradutoras, que nos fornecem informações valiosas à compreensão do texto, ora por meio de notas históricas: “Aqui o autor se refere à abolição da servidão que, apesar de ocorrida em 1861, expressa um processo em curso desde o final da primeira metade do séc. XIX […]” (nota de rodapé 8, p.105); literárias, como a nota 7 (p.104), sobre a personagem principal de um romance de Turguêniev, ou a nota 66, sobre a obra de Dostoiévski, na tradução em português, “Pequenos retratos” em Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito […] (p.235), entre outras. Ainda há aquelas que justificam a escolha de termos para a tradução, como a nota de rodapé 12 (p.117), a respeito do debatido/controvertido termo russo perejivánie, “tradução da palavra alemã Erlebnis, que pode significar ‘vivência’ ou ‘experiência'”. Nesse sentido, importante ressaltar um princípio que guiou as tradutoras, em contraposição às opções anteriores de diferentes traduções, expresso por Grillo e Américo: “As escolhas dos tradutores [das versões em francês – dialectologie sociale, e inglês – behavioral speech genres da expressão rietchevye jiznennye jánry] parecem revelar que eles estavam menos preocupados com os termos empregados em russo, do que em encontrar paralelos com o contexto intelectual da época em que realizaram as traduções” (2014, p.80). Princípio que, sem dúvida, responde a críticas realizadas ao longo dos anos a noções como intertextualidade, gêneros do discurso e outras, que tiveram seu entendimento prejudicado em virtude de traduções anteriores que obliteraram o sentido do termo em russo. Bem interessantes para nós, estudiosos da linguagem, são as notas de n.28 e 29 (p.166-7), em que as tradutoras comentam as “dificuldades” de Volóchinov na tradução dos termos saussureanos, já que o Curso de linguística geral foi traduzido na Rússia apenas em 1933, depois da publicação de MFL, portanto. É sempre o respeito ao leitor, a resposta antecipada a questões correntes entre os estudiosos, e a contextualização cuidadosa de termos, noções e obras.

Glossário. Considerando a ampla divulgação do pensamento bakhtiniano, o fato de que suas obras não foram conhecidas do público na ordem em que foram produzidas ou mesmo traduzidas nas várias línguas, o glossário é precioso, além de preciso e redigido por pesquisadoras que conhecem o conjunto das obras do Círculo. Nas palavras de Grillo e Américo (2014, p.81), sua elaboração: “[…] nos auxiliará na manutenção de uma coerência na tradução dos conceitos bem como na compreensão do núcleo conceitual de MFL pelo leitor brasileiro”. Assim, os verbetes primeiramente são apresentados no original russo (em transliteração), com as páginas em que apareceram na presente edição; a seguir, as autoras não só o definem, mas colocam em diálogo o conceito com a própria obra em questão, por vezes com o todo do Círculo e ainda com o contexto de sua produção. Três exemplos:

Ato discursivo individual e criativo ou ato individual de fala, ou ato discursivo (individuálno-tvórtcheski akt riétchi ou individuálni ákt govoriénia, p.140, 148, 153, 200, 225, ou retchevói akt, p. 200) – conceito que se origina na obra de Humboldt e é posteriormente desenvolvido na de Potebniá. A língua é um processo constante de criação individual por meio dos atos discursivos dos seus falantes, diferentemente da sua concepção como conjunto de regras gramaticais e de seu léxico, ideia que Humboldt associa ao resultado do trabalho do linguista. Em Marxismo e filosofia da linguagem (MFL), o enunciado ora é equiparado ao ato discursivo ora é concebido como um produto deste (p.200) (p.353).

Fundo de apercepção (appertseptívni fon, p.254) – também traduzido por “fundo aperceptivo”, termo proveniente da psicologia e da filosofia. O termo aparece em trabalhos posteriores de Bakhtin como O discurso no romance (Teoria do romance I) e Os gêneros do discurso, e compreende as vivências interiores em que o discurso alheio é percebido (p.359).

Signo ou signo ideológico (znak, p.91, ou ideologuítcheski znak, pp.92-4) – dividem-se em signo interior (vnútrenni znak) e signo exterior (vniéchni znak), sem traçar um limite preciso entre ambos. O signo interior é a vivência no contexto de um psiquismo individual, determinado por fatores biológicos e biográficos. O signo exterior existe em um sistema ideológico coletivo e surge no processo de interação entre indivíduos socialmente organizados. Suas formas são condicionadas pela organização social desses indivíduos, pelas condições mais próximas da sua interação, do horizonte social da época e de dado grupo social: ou seja, a existência determina e refrata-se no signo. O signo é a realidade material da ideologia. Os objetos que chamam a atenção da sociedade entram no mundo da ideologia, se formam e se fixam nele, tornando-se signos ideológicos ao adquirirem uma ênfase social. A realidade que se torna objeto do signo constitui o seu tema. Uma vez que as diferentes classes sociais compartilham os mesmos signos, neles se cruzam ênfases multidirecionadas e portanto um signo se torna o palco da luta de classes. O signo pode tanto refletir quanto distorcer a realidade (p.366-7).

Anexo. O trabalho de tradução revela não apenas os estudos profundos das tradutoras como também a pesquisa nos arquivos originais, sobretudo no arquivo pessoal de Valentin Nikoláievitch Volóchinov, preservado no Arquivo Estatal da Federação Russa, em Moscou. É assim que o leitor é brindado com um Anexo, não expresso na Referência bibliográfica, que apresenta o Plano de trabalho de Volóchinov para a elaboração de MFL, constituído pelo terceiro relatório que produziu no ILIAZV, entre janeiro de 1927 e maio de 1928. São 27 páginas valiosas, em que podemos verificar como foi projetada a escritura de MFL, comparar o projeto com sua realização, conferir alterações (poucas), etc., observar o método de trabalho investigativo/produtivo do autor.

Ensaio introdutório. É o derradeiro texto que emoldura esta tradução. Sem dúvida, o texto de uma pesquisadora séria e competente (admirável!), Sheila Grillo, o ensaio nos mostra que a obra é uma “resposta à ciência da linguagem do séc. XIX e início do século XX” na Rússia. Como o prefácio de Patrick Sériot3, que também acrescenta um profundo estudo à tradução francesa mais recente de MFL4, o ensaio destaca a importância de ler no contexto original da obra, mas não se detém na questão da existência ou não do Círculo de Bakhtin, foco daquele prefácio. Aqui, a autora vai reconstruir a “biblioteca virtual” de Volochínov, por meio dos textos citados por ele em MFL, com o generoso objetivo de dar “acesso a novas camadas de sentido” (GRILLO, 2017, p.8) ao leitor brasileiro. Para compreender a posição teórica que ocuparam aquele tempo-espaço da linguística russa, a autora envereda por dois caminhos: (1) a leitura de manuais de linguística e de história da linguística contemporâneos russos (como os linguistas russos interpretam o período); (2) a observação do diálogo entre tais autores, os textos citados em MFL e a posição de Volóchinov. Desse modo, só podemos lhe agradecer por ter ajudado a nós, brasileiros, a preencher a lacuna que tínhamos em relação àquele fecundo período da linguística russa. É um texto obrigatório para todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos bakhtinianos.

Enfim, esta resenha não pôde disfarçar o tom apreciativo entusiasmado e altamente positivo em relação à nova (e tão esperada, necessária) tradução. Nós, os leitores, certamente acrescentaremos novas “contrapalavras” (1981, p.132) em nosso diálogo com o enunciado concreto que temos em mãos; ou buscaremos “antipalavras” (2017, p.232) às palavras da nova tradução. No grande tempo que nos separa da época da(s) primeira(s) publicação(s) – 1929/1979, ainda que não tão grande, os sentidos renascem e se renovam5, no novo cronotopo, este espaço-tempo que é o Brasil do início do séc. XXI.

1Compreendemos o texto-moldura “como parte constituinte de um enunciado concreto, no sentido bakhtiniano, o que implica, para a produção de sentidos, tanto o texto principal quanto o conjunto de textos que o apresentam, que o cercam verbal e/ou visualmente” (BRAIT; PISTORI, 2016, s.p).

2Grillo utiliza a tradução para o português nas citações de Saussure (tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, São Paulo: Cultrix).

3Recentemente traduzido para o português: SÉRIOT, P. Vološinov e a filosofia da linguagem. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. Sobre o Prefácio, cf. SOBRAL. A.; Giacomelli, K. MFL em contexto: algumas questões, in: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, 11 (3), p.154-173, Set./Dez. 2016.

4SÉRIOT, P. Préface. In: VOLOSINOV (Vološinov) Valentin Nikolaevic. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Édition bilingue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowkski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas, 2010.

5BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas / Mikhail Bakhtin; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017.

Referências

BAKHTIN, M. (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yaguello. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1981. [ Links ]

BRAIT, B. Orelha. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]

________. A chegada de Voloshinov/Bakhtin ao Brasil na década de 1970. In: ZANDWAIS, A. (Org.). História das ideias. Diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012, p.216-243. [ Links ]

________. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010, p.9-32. [ Links ]

BRAIT, B. & PISTORI, M. H. C. Recepção de Bakhtin e o Círculo: modos de ler. Comunicação oral em Encontro Anual Nacional GT/ANPOLL/Estudos Bakhtinianos – XI Jornada do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória. 29 de junho a 01 de julho de 2016. Universidade de Campinas/UNICAMP. [ Links ]

GRILLO, S. V. Ensaio Introdutório. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, p.7-80. [ Links ]

GRILLO, S. V. C.; AMÉRICO, E. V. As traduções brasileiras de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov. In: BRAIT, B. MAGALHÃES, A. S. Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.-89. [ Links ]

JAKOBSON, R. Prefácio. In: BAKHTIN, M. (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yaguello. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1981, p.9-10. [ Links ]

Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, São Paulo; Brasil. Editora Associada de Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso; mhcpist@uol.com.br.

Mitos e Imaginários Políticos na História | Temporalidades | 2018

A historiografia política (ou sobre o político) tem passado por importantes transformações desde o século XX. Essas mudanças começaram a se desenvolver principalmente a partir dos anos de 1960, quando as até então inabaláveis certezas de cunho sociológico ruíam. Nesse contexto, muitos historiadores começaram a questionar as interpretações que se fixavam nas grandes regularidades sociais analisadas de forma sincrônica.[1] Essas interrogações ajudaram a relativizar a concepção relativamente difundida até então, de que a história política seria superficial e anedótica, principalmente quando contrastada com as análises centradas nas questões sociais e econômicas. Estas, consideradas mais elaboradas, com explicações cientificamente validadas, ultrapassariam o imediatamente constatável, superando também as manipulações políticas típicas da estruturação e da manutenção do poder. Leia Mais

Objetos Inquietos | MODOS. Revista de História da Arte | 2018

Objetos e arte, arte e objeto… Estes termos-conceitos apareceram por muito tempo em situações de antítese, como se obras de arte não fossem objetos e como objetos fossem incapazes de serem artísticos. Dessa contingência, cristalizou-se a diferença entre objeto e obra, depreendendo-se que objetos eram para serem usados; pertenciam à ordem do material e eram produzidos por artífices; obras de arte estavam relacionadas ao espiritual; eram criadas por artistas e seriam próprias à visualidade, à distância, postura necessária à fruição estética. A historiografia da arte, na sua versão canônica, raramente procurou dissolver as distinções, mesmo que, desde o século XVIII, e principalmente no século XIX, algumas vozes procurassem estreitar as distâncias entre coisas realizadas por artistas e artífices (Diderot, Quatremère de Quincy, Ruskin, Morris). As histórias dos objetos acabaram por ficar a cargo de histórias das artes decorativas, do design, da cultura material, apartadas como apêndices ou corpos estranhos.

O termo objeto de arte (object d’art) insinuou uma aproximação. Contudo, pinturas e esculturas não são normalmente designadas como tal, mostrando o quanto a tentativa foi infrutífera. Basta percorremos sites de leilões e museus, buscar as categorias de objetos em oferta (expográfica ou de venda) para percebemos o quanto a categoria especifica uma certa tipologia de objetos, afeita a outras classificações como artes decorativas, artes utilitárias, artes mecânicas, artes industriais… Mesmo que o termo artefato, com aparição na língua inglesa em 1821, tenha ultrapassado a dicotomia objeto-obra, não foi suficientemente incorporado para os estudos da arte, permanecendo ainda a noção de objeto como o termo (termo-problema) mais disseminado nas discussões da história, teoria e crítica da arte. Leia Mais

Trinta anos da “Constituição cidadã”: contribuições da História e da Ciência Política / Estudos Ibero-Americanos / 2018

As constituições, de uma forma geral, possuem o importante papel de submeter o poder político ao direito, definindo “as regras do jogo” e subordinando o Estado à coletividade. Segundo Schmidt, elas garantem rigidez à estrutura de governo, delimitando as suas funções e, ao mesmo tempo, definindo os direitos e deveres dos cidadãos (SCHMIDT, 1982). Dessa maneira, o estudo dos textos constitucionais é passo importante para a compreensão de regimes políticos.

Entre os estudiosos da democracia, nas mais diferentes disciplinas, há um consenso sobre a importância da Carta Constitucional de 1988 para a compreensão do atual sistema político brasileiro. A carta magna ficou conhecida como “constituição cidadã” em virtude da ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, não apenas em relação à constituição que ela substituiu – a constituição de 1967 –, mas também em relação às demais constituições brasileiras.

A Constituição Federal promulgada em 1988 (CF 88) é o sétimo documento constitucional do Brasil independente. A primeira foi promulgada ainda no Império, em 1824, logo após a independência de Portugal. Essa constituição ficou marcada pela restrição dos direitos políticos a uma pequena parcela da população privilegiada economicamente e pela concentração de poder nas mãos do imperador por meio do estabelecimento do poder moderador, entre outras características. Era, portanto, uma constituição monárquica e autoritária.

A primeira constituição republicana do Brasil foi promulgada em 1891, e ela marca a institucionalização do Estado brasileiro como República Federativa presidencialista. Todavia, ainda apresentava profundas limitações à plena cidadania. Como exemplo, podemos destacar o fato de que os direitos políticos foram destinados apenas a homens e ainda que excluiu alguns setores da população numericamente relevantes no período, como a população analfabeta (BONAVIDES, ANDRADE, 2002). Além disso, o voto não era secreto, permitindo que poderes locais coagissem eleitores a votar de acordo com seus interesses, criando o chamado fenômeno do coronelismo (LEAL, 1975). Diante disso, tornou-se um consenso entre os estudiosos da temática que a primeira constituição republicana não representou uma garantia de cidadania e falhou na tarefa de submeter o poder político ao direito.

A terceira constituição – a segunda constituição republicana – foi promulgada durante o governo de Getúlio Vargas em 1934 e representou um avanço se comparada à sua antecessora. Entre os avanços registrados nessa constituição, convém destacar a ampliação do acesso aos direitos políticos, uma vez que estabeleceu eleições diretas, voto secreto e permitiu o voto feminino. O voto feminino, todavia, estava condicionado à autorização do marido quando a mulher fosse casada, entre outras restrições. Destaca-se ainda que a população analfabeta continuava excluída do sistema político. Por outro lado, alguns avanços foram registrados no âmbito dos direitos civis e sociais, em virtude da positivação dos direitos trabalhistas.

No entanto, apesar dos avanços registrados, essa constituição ficou vigente por pouco tempo: três anos depois, em 1937, Vargas outorgou uma nova constituição que ficou marcada pela concentração dos poderes nas mãos do chefe do poder executivo, forjando assim um caráter legal a um Estado autoritário que limitava os direitos civis e políticos. O estabelecimento de eleições indiretas para a presidência, a retirada do direito à greve, entre outras medidas, são exemplos de como a constituição de 1937 suprimiu várias liberdades previstas na sua antecessora (BONAVIDES, ANDRADE, 2002).

Com o fim do Estado Novo, em 1946, é instalada uma nova constituinte. A constituição que resultou desse processo marca o início de uma experiência democrática no Brasil, de acordo com Jorge Ferreira (FERREIRA, 2006). Com efeito, a constituição reestabeleceu a divisão de poderes e outros direitos sociais e políticos que haviam sido suprimidos pela constituição de 1937. Contudo, ela manteve a exclusão dos analfabetos.

Os avanços do período democrático que teve início em 1945 foram interrompidos pelo golpe de 1964, que procurou conquistar legitimidade política por meio da promulgação de uma nova constituição em 1967, a sexta constituição brasileira. O interesse dos militares em criar um arranjo político que combinasse características tradicionais de um regime democrático com a concentração de poderes nas mãos da cúpula militar e limitações à participação política, incentivou o governo a tentar manter a constituição democrática de 1946 nos primeiros anos após o golpe. Contudo, o caráter arbitrário dos atos institucionais se tornou ainda mais evidente com a multiplicação dos atos complementares, forçando os militares a promulgar uma nova constituição (ALVES, 2005, p. 65-123). Assim, a constituição de 1967 reuniu o aparato jurídico que pretendia justificar o Estado de direito mesmo diante de grandes impedimentos ao exercício da cidadania. Ao mesmo tempo, foram registrados avanços sociais (ROCHA, 2013, p. 33). Essa característica particular do regime militar brasileiro incentivou estudiosos a denominá-lo “regime burocrático-autoritário” (O’DONNELL, 1996), entre outras denominações.

Percebe-se que, ainda que teoricamente haja uma relação entre as constituições e a subordinação do Estado à coletividade (Cf. SCHMIDT, 1982; NASCIMENTO; MORAIS, 2007), no caso brasileiro, muitas vezes as constituições foram utilizadas para legitimar o arbítrio e os privilégios. Assim, no Brasil, o papel das constituições para a afirmação, o fortalecimento e a ampliação da cidadania nem sempre foi ativo, muito embora avanços tenham sido registrados entre os recuos e permanências da história constitucional brasileira. De qualquer maneira, constata-se que as constituições que representaram avanços tiveram pouco tempo de vigência e foram atingidas por golpes de estado que estabeleceram regimes autoritários que as substituíram.

Diante dessa trajetória histórica, é natural que a CF 88, que completa trinta anos em 2018, tenha se tornado um marco na história política nacional. O caráter “cidadão” atribuído à CF 88 refere-se à inédita adoção pelo Brasil de uma noção ampla de cidadania no texto constitucional. Para José Murilo de Carvalho (2015), partindo da definição proposta por Thomas MARSHALL (1967), a cidadania plena reúne a garantia de direitos políticos, civis e sociais, combinando “liberdade, participação e igualdade para todos” (CARVALHO, 2015, p. 14-15). Dessa forma, a sua existência está condicionada à ação do Estado em favor da garantia dos direitos ligados à participação do cidadão na vida política, os direitos fundamentais – tais como o direito à liberdade, à propriedade, à vida e à igualdade diante da lei – e os direitos sociais – relativos à distribuição justa das riquezas pela administração pública.

Os caminhos para se alcançar a cidadania plena se mostraram mais diversos do que a trajetória apontada por Marshall ao analisar a sequência de aquisição de direitos na Europa. O caso do Brasil, para Carvalho, evidencia a existência de trajetórias distintas, uma vez que, no Brasil, muitas vezes os direitos sociais antecederam os demais (CARVALHO, 2015). De qualquer maneira, pode-se afirmar que, no século XXI, a definição de cidadania plena relaciona democracia, liberdades individuais e justiça social.

A CF 88 afirma esses valores em seu texto. Em 1987, em um cenário marcado pela revitalização da participação popular, após décadas de “constitucionalização das normas antidemocráticas e das medidas de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis” (ROCHA, 2013, p. 29), a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada com a tarefa de destruir os resquícios autoritários, colocar fim ao lento processo de transição democrática e estabelecer uma relação entre democracia e cidadania no Brasil. Em seu discurso na promulgação da Constituição de 1988, Ulysses Guimarães, presidente da ANC refletiu sobre o papel da CF nesse processo:

“Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”. São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mudou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população, cabe advertir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aventurados os que chegam (CÂMARA DOS DEPUTADOS…, 1988, p. 14380).

O histórico discurso de Ulysses Guimarães aborda a relação entre direitos sociais, direitos civis e direitos políticos, destacando a dimensão participativa do processo constituinte. Assim, a CF 88 marca uma etapa importante do processo de democratização no Brasil e ficou caracterizada pelo seu caráter “cidadão”, por afirmar a legitimidade da cidadania plena e o papel do Estado em garanti-la.

Ao longo dos últimos trinta anos, diversos estudos procuraram se debruçar sobre a constituição, no intuito de analisar o seu papel para a compreensão das mais variadas dimensões do regime e da sociedade brasileira. As mais diversas disciplinas procuraram trazer contribuições para a compreensão da Carta Magna, seus efeitos e limites, dentre as quais merecem destaque o Direito, a Sociologia, a História e a Ciência Política. É possível citar abordagens variadas: a análise do texto constitucional; o papel do judiciário após 1988; as implicações da carta nos planos social e cultural; a relação entre os três poderes; as reformas constitucionais; e, mais recentemente, a dinâmica do processo constituinte, entre outras.

Na Ciência Política, merecem destaque as contribuições que procuraram conectar a relação entre o autoritarismo dos militares, o caráter negociado do processo de transição e a dinâmica interna da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) para a compreensão do documento promulgado em 1988 e o presidencialismo de coalizão pós-constituinte. A História, por sua vez, trouxe importantes contribuições sobre a mobilização popular que antecedeu a ANC e que trouxe a unificação da oposição em torno de alguns temas como direitos humanos, democracia, anistia política e constituinte. Assim, o diálogo entre as duas disciplinas parece apontar caminhos interessantes para a análise da CF 88 [1].

Em comemoração aos trinta da promulgação da constituição, o Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) – em parceria com o Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL), vinculado à Université Libre de Bruxelas (ULB) –, se propôs a receber e reunir contribuições da História e da Ciência Política para a compreensão das múltiplas dimensões da CF 88, se beneficiando da distância propiciada pelo passar do tempo. Em um momento de intenso debate político, interessa, sobretudo, lançar um olhar sobre o cenário político atual que estabeleça a sua relação com o passado, para então refletir sobre os diferentes usos da constituição feitos atualmente. O resultado dessa proposta é apresentado neste dossiê que reúne cinco artigos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, revelando diferentes olhares sobre a chamada constituição cidadã.

O primeiro artigo apresentado pelo dossiê intitulado “Do escravo ao escravizado: o longo caminho para a construção dos Direitos Humanos no Brasil”, de autoria de Vitale Joanoni Neto, busca estabelecer essa relação entre o passado e o presente proposta pelos organizadores do dossiê. A partir de uma análise de longa duração, o autor se propõe a compreender as diferentes formas assumidas pela escravidão no Brasil desde o período colonial, lançando luzes para a compreensão da persistência dessa grave violação dos direitos humanos mesmo em tempos de constituição cidadã. Para o autor, a persistência de desigualdades sociais com profundas raízes históricas não impediu que a CF 88 desempenhasse um importante papel no combate a essa prática, uma vez que, ao afirmar a importância da cidadania plena, deslocou o sentido da expressão “condição análoga à de escravo”. Dessa forma, fortaleceu os discursos que combatem a prática, sejam eles provenientes da sociedade civil, sejam provenientes do próprio poder judiciário.

O artigo “A participação em conflito na Assembleia Constituinte: confrontos discursivos e racionalidade dos atores” de Marie-Hélène Sá Vilas-Boas busca analisar o papel da Constituição de 1988 para a compreensão da dimensão participativa na dinâmica da própria constituinte. Para tanto, a autora se volta para o estudo dos debates em torno dos direitos políticos e da saúde, a partir da análise dos trabalhos de duas subcomissões distintas relativas a esses temas. Para Vilas-Boas a mobilização social que marcou o período contribuiu para que a dimensão participativa fosse destacada ao longo da ANC por meio das emendas populares, audiências públicas e outras ferramentas que permitiram que setores sociais influenciassem o texto final. Por outro lado, ainda que as elites tenham concordado com a participação desses setores, o texto final destaca o caráter representativo da participação e o relega à esfera coletiva por meio de grupos organizados e comunidades. Apenas na década de 1990 o conceito de “participação cidadã” passa a se fortalecer, em detrimento do conceito de “participação coletiva”.

Françoise Montambeault também aborda a questão da participação no artigo intitulado “Uma Constituição cidadã? Sucessos e limites da institucionalização de um sistema de participação cidadã no Brasil democrático”. Focando-se nos efeitos da carta nessa dimensão ao longo dos trinta anos que se seguiram após 88, a autora buscar analisar o papel da Constituição para a abertura de canais institucionais da participação cidadã no Brasil. Para a autora, ainda que a carta tenha o mérito de ter inscrito o princípio participativo no documento final, conectando-o com o modelo de democracia adotado, a efetivação desse princípio esteve condicionada à combinação da vontade social com o compromisso político. Para a autora, essa combinação se concretizou apenas durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT).

Em “Constituição de 1988: o avanço dos Direitos Humanos Fundamentais”, Maria Cecília Barreto Amorim Pilla e Amélia do Carmo Sampaio Rossi buscam compreender os avanços no âmbito dos direitos humanos fundamentais a partir da carta magna por meio da aplicação do método histórico-dialético. Para as autoras, a CF 88 reconheceu os direitos humanos fundamentais a partir de uma perspectiva ampla, porém o cenário global marcado pelo liberalismo impediu a plena implementação dos direitos sociais. Por outro lado, nesse cenário globalizado, a relação entre a constituição e os sistemas internacionais protetivos de direitos humanos contribuíram para o fortalecimento dos direitos fundamentais.

A sessão é concluída por Gustavo Müller, que contribui com o artigo ensaístico intitulado “Trinta anos nesta tarde: problemas endógenos e exógenos da trajetória democrática no Brasil pós-Constituição de 1988”. À luz dos preceitos constitucionais de 1988, o autor busca refletir sobre a atual crise vivida pelo sistema político brasileiro. Para Müller, fatores endógenos e exógenos explicam a atual crise e dificultam que os atributos da Carta Magna sejam capazes de impedir que o Brasil viva um processo de “des-democratização”.

Finalmente, o dossiê completa-se com a entrevista com Olivier Dabène, cientista político especialista em democracias na América Latina. A partir de um olhar comparado, o estudioso reflete sobre os trinta anos de democracia no Brasil, enfatizando os diferentes usos da chamada “constituição cidadã” em tempos de crise política.

Desejamos a todos uma excelente leitura!

Nota

1 Há uma farta produção tanto na Ciência Política, quanto na História sobre as diversas dimensões da constituinte e o seu papel para a compreensão do regime político. Entre elas, destacamos as seguintes: ARAÚJO, 2010; ARAÚJO, 2013a; ARAÚJO, 2013b; MONCLAIRE, BARROS FILHO, 1988; FIGUEIREDO, LIMONGI, 1999.

Referências

ARAÚJO, Cícero; CARVALHO, M. A. R.; Simões, J. (Org.). A Constituição de 1988: Passado e Futuro. São Paulo: Hucitec, 2010. v. 1. 273p.

ARAUJO, Cicero. A forma da república: da constituição mista ao Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2013a. v. 1. 376p.

ARAÚJO, Cícero. O processo constituinte brasileiro, a transição e o Poder Constituinte. Lua Nova, São Paulo, n. 88, 2013b.

BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 2002.

CÂMARA DOS DEPUTADOS – Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Discurso de Ulysses Guimarães proferido na sessão de 5 de outubro de 1988. Escrevendo a História – Série Brasileira. Publicado no DANC de 5 de outubro de 1988. p. 14380- 14382. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2018.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 19. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FERREIRA, Jorge. A democracia no Brasil (1945-1964). São Paulo: Atual, 2006. v. 1. 136p.

FIGUEIREDO, Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. v. 1. 232p.

O’DONNELL, Guillermo. El Estado burocrático-autoritário: trunfos, derrotas y crisis. Buenos Aires: Editorial de Belgrano, 1996.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. 2. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.

MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

MONCLAIRE, Stéphane; BARROS FILHO, Clóvis. Brésil: l’écriture d’une constitution. Politix, v. 1, n. 2, 1988.

NASCIMENTO, V. R.; MORAES, J. A cidadania e a Constituição: Uma necessária relação simbólica. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 44, n. 175 jul. / set. 2007.

SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982.

ROCHA, Antônio Sérgio. Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização. Lua Nova, São Paulo, n. 88, p. 29-87, 2013.

Teresa Cristina Schneider Marques – Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora do Centro Brasileiro de Pesquisa em Democracia (CBPD). E-mail: teresa.marques@pucrs.br

Fredéric Louault – Doutor em Ciência Política pelo Institut d’Études Politiques de Paris (Sciences Po – Paris), professor de Ciência política na Université Libre de Bruxelles (ULB). Pesquisador do Centre d’Études de la Vie Politique (CEVIPOL). E-mail: flouault@ulb.ac.be


MARQUES, Teresa Cristina Schneider; LOUAULT, Fredéric. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 2, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos – DOMINGUES (K)

DOMINGUES Ivan www ufmg br Filosofia no Brasil

DOMINGUES, I. Filosofia no Brasil: legados e perspectivas. Ensaios metafilosóficos. São Paulo: Unesp, 2017. 561p. Resenha de: GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Kriterion vol.59 no.140 Belo Horizonte May/Aug. 2018.

Em Ivan Domingues um impecável ethos acadêmico transpõe-se também na esfera de sua atuação pública, intervindo no debate político e cultural, no exercício de cargos de representação, nos quais foi responsável por iniciativas decisivas, nos âmbitos do ensino, da pesquisa, da inovação e da extensão. Um protagonismo que levou à criação do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo, grupo interdisciplinar da Universidade Federal Minas Gerais que consolidou rica expertise em biotecnologias e regulações éticas, jurídicas e políticas; mas que também marcou as gestões de Ivan Domingues, que fizeram história, como coordenador de área do conhecimento em instituições como a CAPES e no CNPq. Justifico a recordação desses dados biográficos como necessidade para resgatar o pano de fundo biográfico, intelectual e institucional, de onde emerge a obra ora publicada – um sólido background essencialmente marcado pela epistemologia.

“Filosofia no Brasil” é uma obra em estrita afinação com a trajetória filosófica do autor, e Ivan Domingues não seria o epistemólogo que é, pioneiro entre nós no campo das relações entre filosofia e ciências humanas, se permanecesse num registro unicamente historiográfico. Em vez disso, fiel à sua formação acadêmica, Domingues sintetiza também nessa obra diferentes perspectivas interdisciplinares, consciente de que o problema da filosofia no Brasil se inicia pela problematização de sua própria existência e natureza, assim como por suspeições concernentes à sua relevância.

Em consonância com tais coordenadas, “Filosofia no Brasil” constitui-se num conjunto de ensaios reunindo legados e perspectivas a respeito de um objeto que o próprio livro ajuda a conformar: a filosofia tal como esta se atualizou no Brasil ao longo de uma história distendida do período colonial aos nossos dias. Trata-se de uma obra que se constrói a partir de um vértice metafilosófico, e que, portanto, de modo algum deve ser confundida com um livro de história da filosofia. Nele Ivan Domingues faz uso independente, criativo e teoricamente fecundo do recurso aos tipos ideais, cunhados na Sociologia por Max Weber, para caracterizar as diferentes modalidades nas quais e pelas quais uma racionalidade de tipo propriamente filosófico realizou-se diferencialmente no Brasil, sob a influência de condicionantes socioeconômicas, políticas e culturais que vincam a realidade brasileira.

Firmada nas bases teóricas e metodológicas que dão sustentação à sua “Filosofia no Brasil”, o ducto argumentativo de Ivan Domingues deixa atrás de si os trilhos desgastados que até então determinaram os rumos nos quais o problema da existência de uma autêntica filosofia no Brasil foi (mal)entendido ao longo de décadas. Além e aquém da alternativa supostamente incontornável que opõe uma filosofia brasileira ou do Brasil a uma filosofia feita no Brasil – evitando a cilada consistente em assumir como ponto de partida da argumentação uma determinada concepção hegemônica de Filosofia, para então descartar a possibilidade de que haja ou tenha havido uma experiência filosófica genuinamente brasileira -, Domingues se esforça por reconstituir as distintas figuras de racionalidade filosófica que se tornaram historicamente efetivas entre nós, seja no quadro de uma sociedade com uma economia de tipo agrário-rural, seja na passagem desse tipo de organização socioeconômica para o modelo urbano-industrial de configuração. Tais mudanças deixam suas marcas nas modalidades diversas em que tem se realizado entre nós a experiência filosófica, e que Ivan Domingues reconstitui com um instrumentário metodológico que leva em conta a natureza da obra, bem como os vínculos que a ligam tanto com a dimensão de sua autoria, como a instância que a produz, assim como com o público ao qual é destinada.

Desse modo, cada um dos ensaios que compõem o livro é consagrado a um dos momentos marcantes da experiência sócio-histórico-econômica brasileira, no interior de cujos marcos culturais vem a configurar-se uma racionalidade filosófica específica – tipicamente brasileira -, que se expressa num ethos filosófico tipificador, a que Ivan Domingues faz corresponder também um tipo de ratio particular. Estes são os legados e perspectivas, reunidos, organizados e interpretados sob uma ótica metafilosófica, que apreende o que neles há de racionalidade filosófica, ao mesmo tempo idiossincrática, tipicamente brasileira, mas como modalização da universalidade própria da filosofia.

Trata-se, então, de ensaios tendo por eixo o cruzamento entre a metafilosofia e a história intelectual, a história da filosofia e a exegese filosófica como fonte, meio e ferramenta, não como tema, problema ou objeto. O verdadeiro objeto, ou o problema do livro, encontra-se situado na confluência entre duas vertentes: uma delas é, como já dito, a vertente metafilosófica, em grande parte lastreada nos embasamentos históricos da filosofia nacional, com recurso às obras de João Cruz Costa, Paulo Eduardo Arantes, Henrique Cláudio de Lima Vaz, Silvio Romero, Tobias Barreto e vários outros. A outra é a vertente da história intelectual, história de formação da intelligentia brasileira -dilatada ao longo do livro rumo à história social e cultural, acarretando a incorporação dos chamados pensadores do Brasil, e aqui os interlocutores privilegiados são Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, sem excluir a presença significativa de outras fontes científicas. Trata-se, portanto, de um cruzamento de perspectivas interdisciplinares, articuladas pelo labor rigoroso e metódico do epistemólogo experimentado.

O trabalho propriamente hermenêutico realizado no livro é estruturado com base numa hipótese axial: ela consiste em procurar a experiência filosófica e da intelectualidade lá onde tais experiências normalmente podem ser achadas, mais precisamente, onde elas se encontram objetificadas: a saber, nas instituições, nas revistas e nos livros, largamente evidenciada (a hipótese) no caso do intelectual orgânico da Igreja e do sistema de ensino dos jesuítas, assim como no caso do Scholar e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, além daquela extração enorme saída do Sistema Nacional de Pós-Graduação da CAPES e espalhada hoje por todo o país. Tudo isso, no entanto, sem preocupação de exclusividade, mas consciente da necessidade de manter-se aberto a outras possibilidades e variações, com a consequente exigência de introdução de complementos, contrapontos e hipóteses auxiliares ad hoc.

Com lastro nessas premissas, o recurso metodológico aos tipos ideais de Max Weber torna-se particularmente produtivo, ao permitir o delineamento meticuloso das figuras que constituem o âmago do livro, nas quais se combina tipificação abstrata e periodização histórica: [1] O clérigo colonial, ou o apostolado jesuítico, pautado pela ratio studiorum da Companhia de Jesus. Ao ethos da pedagogia jesuítica para o ensino da filosofia corresponde uma forma de ratio que é a do intelectual orgânico e da Colônia. [2] O intelectual estrangeirado do Império e da República Velha, cujo modelo é o diletante oriundo do universo do direito, e cuja ratio é marcada pelo estilo bacharelesco do intelectual oriundo das então denominadas ‘ciências jurídicas e sociais’, ou seja, do âmbito do Direito. [3] O intelectual do Brasil moderno, cujo modelo é o Scholar, e cuja ratio é haurida no estudo verticalizado e sistemático das obras dos pensadores matriciais da história da filosofia, tal como praticado no trabalho da Missão Francesa na Universidade de São Paulo, desde a fundação do Departamento de Filosofia da USP. A ratio assim constituída é instanciada, hoje, no Homo Qualis, bem como no Homo Lattes. [4] O filósofo profissional e público contemporâneo – fusão do erudito e do intelectual investido de uma missão política, cujas figuras mais emblemáticas na filosofia brasileira são José Arthur Giannotti, Marilena Chauí e Henrique Cláudio de Lima Vaz – o padre Vaz, tal como é mais conhecido. [5] Enfim, o filósofo cosmopolita globalizado, o polímata (de πολυµαθής – que aprendeu muito), o homo universalis, ou o pensador de largos horizontes – figura especulativa e sondagem do futuro.

Se, ao longo de seu percurso, “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas” vai construindo sua identidade diferencial em relação a um mero exercício de historiografia, nem por isso, no entanto, o livro deixa de lançar luzes sobre a história das perspectivas e legados de natureza filosófica que integram a história da intelectualidade brasileira. Por causa disso, o livro guarda um registro de suas parcerias e interlocuções, tanto expressas como tácitas, com segmentos próximos e distantes, como é particularmente o caso da “História da Filosofia do Brasil”, de Paulo Margutti. Por causa disso, Domingues também, de certo modo, coloca-se a questão da filosofia no e do Brasil, ou da filosofia brasileira. E esta, como sabemos, foi, nas últimas décadas, uma vexata quaestio, fortemente marcada por uma atmosfera intelectual de intensa hostilidade e aberto conflito – quase nunca bem formulado, jamais adequadamente compreendido em seus verdadeiros elementos.

Ora, justamente nessa seara, este último livro de Ivan Domingues é, a meu ver, a mais completa e meritória contribuição e o mais bem-sucedido resultado do esforço para formular o pensamento desse conflito, entendendo-se a palavra etimologicamente, como probállō, o ato de lançar ou colocar diante de si o que se tem como questão, assunto ou dificuldade, como condição para descobrir algumas vias de solução. Nesse sentido, “Filosofia no Brasil” marca um momento de enorme importância para a comunidade filosófica brasileira, e isso porque a obra inaugura um novo patamar sobre o qual pode situar-se o debate sobre a filosofia no Brasil, e coloca sólidos alicerces para uma autêntica autocompreensão dos avatares da racionalidade filosófica histórica, tal como realizada ao longo da história do Brasil, incluindo a adequada compreensão de seu presente, bem como com perspectivas abertas sobre o futuro.

Numa apresentação de seu próprio livro, Ivan Domingues comparou a literatura e a filosofia no Brasil, e, nessa comparação, formulou a questão: “a pergunta que fica, portanto, é se um dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Vale a pena refletir sobre essa pergunta à luz de uma outra contribuição notável de Ivan Domingues para a filosofia feita no Brasil. Com isso, chamo a atenção do leitor para a continuidade que existe entre este último livro de Domingues e o anterior: “O Continente e a Ilha”.

Com efeito, também em “O Continente e a Ilha” a operação teórica e metodológica de base consistia em sintetizar perspectivas interdisciplinares, com vigoroso lastro empírico, com o objetivo de encontrar, nessa síntese, um poderoso elemento auxiliar para a contextualização dos fatores determinantes da formação de tradições filosóficas, com seus respectivos estilos intelectuais. Tratava-se então, lá como aqui, de reconstituir um horizonte histórico que se oferecesse como lastro, como âmbito de emergência e matriz para certos tipos de racionalidade filosófica, num gesto que desativa preconceitos arraigados, que alimentam generalidades vagas e reforçam a exterioridade de polarizações irrefletidas, gerando fatores que tanto impedem a situação de verdadeiros problemas, quanto o controle das argumentações.

É assim que “O Continente e a Ilha” mapeia as trilhas da filosofia contemporânea, descobrindo os pontos de aproximação e contato, bem como os de afastamento e confrontação, entre as tradições insulares e continentais. Penso que “Filosofia no Brasil” se vale, e muito, do aprendizado haurido das experiências que conduziram ao livro anterior. Em “O Continente e a Ilha”, a conclusão apontava para a alternativa da “experiência existencial”, para evitar as reduções tanto do logicismo (da tradição analítica) quanto o historicismo (reconstruções contextuais) da hermenêutica continental. Em diálogo com Geroges Canguilhem, Ivan Domingues indicava o “espaço da reflexão” como o terreno próprio da filosofia. Por espaço da reflexão, o autor entende um espaço que é, ao mesmo tempo, existencial, real e virtual, e consiste em quadros abstratos e conceitualizáveis, que organizam ‘as coisas mesmas’, e que remetem sempre à experiência, sendo comparáveis, e, por causa disso, abertos ao diálogo e suscetíveis de discussão. Em “O Continente e a Ilha”, assim como em “Filosofia no Brasil”, avultam tanto os ensaios quanto a importância de remissões a Montaigne – para destacar a potência da imaginação e as virtudes do gênero filosófico-literário dos ensaios. Poderíamos adivinhar aqui uma aproximação entre dois epistemólogos que refletem sobre a tarefa da filosofia num momento particularmente crítico de sua história. Talvez essas duas obras de Domingues pudessem ser lidas como ensaios nascidos dessa condição atual de crise da filosofia.

Refiro-me aqui a um diálogo latente entre Ivan Domingues e Michel Foucault, já que ambos estão de pleno acordo quanto à importância do ensaio na presente atualidade da Filosofia. Tanto é assim que, a respeito do ensaio como gênero filosófico, Michel Foucault escreveu, no segundo volume da “História da Sexualidade 2: o Uso dos Prazeres” (p. 13), o seguinte:

Mas o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. O ‘ensaio’ – que é necessário entender com a experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não com a apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ‘ascese’, um exercido de si, no pensamento.1

Ora, sabemos que o ensaio como o corpo vivo da filosofia constitui, em Foucault, um legado que é caudatário, com toda certeza, de Montaigne, mas também remete a seu nietzscheanismo visceral. E o que acontece do lado de Ivan Domingues? Alguma coisa mudou, nesse sentido, do “Continente e a Ilha” para “Filosofia no Brasil. Legados e Perspectivas. Ensaios Metafilosóficos” em relação ao presente e ao futuro da filosofia? Seria esse um vislumbre de resposta para a pergunta: será que um “dia teremos o nosso Machado, o nosso Rosa e o nosso Kant em filosofia. E por que não? – bem poderia ser a resposta, na forma interrogativa, num misto de dúvida, de esperança e de desafio”. Seria esta uma pista que nos remete a um contorno um pouco menos esmaecido desse horizonte por onde deverá transitar, no Brasil, o intelectual cosmopolita?

Referências

FOUCAULT, M. “História da Sexualidade 2: O uso dos Prazeres”. Trad. M. T. C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984. [ Links ]

Oswaldo Giacoia Junior – Universidade Estadual de Campinas. Campinas – SP – Brasil.

 

Educação de Mulheres no Brasil e em Portugal (séculos XIX e XX) / Cadernos de História da Educação / 2018

A educação escolar primária, secundária e universitária, bem como o trabalho escolar de mulheres preceptoras (século XIX) e de mulheres professoras primárias (século XX), foi objeto de estudo de pesquisadoras do Brasil e de Portugal, integrantes do Projeto de Pesquisa Educação de Mulheres no Brasil e em Portugal (séculos XIX e XX), que é parte do Grupo de Políticas e Organizações Educativas e Dinâmicas Educacionais da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Coimbra, e que tem o apoio institucional do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), da Universidade de Coimbra (Portugal).

Com o título Educação de Mulheres no Brasil e em Portugal (séculos XIX e XX), presente Dossiê é composto de cinco artigos de professoras pesquisadoras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, da Universidade Tiradentes de Sergipe, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, da Universidade de Coimbra, da Universidade Estadual do Ceará e da Universidade Pontifícia Católica do Paraná. Em seu conjunto, todos esses trabalhos visaram reconstituir a história da educação de mulheres e de mulheres educadoras, nascidas nos séculos XIX e XX, que estudaram e / ou trabalharam em lugares e tempos distintos, com níveis de estudos diferenciados, além de pertencerem a classes sociais desiguais, marcadas por suas divisões e suas diferenças.

Para reconstituir a história da educação dessas mulheres, que se sucedem e que se renovam a cada geração, pesquisamos em diários, cartas, anúncios e matérias de jornais, revistas de educação e de instrução destinadas às famílias, entrevistas orais, relatos educacionais e legislação educacional. Enfim, fontes documentais que induzem a questionamentos vários sobre a educação de mulheres e / ou sobre o trabalho educacional de mulheres educadoras, além de possibilitar a desmitificação de certos dogmas e estereótipos consagrados pelo senso comum ou mesmo pelas generalizações que “ganharam” notoriedade.

No artigo “Preceptoras estrangeiras para educar meninas nas casas brasileiras do século XIX”, Maria Celi Chaves Vasconcelos começa por registrar a chegada de mulheres europeias no Brasil, com a finalidade de trabalhar como preceptoras nas casas das elites oitocentistas, para então discutir as práticas de educação que desenvolviam para ensinar, particularmente, meninas. A educação das meninas, a cargo dessas preceptoras, era considerada uma distinção social, inclusive considerando-se o fato de que se baseava em modelos escolares análogos aos europeus.

No texto “A educação em nível primário da professora Isabel Doraci Cardoso (1940- 1944): uma história da educação vista de baixo”, Raylane Andreza Dias Navarro Barreto analisa o processo de formação escolar da professora sergipana Isabel Doraci Cardoso, que fez o seu curso primário, entre o final dos anos de 1930 e meados de 1940, numa Escola de modalidade Isolada. Bem marcante, nesse texto, é o modo como se vai delineando o estabelecimento das fronteiras entre as condições materiais e as educacionais experienciadas, pelo sujeito dessa vivência, uma revelação que se sobressai de sua narrativa.

No trabalho “Educação em nível secundário de moças de Natal e de Coimbra (1941- 1948)”, Marta Maria de Araújo e Cristina Maria Coimbra Vieira refletem sobre as dimensões formativas e autoformativas da educação secundária de Petronila da Silva Neri, no Ateneu Norte Riograndense (Natal-Brasil), e de Maria Isabel Dinis Pedroso de Lima Gonçalves Neves, no Liceu Nacional Infanta D. Maria (Coimbra-Portugal), no período de 1941 a 1948. A análise histórica a que procederam as autoras revela que a formação escolar completa e uniforme, e igualmente a autoformação das estudantes Petronila da Silva Neri (Natal-Brasil) e Maria Isabel Neves (Coimbra-Portugal) foram análogas às interações intergeracionais e às interações intrageracionais, o que confirma estarem em articulação com os propósitos formativos universalizáveis.

No texto “Educação formativa de uma líder política cearense: Maria Luiza Fontenele (1950-1965)”, Lia Machado Fiuza Fialho e Vitória Chérida Costa Freire discorreram sobre o processo formativo na educação familiar, primária, secundária e universitária, bem como sobre a inserção política de Maria Luiza Fontenele, professora, educadora, política – a primeira mulher prefeita de uma capital brasileira – a cidade de Fortaleza-Ceará. Em sua pesquisa, as autoras constatam que a educação secundária, no Liceu do Ceará, ocorreu em concomitância com a formação política de Maria Luiza, iniciada no Grêmio Estudantil e na Juventude Estudantil Católica. Sua educação superior, na Universidade Federal do Ceará, no curso de Serviço Social, como atestam as autoras, favoreceu o engajamento no Movimento Estudantil e a atuação sociopolítica.

No artigo “Aspectos de trajetórias de professoras rurais no Paraná (1957-1979)”, Rosa Lydia Teixeira Corrêa analisa aspectos da trajetória de professoras que atuaram em escolas primárias com turmas multisseriadas na zona rural, no município de Bocaiúva do Sul, no Estado do Paraná, entre os anos de 1957 e 1979. Essas professoras com incipiente formação inicial e a gradativa formação profissional em curso normal regional, exerciam múltiplas funções, sendo inclusive, elas próprias, que, em certas situações, assumiram os encargos financeiros decorrentes da aquisição de material escolar para seus alunos.

Essa reconstituição favoreceu a construção de um conhecimento histórico sobre a educação de mulheres e sobre o trabalho escolar de mulheres educadoras no Brasil e em Portugal (Séculos XIX e XX), que possibilita, necessariamente, a compreensão das singularidades, das diversidades, das semelhanças, das diferenças intranacionais e internacionais, além do que é particular e universal na educação das mulheres educadoras que escolhemos para pesquisar, e até de outras mulheres com suas variabilidades de condições educacionais sociais e materiais.

Marta Maria de Araújo – Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil). Líder do Grupo de Pesquisa “Estudos Históricos Educacionais” (UFRN / CNPq) e pesquisadora do “Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação (Auto) Biografia e Representações (GRIFAR / UFRN)”. E-mail: martaujo@uol.com.br

Cristina Maria Coimbra Vieira – Doutora em Ciências da Educação (Psicologia da Educação) pela Universidade de Coimbra. Professora Associada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra (Portugal). Investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20). Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE) e Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM). E-mail: vieira@fpce.uc.pt


ARAÚJO, Marta Maria de; VIEIRA, Cristina Maria Coimbra. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 17, n.2, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Transe, êxtase e possessão / Revista Brasileira de História das Religiões / 2018

Caro leitor,

Com muita alegria lançamos a edição n. 31 da Revista Brasileira de História das Religiões, publicação vinculada ao Grupo de Trabalho de História das Religiões e das Religiosidades (GTHRR) da Associação Nacional de História (ANPUH). Esta edição traz como norte das reflexões dos pesquisadores os transes, êxtases e possessões que marcam tantas crenças.

A chamada temática é iniciada com um artigo de Vanda Fortuna Serafim, que se debruça sobre os fenômenos de transes, êxtases e possessões voltando seu foco para as crenças afro-brasileiras. O texto traz instigantes reflexões conceituais e abre com propriedade esta sessão da Revista. Na sequência o artigo de Linderval Augusto Monteiro e Ana Maria Vallias Silveira aprofunda a reflexão sobre o pensamento de Roger Bastide, especificamente acerca da noção de existência. O terceiro texto voltado às questões da religiosidade afro-brasileira é de autoria de Paulino de Jesus Francisco Cardoso e de Lisandra Barbosa Macedo. A reflexão dos autores trata da musicalidade, dos ritmos e melodias, bem como das relações dessas com o corpo, em crenças afro-brasileiras.

David Mesquiati Oliveira e Kenner Roger Cardozo Terra voltam sua perspectiva analítica para a questãos do êxtase na experiência religiosa pentecostal evidenciando a manifestação e sua importância na hermenêutica dessa matriz. Finalizando a sessão da chamada temática, temos o texto de Denise da Silva Menezes do Nascimento analisando os êxtases e visões de Mechthild de Magdeburb, religiosa beguina que registrou sua experiência produzindo as fontes em avaliação pela autora.

A sessão artigos livres traz textos de variadas temáticas, evidenciando a proficuidade das análises do campo religioso contemporâneo. Entre os temas abordados temos reflexões metodológicas, discurso espírita, secularização em Portugal, exvotos, devoção católica em articulação à crenças e práticas afro-brasileiras, deuses nórdicos, movimentos de matriz oriental e avaliação de lideranças religiosas.

O volume find com uma resenha instigante para estudiosos das religiões e, sobretudo, da história do catolicismo.

Desejamos a todos uma boa leitura!

Gizele Zanotto

Editora da Chamada Temática


ZANOTTO, Gizele. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.31, n.11, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana – SOARES (Topoi)

SOARES, Carmen Lúcia. Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de: PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi v.19 n.38 Rio de Janeiro May/Aug. 2018.

A terra, o ar, o mar e nós. Talvez assim fosse possível resumir, sem interferir demais nos seus sentidos, as histórias que Carmen Lúcia Soares reuniu em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana (Soares, 2016). Trata-se de uma edição bem cuidada da editora Autores Associados e tecida por mais 11 estudiosos do tema da natureza. São os textos dos franceses Bernard Andrieu e Sylvain Villaret, dos argentinos Laura Marcela Méndez e Pablo Ariel Scharagrosky e dos brasileiros Alexandre Fernandez Vaz, André Dalben, Carlos Herold Junior, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, Janes Jorge, Vinicius Demarchi Silva Terra e Joana Carolina Schossler que dão forma ao conjunto das análises das quais resultam uma mesma compreensão da natureza. Aquela que a percebe não como a-histórica ou imóvel, fixa e imutável, mas enquanto construção social, cultural e politicamente constituída. Por todo o livro, tal qual marca d’água na página, há um só tema – a vida ao ar livre e as relações do corpo com uma natureza reconfigurada pela cultura, por nossas crenças e saberes. As mesmas relações de poder e dominação que animam a sociedade e a política fomentam as representações, as sensibilidades e a compreensão que nos enlaçou ao sol e ao mar das praias, às águas e ao calor dos balneários, aos campos e parques da moda desde o último século. É das mudanças dessas representações, sensibilidades e compreensão que o conjunto reunido neste inspirado volume trata.

No capítulo inicial, Carmen Lúcia Soares explicita as questões centrais do conjunto em três notas substanciais sobre as ideias de natureza, a ordem urbana e como a escolarização reordena os hábitos de vida ao ar livre. Em seguida, Alexandre Fernandes Vaz trata do tema da natureza na obra de Walter Benjamim. Depois, Sylvain Villaret, com seu estudo da educação física, e André Dalben, escrevendo sobre parques infantis e colônias de férias, trabalham com a presença da educação na construção da natureza-jardim e do vigor do corpo. Seguem-se as reflexões de Laura Marcela Mendez com Pablo Ariel Sharagrodsky e Carlos Herold Júnior acerca do escotismo. O tema da água e das práticas sociais em torno dela foi tratado em seguida por Denise Bernuzzi de Sant’Anna em relação à distribuição, por Janes Jorge, a respeito da represa, e finalmente, por Vinicius Demarchi Silva Terra em relação à praia. O livro encerra-se com dois belos ensaios sobre o sol e suas implicações sociais. O primeiro deles, de Joana Carolina Schossler, trata da prática do veraneio no litoral gaúcho. O outro, de Bernard Andrieu, ocupou-se dos efeitos dos tratamentos que se desenvolveram com base no uso da luz natural para nossa relação com a natureza.

Ainda que composto por uma dezena de textos de autores diferentes, o argumento central do livro está justamente nesse conjunto que se formou. Por entre a ordem urbana, a crítica romântica, o naturismo, os parques-infantis e as colônias de férias, o escotismo, as águas das cidades, as praias e o seu calor tem-se contato com instituições e práticas voltadas para a vida ao ar livre. É da perspectiva aberta na historiografia francesa por Alain Corbain e Georges Vigarello para estudar as sensibilidades e as relações que os sentimentos mantêm com o corpo que as análises seguem. Entretanto, a história que se vai encontrar neste livro é a cultural e contribui para animar esse campo de pesquisa no Brasil com uma compreensão especial das interfaces existentes entre a ordem urbana, a relação humana com a natureza e a educação. Tanto do ponto de vista das instituições quanto das práticas, o esforço de cada autor reunido neste volume auxilia no entendimento de como as concepções médicas e educativas acerca da vida ao ar livre constituíram-se em um elemento da cultura contemporânea.

Assim, a cultura clubística expressiva da ordem urbana que vai se impondo a partir dos anos 1920 é estudada por meio da análise do que significaram para a cidade os clubes Germânia, de Regatas Tietê, de Regatas São Paulo, Esportivo da Penha, Atlético Indiano, o Internacional de Regatas, de Regatas Saldanha Marino e do Iate Clube Paulista. Sobretudo, em torno das águas, um conjunto de instituições de esporte ou lazer consolidou práticas associadas ao corpo e à sua saúde e sua beleza. Nesse mesmo sentido, a praia como lugar de lazer, espaço por excelência do veraneio, oferece ao corpo o contato com o mar, o banho de sol, o litoral de balneários e hotéis para o turismo de férias. À beira-mar, práticas de bronzeamento, de divertimento e mesmo de exibição estética ou atlética marcam a presença humana na paisagem por meio das distinções sociais e normas impostas pela sociedade. Os diferentes aspectos da mudança de sensibilidade em relação aos benefícios da água e dos esportes para a saúde são tratados nos capítulos “A represa de Guarapiranga e os esportes na região de São Paulo”, “A invenção da praia de Santos” e “Sol e mar: veraneios no litoral gaúcho no início do século XX”, e, especialmente, questionados do ponto de vista dos seus significados políticos e sociais.

Em outra frente de preocupações, o escotismo, a educação extraescolar em parques infantis e colônias de férias desvelam a beleza paisagística do território nacional ou afirmam a natureza-jardim como espaços de cura ou aprendizagem. Desde a serra da Mantiqueira, aqui no Brasil, até Comodoro Rivadavia e Tantil, na Argentina, símbolos pátrios ou signos da vida e da sociabilidade perdida pela urbanização desordenada de metrópoles como São Paulo e Buenos Aires foram produzidos pela exploração da ideia de um valor supremo da beleza natural. Os parques infantis se valeram ainda do jogo de distinção das elites que fazia dos parques um cenário, uma figuração da natureza na trama urbana, para legitimarem-se perante o discurso médico favorável à vida ao ar livre. Na cidade, os parques infantis propunham embelezamento e higiene por meio de uma arquitetura e de desenhos paisagísticos capazes de opor à memória do passado rural “uma natureza inventada como genuinamente nacional” (p. 103). De fato, como mostram Dalben, Méndez e Scharagrodsky e Herold Júnior, as práticas sobre ou a partir da natureza são “uma elaboração social e cultural, uma complexa operação discursiva produzida em um espaço e tempo determinados” (p. 116).

Ao ar livre, o escotismo, a brincadeira infantil, a terapêutica, a disputa esportiva, o lazer da família em férias e a identidade que se constrói pacientemente em consonância com a moda ressignificam a natureza, tornando-a apropriada, codificada, dominando-a, enfim. O significado, então, que a exposição ao sol, a aprendizagem extraescolar ou a vilegiatura adquiriram na vida urbana dependeu da mudança de sensibilidade que a medicina, a educação física e as práticas sociais estabeleceram com a natureza e seus atributos mais visíveis. Nesse livro, assim, há de tudo um pouco para a ascensão da natureza e das práticas ao ar livre no estilo de vida moderno. Instâncias de hidroterapia, a helioterapia, acampamentos, dietas e exercícios, esportes, colônias de férias, parques, balneários, veraneios vão sendo mostrados capítulo a capítulo naquilo que mais nos enlaça à natureza dos nossos ritos sociais, aos modos como nos relacionamos com o cosmos que nos circunscreve: o desejo da felicidade, por meio da saúde, da beleza e da alegria.

Se nisso Bernard Andrieu e Sylvain Villaret arriscam o principal argumento de suas reflexões, Denise Bernuzzi de Sant’Anna lembra que o acesso a bens como a água e a saúde são domínios da desigualdade, efeitos de disputas e práticas sagazes de imposição ou resistência, de força ou astúcia. As relações entre o humano e a natureza que inventamos também são da ordem do acidente e do desastre, da violência, da falta e da polêmica. Entre as notícias que Sant’Anna observa tão bem, o afogamento, o roubo, a proibição, a exploração também circunscrevem a natureza nos negócios humanos.

Não falta, assim, a história dos sujeitos. Os protagonistas da vida ao ar livre são homens, mulheres e crianças comuns, aqueles que, então, deixaram-se apanhar pelo mar e pelo sol, pelas hidro e helioterapias, que subiram as montanhas e passearam no campo, que frequentaram parques e planejaram suas vilegiaturas, que praticaram a ginástica ou o esporte. Trata-se também daqueles que sofreram com o contato com a água ou com sua privação e daqueles que tinham nas colônias de férias apenas a oportunidade de escapar por um tempo dos subúrbios fétidos das grandes cidades. O interesse pelas curas e aprendizagens por meio da natureza, do robustecimento dos corpos, do embelezamento físico envolve cada um de nós com a história daqueles que nos legaram essas práticas que, desde o bronzeamento até o turismo de todas as férias, dizem algo de como experimentamos a vida ao ar livre.

Mas há nomes que são incontornáveis nessa história e cuja menção não se pode escapar de fazer. Nesse sentido, Georges Hébert, Baden Powel, Bernhard Basedow, Peter Villaume e Guts Muths, Arnold Rikli, Sebastian Kneipp, Mario de Andrade, Francisco Pascasio Moreno e Grabiel Skinner participam dessa história como pontos de difusão das práticas que envolveram as pessoas e a natureza-jardim, o sol, o mar, o campo e a montanha. Assim, o método da ginástica natural, o escotismo, o rousseauísmo de parte deles, as estações de tratamento e os parques infantis são as iniciativas exploradas por sua importância na construção de uma nova sensibilidade a respeito da natureza e do natural. É menos do pioneirismo de que trata os textos reunidos nessa coletânea, mas, principalmente, das variadas formas de envolver o corpo a um outro ambiente que não o da metrópole e das suas principais instituições de controle e produção.

Por outro lado, como é típico de livros que arriscam seus argumentos em uma perspectiva própria de compreensão ou em um veio especifico de trabalho, a boas pistas de pesquisa também revelam os principais limites da interpretação. A aposta, então, na análise de práticas, instituições e sujeitos se faz em detrimento de um maior investimento na história dos conceitos e teorias. Atualmente, a questão da circulação dos saberes e das estratégias de apropriação das ideias e saberes mostrou-se profícua ao estudo de grupos específicos e das suas disputas internas. Para aqueles a quem interessam mais as discussões de doutrina, de trajetórias ou dos círculos que animaram autores, práticas ou iniciativas, as escolhas teórico-metodológicas desta edição podem aparecer como limites da análise. Nesse sentido, as belas narrativas com que os autores problematizam seus objetos de pesquisa e reflexão ganhariam com comparações e histórias de apropriação e invenção. Ainda que assim seja, há questões de concepção absolutamente importantes suscitadas pelo conjunto.

Nesse sentido, seria válido nos perguntarmos se tais construções das relações humanas com a natureza não foram resultado de disciplinas, controles e explorações que visavam tornar produtivas as partes do território e da nossa imaginação que ainda estavam livres dos processos capitalistas de produção de valor. Talvez. A linha segura que os textos oferecem ao leitor, entretanto, é aquela que dá entrada a uma firme tradição de pensamento sobre a natureza e as mudanças de atitude humana em relação ao mundo natural. Desde Rousseau até Alain Corbin, passando pelos importantes trabalhos de Keith Thomas e Walter Benjamin, a perspectiva de análise compreende uma reflexão apurada dos constructos humanos que determinam a historicidade daquilo que chamamos de natureza. Da filosofia e da história vem, senão os conceitos, a perspectiva de análise de autores e autoras. No conjunto, a natureza e os seus elementos beneficiam-se das posições jusnaturalistas, das críticas pós-estruturalistas ou da história das sensibilidades para emergir como problema, e não como um dado, em cada um dos diferentes capítulos. As dificuldades que a teoria impõe ao tratamento do tema não impediram a fluidez da escrita, a clareza do texto ou a beleza das histórias que todo o conjunto conta.

Outra história que os textos dão aos leitores é a da educação. Entre tudo aquilo que a própria Carmen Lúcia Soares nota acerca do que implicava o triunfo da concepção de vida ao ar livre, lembra-nos, especialmente, de que não se tratou de um processo espontâneo. Ao contrário, tal processo resultou de um esforço de autoridades públicas em que desfilam inteligências e proposições elaboradas por médicos, educadores/pedagogos, engenheiros, urbanistas. O livro contribui para uma história da educação física, da educação infantil e das instituições escolares naquilo que elas testemunham da invasão dos elementos da natureza na arquitetura escolar e na doutrina pedagógica. A ideia de regeneração que vicejou no discurso de intelectuais de diferentes matizes no Brasil da primeira metade do século passado reservou um lugar especial para a natureza e seus elementos na percepção da sua utilidade à saúde das crianças e dos jovens. O valor educativo da natureza é reiterado em diferentes capítulos, por meio de diferentes perspectivas e, principalmente, analisado desde a escola até as práticas culturais mais cotidianas.

De fato, as contribuições do conjunto de textos reunidos por Carmen Lúcia Soares em Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana são muitas e variadas. Especialmente, para a área da história, concorre para a compreensão de ideias, de práticas, de instituições e de sujeitos que fizeram da natureza um elemento da vida urbana, escolar ou mesmo intelectual já entre as gerações que nos precederam. É como história, mas também como patrimônio e sensibilidade contemporânea, que este trabalho sugere ser a natureza, seus elementos e suas expressões, uma das mais profícuas áreas das invenções humanas. Daí porque, além das qualidades acadêmicas que o livro apresenta, vale deter-se na sua leitura.

Referências

SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. [ Links ]

Como citar: SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Uma educação pela natureza: a vida ao ar livre, o corpo e a ordem urbana. Campinas: Autores Associados, 2016. Resenha de PAULILO, André Luiz. A terra, o ar, o mar e a nossa educação. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 38, p. 263-267, mai./ago. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

André Luiz Paulilo – Professor da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: paulilo@unicamp.br.

300 años: Masonerías y Masones (1717-2017) – ESQUIVEL et. al. (Topoi)

ESQUIVEL, Ricardo Martínez; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo; ARAGÓN, Rogelio. 300 años: Masonerías y Masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones, Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194pp. Resenha de: CAMARGO, Felipe Corte Real. Migrações sob o esquadro e o compasso: 300 anos de histórias da maçonaria. Topoi v.19 n.38 Rio de Janeiro May/Aug. 2018.

Escrever uma antologia é sempre uma tarefa complexa. Mais do que a reunião de textos diversos sobre um determinado assunto, é necessário ritmo, coerência e coesão; além de unidade temática e estilística, mesmo para textos contraditórios entre si. Tal necessidade aumenta ao se produzir uma antologia em cinco volumes, da qual o primeiro volume é o tema aqui (Esquivel, 2017).

A coleção 300 Años de Masonería (Esquivel, 2017) busca organizar as ideias e os ideais, que bem poderíamos chamar de pós-coloniais, que vêm sendo produzidos em torno da Revista de Estudios Historicos de la Masonería Latinoamericana y Caribeña (REHMLAC). Com dez anos de existência, o periódico ascendeu de um difusor dos trabalhos latinos sobre história da maçonaria para um coletivo de ideias que, por exemplo, organizou sua própria (e maior) mesa no último Congresso Mundial sobre Fraternalismo, Maçonaria e História, em Paris.1 Mesa esta que avivou o debate sobre a pluralidade da maçonaria em suas práticas e seus pensamentos reafirmando que não deve haver maçonaria no singular para quem pesquisa este fenômeno.

Os editores da coleção, Ricardo Martínez Esquivel, Yvan Ponzuelo Andrés e Rogelio Aragón – respectivamente diretor, editor e contribuidor regular da REHMLAC -, segundo suas falas nos congressos de Paris (maio de 2017) e Havana2 (julho de 2017), querem demonstrar o caráter plural do fenômeno maçônico, ou seja, das maçonarias. Por meio dessa multiplicidade querem também dar visibilidade à miríade de pesquisas e pesquisadores que a Ordem3 abarca.

O primeiro volume tem o abrangente título Migraciones, desta maneira busca evidenciar os usos, as recepções e as apropriações não somente do fenômeno estruturante que é a maçonaria, como os impactos produzidos pelo que poderíamos chamar de “ideário maçônico”, que se confunde – mesmo por ser produtor e produto – com a própria modernidade.

Na primeira parte do livro, tal como na tradição universitária, temos a fala do decano. O professor dr. José Ferrer Benimeli, com mais de 40 anos de pesquisas em torno do tema, revisa as fontes e a historiografia produzida entre Espanha e México no oitocentos. Assim, demonstra os usos feitos da história da maçonaria, tanto nas vertentes laudatórias quanto nas detratórias. Desta maneira põe em xeque meias-verdades e mitos perpetuados por historiadores profissionais e amadores, com as intenções mais diversas. Apresentando erudição não somente da história da maçonaria como da história do mundo ibérico, Benimeli demonstra a relevência dos estudos maçônicos e suas ligações não somente aos temas mais variados da historiografia tradicional, mas também sua utilidade para problematizar questões propostas e por vezes tidas por resolvidas. Porém, o desfile erudito de autores, fatos, fontes e datas se apresenta pouco convidativo para o “abre-alas” de uma antologia. No afã de clarificar uma discussão nebulosa, Benimeli demonstra de maneira crua que para desvendar o hermetismo da história da maçonaria é necessário adentrar dois outros: o da historiografia e o da diplomática.

O capítulo seguinte segue uma metodologia semelhante, a divisão da argumentação em três tempos, e fica a cargo de um dos mais renomados professores da Universidade de La Habana (Cuba), Eduardo Torres-Cuevas. O historiador nos leva pela fragmentada história da maçonaria cubana por meio de suas divisões e influências. Ao ler o segundo capítulo, o leitor percebe que há um certo padrão fragmentário nas maçonarias latinoamericanas e que tais cisões acontecem por dois motivos principais: as variadas influências recebidas (Espanha, França, Inglaterra e Estados Unidos) e o papel central que as organizações maçônicas ou criadas nos moldes da maçonaria irão execer nas nascentes repúblicas. Tal atuação se deve ao fato de que as lojas maçônicas se apresentam como os primeiros corpos de auto-organização político-partidária nos séculos XVIII e XIX na América Latina.

Torres-Cuevas coloca em suspenso questões sobre as origens da maçonaria na ilha. Seguindo também a tradição mais clássica, tal como Benimeli, prende suas conclusões a provas documentais. Porém, insinua bastante livremente sobre possibilidades, chegando inclusive a apontar uma possível presença de “maçons operativos” (pedreiros que teriam sido a origem da maçonaria moderna, dita “especulativa”) na construção da Catedral de Havana. Das primeiras lojas fundadas no final do século XVIII por maçons fugidos da Revolução Haitiana, passando pela profusão de lojas e Grandes Orientes por quase 30 anos até o período final do século XIX, no qual se estabelecem as potências maçônicas que formariam o panorama da Ordem em Cuba no século XX, o autor oferece uma história bem costurada com pausas para análises bastante sintéticas, auxiliando o entendimento de uma história com muitas nuances e recheada de jargões.

O capítulo de Éric Saunier, professor da Universidade do Havre (França) demonstra, por meio de uma escrita fluida e precisa, como a história da maçonaria compõe um mosaico com a história política. Por meio de uma problemática que muito bem poderia se resumir a questiúnculas relativas a lojas maçônicas periféricas e suas relações com a sua obedicência central, Saunier apresenta de que modo se deram costuras políticas que permitiram lojas maçônicas antilhanas e lojas maçônicas francesas em cidades portuárias a continuarem fiéis às políticas poligenistas, impedindo a iniciação de negros em suas lojas, contrariando assim a política liberal parisiense do Grande Oriente da França. O capítulo de Saunier reflete a teoria que mesmo dentro de uma mesma obediência maçônica há variados entendimentos sobre sua práxis, cessando, uma vez mais, o entendimento ingênuo da maçonaria como homogênea e unívoca.

Ricardo Martinez Esquivel assina o capítulo que trata da origem da maçonaria centro-americana, nascida em seu país, Costa Rica. O autor discorre com desenvoltura sobre o tema, sobre o qual pesquisa há quase dez anos, principalmente quando foca na análise das redes de sociabilidade que a fraternidade teceu naquele país e nos seus vizinhos, ano após ano. O ponto forte do artigo se apresenta na relação que Esquivel estabelece entre os dados de suas pesquisas prévias com panoramas mais gerais da história da chamada América Latina. Mesmo o leitor neófito no tema poderá entender o peso que a francomaçonaria teve a partir da segunda metade do século XIX e os motivos para as rusgas entre a Igreja Católica e seus membros. Pretendendo apresentar um panorama muito completo, o artigo de Esquivel tende, a partir da metade do texto, para uma narrativa mais tradicional da história política, o que contrasta fortemente com a primeira parte, mais analítica e arrojada.

Na sequência, os primeiros anos da maçonaria mexicana são passados em revista pela experiente historiadora Maria Eugênia Vazques Samenedi. Com consistente trajetória acadêmica no campo da história da maçonaria, a autora revisa as obras que (por antiguidade ou merecimento) são tidas como indispensáveis para contar a história da Fraternidade em território mexicano. Mesclando análise, crítica e novas fontes, a historiadora desmonta mitos maçônicos mexicanos, como a “lenda” de que a primeira loja maçônica no México dataria de 1806 e que se localizaria na Calle de las Ratas. Além deste, desmonta o argumento, bastante comum, entre os historiadores mais tradicionais, de que a fundação das lojas maçônicas teria um caráter eminentemente político. Somente por esses dois feitos, o capítulo já se torna indispensável para qualquer pesquisador do tema na América Latina. Porém, mais do que isso, a historiadora aclara, de maneira sutil, nas últimas páginas, algumas questões de teoria e metodologia que tendem a ser negligenciadas em temas que não fazem parte do mainstream historiográfico, como a diferenciação entre a análise da história de uma instituição e a análise das narrativas que se fazem sobre ela.

Dévrig Mollès, historiador e diretor científico do Arquivo da Grande Loja da Argentina, traz um olhar desde aquele país sobre a chegada do feminismo na América Latina. Com esse tema demonstra o papel central que a maçonaria teve ao servir como base, dada sua capilaridade, aos movimentos vanguardistas do começo do século (feminismo, anticlericalismo, livre-pensamento) que configuraram o moderno sistema-mundo. Tal fenômeno teria ocorrido dado que as redes maçônicas formaram uma “plataforma de transferências culturais e um espaço de lutas culturais”. A escrita de Mollès flui de maneira singular, sua clareza conceitual e suas escolhas bibliográficas, enxutas e certeiras, fazem de seu capítulo um ótimo panorama sobre os movimentos de emancipação feminina na América Latina, suas relações com os movimentos socialistas e com a maçonaria.

O historiador chileno Felipe Santiago del Solar nos oferece um breve panorama dos primeiros anos da maçonaria no Chile. Para tal, faz uma análise das primeiras obras que dão conta das atividades maçônicas no país andino. Este recorrido, del Solar não o faz apenas por uma questão de crítica historiográfica, mas porque a grande maioria da documentação maçônica chilena se perdeu após um terremoto no começo do século XX. Apesar de bastante conciso, o capítulo é o relato de uma trajetória maçônica bastante tardia e singular se comparada aos outros países latinos.

O fechamento do livro fica nas mãos de Guillermo de los Reyes-Heredia, professor da Universidade de Houston (Estados Unidos), que escreve sobre um tema que pode não parecer “demasiado maçônico”, à primeira vista. A sociedade civil, seus elementos e constructos são analisados de maneira bastante didática pelo autor, que busca entender de que maneira as organizações voluntárias têm o poder de promover, criar e contribuir para a democracia (e se, de fato, contribuem). Analisando a maçonaria nesse espectro teórico mais amplo o autor clarifica uma das discussões mais recorrentes – porém pouco aprofundadas – no campo da história da maçonaria na contemporaneidade: aquela relativa à esfera pública. O debate, trazido atualmente por Habermas, é tema obrigatório em todo trabalho sobre a Franco-Maçonaria, e este capítulo é um bom guia para aqueles que desejam abordar o tema com maior propriedade. Além do cabedal teórico, em sua maioria oriundo da Ciência Política, apresentado pelo autor, somos também brindados com uma pequena análise da mitologia maçônica em sua expressão estadunidense, e de como a exacerbação, ou mero exagero, do papel da maçonaria na história política dos países se expressa em um aumento de importância real da Ordem.

A crítica a este volume é a mesma que se pode fazer a qualquer compilação de ensaios sobre a maçonaria, isto é, os autores estão separados por um tema comum. Explico: como a maçonaria foi, e continua sendo, um tema marginal na academia, há uma considerável defasagem teórica, muitas vezes causada pela necessidade dos autores acadêmicos de se comunicar com o seu público, mormente leigo, no que concerne às questões historiográficas. Outro traço dessa separação é a variedade de termos para definir as questões maçônicas que por vezes tais pesquisadores cunham e aplicam unilateralmente. Variedade esta causada pela falta de conhecimento dos termos usados pelos próprios maçons ou, quando há o conhecimento destes, devido a uma necessidade de se diferenciar dos “maçons historiadores”. A história da maçonaria tem sido produzida por maçons frequentemente sem formação acadêmica na área das humanidades, o que torna fundamental a crítica à produção “domingueira”. Seja qualquer um dos motivos, a falta de uniformidade conceitual pode inquietar quem conhece os termos maçônicos e confundir quem deseja conhecer.

De qualquer maneira, o primeiro volume desta coleção mostra que os estudos acerca da maçonaria evoluem para um debate mais público e qualificado. Longe de ser uma seita ou uma religião, ou ainda uma conspiração para dominar o mundo, conforme as crendices à direita e à esquerda, a maçonaria é um capítulo incontornável da história moderna e contemporânea. Como todos os mitos da modernidade, urge desativá-la na sua mística e analisá-la em sua historicidade. Para quem deseja dar os primeiros passos ou incrementar os que já foram dados, Migraciones será uma grata surpresa.

Referências

ESQUIVEL, Ricardo Martínez ; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo ; ARAGÓN, Rogelio (Org.). 300 años: Masonerías y Masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]

1 Painel: “Imperialism, Colonialism and Multiple Freemasonries”. World Conference on Fraternalism, Free Masonry and History. 2017, Paris.

2 V Simposio Internacional de la Masonería Latinoamericana y Caribeña. 2017, La Habana.

3São termos intercambiáveis: Maçonaria, Franco–Maçonaria, a Ordem, a Fraternidade, entre outros.

Como citar: ESQUIVEL, Ricardo Martínez ; ANDRÉS, Yvan Ponzuelo ; ARAGÓN, Rogelio (Org.). 300 años: masonerías y masones (1717-2017). Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. Resenha de CAMARGO, Felipe Corte Real de. Migrações sob o esquadro e o compasso: 300 anos de histórias da maçonaria. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 38, p. 268-272, mai./ago. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

Felipe Corte Real de Camargo – Doutorando pela Universidade de Bristol, Inglaterra. E-mail: fc15629@bristol.ac.uk.

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) | Alain El Youssef

Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850) é resultado da dissertação de mestrado de Alain El Youssef, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo. Na obra, o autor analisa como a temática do tráfico negreiro foi abordada nos periódicos do Rio de Janeiro desde o ano de 1822, marco da proclamação da independência do Brasil, até a década de 1850, quando houve a aprovação da Lei Eusébio de Queirós e o tráfico no Império brasileiro foi legalmente abolido. Ao eleger o tráfico negreiro e a escravidão nos periódicos como seu objeto de estudo, Youssef se contrapõe a autores da historiografia brasileira que postularam a ausência de debates relativos a esses temas na imprensa do Rio de Janeiro até a década de 1870 [1]. A obra é, portanto, historiograficamente, uma afirmação desta presença.

Além de constatar essa existência, o autor procura demonstrar como diferentes grupos políticos se utilizaram da imprensa, desde o Primeiro Reinado, como estratégia e instrumento para a formação de uma “opinião pública” sobre questões, entre outras matérias, relativas ao fim do tráfico negreiro para o Império do Brasil. Segundo Youssef, essa estratégia tinha como intuito “preparar o terreno” para a discussão pública de determinados temas que estavam ou entrariam em voga no parlamento imperial. Por outro lado, o autor busca evidenciar como esses mesmos grupos políticos recorriam ao argumento da “opinião pública” para legitimar suas pautas.

Neste sentido, são importantes para a construção do argumento de Youssef as categorias de espaço público e opinião pública, adotadas a partir das perspectivas de François-Xavier Guerra [2] e Marco Morel [3]. Aqui, a imprensa é vista como um espaço público na medida em que se constituía como um lugar no qual ocorriam interações de diversas naturezas entre agentes históricos. Por sua vez, a opinião pública é “tratada como um conceito que os coevos dos séculos XVIII e XIX utilizavam para legitimar suas práticas políticas, principalmente aquelas que visavam influir a administração pública” (p. 30).

Embora a imprensa não seja apresentada na obra enquanto uma espécie de partido propriamente dito, menos ainda nos termos empregados no século XXI, Youssef procura chamar a atenção dos leitores para a importância que os periódicos, muito dos quais explicitamente partidários, tiveram na propagação dos ideais de moderados, exaltados e restauradores, luzias e saquaremas, liberais e conservadores, na complexa conjuntura política imperial. No que se refere ao tráfico negreiro em específico, o autor procura demonstrar como a imprensa teve um papel de suma importância na consolidação da política do contrabando negreiro no Brasil, empreendida pelos conservadores.

Segundo o autor, com o avanço do regresso, os conservadores passaram a fazer uma intensa campanha de defesa da reabertura do comércio negreiro em periódicos, tanto apresentando as vantagens econômicas da continuidade do negócio como publicizando as propostas de reabertura do tráfico transatlântico apresentadas ao parlamento brasileiro. Assim, para Youssef, a imprensa funcionou como uma espécie de elo de comunicação entre os políticos e proprietários de escravos interessados na continuidade do comércio negreiro, dando uma poderosa contribuição ao fortalecimento do contrabando e, consequentemente, ao aumento das cifras relacionadas a essa atividade.

Sobre a política do contrabando negreiro, é explícito o diálogo de Alain El Youssef com a leitura feita sobre o fim do tráfico por Tâmis Parron em suas produções recentes. Em certa medida, o livro de Youssef é complementar à dissertação de mestrado de Parron, reformulada em livro com o título A política da escravidão no Império do Brasil (1826-1865) [4] em 2011. Ambos buscam analisar o fim do contrabando negreiro através da história política, a partir das perspectivas de segunda escravidão de Dale Tomich [5], e de economia-mundo/sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein [6], e procuram entender como os debates e interesses político-econômicos em torno da (des)continuidade do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil estavam inseridos dentro de um contexto maior de transformações socioeconômicas mundiais no período. Partindo de tantos pontos em comum, é principalmente nas fontes que Youssef e Parron tomam caminhos diferentes. Enquanto os discursos parlamentares são os principais documentos históricos empregados na análise da narrativa de Parron, Youssef constrói sua narrativa a partir dos periódicos cariocas – o que confere complementaridade às duas obras.

Por pensar seu objeto a partir de uma perspectiva ampliada, Youssef procura entender a imprensa (assim como o tráfico negreiro) dentro das transformações ocorridas no mercado e na sociedade mundial no período. Dessa maneira, o autor busca demonstrar como a expansão do capitalismo, a queda de monarquias absolutistas, as revoluções de independência no Novo Mundo e a reconfiguração das áreas fornecedoras de importantes commodities para o mercado mundial, entre outros fatores, também contribuíram para a difusão de novas (ou modernas) formas de sociabilidades, que passam a conviver com as do Antigo Regime. No caso da imprensa, essas transformações teriam oportunizado a proliferação de impressos, a abolição/diminuição da censura, o surgimento de espaços de leitura e sociabilização das ideias presentes nestes impressos, e, como consequência, possibilitado a emissão de julgamentos por parte do público aos acontecimentos a ele contemporâneos.

Em termos de leitura histórica, outra produção historiográfica cuja influência sobre o livro de Youssef é notável é O Tempo Saquarema, de Ilmar Mattos [7]. Obra de referência sobre a história do Brasil Império, publicada pela primeira vez em fins da década de 1980, O Tempo Saquarema aborda elementos centrais contidos no livro de Youssef, como a relação entre expansão cafeeira, formação de projeto político imperial centralizador, continuidade do tráfico negreiro e o papel político-econômico britânico neste contexto. No entanto, Youssef distancia-se de Mattos em dois aspectos centrais do seu trabalho, a imprensa e a pressão inglesa. Enquanto Mattos, na perspectiva gramsciana, entende como secundário o papel da imprensa e das organizações civis consideradas privadas na construção da coalização entre proprietários do centro-sul e o grupo conservador na política imperial, Youssef apresenta a imprensa como tendo um papel central neste processo. Segundo o autor, a imprensa foi uma das principais responsáveis para que essa aliança, assim como a política do contrabando negreiro, tenha alcançado êxito.

Sobre o papel britânico nesse contexto, enquanto para Mattos os interesses internos da classe dirigente são vistos como predominantes, embora a pressão externa não seja ignorada, Youssef atribui protagonismo à pressão externa sobre as decisões relativas ao tráfico negreiro adotadas pelo governo imperial. Para o autor, a intensificação da pressão britânica pelo fim do comércio negreiro para o Brasil em meados da década de 1840 – e, inclusive, a iminência de um conflito armado entre as duas nações – por exemplo, não deixou alternativas aos Saquaremas senão a defesa do fim do contrabando. O grupo retornaria aos periódicos para preparar o terreno, desta vez para a abolição do tráfico.

A respeito disso, observa-se que Youssef também se distancia de recentes produções historiográficas brasileiras sobre o fim do tráfico negreiro que, embora não desprezem a importância que a pressão britânica teve sobre os rumos tomados por esta atividade, têm repensado como outros fatores influenciaram o fim do comércio proibido de escravos [8]. O autor procura demonstrar que fatores como o haitianismo, para citar um dos aspectos apontados recentemente pela historiografia, que também é mencionado pelo autor, não teve grande peso sobre o fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados para o Brasil. Youssef avalia que o haitianismo foi utilizado na imprensa do Rio de Janeiro muito mais como argumento retórico do que como um temor real.

Na obra de Alain El Youssef, a imprensa é, ao mesmo tempo, fonte e objeto histórico, informações que o autor deixa explícitas já no princípio da obra. Sobre isso, nota-se que, ao adotar a imprensa também como objeto, o autor consegue ir além do texto publicado. Investigando, por exemplo, as vinculações partidárias dos editores dos periódicos que consultou, é capaz de acessar alguns dos interesses existentes por trás das notícias veiculadas. Assim, o autor não deixa de chamar atenção para o modo como parte da historiografia brasileira tem utilizado a imprensa. Ao analisar os periódicos pontualmente, muitas vezes sem levar em consideração as vinculações das publicações, a historiografia acaba por reproduzir um discurso enviesado. Neste sentido, chama a atenção para a necessidade de se observar o enviesamento existente nas publicações.

Ao fazer a leitura deste livro no ano de 2018, período indubitavelmente conturbado da política brasileira, não poderia deixar de mencionar a atualidade da obra. Através do livro de Youssef verificamos como o argumento político da “opinião pública” e a construção politicamente enviesada da “opinião pública” pela imprensa têm sido empregados ao longo do tempo para conformar os rumos da história do Brasil.

Notas

1. Cf. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SOUZA, Christiane Laidler de. Mentalidade escravista e abolicionismo entre os letrados da Corte (1808-1850). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

2. GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

3. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.

4. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

5. Cf. TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

6. Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1. Idem. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979. Idem. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

7. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.

8. Dentre as produções que repensaram o papel da pressão britânica destacamos os estudos de Sidney Chalhoub, Flávio Gomes, João José Reis, Jaime Rodrigues e Robert Slenes. Cf.: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, ed. rev. e ampl., 1ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. SLENES, Robert. “Malungu, Ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, 1992.

Referências

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX, ed. rev. e ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GUERRA, François-Xavier. Modernidad e independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispánicas. México: Mapfre/Fondo de Cultura Económica, 1992.

KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987.

MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005.

PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, ed. rev. e ampl., 1ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000.

SOUZA, Christiane Laidler de. Mentalidade escravista e abolicionismo entre os letrados da Corte (1808-1850). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1994.

SLENES, Robert. “Malungo, Ngoma vem”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, 1992.

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2011.

WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world system: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974. vol. 1.

WALLERSTEIN, Immanuel. The capitalist world-economy. Nova York: Cambridge University Press, 1979.

WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system: mercantilism and the consolidation of the European world-economy, 1600-1750. Nova York: Academic Press, 1980. vol. 2.

YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intermeiros; Fapesp, 2016.

Silvana Andrade dos Santos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Doutoranda, PPGH-UFF, bolsista do CNPq. E-mail: silvanaandradeh@gmail.com


YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (1822-1850). São Paulo: Intermeios; Fapesp, 2016. Resenha de: SANTOS, Silvana Andrade dos. Imprensa como partido: “opinião pública” e tráfico negreiro em periódicos cariocas. Almanack, Guarulhos, n.19, p. 331-337, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

The reinvention of Atlantic slavery: technology – labor – race and capitalism in the Greater Caribbean | Daniel B. Rood

There has been a revival of the capitalism in the United States since the great recession of 2008. The New Historians of Capitalism (NHC) have created new academic programs and departments at Harvard, Cornell, Brown and the New School for Social Research. This is welcome relief from the “linguistic turn”, returning historical inquiry to the systematic investigation of social and economic structures. However, the New Historians insist that in order to reinvent the study of capitalism, they must abandon any attempt to specify what they mean by capitalism [3]. However, as Althusser argued – “silences are not innocent” -, the New Historians do have an implicit conceptualization of capitalism. Essentially, they adapt Adam Smith’s notion of “commercial society” [4], where capitalism is any economy geared toward profit maximization through productive specialization and market exchange. They also include among capitalism’s features as warfare, finance and legal-physical coercion in the appropriation of surplus labor. Put another way, the New History of Capitalism identifies capitalism with social processes like trade, finance and violence, which have existed for most of the last eight to ten thousand years.

This implicit understanding of capitalism contrasts with most Marxian accounts which view capitalism as a distinctive set of social property relations (social relations of production) with specific rules of reproduction (laws of motion) [5]. From this perspective, capitalism is the first form of social labor in which both non-producers (capitalists) and producers (workers) reproduce themselves through market competition. Capitalists are thus compelled to specialize output, continually introduce labor-saving technology, and accumulate capital in order to reduce costs and maximize profits in a competitive “war of all against all.”

Not surprisingly, the New History of Capitalism has radically altered the study of new world plantation slavery. Walter Johnson, Edward Baptist and Sven Beckert [6] argue that new world slavery was not some atavistic throwback to pre-capitalist societies, but a thoroughly capitalist form that was the foundation to the development of industrial capitalism in both Britain and the United States in the late eighteenth and early nineteenth century. Despite their commonalities, there is considerable debate among these historians about the respective role of physical coercion and technological innovation in the increases in productivity of slave labor, in particular in the harvesting of cotton in the antebellum United States [7]. Daniel Rood’s The reinvention of Atlantic slavery clearly situates itself in the emerging cannon of the New History of Capitalism on plantation slavery, while coming down clearly on the side of those who argue that the master-slave relation was no obstacle to the introduction of labor-saving technology during the “second slavery” of the nineteenth century.

The “second slavery” refers to the revival of plantation slavery in the nineteenth century, after the “colonial slavery” of the seventeenth and eighteenth centuries ended with the Haitian Revolution, the British attempt to suppress the Atlantic slave trade, and the gradual emancipation of slaves in the Jamaica and other British colonies. Most studies of the “second slavery” focus on the US slave produced cotton providing the raw material for British industrialization [8] and Cuban and Louisiana plantations providing the sugar that began to substitute for other, more nutritious and expensive foods in the diets of British workers [9] Rood broadens this discussion by incorporating the “Great Caribbean” nexus between Cuba, Brazil and the upper US South, in particular Virginia.

Faced with sharpening competition from European beat sugar producers and US and British tariffs, Cuban cane sugar planters “responded by adapting European industrial technologies, combining planting with finance, taking control of modern transport infrastructure, and vanquishing small landholders to grab a larger share of the market” (p. 2). The transformation of Cuban slavery forged new connections with the upper US South, which provided extensive engineering and technical expertise to build mills and railways and slave cultivated wheat to feed the island. Simultaneously, the shift in Brazilian slavery from declining sugar plantations in the northeast to more dynamic coffee cultivation in the southeast created new ties with Virginia wheat planters and railway engineers. Throughout this “Great Caribbean” nexus, new labor-saving technology was applied to both production and transportation, and the “race management” of labor was transformed as African slaves’ practical knowledge was appropriated to “creolize” new machinery, and planters began to use new forms of coerced labor, in particular Chinese indentured servants.

Rood begins by retelling the now familiar story of the transformation of the Cuban sugar refining mills and the construction of railroads during the 1830s and 1840s [10]. Faced with increased global competition, Cuban sugar planters built railroads to quickly transport cut cane to the mills from their ever expanding plantations before it spoiled, introduced steam powered crushing of the cane, and replaced the labor-intensive Jamaica train with the vacuum pan in the refining of white sugar. Rood breaks new ground with his investigation of innovations in the preservation of white sugar, where racially ‘tinged” science that assigned manual labor to “darker” people is linked to the struggle to preserve the “purity” of sugar for the US and European markets. His discussion of the transformation of the port of Havana is especially insightful. Havana had experienced a shift from the dominance of middling merchants, whose profits depended upon storage fees, and sales commissions, to a “new generation of Spanish-born elite merchant-planters” whose income came “from buying and selling sugar on the world market, financing illegal slaving voyages, and underwriting sugar-mill operations” (p. 67). To facilitate their new role in the global sugar trade, these merchant planters rebuilt the ports in Havana, introducing railway depots, constructing new warehouses and mechanizing the ports in order to keep “sugar in gentle but unceasing movement” (p. 67). While profiting from the increased speed of circulation, the merchants also remade the port work force replacing black (free and slave) workers with Europeans and Chinese laborers.

Railroad construction in both Cuba and Brazil in the mid-nineteenth century created new connections with the upper South. Rood details how Virginia construction engineers and their slaves were essential to the construction and operation of railroads in new, tropical terrains in the “Great Caribbean”. Skilled slaves were crucial, in the upper US South, Cuba and Brazil in constructing rail lines and operating them – despite widespread planter and merchant fear of relying upon these bonded, racialized workers. The spread of railways also created a new, modern iron industry in the upper South. The Tredgar Iron Mills in Richmond, Virginia was one of the largest and most technologically advanced iron producers in the US, relying on the labor of slaves leased by the mill owners from their owners.

The mid-nineteenth century also saw the shift in the center of Brazilian slavery from the increasingly uncompetitive sugar plantations in the northeast to the highly profitable coffee plantations in the southeast, the hinterland of Rio de Janeiro. Again, railroad construction, often by US trained engineers, was central to the expansion of the coffee frontier. As the population of Rio grew, and more and more lands were shifted from the production of foodstuffs for domestic consumption to the cultivation of coffee for export, a new market emerged for the fine white flour produced in Virginia. In the early nineteenth century, Virginia planters began to shift from tobacco to wheat, breaking up their plantations and selling off excess slaves to the booming cotton frontier of the US southwest. By the 1840s and 1850s, the growing Brazilian demand for high quality white flour transformed both flour-milling technology and the preservation and storage of white flour in the Richmond area. The Richmond mills continued to rely on water-power but were relatively capital-intensive and utilized the labor of skilled, leased slaves.

The deepening Virginia-Rio nexus also transformed the harvesting of wheat in Virginia. Rood reveals how the expanding wheat farms of the Shenandoah Valley were the incubator for Cyrus McCormick development of his mechanized grain reaper in the 1830s and 1840s. Ripened wheat has an especially short window before it spoils, placing tremendous pressure on wheat producers to harvest and thresh the wheat as quickly as possible. Rood outlines how McCormick relied on the labor of skilled slave black smiths, wheat cradlers, and carpenters in the development of the harvesting machine that would radically transform US small grain agriculture in the mid-nineteenth century.

Rood’s book bring important new insights to the history of the “second slavery” by broadening its scope beyond the US cotton-Cuban sugar-British textile industry node, to include the “Great Caribbean” nexus of Cuban sugar-upper South technical expertise, iron and wheat-Brazilian coffee. His accounts of the transformation of the port of Havana, and of wheat cultivation and processing in Virginia are important additions to our historical knowledge. However, the book suffers from a number of conceptual and historical problems.

First, Rood uses the term “creolization” to discuss the adaptation of technologies to specific production processes in specific geographic-ecological locations. While Rood reestablishes the role of slaves in the adaptation of existing techniques in railroad construction, flour milling and farm implement construction, he sometimes implies that there is something unique about the pragmatic sharing of experimental information on technology among agricultural and industrial producers. This was actually quite typical of technical innovation before the late nineteenth century, when miners, skilled artisans and midwives were often the most important figures in the development and application of scientific knowledge [11]. It was only during the second industrial revolution (steel, chemicals, electrical power-machinery) of the 1890s, that capital took control of scientific research with the proliferation of “research and development” departments in major corporations.

Rood’s use of “race management” is also problematic. As developed by David Roediger and Elizabeth Esch [12], race management referred to the pragmatic way in which the ideological notion of race (the division of humanity into groups with distinct and unchangeable characteristics) is used to classify and distribute workers into various positions in the production of commodities. These categories were highly flexible in light of the ever-changing demands of the market-driven production of commodities. Rood tends to emphasize the racial anxieties experienced by slave owners as technology changed labor-requirements, but has little to say about how they adapted their “racial theories” to meet the new requirements of production. This often goes hand in hand with important errors in analyzing the impact of new techniques on labor requirements. Specifically, Rood reiterates Moreno Fraginals’ claim that the introduction of the vacuum pan raised the level of skill and knowledge required in the refining of sugar, creating a crisis of “racial management.” As Dale Tomich points out [13], it was the earlier technology – the Jamaica Train – that relied heavily on the intelligence and experience of skilled slaves. The vacuum pan, by automating the process of sugar refining, actually deskilled labor in that phase of sugar production.

The greatest problems with Rood’s analysis flow from his uncritical acceptance of the New Historians’ common sense that slavery was a capitalist form of production. There is no question that slave-owners in the US were, for the most part, subject to “market compulsion.” Slave holders throughout the new world had to borrow capital to purchase their basic means of production – land and slaves. In the British colonies and most of the southern United States faced the loss of land and slaves if they failed to pay these debts. Put in another way, they were subject to what John Clegg has called “credit market discipline” [14] – they had to successfully compete in the global market in order to preserve (no less expand) their ownership of land and slaves. Rood never makes the case that Cuban planters faced these constraints, or whether, like French colonial planters, they were exempt from the loss of land and slaves for the failure to pay debts [15] Clearly, those planters subject to “credit market discipline” sought to cut costs in order to remain competitive – they sought to adapt the most up to date innovations in crop varieties, fertilizers, tools and methods.

The master-slave social property relation, however, prevented the planters from continually adapting the latest, labor-saving tools and methods [16]. The obstacle to the continuous adaptation of labor-saving techniques was not any lack of motivation or skill on the part of their bonded laborers. Instead, it was the reality that slave-holders did not purchase the labor-power of the slaves (their ability to work for a set period of time), but the laborers as “means of production in human form”. Put in another way, the slave was a form of fixed capital – a constant element of the production process that could not easily be expelled from production in order to facilitate the relatively continuous introduction of techniques that improved labor productivity. So, if planters introduced cost-cutting techniques that saved labor, they would not be able, like their capitalist counterparts, to simply lay that labor off. They would be stuck with continuing ownership of the laborer(s), having to keep them around until they could find purchasers for their surplus slaves.

It is true that, like other non-capitalist forms of social labor, slavery did bring about episodic improvements in productivity. However, unlike under capitalism, which tends to spur more or less ongoing technical change, innovation under slavery had a “once and for all” character [17]. Thus, the introduction of labor-saving techniques in Cuban sugar production and shipping, or in Virginia wheat cultivation did not set off a process of continuous technical innovation. Like other technical innovations under slavery, they corresponded to the introduction of new products or the movement of production to a new frontier. Once established, these new labor-processes remained relatively unchanged until new products were introduced, new geographic regions were brought under production, or slavery as a form of social labor was abolished. Those industries where there was continuous technical innovation, Virginia’s iron works and Rio’s bakeries, utilized leased slaves. Leased slaves were, like indentured servants, a form of legally coerced wage labor. Those who leased slaves essentially purchased their labor-power for a set period of time, and could easily expel that labor when new, more productive tools and methods became available.

The limitations the master-slave social property relation on continuous technical innovation is most evident in the case of the mechanized reaper. While Rood’s discussion of how McCormick’s initial motivation was to revolutionize Virginia’s wheat harvests is quite insightful, he never poses the question of why McCormick abandoned Virginia for Chicago when he turned to mass producing his mechanical reaper. Rood recognizes that there were serious obstacles to the diffusion and generalized adaptation of the reaper in Virginia’s slave based agriculture. Rood acknowledges that two large wheat planters who adapted the reaper found themselves “burdened by the presence of too many workers” (p. 189). Unlike wage laborers who could easily be laid-off when they were no longer needed, slave owners had to maintain their slaves in order to preserve their value as “means of production in human form”. While the wheat producers of Virginia were a relatively narrow market for the mechanical reaper, the petty-capitalist family farmers of north were an ever expanding market for the reaper and other labor-saving tools and machinery18. Not surprisingly, despite his personal sympathy for slavery, McCormick relocated his factory to be closer to his customers in the dynamic capitalist north.

Referência

ROOD, Daniel B. The reinvention of Atlantic slavery: technology, labor, race and capitalism in the Greater Caribbean. New York: Oxford University Press, 2017

Notas

3. ROCKHMAN, Seth. What makes the history of capitalism newsworthy? Journal of the Early Republic, n. 34, p. 442, Fall 2014. Similar arguments are made by most of the participants, including BECKERT, Sven. Interchange: the history of capitalism. Journal of American History, 101, n. 2, p. 503-36, September 2014.

4. SMITH, Adam An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. New York: Modern Library, 1937 [1776].

5. The concepts of social-property relations and rules of reproduction are derived from the work of BRENNER, Robert. Property and progress: where Adam Smith went wrong. In: WICKHAM, Chris (ed.). Marxist history-writing for the twenty-first century. London: British Academy/Oxford University Press, 2007. p. 49-111. Brenner’s work, of course, is rooted in Marx’s mature work in the three volumes of Capital.

6. JOHNSON, Walter. River of dark dreams: slavery and empire in the cotton kingdom. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013; BAPTIST, Edward. The half has never been told: slavery and the making of American capitalism. New York: Basic Books, 2014; BECKERT, Sven Empire of cotton: a global history. New York: Alfred A. Knopf, 2014. For a lengthy discussion of the strengths and weaknesses of these works, see POST, Charles. Slavery and the New History of Capitalism. Catalyst, 1, n. 1, p. 173-192, Spring 2017.

7. Baptist (2014) is the most articulate exponent of the physical coercion/torture thesis, while Alan J. Olmstead and Paul W. Rhode make a convincing case for the role of technical innovation in raising the productivity of slave labor in cotton harvests, in OLMSTEAD, Alan J.; RHODE, Paul W. Biological innovation and productivity growth in the antebellum cotton south. Journal of Economic History, 68, n. 4, p. 1123–71, 2008.

8. Beckert (2014) summarizes this literature.

9. MINTZ, Sidney. Sweetness and power: the place of sugar in modern history. Harmondsworth: Penguin Books, 1985.

10. FRAGINAL, Manuel Moreno. The sugarmill: the socioeconomic complex of sugar in Cuba, 1760- 1860. New York: Monthly Review Press, 1976.

11. CONNOR, Clifford D. A people’s history of science: miners, midwives, and low mechanicks. New York: Nation Books, 2005.

12. ROEDIGER, David; ESCH, Elizabeth. The production of difference: race and the management of labor in U.S. history. New York: Oxford University Press, 2012.

13. TOMICH, Dale. Slavery in the circuit of sugar: Martinique in the world economy, 1830-1848. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1990. p. 199-201, 221-225.

14. CLEGG, John J. Credit market discipline and capitalist slavery in antebellum south Carolina. Social Science History 42, n. 2, p. 343-376, 2018. As it will become clear, I do not believe that market dependence made slaveholders capitalists.

15. BLACKBURN, Robin. The making of new world slavery: from the baroque to the modern. London: Verso, 1997. p. 282-83, 444-45.

16. The following is a summary of my argument in POST, Charles. The American road to capitalism: studies in class structure, economic development and political conflict, 1620-1877. Chicago: Haymarket Books, 2012. Chapter 2.

17. BRENNER, Robert P. The origins of capitalist development: a critique of neo-smithian Marxism. New Left Review 104, p. 36-37, July–August 1977.

18. POST, Charles, 2012. p. 94-97.

Charles Post – University of New York – New York – United States of America. Professor, Sociology, borough of Manhattan Community College and the Graduate Center-City University of New York. E-mail: cpost@bmcc.cuny.edu


ROOD, Daniel B. The reinvention of Atlantic slavery: technology, labor, race and capitalism in the Greater Caribbean. New York: Oxford University Press, 2017. Resenha de: POST, Charles. Capitalist slavery in the great Caribbean? Almanack, Guarulhos, n.19, p. 321-330, maio/ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Investigación biográfica y autobiográfica en Educación en América Latina | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2018

Los artículos sometidos para la composición del presente dossier representan una mirada plural acerca de la aproximación conceptual, metodológica y experiencial desarrollada desde las ciencias sociales y la investigación biográfico-narrativa en educación de América Latina aplicada tanto en ámbitos formales como no formales. Los ejes temáticos, a los que corresponden distintos modos de abordar, revelan la actualidad del campo distribuidos en tres agrupamientos principales: estado del conocimiento o estado del arte en determinados países durante la última década; enfoques y métodos de investigación biográfico-narrativa en la educación; instituciones y sujetos, enlaces biográficos.

En la producción de América Latina es notable la interconexión de los campos de conocimiento; deja ver en un campo biográfico fértil que recoge las variadas deliberaciones provenientes de la literatura inglesa, francesa, alemana e italiana, junto con la proyección creciente de la lengua portuguesa. En contraste, es débil el eco de otras zonas geográficas como Asia o África, probablemente a causa de circuitos limitados de circulación más que de producción. El enfoque biográfico en las narrativas de educación ciertamente se remonta pocos decenios atrás, si tomamos en cuenta la sistematización de argumentaciones y enfoques paradigmáticos; empero no deja de hundir sus raíces en una tradición de emergencias y rupturas en el universo de las ciencias sociales. Leia Mais

História e Arquivo / Revista Brasileira de História / 2018

Arquivos sob ameaça: os perigos de uma política antiarquivística

Vivemos a era da extinção do papel. Não cabe aos historiadores assumirem uma posição conservadora, defendendo suportes documentais tradicionais. Porém, não cabe também a eles abraçarem ingenuamente a tecnologia. Duas iniciativas em curso devem ser acompanhadas com preocupação. Uma delas é a adoção, pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, do Sistema Eletrônico de Informações (SEI). Essa ferramenta consiste em um sistema informatizado de Gestão Eletrônica de Documentos (GED) e está sendo implantada na administração federal, sendo também crescentemente adotada por administrações estaduais e municipais. O SEI prevê a extinção, na administração pública, de documentos produzidos em papel. Frente a tal proposta, o Arquivo Nacional emitiu nota técnica afirmando que esse sistema não cumpre requisito algum de preservação digital, complementando: “O órgão ou entidade que adotar o SEI, ou qualquer outro sistema informatizado para a produção de documentos digitais, precisa prever uma política de preservação digital para garantir o acesso de longo prazo a estes documentos” (Arquivo Nacional, 2015, grifo no original).

Conforme é possível observar, no SEI, a preservação digital não é um requisito obrigatório, abrindo caminho para que muitos órgãos públicos não a implementem de fato. Além da insegurança jurídica que isso pode causar, também há o gravíssimo risco de perdas substanciais do patrimônio arquivístico brasileiro. Mais grave ainda é o Projeto de Lei (PL) 7.920 / 2017, que atualmente – ou seja, em junho de 2018 – tramita na Câmara de Deputados. Essa proposta, na forma de Projeto de Lei do Senado – PLS 146 (Senado Federal, 2007), foi aprovada nessa última casa legislativa. Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática votou favoravelmente ao PL 7.920, acrescentando “prazo mínimo de dois anos para guarda dos documentos após efetuar-se o processo de digitalização”. Esse acréscimo revela um desconhecimento monumental a respeito dos instrumentos legais (Tabelas de Temporalidade e Destinação de Documentos de Arquivo), que definem os prazos de guarda dos documentos públicos. Além disso, essa Comissão fez algumas alterações, no projeto original, no que diz respeito à certificação digital ou à menção ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq). Contudo, a essência do PLS 146 não foi alterada, pois continuou a admitir que: “O documento digitalizado produzido a partir do processo de digitalização disciplinado em regulamento terá o mesmo valor legal, para todos os fins de direito, do documento não digital que lhe deu origem” (Câmara dos Deputados, 2017).

Tais projetos também autorizam esses procedimentos em relação aos documentos privados, sejam de empresas ou pessoais. O PLS 146 indica, em seu artigo 1, que os “órgãos públicos federais, estaduais e municipais, e de entidades integrantes da administração pública indireta das três esferas de poder político serão regidos pela presente lei”. O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão da administração pública federal encarregado de formular a política nacional de arquivos, emitiu nota técnica criticando duramente essas iniciativas. Alerta-se que a proposta de digitalização seguida da eliminação dos documentos originais “possui equívocos ao alterar importantes dispositivos legais”, pois extingue “a função genuína de ‘prova’ e / ou ‘testemunho’ de grande parte dos documentos arquivísticos” (Conselho Nacional de Arquivos, 2016). Mais ainda: “a fácil manipulação” das imagens digitais inviabiliza a “análise forense ou diplomática forense, em casos de contestação de veracidade, impugnação e / ou denúncias de adulteração e falsificação de documentos”.

Cabe aqui lembrar que esse debate não diz respeito aos documentos gerados em meio digital (os denominados nato-digitais), mas sim aos que são produzidos em papel e depois digitalizados. Embora a presença de documentos digitais seja comum, a maior parte da administração pública e privada brasileira ainda trabalha com sistemas híbridos, em que são produzidos documentos em formato digital e em suporte de papel. Além disso, o mais preocupante é que há imensos conjuntos documentais da administração pública, posteriores a 1950, ainda não avaliados e, portanto, não recolhidos aos arquivos públicos. Ao que tudo indica, eles seriam digitalizados e os respectivos originais seriam eliminados.

A eliminação em massa de documentos teria efeitos danosos ao patrimônio arquivístico brasileiro. O Conarq sublinha a inconsistência de um dos principais argumentos dos defensores dessas propostas. Esses últimos alegam que a medida implicaria substancial economia de recursos públicos, devido à “redução de áreas destinadas aos arquivos físicos” ou à “redução dos gastos com papel, o que favorece a preservação do meio ambiente”. Frente a esse argumento, a nota técnica do Conarq alerta que a “preservação e acesso de longo prazo” dos documentos digitalizados implica a “previsão de planejamento e investimentos constantes”, assim como “custos elevados com a manu­tenção do ambiente tecnológico ao longo dos anos”.

Os defensores do PLS-146, por sua vez, contra-argumentam que o segundo inciso do artigo 2 da versão do Senado prevê que: “Os documentos de valor histórico, assim declarados pela autoridade competente, embora digitalizados, não deverão ser eliminados, podendo ser arquivados em local diverso da sede do seu detentor”. Alerta semelhante pode ser observado na versão do texto que atualmente tramita na Câmara de Deputados: “A Administração Pública deverá preservar os documentos não digitais avaliados e destinados à guarda permanente, conforme previsto na Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, ainda que também armazenados em meio eletrônico, óptico ou equivalente”. Destaca-se aqui a menção à Lei de Arquivos (Lei nº 8.159 / 1991), que prevê em seu Art. 9º: “A eliminação de documentos produzidos por instituições públicas e de caráter público será realizada mediante autorização da instituição arquivística pública, na sua específica esfera de competência”.

Cabe ainda sublinhar que em nenhum momento o PLS 146 ou o PL 7.920 definem as noções de “documentos de valor histórico” ou “destinados à guarda permanente”. Igualmente, não se define quem seria a “autoridade competente” ou o gestor da “Administração Pública” que se encarregaria de avaliar os documentos enquanto patrimônios históricos. Na prática, há risco de se preservar apenas os registros esparsos referentes às grandes personalidades, sem consideração por séries documentais de natureza econômica e demográfica, ou as demais que preservam registros da memória das camadas populares.

Em outras palavras, essas proposições normativas abrem as portas para que a escolha dos “documentos de valor histórico”, a serem preservados, fique sujeita a critérios altamente subjetivos do gestor público do momento. No contexto administrativo brasileiro, em que a gestão de documentos arquivísticos ainda está em fase de implantação, é bem provável que esses agentes simplesmente não considerem nenhum documento público como tendo “valor histórico”, eliminando sua totalidade após a reformatação digital. Dessa maneira, há grande chance de se perderem tanto os documentos originais quanto suas representações digitais, principalmente quando se tem em vista os elevados custos de mantê-las a longo prazo. Fere-se, assim, de maneira mortal a formação do patrimônio documental brasileiro. Caminha-se, na prática, para a legalização da destruição em massa dos documentos arquivísticos, seja em sua função de evidência, seja para o acesso a direitos ou para preservar a memória brasileira para as futuras gerações.

A Anpuh vem acompanhando esses debates e tem se posicionado claramente contra esses danosos projetos. O Dossiê publicado neste número, intitulado “História e Arquivo”, ao trazer um panorama da atual produção sobre a história dos arquivos e da arquivologia, tem como objetivo, em nome da Associação, alertar para as problemáticas que suscitam os projetos legislativos e administrativos em curso.

Este número da RBH apresenta, assim, novas perspectivas de análise sobre o patrimônio arquivístico e a arquivologia. Através da história desse campo de conhecimento, assim como das instituições e das políticas de formação de acervos, lança-se luz sobre as potencialidades de pesquisa nos, por assim dizer, “arquivos dos arquivos”, ou seja, na documentação acumulada pelos arquivos públicos no exercício de suas atividades. Procura-se também promover uma reaproximação entre a história e a arquivologia, áreas muito conectadas no passado, mas que conheceram desenvolvimentos específicos no século XX, gerando afastamentos ou mesmo mal-entendidos (Blouin Jr.; Rosenberg, 2011).

O primeiro texto do dossiê, de autoria de Angelica Alves da Cunha Marques, Georgete Medleg Rodrigues e Christine Nougaret, explora a evolução histórica da arquivologia no Brasil e na França, apontando influências e singularidades nas respectivas configurações nacionais dessa área, principalmente em sua relação com a ciência da informação. O segundo texto, de autoria de Ana Canas Delgado Martins, desvela as complexas relações da constituição do fundo Conselho Ultramarino, assim como de sua custódia, tema de grande importância para o Brasil e Portugal. O terceiro artigo, de Marcelo Thadeu Quintanilha Martins, traça a história do fundo arquivístico da Secretaria de Governo da Capitania de São Paulo, revelando as potencialidades dos estudos sobre a evolução desse tipo de custódia, tema ainda muito pouco conhecido no Brasil.

Rita Sampaio da Nóvoa e Maria de Lurdes Rosa investigam, em seguida, as potencialidades dos arquivos de família. Trata-se de um tema fundamental, não apenas para entender a gestão patrimonial privada no Antigo Regime, como também o próprio funcionamento da monarquia. Sabe-se que antes do surgimento dos arquivos nacionais, havia arquivos dinásticos (Delmas; Nougaret, 2004), que recolhiam documentação das casas aristocráticas responsáveis por várias funções do Estado. O estudo desses conjuntos documentais, que eventualmente também permaneceram em posse de famílias, em muito permite entender o funcionamento da antiga administração portuguesa no reino e ultramar. O texto seguinte, de Thiago Lima Nicodemo e Paulo Teixeira Iumatti, desloca o eixo de discussão para um tema caro ao Brasil: a escrita da história a partir dos arquivos pessoais, particularmente a história social e cultural dos intelectuais, como no caso das redes de sociabilidade que esse segmento constituía ou as relações que mantinha com a esfera pública, dimensões que ficaram ali registradas.

Em sua contribuição, Paulo Roberto Elian dos Santos aborda a formação do campo arquivístico do Brasil contemporâneo, focalizando a primeira grande reforma administrativa federal, ocorrida na década de 1930, responsável pela criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), que atuou como autoridade arquivística, influenciando em muito a constituição desse campo. O texto de Maria Teresa Navarro de Britto Matos desloca essa discussão para o caso da Bahia, onde tentativas de modernização do arquivo público estadual foram frustradas. Esse episódio revela a existência de agentes públicos que, embora sintonizados com a discussão contemporânea da gestão documental, não puderam contar com base política, ou mesmo apoio na burocracia estatal, para que suas iniciativas prosperassem. Complementando esse ambíguo quadro das iniciativas modernizantes, o texto de Clarissa Moreira dos Santos Schmidt, Renato de Mattos e Natalia Bolfarini Tognoli mostra a natureza fortuita da criação do Sistema Estadual de Arquivos em São Paulo da década de 1980. Esse caráter fortuito, ironizado no título do artigo, decorre do fato de essa iniciativa não ter sido precedida de diagnósticos da documentação e da infraestrutura existentes, assim como de estudos sobre o quadro de profissionais disponíveis ou das necessidades dos potenciais usuários desse sistema. Na realidade, tal iniciativa decorreu de um leilão ilegal de documentos. A desconexão entre essa iniciativa e a gestão documental talvez ajude a compreender o atraso em sua implantação. O caso paulista serve de exemplo da fragilidade das políticas arquivísticas e de sua demora de implantação no Brasil. Concluindo o Dossiê, Caio César Boschi apresenta o Projeto Resgate, iniciativa que influenciou uma geração de historiadores e foi responsável pela digitalização de milhões de páginas de acervos relevantes para a história luso-brasileira. Esse texto sintetiza a evolução e dilemas desse projeto e, de forma inédita, fornece um guia de seus principais instrumentos de pesquisa, também anunciando a retomada dos trabalhos após alguns anos de arrefecimento.

Esse conjunto de reflexões em muito contribui para entender a arquivística brasileira contemporânea. Embora a utilização de documentos de arquivo seja frequente em várias áreas de conhecimento, ainda são raras as histórias de sua custódia institucional e das formas de uso dessas fontes. Espera-se que os textos presentes no Dossiê inspirem novas investigações. Ainda há muito a ser estudado a respeito de como se deu a formação dos acervos arquivísticos luso-brasileiros ou as mudanças nas definições de fundos e coleções. Isso para não mencionar como esses registros foram utilizados na escrita da história política, econômica, social e cultural, ou quando, e de que forma, a antropologia, a sociologia, a ciência política e demais áreas do conhecimento começaram a recorrer a eles. Também se conhece muito pouco a respeito da evolução da gestão dos arquivos públicos brasileiros e de seus serviços, bem como sobre a história dos procedimentos técnicos de classificação dos documentos de arquivos, de sua avaliação, conservação, descrição, difusão e acesso.

Embora estudos seminais tenham sido realizados por vários historiadores e arquivistas (Santos, 2010Estevão; Fonseca, 2010Marques, 20132014Bellotto, 2014Bottino, 2014 – somente para citar alguns exemplos), esse continente de pesquisa ainda está à espera de novos e necessários desbravadores.

Para além do Dossiê, este número traz dois artigos avulsos. Numa abordagem original dentro da área da História dos esportes, Victor Andrade Melo e André Leonardo Chevitarese, recorrendo aos jornais da época, analisam aspectos sociais das atividades de um turfe carioca de fins do século XIX, o Prado Guarany. Já Wellington Castellucci Junior revela, pela trajetória de Marcos Pimentel e de seus descendentes, as origens da linhagem dos sacerdotes do candomblé Ilê Axé Opô Afonjá de Itaparica, e ao mesmo tempo traz um detalhado exemplo das estratégias de construção patrimonial de libertos na Bahia da segunda metade do século XIX. Finalmente, dentre as três resenhas publicadas, uma complementa em boa hora o Dossiê “História e Arquivo”. Nela, José Francisco Campos aborda a atualíssima questão da preservação dos arquivos nato-digitais por meio da análise de Existir em bits: arquivos pessoais nato-digitais e seus desafios à teoria arquivística, de Jorge de Abreu.

Ao lhes desejarmos uma ótima leitura, não podemos deixar de agradecer ao Conselho Editorial, à Editoria Associada Internacional, aos Assistentes Editoriais Pablo Serrano e Marcus Vinicius Correia Biaggi, assim como à equipe de edição da RBH – Armando Olivetti, Flavio Peralta e Roberta Accurso.

RBH não teria a qualidade que tem sem o apoio do Programa de Pós-Graduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-Uneb) e do CNPq.

Referências

ARQUIVO NACIONAL. Considerações do Arquivo Nacional, órgão central do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo – SIGA, da administração pública federal acerca do Sistema Eletrônico de Informações – SEI (2015). Disponível em: Disponível em: http: / / www.arquivonacional.gov.br / images / conteudo / artigos / SEI_analise_AN.pdf ; acesso em: 18 jun. 2018. [ Links ]

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivo: estudos e reflexões. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014. [ Links ]

BLOUIN JR, Francis X.; ROSENBERG, William G. Processing the Past: Contesting Authority in History and the Archives. New York: Oxford University Press, 2011. [ Links ]

BOTTINO, Mariza. O legado dos congressos brasileiros de arquivologia (1972-2000). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014. [ Links ]

BRASIL. Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 jan. 1991. Seção 1, p.457. Disponível em: http: / / www.planalto.gov.br / ccivil_03 / Leis / L8159.htm; acesso em: 20 jun. 2018. [ Links ]

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 7.920, de 2017. Altera a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a digitalização de documentos. Disponível em: Disponível em: http: / / www.camara.gov.br / proposicoesWeb / prop_mostrarintegra;jsessionid=421A6AC547B83C872583B3D3DBCC846C.proposicoesWebExterno2?codteor=1583747&filename=Avulso+-PL+7920 / 2017 ; acesso em: 18 jun. 2018. [ Links ]

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática. Projeto de Lei nº 7.920, de 2017. Altera a Lei nº 12.682, de 9 de julho de 2012, a Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para dispor sobre a digitalização de documentos. Disponível em: Disponível em: http: / / www.camara.gov.br / proposicoesWeb / prop_mostrarintegra?codteor=1632805&filename=Tramitacao-PL+7920 / 2017 ; acesso em: 20 jun. 2018. [ Links ]

CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Nota do CONARQ sobre o PLS 146 / 2007 (2016). Disponível em: Disponível em: Disponível em: Disponível em: http: / / www.conarq.gov.br / noticias / 533-nota-do-conarq-sobre-o-pls-146-2007.html ; acesso em: 18 jun. 2018. [ Links ]

DELMAS, Bruno; NOUGARET, Christine. Archives et nations dans L’Europe du XIX siècle. Paris: Ecole Nationale des Chartes, 2004. [ Links ]

ESTEVÃO, Silvia Ninita de Moura; FONSECA, Vitor Manoel Marques da. A França e o Arquivo Nacional do Brasil. Acervo, Rio de Janeiro, v.23, n.1, p.81-108, 2010. [ Links ]

MARQUES, Angelica A. da Cunha. A arquivologia brasileira: busca por autonomia cientifica no campo da informação e interlocuções internacionais. Rio de Janeiro: Associação dos Arquivistas Brasileiros, 2013. [ Links ]

MARQUES, Angelica A. da Cunha et al. (Org.) História da Arquivologia no Brasil: instituições, associativismo e produção científica. Rio de Janeiro: AAA; Faperj, 2014. [ Links ]

SANTOS, Paulo Roberto Elian dos. Arquivística no laboratório: história, teoria e métodos de uma disciplina. Rio de Janeiro: FA-PERJ, 2010. [ Links ]

SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado no 146, de 2007. Dispõe sobre a digitalização e arquivamento de documentos em mídia ótica ou eletrônica, e dá outras providências. Disponível em: Disponível em: https: / / www25.senado.leg.br / web / atividade / materias / – / materia / 80337 ; acesso em: 18 jun. 2018. [ Links ]

Renato Pinto Venancio – Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Escola da Ciência da Informação, Departamento de Organização e Tratamento da Informação. Diretoria de Arquivos Institucionais (DIARQ-UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. Editor convidado. Pesquisador do CNPq 1D. E-mail: rvenancio@eci.ufmg.br
http: / / orcid.org / 0000-0003-0819-3671

Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História. Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: rbh@anpuh.br http: / / orcid.org / 0000-0003-1468-5680


VENANCIO, Renato Pinto; FEITLER, Bruno. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.78, mai / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Sociabilidades coloniais: entre o ver e o ser visto | Mara Rúbia Sant’Anna

Muitos livros já foram publicados sobre a história do Brasil desde que, entre 1619 e 1630, frei Vicente do Salvador resolveu escrever a primeira obra do gênero de que se tem notícia. Quase quatrocentos anos depois, o assunto parece ainda longe de estar esgotado e pesquisadores de diversos campos de conhecimento continuam – felizmente – a buscar diferentes abordagens para interpretar os fatos que contribuíram, ao longo do tempo, para a formação da nação brasileira. Leia Mais

Nietzsche y “la nueva concepción del mundo” MARTON (CN)

MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. Córdoba: Brujas: 2017. Resenha de: PASCHOAL, Antonio Edmilson. O mundo como medida: o papel conferido por Scarlett Marton à cosmologia na interpretação da filosofia de Friedrich Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.

Com o livro Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, publicado pela Editorial Brujas, de Córdoba, Argentina, em 2017, 114 p., Scarlett Marton oferece à comunidade de língua espanhola uma de suas teses mais caras: a de que a filosofia de Nietzsche enuncia uma “nova visão de mundo”. A demonstração dessa tese, como se pode observar, segue um itinerário peculiar em meio ao conjunto de textos publicados e apontamentos do filósofo posteriores a 1883, o que faz do livro um comentário, ao certo, mas, acima de tudo, uma interpretação plausível e justificável da filosofia de Nietzsche a partir de possibilidades deixadas por ele em sua obra. Uma interpretação que se aplica especialmente para os escritos do filósofo posteriores a Assim falou Zaratustra.

Para nos inteirarmos dessa interpretação singular e apreendermos a tese defendida pela autora, seguiremos seus passos pelo percurso proposto, observando como se move naquele conjunto labiríntico de escritos, suas opções, sua metodologia e o modo como tece a sua argumentação, passando com sutileza do que já é conhecido entre os leitores de Nietzsche para o inusitado e inesperado. Uma argumentação que, embora enuncie desde o início o seu propósito, só o revela de fato em toda a sua complexidade e consequências nas últimas linhas do texto. No final da trilha.

Inicialmente, cabe observar que em Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, S. Marton se mantém fiel a alguns pontos centrais de uma interpretação geral do pensamento de Nietzsche e que já nortearam vários outros trabalhos publicados por ela em diversos idiomas. Em especial, neste livro, mantém-se coerente com a ideia de que Nietzsche não produz uma ontologia, nem constrói um pensamento nos padrões de uma metafísica, mas propõe uma cosmologia, ao modo como fazem os filósofos pré-socráticos. Uma cosmologia, ou concepção de mundo, à qual se vinculariam outros temas da obra do filósofo, como é o caso, por exemplo, de sua crítica aos valores. O detalhamento exigido pelo tema, contudo, impõe a divisão ao livro em duas partes. Uma primeira voltada especificamente ao conceito de vontade de poder e, uma segunda dedicada particularmente ao conceito de eterno retorno do mesmo. Dois conceitos que se interligam, conforme veremos, por meio da teoria das forças de Nietzsche.

O conceito de vontade de poder, conforme lembra a autora, foi exposto por Nietzsche pela primeira vez na obra publicada em Assim falou Zaratustra. Uma exposição na qual se acentua o caráter orgânico do conceito que, naquela publicação, se identifica com a vida. Já neste ponto do livro, contudo, para além do conteúdo exposto, chama a atenção do leitor o modo como a autora constrói seus argumentos. Apoiando-se nos textos publicados, nas anotações do filósofo e recorrendo às suas fontes, como é o caso dos biólogos Wilhelm Roux e William Rolph, além de manter um debate permanente com outras interpretações sobre o tema em pauta. O que permite constatar no seu trabalho a herança, tanto de um tipo de análise que remete a intérpretes clássicos como Walter Kaufmann (W. Kaufmann, 1974) quanto de uma metodologia de leitura dos escritos de Nietzsche que foi consagrada por Mazzino Montinari como “histórico filológica”. Uma metodologia que estabelece uma íntima conexão entre a obra publicada pelo filósofo e os fragmentos póstumos do período, além de colocar em relevo o papel das “fontes” utilizadas para a compreensão de seu pensamento (M. Montinari, 1997, p. 78).

Assim, apoiando-se em parte na obra publicada, em parte nos apontamentos pessoais do filósofo e também nas leituras decisivas sobre o tema feitas por ele na época em que formula sua filosofia, Marton coloca em relevo o modo como o conceito de vontade de poder se vincula, então, à ideia de vida entendida como um conflito tanto entre os seres vivos quanto entre órgãos. Um conflito no qual “as minúsculas partes de um organismo vivo, não luta(m( por prazer ou por um objetivo que seria, por exemplo, a auto conservação ou subsistência, como pensa Darwin, mas por ‘um plus de poder’ (S. Marton, p. 34)”. Em resumo, uma concepção em que a vida, entendida como vontade de poder, se pautaria por um conflito permanente, não “pela autodefesa, mas pela voracidade” (p. 40), pela superabundância.

Após o Zaratustra, embora o filósofo mantenha o uso da biologia para a construção de seus argumentos ligados ao tema, em especial nas suas anotações pessoais, o fato é que ele amplia o conceito de vontade de poder para além do universo dos seres vivos. O marco dessa mudança, que na obra publicada tem lugar especial em Além do bem e do mal, consiste em retirar aquele “traço distintivo fundamental” entre orgânico e inorgânico. A partir de então, para o filosofo, ambos, orgânico e inorgânico, participariam do mesmo princípio. Em ambos “atua [wirkt] a vontade de poder” (p. 43) que passa a compreender o mundo em sua totalidade.

A ampliação do campo de atuação do conceito de vontade de poder obriga a intérprete a se ocupar de forma mais pormenorizada da teoria das forças de Nietzsche, construída pelo filósofo, segundo ela, justamente em função da necessidade de “decifrar o modo como se efetua a passagem da matéria inerte para vida, um dos problemas fundamentas para a ciência da época” (p. 44). No âmbito dessa teoria, uma força corresponderia a um quantum de vontade, de atividade e, assim, a algo que não se distingue de sua manifestação, de seu atuar. Desse modo, nessa teoria, não haveria espaço para um sujeito operante separado daquele atuar. “A ação é tudo” (p. 49), como afirma o filósofo de forma conclusiva na sua Genealogia da moral.

Ainda no domínio dessa teoria, a relação das forças entre si, como foi visto em relação à vida, seria de uma luta permanente, na qual cada uma delas busca expandir-se até o seu limite, tornar-se mais forte. O mundo seria, assim, um complexo e tenso campo de forças em conflito por expansão, sem princípio, fim ou sujeito. O que nos recoloca no âmbito da vontade de poder, pois, nesse sentido, como ressalta a intérprete, “toda força é vontade de poder” (p. 51). Agora, porém, ao designar aquele impulso por mais poder, a vontade de poder tem também uma ampliação do ponto de vista conceitual. Ela passa a corresponder a uma “explicação do caráter intrínseco da força” (p. 52) – como uma qualidade da força. Um ponto decisivo para a interpretação da autora que, tendo por pressuposto, neste momento, tanto aquela ampliação do campo de atuação do conceito quanto a sua compreensão como uma qualidade da força, pode arriscar sua hipótese de que aquela teoria de fundo cosmológico serviria de pedra de toque para o filósofo em outras esferas de seu pensamento, como é o caso da axiologia.

Tomar o domínio dos valores a partir da perspectiva da vontade de poder significa dizer que nesse âmbito não existe qualquer critério absoluto ou tábua de preceitos pré-estabelecida, anterior à vida e às suas manifestações. Significa também considerar, assim, em última instância, como o único critério plausível para diferenciar, por exemplo, bom e ruim, a própria vida – concebida, no caso, “como vontade de poder” (p. 60). A avaliação dos valores se daria, então, pela observação do quanto eles seriam expressão da afirmação ou da negação da vida, do quanto a favoreceriam ou obstruiriam. Nesse ponto, a autora reitera que “moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo critério da vida. E a vida é vontade de poder” (p. 62). O que confirma a sua hipótese, que mencionamos no parágrafo anterior, de que a vontade de poder, enquanto uma concepção de mundo, uma cosmologia, tem precedência sobre outros campos considerados pelo filósofo. No caso, o da axiologia.

Diferentemente do que foi notado na primeira parte do livro, em que a autora – abordando o tema da vontade de poder – não parece encontrar grandes dificuldades para comprovar sua tese de que o caráter cosmológico, a “nova visão de mundo” teria um papel central na filosofia de Nietzsche, em especial nos escritos posteriores ao Zaratustra, na segunda parte – quando se volta para o tema do eterno retorno do mesmo – as dificuldades parecem se ampliar. O que faz acentuar também o caráter polêmico da obra e a maior atenção às posições contrárias. Numa sequência, o debate se ocupa, inicialmente, da tese de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo e suas principais controvérsias e, posteriormente, da tese da autora, de que o eterno retorno, parte capital daquela “nova visão de mundo”, teria um papel decisivo na filosofia de Nietzsche.

Iniciando sua argumentação, Scarlett Marton cita um fragmento do ano de 1885, no qual se evidenciaria a correlação entre os dois conceitos, o de vontade de poder e do eterno retorno, posto que o mundo, segundo o filósofo, seria “um mar de forças” que se transforma eternamente, retorna eternamente. O vínculo entre ambas seria feito, como se evidencia naquela passagem, pela teoria das forças, que é tomada nesse contexto por seu caráter polêmico. Pela contraposição que representa em relação a algumas teorias conhecidas da época, em especial à ideia de entropia e à segunda lei da termodinâmica. Nesse sentido, é ressaltada a ideia do filósofo de que as forças seriam finitas e se correlacionariam entre si num tempo infinito, configurando um universo que não se ampliaria e nem atingiria uma finalidade, pois, se houvesse essa finalidade, com o tempo infinito e as combinações finitas entre as forças, ela já teria sido atingida.

Adentrando na polêmica, a autora explicita a posição assumida por Nietzsche, mas não se limita a defendê-la. Ao contrário, tomando como referência G. Simmel, afirma que aquela repetição pensada por Nietzsche não seria um dado necessário “a não ser que as cartas estivessem marcadas e os dados viciados” (p. 69). Mais ainda, ela evidencia que a posição cosmológica assumida por Nietzsche no debate com os físicos de sua época incorre em outro problema ainda mais sério, pois ela não apenas fecha as portas para a realização de uma finalidade última, como retira do mundo “qualquer novidade” (p. 67).

A disputa se estende também à recepção do eterno retorno na pesquisa Nietzsche. Nesse campo, a crítica da autora se volta à ênfase conferida por parte daquela recepção às “consequências psicológicas” do eterno retorno, estendendo-se também aos intérpretes que conferem à teoria circular de Nietzsche apenas um papel heurístico, que se limitaria a levar o leitor do filósofo a tomar uma posição diante da vida. Outra interpretação criticada pela autora é aquela que faz do eterno retorno um imperativo ético, próximo ao que se tem na filosofia kantiana, e que culminaria, como nos casos anteriores, mas aqui de um modo ainda mais acentuado, numa espécie de sujeito livre e responsável por suas ações. Algo totalmente contrário ao pensamento do filósofo.

O desfecho do debate com os interlocutores conduz a uma retomada do ponto nevrálgico da polêmica anterior. De que o eterno retorno não permitiria ao mundo “qualquer novidade”. Neste ponto, fica evidente que a autora não pretende ceder terreno a qualquer interpretação da teoria que venha a retirar dela justamente esse ponto terrível, o caráter determinista daquela visão de mundo que toma como uma fatalidade o fato de que tudo retorna – até mesmo o niilismo e o homem mais pequeno. Assim, se inicialmente ela parece tomar aquele determinismo como um problema, aos poucos deixará claro que ele não constitui um inconveniente para a teoria, mas é parte indispensável dela.

Nesse sentido, acompanhando o filósofo, também a intérprete não se recusa a experimentar filosoficamente o pensamento abissal em suas últimas consequências. Portanto, reafirma que não se deve tentar retirar da teoria a sua consequência determinista, mesmo quando se pretende considerar a correlação entre aquela visão de mundo e o campo dos valores. Isto porque é justamente o seu determinismo que permite a ela se apresentar como uma contraposição ao livre arbítrio e também àquelas tentativas de buscar saídas para o caráter terrível da existência em instâncias fora do mundo, no além.

É a concepção de mundo de Nietzsche que permite a ele pleitear que seus leitores voltem seus olhos para a terra e não para o além, postulando que essa vida, o instante presente como eterno. Nesses termos, rechaçar a metafísica, o recurso a uma esfera suprassensível, assim como o mecanicismo, consiste em assumir o mundo como ele é, a “amar o destino” (p. 98). O que corrobora, agora de forma conclusiva, a tese de que a visão cosmológica se antepõe à moral, pois, no âmbito dessa tese, “o ser humano” não seria o centro pensante do universo, mas “participa(ria( do destino de todas as coisas” (p. 99). O homem é parte do mundo. Pertence a ele. Como a um fatum. Assim, do mesmo modo como não temos uma posição fora da vida para julgar o valor da vida, também não teríamos, segundo a autora, uma posição fora do mundo para julgá-lo, cabendo ao homem, portanto, “conhecer o curso do mundo e entender sua natureza” (p. 101). O mundo é a medida e o homem divide com ele o seu destino. O homem não é o sujeito dos acontecimentos, mas parte do mundo. Nele se manifesta a totalidade do mundo, tanto aquela ampliação do campo de autuação do conceito.

Referências

KAUFMANN, W. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Anti-christ. 4. Ed. Nova York: Princeton University Press, 1974. [ Links ]

MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. 1a ed. Córdoba: Brujas, 2017. [ Links ]

MONTINARI, M. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos ídolos. Trad. Ernani Chaves. In.: Cadernos Nietzsche 3, p. 77-91, 1997. [ Links ]

Antonio Edmilson Paschoal – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Pesquisador do CNPq. E-mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br

Acessar publicação original

A Origem dos Sentimentos Morais – RÈE (CN)

RÈE, Paul. A Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi, São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. Resenha de: SALVIANO, Jarlee. O naturalismo moral e o pessimismo em A Origem dos Sentimentos Morais de Paul Rée. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2  maio/ago. 2018.

Coleção Sendas & Veredasvem há dezoito anos se constituindo como um dos mais importantes veículos de divulgação do pensamento de Friedrich W. Nietzsche no país, através de trabalhos de renomados especialistas (brasileiros e estrangeiros) na obra do polêmico filósofo alemão, promovendo um espaço permanente de debate filosófico sobre as mais variadas abordagens e impactos da filosofia nietzschiana. Além das séries Ensaios e Recepção, a Coleção conta agora com a série Fontes. O primeiro livro, que dá início a esta série, é a excelente tradução de André Itaparica e Clademir Araldi de A Origem dos Sentimentos Morais, de Paul Rée. Coordenada pela professora Scarlett Marton, a Coleção inaugura também, com esta tradução, sua nova casa: a Editora da Unifesp.

Paul Rée escreve o livro em 1877. De uma intensa conversação em Sorrento com o amigo Nietzsche (que conhecera no período de Basel, após a publicação de O Nascimento da Tragédia) surgiram A Origem dos Sentimentos Morais e o Humano, Demasiado Humano de Nietzsche. A amizade entre os dois foi regada ao pessimismo de Arthur Schopenhauer, de quem Rée herdou os elementos filantrópicos de sua ética. Apesar de comungar com Nietzsche, contra Schopenhauer, a proibição de qualquer fundamentação metafísica da moral, a concepção do desinteresse altruísta da ética da compaixão schopenhaueriana marcou profundamente o pensamento e a vida de Paul Rée – além do naturalismo ético de Rée, que influenciou decisivamente a genealogia nietzschiana, noutro ponto ainda poder-se-ia notar a contravenção em relação a Schopenhauer: caso fosse comprovado, o suicídio de Paul Rée (tendo em vista a rejeição schopenhaueriana do suicídio, como escapatória à sua visão trágica da vida). Com o rompimento do triângulo intelectual-amoroso entre os dois e Lou von Salomé, e após o casamento de Lou com Friedrich Carl Andreas, Rée refugia-se em sua cidade natal promovendo ações filantrópicas através do conhecimento de medicina que adquiriu após a desistência da docência em filosofia. Em Nietzsche, o doloroso dessabor em relação a Lou Salomé originou a orgiástica explosiva poesia de Assim Falou Zaratustra.

A tradução de Itaparica e Araldi oferece ao leitor uma apresentação inicial em que são apontadas, com riqueza de detalhes, as aproximações e os distanciamentos de Paul Rée e Nietzsche, em toda a obra dos dois filósofos e em relação ao ensaio traduzido; bem como uma nota biográfica, ao final, sobre Rée.

A comparação feita de início pelo autor de A Origem dos Sentimentos Morais entre o geólogo e o filósofo da moral dá a dimensão da tarefa a ser empreendida. Assim como o primeiro inicialmente “inspeciona e descreve diversas formações” e só então parte para a investigação de suas causas, também o segundo participa do mesmo esforço genealógico: parte da experiência para a origem dos conceitos éticos (como a consciência moral, liberdade, justiça, castigo, caráter etc.). Sem uma pretensão de esgotamento sistemático do assunto. Antes uma lacuna, diz ele, que um tapa-buraco.

Num estilo direto, incisivo, sem meias palavras, e com a ajuda do evolucionismo de Darwin, Paul Rée quer reduzir o fenômeno moral a causas materiais e históricas. Em relação aos conceitos de Bem [gut] e Mau [böse] o autor procura mostrar que o egoísmo e o altruísmo são inerentes à natureza humana. São inatos, heranças de “nossos ancestrais animais”. O Mau se configura em diversas atividades egoístas, em especial na preservação, satisfação sexual e vaidade. A realização dos anseios do ego, em contraposição ao altruísmo, encontra naturalmente no outro um obstáculo a ser superado. O clímax deste impulso imoral se encontra no prazer da desgraça alheia ou alegria maligna [Schadenfreude]. Por outro lado, o instinto altruísta visa ao bem-estar no outro, sua promoção, ou o afastamento do infortúnio. Do mesmo modo, a complacência [Mitfreude] objetiva tão somente a felicidade do outro. São bem visíveis aí os traços da ética da compaixão de Schopenhauer. A novidade consiste na ideia da distinção entre a compaixão altruísta (a exemplo da ação da mãe perante a dor do filho) e a compaixão egoísta: diante da dor alheia e tendo em vista que esta dor causa sofrimento num espectador, este age compassivamente, ainda que em vista da eliminação do sofrimento próprio. A motivação, portanto, não parte do outro, mas de si mesmo.

Louvável decerto, a secura da prosa de Paul Rée origina, no entanto, em alguns momentos, uma atmosfera conceitual rarefeita, como no caso da apresentação da tese schopenhaueriana sobre o altruísmo. Rée fornece, no primeiro capítulo, uma versão um tanto caricaturada do filósofo pessimista. Ele toma primeiramente como referência o pequeno e não tão expressivo ensaio Sobre a Vontade na Natureza, que trata en passant da questão ética da compaixão. E comete um grave equívoco: utilizando-se da distinção kantiana entre princípio constitutivo e regulativo, diz ser a Vontade de vida de Schopenhauer (o conceito mais importante de sua filosofia, o princípio ontológico que ele faz equivaler à Coisa em si de Kant) um conceito meramente regulativo: termo utilizado por Kant para se referir ao uso das Ideias da Razão Prática, como Deus e alma imortal. Não se pode dizer, sobre a Wille zum Leben de Schopenhauer, que devemos tomá-la ao modo do “como se”.

Enfim, interessa a Rée neste primeiro capítulo a ultrapassagem desta fundamentação metafísica do altruísmo para se chegar sem demora à concepção darwiniana e historicista dos sentimentos morais. De Darwin ele toma a tese de que em várias espécies animais (como em nossos ancestrais símios) já se manifesta o instinto de sociabilidade, que se fortaleceu através da seleção natural, e que originará o sentimento de compaixão. E é justamente este instinto, ligado à compaixão e à complacência, que dará o ritmo da seleção.

A dualidade egoísmo-altruísmo que marca a filosofia moral de Rée não o levou, contudo, a lançar mão do conceito kantiano de interesse, presente também no ambiente filosófico pós-kantiano. O seu oposto, o desinteresse, aparece timidamente em alguns capítulos, sem um maior desenvolvimento.

Na esteira de Schopenhauer e Rousseau, e contra a deontologia de Kant, o princípio da moralidade tem a ver fundamentalmente com a intersubjetividade: com a relação com o outro – a despeito dos aspectos formais do agir (o respeito pela lei moral de Kant) ou da virtude ou vício do agente moral, importa a Paul Rée a consequência (maléfica ou benéfica) da ação para o outro. Daí o aspecto utilitarista de sua ética. E neste ponto se distancia de Schopenhauer, que já é representante de uma ética da virtude (santo e monge budista), de uma doutrina do caráter metafísico inato, e se contrapõe a toda ética consequencialista.

O egoísmo (mais natural que o altruísmo), através do medo do castigo e da troca comercial, originou o Estado. O conceito de bom, de ação boa, surge através do hábito de ajuizar uma ação como boa a partir de sua utilidade: posteriormente a ação passa a ser considerada boa em si, independente da constatação imediata de sua utilidade.

A didática preocupação do autor leva-o a concluir o primeiro capítulo sobre a origem dos conceitos de Bem e Mau com um procedimento inusitado: uma compacta “síntese do primeiro capítulo” (do mesmo modo, realiza o fechamento da obra com uma “recapitulação e conclusão”).

O segundo capítulo trata da origem da consciência moral. Servindo-se de Hume e do utilitarismo de John Stuart Mill, defende que a naturalidade com que associamos o egoísmo ao mau e o altruísmo ao bem se deve a que desde tenra infância observamos, no meio social em que nos desenvolvemos, serem frequentemente louvadas as ações altruístas e censuradas as egoístas. O altruísmo e o egoísmo são inatos ao homem, mesmo no “estado de natureza”, mas o louvor ou censura, no entanto, são resultados de hábitos culturais e históricos. Caso ocorresse o contrário (louvor ao egoísmo e censura ao altruísmo) então conectaríamos naturalmente o altruísmo ao mal e o egoísmo ao bem. A sensação dolorosa, determinada por tal hábito, pela percepção de ter cometido uma má ação, e a autocensura advinda daí, constitui o remorso.

Rée faz referência, no terceiro capítulo (que trata da responsabilidade e da liberdade da Vontade), a uma série de pensadores que negariam a liberdade da vontade. Entre essas referências, está o ensaio Sobre a Liberdade da Vontade de Schopenhauer: e aqui se nota outro equívoco: na verdade Schopenhauer rejeita a ideia do livre-arbítrio, a pretensa liberdade incondicional da consciência – nele, Vontade (irracional, metafísica, livre) e arbítrio (intelectual, determinado) são coisas distintas. Chegam os dois filósofos ao mesmo determinismo, mas por vias diferentes, amparados em concepções diversas do conceito de vontade. Consequentemente, responsabilidade e castigo (ainda que necessário para a manutenção da paz através do Estado) têm também origem no hábito e na ilusão da liberdade da vontade. Rée se contrapõe a Kant, quanto à tese da responsabilidade moral aplicada não à ação, mas ao caráter inato.

Ainda no que diz respeito ao remorso, pode-se entendê-lo de dois modos: arrependimento pelo ato cometido (operari) ou pelo caráter (esse) responsável pelo ato. Em ambos a causa deste desconforto moral é o acima mencionado hábito de associação do ajuizamento (bom/mau) com a valoração (louvável/censurável). Isto se dá em vários níveis, de acordo com o indivíduo e sua formação cultural.

No quarto capítulo, Paul Rée critica o “senso de justiça” (retaliação) por também ser fundado na ilusão da liberdade da vontade. Há aí, segundo ele, o esquecimento do sentido originário e legítimo do castigo: como repreensão que visa ao impedimento futuro de más ações. Rée concorda com os preceitos utilitaristas que afirmam que os fins justificam os meios e que de dois males é legítimo a escolha do menor mal: é “racional, bom e louvável”. Mas desde que o fim de fato seja bom. Ele critica aqueles que fizeram mau uso deste preceito.

O quinto capítulo faz uma descrição (guiada pelo utilitarismo e pelo pessimismo inerentes ao ensaio) fenomenológica da vaidade, tão essencial à natureza humana quanto o egoísmo. A vaidade é inata, assim como o egoísmo, e surge como um instinto hereditário. Desejamos inevitavelmente a boa opinião por nos ser agradável, portanto útil. Como resultado, devido ao malogro constante de tal intento, temos na vida muito mais desprazer que prazer. Ou a dor, ou o tédio (quando falta o ímpeto da ambição que impulsiona ao trabalho): eis a vida.

O egoísmo e a vaidade, no entanto, são constantemente acobertados, pois, segundo a máxima utilitarista, é agradável ser considerado bom; e doloroso ser considerado mau: hipocrisia inevitável, sem a qual se tornaria impensável qualquer sociabilidade. “As palavras pacíficas que dois homens trocam entre si são apenas postos avançados dos exércitos de sentimentos hostis acampados nos seus corações”.

Boa parte desse capítulo, em que Rée trata dos sentimentos que estão na base da vaidade, como o orgulho e o ciúme (numa discussão que envolve ilações sobre diferenças de gênero controversas para os dias atuais), são compostos de modo aforismático, o que muito deve ter agradado ao amigo-leitor, Nietzsche. Enfim, é preciso notar a importância da vaidade para a existência do Estado: sem ela, este seria impossível, tendo em vista ser essencial a ambição e sentimento de honra dos governantes, advindos da vaidade.

Quanto ao progresso moral, Rée afirma que tal progresso deveria se dar ou por seleção natural (no entanto se demonstra que não se conservam os povos nos quais predomina o altruísmo); ou pelo hábito, a experiência da frequência do altruísmo (igualmente malogrado, pois ocorrem poucos casos de experiência altruísta, e não se pode aumentá-los pela educação). Entretanto, é possível ainda pensar no progresso moral: pelo patriotismo, que se constitui inicialmente de maneira xenofóbica, mas que evolui aos poucos; através do fomento dos bons costumes; e pelo fato de os homens, no decorrer do tempo, se tornarem domesticáveis.

Rée fecha o ensaio analisando a relação entre bondade e felicidade. Mostra o autor que a despeito de todos os esforços é momentânea e superficial toda satisfação. Tanto o homem bom quanto o homem mau têm seu quinhão de sofrimento, seja pelo infortúnio causado pela compaixão, no caso do primeiro, seja pelo remorso, no caso do segundo. Conclui, ao modo schopenhaueriano, que a vida é uma oscilação entre árduo sofrimento e insuportável tédio. E que o homem, pela complexidade de sua constituição nervosa, é o mais sofrível dos seres. Contudo, a moralidade ainda é tomada como essencial, pois fomenta o bem-estar dos outros.

Referências

GRUPO DE ESTUDOS NIETZSCHE. Sendas e veredas. Disponivel em: <Disponivel em: http://www.gen.fflch.usp.br/sendasveredas >. Acesso em 26/06/2018 [ Links ]

RÈE, PaulA Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi. São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. [ Links ]

Jarlee Salviano – Professor de filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: jarlee.salviano@ufba.br

Acessar publicação original

Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: luiz.cambraia.silva@usp.br.

Historicizando a Grande Aceleração do Brasil / Varia História / 2018

Na segunda metade do século XX, o uso global de recursos, a transformação da paisagem e as emissões de gases de efeito estufa adquiriram dimensões sem precedentes – o mundo experimentou uma “Grande Aceleração”. Esse processo foi particularmente espetacular em algumas regiões de rápida industrialização do Sul Global. Na história ambiental global e nas geociências, a Grande Aceleração se tornou uma noção comum para delinear um período particular – se não o início – do Antropoceno, a era em que os humanos se tornaram agentes geológicos ( McNeill; Engelke, 2014 ; Steffen et al ., 2015 ). Esta edição especial da Varia Historiaanalisa como a sociedade brasileira contribuiu e enfrentou as consequências da Grande Aceleração como um fenômeno global. Esperamos fornecer sugestões úteis sobre como escrever a história da Grande Aceleração com foco em barragens hidrelétricas, técnicas agrícolas, consumo de petróleo, ciência e valorização econômica, infraestrutura de transporte e percepção da paisagem. A expansão da infraestrutura de transporte e energia, bem como a introdução de novas tecnologias agrícolas e de mineração, têm estado no centro da política desenvolvimentista brasileira. Rodovias, barragens, refinarias, complexos industriais, locais de mineração gigantescos e até mesmo esquemas agrícolas planejados pelo estado eram formas de territorializar o poder do estado em associação com a expansão da economia capitalista. Ao desemaranhar alguns desses processos,

Escrever a história da Grande Aceleração exige que pesemos cuidadosamente as causalidades e consequências, sem recorrer a explicações teleológicas. Em seu The Great Acceleration , John McNeill e Peter Engelke (2014)colocam os “fatores de pressão” na base do processo da Grande Aceleração: a demanda por mais energia derivada do crescimento demográfico e econômico, bem como da guerra. Na verdade, migração, urbanização, conflitos de recursos, todos parecem derivados do crescimento da população global. No entanto, a principal descoberta desta edição especial é que os “fatores de atração” foram pelo menos tão decisivos no desencadeamento da Grande Aceleração. Com isso, queremos dizer tecnologia disponível, discursos científicos, ideologias e políticas de modernização, bem como a percepção estética das paisagens. Por um lado, as mercadorias da Grande Aceleração precisavam de “rotas de poder” para serem extraídas, produzidas, canalizadas e distribuídas aos consumidores ( Jones, 2014) Novos sistemas de transporte, disponibilidade de capital, técnicas de “beneficiamento” do solo, maquinários industriais, redes de energia e modernos equipamentos domésticos contribuíram para a criação de padrões, expectativas e necessidades que impulsionaram a aceleração do consumo e da produção. Por outro lado, a Grande Aceleração também emergiu de novos saberes e ideologias que constituíram uma “cultura antropocena” ( Pádua, 2017) Triunfalismo científico, discursos de modernização e representações do espaço (a “Marcha para o Oeste” em direção ao Cerrado nos anos 1940 ou a “terra sem gente para gente sem terra” que acompanhou a colonização do vale do Amazonas) foram catalisadores dessa cultura. Eles não apenas incentivaram os brasileiros a acelerar a exploração da natureza, mas também sinalizaram a disponibilidade do Brasil como fornecedor de matéria-prima para os mercados globais.

Defendemos uma abordagem que combine dimensões estruturais com uma perspectiva decididamente praxeológica, reconhecendo a agência de pessoas inseridas em constelações de poder e configurações institucionais. O que é particularmente importante para nós é a questão de como tecnologia, discurso e prática se entrelaçam para produzir novas demandas materiais e novas significações culturais da natureza. Uma maneira específica de falar e pensar sobre a natureza e a abundância material induziu a uma noção de abundância e disponibilidade? A transição de um discurso de escassez para um discurso de abundância é a chave para entender o salto para a Grande Aceleração? Que efeito a mudança tecnológica teve nesses discursos? O que o psicólogo social Harald Welzer (2011)apropriadamente denominado “infraestruturas mentais”, uma apropriação cognitiva do mundo, que toma a disponibilidade ilimitada e tecnologicamente mediada da natureza como certa, nos lembra que a Grande Aceleração pertence à história das mentalidades tanto quanto à história econômica ou à história de tecnologia. Em consonância com essa perspectiva, Thomas Mougey mostra em sua contribuição a esta edição especial que o engajamento científico com o vale do Amazonas precedeu o aumento global da demanda por commodities da floresta tropical na elaboração de grandes planos para o desenvolvimento econômico da região. Em seu artigo, Claiton da Silva defende que o conhecimento científico sobre fertilização e aclimatação das lavouras de soja foi o fator decisivo para o desencadeamento da Grande Aceleração no Cerrado.

Essas contribuições também destacam o papel desempenhado pelos contextos locais na construção de modelos antropocênicos, mostrando boas razões para descer das alturas em que operou a bolsa existente sobre a Grande Aceleração. A pegada humana no planeta não é homogênea, mas diferenciada. Como McNeill e Engelke reconhecem, um habitante do Reino Unido no século XX produziu mais emissões de carbono do que um de Cabul, e um habitante de Cabul provavelmente contribuiu mais para a poluição do que alguém de uma remota aldeia afegã. Isso é ainda mais verdadeiro para o Brasil, às vezes ironicamente rebatizado de “Belíndia” (Bélgica / Índia) ou “Dinamália” (Dinamarca / Somália) para enfatizar as diferenças nos níveis de desenvolvimento dentro do país. O desnível das paisagens socioambientais do Brasil quanto ao seu posicionamento na história da Grande Aceleração exige uma nova agenda de pesquisa, que deve consistir, por fim, em incluir os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil aponta para uma história muito mais complexa. que deveria consistir em incluir, por fim, os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. que deveria consistir em incluir, por fim, os continentes latino-americano, africano e asiático na narrativa antropocênica. Enquanto o chamado mundo industrializado (principalmente América do Norte, Europa e Japão) ocupou uma posição central nas estruturas explicativas do Antropoceno, os territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa. territórios anteriormente colonizados permaneceram uma parte periférica da história. Devemos presumir que eles foram meros fornecedores de matéria-prima para a economia global ou, na melhor das hipóteses, reprodutores tardios dos padrões antropocênicos de seus ex-colonizadores? A Grande Aceleração do Brasil sugere uma história muito mais complexa.

O Brasil, junto com países de outras regiões do mundo, ocupa uma posição peculiar e de dois gumes no Antropoceno. Por um lado, como grande fornecedor de recursos naturais, ocupa uma posição econômica periférica. Forneceu uma parcela significativa da base material da Grande Aceleração global, mas valor foi agregado em outro lugar. Suas commodities contribuíram para o desenvolvimento industrial pós-guerra de países como Japão e Alemanha Ocidental e, conseqüentemente, para o surgimento da cultura hiperconsumista, automobilística e intensiva em carbono de nossos tempos. O setor agrário do Brasil está sujeito às pressões do mercado global, alimentando a devastação das florestas tropicais e promovendo a destruição dos meios de subsistência de povos que tradicionalmente dependem de uma pegada ecológica mínima. O mesmo vale para o Nordeste,

Por outro lado, as classes alta e média (até recentemente em rápido crescimento) brasileiras têm caminhado rapidamente em direção aos padrões de consumo dos EUA. O Brasil, com suas indústrias estatais e agências de P&D, também desempenhou um papel ativo no co-desenvolvimento de tecnologias que são essenciais para a destruição ambiental em grande escala. As indústrias brasileiras de biocombustíveis e aeronáutica são exemplos disso, assim como a contribuição do Brasil para o “hard oil”, conjunto de tecnologias de alto risco utilizadas para atingir as últimas reservas mundiais de petróleo devido ao esgotamento dos poços convencionais ( LeMenager, 2014) A estatal petroleira Petrobras é considerada líder mundial em tecnologias de perfuração offshore desenvolvidas para a província do pré-sal, que, ocultadas pela opacidade do mar profundo, têm impactos devastadores sobre a fauna marinha. Os avisos dos cientistas do clima de que, para manter o aumento da temperatura global dentro de limites administráveis, a humanidade não pode se dar ao luxo de queimar as fontes fósseis de energia conhecidas, são ignorados por quase todos os campos políticos no Brasil. O recente abrandamento das regras sobre a participação estrangeira no “Pré-Sal” provavelmente acelerará ainda mais a exploração de petróleo em águas profundas com menos controle estatal. Além disso, o movimento da Petrobras em direção a campos de petróleo estrangeiros a partir da década de 1970 criou novos contextos pós-coloniais nos quais o país se encontra em uma posição historicamente reversa. Na África,

Considerando que a Grande Aceleração foi proposta como uma peça no quebra-cabeça de encontrar uma periodização para o Antropoceno, a identificação de seus inícios, fins, continuidades e rupturas apresenta alguns desafios interessantes por si só, como mostra este número. Como argumenta Claiton da Silva, no caso da soja, a Grande Aceleração foi exponencial e tendeu a crescer cada vez mais rápido nas últimas décadas do século XX. Aqui a noção de uma “ruptura” induzida pela mudança tecnocientífica parece adequada. No entanto, outras contribuições demonstram que o aparato técnico-político que permitiu a Grande Aceleração em outros campos começou a ser montado mais cedo. A hidreletricidade passou a ser vista como o futuro energético do Brasil já no século XIX, como Nathalia Capellini enfatiza nesta edição. Em cada caso,

Essas dinâmicas não representam resultados necessários dos processos de modernização ou dos desdobramentos mecanicistas das relações socioambientais capitalistas. A história da exploração e do desperdício da natureza é uma história de agência, negociação e conflito. Existe uma agenda política da Grande Aceleração, que não coincide com a transformação material, mas muitas vezes a precede ou acompanha. Indiscutivelmente, o período de governo de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) viu uma “aceleração política”: A expansão do governo central e os procedimentos de planejamento institucionalizados foram instrumentais para a realização de projetos de infraestrutura de grande escala, maior envolvimento da ciência na políticas governamentais e econômicas privilegiando a indústria e a agricultura mecanizada. No entanto, o desenvolvimentismo de Vargas não surgiu do vácuo.

Para o período pós-Segunda Guerra Mundial, que está no centro desta questão, diversos momentos foram particularmente significativos para a Grande Aceleração do Brasil. No plano simbólico, a presidência de Kubitschek se destaca: ele proclamou a “aceleração” como seu principal projeto político ao prometer “50 anos [de progresso] em cinco”. Uma personificação dessa agenda é, obviamente, Brasília, um projeto impressionante de desenvolvimento urbano acelerado. Da mesma forma, o regime militar usou a iconicidade das usinas de energia, infraestrutura de transporte e maquinário agrícola para se rotular como moderno. Na ausência de liberdades democráticas e igualdade social, o “crescimento” tornou-se o principal recurso de legitimação do regime. Posteriormente, os governos do PT embutiram seus ideais de redistribuição social em discursos de crescimento e progresso que giram em torno de coisas aceleradas, como pode ser visto. por exemplo, no “Programa de Aceleração do Crescimento”. No entanto, não devemos assumir uma linha de transmissão direta entre o discurso político e a materialização acelerada da infraestrutura. Na verdade, a construção da infraestrutura pode ser extremamente lenta, e ir do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar. a construção de infraestrutura pode ser extremamente lenta, e a etapa do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar. a construção de infraestrutura pode ser extremamente lenta, e a passagem do planejamento à construção pode levar décadas. Com isso, grandes sistemas tecnológicos poderiam adquirir novas funções econômicas, como argumenta Georg Fischer, nesta edição, a respeito da Estrada de Ferro Vitória a Minas, ou novos sentidos políticos, como no caso da hidrelétrica de Belo Monte, relíquia do planejamento. o regime militar.

A história da Grande Aceleração deve levar em consideração as conjunturas de produção de conhecimento e as mudanças nas relações natureza-sociedade em geral. As ideias sobre a gestão dos recursos naturais mudaram ao longo do tempo. Um caso em questão são os agroquímicos, cujos efeitos nos ecossistemas eram considerados positivos até a década de 1970: eles fariam a natureza “mais sólida” ao reforçar o húmus, enquanto para muitos conservacionistas e cientistas o verdadeiro “inimigo da natureza” era o caboclo praticante de pequena escala. corte e queima, destruindo manchas de floresta e promovendo a erosão do solo. Da mesma forma, petróleo, rodovias e automóveis foram bem-vindos como uma alternativa “limpa” à lenha, ferrovias e trens, que governos e cientistas brasileiros consideraram perigosos agentes do desmatamento.

O que é necessário para os humanos perceberem os danos que causam à Terra, ou pelo menos ao ecossistema em que vivem? Demora até que uma população humana tenha exaurido seu sustento a ponto de ameaçar sua própria existência, como escreve o historiador ambiental Donald Worster à luz de exemplos passados ​​de “surpresas ecológicas” que afetaram gravemente os caçadores do Pleistoceno e os antigos mesopotâmicos ( Worster, 1994)? Na verdade, o problema histórico que está por trás do conceito da Grande Aceleração é precisamente que os humanos do século XX foram incapazes de identificar o ponto de inflexão após o qual sua intervenção nos ecossistemas se tornou uma força planetária desencadeando catástrofes ambientais irreversíveis. O Brasil é um bom exemplo para refletir sobre essa mudança de escala devido à espantosa rapidez com que deu as costas às formas tradicionais de extrativismo para abraçar a produção e o consumo antropocênicos. Os artigos da presente edição examinam processos de transições de energia, mudança no uso da terra e industrialização, cuja compreensão ajuda a situar a Grande Aceleração em uma perspectiva de longo prazo e identificar mudanças cruciais em direção a mudanças ambientais irreversíveis. Embora essa abordagem possa parecer pessimista, não esquecemos a forte tradição de resistência socioambiental do Brasil, que é viva hoje, apesar de um clima político muito difícil. Na verdade, ainda há muito a preservar: o Brasil abriga até 20% do estoque global de biodiversidade, cerca de 30% das florestas tropicais do mundo e 12% de sua água doce (Pádua, 2017 ). Povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, sem-terras e outros grupos têm ressignificado as formas tradicionais de extrativismo e agricultura como soluções locais para um futuro solidário e sustentável. Essas soluções devem fazer parte do esforço global para evitar uma nova mudança de escala na Grande Aceleração. Ao tentar entender por que os humanos não conseguiram detectar o momento em que a exploração da natureza começou a se transformar em superexploração, ameaçando seu próprio sustento, esperamos contribuir com outra parte desse esforço.

Referências

JONES, Christopher F. Rotas de Energia: Energia e América Moderna. Cambridge, Mass.; Londres: Cambridge University Press, 2014. [ Links ]

LEMENAGER, Stephanie. Living Oil: Petroleum Culture in the American Century. Nova York: Oxford University Press, 2014. [ Links ]

MCNEILL, John R .; ENGELKE, Peter. A Grande Aceleração: uma História Ambiental do Antropoceno desde 1945. Cambridge, Mass .: Belknap Press of Harvard University Press, 2014. [ Links ]

PÁDUA, José Augusto. O Brasil na História do Antropoceno. In: ISSBERNER, Liz-Rejane; LÉNA, Philippe (Org.). O Brasil no Antropoceno: Conflitos entre Desenvolvimento Predatório e Políticas Ambientais. Londres; Nova York: Routledge, 2017. p.19-40. [ Links ]

STEFFEN, Will, et al. A Trajetória do Antropoceno: a Grande Aceleração. The Anthropocene Review, vol. 2, n. 1, p.81-98, 2015. [ Links ]

WELZER, Harald. Infraestruturas mentais: como o crescimento entrou no mundo e em nossas almas. Berlim: Fundação Heinrich Böll, 2011. [ Links ]

WORSTER, Donald. The Wealth of Nature: Environmental History and the Ecological Imagination New York; Oxford: Oxford University Press, 1994. [ Links ]

Antoine Acker – Departamento de História da Universidade de Zurique. E-mail: antoine.acker@hist.uzh.ch  http: / / orcid.org / 0000-0002-2698-359X

Georg Fischer – Departamento de Estudos Globais, Universidade de Aarhus, Dinamarca. E-mail: fischer@cas.au.dk  http: / / orcid.org / 0000-0003-4791-5884


ACKER, Antoine; FISCHER, Georg. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.65, mai. / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Teoria da História e História da Historiografia na América Latina e no Caribe / História da Historiografia / 2018

La constitución de la historia como disciplina en América Latina y el Caribe durante los siglos XIX y XX coincidió con el proceso de emergencia y consolidación de los Estados nacionales a los que proveyó de relatos e interpretaciones sobre sus orígenes, su evolución, sus rasgos particulares y su identidad. De ese modo, las narrativas históricas tomaron a la nación como principal escala de análisis y, mucho más importante aún, como sujeto protagónico de los procesos históricos.

Hasta mediados del siglo XX, y aunque con importantes diferencias regionales, la historiografía de los países latinoamericanos se desarrolló en buena medida por fuera de los sistemas universitarios. Los historiadores eran en general políticos, funcionarios, escritores, médicos o abogados, que podían estar ligados o no a instituciones como las academias de historia, los institutos históricos o las sociedades de estudios históricos. Después de la Segunda Guerra Mundial, y sobre todo a partir de la década de 1960, las universidades comenzaron a concentrar la producción de conocimiento histórico. Tributaria de una tradición local de ensayismo crítico, y enriquecida por el contacto con la historia social marxista y annaliste -contacto que en parte se debió al exilio provocado por las dictaduras militares-, la historiografía latinoamericana fue entonces objeto de una notable renovación teórico-metodológica que promovió la incorporación de nuevos temas, problemas y abordajes. En ese sentido se destaca la consideración de América Latina y el Caribe como un espacio con una historia común que era pensada con categorías como dependencia, desarrollo, modernización o formación económico-social. Sin embargo, y a diferencia de lo sucedido con otras disciplinas como la filosofía, la sociología o la economía, esta caracterización no fue una condición suficiente para que la historiografía produjera interpretaciones y narraciones de conjunto capaces de trascender la suma de casos nacionales. Leia Mais

Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina – TVARDOVSKAS (HU)

TVARDOVSKAS, L.S. Dramatização dos corpos: arte contemporânea e crítica feminista no Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015. 488 p. Resenha de: RIBEIRO JÚNIOR, Benedito Inácio. História, gênero e feminismo: arte e práticas de liberdade no Brasil e na Argentina. História Unisinos 22(2):320-325, Maio/Agosto 2018.

Com mais de dez artigos publicados versando sobre os temas feminismo, gênero, arte e história, Luana Saturnino Tvardovskas traz a público os frutos colhidos na sua pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, sob a orientação de Margareth Rago.2 A obra, intensa nas reflexões e no peso, contempla a produção artística das brasileiras Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado e das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino. Atravessando e historiando os caminhos de “[…] verdades cáusticas, de saberes menosprezados e de vozes inauditas” (Tvardovskas, 2015, p. 430) de tais artistas, a historiadora costura perspectivas historiográficas sobre mulheres, gênero e feminismos aos conceitos e práticas políticas e de pensamento de intelectuais como Michel Foucault, Judith Butler, Rosi Braidotti, André Malraux, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Margareth Rago, Norma Telles, Suely Rolnik, Tânia Navarro-Swain, Nelly Richard e Leonor Arfuch. O que garante a qualidade dessa urdidura é um apurado trabalho de análise das obras e das trajetórias das artistas e uma escrita politizada, afetada e afetuosa.

Comprometida com o assunto – arte, história e feminismo –e com a orientação de Rago desde a graduação, Tvardovskas privilegiou pensar estilísticas da existência e produções artísticas a partir do ferramental teórico-político- -metodológico feminista em sua trajetória como historiadora. Sua dissertação de mestrado é exemplo disso: defendida em 2008, Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó, ela analisa instalações, performances e objetos artisticamente construídos com o objetivo que questionar verdades instituídas em relação à sexualidade, ao corpo feminino e à subjetividade (Tvardovskas, 2008).

Voltando à obra, esta foi defendida como tese de doutorado em 2013 e revista para ser publicada como livro em 2015. O livro foi dividido em cinco capítulos e em duas partes. Junto com a introdução, o primeiro capítulo –“Um museu imaginário feminista: histórias da arte e feminismos, diálogos possíveis” – está separado das duas partes do livro. A primeira parte – intitulada Brasil– contém os capítulos 2 e 3. No primeiro deles, “De ousadias discretas e manobras radicais: mulheres artistas no Brasil”, a reflexão sobre a produção de mulheres na arte brasileira a partir de 1970 e do movimento feminista toma lugar, ao mesmo tempo que a temática de gênero é discutida em relação aos contextos curatoriais e aos estudos acadêmicos. Já o terceiro capítulo, que recebeu o nome de “Potência desconstrutiva: Rosana Paulino, Ana Miguel e Cristina Salgado”, é escrito a partir do estudo das produções e trajetórias artísticas das três brasileiras investigadas por Tvardovskas. Argentina, como é denominada a segunda parte do livro, é composta pelos quarto e quinto capítulos, respectivamente intitulados “Cuerpos aflictos: arte e gênero na Argentina contemporânea” e “Memórias insatisfeitas: Silvia Gai, Claudia Contrerase Nicola Costantino”. Assim, a segunda parte da obra obedece à organização feita pela autora na sua primeira parte, pois os capítulos são organizados com o intuito de evidenciar as discussões sobre as artes e os feminismos nos seus contextos nacionais e, em seguida, verticalizar a análise abordando as artistas separadamente. O primeiro deles relaciona os temas da arte, política e gênero na Argentina contemporânea, trazendo reflexões acerca do período ditatorial e de abertura política e sobre a crítica de arte no país. No seu quinto e último capítulo, a obra interpreta as imagens plásticas produzidas por Gai, Contreras e Costantino.

No início do seu primeiro capítulo, Tvardovskas esclarece que seu trabalho buscará uma conjunção entre crítica cultural e História para abordar as poéticas visuais das artistas que são seu objeto de estudo. O intuito da autora é problematizar a partir de um olhar feminista essas estéticas femininas, partindo da hipótese de que tais produções “[…] anunciam novas possibilidades de intervenções na cultura”, e, inspirada em Walter Benjamim, questiona se elas podem ser “[…] compreendidas como espaços de resistência ao empobrecimento ético, político e subjetivo atual” (Tvardovskas, 2015, p. 37).

Nessa esteira, a autora vai situando os seus referenciais para a discussão de suas artistas-objeto: chama para a conversa Michel Foucault e Judith Butler para questionar a naturalidade dos corpos, percebendo-os a partir daí como produtos de discursos sobre o sexo. Interessa-se pelo conceito foucaultiano de parrhesia, que seria uma experiência antiga greco-romana construída a partir do cuidado de si e dos outros, buscando a afirmação de uma existência bela, libertária e ética. Desse modo, a opressão feminina vivenciada em seus corpos, a negação de seus desejos e a renúncia de si seriam terrenos de desconstrução de mulheres artistas que buscam em suas próprias vidas a matéria de seu trabalho. Logo, a autora situa as produções das seis artistas analisadas nessa convergência teórico-política.

Ainda no primeiro capítulo, preocupa-se em pensar a crítica feminista sobre as artes visuais, pontuando as concepções de arte e história da arte no Brasil, na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. Assim, Tvardovskas evidencia as condições históricas que excluíram as mulheres da história da arte ocidental. A partir de autoras como Griselda Pollock, Linda Nochlin, Rozsika Parker, Whitney Chadwick, para citar apenas algumas, a autora expõe que nos séculos XVIII e XIX as mulheres foram impedidas de pintar os gêneros tidos como maiores, entre eles os nus, sendo-lhes permitido apenas o estudo da natureza morta, do retrato e da paisagem. Também a ordem burguesa, no mesmo período, afastou ainda mais o conceito de artista da identidade das mulheres, com a redução delas ao papel reprodutivo e ao lar. No século XX, as concepções de originalidade e genialidade foram quase sempre atribuídas aos homens, assim como as mulheres foram banidas da história do modernismo. Embasada por reflexões que desconstroem as bases da História da Arte, bem como da própria disciplina histórica, Tvardovskas aponta para a compreensão da História que não se vê mais como discurso neutro ou universal como importante passo para a compreensão das mulheres, artistas ou não, como sujeitos históricos, concluindo que “[…] a história enquanto enunciado verdadeiro e absoluto não serve ao feminismo” (Tvardovskas, 2015, p. 61). O primeiro capítulo se encerra com uma crítica à pretensão de compreender uma periodização para a crítica de arte feminista latino-americana que coincida com a efervescência desses temas na Europa e nos Estados Unidos, iniciada a partir dos anos 1970. Os regimes ditatoriais que se deram no nosso continente na segunda metade do século XX ritmaram de outro modo o movimento feminista e seus efeitos no campo artístico, e, de acordo com a autora, apenas depois dos momentos de abertura política o feminismo impactou de forma mais efetiva a indústria cultural e as artes em geral. Por esse desenvolvimento mais tardio, Tvardovskas afirma que não houve no Brasil uma revisão dos cânones artísticos ou uma rememoração de nomes de mulheres em outros períodos históricos, como ocorreu nos países de língua inglesa. Assim, a partir de uma vontade de evidenciar perspectivas feministas e seus locais na arte latino-americana, Tvardovskas inicia suas análises.

O segundo capítulo se encarrega da discussão sobre as mulheres na arte brasileira e também introduz pequenas biografias de Ana Miguel, Rosana Paulino e Cristina Salgado, bem como apresenta seus estilos e materiais de trabalho. Insere, dessa forma, a produção e carreiras das três artistas na fase de abertura do regime militar, na década de 1980, caracterizada pela euforia por novas possibilidades artísticas e políticas. A história política do Brasil, do movimento feminista, das artistas-objeto e de outros artistas brasileiros é enfocada no estudo, gerando um panorama crítico das condições históricas que caracterizaram a arte e os trabalhos de Miguel, Paulino e Salgado. Com o fim da ditadura, Tvardovskas percebe como os movimentos sociais foram fortalecidos e, dentre eles, o feminismo. Isso levou as mulheres a se imporem mais abertamente como sujeitos políticos e atuarem criticamente em áreas como produção cultural, academia e no poder legislativo, repensando a cidadania, os corpos, o gênero, a sexualidade feminina e seus papéis de mães, esposas e filhas. Os anos 90 vão se caracterizar, então, por uma maior interação das obras de mulheres na desconstrução do imaginário misógino brasileiro, resultado do fim dos governos autoritários e da visibilidade conquistada pelos movimentos feministas.

Duas informações são importantes para entender o engajamento necessário às artistas mulheres para fazer arte no Brasil. Primeira: a entrada das mulheres nas instituições de educação artística no Brasil enfrentou grandes dificuldades, percebidas pela autora até finais do século XIX, já que apenas em 1892 foi concedido o acesso às mulheres ao ensino superior, como na Academia Nacional de Belas Artes. Outra informação buscada por Tvardovskas é a questão de grandes nomes femininos do modernismo brasileiro. Amparada nos resultados de sua própria dissertação e nas pesquisas de Marilda Ionta, a autora entende que o grande reconhecimento de Tarsila do Amaral e de Anita Malfatti estabelece a importância das mulheres na arte nacional e, ao mesmo tempo, sugere-se que não haveria distinções entre homens e mulheres nesse campo: “Criou-se a representação na mídia e na historiografia de que a presença dessas duas artistas confirmava que no Brasil não existiam problemas de gênero no território artístico” (Tvardovskas, 2015, p. 96).

Na seção final do capítulo 2, a autora dá visibilidade à maneira pela qual a discussão de gênero veio tomando lugar nas artes visuais brasileiras, percorrendo catálogos de exposições, obras analisadas, exposições organizadas com o intuito de divulgar a arte de mulheres no país, concluindo que tais discussões serviram para deslocar conceitos e valores, questionando as naturalizações que envolvem a arte brasileira, as mulheres e a domesticidade. Tvardovskas conclui que a arte contemporânea abriu espaços de liberdade e de questionamento de normas e, por isso, pode ser compreendida pela ideia foucaultiana de estética da existência.

Ao iniciar o terceiro capítulo, Tvardovskas esclarece que fará uma leitura feminista das produções dessas autoras – que nem sempre entendem suas obras ou a si mesmas como feministas –, conjugando autobiografia e política para compreender seu objeto de pesquisa. Desse modo, as três artistas brasileiras e seus trabalhos são percebidos desde suas questões cotidianas e “marcas vividas”, mesclando aspectos culturais e sociais para a “[…] busca de caminhos diferenciados para a constituição das subjetividades na atualidade” (Tvardovskas, 2015, p. 114).

Em decorrência disso, nas narrativas pós-estruturalistas e feministas, como defende a obra, autorretrato foge às narrativas tradicionais de uma constituição de um eu verdadeiro. No caso das artistas mulheres, o uso de temas e materiais íntimos, cotidianos e domésticos serviria, segundo suas perspectivas de gênero, para negociar, reagir e inverter os ditames da feminilidade “[…] e da identidade ‘Mulher’, constituindo imagens muito surpreendentes de si mesmas” (Tvardovskas, 2015, p. 11). Não seria a autobiografia individualista, branca, ocidental, masculina e universal, mas, em nome da pluralidade, apostas na ressignificação e intensificação das experiências vividas.

Assim, obras como a instalação My bed, da inglesa Tracey Emin, trazem uma interrogação sobre os limites entre público e privado, na qual a cama, objeto íntimo, pode despertar questionamentos sobre a vida em sociedade. Salgado, Paulino e Miguel seriam exemplos dessa arte que conjuga elementos autobiográficos, íntimos e privados ao mundo político e público. Rosana Paulino3 tematizará em suas obras as questões de gênero e etnicidade: questiona modelos de comportamento e corpo a ela destinados historicamente, “[…] marcando sua arte com ‘traços de revolta’” (Tvardovskas, 2015, p. 139). Uma das obras analisadas em Dramatização dos corpos é a impactante Bastidores (2013), em que seis fotos de mulheres negras são expostas em bastidores de costura com suas bocas, testas, olhos ou gargantas costurados grosseiramente com linha escura.

Paulino, em entrevista colhida por Tvardovskas, afirma que a obra reúne memórias familiares aos problemas coletivos. A historiadora entende que do espaço íntimo de Paulino emerge uma crítica atroz à sexualização e silenciamento das mulheres negras, mas também conexões com o passado escravista brasileiro. Nessa esteira, sendo mulher negra, tendo passado pela experiência ainda na infância da pobreza, do racismo e do sexismo, Paulino se vale dessas experiências subjetivas em grande parte do seu trabalho: ressignificando práticas cotidianas femininas como o costurar, o tecer, o bordar, gera posicionamentos e reflexões sobre as práticas violentas que caminham juntas às vivências femininas e negras. Guiada por Deleuze e Guattari, a autora vê nessa artista e suas criações espaços abertos a devires e desterritorializações identitárias sobre as mulheres; e, inspirada em Foucault, lê as mesmas imagens como a “coragem da verdade”, numa implicação ética na qual Paulino fala francamente da escravidão.

Em Ana Miguel4 é possível ver as associações do feminino com aranhas e fiandeiras, bem como personagens de contos de fadas como Rapunzel. Recorrendo aos materiais e às técnicas comumente ligados ao feminino, como a linha, a cama e o crochê, Ana Miguel gera afeto e incômodo na sua obra I love you. A descrição e as camadas de sentido que recobrem a obra são pensadas por Tvardovskas a partir de referências clássicas, como o mito de Aracne, da influência do pensamento psicanalítico na obra de Miguel e as questões envolvendo o corpo feminino. A autora percebe que a sua instalação Um livro para Rapunzel (2003), assim como suas teias de crochê, caracterizam-se como modos de deslocar naturalizações sobre o feminino. A infância é pensada também, ao lado da instalação supracitada, com a exposição Pensando a pequena sereia, “a matéria é o que deseja minha alma” (1990), como lugar de repensar a subjetivação das meninas.

Por fim, Miguel tem seu trabalho Ninhohumano (2008) estudado por Tvardovskas: trata-se de uma intervenção urbana feita em conjunto com Claudia Herz, na qual as duas habitam por dias uma árvore no aterro do Flamengo (RJ). Para Tvardovskas, a intervenção força os limites entre o jardim público e o espaço privado da casa: desloca as divisões estabelecidas entre público e privado, entre locais habitáveis e não habitáveis. Assim, Miguel revela uma multiplicidade de sentidos sobre o humano, o feminino e a infância, repensando o corpo e o desejo para uma “potência feminina criativa”.

A última brasileira abordada no livro é Cristina Salgado.5 Esta se volta para o corpo feminino com a intenção de romper com significados cristalizados por meio de torções, fraturas, rompimentos, dobras e incisões, representando esculturas de corpos impossíveis e problematizando a questão da nudez (Tvardovskas, 2015). Também envolvida em temáticas que cruzam estética e psicanálise, os corpos esculpidos por Salgado são plasmados às paredes e objetos de decoração, com inchaços e torções se fazendo evidentes. De acordo com Tvardovskas, a estratégia já vinha sendo usada por outras artistas surrealistas como crítica à domesticidade feminina.

Em sua instalação Grande nua na poltrona vermelha, composta em 2009 e com direta associação com Grande nu no sofá vermelho (1929), de Pablo Picasso, o corpo de uma mulher se derrama pelo espaço, excedendo as proporções humanas, mas rostos, mãos e pés dão caráter humano ao emaranhado de dobras e torções. O nu para a artista mulher torna-se uma presença e uma ausência que, nas palavras de Tvardovskas, significa o corpo nu feminino sempre em evidência em obras de arte, mas criadas e vistas por olhares masculinos. Ao contrário, Salgado o deforma e o recria: a sua mulher nua se derrama aspirando buscar outras formas de entender o feminino, o corpo, a arte e as próprias maneiras de conceber nosso olhar sobre o mundo, inventando o feminino como dobras não localizáveis, numa leitura deleuziana.

A segunda parte da obra se inicia no quarto capítulo, que tem como objetivo entender as nuances das relações entre arte e gênero na Argentina contemporânea. Como fez ao tratar do Brasil, a obra pensa a história política recente naquele país como terreno fértil para as artes em geral: a violência, a tortura, os desaparecimentos e os assassinatos vividos no período ditatorial (1966-1973) fazem surgir um luto simbólico nas expressões estéticas, e as artistas argentinas analisadas não escapam a essa problemática. Traçando um panorama da história da arte argentina, Tvardovskas aponta para as omissões das quais as artistas mulheres foram vítimas. Assim como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, artistas mulheres que atingiram certo reconhecimento na Argentina, como Lola Mora e Marta Minujín, têm suas trajetórias usadas para mascarar o silenciamento das poéticas visuais femininas e a inexistência de interesse sobre as obras das demais artistas.

Tvardovskas afirma que em meados da década de 1980 tem-se a inserção de prismas de gênero na arte argentina: depois da ditadura, numa realidade econômica e social deteriorada, a cena underground refletiu acerca dos corpos e suas sexualidades “fora da ordem”. Já em 1986, a exposição Mitominas I acolhe obras de mulheres que se perguntavam acerca dos mitos que as construíam enquanto mulheres, e, dois anos depois, a exposição Mitominas II. Los limites de la sangre fará alusão à violência política na Argentina, à AIDS e à violência de gênero.

Para pensar as relações entre arte e gênero na Argentina, a historiadora relembra os parâmetros que consideraram certas manifestações artísticas como “arte política” na década de 1960: em confronto com a ditadura, artistas se dedicavam a tecer críticas ao poder e às estruturas macropolíticas. A partir dos anos 80, Tvardovskas reconhece um fortalecimento e maior visibilidade dos movimentos sociais, mas o foco da crítica dos artistas não é mais somente o estado. Assim, artistas militantes que discutiam os novos impasses sociais, diferentes dos anos 60, foram tachados de despolitizados e frívolos, pois baseariam seus trabalhos em temas muito subjetivos, como o corpo e a sexualidade. Por isso, suas obras acabaram sendo pejorativamente denominadas de “arte rosa”, “arte light” e “arte gay”.

Por seu turno, o último capítulo de Dramatização dos corpos coloca os trabalhos das argentinas Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino sob a perspectiva dos estudos feministas. Tvardovskas encontra como eixo tematizador dos trabalhos dessas artistas as questões relacionadas ao corpo, grande sensibilidade e uma crítica forte à história do seu país. Assim, as três artistas-objeto enfatizam em suas criações a memória como prática ativa no presente e lugar de reflexão política. Silvia Gai6 começa seus trabalhos com técnicas têxteis em meados dos anos 90, tecendo órgãos humanos em crochês de formato tridimensional, aplicando-lhes um banho de água e açúcar que lhes garante uma estrutura firme, como se vê na sua série de órgãos Donaciones, de 1997. Esses trabalhos levam à reflexão sobre a enfermidade e a fragilidade dos corpos: pequenos tumores, más-formações e lacerações se alastram por seus trabalhos. As reflexões acerca do HIV, que preocupou a argentina desde os anos 80, da mesma maneira emergem em suas obras. Também há trabalhos da artista que se dão em almofadas e aventais, objetos do uso cotidiano e doméstico. Tvardovskas os entende por uma perspectiva feminista, pois Silvia Gai “[…] explicita os enunciados sociais que tradicionalmente restringem as mulheres à domesticidade, em nome de uma suposta ‘ordem biológica’” (Tvardovskas, 2015, p. 320). É possível ver a criação de corpos sensíveis à percepção, de uma maneira muito diferente daquela expressa pelos invasivos discursos médicos e cirúrgicos. As linhas e redes formadas pelos seus trabalhos igualmente aludem às interpretações feministas, podendo sugerir a criação cultural de órgãos, tecidos e corpos.

Já Claudia Contreras7 usa materiais e técnicas de criação muitas vezes tachadas como menores e atribuídas às mulheres, confrontando acidamente a história do último século, em especial os genocídios e a ditadura em seu país. Os problemas que inundam a Argentina na década de 1990, como as mazelas do neoliberalismo e o empobrecimento massivo da população, suscitam na arte de Contreras questões a serem tratadas, bem como os desaparecimentos políticos da ditadura militar, numa tentativa de reconstruir o passado de forma crítica, questionando discursos oficiais e os problemas da memória e do esquecimento. Em reconstruções do mapa argentino, ela expõe corpos atacados e agredidos, como nas obras Argentina Corazóne Columna vertebral, ambas de 1994-1995. Já a série Cita envenenada (2001), “[…] remete à prisão de militantes políticos pela polícia, por meio do descobrimento de esconderijos e encontros marcados, associada, portanto, à traição” (Tvardovskas, 2015, p. 375). Nesse sentido, Contreras utiliza um objeto cotidiano, banal, como uma xícara, e nele expõe dentes humanos, estabelecendo uma relação entre os micropodores que perpassam nossos cotidianos e revelam violências e impactos sobre nossos corpos. Os trabalhos que nem sempre se mostram como críticas feministas – como, à primeira vista, pode parecer Cita envenenada – podem ser lidos numa perspectiva feminista, uma vez que, para Tvardovskas, conceitos como corpo, desejo, cotidiano e poder são postulados pelas discussões de mulheres interessadas na transformação da realidade social e cultural.

Nicola Costantino8 encerra as análises de Dramatização dos corpos, mostrando o olhar ácido sobre a cultura argentina e as convenções de moda, do feminino e da maternidade presente nos trabalhos dessa artista. Assim como Contreras e Gai, Costantino é entendida por Tvardovskas como uma daquelas artistas que utilizam a água como elemento sofredor e matéria de desespero, o que pode ser visto na obra Ofelia, Muertede Nicola Nº II.9 A maternidade, a cozinha, o envelhecimento e a beleza feminina são constantemente questionados pelas corrosivas obras de Nicola Costantino, o que fica claro nos seus trabalhos de inkjetprint, como nas impactantes Nicola costurera (2008), Madonna (2007) e Savon de corps (2003). Em Nicola Alada, de 2010, a imagem de si é usada para refletir acerca do corpo, o imaginário sobre a mulher e a violência histórica. Seu autorretrato como Vênus na frente de uma enorme carcaça bovina pendurada causa uma mordaz contradição entre o ideal da imagem feminina e a violência causada ao olhar espectador pela carne animal exposta. O corpo animal entrecruzado ao corpo de Vênus nos faz perceber, segundo Tvardovskas, o sofrimento possível em um corpo, em especial o das mulheres.

Passando à conclusão, Tvardovskas entende as obras das seis artistas estudadas como práticas fluidas e em constante reelaboração e como exercícios de reconstrução de si e da cultura no seu entorno: as produções de Salgado, Paulino, Miguel, Gai, Contreras e Costantino ampliam nossas formas de perceber o feminino e as ex não hierárquicas e não binárias. A autobiografia, o corpo, o espaço privado se constituem como espaços possíveis de repensar a memória e com potência criativa e libertária. Não há um sentido feminista essencial, pretendido pelas autoras ou fixo na análise de Tvardovskas; muito pelo contrário, a autora deixa explícita a intenção de lançar um olhar histórico e feminista sobre as obras estudadas. Durante toda a sua análise, por meio da crítica de suas fontes, das obras e das mulheres estudadas, reescreve um passado sobre a arte muitas vezes negligenciado, afirmando abertamente a sua leitura sobre elas: “Não se trata, assim, de uma simples invenção de sentidos inexistentes, mas de uma lente necessária para um olhar social que parece não conseguir enxergar com acuidade seus contínuos processos de apagamento das diferenças” (Tvardovskas, 2015, p. 380). Uma leitura mais que necessária nos tristes tempos vivenciados pela cultura e arte brasileiras, quando se olha, por exemplo, para as recentes polêmicas acerca do cancelamento da exposição QueerMuseu (Folha de S. Paulo, 2017) e em torno da performance La bête, acusada de pedofilia (Carta Capital, 2017). Dramatização dos corpos se torna leitura obrigatória num ambiente em que a arte que discute gênero, cultura LGBT, o corpo e o desejo é cada vez mais vítima de discursos censores e intolerantes.

Referências

CARTA CAPITAL. 2017. Museu de SP é acusado de pedofilia e rebate: performance não tem conteúdo erótico. Disponível em: https:// www.cartacapital.com.br/sociedade/museu-de-sp-e-acusado-de- -pedofilia-e-rebate-performance-nao-tem-conteudo-erotico. 29 set. Acesso em: 31/10/2017.

FOLHA DE S. PAULO.2017. Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada. Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto- mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada. shtml. 10 fev. Acesso em: 31/10/2017.

TVARDOVSKAS, L.S. 2008. Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. Campinas, SP. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 223 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2013. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina. Campinas, SP. Tese de Doutoramento. Universidade Estadual de Campinas, 370 p.

TVARDOVSKAS, L.S.2017. Currículo da Plataforma Lattes. Brasília. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv. do?id=K4594129J5. Acesso em: 09/05/2017.

Notas

2 Esses dados foram consultados no Currículo Lattes de Luana Saturnino Tvardvoskas. Ver na lista de referências Tvardovskas (2017).

3 Nascida em 1967, é gravadora e especialista em gravura pelo London Print Studio e possui doutorado em Artes Plásticas pela ECA/USP. Todas as informações biográficas das artistas foram encontradas na própria obra de Luana Tvardovskas (2015).

4 Nascida em 1962, gravadora e escultora, estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ) e Filosofia Contemporânea e Antropologia na Universidade Federal Fluminense e na Universidade de Brasília.

5 Pintora, desenhista e escultora. Nasceu em 1957, estudou desenho, pintura e litografia na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde se tornou professora. É doutora em Linguagens Visuais pela UFRJ e professora da UERJ e da PUC-RJ.

6 Nascida em Buenos Aires em 1959, é uma escultora que trabalha com crochês e bordados, dialogando com práticas têxteis.

7 Nasceu em 1956, também em Buenos Aires. Trabalha com colagem, costura, paródia, desenhos, pinturas, bordados, objetos, fotografias e animação digital. Estudou na Escuela Nacional de Bellas Artes de Quilmes, na Escuela Nacional de Bellas Artes Manuel Belgrano e na Escuela Superior de Bellas Artes Ernesto de la Cárcova. Também estudou em Madri.

8 Nascida em Rosário, em 1964, tem sido bastante comentada no circuito latino-americano contemporâneo, trabalhando com autorretratos, esculturas, embalsamamento de animais, imitações de pele humana, performances, vídeos e instalações. Formou-se na Escola de Artes Plásticas da Universidad de Rosario e embalsamamento e mumificação de animais no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Rosario.

9 A água possui esse lugar na produção dessas três artistas e no imaginário argentino contemporâneo pelas memórias da ditadura militar, já que eram comuns os voos nos quais militares jogavam militantes políticos no mar e no Río de la Plata.

Benedito Inácio Ribeiro Junior – Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em Assis. Professor Assistente I na Faculdade de Administração de Santa Cruz do Rio Pardo da Organização Aparecido Pimentel de Educação e Cultura. Praça Dr. Pedro Cesar Sampaio, 31, Centro, 198000-000, Santa Cruz do Rio Pardo, SP, Brasil. E-mail: beneditoinacioribeiro@gmail.com.

Marx e a dialética da sociedade civil | Marcos Del Roio

Diante da crise mundial, nos últimos anos, os estudos sobre a obra de Marx voltaram a ganhar força no meio acadêmico. É neste cenário que foi produzida a obra Marx e a dialética da sociedade civil. O livro é resultado do “V Seminário Internacional de Teoria Política do Socialismo”, evento realizado na Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília (UNESP/Marília) com apoio do Grupo de Pesquisa Cultura e Política do Mundo do Trabalho e do Instituto Astrojildo Pereira.

O livro é organizado por Marcos Del Roio, professor titular de Teoria Política da UNESP de Marília, e possui quinze capítulos distribuídos em cinco unidades. É um livro interdisciplinar, pois seus autores são pesquisadores das mais diversas áreas das humanidades, como História, Ciência Política, Filosofia, Ciências Sociais e Educação. Leia Mais

Vozes da vida religiosa feminina: experiências, textualidades e silêncios (Séculos XV-XXI)

Em Portugal, os estudos sobre as experiências históricas com relação às mulheres e questões de gênero chegaram tardiamente, por volta da década de 1970, após a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Em outros países tai perspectiva de estudo já estava caminhando desde a década de 1960. Em um primeiro momento, os períodos mais estudados, com relação às mulheres, foram os séculos XIX e XX, para os quais se propugnava uma reconstrução historiográfica do que havia sido banido pelo Estado Novo Português. A partir daí foram incrementados outros temas de estudos sobre as mulheres, tendo como exemplo as pesquisas que resultaram no clássico História das Mulheres no Ocidente, organizado por Georges Duby e Michelle Perrot (1993), além de revistas da área de Ciências Sociais, que tinham o objetivo de discutir a temática de gênero e seus desdobramentos sociais.

Atualmente, o leque temático relativo aos estudos de gênero alargou-se. A proposta é a diversidade de abordagens, de maneira a inserir as mulheres como agentes, ao lado dos homens, na constituição da sociedade portuguesa, não deixando de lado as barreiras impostas pelo mecanismo estrutural da dominação masculina (BOURDIEU, 2003). Todavia, os estudos têm elencado principalmente personagens conhecidas, como rainhas, princesas ou personagens de grande veiculação na contemporaneidade, deixando de lado outras vivências. Leia Mais

O Meças – CARVALHO (A-EN)

CARVALHO, J. Rentes de. O Meças. Lisboa: Quetzal, 2016. Resenha de NOGUEIRA, Carlos. O Meças, by Rentes de Carvalho: polyphonic novel about Portugal. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.2, may./aug., 2018.

Em 2013, numa entrevista concedida ao JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, referindo-se ao romance que acabava de publicar, J. Rentes de Carvalho (1930) afirmava: “Creio, aliás, que não voltarei tão cedo ao género, pois é difícil manter a sequência e evitar que os personagens não baralhem o enredo”. O novo romance de J. Rentes de Carvalho não vem necessariamente contradizer aquelas palavras, uma vez que passaram já três anos desde a saída de Mentiras & Diamantes (2013). Mas não nos parece arriscado dizer que a maioria dos leitores do autor de Ernestina terá recebido com grande surpresa a notícia da publicação de O Meças, o oitavo romance de um escritor que também tem sobressaído na crônica, no conto e no diário.

Rentes de Carvalho é um escritor moderno desde o seu primeiro romance, Montedor (1968), reeditado em finais de 2014. Este livro expõe o mundo interior de uma personagem, em discurso de primeira pessoa, mas não descuida a realidade exterior: o contrabando, a emigração, a política obscura e corrupta, a desvergonha e a impunidade dos poderosos, a influência do clero, as desigualdades econômicas e sociais, o atraso sociocultural.

Montedor é um romance psicológico, mas é também um romance de formação de matriz autobiográfica e de ação, e não menos um romance realista que vai buscar os temas e motivos ao quotidiano mais comum e nos revela uma sociedade em conflito. Assistimos a um número significativo de peripécias dramáticas e ao drama interior do protagonista desde o momento em que ele reprova nos exames que lhe dariam acesso a um “diploma” e a um bom emprego, testemunhamos os momentos principais da sua vida, desde a ida para a tropa, ao regresso a casa e ao casamento por obrigação; e somos levados a estabelecer uma comparação com a vida de quem escreveu o livro. J. Rentes de Carvalho deixou Portugal, viveu em cidades como o Rio de Janeiro, Nova Iorque e Paris, e estabeleceu-se na Holanda em 1956, onde teve condições para desenvolver uma carreira como escritor de méritos rapidamente reconhecidos no país que o recebeu. O protagonista de Montedor ficou em Portugal, e aí, fechado dentro de si, perdeu toda a liberdade e dignidade. Um romance, como se vê, e por razões óbvias, tão atual na década de sessenta como hoje.

O Meças, como Montedor, é um romance sobre Portugal. Esta fórmula, que tem sido usada para definir a ficção de J. Rentes de Carvalho, apesar de não ser inexata, é muito incompleta. Montedor articula a representação da intimidade mais profunda de uma personagem com a representação dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior do protagonista e o tempo cronológico do país salazarista. A um tempo histórico e a um quotidiano em que existem figuras que dir-se-ia terem séculos, a um tempo que passa sem que se alterem as questões que em Portugal parecem ser irremediáveis (o patriarcado, as diferenças e a hostilidade entre ricos e pobres, o atraso sociocultural e econômico, o imobilismo, a corrupção), corresponde o tempo interior vivido pelo narrador-personagem, que é um perdedor atormentado até ao paroxismo. Com diferenças de perspetiva, de intensidade e de técnica narrativa, esta leitura aplica-se a outros romances do autor, em particular a O Rebate (1971) e A Amante Holandesa (2000, Holanda, 2003, Portugal). Mas o que traz originalidade a estes conteúdos é a omnipresença da memória e das emoções que afligem o sujeito e se sobrepõem à sua vontade. O Meças, organizado em quatro partes, ou em cinco, se considerarmos as “Anotações” finais, está em consonância com a sensibilidade, o pensamento e escrita de J. Rentes de Carvalho, que tem procurado compreender a origem, o significado, os mecanismos e as expressões, quer da sua memória e das suas emoções, quer da memória e das emoções portuguesas (e não só).

No primeiro capítulo, o narrador de terceira pessoa apresenta-nos António Roque, conhecido como o Meças, e é através do seu discurso inquiridor que assistimos à tragédia permanente deste homem violento e angustiado pela presença inexorável de um passado que se faz presente e futuro devido a uma complexa e incontrolável relação de causa e efeito entre perdas humilhantes e comportamentos, sentimentos e emoções induzidos por essas perdas e humilhações. No segundo capítulo, agora em discurso de primeira pessoa assumido pelo meio-irmão de Meças (que não sabe que aquele é seu meio-irmão, filho, como ele, do “Senhor Engenheiro”), a memória, enquanto presença interior hipersensível, é também constante. No terceiro capítulo, regressa o narrador de terceira pessoa, que mais uma vez representa o interior mortificado de Meças, e no quarto volta o meio-irmão da personagem que dá título ao romance. O meio-irmão de Meças, que se fixou em Newcastle, vem a Portugal com a intenção de revelar a Meças o que os une, mas, afinal, decide não o fazer. Educado, civilizado, preso às origens e ao mesmo tempo distante ou distanciado delas, ele é também, por circunstâncias diversas (o caráter violento do pai, ter-se visto a “crescer sozinho”, como ele próprio diz, saber-se nascido num país corrupto e atrasado), assaltado pela memória involuntária (Bergson) e dolorosa.

O Meças, que recebeu o prémio de Melhor Livro de Ficção, relativo a 2016, da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), como toda a obra ficcional deste autor, representa as emoções e as memórias repentinas e avassaladoras de personagens portuguesas, e indaga e explora a sua raiz, os seus sentidos e as suas implicações. O meio opressivo e opressor português está na origem das emoções e das memórias dos dois meios-irmãos deste livro, um culto e bem-educado, o outro precisamente o oposto. O Meças é uma representação de grande parte da sociedade portuguesa de meados do século XX até aos nossos dias, ou da sociedade portuguesa de qualquer tempo e de qualquer lugar. As personagens do romance não encontraram soluções para o seu desassossego, mas podem ajudar-nos a ver Portugal mais em profundidade, a compreender as inquietações, as memórias e as respostas da chamada, num sentido muito amplo, portugalidade.

Nem simplesmente realista à maneira de Eça de Queirós, nem exclusivamente subordinado aos procedimentos da narrativa anglo-saxônica (em cuja feição realista, que vem já do século XVIII, entram a sobriedade estilística e a valorização da interioridade das personagens), nem incondicionalmente subordinado às técnicas do noveau roman francês (que, por exemplo, num tempo de crise humanista, elimina ou reduz ao mínimo a intriga, e marca a impossibilidade de construir uma personagem bem delineada), O Meças encerra um conhecimento vasto da literatura portuguesa e internacional, e impõe-se como um livro singular que participa na modernidade da ficção portuguesa, tal como Montedor participou na década de sessenta na renovação literária portuguesa.

Não existe contradição entre a clareza e a exatidão e o registo predominantemente emotivo. O equilíbrio e a disciplina clássica da linguagem de O Meças estão perfeitamente de acordo com o estilo que reconhecemos a J. Rentes de Carvalho. A musicalidade intrínseca à escrita deste autor impede-a de incorrer em monotonia e automatismo, e em O Meças essa harmonia resulta numa expressão em que despojamento e inquietude se combinam e alternam. A sequência mais comum deste romance inclui orações ou expressões próprias do escritor clássico que o autor de Ernestina é, e momentos, consideravelmente extensos, em que a emotividade da personagem domina, representada pelo discurso indireto livre e/ou pelo monólogo interior. Esta sobriedade e esta emotividade acolhem, não raramente, um discurso autoirônico, como dissemos, mas também irônico, cômico e satírico cujo alvo é a sociedade em geral, das classes economicamente mais favorecidas às mais baixas, e da unidade da família à ética sexual e às estruturas e comportamentos religiosos. Mais do que de humor deve falar-se de comédia trágica, de desconstrução, através de uma paródia relativamente discreta, dos preconceitos e das verdades da sociedade portuguesa de meados do século XX: «Alguns até parece que nascem doutores, e ele, vinte e tal anos na Alemanha, nem sequer a língua foi capaz de aprender, só palavras soltas, os colegas às gargalhadas, obrigando-o a repetir tudo, dizendo que ninguém o entendia e a chamar-lhe “turco”» (p. 107).

O Meças combina a representação da intimidade mais recôndita de duas personagens com a representação discreta mas perceptível dos problemas de Portugal, e estabelece uma relação entre o tempo interior dos protagonistas e o tempo cronológico do país em que eles vivem ou viveram. Prevalece o conhecimento do mundo íntimo das personagens, ora em discurso de terceira pessoa, ora de primeira pessoa, mas não se perde a noção da realidade exterior (a emigração, a política obscura e corrupta ou a influência do clero, por exemplo), que, aliás, determina a desintegração das personalidades que, no caso da personagem Meças, vemos em desequilíbrio psicológico desde o início do romance. A um tempo histórico e a um quotidiano em que se inscrevem figuras que parecem ter séculos, indiferentes ao tempo do calendário, a um tempo que passa sem que mudem as questões que em Portugal parecem ser insolúveis (as diferenças entre ricos e pobres, e o atraso sociocultural e econômico, essencialmente), correspondem os tempos interiores vividos pelos narradores-personagens, que nos surgem como uma consciência e um corpo angustiados até ao paroxismo. Todo o romance é um prolongamento do primeiro parágrafo:

Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa os olhos e até si próprio tem de fugir. (p. 9)

Rentes de Carvalho – Esta resenha faz parte dos trabalhos da Cátedra Internacional José Saramago (Universidade de Vigo), projeto POEPOLIT (FFI2016-77584-P, Ministério de Economia e Competitividade da Espanha) e do Programa Estratégico UID/ELT/00500/2013 da FCT (Portugal).

Acessar publicação original

[IF]

 

Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa – MAGALHÃES et. al. (A-RL)

MAGALHÃES, I.; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. de M.. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Ed. da UnB, 2017. 259p. Resenha de: OTTONI, Maria Aparecida. Análise de discurso crítica e Etnografia. Alfa – Revista de Linguística, São José Rio Preto, v.12 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.

Há quase vinte anos, Izabel Magalhães vem defendendo uma proposta de pesquisa etnográfico-discursiva, segundo a qual a Análise de Discurso Crítica e a etnografia, em uma relação de complementaridade, são articuladas para a análise das práticas sociais. Contudo, ainda não havia sido publicada no Brasil uma obra centrada nesse tipo de pesquisa e o livro Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa vem oportunamente preencher essa lacuna, o que o torna singular e de suma relevância.

Nesse sentido, a obra tem um enfoque que a distingue de todas as outras relacionadas à Análise de Discurso Crítica (ADC) publicadas no Brasil: a ADC como um método de pesquisa qualitativa e sua relação transdisciplinar com a etnografia. Ela traz uma contribuição ímpar, especialmente a estudantes e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento interessados na análise das práticas sociais de que os textos são parte, o que demanda uma pesquisa de campo.

Considerando que toda prática social é constituída de elementos: atividade produtiva; meios de produção; relações sociais; identidades sociais; valores culturais; consciência; e semiose (FAIRCLOUGH, 2012), para compreender o seu funcionamento e as relações do discurso/semiose com os outros elementos da prática social, é necessária uma abordagem que vá além da análise textual do discurso e que não se paute apenas no aspecto discursivo das práticas. É preciso, como defendem Magalhães, Martins e Resende, realizar pesquisa etnográfica para o estudo do discurso como um dos elementos das práticas, ou seja, adotar uma abordagem etnográfico-discursiva. Isso implica não perder de vista o papel do discurso na compreensão dos momentos da prática nem a relação dialética entre eles.

Tendo em vista esse enfoque, o livro é constituído de nove capítulos, organizados em três partes, cada uma composta de três capítulos: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica social (parte 1); Análise de Discurso Crítica e etnografia (parte 2); Um método de análise textual (parte 3), além da introdução e da conclusão.

Na introdução, os autores expõem o objetivo principal da obra e descrevem como ela está organizada. No primeiro capítulo, Pesquisa qualitativa, crítica social e Análise de Discurso Crítica, fazem uma apresentação geral da ADC, situando-a na tradição da pesquisa qualitativa e a relacionando à crítica social. Eles destacam a existência de diferentes abordagens em ADC, as concepções de discurso e de texto e a importância do conceito de texto para o estudo dos processos sociais contemporâneos, uma vez que os textos são artefatos para esse estudo e “causam efeitos – isto é, eles causam mudanças” (FAIRCLOUGH, 2003, p.8).

No segundo capítulo, ADC – teoria e método na luta social, Magalhães, Martins e Resende enfatizam o papel da ADC na luta social. Primeiramente, retomam algumas considerações gerais sobre essa teoria e método, dando especial atenção para os conceitos de discurso, interdiscursividade, intertextualidade, poder e ideologia e para o lugar do discurso na modernidade posterior e na mudança social. Na sequência, elencam alguns procedimentos metodológicos que consideram básicos na seleção do foco de investigação em ADC e no processo de análise, reforçando, com isso, a relação da ADC com a pesquisa etnográfica. A apresentação desses passos a serem seguidos no desenvolvimento de uma pesquisa etnográfico-discursiva constitui uma contribuição importante do capítulo, pela orientação clara e útil que fornece a estudantes e pesquisadores, iniciantes ou não nos estudos do discurso.

Em Textos e seus efeitos sociais como foco para a crítica social, último capítulo da primeira parte, os autores concentram o olhar em um aspecto já mencionado em capítulo anterior – os efeitos sociais dos textos. Eles descortinam como esses efeitos podem ser usados em pesquisas voltadas para a crítica social, a partir da análise de reportagens publicadas em jornal sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes em Brasília e de entrevista com uma das educadoras do projeto GirAÇÃO, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do Distrito Federal, o qual foi afetado de forma direta pelas reportagens. No capítulo, o exame da intertextualidade e da polifonia em uma das reportagens constitui uma referência a outros pesquisadores sobre como organizar e tecer uma análise com base nessas duas categorias. A abordagem da entrevista revela os efeitos das reportagens na atuação do projeto mencionado e como a análise textual sozinha não consegue elucidar o “envolvimento de textos na construção de significado e o efeito causal de textos” (p.91). Sem dúvida, é uma mostra da produtividade de uma pesquisa etnográfico-discursiva.

A segunda parte do livro, denominada Análise de Discurso Crítica e etnografia, é constituída dos capítulos quatro, cinco e seis. Dois deles – o quarto e o sexto – são muito próximos tanto em relação ao título quanto ao objetivo. No capítulo quatro, Análise de Discurso Crítica e Etnografia – uma relação complementar, e, no capítulo 6, Etnografia e Análise de Discurso Crítica, os autores advogam a complementaridade entre etnografia e ADC. Julgando por esse propósito comum dos dois capítulos e pela semelhança dos títulos, a reunião deles em um só poderia representar uma escolha produtiva e resultar em uma abordagem mais ampla e aprofundada da relação complementar a favor da qual argumentam os autores.

No capítulo 4, Magalhães, Martins e Resende tratam sobre os tipos de notas de campo, apresentam exemplos de notas conceituais, recomendam a complementaridade entre ADC e etnografia como uma forma de validação da pesquisa e dedicam uma seção à exposição sobre a metodologia etnográfico-discursiva. Tendo em conta o fato de que é uma obra escrita por três pesquisadores, é necessário eliminar as marcas de autoria individual de capítulos, como a primeira pessoa do singular, na página 120 deste capítulo, em que se tem “Existe uma série de fatos que, a meu ver, são verdadeiros”.

No capítulo 6, ressaltam a importância da coerência entre ontologia e epistemologia e evidenciam “[…] que há inconsistência entre a perspectiva ontológica da ADC e sua tradição de análise documental.” (p.155), uma vez que essa tradição não permite a construção de conhecimentos sobre todos os componentes ontológicos do mundo social inter-relacionados, conforme a concepção adotada pela ADC faircloughiana. Nessa direção, o paradigma etnográfico articulado ao método para análise textual da ADC é indicado como um caminho adequado. Entretanto, os autores alertam para o fato de que apenas as abordagens etnográficas “que preveem um engajamento com o contexto de pesquisa e com os participantes” (p.156) são coerentes com a ADC. Tal alerta é fundamental, especialmente para os principiantes nesse tipo de pesquisa. Ainda no capítulo seis, Magalhães, Martins e Resende explicam como se pode construir um planejamento de pesquisa articulando ADC e etnografia, o que inclui uma relação entre reflexões e decisões de caráter ontológico, epistemológico e metodológico. Explanam que essas decisões “[…] dão-se num eixo de sucessividade, isto é, as decisões ontológicas são prévias às epistemológicas […], que são prévias às metodológicas.” (p.161) e que pode haver inúmeras possibilidades de paradigmas epistemológicos para uma versão ontológica, o que significa que não há um só caminho a ser seguido. Posteriormente, os autores discutem sobre a geração e coleta de dados etnográficos e sobre os métodos usados para esse fim. Também no capítulo seis são oferecidas várias indicações de leitura sobre todos os aspectos nele contemplados, o que pode auxiliar os leitores no aprofundamento dos conhecimentos sobre a pesquisa etnográfico-discursiva. É um capítulo com valor inestimável na obra, pelo seu conteúdo, organização e pertinência.

O capítulo cinco, Mudança social – prática e discurso, que igualmente integra a parte dois, parece destoar do foco desta parte, o que é perceptível por meio da comparação dos títulos das seções que o compõem com os das que constituem os outros dois capítulos da segunda parte – o quatro e o seis –, uma vez que não há referência alguma à etnografia. Observa-se que o capítulo cinco tem proximidade com o segundo do livro, pois nele os autores voltam a tratar da modernidade tardia ou posterior (os autores usam um termo no capítulo dois e outro no capítulo cinco) e da mudança social e, assim como no segundo capítulo, tecem considerações sobre os conceitos de prática social e de prática discursiva, estabelecendo uma distinção entre eles. A discussão sobre os dois conceitos é de grande interesse a todos os analistas do discurso e é tecida de modo a tornar mais claras as relações entre eles e a produtividade do trabalho com ambos em ADC. Entretanto, considerando-se o foco da primeira e da segunda parte do livro e o dos capítulos dois e cinco, o enquadramento destes não se mostrou o mais adequado. Uma inversão na ordem dos dois poderia contribuir para maior harmonia e fluidez do texto.

Quanto à terceira parte do livro, seu título – Um método de análise textual – anuncia que seu foco não é o diálogo da ADC com a etnografia, mas, sim, a ADC como um método de análise textual. Seguindo esse foco, nos capítulos que constituem tal parte são apresentadas análises de reportagens, de um relatório sucinto de uma reunião e de uma notícia. Ela é iniciada pelo capítulo 7, ADC e minorias – representação e peso político na esfera pública. Ao discorrerem sobre a ADC e minorias, os autores jogam luz a um caminho de diálogo e de possibilidades e apontam cinco frentes de lutas: “[…] o conhecimento e acompanhamento da situação social; a descoberta e preservação da identidade social; a luta por direitos e por mais democracia; a luta por espaço na esfera pública; e o empenho pela representação positiva na mídia.” (p.178). Além de explicarem cada uma, eles demonstram como a ADC pode ser útil na efetivação dessas frentes e analisam quatro reportagens publicadas em jornal, que tratam da situação das comunidades quilombolas na área rural de Alcântara no Maranhão. A análise contempla as dimensões do texto, da prática discursiva e da prática social.

No capítulo oito, Análise de Discurso Crítica: conceitos-chave para uma crítica explanatória com base no discurso, os autores relevam a interdisciplinaridade como uma das características comuns a todas as abordagens vinculadas à ADC. Como uma teoria preocupada com o funcionamento social da linguagem, a ADC não pode desconsiderar teorias do funcionamento da sociedade, o que significa um estabelecimento necessário de articulação entre a ADC e estas teorias. Magalhães, Martins e Resende também sublinham, como um dos aspectos centrais da ADC, a abordagem da relação de constituição mútua entre linguagem e sociedade e focalizam os conceitos de discurso, gênero e texto. Eles acreditam que a distinção entre esses conceitos tem sido uma das principais dificuldades dos estudantes na compreensão do modelo teórico-metodológico da ADC e que a confusão entre eles tem implicações teóricas que comprometem o trabalho empírico. Para ilustrar as distinções entre os termos, os autores apresentam um texto, Relatório sucinto da reunião, e o analisam de modo a esclarecer a concepção de discurso, de gênero e de texto e a auxiliar outros pesquisadores no desenvolvimento de seus estudos e análises.

O capítulo 9, intitulado Identidades e discursos de gênero, encerra a terceira parte do livro. Nele, os autores se propõem “examinar algumas contribuições dos estudos críticos do discurso” (p.213). Cabe destacar que é a primeira vez que Magalhães, Martins e Resende fazem referência a Estudos Críticos do Discurso (ECD) e que o fazem sem qualquer explicação acerca da relação desses estudos com a ADC e de modo que se constrói uma representação de que a ADC e os ECD são sinônimos, pois dão continuidade ao texto tratando da ADC sem voltar a mencionar os ECD, o que é um problema neste capítulo. Partindo da concepção de que as práticas incluem discursos, letramentos e identidades femininas e de que a notícia de jornal é um produto de práticas socioculturais, os autores analisam uma notícia de jornal sobre um crime contra uma mulher com o intuito de investigar a construção textual de identidades de gênero. Para isso, observam as escolhas lexicais, as relações intertextuais, os discursos articulados na notícia, as identidades de gênero construídas e os letramentos. Os autores destacam os resultados da análise, mas reafirmam que ela deve ser complementada pela pesquisa de natureza etnográfica, o que é coerente com o enfoque da obra. Cabe neste capítulo uma correção na figura 9.1 da p.230, em que o termo “interdiscursividade” está indevidamente repetido. A segunda ocorrência do termo deve ser substituída por intertextualidade, em conformidade com a análise desenvolvida no capítulo.

É inegável a contribuição desta terceira parte da obra. Todavia, considerando que há no Brasil várias publicações com exemplos de análises pautadas na ADC como método de análise textual, seria mais profícuo e apropriado ao enfoque da obra se a terceira parte fosse constituída de capítulos que trouxessem exemplos de pesquisas, com detalhamento de resultados, nas quais a relação de complementaridade entre ADC e etnografia tivesse sido estabelecida.

No tocante à conclusão, os autores fazem uma retomada de algumas bases nas quais se sustenta a ADC, mostrando em qual capítulo da obra elas foram contempladas, e chamam a atenção dos leitores para o fato de que a ADC, como teoria e método, está em construção e sujeita a reformulações, o que implica que tem limitações. Além disso, salientam que a relação complementar entre ADC e etnografia é muito benéfica para os dois campos, pois a ADC ganha com ela no que toca à validade e à consistência analítica e a etnografia ganha com a articulação com métodos para análise de textos e de interações desenvolvidos por analistas de discursos. Desse modo, a leitura deste livro é indispensável a estudantes, profissionais e pesquisadores interessados na análise das práticas sociais e não apenas na análise de sua representação no discurso, o que requer a realização de uma pesquisa etnográfico-discursiva. Ele constitui um convite e um incentivo ao desenvolvimento desse tipo de pesquisa.

Referências

FAIRCLOUGH, N. Análise Crítica do Discurso como Método em Pesquisa Social Científica. Tradução de Iran Ferreira de Melo. Linha d’Água, São Paulo, v.25, n.2, p.307-329, 2012. [ Links ]

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres and New York: Routledge, 2003. 270 p. [ Links ]

Maria Aparecida Resende OTTONI – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Instituto de Letras e Linguística, Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. cidottoni@gmail.com.

Brasília (I) / Urbana / 2018

A construção de Brasília não foi apenas a tarefa de erguer os monumentos e superquadras que deram reconhecimento internacional ao Plano Piloto como experiência arquitetônica e urbanística. A construção da capital envolveu a urbanização de um território bem mais amplo, que já transborda os limites do Distrito Federal. Além disso, Brasília é também construção simbólica realizada por meio de imagens, narrativas e discursos produzidos em meio a ampla controvérsia. Em seus primórdios, a nova capital foi defendida como aspiração secular e corolário da afirmação de um Brasil moderno. Em contraste, mereceu, na mesma época, a condenação de críticos que a viram como expressão autoritária e epítome da falência do modernismo. Se, num certo momento, pretendeu-se afirmar uma história de Brasília, trata-se agora de problematizar os diversos processos envolvidos em sua formação urbana, que está longe de estar esclarecida e recusa-se a simplificações. Muito além da mera polarização entre defensores e detratores, na metrópole contemporânea, novas formas de vivência dos espaços e múltiplas representações desafiam as críticas tradicionais e atribuem à capital significados nunca previstos nas pranchetas de seus arquitetos ou nos discursos de seus fundadores. Estudos recentes reconhecem essa complexidade, revisitam questões aparentemente pacificadas e trazem à tona temas e problemas novos ou ainda pouco explorados.

A possibilidade de contribuir para um panorama mais arejado de discussões sobre Brasília, tal como propõe esse dossiê, é tributária de um esforço de longa data por parte de pesquisadores brasileiros e estrangeiros dedicados ao estudo histórico da capital. Sem pretender aqui uma apreciação do conjunto da historiografia, pode-se, muito brevemente, pontuar episódios marcantes nesses estudos e debates. Embora o Plano Piloto e sua icônica arquitetura tenham concentrado a maior parte das atenções, já nos anos 70 o processo de construção da cidade e a realidade da urbanização informal situada além do Plano Piloto passaram a ser objeto de investigação. Nesse aspecto, contribuições pioneiras vieram do campo da Antropologia, em trabalhos acadêmicos desenvolvidos por David Epstein (1973) e Gustavo Lins Ribeiro (1980, com publicação apenas em 2008). A cidade mereceu contínuas avaliações críticas, como se vê no conjunto de textos reunidos por Xavier e Katinsky (2012). No entanto, a discussão sobre Brasília foi tolhida pelo impacto duradouro das obras de caráter apologético e pelas implicações de abordar uma cidade que se tornara palco e símbolo da ditadura militar. Na avaliação de Vidal (2009, p.20), Brasília foi, durante quase duas décadas, assunto tabu para as ciências sociais brasileiras.

No contexto de lenta distensão política do país nos anos 80, a expansão dos estudos sobre Brasília foi parte de um novo momento na produção da pesquisa história sobre a cidade e o urbanismo no Brasil. Num panorama geral, a autonomização em relação à prática projetual e a consolidação de espaços acadêmicos específicos para a pesquisa começaram a dar forma a um campo disciplinar próprio da história das cidades, que permaneceu, porém, aberta às trocas interdisciplinares (PEREIRA, 2014; MELLO, CASTRO, 2016). Em Brasília, pode-se destacar o aparecimento de um conjunto de trabalhos de arquitetos, antropólogos, geógrafos e economistas, sob a coordenação do geógrafo Aldo Paviani, com ênfase na análise das condições estruturais do processo de urbanização no Distrito Federal. Entre os textos clássicos dessa produção, estão A metrópole terciária, de Aldo Paviani (1985) e Brasília, mitos e realidades, de Paulo Bicca (1985). Nessa época, em muitas faculdades brasileiras, a preocupação com políticas públicas e questões sociais sobrepôs-se ao estudo da forma das cidades (FERNANDES; GOMES, 2004). Os estudos realizados sobre a capital voltaram-se às condições políticas e sociais da sua construção. Mas, a configuração e a organização espacial também estiveram ao centro das preocupações, seja na análise do território metropolitano do DF, no âmbito da disciplina de geografia, seja na análise da dimensão morfológica dos espaços urbanos, com aplicações da teoria da sintaxe espacial pelo grupo liderado pelo arquiteto Frederico de Holanda.

Num panorama abrangente, após os anos 80, observa-se um esforço de pesquisadores e críticos brasileiros no sentido de superar “a ênfase em gênios isolados e heróis que marcava, então de forma quase exclusiva, a historiografia da arquitetura brasileira [do século 20]” ( ZEIN, 2018). Manifestou-se uma consciência mais clara da historicidade do moderno (GUERRA, 2011). Como parte do movimento de reavaliação da produção modernista, houve estímulo para se repensar a posição de Brasília – por vezes considerada modelo, clímax ou ocaso – numa trajetória mais complexa e multiestratificada. A crítica a Brasília e sua peculiar concepção expandiu-se.

Ainda no início dos anos 80, James Holston esteve em Brasília para o trabalho de campo que serviu de base para sua tese de doutorado, publicada em 1989 com o título The modernist city e tendo a 1ª edição brasileira em 1993. O livro permanece como referência clássica da crítica a Brasília, em sua análise de premissas e paradoxos do projeto e no exame dos modos de “abrasileiramento” da cidade construída, além de ter apontado sendas de interpretação depois aprofundadas por outros autores. No entanto, o livro de Holston (1993) também suscitou questionamentos de autores como GUERRA (2002) e GORELIK (2005) acerca dos seus métodos de análise da arquitetura moderna e também de Holanda (2010) sobre suas observações acerca de uma suposta ausência de vida urbana na cidade.

Ao lado de pesquisas feitas em centros nacionais e estrangeiros, a FAU-UnB também passou a ter contribuição mais efetiva numa renovação na historiografia e na crítica da cidade. Ainda no início dos anos 80, Sylvia Ficher iniciou prolífica carreira na UnB, desenvolvendo e orientando pesquisas pautadas pelo recurso à documentação e pela sistematização de dados, nas quais foi possível ampliar o leque dos “paradigmas” da concepção do Plano Piloto, analisar os desenvolvimentos desse projeto, apontar preexistências no território do DF e revelar a atuação de outros profissionais além dos protagonistas usuais (entre outros, FICHER, 2005, 2016; LEITÃO, FICHER, 2010; BATISTA et al , 2006). Na primeira década do século 21, como parte do movimento de expansão das universidades federais, de consolidação dos Programas de Pós-graduação e de fomento à articulação nacional e internacional de pesquisadores, configurou-se um ambiente favorável à ampliação dos trabalhos sobre Brasília. O aporte, na FAU-UnB, de novos professores voltados diretamente para a pesquisa intensificou a produção de estudos sobre a cidade tendo por base métodos e experiências obtidos em suas universidades de origem ou em estágios de pesquisa no exterior. Em paralelo, estruturaram-se em outros departamentos da Universidade núcleos e grupos de estudo dedicados à memória e história de Brasília, com evidente interesse pelas potencialidades do método de história oral.

Desde a época de sua construção, a cidade sediou encontros e seminários dedicados ao seu estudo e debate, cujos registros dão a ver mudanças nas formas de encará-la e expectativas diversas quanto ao seu crescimento. Enquanto em fins da década de 50 esteve em pauta a capital como possível expressão de uma síntese das artes, no início dos anos 70 sobressaiu a necessidade de planejar a expansão da mancha urbana e, na década de 80, avultaram as preocupações com as relações inter-regionais e a escala nacional dos seus problemas (PERPÉTUO, 2016). Nos últimos anos, discussões abertas ao público promovidas por instituições e órgãos de gestão da capital, tais como o IPHAN e a SEGETH, contribuíram para aproximar especialistas, alunos e pesquisadores e suscitaram estudos em perspectiva histórica sobre problemas diversos de preservação e planejamento. No quadro de pesquisadores de pós-graduação na FAU-UnB, há peculiar presença de servidores públicos cujo ponto de partida é a reflexão sobre seu próprio trabalho em órgãos da capital.

Ainda nos anos 80, a reorganização de acervos documentais e o apoio de instituições locais em muito facilitaram a realização de pesquisas sobre Brasília. Em meio à campanha por autonomia política do DF, depois estabelecida na Constituição de 1988, o interesse em consolidar uma memória da construção da capital levou à criação, em 1985, do Arquivo Público do Distrito Federal, principal repositório da documentação da Novacap. E, desde os anos 90, houve importantes iniciativas editoriais de divulgação de estudos até então inéditos ou de acesso limitado, além de coleções de caráter multidisciplinar lançadas pela EdUnB nas efemérides do cinquentenário da cidade.

Na produção mais recente sobre Brasília, a revisão da historiografia tradicional e dos mitos veiculados em discursos de autoridades e seus apoiadores nas décadas de 50 e 60 é uma temática fértil. Nessa direção, pode-se mencionar o livro De Nova Lisboa a Brasília, derivado da tese de doutorado de Laurent Vidal (2009) sobre os projetos políticos e planos urbanísticos aventados para a capital desde o século 19. Além de rever momentos fundacionais da capital, pesquisas provenientes de campos diversos da historiografia vem buscado desvendar as especificidades da cidade em contínua transformação, com suas variadas expressões culturais. Sem deixar de lado a documentação escrita tradicional ou os projetos e planos urbanísticos, emergiu para análise uma gama mais diversificada de fontes, provenientes não apenas de autoridades e experts, mas também de moradores do Plano Piloto ou de localidades distantes dele, migrantes de épocas diversas e observadores externos. Fotografias, revistas, filmes, músicas e poesias passaram a ser analisados como reinterpretações criativas sobre a cidade, entrecruzando discursos de autoridades e experiências cotidianas ali vivenciadas de modo subjetivo. No senso comum, as discussões sobre Brasília por vezes recaem no que Lucio Costa chamou de “jogo de gosto-não-gosto” ( COSTA, 1995, p. 323) ou na evocação nostálgica da epopeia da construção. Mas, mesmo tais posições são escrutinadas como parte das narrativas, imagens e representações produzidas sobre a cidade.

Este dossiê abre-se para algumas das muitas possibilidades de problematizar Brasília. E são muitas mesmo: por conta do alto número de submissões de qualidade recebidas e em reconhecimento da vitalidade dos estudos ora em curso, o dossiê foi dividido em dois números consecutivos. A organização em dois volumes foi possível graças à receptividade ao tema por parte da revista Urbana, cujo consistente trabalho editorial tornou-se referência no campo dos estudos históricos acerca do universo urbano moderno e contemporâneo.

A construção urbano-territorial e a construção simbólica de Brasília são temas privilegiados do dossiê. Neste primeiro volume, o intuito de pensar a extensa aglomeração urbana num amplo arco temporal e de revelar suas lógicas peculiares fez-se presente sobretudo nos dois primeiros artigos. Sylvia Ficher retoma os preceitos da concepção de Brasília – os “genes do seu DNA” – e as decisões tomadas quando da sua implantação, apontando desdobramentos no processo de expansão metropolitana. Seu texto analisa os fatores que atuaram na constituição de um tecido urbano esgarçado e um território fragmentado, numa crítica ao modo como a metrópole vem sendo ocupada e gerida. Numa abordagem distinta, mas também atentos ao ideário modernizador na base do projeto da nova capital e a suas implicações na configuração da metrópole, Carlos Henrique Magalhães de Lima e Carolina Pescatori baseiam seu artigo no conceito de “modernização seletiva” do sociólogo Jessé Souza. Os autores tomam como mote a trajetória de Zé Bigode, personagem do filme A cidade é uma só? para refletir sobre os princípios do arranjo territorial de Brasília. Na sequência, Thiago Perpétuo trata de outro tema central para a gestão da cidade contemporânea: seu reconhecimento como patrimônio cultural. O autor investiga documentos e discussões produzidos nos momentos iniciais do processo de preservação, apontando embates e tensões entre os diversos agentes envolvidos. Sua análise vem desmistificar entendimentos usuais sobre um período que, mais tarde, viria ser evocado de modo a legitimar um modelo de preservação.

Os dois artigos finais do dossiê detém-se em interpretações e representações produzidas acerca da cidade por agentes bem distintos e em períodos também muito diferentes, mas não de todo apartadas. Fábio Franzini dedica-se à análise de um conjunto de discursos produzidos durante a segunda metade da década de 1950, no contexto da idealização, concepção, construção e inauguração de Brasília. Sem deixar de observar as nuances das várias falas, o autor faz aproximações entre textos seminais da crítica à Brasília de autores como de Gilberto Freyre, Mário Pedrosa e Milton Santos. Sua análise ressalta o modo como o passado é revisto e, sobretudo, a identificação entre a forma de Brasília e a projeção do futuro. Já no artigo de Renata Almendra, os grafites realizados em galerias subterrâneas, muros e viadutos de Brasília são reveladores de experiências e sensibilidades de uma geração que habita a metrópole e intervém em seus peculiares espaços deixando marcas territoriais. Como mostra a autora, os grafites assimilam, de modo próprio, temas do repertório heroico e monumental presentes nos discursos sobre Brasília e também evidenciam preocupações com problemas sociais e políticos recentes.

Dos planos urbanísticos e discursos iniciais aos filmes e grafites sobre Brasília, a cidade foi concebida e assimilada de muitas maneiras. Esse conjunto de textos – a que se somarão os artigos do número seguinte deste dossiê – aponta, enfim, não para uma relação unívoca entre forma material e forma simbólica, como se pretendeu outrora, mas para algumas das várias possíveis abordagens na interpretação e contínua reinvenção da cidade planejada.

Referências

BATISTA, G. S. N.; FICHER, Sylvia; LEITÃO, F.; FRANÇA, D. A. de. Brasília: A Capital in the Hinterland. In: David L. Gordon. (Org.). Planning Twentieth Century Capital Cities. 1ed. Nova York: Routledge, 2006, v. 1, p. 164-181.

BICCA, Paulo. Brasília: mitos e realidades. In: PAVIANI, Aldo. (org.). Brasília, ideologia e realidade: espaço urbano em questão. São Paulo: Projeto, 1985, p. 101-13.

COSTA, Lucio. Considerações fundamentais (1988). In: COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.

EPSTEIN, David. Brasilia, plan and reality: a study of planned and spontaneous developments. Berkeley: University of California, 1973.

FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. História da Cidade e do Urbanismo no Brasil: reflexões sobre a produção recente. Cienc. Cult., São Paulo , v. 56, n. 2, p. 23-25, abr. 2004. Disponível em . Acesso 4 fev. 2018.

FICHER, Sylvia. Algumas Brasílias. In: ROLNIK, Raquel; FERNANDES, Ana (Org.). Cidades. 1ed. Rio de Janeiro: Funarte, 2016, v. , p. 411-419.

FICHER, Sylvia; PALAZZO, P. P. Paradigmas urbanísticos de Brasília. Cadernos PPG-FAU / UFBA, Salvador, v. Ed esp, p. 49-71, 2005.

GORELIK, Adrián. Brasília, o museu da vanguarda, 1950 e 1960. In:______.Das vanguardas à Brasilia:cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2005, p. 151-190.

GUERRA NETO, Abilio. Lucio Costa – modernidade e tradição: montagem discursiva da arquitetura moderna brasileira. 2002. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP. Disponível em: . Acesso em: 31 jul. 2018.

GUERRA, Abílio. A construção de um campo historiográfico. Mdc. Revista de arquitetura e urbanismo, maio, 2011. Disponível em < https: / / mdc.arq.br / 2011 / 05 / 03 / a-construcao-de-um-campo-historiografico / #_ftn1_6956> Acesso 2 dez. 2018.

HOLANDA, Frederico. Brasília: cidade moderna, cidade terna, Brasília: FAU-UnB, 2010.

HOLSTON, James. A Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

LEITÃO, F.; FICHER, Sylvia . A infância do Plano Piloto, 1957-1964. In: PAVIANI et al. (Org.). Brasília 50 anos: da capital a metrópole. Brasília: Editora da UnB, 2010, p. 97-135.

MELLO, Joana; CASTRO, Ana Cláudia Veiga. História e historiografia da arquitetura e da cidade. Apresentação da Sessão Temática: Teoria e método em História da Arquitetura e da Cidade. Anais do IV Anparq, jul. 2016. Disponível em Acesso: 4 dez. 2018.

PAVIANI, A., A metrópole terciária. In: ______ (Org.). Brasília, ideologia e realidade: o espaço urbano em questão. São Paulo, Projeto, 1985. p. 57-79.

PEREIRA, Margareth da Silva. O rumor das narrativas: a história da arquitetura e do urbanismo do século XX no Brasil como problema historiográfico – notas para uma avaliação. ReDObRa, v. 13, p. 201-247, 2014.

PERPÉTUO, Thiago Pereira. Uma cidade construída em seu processo de patrimonialização: modos de narrar, ler e preservar Brasília. Dissertação (Mestrado) – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro, 2016.

RIBEIRO, Gustavo Lins. O capital da esperança: a experiência dos trabalhadores na construção de Brasília. Brasília: Editora UnB, 2008.

VIDAL, Laurent. De nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX). Brasília: EdUnB, 2009.

XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio (Org.). Brasília: antologia crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

ZEIN, Ruth V. Tradição moderna e cultura contemporânea. In: ______. Leituras críticas. São Paulo: Romano Guerra, 2018.


DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.2, maio / ago, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial – VENÂNCIO et al (RHHE)

VENÂNCIO, Giselle; SECRETA, Maria; RIBEIRO, Gladys. Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Revista de História e Historiografia da Educação. Curitiba, v. 2, n. 5, p.234-239, maio/agosto de 2018.

A obra Cartografias da cidade (in)visível: setores populares, cultura escrita, educação e leitura no Rio de Janeiro imperial é organizada por Giselle Venâncio, Maria Secreta e Gladys Ribeiro. Está dividida em duas partes e é composta por um total de onze textos escritos por pesquisadores de instituições distintas.

Cada texto traz abordagens inovadoras, visto que resgatam aspectos da cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes relegados pelos pesquisadores, ao mesmo tempo em que desconstroem a ideia de que as camadas populares estavam distanciadas ou mesmo excluídas do mundo letrado. Para tanto, “cartografar um Rio de Janeiro ainda invisível” (SECRETO; VENANCIO, 2017, p. 9) constitui o objetivo central da obra.

A partir de fontes como os periódicos, os autores mostram que muitos populares na cidade do Rio de Janeiro Imperial tinham acesso à cultura escrita. Ampliando os sujeitos de suas pesquisas, os autores demonstram que escravos, forros, migrantes pobres, estiveram de alguma forma expostos a cultura escrita. É possível conjecturar que casos assim podem ter ocorrido em outras cidades também.

O livro está dividido em duas partes, a primeira delas, “Usos populares da leitura e escrita”, reúne quatro textos em torno dessa temática. A segunda parte, “Práticas educativas de populares no Rio de Janeiro oitocentista”, agrega um total de sete artigos. Para uma melhor explicitação do livro como um todo, realizo uma breve análise de cada um dos textos.

No primeiro texto, “Em primeira pessoa”, de Giselle Venancio, a autora vai analisar a carta que a liberta, Maria Rosa, escreveu à Princesa Isabel na ocasião de seu aniversário quando era comum alforriar alguns escravos. A carta assinada por Maria Rosa solicitava à Imperatriz que interviesse junto à Câmara Municipal para que sua filha, Ludovina, que era mãe de três filhos, fosse alforriada. Os dados que a autora levantou demonstram que escravos e libertos eram alfabetizados e não muito raro investiam também na formação de seus filhos.

No segundo capítulo, “Posta em cena: educação moral e estética e heterogeneidade social e teatro oitocentista”, cujas autoras são María Secreto e Viviana Gelado, a abordagem recai sobre o letramento popular e/ou negro na cidade do Rio de Janeiro, a partir de um ângulo não muito casual: o teatro, visto como mecanismo de educação moral e estética do público carioca.

Segundo as autoras, não sendo o escravo doméstico e especialmente o urbano, almejado pela cidade das letras, via no teatro a chance de depreender uma moral pragmática, assim como também lições de retórica e boas maneiras que “poderiam coadunar para desobstruir o improvável caminho da ascensão social dentro dos limites jurídicos impostos” (SE-CRETO; GELADO, 2017, p. 44-45).

Em “Saber ler, contar e poupar: reflexões entre economia popular e cultura letrada no Rio de Janeiro, 1831/1864”, de Luiz Saraiva e Rita de Cássia Almico, os autores partem de um consenso da historiografia brasileira, o de que as camadas mais baixas da sociedade teriam tido acesso limitado ao mercado financeiro, além do que a baixa circulação financeira teria restringido os trabalhadores pobres e escravos dos conhecimentos mais “sofisticados no âmbito da economia e de uma monetarização crescente” (SECRETO; GELADO, 2017, p. 49), a exemplo do que aconteceu no Rio de Janeiro no decorrer do século XX. Partindo desse ponto, os autores apresentam evidências de um maior protagonismo das camadas populares em atividades ligadas aos setores financeiros, destacam ainda o impacto dessas atuações na economia da cidade.

A partir de anúncios de jornais, os autores levantaram a hipótese de que havia um mercado de bens financeiros e que poderia ser usado por setores populares. Ressaltam também a importância da economia popular para a cidade.

Carlos Eduardo Villa, em “Escrever como curso de transação dos pequenos agentes do Rio de Janeiro na metade do século XX”, parte de dados cartoriais e evidencia que a cultura escrita aumentou consideravelmente ao longo do século XIX, o que leva crer que houve um aumento também dos grupos alfabetizados. Outra defesa do autor é que o aumento de trabalhadores, que ofertavam seus serviços nos jornais que circulavam na cidade, permite afirmar também que houve um incremento da cultura escrita entre os populares.

O texto “Ler, escrever e contar: cartografias da escolarização e práticas educativas no Rio de Janeiro oitocentista”, de Alessandra Shueler e Irma Rizzini, abre a segunda parte do livro. Nele, as autoras trazem questões ainda pouco debatidas e/ou conhecidas pelos historiadores, pois afirmam que a população pobre e seus filhos, assim como os negros, compunham o grupo escolar da cidade, isto é, frequentavam escolas e que, portanto, uma parcela de populares era alfabetizada.

As pesquisas das autoras contrariam uma ideia durante muito tempo hegemônica na historiografia, a de que não havia escolas noturnas e ensino primário voltado ao atendimento do público trabalhador, além de desmitificar a clássica afirmação de que grande parte da população brasileira no Brasil oitocentista era analfabeta, como se vê, essa não é a realidade da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho dessas autoras e alguns outros desconstroem totalmente essas ideias.

Em “Educação no Rio de Janeiro joanino nas páginas da Gazeta do Rio de Janeiro: espaços abertos para a mobilidade social”, Camila Borges da Silva numa perspectiva que se aproxima do artigo anterior, analisa o formato dos espaços educacionais durante a presença da Corte no Brasil. Ela explora também como as aulas noturnas abriam condições de ascensão social às camadas intermediárias da sociedade, formadas em sua maioria por pardos, mulatos e portugueses pobres (SILVA, 2017).

Jonis Freire e Karoline Karula, em “Camadas populares e higienismo no Rio de Janeiro em fins dos anos de 1870”, analisam um grupo social composto por alunos que frequentavam a Escola Noturna da Lagoa, na ci-dade do Rio de Janeiro, no final da década de 1870. Nessa escola foram ofertadas conferências sobre higiene popular, o curioso é que grande parte do público que frequentava essas conferências era composto por alu-nos dessa instituição. As autoras, levando em consideração o fato de que essas conferências ocorriam nos dias em que não havia aula, afirmam que é muito provável que esses alunos iam porque o assunto lhes interessava.

Em “Cidade solidária: beneficência educacional no cotidiano popu-lar da Corte Imperial”, de Marconni Marotta, discute-se a instrução popu-lar financiada por associações, com destaque para a Sociedade Jovial e Ins-trutiva. Aponta também algumas políticas públicas voltadas para a educa-ção primária das camadas populares.

No texto “Aulas do Comércio: mundo da educação versus mundo do trabalho livre e pobre na cidade do Rio de Janeiro”, Gladys Sabina Ribeiro e Paulo Cruz Terra analisam as aulas do Comércio e o mundo do trabalho na cidade do Rio de Janeiro. Eles enfatizam também as transformações sofridas pela instituição a partir da data de sua fundação até a Reforma de 1854.

Tomando uma instituição de ensino como enfoque de seu trabalho, Alexandro Paixão, em “A educação popular no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Liceu Literário Português (1860-1880)”, discute os primeiros anos do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.

A presente instituição foi fundada no ano de 1868 sob os auspícios de alguns membros do Gabinete Português de Leitura e tinha por objetivo atender os ideais de “’comunidade’ relacionados à questão da cultura por-tuguesa, filantropia e instrução popular” (PAIXÃO, 2017, p. 215) no Rio de Janeiro. Foi talvez a primeira instituição na capital do Império a oferecer cursos noturnos gratuitos de instrução primária.

O Liceu também oferecia aulas de comércio para jovens e adultos que se mostrassem interessados na aprendizagem e no trabalho, logo em seguida passava a compor a classe caixeiral, muito comum naquele mo-mento. Entre os anos de 1868 a 1884, o Liceu formou cerca de 6.500 alu-nos.

O autor destaca a fundação de uma escola noturna que atendia jo-vens e adultos que não podiam frequentar escolas em outros horários. A escola era mantida pelo Gabinete Português. Há também a citação de ou-tra instituição, o Collegio Victorio da Costa, com o externato para meninos pobres, de propriedade de um dos membros do gabinete.

O último texto “Pelos caminhos da liberdade: sujeitos, espaços e prá-ticas educativas (1880-1888)”, Alexandra Lima da Silva e Ana Chrystina Mignot abordam as iniciativas de educação de escravos e libertos, bem como ressaltam o papel do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, que foi criado por funcionários do jornal Gazeta da Tarde e que era, então, dirigido por José do Patrocínio, uma importante figura dentro do movi-mento abolicionista.

Essa perspectiva, defendem as autoras, alarga a compreensão sobre a educação de cativos e libertos para além das escassas escolas que exis-tiam Brasil afora. O Centro Abolicionista, além de abrir e manter escolas primárias noturnas, promovia outras atividades como festas, espetáculos teatrais, musicais etc.

Através da análise de diversos periódicos que circulavam na cidade, as autoras encontraram várias escolas gratuitas que instruíam “menores e adultos livres, libertos e escravos, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião” (SILVA; MIGNOT, 2017, p. 245).

Ao analisarem as ações do Centro Abolicionista Ferreira de Menezes, as autoras trouxeram à tona nomes como José do Patrocínio, José Ferreira de Menezes, Israel Soares, dentre outros, que compunham o quadro dos membros do movimento abolicionista. Ressaltam também que figuras como essas, ao escreverem em jornais, pretendiam conquistar a simpatia das elites para benefício de suas causas. No entanto, escreviam também para muitos libertos e descendentes de escravos que possuíam acesso a esses escritos.

Os textos que compõem a obra discutida aqui, com uma linguagem clara e objetiva, levantam questionamentos e desconstroem muitos mitos que se firmaram na historiografia brasileira, no caso específico, o de que as camadas populares no oitocentos estiveram alheias à cultura escrita, ou que sequer entendiam o valor da educação. É justamente isso que os textos buscam desmistificar ao mostrar que havia escolas noturnas, muitas delas mantidas por associações de dentro do movimento abolicionista. Tais escolas eram voltadas ao atendimento de trabalhadores, escravos e libertos, consequentemente uma parcela significativa de populares estavam inseridos no universo da cultura escrita e que, portanto, eram alfabetizados.

Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil). Contato: giuslanesilva@hotmail.com.

Acessar publicação original

 

Histórias e culturas Afro-Brasileiras e Indígenas – 10 anos da lei 11.645 / 08 / Revista Transversos / 2018

Africanos/as, afro-brasileiros/as, indígenas: compartilhando saberes e experiências para o ensino

A Revista Transversos em sua 13a edição apresenta o encontro de distintos universos e identidades culturais. Uma reunião transversal de africanos, afro-brasileiros e indígenas. São sensibilidades singulares nas formas de fazer e sentir a história. Esse número também entrecruza duas linhas de pesquisa do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES): Áfricas e suas diásporas e Escritas Contemporâneas da História. Numa parceria que problematiza os horizontes do campo Ensino de História e instiga / provoca pesquisas nas áreas dos estudos de histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas.

História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena é o caput da Lei n.11.645 / 08. Por meio dela tornou-se obrigatório nos currículos da Educação Básica o ensino sobre os costumes, hábitos e vivências de homens, mulheres e crianças africanas, afro-brasileiras e indígenas que por tempos foram silenciadas, subalternizadas ou marginalizadas em algumas páginas da história.

Nesse sentido, a 13a edição da Transversos ilumina os 10 anos de lutas, resistências, saberes e sensibilidades de histórias e protagonismos que caracterizam a transversalidade dessas identidades. O emaranhado da palha que ilustra a capa desta edição torna-se uma representação dessa experiência. Ela que entrecruza os três mundos: africano, afro-brasileiro e indígena, traz especificidades, mas entrelaça e faz dialogar aprendizados.

No que se refere à aplicação da referida lei nas escolas, sejam públicas ou privadas – é bem verdade que mais nessas últimas – ainda existe uma enorme resistência ou desconhecimento do significado desse tipo de legislação para a sociedade na qual ela se insere.

Tal resistência bebe de duas fontes principais. Em primeiro lugar, o caráter predominantemente eurocêntrico dos cursos de formação de professores para o ensino básico. É, ainda, relativamente pequena a proposição de obras cuja autoria, por exemplo, seja de intelectuais africanos na bibliografia apresentada em cursos de graduação de história. Paralelamente a essa constatação, existem poucos profissionais capacitados para desenvolver didaticamente, de forma propositiva e não caricatural e exótica, os conteúdos propostos pela legislação para os ensinos fundamental e médio.

Porém, iluminada a questão, é significativo que diferentes pesquisas – tanto na área da Educação quanto no campo do ensino da história – estejam apontando esse gargalo. Percebe-se uma gama de trabalhos que têm como prioridade a reflexão de que esse tipo de legislação aplicada à realidade da educação brasileira não pode ser tratadaapenas como atendimento a uma demanda do movimento negro. Seu resultado prático – ou melhor, seu retorno social – não deve ser unicamente o de servir como um mecanismo de combate à intolerância etnicorracial em nosso ambiente escolar.

A promulgação da Lei 11.645, em 2008, tornou obrigatório o ensino de história e culturas indígenas na Educação Básica brasileira, quando modificou parágrafos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996. Assim como a lei 10.639, de 2003, que se referia à inclusão da história e culturas afro-brasileiras e africanas no ensino de crianças, adolescentes e jovens, a 11.645 colocou novos desafios à formação de professores no Ensino Superior.

Nos últimos anos, assistiu-se ao surgimento de diversas disciplinas acadêmicas tais como História da África e História Indígena, dentre outras. Contudo, as dificuldades em se encontrar material que sintetize as pluralidades e as trajetórias histórica de etnias e culturas indígenas, além de africanas e afro-brasileiras, seja no passado e / ou no presente, ainda são grandes.

O caráter formativo que vem implícito na proposição da lei requer a consciência de professores, em especial os de história, e demais agentes públicos da educação de que em uma sociedade multiétnica e culturalmente diversa como a brasileira, não se pode privilegiar leituras que se baseiem simplesmente no conceito da assimilação das diferenças das “minorias” por uma maioria étnico-racial (Hall, 2003), muito menos implementar um currículo real no qual as manifestações culturais de grupos não-hegemônicos sejam apresentados de forma exótica ou caricatural. Essas práticas são reflexos de uma cultura racista e escamoteiam o caráter preconceituoso constituidor mesmo da sociedade brasileira.

O que a proposta deste dossiê dispõe e que aqui veremos explicitado de diferentes formas e com matizes teóricas variadas é que a verdadeira disputa após dez anos de implantação da Lei 11.645 / 08, em um momento política e juridicamente controverso no Brasil, é como relacionar, liberdades individuais e reconhecimento das diferenças sem hierarquizá-las ou priorizar qualquer uma delas. É uma questão que vai além do campo do ensino de história, como os artigos do presente dossiê vão demonstrar.

Nesses 10 anos, a Lei 11.645 / 08 tem motivado novos direcionamentos em relação ao ensino de Histórias e Culturas Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas. Ela tem feito emergir novas questões a respeito dessas identidades. Qual África ou quais Áfricas estudar? Como se inventa a noção de uma Afro-brasilidade? Índio, indígenas ou indigenismos? Como compreender a pluralidade das culturas indígenas no Brasil e sua relação com as Américas?

As questões acima têm contribuído para combater os essencialismos que por tempo criou-se em relação a “povos indígenas” e à “África” num enquadramento homogêneo e cristalizado. A Lei 11.645 / 08 tem lançado professores e professoras no desafio de mergulhar na heterogeneidade e nos hibridismos que as identidades em questão são merecedoras. Não cabe mais entender os indígenas como um único povo e a África como um continente. Essas culturas e identidades são múltiplas e estão em constante transformação.

O dossiê, pois, consiste em um esforço de síntese que possa auxiliar professores em formação, além do trabalho em sala de aula, na Educação Básica ou no Ensino Superior. Espera-se que as informações aqui apresentadas sirvam para reflexões e discussões sobre grupos humanos que desde a chegada dos europeus ao continente americano, a partir do final do século XV, tiveram suas vidas profundamente impactadas pelo contato / encontro / desencontro / confronto.

Abrimos com o artigo O ensino de história e cultura indígena e afro-brasileira: mudanças e desafios de uma década de obrigatoriedade de autoria de Renata Figueiredo Moraes e Sabrina Machado Campos. Nele, discute-se os desafios da implementação das leis n.º 10639 / 03 e 11645 / 08 e de que forma suas temáticas foram, ou não, contempladas nos currículos escolares e materiais didáticos da educação básica.

Não obstante as dificuldades da promulgação da lei e da promoção do ensino de história e culturas indígenas e afro-brasileiras no nosso sistema educacional, Jonathan Busolli e Luís Fernando da Silva Laroque nos apresentam o texto A lei 11.645 / 2008 e os indígenas nos livros didáticos de história do ensino médio. Os autores discorremde que forma a questão indígena é abordada nos livros didáticos de História, que compõem a grade curricular do ensino médio e colocados à disposição pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD / 2013).

Já Joana Bahia e Farlen Nogueira – Tem angola na umbanda? Os usos da África pela umbanda omolocô – analisam a contenda entre distintos grupos que defendiam a umbanda omolocô. A disputa era entre os que defendiam uma umbanda de cariz mais espírita, e com isso, mais sincrética; e os que eram ciosos em valorizar os elementos do candomblé, numa expectativa de construir uma identidade africana para a religião.

Abordar como como as autoridades coloniais portuguesas, sob a égide de uma ação “civilizadora”, enfrentaram as chamadas doenças tropicais de suas possessões é o objetivo de O combate à doença do sono nas colônias portuguesas na África: medicina sob o signo do racismo e do darwinismo social (1901-1932)de Ewerton Luiz Figueiredo Moura da Silva. Para o autor, as estratégias usadas tinham uma dupla função: controlar as doenças e, principalmente, pugnar os saberes e práticas de cura das sociedades africanas.

Homo Academicus: as africanidades e afrodescendências nos cursos de história da UFPI e UESPI,de Lucas Rafael Santos Costa e Pedro Pio Fontineles, Filho percorre de que maneira essas instituições, que são os principais centros de pesquisa e ensino no estado do Piauí, lançaram mão da História e da Cultura afro-brasileiras para fomentarem a formação de professores de História, objetivando a valorização da diversidade étnico-racial.

O artigo de Pedro Henrique Rodrigues Torres, Por um “quase” herói da pátria (?): o almirante negro e a revolta da chibata em questão, reverbera a figura de João Candido, o Almirante Negro. O autor contempla a cidade do Rio de Janeiro e a Marinha brasileira, analisando os diferentes momentos da Revolta da Chibata e as disputas e debates atuais sobre a memória de João Candido.

Encerrando o dossiê, temos o artigo Metendo o negro na história: a participação do (africano), na formação do „brasileiro‟, na visão de Sílvio Romero, escrito por Cícero João da Costa Filho. A partir de teorias circulantes no século XIX, como o positivismo e evolucionismo, o autor demonstra como o polemista Silvio Romero tentou inferir uma dinâmica cultural que evidenciasse de que maneira os africanos contribuíram na formação nacional brasileira.

Ainda dentro da nossa proposta temática, Vinícius de Castro Lima Vieira e Fernanda Miranda de Carvalho Torres trazem a instigante entrevista Da estrada à universidade: uma conversa com Michael Baré, o primeiro aluno cotista indígena da UERJ.

Uma análise das narrativas dos anônimos cujas vidas colidiram com os interesses de uma cidade que se preparava para grandes eventos esportivos é o que traz o artigo Impertinentes corpos pretos na “Cidade Olímpica”, deJosé Rodrigues de Alvarenga Filho, na seção Experimentações desta edição.

Na seção Artigos Livres, André Dioney Fonseca em “Tempos de inquietação”: o contexto de 1968 nas páginas da revista a Seara da Igreja Assembleia de Deus cotejaos posicionamentos da revista A Seara, editada pela Assembleia de Deus, a respeito dos acontecimentos de 1968. O texto perscruta o alinhamento editorial da publicação à Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento do regime militar brasileiro.

Leis por si só não bastam para modificar a realidade, mas representam importantes avanços, especialmente em uma sociedade racista como a brasileira. Nesse sentido, este dossiê, ao comemorar uma década de existência desta legislação, busca auxiliar a compreensão das pluralidades e diversidades étnicas e culturais do continente americano. No espelho de Heródoto, afinal, nossos reflexos revelam, também, corpos e mentes indígenas e africanos. Esperamos que leitura das próximas páginas estimulem reflexões, práticas, saberes e despertem sensibilidades.

Referências

HALL, Stuart. Pensando a Diáspora (Reflexões Sobre a Terra no Exterior). In: Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003

Giovani José da Silva

Gustavo Sousa

Rogério Guimarães

Sonia Wanderley

Os editores


SILVA, Giovani José da; SOUSA, Gustavo; GUIMARÃES, Rogério; WANDERLEY, Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.13, mai. / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Estudos sobre o ensino secundário no Cone Sul nos anos 1950 e 1960 / Revista História da Educação / 2018

A atual escolarização média apresenta impasses que envolvem a sua democratização quantitativa e a sua atualização pedagógica. Os questionamentos sociais sobre este nível de ensino têm forçado governos a dar respostas consequentes e instigado educadores e cientistas sociais a produzirem respostas convincentes. Historiadores da educação têm envidado esforços no sentido de compreender a questão a partir de leituras temporais de longa e de média duração. Devido à colonização ibérica, nos países da América Latina o ensino secundário foi plasmado pela Igreja Católica por meio de uma rede articulada de colégios confessionais, contribuindo para a permanência do tradicionalismo pedagógico. A presença católica mais marcante no ensino secundário em países latino-americanos deu-se a partir do final do século XIX por meio da atuação de congregações religiosas europeias, em boa medida expulsas de países que laicizavam o Estado e o seu sistema público de ensino, como a França e a Alemanha. No ensino secundário foram sobremaneira as congregações formadas por padres que criaram e gestionaram colégios dirigidos às elites masculinas.

No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, a ação da Unesco e a intensificação da globalização estimularam a realização de experiências renovadoras no ensino secundário em países latino-americanos (XAVIER, 1999). As ideias e modelos pedagógicos que passaram a circular e a ser usados foram, especialmente, aqueles produzidos nos EUA, como o plano Morrison, e na França, tendo como referências as classes nouvelles, vinculadas ao Centre International d`Études Pedagogiques (Ciep), localizado em Sévres, e a Pedagogia Personalizada e Comunitária, elaborada pelo padre jesuita francês Pierre Faure. Enquanto as classes nouveles tiveram recepção nos sistemas públicos de ensino, a pedagogía escolanovista católica do padre Faure disseminou-se mais, mas não exclusivamente, nos colégios católicos, particularmente no México, na Colômbia e no Brasil. Não se trata da renovação do ensino secundário em larga escala, mas da realização de experiências vanguardistas pontuais, que apontaram um caminho alternativo para o ensino secundário homogeneizado pelo timbre autoritário dos anos 1930 e 1940.

No clima da guerra fria, impulsionado pelo pan-americanismo produzido pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e chancelado pelos EUA, foram realizados eventos para debater a educação escolar no continente americano. Assim, em janeiro de 1955, ocorreu, em Santiago, o Seminário Interamericano de Educação Secundária, promovido pela OEA e pelo governo do Chile. Tratou-se de um evento singular em que os representantes dos países americanos apresentaram uma radiografia do formato do ensino secundário em seus respectivos sistemas nacionais de ensino e promoveram uma importante troca de experiências escolares (ABREU, 1955). Outro exemplo foi a realização do Congresso Pan-Americano de Educação Física, também ocorrido na capital do Chile, no ano seguinte, que contou com a participação de Germano Bayer, professor do Colégio Estadual do Paraná, e Gildásio Amado, titular da Diretoria do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura do Brasil. Segundo Chaves Júnior (2016), esses dois educadores visitaram o Liceo Experimental Manuel Salas, localizado em Santiago, que realizava um ensaio educacional renovador no ensino secundário. Há, portanto, indícios de certa circulação e apropriação de experiências educativas no ensino secundário entre os países do continente americano, certamente mais frequentes entre os de língua espanhola.

A pequena onda de renovação do ensino secundário nos países da América Latina, proporcionado pelo clima democrático e de abertura internacional no campo educacional, foi coibida pelas ditaduras militares dos anos 1960 e 1970 no subcontinente latinoamericano. Refletindo sobre o autoritarismo militar e escolarização no Uruguai, Southwell (2010, p. 14) assevera que “el régimen [militar] entendió que la escuela era responsable de desborde de la cultura política y desde esa convicción operó para generar mayores formas de control político sobre la cultura escolar y el trabajo pedagógico”. Mutatis mutandis, essa constatação pode ser estendida às ditaduras latino-americanas que procuraram intervir nos seus sistemas de ensino, inicialmente no nível superior porque as universidades eram um dos principais focos de resistência democrática, mas também nos ensinos primário e secundário. As ditaduras abortaram experiências educativas e ideias pedagógicas ricas e criativas, em boa medida inspiradas em modelos pedagógicos estrangeiros, mas também em propostas pedagógicas elaboradas e usadas na América Latina como a de Paulo Freire.

Nesta direção, o presente dossiê tem como intuito realizar uma leitura histórica e comparada da renovação do ensino secundário, nas décadas de 1950 e 1960, em países do Cone Sul, de sorte que os autores dos textos analisam a escolarização de seus países. No artigo “Formato, pedagogias y planeamiento para la secundaria en Argentina. Notas sobresalientes del siglo XX, Myriam Southwell apresenta uma trajetória panorâmica do ensino secundário na Argentina durante o novecentos. Tal panorama parte da criação do modelo de colégio de ensino secundário direcionado às elites burguesas no final do século XIX, mas sobretudo lança luz sobre as renovações que se colocaram no ensino secundário argentino a partir da expansão, modernização e ressignificação escolanovista dessa etapa da escolarização. Em “Las asambleas de profesores en la consolidación del consejo de enseñanza secundaria en Uruguay (1949-1961)”, Lucas D’Avenia analisa as chamadas assembleias de professores secundaristas no Uruguay, procurando compreender a emergência dessas assembleias no momento do início da massificação da matrícula do ensino secundário e, especialmente, a circulação de ideias pedagógicas e espaço de empoderamento docente.

Os artigos de autores brasileiros colocam o foco sobre as chamadas classes secundárias experimentais, que se constituíram na principal experiência pedagógica no ensino secundário brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. No artigo “Luis Contier como catalisador de redes: classes experimentais e renovação do ensino secundário em São Paulo nas décadas de 1950 e 1960”, Daniel Ferraz Chiozzini e Letícia Vieira refletem sobre a contribuição do educador-intelectual Luís Contier na implantação da primeira experiência renovadoras no ensino secundário a partir das classes nouvelles, bem como na instituição das classes secundárias experimentais a partir do final dos anos 1950. Em “A inspiração nos trabalhos dos grandes centros de estudos pedagógicos: considerações sobre as classes integrais do Colégio Estadual do Paraná (1960-1967)”, Sérgio Roberto Chaves Júnior analisa o ensaio educacional das classes secundárias experimentais, na década de 1960, na principal escola pública do Paraná, que tinha conexões com o Colégio Nova Friburgo, referência no uso do método de ensino por unidades didáticas inspirado no plano Morrison. No artigo “Circuito e usos de modelos pedagógicos renovadores no ensino secundário brasileiro na década de 1950”, Norberto Dallabrida busca compreender os processos de circulação e de apropriação das classes nouvelles e da Pedagogia Personalizada e Comunitária no Brasil.

Os cincos artigos que compõem o presente dossiê, portanto, proporcionam estudos sobre o ensino secundário no Cone Sul em perspectiva histórica e comparada, apostando na intensificação da troca de reflexões educacionais e pedagógicas na América Latina. Esse trabalho pretérito tem o fito de contribuir para subsidiar as reformas o ensino secundário / médio em curso, de modo que este nível de escolarização seja pedagogicamente consistente e socialmente justo.

Referências

ABREU, Jayme. A Educação Secundária no Brasil. Rio de Janeiro: MEC / Inep, 1955. (Publicações da Cileme, 9).

CHAVES JÚNIOR, Sérgio Roberto. As inovações pedagógicas do ensino secundário brasileiro nos anos 1950 / 1960: apontamentos sobre as classes integrais do Colégio Estadual do Paraná. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 15, n. 2, p. 520- 539, maio / ago. 2016.

SOUTHWELL, Myriam. Prólogo. In: ROMANO, Antonio. De la reforma al proceso: una historia de la Enseñanza Secundaria (1955-1977). Montevideo: Ediciones Trilce, 2010. p. 11-14.

XAVIER, Libânia Nacif. O Brasil como Laboratório: Educação e Ciências Sociais no Projeto dos Centros Brasileiros de Pesquisas Educacionais CBPE / Inep / MEC (1950-1960). Bragança Paulista: Edusf, 1999.

Norberto Dallabrida – Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Pesquisador do CNPq. Com Rosa Fátima de Souza, organizador da coletânea “Entre o ginásio de elite e o colégio popular: estudos sobre o ensino secundário no Brasil (1931-1961)”. E-mail: norbertodallabrida@gmail.com

 Myriam Southwell – Investigadora independiente Conicet / Universidad Nacional de La Plata, directora del Doctorado en Ciencias de la Educación de la Universidad Nacional de La Plata. Fue presidente de la Sociedad Argentina de Historia de la Educación entre 2008 y 2012 y desde 2016 es integrante del Comité Ejecutivo de International Standard Conference on History of Education (Ische). Autora de numerosos trabajos en temas de historia y política de la educación entre los cuales se destacan Ideas en la Educación Latinoamericana. Un balance historiográfico (junto con Nicolás Arata), Unipe, 2014; Reflexiones sobre el Congreso Pedagógico Internacional de 1882 (junto con Jorge Bralich), Trilce, 2014; Schooling and Governance: Pedagogical Knowledge and Bureaucratic Expertise in the Genesis of the Argentine Educational System, Paedagogica Historica, v. XLIX, 2013; La educación y lo justo. Ensayos acerca de las medidas de lo posible, Unipe, 2013; Entre Generaciones. Exploraciones sobre educación, cultura e instituciones, Homo Sapiens, 2012. E-mail: islaesmeralda@gmail.com


DALLABRIDA, Norberto; SOUTHWELL, Myriam. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 22, n. 55, maio / ago., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Existir em bits: arquivos pessoais nato-digitais e seus desafios à teoria arquivística – ABREU (RBH)

Fruto da dissertação orientada por Aline Lopes de Lacerda e Luciana Heymann, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da UniRio, Existir em bits: arquivos pessoais nato-digitais e seus desafios à teoria arquivística, recém-editado pela Associação de Arquivistas de São Paulo, marca, de certa forma, a entrada de Jorge Phelipe Lira de Abreu na bibliografia brasileira sobre arquivos pessoais. Não se trata, convém notar, de estreia propriamente dita, tendo em vista que o autor vem publicando artigos em periódicos especializados e capítulos em coletâneas e anais de eventos realizados no país e no exterior. Leia Mais

Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935) – SOUZA (RBH)

Publicado em 2017, Em busca do Brasil, de autoria de Vanderlei Sebastião de Souza, é fruto da tese de doutorado defendida na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e agraciada com o III Prêmio de Teses da Anpuh, no biênio de 2011-2012. Os cinco capítulos que compõem o livro trazem à tona a preocupação com o tema da identidade nacional na trajetória política e científica do médico e antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Em especial, a obra analisa a sua relação com a antropologia física, suas interlocuções transoceânicas e a ampla discussão racial mobilizada durante as primeiras décadas do século XX. Leia Mais

Cadernos Pagu. Campinas, n.53, 2018

Quem tem medo de Judith Butler? A cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil Debate

Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority – NAWAS (S-RH)

NAWAS, John Abdallah. Al-Ma’mūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority. Atlanta: Lockwood Press, 2015. Coleção “Resources in Arabic and Islamic studies”, n. 4. 212 p. ISBN-13: 9781937040550 (impresso) | 9781937040567 (e-book). Resenha de: CRUZ, Alfredo Bronzato da Costa. Religião e historicidade: a batalha pela ortodoxia islâmica no Califado Abássida SÆCULUM– Revista de História, João Pessoa, [38] jan./ jun. 2018.

Pode não ser muito evidente no ambiente acadêmico brasileiro, às vezes ensimesmado em questões muito particulares, mas o campo dos estudos sobre o Islã tem crescido de forma vertiginosa nas universidades europeias e norte-americanas desde o fim da Guerra Fria, vinculado a fatores geopolíticos claros, que determinam de modo mais ou menos indireto as tendências intelectuais e a distribuição dos recursos destinados à pesquisa. De fato, desde o fim da década de 1980, tem-se experimentado uma expansão da investigação ocidental sobre o Islã comparável em magnitude unicamente à que teve lugar cem anos antes disso, em paralelo com a expansão imperialista sobre os continentes africano e asiático, ou seja, também sobre as terras tradicionais da presença e hegemonia muçulmana. As analogias possíveis entre os dois momentos não são apenas formais, mas também discerníveis em certos elementos de conteúdo significativos. Apesar dos excelentes estudos sobre a história do Islã e do ecúmeno muçulmano atualmente disponíveis, ainda é parte do senso comum acadêmico a noção não só de que o movimento dos seguidores de Muḥammad é essencialmente igual a si mesmo desde o século VII até a contemporaneidade, mas de que ele surgiu na história consistente e beligerante, tal como Palas Atena saltando adulta e inteiramente armada da cabeça de Zeus.2 No suporte a esta ideia, vaga, mas poderosa, estão, de um lado, os orientalistas e neoorientalistas, que se arrogam o direito de falar aos ocidentais sobre o ser do Islã, projetando na história das coletividades uma ontologia tão estática quanto politicamente enviesada. Do outro, elemento novo, encontram-se os intelectuais muçulmanos ou filo-muçulmanos instalados nas universidades ocidentais, pesquisadores que em realidade pouco fazem além de transcrever em discurso acadêmico, de maneira muito pouco crítica, a narrativa dos próprios devotos a respeito do surgimento e desenvolvimento do Islã. Sob o emaranhado de enunciados que constitui a disputa pela fala legítima a respeito das questões pertinentes à história e religiosidade islâmicas, portanto, há certa concordância tácita sobre o que caracterizaria esse movimento político-religioso em sua essência; questões que são produto de processos sociais e conjunturas históricas bastante particulares são, dessa forma, cristalizados como se não mais do que realizações no tempo e no espaço de uma natureza do Islã. O principal problema desse tipo de abordagem, contudo, é que ele distorce em diferentes níveis a compreensão que se pode ter a respeito do passado islâmico, submetendo-o a juízos fundados precisamente na desconsideração da historicidade de todos os atos e ideias dos seres humanos.

Mencione-se um exemplo significativo, ou seja, o da mina, a dita inquisição islâmica. O vocábulo árabe ة􀑧􀑧 محن pode ser literalmente traduzido como julgamento ou como prova, no sentido de teste; foi tradicionalmente usado tanto pelos historiadores muçulmanos, medievais e modernos, como pelos especialistas ocidentais para designar o período de perseguição religiosa iniciado durante o governo do califa abássida al-Ma’mūn (813-833) e continuado sob seus dois sucessores, al-Mu’taṣim (833-842) e al-Wāthiq (842-847). Durante a mina, uma série de oficiais do governo, teólogos, juristas, cronistas, compiladores de aḥādīt, sábios e santos muçulmanos foram submetidos à prisão, aos castigos físicos e, eventualmente, à execução, por se recusarem a subscrever a doutrina, então sustentada pelos abássidas, de que o Corão havia sido criado por Alá e que, portanto, sendo acessível à inteligência em sua plenitude, poderia ser submetido a escrutínio racional. A confissão alternativa a essa, por outra parte, sustentava que o Corão era anterior a toda a criação, subsistindo desde sempre em Alá como arquétipo do Texto que foi, em determinado momento histórico, efetivamente revelado a Muḥammad. Essa divergência explodiu em conflito aberto quando, alguns meses antes de seu falecimento, al-Maʾmūn determinou que os especialistas religiosos de sua corte denunciassem como falsos todos os aḥādīt em que se guardavam tradições a respeito do caráter supostamente incriado do Corão; a recusa de alguns em fazê-lo desencadeou reações violentas da parte do soberano, assim como um exaltado sentimento popular a favor dos perseguidos. No califado de al- Mu’taṣim, a mina foi institucionalizada tanto em verificações regulares que eram feitas aos cortesãos e demais oficiais do governo quanto à sua opinião a respeito do caráter criado ou incriado do Corão, quanto em tribunais inquisitoriais estabelecidos em al-Fustât, Kūfa, Bagdá, Basra, Damasco, Meca e Medina, cortes cuja autoridade foi estendida a todos os funcionários, militares, magistrados, eruditos e líderes comunitários dessas cidades nevrálgicas do ecúmeno islâmico. Sob al-Wāthiq, a perseguição perdeu força e acabou por se extinguir. O complexo período que se seguiu, marcado por uma crescente ascendência dos ghilmān (escravos-soldados) turcos sobre todos os negócios do califado, fez com que essa discussão teológica fosse esvaziada e desmontado o aparato institucional que os abássidas construíram durante a década de 830 para lidar com ela. O califa al-Mutawakkil, por fim, reconheceu abertamente o fracasso da mina determinada por seus antecessores e estabeleceu que seus súditos seriam livres para decidir por si mesmos se acreditariam no caráter criado ou incriado do Corão.

Não raro a mina foi pensada pelos analistas ocidentais como mais uma das expressões da essência intolerante do Islã. Definido o caráter intolerante de uma religião, entretanto, efetivamente é possível encontrar provas desse por toda parte.

Poucas vezes se considerou a sério, de outra parte, que a perseguição e a resistência a ela foram assuntos que se deram entre homens que se consideravam todos muçulmanos fiéis. Todo o episódio mostrou com clareza os limites do poder dos califas em matéria do estabelecimento da ortodoxia islâmica; daí em diante ficou claro que os soberanos do império islâmico, que já então havia iniciado seu processo de desagregação político-territorial, haveriam de negociar cuidadosamente, a cada pronunciado estritamente religioso que se arvorassem a fazer, com a intelligentsia constituída pelos diferentes tipos de sábios e santos muçulmanos. O lugar da fala doutrinária legítima não era mais, de modo necessário, a corte califal, mas as madraças, as academias de jurisprudência, de belas letras e de teologia que eram os loci em que se elaboravam a autoconsciência daquilo que emergia então como a vertente sunita do Islã. Ao contrário do que muitos analistas menos informados continuam a sustentar, de fato, o sunismo não é idêntico ponto a ponto à ideologia não-álida ou anti-álida que se desenvolveu sob os omíadas e os abássidas; não é uma confissão por rejeição, mas uma identidade islâmica que se desenvolveu na história, tanto ao redor de uma oposição quietista aos próprios califas majoritariamente reconhecidos como legítimos, quando de uma crescente veneração aos ditos e feitos atribuídos a Muḥammad e seus Companheiros, tomados como interpretações e performances autorizadas da Revelação divina consignada no Corão. A junção entre religião e política que muitos sustentam necessária e mesmo natural na história islâmica foi agudamente colocada em questão durante todo o episódio da mina – inclusive, talvez principalmente, em seu encerramento. Aos califas abássidas foi então negado o direito de uma intervenção cesaropapista na teologia islâmica; e ainda que não se tenha esvaziado o seu papel estritamente religioso de chefe dos crentes e lugartenente de Deus à frente da Ummah, a comunidade dos muçulmanos, esboçou-se um conflito entre poder espiritual e poder secular que nos remete mais a certos episódios da história das sociedades cristãs de matriz euro-americana do que às ideias cristalizadas que temos a respeito do que foram e são as sociedades aderentes ao Islã, nas quais a vida política parece a não poucos ser indissociável da vida religiosa, ou vice-versa.3 Isto tudo considerado, a mina apresenta-se como um episódio muito bom para pensar o Islã na história, ou seja, para se refletir sobre os processos sociais, bem localizados no tempo e no espaço, pelos quais os muçulmanos – que a princípio não dispõem de uma estrutura análoga à da hierarquia eclesiástica do cristianismo – produziram a ortodoxia e a dissidência religiosa a partir das quais se definem enquanto muçulmanos. De fato, ela não é facilmente interpretável caso se considere o Islã como um movimento sempre igual a si mesmo; trata-se, portanto, de uma brecha, uma rasgadura que permite que consideremos com mais vagar a dialética entre o desejo de permanência e o advento de mudanças que está presente em toda e qualquer instituição ou complexo de ideias. Da mesma forma, não ajuda muito a analogia, comum nos autores ocidentais do século XIX e da primeira metade do século XX, entre a mina e as inquisições católica ou protestante dos séculos XV a XVIII. Em todos esses sentidos, para compreender este episódio em sua importância capital, ajuda-nos o livro aqui referido, de autoria de John Abdallah Nawas (n.1960), versão revista e expandida de sua tese de doutorado, Al-Maʾmūn: mina and Caliphate, defendida em 1993 na Universidade Católica de Nimegue (mais tarde renomeada como Universidade Radboud de Nimegue). Nawas é agora professor de Estudos Árabes e Islâmicos do Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Louvaina, na Bélgica, e diretor da Escola Europeia de Estudos Abássidas, com sede na mesma instituição. Nos quase vinte e cinco anos que se seguiram ao seu doutoramento, a tese de Nawas tornou-se uma referência para os estudos que de alguma forma se referem à mina, tanto pela clareza de sua argumentação, quanto por seu extraordinário domínio das fontes de época e da bibliografia pertinente à sua análise. Em 2014, o autor publicou um número da série Oxford Bibliographies Online com um extenso levantamento comentado dos trabalhos até então disponíveis sobre a mina, a maior parte estudos orientalistas em inglês e textos de autores árabes. Com base nessa pesquisa, Nawas atualizou as referências de sua tese, ainda que não tenha incorrido em mudança significativa em seu argumento. O volume assim revisado e expandido foi publicado no ano seguinte em versão impressa e online pela Lockwood Press, de Atlanta, EUA, tornando assim mais acessível um estudo fundamental aos interessados em questões de história sociopolítica, intelectual e religiosa do Islã medieval.

No primeiro capítulo de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority (pp. 1-20), Nawas situa seu estudo ao apresentar os marcos cronológico e geográfico deste, juntamente com uma investigação preliminar do que já foi escrito a respeito das motivações dos abássidas para estabelecerem e suspenderam a mina. Aí também são elencados os documentos de época que o autor consultou a respeito, procurando situá-los como peças de combate dentro daquelas que se constituíam como as oposições fundamentais que tensionavam e davam forma ao debate político-religioso islâmico ao tempo de al-Maʾmūn, seus imediatos antecessores e sucessores – ou seja, as disputas entre o califa e seus cortesãos e os ulemás e seus alunos, entre os álidas, os xiitas e os conformistas que estavam em vias de se constituírem religiosamente como sunitas (mas colocando em questão, nesse processo, seu próprio conformismo político), e entre os que defendiam o caráter criado e os que sustentavam a preexistência e eternidade do Corão. No segundo capítulo (pp. 21-30), reconstitui-se a trajetória de al-Maʾmūn, tratando-se principalmente de sua controversa nomeação e do conflito que se seguiu a essa, uma disputa familiar e cortesã que eclodiu na chamada quarta fitna, guerra entre diferentes facções abássidas que se estendeu de 811 a 819, com prolongamentos regionais até 830, e que foi, entre outras coisas, uma tentativa dos partidos árabes e persas de definirem quem haveria de impor seus interesses e autoridade sobre o califado.

No terceiro capítulo (pp. 31-50), Nawas considera os diferentes discursos a respeito do papel do califa (abássida) que circulavam durante a quarta fitna e pouco depois, sistemas de ideias com os quais al-Ma’mūn foi forçado a dialogar em diferentes níveis para estabelecer sua própria autoridade como chefe (ao menos nominal) do mundo muçulmano. Esses discursos eram principalmente três: o da escola mu’tazilita, protocontratualista, que sustentava que a autoridade dos califas devia-se antes do mais a uma livre delegação do poder feita por seus súditos; o dos álidas, que sustentavam que o califa deveria ser um descendente em linha direta de Muḥammad; e o dos xiitas, que argumentavam que o verdadeiro governante da Ummah não era qualquer califa, mas o imān, o líder espiritual da comunidade, descendente direto do Profeta do Islã e capaz de dar aos fiéis a interpretação autorizada tanto do Corão quanto das aḥādīt, que infalivelmente estaria capacitado a separar entre verdadeiras e falsas.

Como mais ou menos evidente nesta recapitulação sumária, as ideias dos álidas e dos xiitas eram largamente coincidentes e, a princípio, idênticas; no correr dos séculos VIII e IX, entretanto, elas foram se partindo em corpos conceituais distintos, ainda que comunicantes e geneticamente vinculados. Surgiram então facções álidas que apoiavam as pretensões ao califado dos descentes de outros parentes de Muḥammad que não os da linhagem de ‘Ali e Fátima – como era o caso dos próprios abássidas, que inicialmente fundaram sua autoridade no fato de serem descendentes de Al- ‘Abbas ibn ‘Abd al-Muttalib, um dos mais jovens tios paternos do Profeta do Islã; ao passo que não poucos dos que seguiam defendendo a legitimidade unicamente do governo de ‘Ali e seus descendentes diretos, com a implacável perseguição destes, tanto pelos omíadas quanto pelos abássidas, acabou se refugiando em uma espécie de quietismo que postergava para um tempo escatológico, o do retorno de Muḥammad ibn Hasan al-Mahdī, o Imān Oculto, o restabelecimento do governo legítimo sobre a Ummah. Para constituir sua própria teoria do poder, al-Maʾmūn e seus ideólogos inicialmente dialogaram de modo dinâmico e complexo com essas três tendências, incluindo os xiitas – por exemplo, ao reivindicar uma autoridade espiritual próxima do imamato para este governante. Por fim, em 827, a teoria mu’tazilita do poder foi adotada na corte de al-Maʾmūn como oficial e ortodoxa. Isso, contudo, longe de atenuar os conflitos entre os califas e seus ideólogos e os mu’tazilitas, acabou por intensificá-los, pois não eram poucos os juristas e teólogos dessa escola que consideravam al-Maʾmūn em particular – pela forma como tomou o poder através da deposição e assassinato de seu irmão, Muḥammad al-Amīn ibn Harūn al-Rashīd –, ou os abássidas no geral – pelo modo como tomaram o poder aos omíadas pela violência –, como usurpadores que não detinham uma procuração legítima da parte dos fiéis para exercer sobre eles o poder absoluto. Além disso, os mu’tazilitas sustentavam que a autoridade religiosa encontrava-se inteiramente concentrada no Corão, que devia ser analisado de acordo com a razão, concebida segundo as categorias da filosofia greco-romana clássica, principalmente a lógica aristotélica; negavam, portanto, uma autoridade de princípio ao califa, qualquer que fosse, em matéria teológica.

No quarto capítulo (pp. 51-76), Nawas apresenta sua hipótese central, ou seja, de que a mina deve ser pensada não como uma intervenção caprichosa de al-Ma’mūn e seus imediatos sucessores em uma questiúncula teológica, mas como instrumento de uma teoria da prática, ou seja, como um dos meios, talvez o principal, pelo qual esses governantes pretenderam criar um discurso de legitimação do poder califal que sintetizasse as hipóteses a este respeito então mais populares no mundo islâmico, ao mesmo tempo em que se autorizavam, por motivo de zelo religioso, a agir direta e duramente contra seus opositores mais estridentes – tanto álidas e xiitas que sustentavam o caráter incriado do Corão e vinculavam isso às suas definições a respeito do poder dos califas, que supostamente lhes seria concedido não pela vontade dos homens, mas por um direito de nascimento determinado por uma procuração eterna da parte de Alá; quanto mu’tazilitas que veementemente negavam aos califas quaisquer funções no estabelecimento da ortodoxia islâmica. Para sustentar essa linha de argumentação, Nawas faz um levantamento dos autores modernos que a esboçaram, procurando ler os documentos que utilizaram para essa formulação – principalmente as cartas de al-Maʾmūn e al-Mu’taṣim aos cádis e emires a respeito da mina – dentro de seu contexto histórico particular, reconstituído através das narrativas dos cronistas árabes e não-árabes do período. O autor ainda considera o extraordinário timing da mina no esforço de estabelecer uma legitimação dos abássidas e os procedimentos pelos quais diferentes indivíduos tiveram suas crenças, e sua lealdade ao califa, devidamente testados. Ressalta-se ainda o valor estratégico da doutrina referente ao caráter criado ou incriado do Corão no espectro políticoteológico da época; para dimensioná-lo, pode-se ressaltar um exemplo citado por Nawas. Ora, alguns eventos históricos, como a Batalha de Badr (624) são citados no Corão; reconhecer que este Livro é incriado significa aderir à opinião de que a eclosão e desdobramento desse combate estavam predeterminados desde sempre, enquanto reconhecer que o Livro foi criado, em uma interação entre o conteúdo eterno da Revelação dada a Muḥammad e o contexto particular no qual esse se encontrava, significa corroborar que o resultado em Badr, antes do mais, deveu-se aos méritos e esforços das pessoas que aí se encontravam. Em suma, o debate de fundo era também entre predestinação e livre-arbítrio, e seu corolário político eram então evidentes; de fato, em 836, al-Ma’mūn fez com que se execrassem publicamente os nomes de todos os monarcas omíadas e seus apoiadores, a começar por Muʿāwiyah ibn Abī Sufyān (661-680), o primeiro dos califas dessa dinastia; como poderia, entretanto, não ter incorrido al-Maʾmūn em blasfêmia ao fazê-lo caso, mesmo tomando a ascensão dos omíadas como uma usurpação e uma injustiça do ponto de vista estritamente político, se viesse a considerá-la como pré-determinada por Alá desde infinitamente antes da criação do mundo? Depois de uma breve conclusão (pp. 77-82), na qual Nawas retoma e reitera os principais elementos que o levaram a pensar na mina como vetor de constituição da autoridade de al-Maʾmūn, são apresentados uma série de úteis apêndices, como uma listagem em ordem cronológica da documentação de época consultada (pp. 83-94), uma súmula das questões impostas aos interrogados pelos homens desse califa (pp.95-106), e uma linha do tempo com a indicação dos principais eventos que interferiram de alguma forma no governo de al-Maʾmūn (pp. 107-108). Segue a apresentação da bibliografia utilizada (pp. 109-124) e um índice onomástico, conceitual e topográfico do volume (pp. 125-130). Por fim (pp. 131-209), é reproduzido o texto Amed ibn anbal and the miḥna: a biography of the imān including and account of the Mohammedan Inquisition called the Miḥna, publicado em 1897 pelo orientalista Walter Meville Patton (1863-1928), professor do Colégio Teológico Wesleyano de Montreal, Canadá. Ibn Ḥanbal (780-855), venerado por muitos muçulmanos sunitas como Imān Amad, foi um dos teólogos, juristas e compiladores de aḥādīt que padeceu nas mãos dos agentes da mina por se recusar a obedecer aos mandatos de al-Ma’mūn, al-Mu’taṣim e al-Wāthiq em matéria doutrinária. Reconhecido como um dos confessores do tradicionalismo islâmico diante das intervenções dos califas abássidas, a Ibn Ḥanbal também se atrelou a fama de ser um dos amigos de Deus, ou seja, um dos muitos santos da tradição islâmica.

Esse texto de Patton tem um duplo mérito ao estudioso contemporâneo da mina: reunir e apresentar uma primeira tradução comentada ao inglês de praticamente todos os relatos dos cronistas árabes a respeito, e oferecer uma entrada para o entendimento tradicional dos comentadores ocidentais desse episódio da história islâmica.

O livro do Prof. Nawas é bem escrito, rico em informações e bons insights e fundado em uma pesquisa erudita irrepreensível. Ao mesmo tempo em que faz uma leitura cuidadosa das fontes islâmicas, não hesita em recuperar as opiniões dos especialistas ocidentais a respeito delas, estabelecendo um diálogo não só crítico, mas criativo com toda uma rica tradição intelectual que infelizmente passou a ser vedada em muitos meios, condenada como desprezível sem sequer ter sido analisada em seus muitos méritos, depois da publicação, em 1978, do Orientalismo de Edward W. Said (1935-2003). Os especialistas na história e nas discussões religiosas do Islã decerto farão um proveito mais imediato da leitura de Al-Maʾmūn, the Inquisition and quest for Caliphal authority, mas qualquer interessado minimamente atento será capaz de ter um bom entendimento do livro. O maior mérito do volume reside no fato de ser uma contribuição fundamental no sentido de compreender o Islã como um movimento histórico, não só no acessório, mas em seu próprio conteúdo estritamente religioso, apesar das recusas obstinadas e cúmplices dos orientalistas e dos fiéis em reconhecer isso. Lendo este trabalho de Nawas, tem-se bem evidenciado que o Islã não foi sempre igual a si mesmo, não sendo em sua eminente historicidade fundamentalmente diverso de qualquer outro movimento religioso, político ou político-religioso conhecido da história da humanidade. Trata-se de uma abordagem importante de ser considerada em um cenário como o nosso, em que os estudos acadêmicos a respeito do Islã ainda são em boa medida empreendidos por seus devotos e por seus críticos. De modo efetivo, todo o debate sobre o caráter divinamente estabelecido ou não da autoridade califal, vinculado de modo intestino à querela sobre a natureza criada ou incriada do Corão, tem na história islâmica, mantidas, é claro, todas as proporções devidas, uma importância que é análoga à que os debates trinitários e cristológicos dos séculos IV e V tiveram na história cristã; ou seja, mostram que não há nada de tão sagrado e constante que esteja completamente intocado pelas variações, interesses, paixões e atritos que compõem a história dos indivíduos e das coletividades.

Nota

2 Para facilitar a leitura, todas as datas constantes no presente textos são apresentadas de acordo com seu equivalente no calendário gregoriano.

3 Estou bem consciente de que o conceito de cesaropapismo é normalmente aplicado pelos historiadores ocidentais, tanto confessionais quanto seculares, para descrever o tipo de ingerência que os imperadores romanos do oriente (bizantinos) tinham ou pretendiam ter sobre a Igreja em seus domínios, e é justamente por isso que o utilizo aqui; afinal, reitero, o tipo de poder obtido ou pretendido por governantes como Justiniano (482-565), Heráclio (575-641) e Leão III Isáurico (675- 741) sobre a vida religiosa de seus súditos foi justamente o que foi negado aos califas abássidas na década de 830. Não se trata essa de uma aproximação arbitrária, na medida em que os abássidas mantiveram com os romanos do oriente relações que não foram nunca só de conflito, mas também de intercâmbio e de imitação, inclusive no plano das ideias políticas e religiosas. Sobre a intrincada evolução histórica do conceito de cesaropapismo, ver por primeiro: TAVEIRA, Celso. O modelo político da autocracia bizantina: fundamentos ideológicos e significado histórico. Tese de Doutorado em História apresentado ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2002, pp. 291-317.

Alfredo Bronzato da Costa Cruz –  Doutorando em História Política pelo PPGH/UERJ (2015- ). Bolsista CAPES (2015- ) e Nota 10/FAPERJ (2017- ). Membro do Núcleo de Estudos de Cristianismos no Oriente do GT de História das Religiões e das Religiosidades da ANPUH-Rio. Membro do Núcleo de Pesquisa Histórica do Instituto Pretos Novos. E-mail: <bccruz.alfredo@gmail.com>.

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Moda e indumentária: entre imagens e artefatos/Acervo/2018

A elaboração de um dossiê permite uma reflexão importante acerca da área, da atuação profissional, da pesquisa. Da chamada para submissões à publicação dos trabalhos aprovados, há uma série de eventos que vão se sobrepondo à ideia inicial do dossiê e dão vida própria ao formato que os leitores têm em mãos. Nesse sentido, a experiência de editar esse material para publicação numa revista como a Acervo foi muito enriquecedora, apresentando também alguns desafios que nos transformaram pessoal e profissionalmente. Leia Mais

Simpósio USP de História da Ciência e Tecnologia / Khronos – Revista de História da Ciência / 2018

Este número 5 da Khronos reveste-se de uma importância especial, pois nele é apresentado um dossiê decorrente do Simpósio USP de História da Ciência e Tecnologia. Tratou-se de evento ocorrido em 13 e 14 de novembro de 2017 no campus Butantan da Universidade de São Paulo, organizado pelo CHC – Centro de História da Ciência em conjunto com o IEA – Instituto de Estudos Avançados da USP, e que contou com o apoio de entidades externas (Instituto Butantan e IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas), além de unidades da USP (Instituto de Física, Instituto de Matemática e Estatística, Instituto de Oceanografia, Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas). Com uma participação de público além da esperada, apresentaram-se uma centena de comunicações orais vindas de 17 unidades da USP, inclusive de campi do interior do Estado de São Paulo. Os temas de fundo histórico foram bem variados e versaram sobre fontes e metodologia, medicina e saúde, história da ciência e ensino, filosofia da ciência, divulgação científica, políticas de ciência e tecnologia, ciência e religião, instituições científicas e técnicas, astronomia, física, matemática, biologia, geologia, psicologia, antropologia, direito, economia,

O congresso teve uma conferência magna proferido por Robert Fox, professor emérito da Universidade de Oxford e especialista mundialmente conhecido por sua produção em história da ciência contemporânea. O tema apresentado foi “Culturas de ciência e império na Era das Exposições”, em que discutiu a auto-construção de imagens de progresso por organizadores de diversas exposições internacionais nos séculos XIX e XX, bem como como esses ícones dialogavam com a sociedade e entre si. Durante a semana do evento, Robert Fox concedeu uma longa entrevista para o CHC e o IEA, ocasião em que discorreu sobre sua trajetória pessoal dentro da história da ciência e suas instituições, além de fazer considerações oportunas e de grande atualidade sobre este campo nos últimos cinquenta anos. A entrevista e a conferência abrem o dossiê referente ao Simpósio.

Foram selecionados alguns textos de trabalhos completos do evento para este dossiê: Marina Soares trata de Mary Montagu e a vacinação contra a varíola na Inglaterra do século XVII; Nanci Leonzo e Maria José de Almeida discorrem sobre tema pouco frequentado, o do embalsamamento de cadáveres no período imperial brasileiro; Natália Martins e Maria Elice Prestes expõem a contribuição na primeira metade do século XIX do embriologista inglês George Newport para elucidação do papel dos espermatozoides e do líquido seminal na reprodução animal; Paulo Henrique Monteiro, Olga Alves e Cristiano Monteiro, da equipe do Butantan dedicada à história da ciência, contam a trajetória do Centro de Pesquisa e Treinamento em Imunologia de São Paulo, ligado à Organização Mundial de Saúde; a interdisciplinaridade da história da ciência aplicada ao ensino de ciências naturais, em especial física e química, é ressaltada por Lia do Amaral; João Machado apresenta aspectos econômicos e culturais ligados ao Instituto Oscar Freire de Medicina Legal, da USP, na primeira metade do século XX; fechando a parte temática desta edição, Ewerton da Silva trata da medicina tropical nos países de língua portuguesa, focalizando especificamente as doenças do sono e de Chagas no início do século XX.

A seguir, esta edição contém texto de Beatriz Bandeira sobre o “Mecanismo de Anticítera”, espécie de complexo e engenhosos planetário grego cujos fragmentos foram descobertos em 1901 nos restos de um naufrágio ocorrido no século III a.C., e que vêm suscitando pesquisas apaixonadas.

O famoso cientista suíço Leonhard Euler (1703-1787) exerceu desde o século XVIII uma influência duradoura nas pesquisas de física e matemática. Sua intensa atividade de correspondência com sábios de sua época lhe trouxe notoriedade, de tal forma que em matemática o século XVIII foi chamada de “Era de Euler”, graças às suas contribuições em cálculo infinitesimal, funções complexas, teoria dos números, cálculo variacional, geometria e outros assuntos, juntamente com suas aplicações da matemática à astronomia, mecânica e óptica. É menos conhecida sua faceta de tecnólogo, exercida principalmente em projetos na Academia de Ciências de São Petersburgo, em que se consagrou à geografia, artilharia, navegação, construção naval. Dedicou-se também às máquinas hidráulicas e são deste gênero suas publicações de matemática aplicada a líquidos e gases, em que desenvolve a hidrostática e hidrodinâmica, incluindo-se o ensaio sobre o atrito nos fluidos, publicado em 1761 e que aqui se apresenta, em tradução direta do latim por Sílvio Bistafa.

Fecha a edição uma breve referência ao espanhol Jorge Wagensberg, que esteve por diversas vezes no Brasil, e cujo falecimento ocorreu recentemente em Barcelona.

Gildo Magalhães – Editor


MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.5, maio, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.179, n.477 mai./ago. 2018.

Revista IHGB – Número 477

Carta ao Leitor

I – ARTIGOS E ENSAIOS

  • ARTICLES AND ESSAYS
  • Um esculápio brasileiro ignorado: contributo para um itinerário biográfico de Francisco Joaquim de Azeredo (1768-1855)
  • An unknown Brazilian Asclepius: Contribution to a Biographical Itinerary of Francisco Joaquim de Azeredo (1768-1855)
  • Júlio Manuel Rodrigues Costa
  • Debates parlamentares e seus usos pelo historiador
  • Parliamentary debates and their use by the historians
  • Júlio Cesar de Oliveira Vellozo
  • Mônica Duarte Dantas
  • Partidos e eleições no Império do Brasil: o caso da Lei Saraiva
  • Parties and elections in the Empire of Brazil: the case of the Saraiva Law
  • Filipe Nicoletti Ribeiro
  • A Revolução Federalista (1893-1895): guerra civil no Brasil
  • The Federalist Revolution (1893-1895): civil war in Brazil
  • Gunter Axt
  • Criminalidade e violência em perspectiva histórica: mapeamento de dados, reconstrução de estatísticas e dados censitários: 1830-1929
  • Criminality and violence in historical perspective: data mapping, reconstruction of statistics and census data: 1830-1929
  • Ivan Vellasco
  • Cristiana Viegas Andrade
  • Museus e gestão do patrimônio: o caso do Museu do Piauí, Brasil
  • Museums and heritage management: the case of the Museum of Piauí, Brazil
  • Áurea da Paz Pinheiro
  • Samila Sousa Catarino
  • II – COMUNICAÇÕES
  • NOTIFICATIONS
  • Nacionalismo e regionalismo na literatura brasileira
  • Nationalism and regionalism in brazilian literature
  • Roberto Acízelo de Souza
  • Diplomacia a serviço do Império: Duarte da Ponte Ribeiro e a promoção dos interesses da Monarquia nas Repúblicas do Pacífico (1829-1841)
  • Diplomacy at the service of the Brazilian Empire: Duarte da Ponte Ribeiro and the Promotion of the interests of the Monarchy in the Republics of the Pacific (1829-1841)
  • Cristiane Maria Marcelo
  • Hospital Pro Matre: História e Memória
  • Pro Matre maternity hospital: History and Memory
  • Carlos Wehrs

III – DOCUMENTOS DOCUMENTS

  • Cartas do Minho: correspondência familiar para o conselheiro João Pereira Caldas (1789-1793)
  • Letters from Minho: family correspondence to the councillor João Pereira Caldas (1789-1793)
  • Fabiano Vilaça dos Santos

IV – RESENHAS

  • REVIEW ESSAYS Eufrásia e Nabuco
  • Adelto Gonçalves
  • Normas de publicação
  • Guide for the authors

Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil – MAMIGONIAN (VH)

O tão aguardado livro Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil , da historiadora Beatriz Mamigonian, não decepciona. Oferecendo uma nova perspectiva sobre o processo de abolição, o autor enfatiza as experiências e a luta pela liberdade dos africanos escravizados no contexto de negociações de tratados e leis abolicionistas que buscavam acabar com o comércio de escravos no Atlântico. Mamigonian esclarece a conexão entre a história dos africanos escravizados no século XIX; políticas e legislação nacionais relativas à escravidão e ao trabalho livre; e mudanças na política, sociedade, legislação e sistema judicial brasileiro que eventualmente favoreceram a abolição geral da escravidão. Africanos Livresreestrutura assim a narrativa histórica sobre a abolição do comércio de escravos e da escravidão, destacando esforços conservadores para preservar o controle da sociedade sobre o trabalho negro e enfatizando a influência política e cultural dos africanos e seus descendentes na construção da liberdade durante o século XIX.

Os três primeiros capítulos do livro investigam a categoria ‘livre africano’ que surgiu no contexto dos tratados brasileiros e britânicos e a lei de 1831. Mamigonian mostra que nem os tratados que negociaram o fim do tráfico de escravos no Atlântico nem a lei de 1831, que libertou novas chegadas africanas, garantiu a liberdade africana suficientemente. A decisão conservadora de negar cidadania aos africanos; esforços para controlar sua presença e trabalho produtivo no Brasil; ea falta de compromisso político e judicial para fazer cumprir a lei assegurava que os africanos traficados de fatoescravização. Alguns conseguiram defender sua liberdade no tribunal. De um modo mais geral, porém, funcionários e agências governamentais apoiaram os interesses dos comerciantes e proprietários de escravos e evitaram processar os responsáveis ​​pelo tráfico de escravos. Além disso, o trabalho dos africanos que foram libertados pelas autoridades portuárias ou pelo comitê misto brasileiro e britânico que monitorava o comércio ilegal, foi “concedido” a indivíduos ou instituições públicas. Essa prática, semelhante ao sistema de aprendizagem ou servidão contratada de outras sociedades atlânticas, procurou facilitar a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Mas, diferentemente desses sistemas, as concessões brasileiras de mão-de-obra africana raramente impõem ou impõem um limite no tempo de serviço. Como resultado, o Estado brasileiro sacrificou a liberdade dos africanos para favorecer as necessidades dos proprietários de escravos,Mamigonian, 201 , p. 164)

Os capítulos 4 e 5 exploram as condições de trabalho que os africanos livres experimentam. Os beneficiários que tinham o direito de explorar o trabalho dos africanos livres frequentemente os tratavam mal, os ameaçavam com a venda e ignoravam os termos temporários da concessão. A realidade diária dos africanos livres não era, portanto, muito diferente da dos escravos. As condições de vida entre os empregados em obras públicas ou por instituições governamentais eram ainda mais precárias. Forçados a realizar trabalhos perigosos e árduos, muitos morreram antes de poder exigir sua liberdade. Aqui, Mamigonian também examina o contraponto britânico ao sistema brasileiro de subsídios trabalhistas com exemplos de africanos livres resgatados no Brasil por autoridades britânicas e levados, voluntariamente ou não, para trabalhar no Caribe. Suas experiências entre os britânicos, e a sujeição comum ao trabalho forçado sob condições exigentes dificilmente cumpriam a promessa de liberdade. Apesar de sua retórica abolicionista, os britânicos também aderiram ao uso racista do trabalho forçado como instrumento da civilização. Os impérios britânico e brasileiro continuariam a explorar a capacidade produtiva dos africanos para beneficiar economicamente seus súditos brancos.

Nos capítulos 6, 7 e 8, Mamigonian discute a lei Eusébio Queiroz de 1850 e suas conseqüências para libertar africanos e para a continuidade da escravidão. A lei afirmou o firme compromisso do governo e da justiça imperial de acabar com o comércio de escravos no Atlântico. Mas dificilmente questionou a cumplicidade do Estado e da elite com a escravidão criminal de africanos nas duas décadas anteriores (Mamigonian, 2017, p. 284). Eusébio de Queiroz e outros agentes do governo enfatizaram a intolerância judicial ao comércio ilegal de escravos depois de 1850, promovendo o esquecimento público de quaisquer atividades ilícitas anteriores à lei de 1850. Assim, condenaram milhares de africanos a um cativeiro ilegal e reforçaram o apoio do Estado à exploração de escravos. Entre 1854 e 1864, no entanto, os africanos livres continuaram submetendo suas petições de liberdade aos tribunais:Mamigonian, 2017 , p. 322-323). Além disso, suas petições revelaram seus esforços para buscar alguma autonomia, apesar do cativeiro, formando famílias, aprendendo o idioma e tornando-se economicamente ativo por direito próprio. Ironicamente, suas realizações foram usadas no tribunal como prova de que não eram africanos, mas nascidos no Brasil, justificando decisões judiciais que negavam sua liberdade legítima.

Os capítulos finais do Africanos Livres revelam os esforços que o governo fez para prender os africanos livres que tentaram buscar sua liberdade e, inversamente, a luta persistente dos africanos pela emancipação ( Mamigonian, 2017p. 360-361). Mamigonian observa, em particular, a iniciativa de criar uma lista de africanos livres que procuravam proteger os proprietários de escravos daqueles que poderiam tentar questionar a legitimidade de suas reivindicações sobre a propriedade de escravos. Ajudados por abolicionistas, os africanos livres usaram os mesmos registros para argumentar que sua chegada ao Brasil era anterior à abolição do tráfico de escravos no Atlântico. A potencial subversão de tais esforços e a disseminação de noções de liberdade africana perturbaram o estado imperial e as classes proprietárias, que temiam desordem pública e perda de controle sobre as classes trabalhadoras. A vontade política emergente de resolver o problema dos africanos livres fortaleceu os esforços abolicionistas durante os anos finais do século XIX e preparou o terreno para a abolição da escravidão como um todo ( Mamigonian, 2017p. 454)

Beatriz Mamigonian conclui seu livro lembrando aos leitores o ministro Rui Barbosa e a decisão de outro funcionário de queimar listas de escravos e outros documentos relativos à história tardia da escravidão no Brasil. Mais uma vez, procuraram o esquecimento público do passado problemático do Brasil ( Mamigonian, 2017 , p. 454-455). Sua tentativa de resgatar os pecados da nação com fogo promoveu, além disso, uma narrativa histórica sobre a abolição que enfatizava demais as ações da elite política branca e das classes proprietárias. Ao rejeitar essa narrativa e aprofundar a história desse período, Mamigonian recuperou a relevância e a liderança política de outros atores históricos, principalmente africanos.

Referências

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres : a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [  Links  ]

Mariana Dantas – Universidade de Ohio, Departamento de História. Bentley Annex 457, Athens, Ohio, 45.701, Estados Unidos. dantas@ohio.edu.


MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 632 p. DANTAS, Mariana. Africanos Livres: Agentes da Liberdade no Brasil do Século XIX. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central – DUTRA e SILVA (VH)

DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. 304 p. HEIZER, Alda. Natureza e Política: A ocupação de Mato Grosso de Goiás entre 1930 e 1950. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central tem como objetivo apresentar o processo de ocupação de uma região de floresta tropical, mais conhecida como Mato Grosso de Goiás, a partir da análise das políticas de colonização entre 1930 e 1950.

O texto é bem escrito, distribuído em duas partes, ancorado em documentação textual e iconográfica variada, matéria-prima de rigorosa investigação. Privilegia a reflexão sobre os acontecimentos locais à luz de contextos mais amplos e se traduz numa contribuição efetiva “à internacionalização da História ambiental nas Américas” (Dutra e Silva, 2017, p. 16).

Com prefácio de Stephen Bell e apresentação de Donald Worster, ambos professores de universidades norte-americanas e autores preciosos para os argumentos apresentados, o livro propõe uma reflexão sobre como o mito do oeste em Goiás foi construído antes mesmo de se traduzir numa política governamental de colonização e imigração, proposta durante o Estado Novo (1937-1945).

De início, Sandro Dutra e Silva apresenta ao leitor suas escolhas teóricas bem como a opção feita por inserir suas próprias memórias, reforçando seu interesse pela representação do passado. O impacto causado pela cor do primeiro pôr do sol visto pelo autor, ainda menino, no Planalto Central e, mais tarde, ao revisitá-lo, nas descrições do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, de forma proustiana, é, no mínimo, instigante para quem inicia a leitura.

Além disso, para o autor, os sentidos que a paisagem do cerrado tiveram sobre ele são hoje muito mais afetivos e expressão de sua identidade goiana de raízes mineiras. É nesse momento que tem início a aventura do leitor, pelos versos de Cora Coralina, pelas descrições do menino de doze anos que olhava o Cerrado pela janela do automóvel do pai e por sua experiência acadêmica, em 2008, ao participar de um encontro da Sociedad Latinoamericana Y Caribeña de Historia Ambiental (Solcha), em Belo Horizonte – para o autor, um divisor de águas em suas pesquisas sobre a expansão da fronteira agrícola (Dutra e Silva, 2017, p. 29).

O livro oferece uma reflexão sobre o Oeste que ultrapassa a categoria de sertão: o Oeste Eldorado no Brasil central que se opõe a uma noção presente na historiografia brasileira sobre sertão como lugar hostil, terra de índios bravios.

Sandro Dutra e Silva, ao trabalhar fontes variadas, apresenta ao leitor elementos sobre o Oeste como “lugar” de promessas de terras livres, férteis e à disposição de homens e mulheres que se dispusessem a trilhar “a marcha para o Oeste”.

Num exercício constante de situar suas preocupações em um quadro teórico mais amplo no seio da história, e da história ambiental, em particular, o autor busca aproximações e distanciamentos com a tese do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner (1861-1932) sobre o mito americano do começo absoluto, da identificação da marcha para o Oeste norte-americana, tão caros às discussões sobre fronteiras, mobilidade social e migrações, e que não poderiam estar de fora desse tipo de abordagem. O autor traz para a cena os autores brasileiros que se apropriaram em diferentes momentos da temática da fronteira, das reflexões sobre o homem e o mundo natural.

Ao apresentar o caso do Oeste brasileiro e o conteúdo ocupação e da colonização do Mato Grosso de Goiás, a obra traz suas especificidades: a destruição trazida pela expansão para o Oeste, a colonização de desflorestamento, a criação de projetos de cidades “signos do provisório” e a convivência lado a lado de projetos excludentes, espaços de modernidade e conservação, em análises muito bem sucedidas por meio de fontes documentais e vivência pessoal.

Um exemplo é o da cidade de Goiânia e o seu protagonismo no contexto da “marcha para o Oeste”. A cidade moderna, projetada em 1930, para seguir os passos de Belo Horizonte, sua precursora, mantinha traços da tradição rural, fato que causou estranhamento a Lévi-Strauss em sua visita, em 1937, ao testemunhar a convivência do palácio e os carros de boi num mesmo espaço (Dutra e Silva, 2017, p. 127).

Outro momento importante do livro é quando o autor traz à cena o lugar do povo outsider: “o outro lado do rio das almas”, a cidade estigmatizada, Barranca, como era conhecida. Anápolis, Ceres, sede da Colônia Agrícola de Goiás (CANG) e outros centros importantes “irradiadores das políticas de colonização”, estão presentes e são analisados historicamente.

Os personagens dessas histórias que se entrelaçam são muitos e poderíamos citar dentre eles Bernardo Sayão, que permitiu ao autor reconhecer os códigos através dos quais a história foi mediada (Dutra e Silva, 2017, p. 256).

Foi durante a década de 1940 e início dos anos 50 que o estado de Goiás utilizou uma intensa propaganda sobre migração e colonização bem como participou de parcerias com instituições e governos com a finalidade de atrair colonos, tanto nacionais como estrangeiros, para ocupar o território goiano. Período em que várias investidas de ocupação foram realizadas, como foi o caso dos alemães que, no pós-guerra, se instalaram no Paraná, mas que tiveram Goiás como primeira opção.

O livro chama a atenção para a criação de centros urbanos e analisa a formação das cidades na fronteira do Oeste do Brasil, consideradas núcleos de civilização. Barranca é um exemplo. Contrastes muito bem apresentados, como as imagens do baile da elite local no clube, o teatro e a rua, as imagens de Rialma, são contundentes.

Por fim, Sandro Dutra e Silva apresenta em seu livro questões que se localizam na fronteira de diferentes campos do saber e que estão na ordem do dia, como a destruição florestal e a perda da diversidade biológica.

O autor apresenta mudanças e permanências no tempo: não é essa afinal a tarefa a que se devem dedicar os historiadores?

Referências

DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. [ Links ]

Alda Heizer – Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rua Jardim Botânico, 1008, Rio de Janeiro, RJ, 22.470-180, Brasil. alda.heizer@gmail.com.

 

Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro – VISCARDI (VH)

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017. 207 p. PINTO, Surama Conde Sá. Arquitetura do novo regime: O Federalismo brasileiro na Primeira República. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

Nas últimas décadas, a historiografia relativa à Primeira República tem sido enriquecida com diversas contribuições. A vitalidade dessa produção tem provocado importantes deslocamentos de interpretação, sobretudo no âmbito da política, permitindo melhor compreensão do federalismo brasileiro. Há três eixos de renovação. Um deles relaciona-se à revisão do papel das chamadas oligarquias dominantes – São Paulo e Minas Gerais. Foram questionadas as ideias de que a hegemonia dessas oligarquias sustentavase na preeminência da economia exportadora cafeeira e a de que a política do café com leite ditaria a orientação do governo federal. O segundo eixo destaca as dinâmicas específicas de diferentes unidades da federação e suas estratégias para ampliarem os seus espaços políticos no contexto de federalismo desigual, através de tentativas de estruturação de eixos alternativos de poder. O terceiro eixo enfatiza questões de representação, competição política, partidos e voto, desenhando um quadro mais complexo da política na Primeira República, diferente da caricatura de um sistema político marcado pela fraude, violência, clientelismo, ausência de direitos e eternização de oligarquias no poder (Ferreira; Pinto, 2017, p.429-437).

Cláudia Viscardi, professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é figura presente nesse debate. Autora de textos sobre a história política e social da Primeira República, no livro O Teatro das Oligarquias, defendeu que a estabilidade do modelo político da Primeira República foi garantida pela ausência de alianças monolíticas permanentes, fato que impediu, a um só tempo, que a hegemonia de uns fosse perpetuada e a exclusão de outros fosse definitiva (Viscardi, 2001, p.22).

Unidos Perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro, seu novo livro, é mais uma contribuição da historiadora mineira que acrescenta novas perspectivas sobre o período. Trata-se de uma adaptação da tese elaborada para a cadeira de titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Voltado para especialistas e estudantes de graduação, nele Viscardi retoma o tema do federalismo oligárquico para estudar a montagem do regime republicano, no período entre a propaganda republicana e o governo Campos Sales. Sua análise privilegia o âmbito da macropolítica, priorizando atores políticos envolvidos nesse processo, interesses, identidades, pensamentos e atuação. A proposta apresentada articula a perspectiva que compreende o federalismo a partir da lógica de interesses dos estados-atores com a História Intelectual do Político.

O curioso título guarda relação direta com o tema tratado: a construção do projeto republicano na sua principal dimensão: o federalismo. Segundo a autora, esse projeto representava uma ruptura com o passado monárquico, caracterizado por um Estado centralizado em torno do Imperador, e preconizava a descentralização, a autonomia das antigas províncias, optando pelo conflito no lugar do consenso (Viscardi, 2017, p.22).

O conceito de cultura política (Berstein, 1992Cefai, 2001) é um dos principais referenciais de análise. Ao instrumentalizá-lo, Viscardi prioriza a dimensão do discurso, não enfatizando seus demais componentes, para compreender as mudanças ocorridas no país na virada do século XIX para o XX, quando, segundo a autora, teria se consolidado uma cultura política republicana.

Dividido em cinco capítulos, o livro aborda o movimento republicano em uma de suas dimensões (a dos manifestos da propaganda); a normatização constitucional do novo regime (através da análise comparativa das Constituições estaduais e federal); limites da participação política e da cidadania, tema explorado superficialmente pela autora com base em literatura bastante conhecida; as concepções políticas e a ação de Campos Sales, objeto de análise dos dois últimos capítulos, nos quais figura sua maior contribuição.

São três os principais argumentos defendidos pela autora. O primeiro é o de que a normatização do novo regime articulou os compromissos do movimento republicano com os valores compartilhados por seus autores, que incluíam a desvalorização do povo, uma democracia pouco inclusiva, o falseamento da representação, pela construção de um federalismo desigual, e uma cidadania limitada a poucos homens letrados. O segundo é o de que o federalismo brasileiro foi fundamentado em relação direta com os estados, viabilizando a representação dos interesses privados via intermediação dos chefes locais. O último é o de que a chamada política dos estados de Campos Sales limitou-se a resolver os problemas de sua gestão. Na fórmula adotada no período, que implicou em meios de conviver com as dissidências sem colocar em risco a governabilidade, foram menos importantes as reformas regimentais relativas à última fase de depuração das candidaturas ao Parlamento. Os instrumentos mais efetivos foram a redução dos atores políticos através do voto literário, as limitações impostas à monopolização do poder e o desenho de um mercado político com algum grau de competição (Viscardi, 2017, p.190-191).

Baseada em fontes variadas (manifestos republicanos, as Cartas estaduais e federal, o discurso de campanha eleitoral de Campos Sales e a autobiografia do ex-presidente) e em diferentes metodologias (a prosopografia – superficialmente realizada-, a análise de discursos políticos – amparada em instrumentais da vertente britânica da História dos Conceitos – e o método comparativo), os dados apresentados aproximam-se de muitas das análises de Hilda Sábato sobre a construção da cidadania em países hispano-americanos no século XIX (Sábato, 2001, p.1293, 1297).

A despeito da bibliografia utilizada, o livro apresenta ausências importantes (Holanda, 2009), sobretudo relativas ao movimento republicano, às Constituições estaduais (Ferreira, 19891994), à política no Distrito Federal e às eleições (Pinto, 2011Souza, 2013). Isso faz com que algumas afirmações feitas já tenham sido objeto de questionamentos, como a ideia de que o prefeito do Distrito Federal possuía poderes discricionários na política carioca (Pinto, 2011). A obra prescinde também de maior sistematização dos dados apresentados.

Da mesma forma, a História Intelectual do Político proposta poderia ter sido enriquecida com a incorporação dos léxicos empregados pela imprensa e por pensadores políticos, pois há evidente defasagem entre as definições de conceitos encontrados nos dicionários (fonte priorizada pela autora) e a dinâmica dos conceitos no embate político. Esses elementos, contudo, não comprometem a iniciativa.

No momento em a República brasileira está prestes a completar 130 anos, Unidos perderemos convida os leitores a repensar os primórdios do regime e a superar esquematismos de longa data difundidos em livros didáticos. Seu mérito é acrescentar novos itens na agenda de estudos sobre a Primeira República.

Referências

BERSTEIN, Serge. L’Historien et la culture politique. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire, n. 35, juil/sep. 1992. [ Links ]

CEFAI, Daniel. Cultures Politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 2001. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). A República na Velha Província. Rio de Janeiro: Ed. Rio Fundo, 1989. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes. Em Busca da Idade do Ouro: As elites políticas fluminenses na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. Estados e oligarquias na Primeira República: um balanço das principais tendências historiográficas. Revista Tempo, Niterói, vol. 23, n. 3, set./dez., 2017. [ Links ]

HOLANDA, Cristina Buarque de. Modos de Representação Política. O experimento da Primeira República. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2009. [ Links ]

SÁBATO, Hilda. On political citizenship in the Nineteenth-century Latin América. The American Historical Review, vol. 106, n. 4, oct., 2001. [ Links ]

SOUZA, Wlaumir Doniset de. Democracia Bandeirante: Distritos eleitorais e eleições no Império e na Primeira República. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. [ Links ]

PINTO, Surama Conde Sá. Só para Iniciados: O jogo político na antiga Capital Federal. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Mauad X/ FAPERJ, 2011. [ Links ]

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]

Surama Conde Sá Pinto – Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Av. Governador Roberto Silveira, s/n. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, 26.020-740, Brasil. suramaconde@uol.com.br

 

Hanna non chiude mai gli occhi – BALLERRINI (Nv)

BALLERRINI, Luigi. Hanna non chiude mai gli occhi. Narrativa San Paolo Ragazzi, 2015. Resenha de: MASTRETTA, Elena. Hanna non chiude mai gli occhi. Un libro per appassionare i ragazzi. Novecento.org – Didattica dela storia in rete, 24 apr. 2018.

ABSTRACT

Il libro di Luigi Ballerini, Hanna non chiude mai gli occhi, è stato pubblicato nella collana Narrativa San Paolo Ragazzi nel dicembre 2015, raccogliendo da allora consensi di pubblico e critica, oltre a importanti premi[1]. Il testo si caratterizza per essere un romanzo di formazione a tema storico, la Shoah, adatto a giovani ed adulti.

SALONICCO 1943

Hanna e Yosef, due ragazzi ebrei, devono confrontarsi con i progressivi divieti che vengono imposti agli israeliti. Per via di queste disposizioni, la famiglia di Yosef va a vivere in casa della famiglia di Hanna. Dopo un’iniziale diffidenza, i due sviluppano un forte senso di amicizia, che li aiuterà ad affrontare i mutamenti alle loro vite, imposti dalla discriminazione razziale, e – al tempo stesso – i momenti difficili della crescita personale. Le loro storie, scopriranno imparando a conoscersi, sono corse parallele fino a quel momento, quando la reclusione nel ghetto di Kalamaria li ha messi uno accanto all’altra. Ad esempio, hanno entrambi assistito al raduno di uomini, tra cui i loro fratelli maggiori, avvenuto l’11 luglio 1943 in piazza Libertà. Allora reagirono in modo diverso. Mentre Yosef si allontana abbastanza presto non riuscendo ad assistere al terribile spettacolo, Hanna resta fino alla fine. Yosef ammette, infatti, tradendo un senso di vergogna «Appena hanno iniziato a picchiarli io sono scappato via»[2].L’atteggiamento di Hanna in quella situazione invece, restare senza risparmiarsi la vista degli uomini umiliati e sopportando il caldo, chiarisce da subito il titolo del libro, Hanna non chiude mai gli occhi.

GUELFO ZAMBONI E LUCILLO MERCI: LA SCELTA DI ESSERE UMANI

Il libro rende bene la progressione delle difficoltà degli ebrei e delle violenze cui sono sottoposti. Inoltre mette in risalto due personaggi poco conosciuti: il console Guelfo Zamboni e il capitano Lucillo Merci,  che lavorava in consolato in qualità di interprete. Zamboni, compresa la gravità della situazione, si adoperò, avvalendosi anche dell’appoggio e delle capacità di Merci, per salvare quante più vite possibile attraverso i mezzi che l’incarico di console gli metteva a disposizione.

Quando si rese conto di che cosa davvero stesse accadendo agli ebrei arrestati dai tedeschi, il console chiese ai suoi superiori in Italia la possibilità di “largheggiare” nell’attestare la cittadinanza italiana. Risultarono così in possesso di un certificato anche persone che avevano un cognome italiano o che potevano in qualche modo dimostrare un legame con l’Italia. Il tutto nel rispetto di una legge, che il console non violò mai, tutelandosi, per non perdere di credibilità di fronte ai tedeschi, con l’aggiunta dell’aggettivo “provvisorio” sui certificati rilasciati in quei mesi[3].

Questo non sarebbe stato possibile, se chi lavorava a stretto contatto con Zamboni in consolato non avesse approvato questa scelta. In particolare, nel corso della narrazione si cita spesso la scrittura di un diario da parte di Merci, diario effettivamente redatto dal capitano in quei mesi, di cui nel corso degli anni sono stati pubblicati alcuni stralci e oggi conservato a Yad Vashem. Proprio di questi materiali si è servito Ballerini per rendere al lettore la forte collaborazione dei due uomini nel salvataggio degli ebrei, resa in uno scambio tra i due:

«Dobbiamo fare di più». Il proposito di Zamboni gli uscì di bocca perentorio.

«Si. Dobbiamo portare in salvo tutti gli ebrei italiani, senza perderne nemmeno uno»

«Gli italiani, certo, ma non solo…»

Merci lo guardò con profonda ammirazione. Aveva capito perfettamente.

«Sono con lei signor console, ritengo anch’io che non possiamo stare a guardare. Abbiamo un’unica arma nelle nostre mani, la burocrazia! Ci proveremo con i nostri certificati di cittadinanza e i lasciapassare verso Atene. Lei sa di avermi al suo fianco, in piena fedeltà…»[4]

Sono due figure, quelle dei diplomatici italiani, ben delineate e fedelmente riprodotte, accanto a quelle – altrettanto vivide, anche se inventate dei due ragazzi – collegate proprio dal rilascio dei documenti che le loro famiglie chiedono al consolato italiano. [5].

Il racconto si conclude con la partenza dell’ultimo treno di ebrei italiani da Salonicco verso Atene. Un viaggio diverso da quello che molti altri ebrei dovettero affrontare in quel periodo, perché significava la messa in salvo. Un treno sul quale, però, Hanna sale senza Yosef. La mancanza di lieto fine mette i lettori di fronte alla drammaticità delle vicende storiche che fanno da sfondo alla narrazione.

UNA NARRAZIONE EQUILIBRATA

Uno dei pregi del testo, oltre alla scrittura particolarmente piacevole, è “l’equilibrio” con cui la vicenda della persecuzione ebraica viene trattata: sono rappresentati vittime, carnefici, spettatori, ma anche giusti. Questo, accanto all’ambientazione a Salonicco con continui riferimenti alla situazione italiana permette di affrontare, nella lettura con i ragazzi, la complessità della Shoah.

Vengono infatti presentate nel dettaglio due delle numerose famiglie che cercano di salvarsi dalla deportazione tramite i certificati di cittadinanza italiana, quelle di Hanna e Yosef, ma anche la folla di coloro che si accalcano ogni giorno davanti al consolato italiano dopo che si è sparsa la voce della possibilità di essere qui aiutati.

Sono numerosi i passi del testo in cui si descrivono le persone in attesa di entrare al Consolato Italiano per la richiesta di cittadinanza:

«Anche in quella mattina d’inizio aprile, come faceva ormai da tempo, il capitano Merci salì le scale del Consolato che erano appena le sette. Fuori, davanti al cancello, alcune persone si erano già concentrate in attesa. Appena lo avevano visto arrivare, si erano precipitate su di lui. Aveva faticato a tenerle a bada, a convincerle di attendere che Villa Olga, sede del Consolato, aprisse anche per loro »[6].

L’alto numero di certificati di cittadinanza rilasciati dal consolato italiano non passa inosservato e sono descritti anche i tentativi messi in atto dai tedeschi, in questi passaggi descritti a tutti gli effetti come “carnefici”, per vanificarne l’esistenza:

«Il console Zamboni convocò con urgenza Lucillo Merci, di primo mattino. Era stato informato che le autorità militari tedesche non permettevano la partenza verso Atene di un gruppo di ebrei italiani. Eppure era stato tutto predisposto per tempo e con cura. I certificati di cittadinanza erano stati emessi, i tedeschi avevano ricevuto la lista come da protocollo e la tradotta militare era arrivata dall’Italia in orario». […] «Diventerà sempre più dura, si disse Merci mentre procedeva verso la stazione con sottobraccio tutti i fascicoli relativi al gruppo di italiani in partenza. Fra un po’ non ce lo permetteranno più, pensò con dispiacere e un pizzico di preoccupazione, anche per sé»[7].

Allo stesso modo diverse delle figure che lavorano in consolato, non solo quella di Zamboni e Merci, vengono descritte e si mette il luce il ruolo di ognuno di essi[8]. Per la ricostruzione del “sentire” dei personaggi storici presenti nel romanzo, Ballerini si è servito come già accennato delle parti già pubblicate del diario di Lucillo Merci, dell’intervista rilasciata da Zamboni su questi fatti nel 1992, delle parole di suo nipote Luigi Zazzeri ed ha avuto un lungo colloquio telefonico con Dritta Giorno, residente a Salonicco, che nel 1943 lavorava al consolato italiano come interprete[9].

UN EPISODIO POCO CONOSCIUTO: LA STRAGE DI MEINA

La lettura di questo testo è utile anche per affrontare un episodio particolare della Shoah in Italia: quella dell’Olocausto del Lago Maggiore. Tra coloro che sfuggirono alla persecuzione razziale a Salonicco, infatti, ci sono alcuni di coloro che nell’autunno del 1943 vennero assassinati in quella che è la prima strage di ebrei in Italia.

Nella parte del diario di guerra di Lucillo Merci già pubblicata da Marco Nozza[10] si apprende Merci lasciò la Grecia per l’Italia con

«gli ebrei Dottor Modiano Luigi, la moglie Ernestina, il figlio Claudio, il signor Torres Raul e signora Valeria, l’ing. Elia Modiano, l’avvocato Mosseri, la signora Picollo e altri, complessivamente dodici, compreso (dimenticavo) Elia Saias e famiglia, due signore italiane ariane. […] Accompagnai i miei ospiti fino a Venezia, meta del treno. La famiglia Modiano partì per Firenze, gli altri per il Nord.»

Dopo la chiusura del Consolato Generale d’Italia di Salonicco, avvenuta nel dicembre 1943, il capitano continuò a interessarsi della sorte delle persone che aveva cercato di salvare, per quanto non riuscisse, spesso, a recuperare loro notizie o a verificarle[11].  Scrive ancora nel suo diario

“Gli ebrei italiani o dichiarati tali, da me accompagnati in Italia il 1 agosto 1943 fino a Venezia capolinea del treno, si salvarono. La famiglia del Dott. Luigi Modiano medico (moglie e figlio Claudio), proseguì per Firenze, dove si stabilì. Gli altri nove andarono a Meina sul lago di Como. Con l’occupazione dell’Italia settentrionale da parte dei tedeschi dopo l’8 settembre, il 23 settembre furono arrestati dalle SS, trucidati e chiusi in sacchi buttati nel lago. Le salme furono recuperate durante la guerra.”[12]

Merci non poteva controllare queste informazioni. E oggi sappiamo che erano imprecise [13], come risulta dalle più recenti ricerche storiografiche che hanno ricostruito i profili biografici e i percorsi verso la (mancata) salvezza di molte delle 57 vittime dell’Olocausto del Lago Maggiore.

Il libro ci permette quindi di aprire nuovi spazi di riflessione sui temi della responsabilità personale e della persecuzione: oltre a presentarci nel dettaglio episodi della Shoah che hanno stretti legami con la storia italiana prova a dare una risposta alla domanda che spesso ci si pone di fronte all’immensità della tragedia del popolo ebraico: “era possibile fare qualcosa?”. La risposta viene fornita in modo indiretto, facendoci conoscere le azioni di aiuto messe in atto da due italiani che lavoravano in quel momento per il regime fascista, mossi semplicemente dalla constatazione che stava accadendo qualcosa nei confronti di altri essere umani su cui non si potevano chiudere gli occhi, dimostrando che un comportamento dettato dalla coscienza non solo era possibile, ma in alcuni casi fu anche messo in atto.

Note

[1] Ci si riferisce al Premio Fenice, Europa, XIX edizione, attribuito il 3 settembre 2016 a Losanna. Il testo era stato proposto insieme ad altri come finalista da una giuria tecnica composta da Younis Tawfik, Claudio Toscani e Adriano Cioci. 460 lettori residenti in Italia e all’estero (Europa, America e Antartide) hanno decretato il “supervincitore” in presenza di un numeroso pubblico e di tutti gli autori.

[2] Hanna non chiude mai gli occhi, pag. 34

[3] Zamboni rese noto quanto aveva fatto a Salonicco in una intervista solo nel 1992, ormai molto anziano. https://www.youtube.com/watch?v=D2UhszAASME. Quello stesso anno aveva ricevuto una lettera da Yad Vashem. Una lettera ufficiale di ringraziamento per il suo operato. Dal 12 aprile 2010 a Guelfo Zamboni sono dedicati un albero e un cippo al Giardino dei Giusti di tutto il mondo di Milano. Rispetto al riconoscimento dell’operato di Zamboni esistono tuttavia delle incertezze. Ci sono fonti giornalistiche che attribuiscono al console il titolo di “Giusto tra le nazioni”, ma il suo nome non risulta nell’elenco pubblicato da Yad Vashem a gennaio 2017.

[4] Hanna non chiude mai gli occhi, pag. 73

[5] Ballerini stesso spiega nella postfazione che le due figure di ragazzi sono frutto della sua fantasia, ma ispirate a personaggi realmente esistiti: Ester Saporta, l’Hanna che dà il titolo al romanzo, e Alberto Modiano, suo coetaneo e amico, che nel libro diventa Yosef, alunni della scuola italiana “Umberto I” di Salonicco.

[6] Hanna non chiude mai gli occhi, pagina 53.

[7] Hanna non chiude mai gli occhi, pagine 75 e 76.

[8] Un rilievo particolare viene dato alla figura di Carolina, che lavora in consolato come segretaria e di cui vengono descritti il carattere e la modalità di lavoro “ Carolina rispose senza distogliere lo sguardo dal fascicolo dove stava archiviando  i telespressi. . Negli ultimi giorni se ne erano accumulati alcuni che andavano ancora protocollati; era stata troppo occupata con le altre pratiche e non sopportava di vedere quel disordine nelle comunicazioni” pag. 55  […]” «si sieda e mi dica come possiamo aiutarla» ripeté Carolina. Il suo tono dolce aveva il dono di mettere a proprio agio chi parlava con lei”. Pag 60.

[9] A settembre 2016 la famiglia di Lucillo Merci, per il tramite di Luigi Ballerini che fornì l’indirizzo, ha avuto uno scambio epistolare con Dritta Giorno, che nella risposta dimostra di ricordare benissimo il capitano e che rafforza, con una grafia chiara e senza incertezze, l’importanza del ruolo che l’uomo rivestì nel tentativo di dare salvezza agli ebrei di Salonicco. Le lettere sono oggi custodite dal ramo della famiglia che vive a Bolzano. Nei diari di Merci la figura femminile presente in consolato ha il nome di Carolina, che nel testo è stato mantenuto. Il capitano potrebbe però avere usato in questo caso un nome diverso per cautela nei confronti della donna, che non si esclude potrebbe essere proprio Dritta.

[10] Marco Nozza, Hotel Meina, Mondadori, 1994

[11] Anche a Lucillo Merci Gariwo ha recentemente tributato il ricordo https://it.gariwo.net/dl/201702281221_merci.pdf

[12] Marco Nozza, Hotel Meina, Mondadori, 1994, pag. 300.

[13] In vari passaggi del libro di Nozza “Lucillo” è riportato come “Fucillo”, ma non vi sono dubbi sul fatto che l’autore si riferisca al capitano in servizio presso il Consolato italiano a Salonicco. Tra le affermazioni non corrette di Merci rileviamo che Meina si trova sul Lago Maggiore, non sul Lago di Como ed è una delle nove località coinvolte nella strage definita “Olocausto del Lago Maggiore”. Le modalità di occultamento dei cadaveri delle 16 vittime locali, dopo le ultime ricerche storiche, risultano essere differenti da quelle descritte da Merci nel suo diario, così come le date del loro ritrovamento ( alcuni corpi riemersero subito dopo le uccisioni, uno, femminile, parecchi anni dopo. Su questo aspetto si sofferma la testimonianza di Piero Ragazzoni nel documentario Even) . Lucillo Merci è mancato nel 1983 e il testo di Nozza, che riprende in larga misura quanto emerso dal processo di Osnabrück nel 1968 è stato pubblicato nel 1994, quindi Merci non poté consultarlo. Fino a questa pubblicazione e a quella di Toscano dell’anno precedente sul Bollettino Storico Novarese sono mancati studi organici e critici sulla strage, di cui molti aspetti restano ad oggi da indagare. Lo stesso coinvolgimento di Merci nella messa in salvo degli ebrei di Salonicco è del resto rimasto praticamente sconosciuto fino al 2007, quando la direttrice dell’Archivio Storico della città di Bolzano, l’ha scoperto ha dedicato alla sua figura due conferenze pubbliche, una il 24 gennaio 2007 appunto, e l’altra il 24 gennaio 2013. Come tanti, il capitano non aveva comunicato nemmeno ai familiari i dettagli di quanto successo a Salonicco.

Elena Mastretta

Acessar publicação original

[IF]

 

Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas. Londrina, v. 19, n. 1, 2018.

Artigos

Publicado: 2018-04-18

Mare Nostrum – Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo. São Paulo, v.9, n.1, 2018.

EDITORIAL

ARTIGOS

RESENHAS

PUBLICADO: 2018-04-17

Sobre o componente curricular História na BNCC | Renato Janine Ribeiro

Renato Janine Ribeiro Imagem Wikipedia Filosofia no Brasil
Renato Janine Ribeiro | Imagem: Wikipédia

A base nacional comum. Não sou mais responsável por ela, mas preciso esclarecer um fato sobre a base de História. Primeiríssimo de tudo, deixei claro como água que o texto inteiro da Base que foi divulgado NAO era um documento oficial do MEC, mas uma proposta elaborada a convite dele. Portanto, quem o quiser criticar que o faça, mas sem atribuí-lo ao MEC. Banal, isso.

Mas o fato é que o documento de História tem falhas. Tanto assim que retardei sua publicação e solicitei ao grupo que o elaborou que o refizesse. Mas eles mudaram pouca coisa. Mesmo assim, com o enfático alerta de que não era um documento oficial, acabei autorizando sua publicação.

O que eu pensava para a base comum em História era que ela tratasse da história do Brasil e do mundo, sendo que esta não se deveria limitar ao Ocidente e seus precursores, mas incluir – desde a Antiguidade – a Ásia, bem como a África e a América pré-colombiana. Primeiro de tudo, uma história não eurocêntrica.

Segundo, uma história que não se concentrasse, como era costume muito, muito tempo atrás, nos reis e grandes homens, mas tratasse de tudo o que a disciplina foi estudando nas últimas décadas – mentalidades, economia, rebeliões, cultura.

O documento entregue, porém, na sua primeira versão ignorava quase por completo o que não fosse Brasil e África. Pedi que o revissem. Pedi ao FNDE os livros didáticos mais solicitados. Examinei-os. Vi que começavam geralmente no 6.o ano do Fundamental com a Antiguidade, mas nunca se confinavam às “raízes do Ocidente” e sim iam para os outros continentes etc. etc. Não se bastavam nos reis, mas mostravam rebeliões, divergências etc. Eles me pareceram muito razoáveis.

Mas o grupo que elaborava a base não entendia assim. Não havia sequência histórica. Queriam partir do presente para ver o passado. No caso do Brasil, p ex, propunham a certa altura estudar revoluções com participação de escravos ou índios. E deixavam de lado a Inconfidência Mineira! Certamente, porque o espírito dela era bem pouco abolicionista. Solicitei expressamente que ela fosse incluída. Você pode até discordar dos inconfidentes, criticá-los, mas tem que conhecê-los.

Não havia, na proposta, uma história do mundo. Quando muito, no ensino médio, uma visão brasilcêntrico das relações com outros continentes.

Mesmo assim, disse, acabei aceitando que fosse publicada. Mas determinei que alguns dos melhores historiadores brasileiros fossem chamados para discuti-la. Um dos convidados, só para se ter ideia da grandeza dos seus nomes, é Boris Fausto. E as discussões que estão surgindo, algumas delas com críticas duras, deverão ser levadas em devida conta. Aliás, ontem mesmo se reuniu uma equipe de matemáticos para discutir essa área – incluindo, claro, um representante do IMPA. O Secretário Palácios procurou os melhores pesquisadores para essa discussão, que virá junto com todas as outras discussões.

Desculpem-me tratar de assunto que já não me compete. Mas eu o dirigi, e por tudo o que sei o Ministro Mercadante e o secretario Palácios evitarão qualquer viés ideológico neste tema e em outros.

Finalmente: na transmissão do cargo, ontem, deixei claro que pretendia, da base de História, que desse um ensinamento crítico, “mas sem descambar para a ideologia”. É direito de todo jovem saber o trajeto histórico do mundo. Precisa aprender sobre a Renascença, as revoluções, muita coisa. Mas não há uma interpretação única de nenhum desses fenômenos. E é esta diversidade que a educação democrática e de qualidade deve garantir.

Disponível em<https://www.facebook.com/renato.janineribeiro/posts/1170416659639795> Capturado em 14 abr. 2018.

Ars. São Paulo, v.16, n.32, 2018.

EDITORIAL

  • Editorial
  • Dária Jaremtchuk, Liliane Benetti, Silvia Laurentiz, Sônia Salzstein
  • PDF

ENSAIOS VISUAIS

INTRODUÇÃO

ESCRITOS DE ARTISTAS

PUBLICADO: 2018-04-13

Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v.30, n.2, 2017.

Editorial

Apresentação

Dossiê

Artigo Livre

Resenha

Publicado: 12-04-2018

Boletim Historiar. São Cristóvão, n.22, 2018.

Dossiê

Artigos

Publicado: 2018-04-08

O governo da Justiça e os magistrados no mundo luso-brasileiro / Tempo / 2018

Ao apresentarmos a proposta do dossiê O governo da justiça e os magistrados no mundo luso-brasileiro para a Revista Tempo, no ano de 2016, pretendíamos reunir artigos que trouxessem novas perspectivas para a geração mais recente de historiadores interessados na temática. Nos últimos anos, após a retomada dos estudos sobre a administração colonial e seus principais agentes, um novo olhar vem sendo lançado sobre a história social das instituições jurídicas e dos magistrados. Esse renovado interesse pode ser facilmente identificado em razão do aumento gradativo de dissertações e teses sobre o tema, em diferentes programas de pós-graduação no Brasil, bem como em virtude de diversos eventos2 e de publicações recentes3.

As novas pesquisas trilham de alguma forma o caminho aberto com a publicação da obra “Burocracia e sociedade no Brasil colonial”. O trabalho de Stuart Schwartz, publicado originalmente em língua inglesa, no ano de 1973, e reeditado em 2011, foi produzido em um ambiente com grande carência de estudos sobre as instituições metropolitanas e das escassas pesquisas sobre a magistratura portuguesa4. Se, por um lado, a obra de Schwartz sempre representou uma contribuição fundamental para compreendermos o funcionamento do Império português – e suas reflexões acerca das relações entre a sociedade e o Estado serem amplamente difundidas no meio acadêmico brasileiro -, por outro, durante muitos anos sua proposta de olharmos com atenção para a dimensão humana da burocracia judicial permaneceu sem muito seguidores no Brasil.

Entretanto, a partir do incremento das pesquisas sobre a magistratura portuguesa e à luz de novas fontes disponíveis, aos poucos, o campo fértil de possibilidades analíticas, revelado por Stuart Schwartz há quase 40 anos, passou a conquistar novos adeptos. As questões observadas por Schwartz, como a importância do aparelho judicial para a administração, e a larga esfera de poder dos magistrados e sua influência na sociedade colonial, ainda hoje seguem chamando a atenção de um número cada vez maior de jovens pesquisadores brasileiros. Portanto, por inúmeras razões, sua obra, seja pela temática, seja pela metodologia ou pela discussão teórica, segue até hoje influenciando consideravelmente as pesquisas sobre o governo da justiça.

Aos poucos, mas em movimento crescente, dissertações, teses e estudos de casos, começam a revelar “os rostos” dos indivíduos nomeados para as diferentes instâncias jurídicas. Os novos trabalhos buscam compreender a organização da justiça no mundo luso-brasileiro, reavaliando e repensando o papel dos magistrados – juízes de fora, ouvidores e desembargadores – na construção e na manutenção do Império português. No jogo de poderes entre as forças reinóis contra os interesses locais na colônia, os magistrados constituíam a espinha dorsal da monarquia, mas ao mesmo tempo eles formaram um grupo poderoso, cujo interesses eram às vezes independentes. Servindo como representantes do poderio imperial e, ao mesmo tempo, como vetores de grupos ou indivíduos coloniais, o papel dos magistrados era central no funcionamento do império.

Assim, iniciamos o dossiê com um artigo de António Manuel Hespanha que nos brinda com uma exposição sobre o retrato social dos juristas por meio de um arguto exame de vários tratados de deontologia jurídica. Sua análise coloca para os historiadores a relevância de considerarmos nos estudos prosopográficos, o que denomina de contextualização ideográfica, ou seja, a consideração dos discursos que os juristas produziam sobre si próprios e sobre a sua atividade. As questões cuidadosamente tecidas por António Manuel Hespanha, autor cujas reflexões são referências primordiais para qualquer estudo sobre o governo da justiça e o mundo da magistratura no Antigo Regime, chamam atenção para a importância de incorporarmos a história do direito letrado na construção das pesquisas relacionadas à história social dos juristas.

No segundo artigo, Isabele Mello descortina o processo de criação dos três primeiros tribunais de justiça instituídos na América portuguesa. Sua pesquisa desvenda as motivações que levaram as áreas consideradas de vital importância desde o início da colonização – Bahia, Rio de Janeiro e Maranhão – a serem escolhidas como locais privilegiados para receber os tribunais da Relação. Nesse sentido, ao seguir o caminho já trilhado por Stuart Schwartz e Arno Wehling, a autora nos traz uma análise inédita sobre o estabelecimento do Tribunal da Relação do Maranhão. Seu texto abre caminho para repensarmos o papel dos tribunais de justiça, tanto no âmbito do Brasil como no Estado do Maranhão, e busca uma melhor compreensão do funcionamento político e jurídico dessas instituições em relação à administração dos territórios.

O artigo de Patrícia Valim nos revela parte da atuação dos desembargadores do tribunal da Relação da Bahia na condução das devassas da Conjuração Baiana, destacando as complexas relações que poderiam ser forjadas entre os magistrados e o governador-geral na imbricada constelação de poderes do sistema administrativo da capitania. Em seu texto, a autora nos faz repensar a cultura jurídica do fim do século XVIII, bem como as possibilidades de ingerência dos governadores frente à indicação de desembargadores para realização de diferentes diligências no império ultramarino.

Em seguida, o texto de Eduardo Borges aborda o processo de mobilidade social dos indivíduos nascidos na Capitania da Bahia, por meio de uma amostragem das leituras de bacharel realizadas ao longo do século XVIII. O autor nos mostra também como o pertencimento a um tribunal da Relação era uma mercê muito cobiçada, destaca a importância do estatuto de desembargador como capital simbólico almejado por parte da elite baiana, que buscou a distinção social pela via da carreira jurídica. A pesquisa realizada por Eduardo Borges aponta ainda para o número expressivo de indivíduos nascidos na Bahia, e provenientes das elites locais, que ingressaram na Universidade de Coimbra.

Finalizando o dossiê, temos o trabalho de Claúdia Atallah que discute uma outra faceta importante da organização judicial nos trópicos: a aplicação da justiça régia nas capitanias donatariais, vertente ainda pouco explorada na historiografia brasileira. Com o interessante estudo de caso, centrado no processo de aquisição régia da Capitania da Paraíba do Sul dos Campos dos Goytacazes e na atuação do Ouvidor-Geral Matheus Nunes José de Macedo, seu texto nos apresenta a complexa trama de disputas de poder e de negociação entre os agentes régios e as elites locais. Além disso, expõe o papel fundamental do tribunal da Relação da Bahia como arbítrio na resolução dos conflitos entre diferentes autoridades locais.

Esperamos que o leitor encontre nas páginas a seguir textos que lhe permitam aprimorar seu conhecimento sobre a história da administração da justiça e o universo da magistratura. Este dossiê contribui para uma temática instigante e desafiadora de um campo de estudos cada vez mais fecundo de nossa historiografia que, por sua vez, está chamando a atenção, gradativamente, de um número maior de pesquisadores brasileiros.

Notas

1. Os eventos vêm ocorrendo em diferentes localidades do Brasil. Como exemplo podemos citar: o seminário A Justiça no Brasil Colonial (2015), organizado por Maria Fernanda Bicalho (UFF), Ronald Raminelli (UFF), Vírgínia Almôedo de Assis (UFPE) e Isabele Mello (UFF / CAPES), na Universidade Federal Fluminense; e o Colóquio Internacional Justiças, Governo e Bem Comum (2015), organizado por Júnia Ferreira Furtado (UFMG), Claúdia Atallah (UFF / Campos) e Patrícia Ferreira (UFMG), na Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso, vale destacar que, desde a edição de 2014, o Encontro Internacional de História Colonial (EIHC) passou a contar com um simpósio temático denominado “O governo da justiça: poderes, instituições e magistrados (sécs. XVII-XIX)”, coordenado por Antônio Filipe Pereira Caetano (UFAL) e Isabele Mello (UFF / CAPES).

2. Entre as novas publicações podemos destacar: BICALHO, Maria Fernanda; ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de; MELLO, Isabele. “Justiça no Brasil Colonial. Agentes e práticas” (2017); MONTEIRO, Nuno Gonçalo; FRAGOSO, João. “Um Reino e suas Repúblicas no Atlântico” (2017), entre outras obras já citadas nos artigos do dossiê.

3. Hoje, esse panorama já foi significativamente alterado, e temos contribuições importantíssimas de autores portugueses, como António Manuel Hespanha, Antônio Barbas Homem, José Subtil e, mais recentemente, Nuno Camarinhas.

Isabele Mello – Instituto de História da Universidade Federal Fluminense- Niterói (RJ) – Brasil. E-mail: isabelemello@gmail.com

Stuart Schwartz – Departamento de História da Universidade de Yale- New Haven – Estados Unidos. E-mail: stuart.schwartz@yale.edu


MELLO, Isabele; SCHWARTZ, Stuart. Apresentação. Tempo. Niterói, v.24, n.1, jan. / abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

História, democracia e instituições / Estudos Históricos / 2018

As atuais discussões a respeito do funcionamento das instituições nacionais e da qualidade da democracia brasileira motivaram a definição do presente tema da Revista Estudos Históricos, que se dedica a reflexões sobre História, democracia e instituições. A abrangência e importância do tema fez com que recebêssemos artigos refletindo sobre os mais variados temas, a partir de perspectivas bem distintas. Assim, neste número, contamos com textos sobre feminismo e participação das mulheres nas instituições, sobre distintas concepções de democracia na primeira metade do século XX, a partir do ponto de vista de juristas, sobre o processo de redemocratização brasileira na década de 1980 e as disputas em torno da noção de democracia, além de texto sobre o funcionamento do sistema de Justiça criminal brasileiro. Dessa forma, publicamos artigos que cobrem diferentes épocas da histórica republicana brasileira.

O artigo que abre este número da Revista trata de uma Uma história social do feminismo: diálogos de um campo político brasileiro (1917-1937), no qual Glaucia Cristina Candian Fraccaro contribui para reflexões sobre o feminismo – campo de disputas internacionais –, a partir da ótica do mundo do trabalho. Ao longo do artigo, Fraccaro enfatiza a luta das mulheres trabalhadoras por direitos e sua pouca representatividade nas instituições governamentais. O segundo artigo, A democracia em debate: juristas baianos e a resistência ao regime varguista (1930-1945), de Diego Rafael Ambrosini, busca analisar diferentes noções em circulação a respeito da ideia de democracia nas décadas de 1930 e 1940, especialmente a partir da perspectiva da produção intelectual de juristas que atuavam no Instituto dos Advogados da Bahia.

O texto que segue, de Daniel Barbosa Andrade de Faria, analisa o incidente acontecido logo após a manifestação contra o Plano Cruzado II, conhecido como “badernaço”, refletindo sobre as disputas em torno da noção de democracia, fundamentado na documentação do acervo da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Pesquisando sobre a mesma época, Fernando Roque Fernandes analisa o debate parlamentar em torno da Constituição de 1988, no que concerne à pauta da cidadania indígena, quando democracia, cidadania e direitos humanos estavam na agenda de discussões para pensar a “nova democracia” brasileira. Por fim, o artigo de Flávia Cristina Soares e Ludmila Ribeiro que oferece um balanço bibliográfico sobre o funcionamento do sistema criminal brasileiro, registrando o descompasso entre os ideais da democracia e o pragmatismo do funcionamento das instituições de Justiça.

Fechando o dossiê, o número apresenta a entrevista realizada com o cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sobre a história e a atuação política das Forças Armadas brasileiras. Além de narrar sua trajetória acadêmica, com início na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Martins Filho registra o percurso de suas pesquisas sobre a instituição militar, tendo início na atuação política do Exército durante o período ditatorial brasileiro.

Este número é dedicado a Dulce Pandolfi, Luciana Heymann, Monica Kornis e Verena Alberti, acadêmicas fundamentais na história do CPDOC e da Revista Estudos Históricos.

Angela Moreira Domingues da Silva – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos.

Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Paulo Fontes – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos.

Os editores.


SILVA, Angela Moreira Domingues da; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; FONTES, Paulo. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.63, jan. / abr. 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Tecnologia da Informação aplicada aos arquivos / Revista do Arquivo / 2018

Há, com frequência, uma dose de narcisismo da geração em como as novas mídias e as tecnologias de comunicação são avaliadas por contemporâneos; em outras palavras, há uma forte tendência de pensar que nossa geração é aquela que tem o tipo certo de tecnologias que fará tudo mudar[1].
Marko Ampuja

Os arquivos mais organizados, em geral, apropriam-se de técnicas e tecnologias para fins de exercício de suas funções. Os afazeres em arquivos estão vinculados às esferas da comunicação; da movimentação, acondicionamento e guarda de grandes volumes (em geral, documentos e caixas de documentos); e também de tudo o que diz respeito à localização, transporte e disponibilização de documento. Há, ainda, conhecimentos aplicados à preservação de diversos tipos de suportes documentais. Lembremos dos enormes mecanismos de geração de cópias por meio de equipamentos fotoelétricos, de fitas magnéticas, das técnicas para empreender desinfestações ou mesmos dos robôs usados para localizarem e disponibilizarem documentos em grandes depósitos “inteligentes”.

Entretanto, nenhum dos avanços tecnológicos impactou de forma tão decisiva na formação dos profissionais de arquivo quanto aqueles ligados à chamada tecnologia da informação. Na mal chamada “era da informação”, esperar-se-ia que os arquivos recebessem o reconhecimento de sua função estratégica. Afinal, o saber-fazer dos arquivistas não é senão o tratar as informações (e seus suportes) para que estas estejam preservadas e acessíveis a todos.

Mas, não é bem assim o que ocorre. Se, desde a década de 1980, a área dos arquivos parece florescer na prática e na teorização sobre os mesmos, é no âmago dessa chamada “era da informação” que se percebe aqui e ali o desprestígio ou mesmo possibilidades de retrocesso de políticas de arquivos no Brasil. É do alto de sua reconhecida competência técnica que Vanderlei dos Santos conclui em seu artigo, que as instituições vêm repetindo o comportamento dicotômico de afirmar que as informações são recursos estratégicos e, ao mesmo tempo, não investir em programas de gestão de documentos e informações, quer sejam ou não digitais.

De fato, assistir ao desempenho de um autômato ou um sistema automatizado operando costuma causar-nos espanto, sensação de estranhamento e de vulnerabilidade, ou de encantamento. Porém, isso está na base da fetichização da tecnologia no mundo atual. É necessário, no entanto, o esforço para enxergar que por detrás de todo o mecanismo há a imprescindível ação da inteligência e da mão humanas. De elaboradores e de operadores. É o que nos alerta o mesmo Vanderlei Santos: “o certo é que o fator humano é um dos principais responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso de qualquer mudança institucional em que precise ser considerado e, sobremaneira, na execução de políticas de gestão de documentos arquivísticos”

Tecnologia é a expressão permanente e acabada da relação do ser humano com o seu ambiente e se vincula à incessante busca pelo fim do sofrimento causado pelo esforço penoso do trabalho. Entretanto, a evidência é historicamente comprovada: a tecnologia aprisionada para atender aos interesses de uma minoria que a controla e a explora significará a aniquilação humana e não a sua libertação como muitos apregoam.

Por outro lado, a visão equivocada fundada no determinismo tecnológico obscurece o papel estruturante daqueles que detêm o poder de decisão, inclusive sobre as escolhas de equipamentos a serem usados. Conforme afirma José Carlos Vaz, em vídeo disponível nesta edição, a tecnologia é também uma construção social.

Encerro este singelo editorial com as certeiras palavras de Alicia Barnard Amozorrutia:

Para lidar com o imensurável número de dados que se encontram nos servidores das instituições, cujas características, como unicidade, suporte de uma ação ou atividade, a inter-relação com outros documentos e o valor probatório que cumprem ou o qualificam como um documento de arquivo digital, requer profissionais da arquivística, e estes ainda não têm preparo para lidar com esse ambiente, pois é fato que apenas esses profissionais sabem tratar de contextos, conhecem planos de classificação e de temporalidade documental, fatores imprescindíveis para a produção, gestão e preservação de documentos de arquivos digitais. Essa falta leva a consequências desastrosas, tanto para a prestação de contas, quanto para a transparência ou preservação desses materiais a longo prazo.[2] [tradução livre minha].

Boa leitura!

Notas

1. Marko Ampuja, A Sociedade em rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na Teoria Social Contemporânea. Disponível em: http: / / revistaseletronicas.fiamfaam.br / index.php / recicofi / article / view / 295 / 311

2. Trecho extraído da apresentação do livro Archivos electrónicos: textos y contexto II. 1ed. Puebla: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2013, v. 1, p. 111-133. Serie Formación Archivística, organizado por Alicia Barnard Amozorrutia.

Marcelo Antônio Chaves


CHAVES, Marcelo Antônio. Editorial. Revista do Arquivo, São Paulo, Ano III, n.6, abril, 2018. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

História Militar. Rio de Janeiro, Edição 23, Ano IX, Maio 2018.

Edição 23 (Ano IX, Maio 2018)

  • Guerra, índios, mercês e redes sociais na conquista de Cabo Frio (séculos XVI e XVII)
  • Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira
  • O desenvolvimento da marinha brasileira e as relações militares entre Brasil e EUA a partir da missão naval americana de 1922
  • Misael Henrique Silva do Amaral
  • Voando na grande guerra: Os aviadores brasileiros na 1ª Guerra Mundial
  • Carlos Roberto Carvalho Daróz
  • Pax armada na bacia do prata: a política de defesa da armada imperial contra República do Paraguai (1852-1864)
  • Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva e Pedro Gustavo Aubert
  • A contribuição da Federação das Indústrias de São Paulo e da escola superior de guerra para o desenvolvimento da indústria bélica brasileira (1950-1960)
  • Luiza das Neves Gomes e Jamylle de Almeida Ferreira
  • O poder marítimo na sociedade de controle: navios autônomos e o pessoal marítimo
  • Bruno de Seixas Carvalho
  • Livro em Destaque: História da Guerra Civil Russa 1917-1922, de Jean-Jacques Marie

Com Som, Sem Som – Liberdade políticas, liberdades poéticas – VALENTE; PEREIRA (RTA)

VALENTE, Heloísa de A. Duarte; PEREIRA, Simone Luci. Com Som, Sem Som – Liberdades políticas, liberdades poéticas. São Paulo: Letra e Voz/FAPESP, 2016. Resenha de: MOREIRA, Lemos Moreira. Canções, Projetos e Expressões Políticas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.621-627, abr./jun., 2018.

Capaz de produzir sensações, presenças e despertar sentimentos, a música, entre suas várias possibilidades, é capaz de mobilizar indivíduos e grupos sociais. No Brasil, uma série de pesquisadores, como Marcos Napolitano (2002), Miriam Hermeto (2012) e Márcia Ramos de Oliveira (2002), pontuam a capacidade da música e da canção de não apenas representarem um período vivido, mas também como um caminho de reflexão sobre a opinião pública, a circulação de ideias e seu caráter de mobilização social. É nesse sentido que as pesquisadoras Heloísa de Araújo Duarte Valente1 e Simone Luci Pereira2 propuseram a organização da obra “Com Som! Sem som… Liberdade políticas, liberdade poéticas”, publicada em 2016, pela editora Letra e Voz e dividida em quatro partes.

Fruto de parte das reflexões do 10º Encontro Internacional de Música e Mídia (2014)3, o livro é a oitava publicação do Centro de Estudos em Música e Mídia (MusiMid), o qual as organizadoras integram. Articulando pesquisas acadêmicas e relatos de experiência, a coletânea reúne pesquisadores/as que fizeram parte da programação do evento com outros/as convidados/as posteriormente, através de um objetivo em comum: refletir acerca das redes de produção e circulação de músicas ibero-americanas entre os séculos XX e XXI através de discussões que gravitassem em torno das relações entre música, mídia, repressão e liberdade.

A primeira parte do livro, Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…, reune dois textos em torno da noção de liberdade. O primeiro deles, intitulado Arte, criatividade e vida do espírito: O que a liberdade de expressão tem a ver com isso?, é assinado pela pesquisadora Daphne Patai, conhecida principalmente por seus estudos na área de História Oral. Em seu texto, a autora faz uma breve reflexão sobre o status da 1 Doutora em Comunicação e Semiótica, Heloísa de Araújo Valente é especialista nas relações entre música, cultura e mídia em perspectiva interdisciplinar, articulando principalmente campos como a comunicação social, a semiótica da cultura e a música. Atualmente, é professora da UNIP, atuando no Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e é fundadora do Centro de Estudos em Música e Mídia.

2 Doutora em Ciências Sociais, com formação também na área de História, é especialista na área de música, comunicação e antropologia voltada especialmente aos estudos sobre práticas musicais-midiáticas. Atualmente é professora da UNIP, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Cultura Midiática, e vice-coordenadora do Centro de estudos em Música e Mídia.

3 Os Encontros Internacionais de Música e Mídia são promovidos pelo MusiMid anualmente, reunindo pesquisadores e estudiosos dedicados às interfaces entre música e mídia nas mais distintas áreas do conhecimento. Para saber mais: <http://musimid.blogspot.com.br>.  liberdade de expressão na atualidade, tomando como base sua experiência docente. Defendendo a liberdade de expressão, a autora aponta novos grupos e modos de silenciamento desta questão a partir de estudantes que se sentem desconfortáveis em tratar de determinados assuntos. Na visão da autora, a liberdade de expressão teria passado por uma mudança de sentido. Se antes fora alvo de repressão, hoje seria alvo de vigilância por movimentos étnicos e de gênero, especialmente o feminismo, do qual a autora é estudiosa. Já o segundo texto, Tempo de tocar, tempo de cantar, tempo de calar, tempo de inventar: Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil, de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada, propõe uma análise da história da educação musical no país partindo das relações entre múltiplos tempos e focos do ensino de música nas escolas. Sua abordagem visa, para além de relatar como o ensino foi sendo moldado e, em alguns casos, censurado, destacar a confluência de várias temporalidades no modo de ensinar música no final do século XX e início do XXI.

Intitulada Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira, a segunda parte do livro reune três artigos que discutem não apenas a música nacional, mas que dialogam com o plano internacional e/ou global, tomando como fio condutor o universo das linguagens. Lina Noronha, autora de A música como linguagem e os conceitos de música universal e música nacional, discute as relações entre o conceito de música universal e música nacional partindo do pressuposto que a música, enquanto linguagem, não se limitaria apenas ao seu caráter linguístico, mesmo sendo constituída por determinados elementos deste. O foco principal da autora está em analisar a maneira como, no período do “culturalismo”, as representações simbólicas da música seriam fundamentais para compreensão de projetos nacionalistas desde romantismo alemão no século XIX.

Em O papel do compositor em debate na imprensa escrita: Brasil, décadas de 1920 a 1960, André Egg dá seguimento à discussão da linguagem musical relacionada a projetos nacionais, porém focando no caso dos compositores. Partindo da imprensa escrita, o autor afirma que mais do que debater a função do compositor, os veículos levantavam a problemática do que isso significava no cruzamento entre as expectativas políticas e as próprias demandas de construção de identidades nacionais em diferentes contextos. Egg parte da preocupação com a utilização de veículos midiáticos na compreensão das redes de sociabilidades do ramo musical brasileiro a partir do que poderíamos considerar como um estudo voltado à nova história política (SIRINELLI, 2003). Laan Barros segue as mesmas discussões sobre fontes “impressas” em Sambas de Adoniran em HQ: Narrativas transversais na cultura midiatizada, dando atenção especialmente às Histórias em Quadrinhos impressas e/ou digitais. Partindo da análise de discurso e das representações narrativas, este capítulo foca as questões estéticas de tais obras e seus desdobramentos na percepção inserida no contexto das apropriações e da elaboração de novas representações.

A terceira seção do livro, Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas, pode ser considerada como a sua parte mais volumosa em número de textos – um total de cinco. Heloísa Valente abre a seção debatendo uma das principais abordagens da obra: O viés político da música, dando atenção ao gênero da canção de protesto. Em Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido! A canção de protesto como memória midiática da cultura, Valente se propõe a pensar, a partir de canções dos compositores Sergio Ortega e José Afonso, a importância da música nos períodos de repressão de direitos e de tomada do poder no cenário das ditaduras Chilena e Portuguesa. A análise objetiva pensar de que maneira a canção de protesto, dotada por um forte poder evocativo, é incorporada à memória auxiliando na compreensão de emoções e sentimentos vividos em cada contexto em que ocorreria sua performance. Com foco semelhante, a etnomusicóloga Susana Sardo e o compositor José Mário Branco discutem a canção como dispositivo de militância ideológica em casos brasileiros e portugueses. Intitulado Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal na construção das democracias, o texto versa sobre diferentes composições que circularam, em ambos os países, em seus períodos ditatoriais e também durante sua redemocratização a partir de figuras como Chico Buarque, José Afonso e o próprio José Mário Branco. A especificidade deste texto, que o difere da abordagem de Valente, é centrar a análise em cantores que são compositores de suas canções, o que permitiria investigar uma intencionalidade própria manifestada na criação e articulação entre palavra e sonoridade.

Os três artigos seguintes abordam a música popular especialmente no Uruguai e na Argentina. Marita Bordolli, em seu texto Música Popular, migración, exilio, diáspora: uruguay en los siglos XX y XXI, discute as relações entre a música popular uruguaia e os movimentos migratórios, dando foco aos trânsitos culturais frutos dos processos migratórios e da diáspora. Propondo-se a pensar entre múltiplos marcos, pontuando questões desde o século XX, a autora chega até o contexto dos meios digitais, especialmente da web para pensar as músicas uruguaias e latino-americanas em grupos diaspóricos. Mercedes Liska, autora do capítulo Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, um caso paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX, analisa a trajetória de Osvaldo Pugliese, um dos principais nomes do tango argentino, levantando os processos de censura ao compositor, que foi filiado ao Partido Comunista. Uma das principais contribuições do trabalho é pensar a repressão ao artista, não apenas durante a ditadura militar argentina (1960 e 1970), mas igualmente nas décadas de 1940 e 1950 – no governo populista conhecido como Peronismo.

O último texto da seção, Tecnologías del sonido más allá de la urbe, assinado por Miguel García, alia as temáticas dos dois artigos anteriores. Ao analisar as práticas musicais do povo Pilagá, desde a década de 1950 até a atualidade, o autor transita por conceitos como cena musical e performance, chegando a debater, por exemplo, o contexto da década de 1970 com o crescimento do chamado folklore evangelico. Além disso, García, ao aproximar seu recorte temporal da atualidade propõe que, para o povo Pilagá, a tecnologia tem sido vista como uma extensão da sua música e um espaço de experimentação.

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa, última parte da obra, reune dois textos que aliam produção científica e relatos testemunhais. Alfonso Padilha narra sua trajetória durante a ditadura Chilena em La música en una cárcel de la dictadura chilena, especialmente refletindo sobre de que maneira o contexto ditatorial vivido por ele contribuiu para sua visão do potencial político da música. Participante de movimentos comunistas no Chile desde a juventude, e exilado na Finlândia em 1975, Padilla destaca, entre vários pontos, a presença da música dentro dos campos de concentração de presos políticos, criados muitas vezes em estádios de futebol chilenos. Segundo o autor, espaços desse tipo, diferentemente do que se poderia pensar, foram permeados de canções e expressões artísticas inclusive unindo as pessoas ali presas. O professor de composição Paulo C. Chagas, apresenta no texto Observar o inobservável: Música e tortura no oratório digital A geladeira um projeto encomendado pelo Centro Cultural de São Paulo e do Núcleo Hespérides em função dos 50 anos do golpe militar de 1965. Seu foco foi o de expressar a memória e experiência do próprio Paulo Chagas que, aos 17 anos, foi torturado no contexto da ditadura civil-militar brasileira. Em seu texto, o autor faz uma análise que busca demonstrar as relações semióticas entre música e denúncias de tortura ao apresentar a sua obra afirmando que a música tem o poder de tornar visível o invisível. De acordo com o autor, a intenção, com A geladeira, foi de dar visibilidade à tortura, porém reconhecendo que a mesma seja impossível de se observar.

De modo geral, os textos reunidos no livro Com som! Sem som…- Liberdade políticas, liberdades poéticas buscam trazer um panorama geral da música ibero-americana no final do século XX e início do XXI sob o viés político. Alguns de seus textos observam a canção de protesto, a música dentro dos movimentos sociais e denúncias contra regimes de opressão. Outros adotam perspectivas mais gerais, pensam a função política e social dos indivíduos e da música em sociedade, dando especialmente destaque aos papéis sociais de alguns grupos, como os compositores. Contudo, o que permeia a totalidade deste trabalho é sua contribuição polifônica entre música e mídia, especialmente na compreensão desta última como parte da própria construção de ritmos, carreiras e sujeitos artísticos. Deste modo, a canção não é interpretada na obra apenas como uma expressão de arte por ela mesma, mas que cantar/tocar/compor significa estar permeado por sujeitos, projetos e contextos que são também políticos.

Referências

HERMETO, M. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras, sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de. Uma Leitura Histórica da Produção de Lupcínio Rodrigues. Tese de Doutorado – UFRGS, 2002.

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais. RÉMOND, René,. Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista CAPES-DS. Florianópolis – SC – BRASIL. E-mail: igorlemoreira@gmail.com.

Teoria e Formação do Historiador – BARROS (RTA)

BARROS, José D’Assunção. Teoria e Formação do Historiador. Petrópolis: Editora Vozes, 2017, 95p. Resenha de: FERREIRA, Breno Ferraz Leal. A formação do historiador e a especificidade de seu ofício. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.497-501, abr./jun., 2018.

Derivado de um artigo publicado na Revista Teias (v. 11, n. 23, 2010), Teoria e Formação do Historiador visa fornecer subsídios para futuros historiadores recém-egressos dos bancos escolares. Parte da constatação de que há um fosso entre o conhecimento senso comum sobre a história, partilhado por profissionais de outras áreas e curiosos em geral, e o que é ensinado nos cursos de graduação voltados a esse específico campo do saber. Nesse sentido, a obra pretende justamente auxiliar os novos estudantes a tomarem consciência dessa diferença, trabalhada normalmente no primeiro ano dos cursos de História em disciplinas iniciais muitas vezes denominadas por Introdução aos Estudos Históricos. É justamente nesse momento da formação, quando o jovem futuro historiador começa a compreender as discussões teóricas e metodológicas, que são próprias à produção do conhecimento histórico, que se inicia a transição de um mero interessado em história para um historiador profissional.

De autoria do historiador José D’Assunção Barros, professor do programa de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Teoria e formação do historiador é composto por sete capítulos curtos, nos quais sintetizam-se discussões anteriormente desenvolvidas nos três volumes iniciais, dos cinco que compõem, até o momento, a coleção do mesmo autor denominada Teoria da História, também publicada pela Vozes. Sempre ressaltando ser uma obra de caráter introdutório, o autor opta apenas por, numa linguagem didática e simplificada, apresentar as linhas-mestras do conteúdo da obra anterior, propondo-se a servir também como estímulo para a leitura daquela. A intenção é assinalar as principais diretrizes das que considera serem os três principais (não únicos) paradigmas da historiografia do século XIX: Positivismo, Historicismo e Materialismo Histórico. A escolha por essas correntes da historiografia se dá pelo fato de se constituírem, segundo o autor, como discursos historiográficos que almejam o estatuto de ciência, formando-se como as primeiras Teorias da História.

Estes paradigmas são desenvolvidos nos capítulos 5 e 6, enquanto que, no capítulo 7, são feitas as últimas considerações. Nos capítulos iniciais, todavia, o autor centra seus esforços para apresentar questões conceituais que serão depois necessárias para um adequado entendimento dos paradigmas historiográficos. Inicia-se (capítulo 1) com uma discussão em que assinala o momento histórico em que foram concebidas as primeiras Teorias da História (o que é bem diferente das Filosofias da História e, mais ainda, do pensamento histórico em geral), isto é, entre o final do século XVIII e o início do XIX. O autor examina em seguida o que é teoria (capítulo 2), as diferenças entre teoria e metodologia (capítulo 3) e o que é Teoria da História (capítulo 4).

O autor entende as teorias (em geral, não apenas as da História) como modos de se ver o mundo. O conhecimento é, assim, produzido a partir de pontos de vista. Em outras palavras, não há uma via única para a produção do saber. Porém, uma visão de mundo não configura necessariamente uma teoria (as religiões são um exemplo). O autor aponta que a constituição de uma teoria depende também do estabelecimento de conceitos e categorias que são empregados para a leitura de um determinado campo de fenômenos. Nesse sentido, qualquer Teoria da História necessariamente implica na existência de conceitos e noções próprios.

Contudo, antes de analisar propriamente o que é uma Teoria da História, Barros opta por desenvolver uma diferenciação entre teoria e método. Se a teoria se relaciona a um “modo de ver”, uma metodologia implica num “modo de fazer”. O trabalho do historiador compreende também a seleção e o estabelecimento dos materiais com os quais lidará (no caso, chamados de fontes). A escolha do método variará de acordo com a perspectiva teórica a ser adotada e, dependendo do objeto de estudos e dos dados que tiver em mãos, o pesquisador poderá propor entrevistas, construir gráficos, comparar discursos… E deverá também saber interpretar esse material.

Somente a partir do século XIX é que podemos, todavia, falar em Teorias da História, como destaca o autor. Almejando reconfigurar a História dotando-a de um estatuto científico, os historiadores passaram a abandonar o entendimento de que constituía um gênero literário. Essa mudança foi acompanhada da profissionalização do trabalho do historiador, assegurando-se um lugar específico para a História nas universidades. A partir de então, a expressão Teoria da História foi utilizada em diferentes sentidos, referindo-se ao “conjunto global de artefatos teóricos (conceitos, princípios, perspectivas) disponíveis aos historiadores”, aos “grandes paradigmas teóricos” e também a “objetos historiográficos específicos” (como à Revolução Francesa) (p. 44-45).

Os dois capítulos seguintes tratarão justamente dos grandes paradigmas teóricos constituídos no século XIX, todos pensando-se – por diferentes concepções – como ciência: Historicismo e Positivismo (capítulo 5) e Marxismo (capítulo 6). Os positivistas, como ele diz, procuravam se aproximar do modelo das ciências naturais, aspirando à neutralização da subjetividade do pesquisador. A proposta era enxergar as regularidades, leis gerais que operariam por trás das ações humanas, as quais poderiam ser derivadas inteiramente por meio da documentação. Caberia ao historiador “imparcial” deixar os documentos falarem, não havendo qualquer tipo de problematização na produção do conhecimento histórico. Essa pretensão de objetividade, embora não explicitamente rechaçada por Barros, é indiretamente afastada. Já na Introdução, o autor havia argumentado que o pensamento senso comum entende ser a função do historiador narrar “os fatos tal como aconteceram”, isto é, uma história neutra em que se baseiam, por exemplo, os proponentes do “escola sem partido”. Contrapondo-se a esse tipo de pensamento, Barros parte do pressuposto do inescapável relativismo do sujeito. Sobre a velha questão da utilidade da História, sentencia que “a missão essencial do historiador é (…) fornecer à sociedade diversas interpretações problematizadas sobre o que aconteceu” (p. 8). Os fatos são importantes também, mas desde que interpretados pelo historiador. Subjaz o entendimento de que essa é uma resposta possível, não única nem definitiva.

Já os demais paradigmas descartam, como deixa claro, a pretensão à neutralidade. Os historicistas recusam por completo o modelo das ciências naturais. Não veem a subjetividade do sujeito como um problema: pelo contrário, entendem residir nisso exatamente a especificidade da história. A pretensão de se explicar os fenômenos é substituída pela tarefa da compreensão. A grande contribuição do Historicismo para a historiografia é, segundo Barros, a atenção dada à questão da historicidade de todas as coisas. Esse paradigma, como afirma, deu origem a correntes da historiografia que chegaram até os dias atuais e, pode-se dizer, isso não se deu por acaso. O relativismo do sujeito é praticamente um consenso entre historiadores profissionais da atualidade, enquanto que as noções positivistas não frutificaram depois das críticas por parte da historiografia do século XX (especialmente dos Annales), ficando relegadas ao senso comum.

O Materialismo Histórico, por sua vez, também tem na ideia de consciência histórica um ancoradouro, aponta Barros. A partir de Marx e Engels, desenvolveu fundamentos (Dialética, Materialismo e Historicidade) e conceitos (práxis, luta de classes, modo de produção, determinismo, revolução, ideologia) que lhes são inerentes. Algumas das noções nas quais o marxismo é baseado foram, como o autor deixa claro, resultado de ressignificações e reelaborações de ideias e conceitos preexistentes, mas que formaram uma teoria inteiramente nova para a compreensão da realidade. Diferentemente do Positivismo, por exemplo, que atentou principalmente para a política, o marxismo voltou-se principalmente para as bases socioeconômicas das sociedades, e aí reside uma de suas principais contribuições, conforme aponta o autor. As correntes historiográficas marxistas figuram entre as mais importantes até a atualidade, destacando-se a Escola Inglesa, que, reavaliando a teoria marxista precedente, trouxe a cultura para primeiro plano.

Sempre deixando claro que esses paradigmas não são os únicos, a obra pouco avança sobre as mudanças da historiografia nos séculos XX e XXI (pensamos aqui particularmente nas principais críticas feitas à corrente historiográfica positivista pelos historiadores que vieram a fundar a revista dos Annales em 1929 – Marc Bloch e Lucien Febvre – e pelas gerações subsequentes, que, condenando a ideia da neutralidade do historiador, aproximaram a história das ciências sociais e propuseram novos objetos e perspectivas teóricas), nem retroage sobre o pensamento histórico anterior ao XIX. Todavia, cumpre bem o papel a que se propõe, isto é, o de fornecer uma discussão introdutória aos alunos de graduação sobre Teoria e Metodologia da História.

Breno Ferraz Leal Ferreira – Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Estágio Pós-Doutoral na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bolsista FAPESP. São Paulo – SP – Brasil. E-mail: breferreira@gmail.com.

Vozes de Tchernóbil – ALEKSIÉVITCH (RTA)

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 383p. Resenha de: LOPES, Alfredo Ricardo Silva. As Batalhas Perdidas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.611-615, abr./jun., 2018.

O livro da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch ficou quase dois anos na estante esperando para ser lido. Comprei logo que foi lançado no Brasil, em 2016, mas ele esperou algum tempo para ser lido porque eu imaginava que sabia do que travava a jornalista e precisava me preparar. Não foram os prazos acadêmicos ou a preparação de aulas que me mantiveram longe da obra, sentia apenas que não estava pronto para lê-la.

O problema das narrativas quantitativas sobre desastres está na impessoalidade da leitura. Parece que os números não traduzem pessoas ou acontecimentos. Isentos de empatia ou sentimento, vamos passando os olhos por números astronômicos que oferecem pouco significado. Sabia que não encontraria isso no livro de Aleksiévitch, que reuniu uma série de entrevistas com sobreviventes e vítimas do Desastre Nuclear de Tchernóbil, na atual Ucrânia.

No dia 26 de abril de 1986, à 1h23min58, uma série de explosões destruiu o reator e o prédio do quarto bloco da Central Elétrica Atômica (CEA) de Tchernóbil, situado bem próximo à fronteira da Bielorrússia. A Catástrofe se converteu no mais grave desastre tecnológico do século XX.

A obra Vozes de Tchernóbil, que foi lançada mundialmente em 2013 e publicada no Brasil pela Companhia das Letras, venceria o Prêmio Nobel de Literatura em 2015. Na edição brasileira, indicando os possíveis rumos metodológicos da autora, como subtítulo na capa traz: “a história oral do desastre nuclear”. O livro é composto por doze capítulos separados em três partes. Inicialmente, uma “Nota Histórica” é oferecida com recortes de jornais, sites da internet e livros, para dar a magnitude da catástrofe. “Uma voz solitária” é a narrativa da esposa de um bombeiro que acompanhou seu marido em seus últimos dias de vida, no retorno à casa logo após o desastre. A autora também se entrevista no início da obra, por se considerar uma testemunha de Tchernóbil e por, ainda, não conseguir compreender plenamente as consequências do acontecimento para a história da humanidade.

Vozes de Tchernóbil realiza um flerte entre realidade e ficção, sobrepondo e costurando narrativas para estruturar uma dinâmica de leitura semelhante aos roteiros dos vídeo-documentários. Nas três partes centrais da obra – Coro de Soldados, Coro do Povo e Coro das Crianças – são trazidos depoimentos sobre as experiências das mais diversas pessoas sobre o desastre e a vida depois do acidente. No tocante ao aparato metodológico, a autora em momento algum explicita os procedimentos utilizados nas entrevistas, fazendo o aviso na capa da edição brasileira parecer muito mais uma estratégia editorial do que sua metodologia de trabalho. Inicialmente, são colocados os nomes dos entrevistados e depois, sem definir autoria, os dramas pessoais são conectados. A autora raramente explicita as perguntas que geravam as respostas, o que leva a entender que os dramas pessoais e as histórias de sobrevivência surgem espontaneamente. Antes de cada capítulo dos coros são apresentados monólogos com indicação de autoria logo após o depoimento. Contudo, o que se percebe ao longo de todo o livro é uma homogeneização da narrativa pela autora que escolhe, seleciona e monta o seu texto literário.

No final da obra, uma outra “Solitária voz humana” é trazida. Novamente uma mulher, esposa de um liquidador voluntário conta como foi a transformação do homem que amava em um monstro que se liquefazia. “A título de epílogo” destaca como a vida e o capital se rearranjam depois do desastre, quando o turismo atômico passa a ser atração de um país que tem um quinto de sua população vivendo em áreas contaminadas pela radiação. “A batalha perdida” é o título do discurso conferido por Svetlana Aleksiévitch na Academia Sueca de Literatura em 2015, que compõe a edição brasileira lançada após o recebimento do prêmio, em que a autora relaciona o desastre de Tchernóbil à decadência da URSS e defende a desocupação da Ucrânia pelas tropas russas.

Vozes de Tchernóbil é um monumento à memória do desastre. O livro pode ser entendido como sintomático para exemplificar o caminho que a sociedade industrial tomou nos últimos duzentos anos. Svetlana Aleksiévitch dá sentido a uma série de depoimentos que tentam dar conta do inenarrável. No começo do trabalho, a alusão ao Holocausto Nazista e o Gulag Stalinista ditam a dinâmica da composição das memórias que tateiam entre a vontade de lembrar e a necessidade de esquecer.

O sarcófago criado para conter a radiação é entendido pela autora como um monumento da modernidade. Seguindo os passos de Pierre Nora (1993), Aleksiévitch define o sarcófago como um monumento à impotência, um lugar para memória, onde as intencionalidades na criação da obra dão o tom da incapacidade humana de lidar com os riscos da sua criação. A qualquer momento um desastre pior do que o de 1986 pode surgir, caso o mausoléu atômico sucumba.

O questionamento da centralidade da ciência na contemporaneidade é constante nas narrativas dos sobreviventes. As incertezas sobre os riscos da radiação e a incapacidade de tratar os sobreviventes são trazidas a todo o momento nas narrativas. Seja pela perda dos maridos nos relatos femininos ou pelo sofrimento das crianças que nascem deformadas e têm pouco tempo de vida. A Sociedade de Risco (BECK, 2010) se materializa através das histórias de vida, uma sociedade permeada pelos riscos do desenvolvimento tecnológico. A capacidade da jornalista em acessar depoimentos dramáticos se sobressai ao longo de toda obra, contudo a própria dinâmica narrativa nas exposições das entrevistas busca esconder Svetlana, no intuito de colocar o leitor em contato “direto” com os depoimentos.

Uma nova relação da vida humana no planeta também se inscreve a partir do desastre. Tchernóbil é também uma catástrofe do tempo, em que os radionuclídeos espalhados sobre o solo durarão cinquenta, cem, duzentos mil anos. Seguindo os passos de François Hartog (2013), um novo regime de historicidade foi produzido com o desastre. A eternidade surge em comparação com a brevidade da vida humana. A aceleração do tempo que levou ao desenvolvimento da humanidade também conduziu à incerteza e ao medo.

Um dos pontos centrais da montagem das narrativas está na relação do desastre com o desmoronamento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Trezentos e quarenta mil militares, em sua maioria voluntários, foram deslocados para atuar na contenção do desastre. Nenhuma máquina conseguia funcionar nas proximidades do reator, somente homens munidos apenas de pás evitaram que Europa e Ásia sofressem os efeitos da explosão do reator. Estes homens viviam na cultura particular das proezas e da defesa do comunismo, a qual conteve a fumaça tóxica que se espalharia pelo continente.

A falta de uma compreensão mais apurada sobre o que aconteceu é uma marca nas entrevistas. A incapacidade de se produzir uma narrativa que dê conta do horror se confunde com o controle das informações realizado pela antiga URSS. O livro produzido em 2013 terminaria como um redundante ponto de interrogação, marca de uma era de incertezas. Contudo, no discurso à Academia Sueca, incorporado ao livro em 2015, Svetlana Aleksiévitch compara a batalha perdida em 1986 à ocupação russa na Ucrânia e ressalta a ameaça do novo “homem vermelho”.

Ao comparar o perigo vermelho ao imperialismo da Era Putin, a autora perdeu a oportunidade de relacionar Tchernóbil (1986) a Fukushima (2011) e, assim, abriu mão da defesa de uma nova matriz energética para o século XXI, o que pôde garantir a aceitação da obra no Ocidente. Apesar do discurso ao final da edição brasileira, Vozes de Tchernóbil continua sendo uma leitura obrigatória para uma compreensão mais apurada da contemporaneidade.

Referências

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de. Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, n. 10. São Paulo, dez.-199.

Alfredo Ricardo Silva Lopes – Doutor em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UFSC). Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus Três Lagoas (UFMS). Professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – Campus do Pantanal (UFMS). Corumbá – MS – BRASIL. E-mail: alfredorsl@gmail.com.

Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas – WADI (RTA)

WADI, Yonissa Marmitt (org). Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Curitiba: Máquina de Escrever, 2016. Resenha de: BATISTA, Gabriela Lopes. Descentrando lugares de enunciação: narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.24, p.605-610, abr./jun., 2018.

Refletir sobre narrativas de instituições e de pessoas consideradas loucas, ou outras nomenclaturas como “doentes mentais”, “portadores de transtornos mentais” ou “pessoas com sofrimento psíquico” configura-se como intuito principal do livro lançado no ano de 2016, sob o título “Narrativas sobre loucuras, sofrimentos e traumas”. A obra reúne artigos que são resultado dos encontros do projeto “Gênero, Instituições e Saber Psiquiátrico em Narrativas de Loucura”, que contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e teve seu desenvolvimento na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Yonissa Marmitt Wadi, organizadora do livro, é docente do curso de graduação em Ciências Sociais e dos programas de pós-graduação em História, Poder e Práticas Sociais e Ciências Sociais da UNIOESTE. Sua atuação abrange a História Cultural e a História das Ciências, destacando a história da loucura e psiquiatria.

De acordo com a organizadora da obra, os artigos desenvolvem reflexões acerca de narrativas que surgiram em situações que poderiam ser consideradas limítrofes da existência humana, ou que escapariam do que seria instituído no que se nomeia normalidade cotidiana. Tais situações limítrofes, por serem consideradas pertencentes a uma população que se encontra à margem da sociedade, estariam condenadas ao esquecimento, bem como “gestadas em meio a relações complexas que envolvem políticas, poderes e saberes em temporalidades distintas” (p. 16). Dessa forma, os sujeitos dessas experiências trazem à tona categorias como trauma e sofrimento, a partir das condições impostas em instituições de isolamento como manicômios e leprosários, ou de eventos como guerras.

O livro está dividido em oito capítulos que envolvem tais categorias e que concernem à experiência de sujeitos, ou às políticas das instituições que atuam com esses sujeitos, além do prefácio escrito por Rafael Huertas, doutor em Medicina e Cirurgia pela Universidade Complutense de Madri e professor de investigação no Instituto de História, do Centro de Ciências Humanas e Sociais, do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC-Madri). A disposição dos oito capítulos foi organizada de forma que temáticas de abordagem similares ficassem próximas. institucionais. O primeiro, intitulado “Assistência psiquiátrica nacional: narrativas para uma política pública no contexto brasileiro (1940 a 1970)” tem como autores Ana Teresa Acatauassú Venancio e André Luiz de Carvalho Braga, ambos historiadores, no qual discutem a forma como diferentes setores do governo brasileiro ofereceram narrativas para consolidar a implementação de um órgão específico, o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), que pudesse desenvolver ações para um projeto de assistência psiquiátrica, que os autores classificam como “indubitavelmente nacional”. Tais narrativas seriam oferecidas em documentos como relatórios governamentais do acervo da Divisão Nacional de Doenças Mentais (DINSAM), e em textos publicados em órgãos de divulgação mantidos pelo SNDM como os “Arquivos do Serviço Nacional de Doenças Mentais” e a “Revista Brasileira de Saúde Mental”. Já no segundo capítulo, a socióloga Teresa Ordorika Sacristán, no texto “Las historias clínicas: narraciones útiles para el análisis de la psiquiatrización de la sociedad”, reflete sobre reverberações de políticas criadas e suas aplicações nas instituições, utilizando, para tal, documentos clínicos. Em ambos os textos é possível perceber que o discurso médico-psiquiátrico possui códigos próprios e que se legitima por meio da propagação de ideias higienistas e eugênicas.

O terceiro e quarto capítulos direcionam-se às discussões de gênero nos discursos e nas instituições do Brasil e de Portugal. No caso brasileiro, Yonissa Marmitt Wadi e Telma Beiser de Melo Zara apresentam um pouco da trajetória de Stela do Patrocínio em “Problematizando o mundo: vida institucional e subjetivação no “falatório” de Stela do Patrocínio”. Como sugere o título, Stela ficou conhecida nas instituições manicomiais pelas quais passou ao longo de trinta anos pelo seu “falatório”, em que falava poeticamente sobre suas experiências e percepções do universo que a cercava, inclusive das instituições pelas quais passou. Diagnosticada como esquizofrênica, teve seu falatório gravado e, deste, originaram-se pesquisas que as autoras citam e utilizam ao longo do texto, principalmente os trechos em que Stela questionava, por meio de seu falatório, o casamento, papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade, ou mesmo a sua fala invisibilizada devido ao fato de ser mulher e interna. Já no caso português, Tiago Pires Marques em “Intimações do êxtase feminino: dois momentos da cultura da histeria em Portugal” analisa significados atribuídos ao êxtase nos âmbitos da religião e da ciência, e quais são os alargamentos ou alterações dos significados quando concernem à expressão do êxtase de mulheres, conferindo, na ciência, o encaminhamento de um diagnóstico do que por algum tempo fora uma patologia atribuída às mulheres: a histeria.

Em “Rastros de vidas: loucura e interdição civil na Comarca de Guarapuava-PR (1940-1950)”, a historiadora Abigail Duarte Petrini utiliza como fontes quatro processos de interdição, de forma que o objetivo descrito pela autora é “dar densidade às vidas das pessoas ditas loucas e aos conflitos e percalços de sua existência” (p. 121), percebendo, neste processo, como se configuraram as redes de relações sociais que operaram valores na Comarca de Guarapuava. A análise dos processos discute a forma que a vida dos sujeitos se transformou a partir de sua interdição, principalmente quando envolveram bens como propriedades, por exemplo, sejam urbanas ou rurais.

Os três capítulos que encerram a obra partem de discussões que utilizam o sofrimento como categoria de análise e privilegiam o uso de narrativas orais em contextos traumáticos. No sexto capítulo, “Lepra e narrativas de sofrimento na Argentina: considerações sobre o livro Dolor y Humanidad”, José Augusto Leandro e Silvana Oliveira analisam a referida obra escrita e publicada em Buenos Aires no ano de 1937. O livro fora uma iniciativa da instituição filantrópica Patronato de Leprosos e conta com 47 textos que foram selecionados através de um concurso literário. Os autores buscam ao longo do artigo estabelecer que a publicação do livro constituiu-se como um evento político de interesse que julgam imediato, que seria a aderência a um discurso em defesa da implementação de uma lei de isolamento compulsório para hansenianos no país. Além disso, buscam nas narrativas analisar “as dores da vida vislumbrada à margem de um mundo sadio na Argentina da década de 1930” (p. 149). Um ponto a ser destacado no trabalho consiste na afirmação de que a consciência da dor e/ou das motivações que a desencadearam colocaram a pessoa portadora de hanseníase em uma condição ativa, que seria de resistência.

O sofrimento e narrativas orais, relacionados à Segunda Guerra Mundial, estão presentes nos capítulos que encerram o livro. Méri Frotscher e Marcos Nestor Stein analisam o testemunho de uma mulher em “E estava tudo bem até começar a guerra: sofrimentos e ressentimentos em narrativas orais de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial no Brasil”. Katharina H. fora deportada ainda na adolescência da Iugoslávia e enviada à Ucrânia, onde foi submetida a trabalhos forçados, assim como muitos outros que foram enviados para a URSS com o objetivo de reconstruir o país ainda durante a guerra, como parte de um acordo entre Stalin e os aliados. Debilitada e doente, dois anos e meio depois, fora dispensada, reencontrara seus familiares com os quais migrou para o Brasil, estabelecendo-se na colônia Entre Rios, localizada no município de Guarapuava-PR. Os autores analisam três entrevistas feitas com Katharina, realizadas nos anos de 1984, 2010 e 2012. Concluem que é possível perceber a reivindicação do estatuto de vítima, por conta de suas experiências que narram o sofrimento e trauma que remetem à deportação, expatriação e imigração.

Já no último capítulo, intitulado “Narrativas de sofrimento, narrativas de formação: reflexões sobre a autobiografia de uma refugiada da Segunda Guerra Mundial”, Beatriz Anselmo Olinto e Méri Frotsher analisam a autobiografia de Úrsula B., que, assim como Katharina, veio ao Brasil como refugiada da Segunda Guerra Mundial e estabelecera-se na colônia de Entre Rios. Salienta-se que a narrativa do trauma teria um efeito terapêutico de cura individual, lembrando às gerações futuras dos percalços pelos quais passara. A trajetória descrita por Úrsula perpassa não apenas sua vivência de guerra, mas também situa o leitor do cotidiano de sua família antes da guerra, abordando temas como casamento e maternidade. Relata também a experiência de êxodo e de estabelecimento no país que a abrigaria. As autoras finalizam ressaltando a importância contemporânea dos testemunhos, que emitem narrativas públicas de seus sofrimentos e que se relacionam à constituição de identidades que possuem o ressentimento e a melancolia como características.

O conjunto de artigos presente neste livro compreende uma importante diversidade de pesquisas que se dedicam a analisar narrativas de sujeitos que tiveram suas vozes relegadas ao esquecimento devido a fatores como institucionalização, gênero e guerras. Além disso, é pertinente ressaltar a discussão de políticas e implementação de instituições, como forma de compreender as práticas de marginalização e eugenia que Res estigmatizaram sujeitos a quem atribuíram patologias relacionadas à loucura, como a esquizofrenia, a histeria, entre outras. São experiências e emoções que podem ser ouvidas por meio das pesquisas.

Gabriela Lopes Batista – Doutoranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. – Florianópolis – SC – BRASIL E-mail: gabilopes04@yahoo.com.br.

Palavras como balas: Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939) – OLIVEIRA (Topoi)

OLIVEIRA, Ângela Meirelle. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de: BEIRED, José Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.

Durante a Primeira Guerra Mundial, poucos imaginavam que estava em gestação um novo movimento político radical de direita capaz de alterar profundamente a política internacional. Ao tomar o poder na Itália, o fascismo foi a primeira experiência de extrema-direita a mostrar que era possível não só derrotar o status quo liberal mas também barrar a ascensão das forças de esquerda. Em seguida, outros movimentos de direita se alastraram pelo continente europeu, quer tomando o poder quer organizando-se em novos partidos. Para o filósofo alemão Oswald Spengler, vivia-se uma fase histórica em que se divisava a própria decadência do Ocidente. As reações foram tardias, pois apenas nos anos 1930 a direita radical deixou de ser combatida isoladamente pelas forças políticas de cada país e passou a ser objeto de luta de um movimento antifascista internacional que galvanizou um conjunto de forças formado por intelectuais, organizações e órgãos de imprensa.

O livro de Ângela Meirelles Oliveira constitui uma inovadora contribuição para a compreensão do papel da América Latina na cruzada internacional de combate ao fascismo. Com base em minuciosa pesquisa documental realizada em diversos países, o estudo oferece novos elementos a respeito dos movimentos antifascistas do Brasil, da Argentina e do Uruguai por meio de um recorte que privilegia o papel dos intelectuais e a atuação da imprensa. O título da obra, extraído de um verso emblemático – Palabras como balas hay que usar contra vosotros, enemigos! – da poetisa argentina Nydia Lamarque, por si só ilustra o espírito do engajamento que tomava os intelectuais empenhados na causa antifascista.

A metodologia empregada constitui um dos pontos altos da obra. Articulando o método comparativo e a perspectiva transnacional, a autora estabelece recortes criativos, reconstrói conexões e apresenta conclusões que permitem explicar as peculiaridades do antifascismo no Cone Sul e as suas relações com o movimento antifascista europeu. Um aspecto fundamental da abordagem reside no tratamento dos intelectuais como mediadores do processo de circulação de ideias entre os países do Cone Sul e entre estes e a Europa, em especial a França. Sob a vigilância metódica das autoridades policiais, os intelectuais sustentaram a luta antifascista por meio da fundação de entidades, criação de órgãos de imprensa, elaboração de artigos, troca de correspondência, promoção de campanhas e exposições de arte.

Uma tese basilar perpassa o livro pondo em xeque interpretações consagradas na historiografia: a despeito da relevância das organizações europeias e da URSS para o antifascismo latino-americano, este teria se desenvolvido com relativa autonomia em função dos contextos nacionais. Não obstante, a autora reconhece que as organizações criadas na Europa tiveram papel central no engajamento mundial dos intelectuais na luta contra o fascismo. Fundadas por militantes e simpatizantes de esquerda, as organizações europeias gravitaram, não sem tensão, em torno da Comintern e, consequentemente, dos interesses soviéticos em relação à política internacional, a exemplo do Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas e da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários. Um papel de destaque coube ao Comitê Mundial contra a Guerra e o Fascismo por sua influência na Europa e na América, contando com a participação dos mais renomados intelectuais de então – Máximo Gorki, Bertrand Russell, Albert Einstein, John Dos Passos e André Gide entre muitos outros – sob a direção dos franceses Romain Rolland e Henri Barbusse.

A primeira parte do livro é dedicada ao exame das organizações, intelectuais e órgãos de imprensa antifascistas do Cone Sul. No Brasil, as primeiras a serem fundadas foram os Comitês Antiguerreiros de São Paulo e do Distrito Federal, de filiação comunista; e a Frente Única Antifascista, criada na sede do Partido Socialista Brasileiro, com a participação da Liga Comunista Internacionalista, de perfil trotskista. As tensões entre fileiras fascistas e antifascistas não eram pequenas. Em 1934, ambas confrontaram-se fisicamente quando as agrupações antifascistas se concentraram na Praça da Sé, centro de São Paulo, para protestar contra um comício organizado pela Ação Integralista Brasileira, deixando um saldo de seis mortos e dezenas de feridos dos dois lados.

Vinculado à Frente Única Antifascista foi criado o Clube dos Artistas Modernos, que promoveu a famosa conferência de David Alfaro Siqueiros a respeito da técnica muralista em São Paulo, por ocasião da sua passagem pelo Brasil ao retornar do Rio da Prata para o México. Outras experiências, o Clube de Cultura Moderna e o Centro de Defesa da Cultura Popular, associados à Aliança Nacional Libertadora, visavam ambos ao estabelecimento de contato entre os intelectuais e o grande público para a difusão das artes, da ciência e da literatura. Em busca de espaços alternativos para a promoção das artes, em 1935 o CDCP organizou a I Exposição de Arte Social no Brasil, com a participação de Portinari, Di Cavalcanti, Noêmia Mourão, Oswaldo Goeldi, Ismael Nery e Alberto Guignard. Tais entidades exemplificavam o esforço da geração modernista em conferir à arte um sentido ao mesmo tempo vanguardista, popular e comprometido com as questões políticas. Paralelamente, a imprensa foi outro veiculo fundamental de resistência política e cultural antifascista, cuja atividade esteve concentrada em órgãos tais como Revista AcadêmicaDiretrizes e Cultura, Mensário Democrático, além de jornais como Marcha e o diário A Manhã.

Uma das hipóteses da autora é que o funcionamento das entidades antifascistas dependeu das condições políticas de cada país do Cone Sul. No caso do Brasil, a dinâmica política da Era Vargas foi mais tolerante com as atividades da extrema direita, a exemplo do Integralismo, do que com as correntes de esquerda, objeto de sistemática vigilância, perseguição e prisões. A repressão subsequente ao levante de 1935 e ao golpe do Estado Novo apenas aumentou ainda mais as dificuldades do antifascismo, com o desmantelamento do PCB, prisões, fugas e exílio de militantes e intelectuais. A Argentina e o Uruguai foram os destinos mais procurados pelos exilados brasileiros, que transformaram Buenos Aires e Montevidéu nos seus principais centros de atuação no exterior, a exemplo de Carlos Lacerda na sua fase comunista.

A comparação permite constatar que a Argentina abrigou o movimento antifascista mais significativo da América Latina, traduzindo-se em uma maior quantidade de organizações, pessoas e órgãos de imprensa envolvidos do que em outros países da região. Em 1930 o general José Uriburu desferiu um golpe de Estado que derrubou o governo da União Cívica Radical presidido por Hipólito Yrigoyen e implementou uma ditadura filofascista apoiada pelo exército e por milícias uniformizadas, tais como a Legião Cívica Argentina. Carente de suficiente base política, o poder foi passado aos conservadores, que restauraram o antigo sistema de eleições fraudadas, primeiramente sob a presidência de outro militar, o general Agustín P. Justo, e depois o civil Roberto Ortiz, buscando-se manter uma posição de neutralidade diante da contenda entre o fascismo e o antifascismo. Apesar das perseguições contra militantes de esquerda, havia de qualquer modo mais condições que no Brasil para a atividade política, a organização de movimentos e o funcionamento da imprensa antifascista. Um papel relevante, embora fora do âmbito da pesquisa do livro, foi desempenhado pelas coletividades de estrangeiros, notadamente a italiana e a espanhola, cujas atividades antifascistas foram estudadas no Brasil por João Fábio Bertonha e Ismara Izepe de Souza, e na Argentina, por Mónica Quijada e Andrés Bisso.

A segunda parte do livro dedica-se à circulação internacional das ideias e dos intelectuais antifascistas. A autora confere especial atenção à Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores por considerá-la a mais importante associação em prol do antifascismo. Criada primeiramente em Buenos Aires, e em seguida em Montevidéu, tinha como objetivo declarado “lutar pela defesa da cultura”, em outras palavras, combater o obscurantismo embutido não apenas no fascismo internacional, mas também no autoritarismo e na corrupção política praticados pelos governos conservadores. A entidade argentina chegou a contar com 2 mil associados e diversas filiais no interior do país, tendo à frente figuras como Anibal Ponce, Sergio Bagú, Manuel Ugarge, Liborio Justo, Héctor Agosti e Arturo Frondizi, então jovem membro da União Cívica Radical e futuro presidente da nação. O boletim da entidade – Unidad por la defensa de la cultura – somou-se a várias outras publicações regulares que, embora não dedicadas exclusivamente ao antifascismo, o tomaram como causa própria, tais como ClaridadHechos e Ideas, Sur e La Internacional.

Dois interessantes aspectos sobressaem. Em primeiro lugar, a diversidade ideológica das publicações mencionadas – respectivamente socialista, radical, liberal e comunista -, assim como das organizações antifascistas. A autora contesta enfaticamente a tese do caráter essencialmente comunista do antifascismo dos países estudados, assim como do papel determinante da Comintern na sua organização. No lugar disso, identifica a existência de uma matriz liberal no antifascismo argentino e, no caso do Uruguai, aponta uma forte politização, sem vinculação partidária. Em suma, a documentação sugere que o vigor do movimento antifascista nos três países estudados dependeu justamente da heterogeneidade das suas fileiras e da amplitude do arco progressista que reunia liberais, anarquistas, radicais, comunistas, trotskistas e socialistas.

Outro aspecto a destacar é o papel das redes de sociabilidade antifascista que se estabeleceram por meio da imprensa vinculando as publicações da Argentina, do Uruguai e do Brasil entre si e estas com as da França, epicentro internacional do movimento antifascista e sede de revistas como ClartéCommuneVigilance e Front Mondial. O intercâmbio ocorria pela reprodução de artigos e a notificação do recebimento de revistas de outros países, a exemplo de Commune, órgão da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários, sediada em Paris, que recebia praticamente todas as revistas antifascistas sul-americanas. No Cone Sul, as revistas da Argentina e do Uruguai trocavam uma considerável quantia de matérias com as congêneres da França, o mesmo não ocorrendo com as revistas do Brasil, que apenas mantinham contato esporádico com as publicações estrangeiras. Quanto ao intercâmbio intelectual entre os países latino-americanos, apenas existiu de modo rarefeito. Parece ter ficado mais no plano das intenções que da sua efetivação material, apesar dos apelos da portenha Claridad e da baiana Seiva em favor do seu incremento.

O Uruguai merece um lugar especial em razão da relevância das atividades antifascistas em seu território. Em 1933, abrigou o Congresso Antiguerreiro Latino-americano de Montevidéu, que, vinculado ao seu homólogo europeu e à corrente comunista, congregou centenas de delegações sindicais, camponesas, estudantis, de artistas e intelectuais. Não deixa de ser notável a marca deixada por uma ilustre brasileira. Pelo prestígio pessoal e proximidade em relação ao PCB, Tarsila do Amaral foi uma das poucas intelectuais convidadas a proferir uma conferência, e, destoando do tom geral do evento, discorreu a respeito das “Mulheres e a guerra”. Encetando uma contundente crítica ao papel destinado às mulheres pelos governos capitalistas e imperialistas, terminou sob aplausos e conclamou-as à luta antiguerreira. A análise do congresso aponta, ainda, para as divisões intestinas da esquerda e os diferentes conceitos de frente política, evidenciados nas críticas aos trostskistas, na expulsão dos anarquistas e na condenação de figuras como Augusto César Sandino e Haya de la Torre.

Às vésperas da Segunda Guerra, Montevidéu acolheu outro importante evento, o Congresso Internacional das Democracias. Composto por delegações de intelectuais dos países americanos, foi patrocinado por um conjunto de partidos políticos uruguaios. Apesar da exclusão do Partido Comunista Uruguaio, a reunião contou com uma ampla participação de delegados de todas as correntes políticas das Américas comprometidas com o antifascismo, incluindo o comunismo. Estiveram presentes personalidades como Pablo Neruda e Juan Marinello, que se reuniram em dezenas de comissões para discutir assuntos políticos, econômicos, sociais e culturais. Também participou uma delegação brasileira não oficial composta por representantes da Universidade Nacional do Rio de Janeiro e das Mulheres Intelectuais do Brasil, além de brasileiros exilados perseguidos pelo Estado Novo, cujo governo buscou impedir sem sucesso a realização. Para a autora, o evento refletia a desilusão com a Europa e representou a inflexão do antifascismo latino-americano em vista do seu alinhamento às diretrizes da política externa norte-americana que enfatizava a boa vizinhança e a união das forças contrárias ao fascismo. O título do discurso do uruguaio Emilio Oribe era emblemático dessa guinada: “Por que a América imita os europeus? Cultura autóctone e universal.”

A autora dedica especial atenção à Guerra Civil Espanhola, conflito de enorme repercussão na América Latina e divisor de posições da opinião pública, que se mobilizou tanto a favor do governo republicano quanto dos rebeldes nacionalistas. Na Argentina e no Uruguai a solidariedade aos republicanos foi especialmente intensa em razão da elevada taxa de imigrantes espanhóis em relação ao conjunto da população. Por sua vez, tais imigrantes estavam organizados em uma vasta rede de entidades associativas e jornais comunitários que impulsionaram iniciativas em favor da República Espanhola. As remessas de alimentos, remédios, dinheiro e roupas constituíram as ações prioritárias da solidariedade aos republicanos, além da acolhida dos exilados e a pressão política pela não intervenção da Itália e da Alemanha no conflito espanhol.

São examinadas as atividades da Agrupação de Intelectuais, Artistas, Jornalistas e Escritores, cuja seção argentina criou a Comissão Argentina de Ajuda aos Intelectuais Espanhóis. As ações de solidariedade dessa comissão tiveram como ponto alto os protestos e as homenagens decorrentes do fuzilamento de Gabriel Garcia Lorca, ato covarde que foi transformado em símbolo da luta da cultura contra a barbárie fascista. Os intelectuais latino-americanos viam a si mesmos como legítimos partícipes das fileiras republicanas deste lado do Atlântico. A uruguaia Clotilde Luisi, perguntando-se quem formava essa retaguarda, esse verdadeiro exército, guardião da alma espiritual do povo, respondia: os homens de ciência, professores, artistas plásticos, atores, escritores e poetas.

Em contraste, para a autora, a solidariedade dos brasileiros aos republicanos espanhóis não contou com a formação de entidades dedicadas especialmente a tal finalidade. Contando com a permanente repressão do governo Vargas, a solidariedade republicana apenas pode tomar corpo por meio de matérias divulgadas na imprensa antifascista e assim mesmo com restrições em vista da censura. Segundo o escritor Álvaro Moreyra, a morte de Garcia Lorca foi noticiada pelos jornais brasileiros com seis meses de atraso em outubro de 1937. De qualquer forma, a Revista Acadêmica foi a publicação brasileira mais empenhada no apoio aos republicanos. Após a vitória dos nacionalistas, expressou a dor da derrota e a consciência dos limites do papel do intelectual por meio de um artigo de Emil Fahrat: “Nossa dor é maior do que a tua, Espanha, porque fomos vencidos sem termos entrado na luta. Perdão Espanha pelo que não fizemos por ti.”

Apesar de atestar o vigor do antifascismo dos países do Cone Sul, o livro se encerra com a melancólica constatação do fracasso do movimento. Por um lado, os intelectuais desmobilizaram-se em razão do Pacto Germano-Soviético e da sua subordinação à Política da Boa Vizinhança. Além disso, eles se mostraram incapazes de enfrentar as medidas autoritárias dos governos brasileiro, argentino e uruguaio. Talvez seja um quadro por demais pessimista que poderia ser repensado se relacionado ao processo mais amplo de construção da democracia na América Latina. Sabe-se que a formação de uma cultura democrática, pluralista e defensora de direitos humanos básicos nos países latino-americanos é um fato inegável da sua história contemporânea. Porém, sob inúmeros percalços, não se manifestou de forma linear e nem da noite para o dia, constituindo antes um processo ainda inconcluso.

O exame do movimento antifascista sugere que ele contribuiu decisivamente para desenvolver uma cultura democrática que serviu de suporte para combater o autoritarismo em suas várias modalidades depois da Segunda Guerra Mundial. Por sua vez, a cultura política frentista, por vezes tão mal compreendida, pode ter justamente no antifascismo uma das suas raízes mais fecundas na América Latina.

Referências

OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. [ Links ]

2Como citar: OLIVEIRA, Ângela Meirelles. Palavras como balas. Imprensa e intelectuais antifascistas no Cone Sul (1933-1939). São Paulo: Alameda, 2015. Resenha de BEIRED, José Luis Bendicho. Para compreender o antifascismo na América Latina. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 226-231, jan./abr. 2018. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

José Luis Bendicho Beired – Professor da Universidade Estadual Paulista. E-mail: jbbeired@assis.unesp.br.

Resistência: memória da ocupação nazista: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (Topoi)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de: GHERMAN, Michel. “Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália.” Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi v.19 n.37 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2018.

Em seu livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália, publicado pela editora Alameda em 2016, a historiadora Denise Rollemberg propõe uma reflexão relativamente rara em trabalhos produzidos no Brasil: a análise dos lugares de memória da resistência ao nazismo em países que tiveram distintas experiências em relação à ocupação na Segunda Guerra Mundial, França e Itália.

Sua obra se divide em uma apresentação e em mais duas partes. Na apresentação, capítulo “Resistência: o desafio conceitual”, a autora faz um cuidadoso debate acerca das formas de resistência, de sua historiografia e de seus usos políticos. A Parte I, que trata de “Memória e resistência na França” se divide em dois capítulos.

No capítulo 2, “Museus e memoriais franceses”, é feita a análise de monumentos e museus da resistência francesa, discutindo referências teóricas de história e de memória e suas distintas adaptações nos vários casos dos “lugares de Memória” (p. 92) no país. No capítulo 3, “Em algumas horas vou morrer… As cartas de despedida dos resistentes”, a autora analisa cartas de despedida deixadas por resistentes que seriam, às vezes algumas horas depois de escrevê-las, fuzilados. Interessante notar aqui a tentativa de desconstrução de percepções prévias, por vezes consolidadas na memória da resistência, sobre os “mártires” assassinados pela repressão nazista.

Finalmente, na parte II: “Memória e resistência na Itália”, composta por mais dois capítulos, a autora faz uma reflexão sobre o uso da memória no país. O capítulo 4, “Museus e memoriais italianos” é aberto por um interessante debate sobre a própria construção da história italiana, no que diz respeito à memória da resistência. A partir dessa percepção, a resistência aberta ao nazifascismo, de fato estabelecida a partir da invasão estrangeira ao país (em 1943), teria sido iniciada, segundo a narrativa italiana do pós-guerra, já com a subida de Mussolini ao poder. Aqui, exposições e memoriais analisados parecem tentar estabelecer uma história contínua de resistência ao fascismo a partir da década de 1920. No livro, a autora aponta estratégias usadas na construção da memória sobre a resistência na Itália ao utilizar referências da unificação italiana (risorgimento, em fins do século XIX), como forma de estabelecer uma narrativa nacional contra a invasão alemã e o fascismo (p. 236).

Por fim, no capítulo 5, “Os sete fratelli”, o livro trata dos memoriais em homenagem a sete irmãos, militantes contra o fascismo, fuzilados em 1943. Aqui a autora analisa como os irmãos, simpatizantes do comunismo e moradores do interior da Itália, são alçados, no pós-guerra, à condição de símbolo nacional de resistência ao fascismo no país. Ao refletir sobre memoriais e museus em homenagem aos “sete fratelli”, a historiadora estabelece uma reflexão sobre a construção de uma memória sacralizada (p. 235) que transforma o caso específico de resistência e fuzilamento em referência simbólica da luta contra o nazifascismo na Itália.

O livro Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália constitui um trabalho importante por estar baseado em duas propostas de análise distintas e complementares. A primeira delas pretende estabelecer um estudo acerca da ocupação nazista em alguns países da Europa ocidental (França, Itália e Alemanha). Nesse contexto, a ideia de “uma resistência europeia” é desafiada. Para isso, a autora tenta historicizar a noção de resistência, ao propor questões determinadas pelas especificidades da política de ocupação em cada país.

A segunda proposta de análise está relacionada com a construção de uma memória da resistência. Aqui, Rollemberg analisa as narrativas sobre a resistência nos países citados. Essa revisitação da história é feita a partir da reflexão sobre os “usos da memória” na França, na Itália e na Alemanha, apresentando importante contribuição para debates acerca da ideia de memória sobre a resistência ao nazismo (p. 40).

O desafio de estudar museus e monumentos em países que tiveram experiências tão diferentes em suas respectivas relações com a expansão do nazismo na Europa demanda extrema habilidade na análise documental (de museus e memoriais), bem como uma perspectiva metodológica que garanta pertinência aos objetos escolhidos. Acredito que o livro de Denise Rollemberg tem muito sucesso em suas escolhas.

Esse sucesso está relacionado à cuidadosa análise que a autora faz do próprio conceito de resistência. Ao propor uma espécie de “dialética da resistência” (p. 20), Rollemberg afirma que o sentido de resistência deve estar menos vinculado, como propunha uma historiografia mais tradicional, com análises reificadas e absolutizadas da resistência propriamente dita. Aqui, a autora busca uma análise mais aprofundada a partir perspectivas mais críticas da própria resistência. Os diversos regimes escolhidos são analisados em conjunto com as respectivas formas de resistências ao nazismo. Nesse contexto, a historiadora propõe uma dinâmica comparativa entre dois (ou três) países com experiências bastante distintas na guerra: França e Itália (e Alemanha). Apesar de regimes diversos e das diversas formas de resistir, é proposto no livro que as referências de comparação podem ser não apenas possíveis, mas devem ser uma importante referência de pesquisa (p. 19).

Em sua pesquisa a historiadora propõe que seja estabelecida uma relação entre “forma da ocupação” e “forma da resistência”. Assim, o livro relaciona os diversos regimes de ocupação nazista às várias formas de resistência. Segundo a autora, onde as expressões do totalitarismo e da ocupação fossem mais pungentes e completas, mais flexíveis e menos específicas seriam as possibilidades de resistência. Nos casos em que o totalitarismo e a ocupação tivessem menos sucesso, as formas da resistência apareceriam de maneira menos ampla e mais objetiva.

Nesse sentido, países onde estruturas do regime fossem efetivamente hegemônicas, como é o caso da Alemanha, as formas de resistência deveriam ser vistas com lentes que dessem a elas maior expressão. Em países como a França (principalmente no norte do país), as análises sobre resistência deveriam ser feitas com mais exigência e fôlego, afinal, haveria, a princípio, maior espaço social e político para formas mais específicas e objetivas de resistência ao regime ocupante (p. 20).

Ao se debruçar sobre o caso francês, a autora faz um estudo de casos sobre “a história da memória” da resistência à ocupação. Se após a libertação a França produziu uma memória de “todos os resistentes”, essa memória se desloca para outro lugar depois das primeiras três décadas depois da ocupação nazista. Aqui, o livro aponta como referência o lançamento do documentário Le Chagrin et La Pitié, como forma de localizar e justificar a mudança da memória francesa no que diz respeito à resistência de todos. A perspectiva do documentário desafiava a memória oficial francesa, justamente por inverter esses sinais. A tese central do filme era de que, na França, todos foram, de uma maneira ou de outra, colaboracionistas (p. 21).

Nesse contexto, o “mito da resistência”, utilizado por governos do pós-guerra, seria substituído pelo “mito da colaboração”. Em um movimento de “contramemória”, os franceses revisitam as experiências do nazismo com, por assim dizer, sinais trocados. A autora defende que as transformações no tratamento da memória da resistência tenham sido um subproduto das manifestações de maio de 1968. Desse modo, a derrubada de heróis (típica da rebelião dos estudantes) chegava à experiência da resistência na guerra. Importante notar, como bem apontado no livro, que a produção dessa contramemória ocorre em um momento em que a geração dos “resistentes”, ou “colaboradores”, ainda estava ativa na França (p. 26).

Nessa dinâmica de memória e contramemória, a autora nota que outro debate começa a consolidar-se historiograficamente justamente após a publicação de uma importante obra que será referência. Vichy, France escrita pelo britânico Robert Paxton, propunha uma análise mais complexa do fenômeno da resistência. Nesse contexto, se buscava fugir das lógicas absolutas fosse da “nação de resistentes”, fosse da “nação de colaboradores”. De fato, o modelo paxtoniano apresenta uma nova abordagem sobre a história da resistência francesa, ou, segundo Rollemberg “entre os dois modelos de memória, ou entre as duas memórias, a historiografia buscou seu caminho próprio” (p. 23).

A partir desse momento, o livro debate modelos “pós-paxtotianos” da historiografia francesa que vão estabelecer critérios mais claros no que diz respeito às formas de resistência e as formas de colaboração. Afastando-se da noção do “homem providencial” (p. 27) e da naturalização da resistência (ou da colaboração) a historiografia francesa estabelece fronteiras e critérios para discutir formas de resistência na história do país.

A partir de então, a autora propõe que, para além de perspectivas “sacralizadas” das vítimas (p. 9), o “giro historiográfico” francês passa também a lidar com referências mais complexas de resistência. Saindo do debate baseado em figuras heroicizadas (no caso de resistentes) ou vilanizadas (no caso de colaboracionistas), a autora propõe análises a partir das “zonas cinzentas” de atuação (usando o conceito que Laborie pega emprestado de Primo Levi) (p. 9). A disputa entre a vítima sacralizada e a produção historiográfica mais crítica ainda está, entretanto, presente nos monumentos e nos debates sobre a memória francesa, como a autora bem demonstra no decorrer do livro (a abertura da obra com o exemplo do memorial de Jean Moullin ilustra muitíssimo bem esse debate) (p. 9).

Na parte sobre a resistência italiana, a autora trabalha a partir da perspectiva comparativa e estabelece características distintas em relação à resistência francesa. A resistência italiana se inicia com a ocupação nazista no país, justamente após a derrota do fascismo. Ou seja, há uma clara definição temporal e política sobre o início da resistência. Em comparação com a oposição contra o fascismo, a relação com os ocupantes nazistas aliados do fascismo era de combate (p. 44).

Esse período se estabelece quando estruturas de poder nazistas (como a Gestapo e a perseguição aos judeus) (p. 45) começam a se apresentar na Itália. Nesse momento, os opositores históricos ao fascismo italiano iniciam a resistência aos nazifascistas. Assim, a resistência italiana teria surgido, conforme propõe a autora, em 1943, junto à ocupação estrangeira.

Como bem coloca a historiadora, o combate e o apoio dos resistentes italianos é mais militar do que político (em comparação com a resistência francesa), apesar dos vários grupos envolvidos no combate aos nazistas (comunistas, democratas cristãos, socialistas, anarquistas etc.) e de suas perspectivas distintas de combate e de vitória sobre nazifascismo (tese das três guerras, p. 47).

Nesse sentido, inclusive haveria dois ocupantes no mesmo momento, os aliados (percebidos como parceiros na luta contra o nazifascismo) e os nazistas (em sua aliança com os fascistas), que teriam se transformado em inimigos e alvo da resistência italiana na guerra.

Nessa realidade, apresentada como referência comparativa ao que ocorria na França, a Itália vai produzir uma rede de memoriais, museus e monumentos muito específicos, como a autora apresenta na última parte do livro.

O último caso comparativo da obra de Denise Rollemberg é o caso da Alemanha, que por algum motivo não aparece no título e nem é alvo de análise quando a autora fala dos monumentos à resistência, na última parte da obra. Bastante diferente dos dois casos discutidos anteriormente, o caso da resistência na Alemanha é único.

Em primeiro lugar por não se tratar de uma resistência a invasão de potência estrangeira. A “resistência” alemã se estabelece no enfrentamento (ou na oposição) a um movimento social e político do próprio país. O segundo ponto importante está relacionado com o caráter do regime. Ao contrário do que ocorria na Itália e na França, a base social, as possibilidades de delação e o diminuto espaço para resistências criavam um tipo muito específico de oposição ao regime. Conforme proposto pela autora, no caso da Alemanha, o estabelecimento de um regime de alto grau de controle demanda que as análises de possíveis resistências sejam mais flexíveis e amplas. É isso que a autora faz.

A resistência alemã ao regime nazista fez com que ao fim da guerra se estabelecesse uma percepção de “grande élan moral e com um engajamento político intenso” (p. 50) que procurava se opor à “tese da culpabilidade coletiva”. Nesse sentido, se pretendia estabelecer uma espécie de lastro político para que “da outra Alemanha” pudesse surgir uma “nova Alemanha” (p. 51).

A ideia de que seria inviável, dado às expressões totalitárias do regime, que houvesse resistências internas na Alemanha foi largamente aceita, conforme mostra a autora, pelos historiadores do pós-guerra. A ideia de impossibilidade fazia com que se buscassem novas formas de compreensão da resistência alemã no contexto do regime nazista.

Essa perspectiva foi desafiada por Martin Boszat já na década de 1970. Para o historiador, a noção de “resistenze” (reações espontâneas, quase naturais) poderiam descrever as formas de “resistência” na Alemanha. Assim, a simples negação de uma saudação nazista, ou a não participação em desfiles do regime, seriam, em última instância, maneiras de resistir ao regime totalitário. Dessa forma, posicionamentos quase que exclusivamente individuais e “funcionalistas” (em oposição à natureza intencionalista da resistência francesa e italiana, p. 53), seriam as referências possíveis em uma Alemanha dominada pelo nazismo.

Na década de 1980, Ian Kershaw vai desafiar as perspectivas propostas por Boszat. Segundo ele, referências individuais e pontuais de “resistenze” poderiam apagar “zonas cinzentas ideológicas” (p. 54) que foram estabelecidas pelo próprio regime. Aqui, Kershaw chamaria a situação de dissidência, mas não utilizaria o conceito de resistência, sob o risco, segundo ele, de produzir-se heroicização de atitudes individuais. A autora faz, então, um levantamento de tentativas de resistência a partir de movimentos políticos coletivos que, apesar de poucos e dispersos, aconteceram na Alemanha nazista.

Esse debate sobre “culpabilidade coletiva”, “outra Alemanha” e sobre formas individuais e coletivas de resistência vai criar outro modo de produção de memoriais e museus que, infelizmente não são tratados no livro, centrado nos casos da Itália e da França.

A publicação no Brasil de um livro sobre a memória da resistência em países ocupados pelos nazistas na Europa é de fundamental contribuição em nosso país, no qual o debate sobre memória e resistência à ditadura parece encontrar novos desafios políticos e historiográficos.

Referências

ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. [ Links ]

2Como citar: ROLLEMBERG, D Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda, 2016. Resenha de GHERMAN, Michel. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. Uma perspectiva comparativa acerca do uso da memória. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 19, n. 37, p. 232-236, jan./abr. 2018. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org>.

Michel Gherman – Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: michelgherman@gmail.com.

Reference and Representation in Thought and Language – DE PONTE; KORTA (M)

DE PONTE, Maria; KORTA, Kepa. Reference and Representation in Thought and Language. Oxford: Oxford University Press, 2017. 304 pagesp. Manuscrito, Campinas, v.41 n.2 Apr./June 2018.

This book explores many different issues and aspects of the various ways by which we talk, think and represent the world. On the side of language, philosophers and linguists offer new insights on proper names, descriptions, indexicals and anaphora which will interest anyone working on semantics, especially in the direct reference framework. On the side of thought, the book contains chapters on the representation of time, cognitive dynamics, selfhood, and on de se attitudes. Mediating between them is a chapter on salience, a now much discussed notion that concerns both language and thought. In what follows, I present the central elements of each chapter as succinctly as possible, commenting briefly on them when I see fit.

The first two chapters deal with the prototypical referring expressions, i.e., proper names. In “Names, predicates, and the object-property distinction”, Genoveva Martí takes issue with predicativism1. Roughly, predicativists hold that the semantics of names do not differ essentially from that of common nouns like ‘horse’ or ‘refrigerator’. Just like those nouns, names express a property, namely, the property of bearing the name. For Martí, however, predicativism is wrong at a fundamental level: it fails to capture how language expresses the basic metaphysical distinction between objects and properties. The grammatical subject-predicate distinction is not enough. Descriptions in subject position can single out objects all right, but they do so by appealing to their properties. Only truly referring names can abstract objects from their attributes. As she puts it, names are devices for expressing “the separation of the object from its properties – from all of its properties – that is required to distinguish the object, the substance, from its attributes” (p. 16). Predicativism does not give us that.

Martí’s chapter discusses some of the central aspects of direct reference in an engaging manner, and it offers us plenty to discuss despite its short length. One thing needs clarification, though. She appears to conflate the notion of an object (or substance) with that of a substratum (or bare particular). In the passage quoted above, for example, she seems to think that the notion of an object is that of a thing abstracted from all its properties. But this is not, strictly speaking, the notion of an object, but of a substratum. If this is right, then the underlying metaphysics referential semantics would capture is that of substratum-property distinction. But I doubt this is correct. It is prima facie reasonable to be a referentialist and a bundle theorist or a hylomorphist, and both views eschew substrata. But if an object is not something abstracted from all its properties, it is not obvious why predicativists should feel threatened. Her other objection, that predicativism presupposes that names are referential devices (pp. 18-19), however, is much more compelling.

Eros Corazza, in his rich contribution “Proper names: gender, context-sensitivity, and conversational implicatures”, discusses how names can systematically convey more information than merely their semantic content, and how that information is exploited by anaphoric reference. All this without abandoning Millianism, because this information is non-semantic: it is extrinsic or stereotypical, and hence not part of truth-conditional content. For example, the semantic content of ‘Sue’ is just an individual, but the name also imparts the information that its referent is female. That information, however, is cancellable, as illustrated by Johnny Cash’s song A Boy Named “Sue”: Sue’s dubious father does not violate any grammatical or semantic rules by naming him so. Thus, stereotypical information may be allocated in “the category of [Gricean] generalized conversational implicatures” (p. 28). We often exploit stereotypical information in anaphoric reference, as when we say ‘Sue said she isn’t coming today’, even if we are unsure of Sue’s gender. Stereotypical information, then, provides us with default interpretations in anaphoric reference. Corazza also discusses the context-sensitivity of gender-silent names like ‘Chris’ and ‘Kim’, as well as other relevant issues often neglected in philosophy of language. In sum, the chapter is an example of how rich and resourceful – and not the barren landscape oftentimes depicted by its opponents – Millianism can be.

The next three chapters focus on indexicals. As the editors say, “they offer key insights on self-knowledge, action, consciousness, subjectivity, and so on. Understanding them is essential for understanding both reference and representation” (p. 5). In “Indexicals and undexicals”, John Perry offers a new account of good old indexicals like ‘today’ and ‘tomorrow’. In short, Perry analyzes what he calls undexical uses of these expressions. An undexical use occurs when the input for the arguments of the relevant expression does not come from the Kaplanian context (the 4-tuple of agent, time, location and world), but rather from a different source. Consider:

  • (1) Whenever we are in Ireland, the local bars miss us.
  • (2) Wherever one is in Ireland, the local bars are friendly.
  • (3) I’m going to be in Cushendale next week. The local bar is very friendly.

In (1), the input location for ‘local’ comes from the context of the utterance, and so ‘local’ functions indexically. In (2), the input is provided by the quantifier ‘wherever’, and so ‘local’ functions like a bound variable. In (3), the antecedent sentence provides the relvant location for ‘local’, and so it is used anaphorically. Thus, ‘local’ is used undexically in (2) and (3). Perry argues that the same phenomenon occurs with other indexicals like ‘past’ and ‘tomorrow’: when their inputs are supplied by the context, they function indexically; when not, they function undexically, as in ‘Never put off until tomorrow what you can do today’ (this example is discussed at length). Also, he points out that expressions have a default indexical use when they are normally used indexically rather than undexically (e.g. ‘today’). In the final part of the chapter, Perry discusses the cognitive advantages of undexical uses and how they are based on default indexical uses. He also introduces the concepts of roles and of role linking, and claims that intelligent life is based on them (p. 53). Unfortunately, his discussion is rather brief for too deep an issue; it would definitely benefit from a longer treatment elsewhere.

Kent Bach’s “Reference, intention, and context: Do demonstratives really refer?” defends the unorthodox view that demonstratives (e.g. ‘this’ and ‘that’) do not have semantic reference, and hence are not genuine context-sensitive expressions. For Bach, there is a fundamental difference between demonstratives and automatic indexicals like ‘I’ or ‘today’. Automatic indexicals are genuinely context-sensitive and semantically refer because their meanings suffice to determine reference as a function of context. They refer on their own, so to speak. Demonstratives do not. Their meanings are insufficient to determine reference; at most, they restrict what can be literally referred to. For instance, the meaning of ‘that dog’ restricts reference to dogs, but it cannot determine a particular dog by itself. In Bach’s terms, we refer by an expression when the expression itself is able to refer; we refer with an expression when we use it merely as an aid to reference. Because demonstratives do not have semantic reference, we only refer with them, not by them. The leading alternative to this picture is semantic intentionalism. Basically, semantic intentionalism holds that the meanings of demonstratives are sensitive to speaker intentions, and that these intentions make demonstratives semantically refer2. However, Bach argues, speakers only intend to refer with a demonstrative; they do not also intend for the object to be the semantic value of the demonstrative. The first intention has no semantic relevance, and thus cannot help intentionalism; the latter would make it work, but it is simply not part of the mechanics of demonstrative reference.

Bach’s thesis has serious implications for standard truth-conditional semantics, for demonstratives would not make any determinate contribution to semantic content. He suggests that the same problem plagues “other putative context-sensitive expressions and constructions, such as gradable adjectives, epistemic modals, predicates of personal taste, relational nouns, genitive phrases, noun-noun pairs, and quantifier phrases” (p. 59). His argument, then, has far-reaching consequences for the debate on contextualism. I wonder, however, whether it affects the so-called Bare-Bones theory of demonstratives3. Basically, it holds that the context provides objects, not intentions, as inputs for demonstratives. Bare-Bones semantics, then, is intention-free, both in context and in character. Hence, it is not obvious that Bach’s argument applies to it as well.

In “Semantic complexity”, Maite Ezcurdia offers an insightful discussion of what distinguishes referring from quantificational noun phrases. The standard distinguishing criterion is that referring expressions are rigid by their nature, whereas quantificational expressions are not. Stephen Neale adds another criterion: referring expressions must also be semantically unstructured. This is what Ezcurdia calls the “noun phrase thesis” (NPT). For NPT, noun phrases are either semantically unstructured rigidly referring expressions or semantically structured restricted quantifiers. But what about complex demonstratives (e.g. ‘that man in the corner’)? They seem to refer, but their form strongly resembles that of descriptions. Are they referring or quantificational? For Neale, they are referring. Yet, if NPT is true, they must be semantically unstructured, and hence the nominals contained in them are semantically otiose. For Ezcurdia, however, this is implausible. She argues that we have no good reasons to hold NPT, and that complex demonstratives can be both referring and semantically complex. She claims that we must distinguish two kinds of semantic complexity: one, exhibited by quantificational expressions, shows up in the truth-conditions; the other, exhibited by complex demonstratives, stays only at the level of linguistic meaning. These two kinds of complexity are related to the two semantic roles nominals can play in noun phrases: in quantificational phrases, their role is predicative, i.e., they restrict the range of the quantifier; in referring phrases, their role is individuative, i.e., they determine the extension of an expression for further predication. Hence, the nominals contained in complex demonstratives are not semantically otiose; they just have a different semantic function.

Ezcurdia’s chapter is rich, well-argued and generous to Neale’s thesis. The only thing I want to point out is that the difference between predicative and individuate roles for nominals could have been spelled out in a bit more detail. Ezcurdia claims that nominals in complex demonstratives are not predicative because “they are not saying something about an object that an expression […] has previously selected. Rather they aid in the selection of the object itself […]” (p. 81). But the nominals in a description in subject position seem to be doing this as well. In other terms, they too select an object so that the grammatical predicate can ‘say something about’ it; they just do it by a different semantic mechanism. In a sense, then, they are also individuative. Thus, the notion of ‘not saying something about a previously selected object’ seems too general to distinguish the individuative role from the predicative role.

In the chapter “Donnellan’s misdescriptions and loose talk” Carlo Penco argues against “the standard view” of definite misdescriptions. According to this view, we cannot state something true in a referential use of a definite description if the description fails to fit; whatever truth is conveyed is conveyed by implicature. Penco, however, thinks this is mistaken: we can indeed state a truth even if nothing fits the description. He calls this thesis “Donnellan’s intentional strong claim” (DISC), and offers a defense of it. Donnellan’s insight, according to Penco, is that referential uses involve a type of social intention, an “intention to use a descriptive content fit for the context of utterance” (p. 112). This intention cannot be divorced from what speakers should expect their audience to understand in the relevant context. And, crucially, this intention is part of what is said, of what is stated, and not merely of what is implicated. Hence, Penco claims, we can already find in Donnellan a theory of loose talk, as discussed by Sperber and Wilson (1986), and a rejection of the Gricean “two-stage” analysis according to which we state a falsity and implicate a truth. As Penco notes, this reading makes Donnellan a precursor of contextualist ideas. Based on Donnellan’s isights, Penco argues that “what is said by a referential description depends on the grade of looseness required by the context” (p. 119), and that “looseness is motivated by the pursuit of relevance” (p. 115). All in all, it does not matter whether Penco’s reading of Donnellan is accurate or not; his proposal is original and interesting in its own right and deserves further discussion.

The linguist Yan Huang is the author of the next contribution, entitled “Pre-semantic pragmatic enrichment: The case of long distance reflexivization”. Consider this sentence:

  • (4) *John1said that Bill loved himself1

In English, (4) is ungrammatical: the pronoun cannot be bound by ‘John’. However, in languages such as Japanese, Chinese and modern Greek, for example, this long-distance binding is allowed. That is, reflexives can be systematically bound outside their local syntactic domains. Marshalling evidence from a variety of languages, Huang explains the phenomenon of long-distance reflexivization with his version of the neo-Gricean pragmatic theory of anaphora. In broad strokes, he argues that long-distance binding is “pragmatically enriched for reference pre-semantically” (p. 126), and thus helps determining what is said.

In “The interplay of recipient design and salience in shaping speaker’s utterance”, Istvan Kecskes employs his sociocognitive approach (SCA) to account for the mechanisms of speaker’s utterance production. Very roughly, SCA aims to integrate and explain the relation between the individual traits (prior experience; salience; egocentrism; attention) and the social traits (actual situational experience; relevance; cooperation; intention) that are brought to bear in communication exchanges. More precisely, Kecskes wants to show how the interaction between subconscious salience and recipient design – the model a speaker builds of the hearer’s relevant knowledge in the context – shape speakers’ production, and why “speaker-hearer rationality should include not only cooperation but egocentrism as well” (p. 161). The concept of salience has recently drawn a lot of attention in various debates – including in the debate about indexicals and demonstratives -, and Kecskes makes a valuable contribution to our understanding of it.

In the following chapter, “New thoughts about old facts”, María de Ponte and Kepa Korta point out what they take to be some mistakes in Arthur Prior’s argument against B-theories of time (i.e. theories holding that pastness, presentness and futurity are not objective features of reality). The gist of Prior’s argument – and of many others like it – is that B-theories offer “no grounds for tensed thoughts and tensed emotions” (p. 164). Prior asks us to consider which of the following sentences we would use after a root canal operation:

  • (5) Thank goodness the root canal is over [now].
  • (6) Thank goodness the date of the conclusion of the root canal is Friday, June, 1954.
  • (7) Thank goodness the conclusion of the root canal is contemporaneous with this utterance.

For him, only (5) is adequate. Why? Because only the proposition expressed by (5) involves the property of being over (an A-property). Thus, to make sense of why we say (5), and not (6) or (7), we must count A-properties as objective features of reality. In short, Ponte and Korta read Prior’s argument as being committed to three theses:

  • i. Utterances (5)-(7) express different propositions.
  • ii.Utterances (5)-(7) are associated with different thoughts.
  • iii.The proposition related to utterance (5) and its associated thought require the existence of an A-property of events (p.170).

Ponte and Korta partly agree with (ii), but reject (i) and (iii). First, being referentialists, they claim that sentences (5)-(7) express the same proposition. Nevertheless, the way in which (5)-(7) express this proposition is different. As they put it, these sentences “are associated with different motivating thoughts (some of them A-thoughts, others B-thoughts) and present different cognitive routes for their respective audiences” (p. 172). They have different cognitive significance, but the same referential content. This is why they can express different thoughts. Second, Ponte and Korta argue that the move from the fact that we have tensed thoughts and emotions to the reality of tensed properties is unjustified and superfluous. In sum, their chapter is an attempt to clarify Prior’s argument and undermine its supposed ontological import by showing how the puzzling phenomenon can be explained by a more sophisticated epistemic and semantic theory. In fact, it is hard to see how linguistic and epistemic considerations can reveal something about the nature of time. Ponte and Korta’s thorough effort to untangle these issues is a welcome antidote to this sort of idea.

In “Cognitive dynamics”, François Recanati develops and clarifies several aspects of his influential theory of mental files. In broad strokes, Recanati’s view is that mental files can play some of the roles of Fregean senses: they determine reference, they explain cognitive significance, and they enable coreference de jure. They determine reference relationally, i.e., in virtue of standing in some relation to the file’s reference, and not satisfactionally. This allows them to contain misinformation and still refer to the same thing. The different cognitive significance of ‘Hesperus is Hesperus’ and ‘Hesperus is Phosphorus’ is explained by the deployment of different files: in the first case, the subject deploys the same file twice, while in the second two distinct but coreferring files are deployed. Finally, coreference de jure is enabled when the subject deploys the same file in a chain of reasoning: it explains why the inference from ‘Hesperus is bright’ and ‘Hesperus is a star’ to ‘Hesperus is a bright star’ is warranted and rational. Onofri (2015) and Ninan (2015), however, object that mental files cannot explain cognitive significance and enable coreference the jure simultaneously. Recanati stands by his position and thoroughly addresses their worries.

The last two chapters tackle the issue of self-representation. In “The property theory and de se attitudes”, Wayne Davis argues against the so-called property theory of de se thoughts, originally proposed by Lewis and Chisholm, and recently advocated by Neil Feit4. The problem this theory attempts to solve is the following. An amnesiac Lingens can have the belief that he himself is lost while not believing that Lingens is lost. We would express this unfortunate situation with these sentences:

  • (8) Lingens believes that he himself is lost
  • (9) Lingens believes that Lingens is lost

The problem is that, if attitudes are taken to be dyadic relations between subjects and propositions, and propositions are taken to be singular propositions or sets of possible worlds, then both sentences express the same relation to the same proposition. The special character of the de se attitude is missing. To solve this, the property theory denies that believing is a propositional attitude; rather, believing is seen as self-ascribing a property. Davis, however, thinks this move fails to yield a satisfactory account of attitudes, and offers his own account. First, he puts forth ten objections against the property theory. Second, he argues that we should take attitudes to be relations to conceptual propositions, i.e., entities made up of concepts, and not to objectual propositions, i.e., singular propositions or sets of possible worlds. In addition, he claims that part of what made the problem of de se attitudes “seem insoluble […] was the erroneous Fregean assumption that ‘conceptual’ elements must be descriptive” (p; 214). For Davis, the missing element in the explanation is a non-descriptive indexical self-concept. Thus, de se attitudes differ from other attitudes precisely because they are attitudes towards a conceptual proposition having an indexical self-concept as constituent.

In the last chapter, entitled “Selfhood as self-representation”, Kenneth Taylor proposes a middle ground between Cartesian and eliminativist/fictionalist accounts of the self. Contrary to Cartesians, he rejects the existence of a metaphysical sui generis entity that is supposed to be the self (something akin to a thinking substance); contrary to eliminativists/fictionalists, he believes that “there really and truly are beings organized as selves” (p. 225-6). For Taylor, selves are just beings psychically arranged in such a way that they bear the property of selfhood. And bearing selfhood consists in having the very special capacity to have self-representations. Taylor’s central idea is that self-representations are distinct from other representations not because of what they represent, but because of how they represent it. Thus, for Taylor, to bear selfhood is not to be in possession of some mysterious inner entity or to have a “mental CEO” that constitutes the content of self-representations. It is rather to have “the capacity to deploy […] a de se device of explicit coreference” (p. 224, fn. 1). Taylor frames his position in a broader context, discussing Locke’s, Hume’s and Kant’s views on the matter.

The editors of Reference and Representation in Thought and Language can only be commended for taking the pain to organize this volume. Its major merit is, to me, the great diversity of the themes discussed in the chapters. The selection admirably shows how issues surrounding reference go well beyond traditional topics in semantics, and how they intersect (or fail to intersect) with deep philosophical problems in metaphysics and in the philosophy of mind. And when it comes to traditional problems in semantics, the chapters offer novel solutions and often discuss underexplored aspects of our referential devices in an engaging and sophisticated manner. Anyone working on how language and thought relate to the world will surely enjoy this book.

Referências

CAPLAN, B. 2003. “Putting Things in Contexts.” Philosophical Review 112 (2): 191-214. https://doi.org/10.1215/00318108-112-2-191. [ Links ]

FARA, D. G. 2015. “Names Are Predicates.” Philosophical Review 124 (1): 59-117. https://doi.org/10.1215/00318108-2812660. [ Links ]

FEIT, NEIL. 2008. Belief about the Self: A Defense of the Property Theory of Content. Oxford ; New York: Oxford University Press. [ Links ]

KING, JEFFREY C. 2014. “Speaker Intentions in Context: Speaker Intentions in Context.” Noûs 48 (2): 219-37. https://doi.org/10.1111/j.1468-0068.2012.00857.x. [ Links ]

NINAN, DILIP. 2015. “On Recanati’s Mental Files.” Inquiry 58 (4): 368-77. https://doi.org/10.1080/0020174X.2014.883751. [ Links ]

ONOFRI, ANDREA. 2015. “Mental Files and Rational Inferences.” Inquiry 58 (4): 378-92. https://doi.org/10.1080/0020174X.2014.883748. [ Links ]

PONTE, MARÍA DE, and KEPA KORTA, eds. 2017. Reference and Representation in Thought and Language. First edition. Oxford Linguistics. Oxford, United Kingdom: Oxford University Press. [ Links ]

PREDELLI, STEFANO. 2012. “Bare-Boned Demonstratives.” Journal of Philosophical Logic 41 (3): 547-62. https://doi.org/10.1007/s10992-011-9183-5. [ Links ]

SPERBER, DAN, and DEIRDRE WILSON. 2001. Relevance: Communication and Cognition. 2nd ed. Oxford ; Cambridge, MA: Blackwell Publishers. [ Links ]

STOKKE, A. 2010. “Intention-Sensitive Semantics.” Synthese 175 (3): 383-404. https://doi.org/10.1007/s11229-009-9537-5. [ Links ]

Notas

1 Fara (2015) is the most worked out defense of predicativism to date.

2Cf. Stokke (2010)King (2014).

3Cf. Caplan (2002) and Predelli (2012).

4E.g.: Feit (2008).

5Article info CDD: 401

Acessar publicação original

Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation – CARNIELLI; CONIGLIO (M)

CARNIELLI, W.; CONIGLIO, M.. Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation. Logic, Epistemology, and the Unity of Science Series. New York: Springer, 2016. Resenha de: ANTUNES, Henrique; CICCARELLI, Vicenzo. Manuscrito, Campinas, v.41 n.2 Apr./June 2018.

The principle of explosion (also known as ex contradictione sequitur quodlibet) states that a pair of contradictory formulas entails any formula whatsoever of the relevant language and, accordingly, any theory regimented on the basis of a logic for which this principle holds (such as classical and intuitionistic logic) will turn out to be trivial if it contains a pair of theorems of the form A and ¬A (where ¬ is a negation operator). A logic is paraconsistent if it rejects the principle of explosion, allowing thus for the possibility of contradictory and yet non-trivial theories.

Among the several paraconsistent logics that have been proposed in the literature, there is a particular family of (propositional and quantified) systems known as Logics of Formal Inconsistency (LFIs), developed and thoroughly studied within the Brazilian tradition on paraconsistency. A distinguishing feature of the LFIs is that although they reject the general validity of the principle of explosion, as all other paraconsistent logics do, they admit a a restrcited version of it known as principle of gentle explosion. This principle asserts that a contradiction that concerns a consistent formula logically entails any other formula of the language. The expression ‘consistent’ here is a generic term susceptible to several alternative interpretations (not necessarily coinciding with non-contradiction), depending on the particular LFI under consideration. Another (related) feature that distinguishes the LFIs from other paraconsistent logics is that they internalize this unspecified notion of consistency inside the object language by means of a unary sentential operator ○ (called ‘consistency operator’ or simply ‘circle’). When prefixed to a formula A, ○ expresses that A is consistent or well behaved, however these expressions are to be interpreted in each particular case.

Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation, by Walter Carnielli and Marcelo Coniglio, is entirely devoted to the Logics of Formal Inconsistency. The book covers the main achievements in the field in the past 50 years or so, presenting them in a systematic and (to a great extend) self-contained way. Although the book is mostly concerned with particular logical systems, the relations among them, and their corresponding metatheoretical properties, it also sets the basis of a new philosophical interpretation of paraconsistent logics.

The book contains nine chapters, which altogether cover several topics about the LFIs. In Chapter 1 the authors explain the rationales behind paraconsistent logics in general and the LFIs in particular, and discuss the philosophical problems related to paraconsistency under the light of some general issues in the philosophy of logic (such as the nature of logic and the nature of contradictions). It is argued that since there are some real life situations in which contradictions do actually turn up, paraconsistent logics are justified, no matter how those contradictions are interpreted – whether they are seen as concerning reality or knowledge. The chapter also discusses the relation between paracomplete and paraconsistent logics and analyzes some key notions related to paraconsistency, such as consistency, contradiction (and the principle of non-contradiction) and negation.

In Chapter 2 the concept of LFI is precisely defined, as well as other basic technical notions employed throughout the book. A minimal propositional LFI, called mbC, is introduced by means of an axiomatic system. mbC results from positive classical propositional logic by the inclusion of two additional axioms: the principles of excluded middle and gentle explosion – A ∨ A and ○A → (A → (¬A → B), respectively. mbC is then provided with a valuation semantics with respect to which it is proved to be sound and complete. The relations between mbC and classical propositional logic are carefully analyzed. The analysis reveals that mbC can be viewed both as a sublogic and as an extension of classical logic, when these terms are suitably qualified.

Chapter 3 presents several extensions of mbC and analyzes the relations between the notions of consistency/inconsistency and contradictoriness/non-contradictoriness – formally expressed by the formulas ○A/¬○A and A ∧ ¬A/¬(A ∧ ¬A), respectively. As it turns out, although consistency and non-contradictoriness (and inconsistency and contradictoriness) are partially independent in mbC, they may or may not coincide in some of its extensions. In addition, the notion of a C-system is introduced. Despite the complexity of the relevant definition, a C-system simply amounts to an LFI within which the consistency operator is definable in terms of the other connectives of the language. Da Costa’s hierarchy of paraconsistent logics – a family of paradigm examples of C-systems – is briefly presented and explained. The chapter also deals with the important notions of propagation and retro-propagation of the consistency operator.

The first part of Chapter 4 is devoted to the problem of the algebraizability of some LFIs, and the second part discusses some many-valued LFI-systems. In Section 4.1 some preliminary concepts concerning logical matrices are introduced. Section 4.2 contains a Dugundji-style proof of the uncharacterizability by finite matrices of the LFIs presented so far. Section 4.3 contains a proof of the algebraizability of some extension of mbC in the broader sense of Block and Pigozzi. The remaining sections deal separately with different many-valued LFIs, most of which were proposed several decades before the emergence of the concept of Logic of Formal Inconsistency.

Chapter 5 represents a partial detour from the main exposition, for the systems presented therein are not extensions of positive classical propositional logic. The first case considered by the authors is that of intuitionistic logic: more specifically, it is shown how a consistency operator ○ can be defined within Nelson’s logic N4 in terms of a strong negation ~ operator (i.e., ○A ≡ ~(A ∧ ¬A)). Another interesting case covered by the chapter is that of modal logic, where the consistency operator is shown to be interpretable as having a sort of “modal flavor”. In particular, the definition ○A ≡ A → □A can be introduced in normal non-degenerate modal logics. Some systems of fuzzy logic are also analyzed in the chapter. In all of the aforementioned logics, the strategy pursued by the authors consists in defining a consistency operator within the system in question and then showing that it satisfies the general definition of an LFI.

Chapter 6 is devoted to the problem of defining non-deterministic semantics for non-algebraizable systems (even in the broader sense of Block and Pigozzi). It presents three main formal semantics – based, respectively, on F -structuresnon-deterministic logical matrices, and possible translations. Of particular interest, especially from a more philosophical point of view, is the so-called possible translation semantics, whose main idea is to translate a given logic into logics whose semantics are well known and deterministic. The relevant notion of translation is that of a mapping preserving logical consequences and the rationale for this approach is the interpretation of a logic as a combination of “possible world views”.

Chapter 7 concerns first-order LFIs. The chapter is mainly devoted to two systems: QmbC, the first-order extension of mbC, and QLFI1. Due to the non-deterministic nature of mbC, a non-standard semantics is defined for its first-order extension: the authors introduce the notion of a Tarskian paraconsistent structure, defined as an ordered pair composed of a Tarskian structure (in the classical sense) together with a non-deterministic valuation. Concerning QLFI1, the approach is twofold: on one hand, it is shown how the language may be interpreted in a suitable Tarskian paraconsistent structure; on the other hand, a different semantics is proposed, given that the propositional fragment of QLFI1 can be characterized by a three-valued matrix. The semantics is represented by a partial structure, defined in a similar way to a classical Tarskian structure, except for the fact that all predicate symbols are interpreted as partial relations. Both QmbC and QLFI1 are proved to be sound and complete with respect to the corresponding semantics. Compactness and Lowenhëim-Skolem theorems are proved for QmbC.

Chapter 8 concerns one of the most straightforward applications of paraconsistent logics: set theory. Nevertheless, the authors’ approach to the subject is substantially different from what has been traditionally done in the field of paraconsistent set theory – namely, to formulate a non-trivial naïve set theory countenancing the unrestricted comprehension principle for sets. The systems presented in the chapter include all of Zermelo-Fraenkel set theory’s axioms (except for the axiom of foundation, which is replaced by a weaker version of it) with an LFI as the underlying logic. Another distinguishing feature of those systems is that they include a consistency predicate for sets whose behavior is governed by a set of additional axioms. Hence, whereas in a propositional LFI the property of consistency applies only to formulas, in the corresponding paraconsistent set theories it applies to both formulas and sets. The main results of the chapter are the derivability adjustment theorem (establishing that any derivation in ZF can be recovered within its paraconsistent counterpart) and a proof of the non-triviality of the strongest system presented in the chapter.

Chapter 9 discusses the significance of contradictions for science, describing some historical paradigm examples where contradictions seem to have played an important role in the development of scientific theories. It also proposes an interpretation of paraconsistent logics according to which they are better viewed as possessing an epistemological, rather than an ontological, character; in a nutshell, this means that they are not supposed to deal primarily with reality and truth (as in the case of classical logic), but with the epistemic notion of evidence. This interpretation is meant to be a more palatable alternative to dialetheism (the thesis that there are true contradictions), since it neither affirms the existence of true contradiction nor rejects classical logic as incoherent – adhering thus to logical pluralism.

One of the main virtues of Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation is that it keenly highlights the pervasiveness and generality of the notion of logic of formal inconsistency. Firstly, because it shows through the definition of an LFI how several systems of paraconsistent logic proposed in the literature – which at first sight might have appeared to be quite unrelated with one another – can be framed under a single unifying concept. Secondly, because it emphasizes that the definition of an LFI is applicable to systems based on logics of various different kinds, such as classical, intuitionistic, fuzzy, and modal logic. The resulting multiplicity of systems allows for various alternative semantic approaches, which are carefully described in several chapters of the book (e.g., valuation semantics, deterministic and non-deterministic matrices, F-structures, swap structures, possible translations semantics).

The book is mainly devoted to the taxonomy of LFI-systems, leaving little room for a more detailed discussion of the intrinsic properties of each particular system. This is understandable, though, since it is not meant to be a textbook. However, it is possible to use the book as an introductory text on formal paraconsistency by skipping some of the more technical chapters (e.g., a reader merely interested in those LFIs based on positive classical propositional logic may well skip chapters 5, 6 and possibly 8).

Concerning the more philosophical chapters of the book (chapters 1 and 9), the reader might think that the issues discussed therein would have deserved a more extended and rigorous analysis, especially when compared to the painstakingness of the other chapters. In particular, she might find the epistemic interpretation of paraconsistent logics wanting, despite its initial plausibility, this view in not sufficiently argued for. Moreover, specific relations between the epistemic interpretation and the particular features of the LFIs are missing. Nevertheless, this apparent shallowness is presumably due to the fact the purpose of those chapters is not to thoroughly develop a philosophical theory about paraconsistency, but merely to indicate some conceptual possibilities. After all, Paraconsistent Logic is mainly a technical piece of work.

So much for the general considerations. There are two specific points that we think would deserve a more detailed discussion. The first one concerns the cumbersome notation employed in the characterization of the semantics of first-order LFIs (Chapter 7): the strategy adopted by the authors in that chapter consists in extending the (non-deterministic) propositional valuations to the first-order case, combining these with a (classical) Tarskian structure – characterized, as usual, by a non-empty domain together with an interpretation function. The resulting first-order valuations apply thus only to sentences and the notion of truth, as in the propositional case, is not defined in terms of assignments, sequences, or any other technical device usually employed in order to interpreted the variables. The absence of any of these devices leads the authors to locally indicate all the relevant substitutions of individual constants for the free variables of a given formula. In the case of QmbC, for example, the semantic value of a quantified formula ∀xA (under a structure ? and a valuation v) is defined by means of the following clause:

v(∀xA) = 1 iff v(A[x / ā]) = 1, for every a in the domain of ?

where A[x / ā] denotes the result of substituting the constant ā for all free occurrences of x in A, and where the language is supposed to have at least one individual constant ā for each elements a of the domain of ? (that is, the language is supposed to be diagrammatic). At first sight, the use of the notation [x / ā] (and its generalization [x 1,…, x n / ā 1,…, ā n] to multiple simultaneous substitutions) does not seem to compromise readability at all – in fact, they are usually employed in the definition of substitutional semantics for first-order logic. However, matters become much more complicated when it comes to the additional clauses introduced in the definition of v(A) in order to guarantee that the substitution lemma holds for Tarskian paraconsistent structures. One of these clauses, which concerns the negation operator, is formulated as follows:

(sNeg) For every contexts (x ; z) and (x ; y), for every sequence (a ; b ) in the domain of ? interpreting (x ; y ), for every A L(?) x ; z and every t T(?) x ; y such that t is free for z in A, if A[z/t] L(?) x ; y and c = (t[x ; y / a ; b ]) ? then:

If v((A[z/t])[x ; y / a ; b ]) = v(A[x ; z / a ; c]) then

v((¬A[z/t])[x ; y / a ; b ]) = v(¬A[x ; z / a ; c])

Without attempting to individually explain every piece of notation above, (sNeg) merely expresses that if the substitution lemma holds for a formula A, then it holds for its negation as well (the introduction of this clause, absent in the definition of classical first-order structures, is necessary given the non-deterministic behavior of the negation operator in mbC). Now, it is quite clear that the reader would probably take several minutes to read and understand (sNeg). Moreover, this situation is not restricted to (sNeg), but it also happens with the similar clause concerning the consistency operator and the formulation and proof of various semantic theorems enunciated in Chapter 7. The notational cumbersomeness of the chapter is further worsened by the introduction of the notion of extended valuation, which assigns a truth value to an arbitrary formula A (not necessarily a sentence) by indicating a sequence of individual constants with respect to which A is to be evaluated. More precisely, if the free variables in A are among x 1,…, x n (abbreviated by x → ) then the truth value of A under the extended valuation v x a is simply v(A[x 1,…, x n / ā 1,…, ā n]). This notion represents a simile of the notion of satisfaction and is necessary in order to provide an interpretation for the open formulas.

The notation of Chapter 7 could, however, be greatly simplified in the following way: instead of importing the notion of valuation from the corresponding propositional LFI, the authors could well have defined a new notion of valuation which assigns one of the truth values 0 or 1 to each pair (sA), where s is an assignment of objects of the domain to first-order variables and A is an arbitrary formula (open or closed). All definitions and theorems of the chapter could then be easily adapted according to this strategy, yielding much simpler formulations. In particular, clause (sNeg) above would become:

(sNeg’) Let A be a formula with at least one free variable z and let t be a term free for z in A. Let s be an assignment in a structure ? and let s’ be the assignment which is just like s except that is assigns the interpretation of t under s to the variable z. Then:

If v(s’A) = v(sA[z / t]) then v(s’, ¬A) = v(s, ¬A[z / t])

In addition to the evident simplicity of this new formulation, it is worth mentioning that since the notion of valuation above applies to any formula whatsoever of the language (open or closed), it is unnecessary to introduce extended valuations, resulting in a significant conceptual simplification.

Our second criticism concerns the paraconsistent set theories of Chapter 8. In general, the main motivation for a paraconsistent set theory is to recover the intuitive notion of set codified in the unrestricted principle of comprehension – i.e., the idea that every property P determines a set of all and only those objects having P. Of course, this can only be achieved by renouncing to classical logic, since that principle classically entails the existence of contradictory sets (e.g., Russell’s set, universal set, etc.). On the other hand, classical set theories (such as ZF) maintain classical logic at the cost of imposing what seems to be ad hoc restrictions to the comprehension principle and countenancing additional principles whose justification seems also ad hoc. Hence, paraconsistent and classical set theories are symmetrically opposed to one another: what the former tries to achieve (i.e., preserve the intuitive notion of set) is given up by the latter, and what the latter preserves (i.e., classical logic) the former revises.

Nevertheless, the approach to paraconsistent set theory adopted by the authors diverges significantly from these two trends. Firstly, because the attempt to recover the intuitive notion of set codified in the principle of comprehension is explicitly given up once they opt for ZF-like axiomatizations of their theories – ruling out well-known inconsistent collections from the outset. Secondly, given that those theories are variations of ZF based on one or another LFI, the revision of the underlying logical theory is achieved by extending classical logic, rather than renouncing to it. In fact, each of the set theories of Chapter 8 is equivalent to ZF under the assumption that all sets enjoy the property of consistency.

This particular take on paraconsistency may leave the reader wondering what is the point of having a paraconsistent set theory that does not explicitly countenance contradictory collections (‘Why not just stick with ZF?’, she might ask.). The book does not provide an explicit answer to this question, though. However, it would not be difficult to imagine a scenario in which the systems of Chapter 8 would be vindicated: suppose that ZF is someday shown to be inconsistent. Under this circumstance, any of those systems could be used to preserve the strength of ZF while avoiding its triviality. Even though a paraconsistent set theory of this kind may turn out to be fruitful, its fruitfulness turns on an unlikely possibility, though – namely, that ZF could be inconsistent. In view of such a possible application, we suggest that the approach to paraconsistent set theory adopted by the authors is aimed at presenting alternative versions of ZF that are more “cautious” in the sense that they would be able to withstand contradictions, should they ever arise within ZF. For this reason, we believe that those theories should not be viewed as competitors to classical set theories, but rather as interesting and possibly useful variations of it, whose mathematical properties are nonetheless worth investigating.

Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation is a comprehensive text on the LFIs and fulfills an important gap in the literature on paraconsistency. A huge amount of significant results is presented for the first time in a single text, providing the reader with an extensive survey of the research in the area. Moreover, the content of the book is not limited to the achievements of the so-called Brazilian school of logic, but also encompasses contributions coming from other areas and research groups. As a result, it is highly recommended for everyone interested in both the formal and the philosophical aspects of paraconsistency, including mathematicians, linguistics, computer scientists, and philosophers of language, mathematics and science.

References

CARNIELLI, W., CONIGLIO, M. Paraconsistent Logic: Consistency, Contradiction and Negation. Logic, Epistemology, and the Unity of Science Series. New York: Springer, 2016. [ Links ]

Henrique Antunes – State University of Campinas, Department of Philosophy, Campinas, SP, Brazil, antunes. E-mail: henrique@outlook.com

Vincenzo Ciccarelli – State University of Campinas, Department of Philosophy, Campinas, SP, Brazil. E-mail: ciccarelli.vin@gmail.com

Acessar publicação original

Borges lector de Nietzsche y Carlyle – SÁNCHEZ (CN)

SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. 2 ed. Córdoba: Editora de la UNC, 2018. Resenha de: MARSON, Henrique Aparecido. Borges: duas leituras. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.

Em seu livro Borges lector de Nietzsche y Carlyle (2 ED. Córdoba: Editora de la UNC, 2018), o professor argentino Sergio Sánchez procura perscrutar a interpretação e o juízo de valor que Borges faz do filósofo alemão e do escritor escocês, segundo o contexto histórico em que o escritor do Rio da Prata os lê. O expediente adotado por Sánchez consiste em uma rigorosa exegese bibliográfica, – levada a cabo por meio de uma escrita que alia o rigor à clareza. Tal intuito ilumina aspectos da literatura de Borges porque, bem como seus escritos, as leituras dele são parte ineludível de sua literatura; destaque que o professor da universidade de Córdoba faz no prólogo do livro em consideração. Para tanto, a obra se articula em dois capítulos, respectivamente: um para Nietzsche; outro dedicado a Carlyle.

No capítulo em que Nietzsche é tematizado, Assim falou Zaratustra e o nazismo aparecem como mote. Sánchez desde logo deixa cristalina sua abordagem, que se afasta dos motivos filosóficos que Borges colhe do pensador de Röcken como matéria prima de sua prosa e poesia – pois é, de acordo com ele, uma seara demasiadamente explorada -, para empregar seus esforços em trazer à tona o modo pelo qual Borges leu Nietzsche de acordo com o contexto histórico e, com isso, mostrar o caráter, o valor e influência que os textos nietzschianos assumem na leitura do escritor argentino. O texto revela que Borges leu Nietzsche com atenção, pois em ensaios, resenhas de livros do filósofo para a imprensa, bem como em suas ficções, que são analisados por Sánchez, Borges externa concordâncias e discordâncias com Nietzsche. Por exemplo, critica o estilo profético adotado em Assim falou Zaratustra, porque o filósofo almejaria que sua obra fosse lida como um evangelho, ao passo que elogia a riqueza mental exibida pelo estilo cunhado em aforismo de outros escritos. Não obstante, o cerne da investigação de Sánchez reside no fato de que Borges recusa a associação que é feita entre as ideias de Nietzsche e o nacional-socialismo alemão de Hitler, lançando mão, sobretudo, dos escritos póstumos para refutar ideias antissemitas, racistas e nacionalistas que estariam nos escritos do filósofo e ensejariam a filosofia nietzschiana como precursora do nazismo. Então, o professor Sánchez esclarece que a postura política contra o fascismo, o antiautoritarismo, a refutação de posturas nacionalistas de Borges, sua condenação expressa do nazismo desde os primeiros momentos da ascensão de Hitler repercutiram no modo pelo qual leu e compreendeu Nietzsche. O trabalho do professor Sánchez também evidencia que, para Borges, o nazismo estava condenado à derrota, como se a Alemanha, a partir do nacional-socialismo, cometesse suicídio, galvanizando na história seu posto de perdedora. Além disso, toda e qualquer junção das ideias de Nietzsche ao nazismo seria fruto de uma má leitura do filósofo, como a que o personagem nazista do conto Deutsches Requiem teria feito do Zaratustra: um leitor ideológico, fanático, sem refinamentos irônicos, astutos e distanciados, que não seria capaz de entender a filosofia nietzschiana, principalmente no que concerne à ética, tema precípuo do pensamento de Nietzsche. Segundo Borges, uma ética fortemente calcada no indivíduo, e, por isso mesmo, incompatível com arroubos nacionalistas ou gregários.

A leitura que Borges faz de Carlyle desponta como objeto de investigação no segundo capítulo do livro junto ao tema do ceticismo. De acordo com o que a pesquisa de Sánchez deixa entrever, Borges, a princípio, se deslumbrou com os escritos do autor escocês devido ao seu idealismo. Porém, já mais maduro e distanciado desse primeiro contato, o escritor argentino passa a ter uma avaliação negativa de Carlyle, pois o escocês acabou por se converter numa espécie de personagem de si mesmo, imbuído de teatralidade algo afetada, perfil psicológico repudiado por Borges. A partir disso, Sánchez procura demonstrar como Borges e Carlyle são autores díspares – tal como o dogmático é o contrário do cético – devido às rígidas convicções de Carlyle, uma fé irracional e contumaz, um calvinismo exacerbado, por assim dizer, tudo subscrito por traços patéticos e violentos. Ainda nesse capítulo, considerando uma resenha que Borges escreveu para o jornal La Nacíon, sobre duas obras que versam sobre o totalitarismo (um de Bertrand Russell e outro de H. G. Wells) o tema do nazismo, dos fascismos e a ascendência intelectual desses totalitarismos é posto à baila novamente agora também vinculado à leitura que Borges faz de Carlyle. Em tal resenha, Russell teria visto em Carlyle (ao lado de Fichte) o precursor intelectual de ideias fascistas e nazistas, na medida em que seria ideologicamente irracional e “anticético”, isto é, dogmático. Contudo, Sánchez nota que, apesar de resenhar o ensaio de Russell, Borges deliberadamente deixa de comentar o fato de que Nietzsche aparece, para o filósofo inglês, como o precursor decisivo do nacional-socialismo. Isso ocorre precisamente porque, de acordo com o livro de Sánchez, Borges discordaria de Russel quanto a associar a filosofia de Nietzsche ao nazismo. Para deixar ainda mais nítida a leitura e interpretação borgianas do autor de Sartor Resartus, Sánchez também trabalha a distinção que Borges opera entre Carlyle e Ralph Waldo Emerson, escritor estadunidense que travou amizade com Carlyle. Enquanto este seria, para Borges, um autor romântico, que valoriza o sobre-humano, seus heróis são semideuses, além da supracitada postura dogmática; aquele seria um autor clássico de verve humanista, que retrata seus heróis enquanto homens de fato, com vícios e virtudes, além do que, Emerson cultivava o ceticismo, postura intelectual valorizada por Borges. Inclusive, ao final, Sánchez mostra que o escritor argentino considerou os juízos que Nietzsche emitiu em seus textos acerca de Carlyle e Emerson, detratando o primeiro e elogiando o segundo, em consonância com as leituras de Borges, o que denota que as asseverações de Nietzsche sobre Carlyle e Emerson tenham influenciado o modo pelo qual Borges os valora.

O livro de Sánchez se mostra uma obra bem cunhada, que apesar de tratar de autores diferentes, de ser dividida em dois capítulos, possui unidade e coerência em sua economia interna. Isto se dá devido a Nietzsche perpassar todo o livro, e não apenas no capítulo dedicado a considerá-lo especificamente. Talvez isso seja resultante da pesquisa que o professor Sergio Sánchez desenvolve sobre a filosofia nietzschiana. Soma-se a esse elemento de coerência outro: o contexto histórico do nazismo que acaba por reverberar nas leituras que Borges empreende tanto de Carlyle quanto de Nietzsche, associando o primeiro à ideologia totalitária de Hitler, e eximindo o segundo de ter contribuído para o surgimento do nacional-socialismo. O que, por seu turno, faz com que esta obra tenha especial interesse para os estudiosos do filósofo alemão, sobremaneira no que diz respeito à recepção que o filósofo teve na obra (e consequentemente na leitura) de Borges. Ademais, o livro tem relevância para aqueles que trabalham a literatura de Borges, uma vez que exprime, dentro da miríade de leituras que a obra borgiana abrange, como ele lia Nietzsche e Carlyle, além de deslindar, pode-se dizer, aspectos políticos da produção de Borges, algo tantas vezes negligenciado, às vezes até mesmo pelo próprio escritor argentino.

Referências

SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. 2. ed. Córdoba: Editora de la UNC, 2018. [ Links ]

SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. Córdoba: Editorial de la Universidad Nacional de Córdoba, 2014. [ Links ]

SÁNCHEZ, Sergio. Borges lettore di Nietzsche e Carlyle. Traduzione italiana e nota introduttiva di Giuliano Campioni. Pisa: Edizioni ETS, 2014. [ Links ]

Henrique Aparecido Marson – Professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: henrique.marson@gmail.com

Acessar publicação original

Saúde Mental para a Atenção Básica – SOALHEIRO (TES)

SOALHEIRO, Ninaorg. Saúde Mental para a Atenção Básica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 249p. Resenha de: MIRANDA, Lilian. Desafios para o cuidado integral: saúde mental na Atenção Primária em Saúde. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.2, maio/ago. 2018.

O livro Saúde Mental para a atenção básica, coletânea organizada por Nina Soalheiro, assume sua especificidade desde o título: não se propõe a falar da ou sobre a Atenção Básica (AB), mas oferecer conceitos, orientações e reflexões que sirvam aos trabalhadores, gestores, usuários e quaisquer outros atores sociais implicados no cuidado à saúde. Trata-se de uma oferta oportuna, na medida em que se materializa num contexto de crise sociopolítica, diminuição substancial de gastos públicos e transformação de importantes princípios estruturantes da Política Nacional de Atenção Básica – PNAB (Brasil, 2017).

Há que se admitir, contudo, que num cenário de deterioração de condições materiais de trabalho, de referenciais éticos e, sobretudo, de esperanças em torno da justiça social, uma discussão sobre Saúde Mental é urgente, mas também arriscada. Risco que a coletânea assume desde sua epígrafe, uma citação de Michel Foucault que nos remete à incomensurabilidade da experiência de um livro, cuja conclusão é sempre incerta.

Também arriscada, mas consonante com seu objetivo de abordar a Saúde Mental para a Atenção Básica, campo reconhecidamente amplo, é a intenção do livro de utilizar uma linguagem simples e refratária à dominação de quaisquer discursos, inclusive os psi. É assim que um grupo de 16 autores enfrenta o desafio de tratar de modo acessível, mas sem prejuízo à complexidade, temas que se estendem de discussões sobre (des)institucionalização, território, processos de trabalho em saúde e medicalização, até envelhecimento, suicídio, práticas corporais e medicina chinesa. Sem esgotarem-se em suas reflexões e relatos de trabalho e pesquisa, os 12 capítulos ainda sugerem leituras de aprofundamento das temáticas por eles tratadas. Diante desse material, convidado a usar conceitos como ferramentas de trabalho, o leitor logo se pergunta até onde chegará uma coletânea com temática tão extensa e por quais percursos será conduzido em sua leitura.

Percursos múltiplos e diversos! É essa a aposta arriscada da coletânea. Risco coerente com o que parece ser sua principal discussão conceitual: a (des)institucionalização, tratada detalhadamente no segundo capítulo e retomada em grande parte dos demais. Sustentando o objetivo de construção de ferramentas, trata-se de uma discussão que nunca é empreendida de modo abstrato, mas sempre remetida a situações específicas do trabalho em saúde e, para tanto, o território também se configura como categoria teórica básica para o livro, apresentada no seu terceiro capítulo a partir da perspectiva da geografia crítica.

Na composição de uma espécie de tripé de alicerce da coletânea, seu primeiro capítulo oferece o direcionamento ético e o substrato afetivo que imprimem vitalidade à discussão sobre (des)institucionalização e território, encorajando o leitor a empreender um percurso de leitura tão amplo. Reconhecido como referência histórica e bibliográfica para todo o livro, Antonio Lancetti presenteia-o com este capítulo de abertura, oferecendo seu testemunho acerca da intensidade necessária ao trabalho em saúde mental nos territórios complexos da Estratégia Saúde da Família. Descrição de recursos, estratégias e cenas de trabalho, acompanhadas de orientações didáticas sobre questões que não podem ser desconsideradas num trabalho em Saúde Mental não manicomial, são apresentadas de modo a abrir o caminho dos demais capítulos do livro.

Ao longo da coletânea, as conquistas da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RP) são reconhecidas, mas com a ponderação de que se trata de um processo social complexo, cuja definição é remetida a autores brasileiros, como Paulo Amarante, e à tradição da psiquiatria democrática italiana. Na condição de processo, é contínua e compromissada com a constante construção de movimentos instituintes. Antonio Lancetti materializa este condicionante lembrando a importância de trabalhar na Atenção Básica com a circulação de pessoas, afetos, assim como sofrimentos e sintomas. Estes, em Saúde Mental, não são passíveis de amputação, mas podem circular, desde que acolhidos e tratados num território que precisa ser vivido, (re)apropriado e mesmo (re)construído por todos os atores envolvidos no cuidado à saúde.

Ao empreender esse processo de envolvimento com o território, os profissionais optam pela complexidade crescente porque o foco de cuidado desloca-se do problema para os sofrimentos, traduzidos a partir de um emaranhado de questões sociais, políticas, intersubjetivas, culturais e materiais envolvidas em cada pessoa. No bojo dessas reflexões, uma minuciosa apresentação das diferenças conceituais entre espaço, lugar, local e território, bem como territorialidade, região e cotidiano, permite que o leitor amplie sua compreensão sobre a complexidade do trabalho territorializado, recorrentemente defendido na Política de Saúde Mental.

A alusão a tal complexidade poderia desanimar o leitor. Mas o contato prévio com o capítulo de Lancetti, concluído após sua morte, pela colaboração de seu filho, paradoxalmente, impede tal infortúnio. A apresentação do Projeto Qualis, descrito pelo autor como uma “experiência de vitalidade eletrizante” empreendida num cenário de ausência de saúde pública, gera esperança e abertura para a leitura dos demais capítulos. Vários destes dialogam diretamente com os profissionais de saúde, reconhecendo as dificuldades e angústias próprias ao campo da Saúde Mental, marcado pela ausência de protocolos ou orientações objetivas para lidar com “casos que não fecham” e sofrimentos que não cessam, embora possam se modificar e se redirecionar. Para discuti-los, o conceito-chave é a (des)institucionalização que, tomada como um modo de gestão do cuidado, não visa à cura, constituindo-se numa perspectiva bastante diversa até mesmo na AB, cujos profissionais ainda são formados, hegemonicamente, a partir do paradigma biomédico e cujos investimentos em educação em saúde e recursos não medicalizantes se mostram limitados (Tesser, Poli Neto e Campos, 2010).

Fica evidente no livro a defesa de que limites como esse comprometem a operacionalização de um tipo de cuidado compreendido como encontro entre sujeitos. Um encontro que possibilita que o sofrimento e a doença sejam apropriados por usuários e profissionais e, assim, compartilhados (não mais se restringindo ao domínio de um único saber, geralmente o biomédico). No intuito de colaborar com a viabilização dessa forma de cuidado, são sistematizadas ao longo do capítulo várias discussões teóricas, bem como algumas normativas políticas e orientações acerca do trabalho em Saúde Mental. Mas, ao fazê-lo, os autores destacam que todo constructo teórico ou normativo é materializado em contextos específicos, que lhes impõem entendimentos e usos também singulares.

Respaldados por tal alerta, alguns capítulos trazem reflexões e orientações para problemas que ocupam espaços ainda pequenos nas discussões do movimento da RP e nas políticas de Saúde Mental. Entre eles destaca-se o suicídio, cuja detecção precoce pode ser feita, prioritariamente, na AB, mas exige alto investimento no treinamento dos profissionais. Também necessitado de investimentos é o campo da atenção ao idoso, hoje pautado, basicamente, nos cuidados desempenhados pelos familiares e num apoio insuficiente e pouco formalizado dos serviços de saúde. Tanto em relação ao suicídio quanto ao envelhecimento, os capítulos abordam o sofrimento que envolve usuários, famílias, profissionais e entorno social, chamando atenção para a necessidade de compartilhamento das necessidades de cuidado, sob o risco de que a individualização e naturalização de alguns papéis sociais acabem por gerar negligência e violências.

O livro apresenta também alguns temas que envolvem práticas mais experimentadas nos serviços de saúde, embora não hegemônicas ou consolidadas. Aborda, por exemplo, a lógica da redução de danos, a medicina chinesa, os dispositivos grupais e as práticas corporais ligadas à promoção da saúde, remetendo-se às discussões sobre (des)institucionalização e território, associadas a diferentes modos de compreender a própria noção de saúde. Embora distintas entre si, tais compreensões podem se transformar em importantes ferramentas para a desconstrução do modelo biomédico, na medida em que evidenciam os prejuízos ou a baixa eficácia de práticas que desconsideram as especificidades pessoais e comunitárias dos usuários do serviço. Questões fundamentais são então enfrentadas, tais como a tendência a ver os riscos à saúde de modo universalizado e naturalizado, desconsiderando a constituição histórica dos indivíduos. Ou o desafio de trabalhar em favor da responsabilização e da ampliação da autonomia dos usuários, sem culpabilizá-los e sem desresponsabilizar o Estado. Ou, ainda, o tênue limite entre a territorialização dos serviços comunitários e a regulamentação da vida privada.

O enfrentamento dessas questões se faz, em alguns capítulos, de forma didática, com a apresentação de conceitos próprios a correntes teóricas que, embora fundamentem grande parte de dispositivos e práticas da saúde coletiva, são pouco compreendidos pelos profissionais. É o caso da concepção de grupo segundo a esquizoanálise, de biopoder, segundo Michel Foucault, e de trabalho, numa leitura do materialismo histórico. Trata-se, sem dúvida, de uma heterogeneidade teórica bastante expressiva, com especificidades que não devem ser esvanecidas, mas que podem se transformar nas ferramentas de análise crítica e reconstrução da realidade que o leitor é convidado a construir. Um convite cujo aceite proporciona prazeroso compartilhamento da diversidade de olhares e aberturas à transformação, próprios do campo da saúde mental orientado pela lógica da (des)institucionalização.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=68&data=22/09/2017> Acesso em: 22 mar. 2017. [ Links ]

TESSER, Charles D.; POLI NETO, Paulo; CAMPOS, Gastão W. S. Acolhimento e (des)medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, supl. 3, p. 3615-3624, 2010. [ Links ]

Lilian MirandaFundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: limiranda78@hotmail.com

Acessar publicação original

[MLPDB]

Los espejos de Clío: Usos y abusos de la Historia en el ámbito escolar – GÓMEZ CARRASCO; MIRALLES MARTÍNEZ

GÓMEZ CARRASCO, C.J.; MIRALLES MARTÍNEZ, P. Los espejos de Clío: Usos y abusos de la Historia en el ámbito escolar. Madrid. Sílex, 2017 Resenha de: LÓPEZ-GARCÍA, Alejandro. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.91, p.83-84, abr., 2018.

El manual objeto de estas líneas bien podría entenderse como una especie de carta magna que desmenuza y desenmascara las inertes directrices u ordenanzas que caracterizan al oficio de enseñar historia. Una unidireccionalidad no solo contemplada desde su vertiente legislativa sino que, además, detalla las carencias de un sistema educativo donde el profesorado demanda nuevos derechos y libertades, así como una vuelta de tuerca en las honduras de la didáctica de la historia, tan cabal como pertinente para el estudiantado presente y futuro.

Gómez y Miralles presentan el organigrama del grupo de investigación DICSO (Universidad de Murcia) enfocando algunas de sus principales líneas de acción, perfectamente conectadas hacia una nueva idea en la profesionalización docente. Esta descripción se hace con una simbiosis digna y eficiente entre investigación e innovación, canalizando propuestas interesantes para superar esos reflejos de Clío que, obviados a veces, perturban la idiosincrasia de esta disciplina.

La competencia profesional de los autores queda de manifiesto durante toda la obra, pero el trasfondo de su conciencia ciudadana se plasma sobre todo en el primer capítulo, en el que se esboza un análisis de propuestas de enseñanza, bien fundamentado desde la influencia posmodernista y estructuralista.

Con el calado que dejaron influjos pasados como la Escuela de los Annales o el marxismo, los autores analizan la historia entendiéndola como conocimientos en construcción, más allá de tensiones identitarias e ideológicas, donde primaba un pensamiento lineal, individualista y acrítico. Al amparo de la corriente internacional, postulan un ejercicio de reflexión en torno a la comprensión del mundo desde la idea de globalización, estableciendo una serie de aristas competenciales sostenidas en la necesidad de pensar históricamente y desarrollar habilidades cognitivas. La idea prestada a este trabajo denota una caracterización que trata de escapar de un discurso monista, plano y descriptivo, defendiendo un ideal didáctico basado en la pluralidad del conocimiento histórico, mediante destrezas de cuestionamiento, giros lingüísticos, resquicios a la duda e interpretaciones que dinamicen el saber.

Esta contraposición entre positivismo e interpretación, o entre identidad y ciudadanía, influye de forma directa en los cánones que establece el currículo. En el segundo capítulo los autores analizan este documento, tan relevante para entender los planteamientos didácticos vigentes y las líneas rojas de nuestro sistema educativo. Aun cuando las pruebas de diagnóstico determinan los principales problemas al respecto, los autores nos muestran que sigue predominando una imposición conceptual o sustantiva que otorga más valor a la cantidad que a la calidad del conocimiento.

Igualmente, se analiza la evolución del currículo español desde 1990 hasta la actualidad, comparándolo con el currículo inglés y otros currículos internacionales, desde un punto de vista competencial.

En el tercer capítulo Gómez y Miralles abordan el excesivo peso del libro de texto para enseñar, así como la influencia de los libros españoles en el contexto europeo.

Esta presentación se hace desde distintos enfoques, como el discurso historiográfico, en una sutil comparativa con los manuales de Francia e Inglaterra; la presencia de narrativas vinculadas a los Estados nación, los mitos de la disciplina y sus tópicos y estereotipos más característicos que constituyen ese abismo entre la producción historiográfica pasada y la de nuestros días. El reflejo o enfoque que pretenden transmitir los autores gira en torno a la disparidad de modelos de educación histórica como aspecto reseñable y digno de revisión, si queremos asemejarnos a nuestros colegas europeos.

En el cuarto capítulo se evalúan los conocimientos históricos mediante el análisis de más de tres mil preguntas de exámenes de historia desde 5.º de educación primaria hasta 4.º de la ESO, corroborándose la predominancia de los conceptos de primer orden sobre los conceptos metodológicos.

Igualmente, los autores analizan un total de cien narrativas históricas del alumnado y trescientos cuestionarios, con objeto de comprobar la percepción epistemológica de este modelo de educación histórica, que se muestra como impulsor de tópicos y estereotipos historiográficos, cuyos usos y abusos desembocan en una evaluación igualmente tradicionalista que no transfiere las escasas innovaciones acaecidas tras la superación de la lección magistral.

Esta obra, osada a la par que acertada, ha de concebirse como una lectura recomendada para aquellos que hayan quedado rezagados en modelos de enseñanza obsoletos y sientan la necesidad de enlazar el pasado con el presente para reconstruir la historia.

Con premisas como la problematización, el rigor argumentativo y el sustento mediante fuentes ha de plantearse el discurrir de esta profesión, favoreciendo el desarrollo de habilidades cognitivas más complejas, superando el conceptualismo nacionalista de antaño y abriéndose paso como una ciencia de análisis social.

Igualmente, las propuestas de mejora que nos sugieren Gómez y Miralles deben entenderse como una invitación para construir las identidades del siglo xxi, rompiendo con siglos pretéritos y con una hegemonía histórica que deconstruye la memoria y resta más que suma. Cada una de sus coherentes e ilusionantes líneas son fruto de una historiografía moderna y dinámica que, apoyada en la investigación más reciente, vela por cuestionar aquellos temas más controvertidos en aras de promover un cambio metodológico en la docencia actual que proteja y haga brillar, más que nunca, esos espejos de Clío.

Alejandro López-García – E-mail: aloga@um.es

Acessar publicação original

[IF]

 

Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.18, n.1, 2018.

Expediente Revista EDaPECI

Editorial Revista EDaPECI

Artigos Gerais

Publicado: 2018-03-31

História.Com. Cachoeira, v.4, n. 7, 2017.

Revista Eletrônica Discente História.com

Apresentação

Dossiê Temático

Artigo Livre

História na Sala de Aula

Resenha

Publicado: 2018-04-30

Afro-Ásia. Salvador, n.57, 2018.

Editores: Jocélio Teles dos Santos e Wlamyra Albuquerque.

Imagem da capa: Bauer Sá.

Artigos

Resenhas

Publicado: 2018-03-29

EaD em Foco. Rio de Janeiro, v.8, n.1, 2018): Volume único

Editorial

Artigos Originais

Estudos de Caso

Publicado: 2018-03-28

Heródoto. Guarulhos, v.3, n.1, 2018.

HOMENAGEM A PEDRO PAULO ABREU FUNARI – II

Edição completa

Editorial / EDITORS NOTE

Apresentação / Preface

  • Apresentação
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF
  • Preface
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF (English)

Notas e depoimentos/Notes and testimonials

Artigos / Articles

Traduções / Translations

Resenhas / Reviews

Notas de Pesquisa/Research Notes

Publicado: 2018-03-27

Jamaxi. Rio Branco, v.2, n.1, 2018.

Publicado: 2018-03-26

ARTIGO

 

Heródoto. Guarulhos, v.2, n.2, 2017.

HOMENAGEM A PEDRO PAULO ABREU FUNARI – I

Editorial / EDITORS NOTE

Editorial

  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco
  • PDF

Editors Note

  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco
  • PDF (English)

Apresentação / Preface

  • Apresentação
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF
  • Preface
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF (English)

Entrevistas / Interviews

Notas e depoimentos/Notes and testimonials

Traduções / Translations

Resenhas / Reviews

Publicado: 2018-03-24

Heródoto. Guarulhos, v. 2, n. 2, 2017

Edição completa

Editorial / EDITORS NOTE

Apresentação / Preface

  • Apresentação
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF
  • Preface
  • Glaydson José da Silva, Gilberto da Silva Francisco, Renata Senna Garraffoni
  • PDF (English)

Entrevistas / Interviews

Notas e depoimentos/Notes and testimonials

Artigos / Articles

Traduções / Translations

Resenhas / Reviews

Publicado: 2018-03-24

Resgate – Revista Interdisciplinar de Cultura. Campinas, v.26, n.1, jan./jun. [35], 2018.

Dossiê História Econômica e Demografia Histórica [Parte 2]

Organização: Profa. Dra. Maria Alice Rosa Ribeiro (Unesp Araraquara/CMU) e Dra. Maísa Faleiros Cunha (Nepo/Unicamp).

APRESENTAÇÃO

DOSSIÊ

ENTREVISTA

PUBLICADO: 2018-03-23

Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.18, 2018.

Publicação contínua

Editorial

Artigos

Resenha

Dossiê

Publicado: 2018-03-20

Revista do Historiador. Porto Alegre, n.10, 2018.

ESTUDOS DE HISTÓRIA LOCAL

Editorial

Apresentação

Artigos

Publicado: 2018-03-15

Ciencia Nueva – Revista en historia y política. Pereira, v.2, n.1, 2018.

Enero – Junio

Ciencia Nueva, Revista de Historia y Política, presenta su tercer número correspondiente al primero del segundo volumen.

Presentación

Editorial

Estudios Históricos

Ciencias Políticas

Reseñas

Anales y Memorias

Publicado: 2018-03-09

Revista de História. São Paulo, n.177, 2018.

ARTIGOS

RESENHAS

PUBLICADO: 2018-03-08

História do tempo no Brasil | Revista Hydra | 2018

Apontamentos para uma história do tempo no Brasil

“Ciência dos homens, no tempo”: eis a célebre definição de história oferecida há mais de sete décadas por Marc Bloch [1], e cuja primeira palavra permite maior discordância do que as demais. Pois se é controversa a condição científica da história, é unânime que seu foco deva estar em seres humanos e no tempo. Esta última palavra, aliás, também pode nos remeter a um fenômeno social: partindo-se de uma história de homens no tempo, é possível tomar o tempo como objeto da história [2]. Um objeto qualquer, como tantos outros? Não exatamente, na medida em que este apresenta potencial singular de requalificar uma reflexão teórica inescapável: o problema da dívida tanto da realidade social como de seu conhecimento para com aquilo que aquela palavra revela (ou encobre).

Com o avanço desse duplo tratamento de tempo – como condição da história, como objeto da história – logo o simples singular deve ensejar um singular coletivo. Afinal não há, a rigor, um único tempo da história, de uma época ou de uma sociedade. Sempre, como nos ensina Braudel, toda e qualquer história é sempre constituída por uma pluralidade de tempos simultâneos: uns mais lentos e longos, outros mais rápidos e curtos; mas todos dinâmicos, configurados pelas dimensões concretas da realidade social – estas transformadas segundo seus ritmos próprios – e ensejando entre eles relações: tensões, amálgamas, hierarquias e definições recíprocas [3]. Pode-se entender, a partir daí, tempo histórico ou tempo social como a síntese dessas relações, a criarem certas permanências que, segundo Koselleck, resultam em estruturas temporais, também elas presentes em toda e qualquer sociedade [4]. Leia Mais

História & Luta de Classes. [?], v.14, n.25, mar. 2018.

Escravidão Colonial Americana: séculos XVI-XIX

Apresentação

France – Allemagne. L’enseignement de l’histoire pour l’Europe. Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata – BONGERTMANN; COLLARD (APHG)

BONGERTMANN, Ulrich; COLLARD, Franck. (Dir.). France – Allemagne. L’enseignement de l’histoire pour l’Europe. Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata. WOCHENSCHAU Verlag, Francfort-sur-le-Main; Verband der Geschichtslehrer Deutschlands e.V. – VGD; Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie – APHG, 2018. Resenha de: BENDICK, Rainer; CHARBONNIER, Marc. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG). 28 fev. 2018. Disponível em: < https://www.aphg.fr/France-Allemagne-L-enseignement-de-l-histoire-pour-l-Europe>Consultado em 11 jan. 2021.

Le 22 avril 2017, des représentants des Bureaux nationaux de la Fédération des Professeurs d’Histoire d’Allemagne (Verband der Geschichtslehrer Deutschlands e.V. – VGD) et de l’Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG – France) réunis en Sorbonne afin de faire le bilan de deux colloques communs à Brunswick et à Paris (février et avril 2017), ont tenu à ouvrir des perspectives concrètes de travail dans le cadre du renforcement des relations franco-allemandes dans les domaines de l’éducation, de la recherche et de la culture [3]. Ces rencontres bilatérales débouchent aujourd’hui, près d’un an après, sur la publication conjointe d’un ouvrage ambitieux (chez l’éditeur « Wochenschau-Verlag ») que la revue Historiens & Géographes est fière de présenter ci-après.

Il comprend 21 contributions scientifiques, pédagogiques et didactiques inédites [4],partagées entre auteurs allemands et français, en croisant les regards et les approches spécifiques de l’enseignement de l’histoire des deux côtés du Rhin. Les articles allemands sont suivis d’un résumé en français et réciproquement pour les contributions françaises. Etienne François, professeur émérite à l’université Paris I et professeur d’histoire à l’université libre de Berlin, où il dirige le Frankreich-Zentrum a rédigé l’introduction de ce recueil, en français et en allemand. Philippe Joutard, ancien Recteur, professeur émérite d’histoire moderne à l’université de Provence Aix-Marseille I signe la postface, également disponible dans nos deux langues.

Ainsi, dans la lignée d’une remarquable publication récente – Europa, notre histoire : L’Héritage européen depuis Homère, sous la direction d’Etienne François et de Thomas Serrier (Les Arènes, 2017) – et du programme scientifique de la conférence annuelle d’EUROCLIO co-organisée par l’APHG à Marseille du 21 au 26 avril 2018 [5], ce livre commun aux associations professionnelles d’Allemagne et de France souhaite promouvoir, dans une démarche fondatrice, une Europe de la paix et du savoir partagé, particulièrement auprès des enseignants d’histoire, de géographie, d’allemand et en classes européennes. Historiens & Géographes relaiera prochainement sur le site www.aphg.fr toutes les informations pratiques sur cette publication, disponible au début de l’année 2018.

En voici ci-après une courte présentation en français et en allemand :

Les rencontres franco-allemandes sur les manuels scolaires dans le contexte européen. Succès – Perspectives – Desiderata.

Sous la direction de / Herausgegeben von :
Ulrich Bongertmann, Franck Collard, Rainer Bendick, Marc Charbonnier, Martin Stupperich, Hubert Tison.

Pourquoi un professeur français d’histoire devrait-il s’intéresser aux problèmes de son collègue allemand et inversement, un professeur allemand d’histoire à l’enseignement de l’histoire en France ? A vrai dire, pourquoi faut-il une publication franco-allemande sur l’enseignement de l’histoire ? Après tout, nos enseignements ne propagent plus depuis longtemps des images unilatérales ou calomnieuses de l’autre pays.

Mais au lieu des contenus nationalistes, une sorte de « nationalisme didactique » se dessine. La didactique de l’histoire, les critères d’un « bon » enseignement d’histoire, le rôle des professeurs et des élèves et la manière dont ils travaillent ensemble, sont définis très différemment de part et d’autre des rives du Rhin, si bien que les collègues qui ne connaissent que leurs propres traditions nationales ont l’impression que le voisin, de l’autre côté de la frontière, fait de « mauvais cours ». Cela ne peut pas nous laisser indifférents, car la France et l’Allemagne sont les pays les plus influents d’Europe !

Le recueil retrace d’abord le processus d’objectivation des manuels scolaires. Hubert Tison et Rainer Riemenschneider rappellent comment les derniers litiges ont été surmontés lors des rencontres bilatérales sur les manuels d’histoire au cours des années 1980. Steffen Sammler et Maguelone Nouvel-Kirschläger analysent les conséquences de ces initiatives. Ullrich Bongertmann et Claire Ravez présentent les critères d’un « bon » enseignement de l’histoire dans nos deux pays.

Ensuite, 14 contributions abordent des thématiques concrètes liées à notre enseignement : les aspects positifs mais aussi les limites du jugement historique, chers aux collègues allemands, apparaissent très clairement à la lumière de l’approche didactique française (Martin Stupperich, Peter Geiss, Guy Pervillé). Rainer Bendick, Yohann Chanoir et Thorsten Heese s’intéressent aux malentendus provoqués par nos deux traditions didactiques, valables seulement au sein de nos frontières nationales, et montrent les possibilités de les surmonter par des approches bi- et transnationales. Nathalie Schmitt-Wald, Nicolas Charles, Bruno Benoit, Marc Charbonnier et Gilles Vergnon élargissent cette perspective en abordant d’une manière renouvelée les thèmes habituels de l’enseignement. Franziska Flucke et Florian Niehaus expliquent en quoi l’enseignement bilingue et ses classes spécifiques sont une chance.

Enfin, l’introduction d’Etienne François et la postface de Philippe Joutard donnent aux contributions franco-allemandes une dimension européenne.

Die deutsch-französischen Schulbuchgespräche im europäischen Kontext . Erfolge – Perspektiven – Desiderate.

Herausgegeben von / Sous la direction de :
Ulrich Bongertmann, Franck Collard, Rainer Bendick, Marc Charbonnier, Martin Stupperich, Hubert Tison.

Warum sollte sich heute ein französischer Geschichtslehrer für die Probleme seines deutschen Kollegen interessieren und umgekehrt ein deutscher Geschichtslehrer für den Geschichtsunterricht in Frankreich ? Ja, warum überhaupt eine deutsch-französische Veröffentlichung zum Geschichtsunterricht ? Schließlich verbreiten unsere Unterrichte schon lange keine einseitigen, das andere Land verunglimpfenden Darstellungen mehr.

Aber anstelle nationalistischer Inhalte wird eine Art „didaktischer Nationalismus“ sichtbar. Der Umgang mit Geschichte, die Standards für guten Geschichtsunterricht, die Rolle von Lehrern und Schülern und die Art, wie sie zusammenarbeiten, werden diesseits und jenseits des Rheins sehr unterschiedlich definiert, so dass die Kollegen, die nur ihre Standards kennen, den Eindruck haben, der andere auf der anderen Seite der Grenze mache „schlechten Unterricht“. Das kann uns nicht egal sein, weil Deutschland und Frankreich die einflussreichsten Länder in Europa sind !

Der Band zeichnet zunächst den Prozess der Versachlichung unserer Schulbuchtexte nach. Hubert Tison und Rainer Riemenschneider berichten, wie sie in den Schulbuchgesprächen der 1980er Jahre letzte inhaltliche Probleme überwanden. Steffen Sammler und Maguelone Nouvel-Kirschläger analysieren die Wirkung dieser Initiativen. Ulrich Bongertmann und Claire Ravez stellen die Kriterien für „guten Unterricht“ in unseren Ländern vor.

14 Beiträge beschäftigen sich dann mit konkreten Problemen unseres Unterrichts : die Möglichkeiten aber auch die Grenzen des den deutschen Kollegen wichtigen historischen Urteils werden im Licht der französischen Standards besonders deutlich (Martin Stupperich, Peter Geiss, Guy Pervillé). Die Missverständnisse, die unsere nur national gültigen Unterrichtsstandards produzieren, und Möglichkeiten, sie mit bi- und transnationalen Ansätzen zu überwinden, zeigen Rainer Bendick, Yohann Chanoir und Thorsten Heese. Inhaltliche Erweiterungen unserer gewöhnlichen Themenspektren bieten Nathalie Schmitt-Wald, Nicolas Charles, Bruno Benoit, Marc Charbonnier und Gilles Vergnon. Die besonderen Chancen des bilingualen Geschichtsunterrichts thematisieren Franziska Flucke und Florian Niehaus.

Die Einleitung von Etienne François und das Nachwort von Philippe Joutard geben diesen deutsch-französischen Beiträgen eine europäische Orientierung.

Notes

[3] Communiqué commun APHG / VGD, 22/04/2017. En ligne : https://www.aphg.fr/Renforcer-les-r…

[4] L’ouvrage, divisé en trois parties, comporte 10 contributions en allemand et 11 contributions en français.

[5] Sur le site d’Euroclio (disponible en français) : https://euroclio.eu/event/25th-euro…

Rainer Bendick – Docteur en histoire, professeur en histoire et français au Abendgymnasium Sophie Scholl (Osnabrück). Sa thèse porte sur la représentation de la Première Guerre mondiale dans les manuels français et allemands. Il a codirigé le volume du manuel d’histoire franco-allemand paru en 2011 et traitant de l’Europe et du monde de l’Antiquité à 1815.

Marc Charbonnier – Secrétaire général adjoint de l’APHG et secrétaire adjoint de la rédaction d’Historiens & Géographes. Professeur d’histoire-géographie en lycée, il vient de coordonner le dossier d’Historiens & Géographes n° 440 « L’Histoire et les mémoires de la guerre d’Algérie. Actes du colloque de Nanterre », et le dossier n° 441 (sous la direction de Jean-Marc Capdet, Préface : François Louveaux, Introduction : Philippe Duhamel) « Géographie et tourisme en Méditerranée », à paraître.

Consultar publicação original

[IF]

Faces da História. Assis, v.3, n.1, 2016 / v. 5, n.2, 2018.

Faces da História. Assis, v. 5, n.2, 2018.

Arte e Literatura na Amazônia Global

Publicado: 2018-12-20

Faces da História. Assis, v.5, n.1, 2018.

Economia e Política dos Impérios Ibéricos

Publicado: 2018-06-30

Faces da História. Assis, v.4, n.2, 2017.

História antiga: passado em conexão com o presente e diversidade nas abordagens

Publicado: 2017-12-30

Faces da História. Assis, v.4, n.1, 2017.

História e Patrimônio Industrial

Publicado: 2017-06-30

Faces da História. Assis, v.3, n.2, 2016.

A História da África e afro-brasileira: perspectivas, experiências e diálogos

Publicado: 2016-12-30

Faces da História. Assis, v.3, n.1, 2016.

História antenada: mídias eletrônicas e a contemporaneidade

Publicado: 2016-06-30

Mare Nostrum – Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo. São Paulo, v.8, n.9, 2017.

EDITORIAL

ARTIGOS

RESENHAS

PUBLICADO: 2018-02-15

Abbiamo ancora bisogno della storia? Il senso del passato nel mondo globalizzato – GRUZINSKI (Nv)

GRUZINSKI, S. Abbiamo ancora bisogno della storia? Il senso del passato nel mondo globalizzato. Milano: Raffaello Cortina, 2016, p. 11. Resenha de: FAZZI, Patrizia. Novecento.org – Didattica dela storia in rete, n.8, febbraio, 2018.

UN INCIPIT STORICO-DIDATTICO: LA DRAMMATIZZAZIONE

Serge Gruzinski, invitato da un docente di storia del Lycée Jean Rostand di Roubaix, la sua città natale situata nella Francia settentrionale, è positivamente colpito dallo spettacolo teatrale messo in scena dagli studenti di età compresa tra i quindici e i sedici anni. I materiali utilizzati sono tratti da una sua precedente opera non concepita a tale scopo: L’Aigle et le Dragon, una ricerca specialistica, che si presenta poco fruibile a livello didattico[2]. Tuttavia due vicende storiche, che si sono sviluppate parallelamente all’inizio del Cinquecento: la conquista del Messico da parte degli spagnoli, l’Aquila, e il tentativo di penetrazione dei portoghesi in Cina, il Dragone, sono scelte per allestire lo spettacolo nel teatro di Pierre-de-Roubaix.
Nell’ambito del curricolare corso di storia di seconda in materia di “Nuovi orizzonti geografici e culturali degli europei in epoca moderna”, rielaborando documenti e carte geografiche, gli studenti hanno messo a confronto le colonizzazioni iberiche: due contesti analoghi quanto ad aggressione da parte dei due imperi europei, ma profondamente diversi quanto a protagonisti, contesti ed esiti. La prima impresa è terminata con l’annessione all’Europa di un’area del mondo da cui è nata l’America latina meticcia, la seconda con la sconfitta della potenza europea da parte dell’impermeabile Cina.

DAL TESTO AL CONTESTO A PARTIRE DA DOMANDE CHIAVE

Nel corso della realizzazione del progetto, gli studenti sono diventati cinesi o aztechi, portoghesi o spagnoli, hanno inventato dialoghi di incontro e scontro tra gli europei e i loro ospiti, progettato scenografie e costumi che hanno consentito loro di prendere gradualmente dimestichezza con altri universi, con storie, società e tradizioni molto diverse tra loro. Un processo di mondializzazione mobilita sempre una pluralità di attori che infrange la dualistica contrapposizione vinti-vincitori e supera lo schematismo dei discorsi sull’alterità, poiché l’orizzonte globale diversifica le posizioni e i confronti. Sollecitati dal docente, i giovani interpreti hanno risposto a domande chiave per collocare le vicende nello spazio e nel tempo: chi sono i cinesi incontrati dai portoghesi che sbarcano a Canton? Chi sono gli indiani che affrontano i castigliani in America? Ma chi si trovano davanti? Con chi si scontrano cinesi e amerindi?
La drammatizzazione si è rivelata, dunque, un efficace incipit per tematizzare le origini della mondializzazione e ha costituito un vero e proprio esempio di narrazione multiforme per educare gli studenti, in maggioranza stranieri in una città dell’antica provincia delle Fiandre francesi, alla scoperta della “cultura mista” attraverso attività di finzione che hanno messo in sintonia tempi apparentemente estranei gli uni agli altri.

SUL DIALOGO FRA PASSATO E PRESENTE

Per dare corpo alla storia nel presente, lo storico francese riconsidera le sovrapposizioni e le contaminazioni nate agli albori dell’età moderna, in una dialettica conflittuale dalle molteplici sfaccettature. Da una parte, si pone in veste critica nei confronti di quelle abitudini accademiche che considera alla base della parcellizzazione delle discipline storiche in settori a compartimenti stagni indeboliti e poco dialoganti, che coinvolgono cerchie di specialisti destinate ad assottigliarsi a mano a mano che ci si allontana dai mondi contemporanei. Dall’altra, nel superare l’eurocentrismo, la prospettiva prevalente per comprendere le storie del passato, non risparmia critiche nei confronti degli studi postcoloniali, poiché il ruolo storico dell’Europa ha costituito quel denominatore comune imprescindibile, seppur controverso e circoscritto nel tempo, per meglio comprendere il mondo globalizzato. Ma come recuperare parti consistenti del passato e opporsi a quell’appiattimento sul presente, esito inevitabile della globalizzazione? Come fare dialogare i passati del nostro pianeta con i suoi presenti sempre più multiculturali e multietnici?

NUOVI PERCORSI TRA LOCALE E GLOBALE

La strada maestra, per rispondere a questi interrogativi, consiste nella ricerca di storie parallele in grado di coniugare “locale e globale”, nell’individuare parentele inaspettate, insolite e singolari. Si può procedere con la ricostruzione di analogie e differenze attraverso fonti poco frequentate o ricorrendo alle molteplici culture della contemporaneità: dalla musica all’arte, dal cinema al teatro, di cui l’autore fornisce una vasta quanto dettagliata disamina. Mettendo in guardia su quelle produzioni dell’industria di intrattenimento, che raramente propongono innovative chiavi di lettura di un mondo globalizzato e cancellano le specificità locali, lo storico si sofferma sui numerosi presenti e sui frammenti accumulatisi nel tempo. Si spazia dai venditori di strada di dvd “piratati” di film asiatici venduti sulle rive del fiume Tapajós a Santarém, seconda città dello Stato di Pará, ai viaggi di scoperta dell’ammiraglio cinese Zheng He, che nel XV secolo tentò di “connettere il mondo”, dai film di Zhang Yimou ai documentari di Aleksandr Sokurov, dalle opere fotografiche dell’artista Kader Attia, che “afferra il presente” dalle antiche rovine di Tazoult, alle opere del brasiliano Carlo Gomes, rappresentate con successo sia a Città del Messico sia nei teatri italiani.
Si tratta in prevalenza di strumenti di comunicazione che possono diffondere buone pratiche, se il docente è in grado di riconoscere il passato “riciclato”, che propone raramente chiavi interpretative, e collega la fascinazione delle immagini del passato alla corretta riflessione storiografica.

ALLA RICERCA DI CONNESSIONI GLOBALI

L’attento lavoro ruota intorno all’ibridazione e al “meticciato”, che costituiscono l’ambito dentro il quale l’autore colloca la specificità dei fenomeni coloniali intesi come processi di scambio, seppur diseguale, di dominio e sopraffazione ma anche di contaminazioni reciproche, che determinano quelle stratificazioni culturali e mescolanza di componenti tali da mettere in discussione ogni forma di idealizzazione o purezza nativista. Nell’agile volume non troviamo dunque movimenti unidirezionali che dall’Europa o dall’Occidente giungono alle periferie del mondo, ma traiettorie più complesse e meno evidenti che si diramano da centri diversi, anche molto distanti tra loro; si reinquadrano storie locali, che costituiscono quell’eredità con cui lo storico è chiamato a confrontarsi, pur nella consapevolezza che una loro ricalibratura non è un’operazione storiografica sufficiente a configurare lato sensu una “storia globale”.
Nell’intento di definire una nuova storia da insegnare nel XXI secolo, si seguono trame narrative nate dalla connessione di diversi punti di vista locali che si confrontano con la pluralità delle realtà globali in una prospettiva di lungo periodo che invita a ricontestualizzare i passati dei popoli che abitano il pianeta.

PER UNA “COSCIENZA-MONDO”

Abbiamo dunque ancora bisogno della storia, secondo Serge Gruzinski, ma di una storia in grado di riconnettere realtà globali e di travalicare quei confini nazionali che troppo spesso la storiografia non ha osato oltrepassare. Le connessioni e i nuovi piani di comparazione storica devono mettere in relazione fatti e problemi, ma da angolature plurime, non a partire da un unico modello eurocentrico come termine di confronto obbligato da cui ricavare permanenze e cambiamenti. È necessario ridimensionare l’eurocentrismo, senza tuttavia limitarsi a una inversione di prospettiva da cui inquadrare la “visione dei vinti”, poiché lo schematismo binario è di fatto riduttivo.
«La globalizzazione, la rivoluzione digitale, lo sgretolarsi della supremazia dell’Occidente, il risveglio dei mondi islamici, il ritorno della Cina, l’affermazione dei nuovi paesi emergenti stanno modificando in modo irreversibile i nostri orizzonti. Senza dimenticare, in contesti a noi più vicini, i processi di ricomposizione delle popolazioni europee, palpabili tanto nelle campagne del Nord Italia e nelle città olandesi quanto nei quartieri fino a qualche tempo fa proletari di Roubaix-Tourcoing[3]».
L’Europa è parte del mondo e si comprende solo tenendo conto del mondo, ricostruendone la complessità e riconoscendo quelle connessioni che delineano la fitta trama tra le diverse parti che lo compongono, seguendo una cronologia che non può essere unica, poiché la sovrapposizione dei tempi crea inevitabilmente discordanze e anacronismi. E la pluralità dei tempi è tanto orizzontale quanto verticale: tempi estranei gli uni agli altri si materializzano, entrano in sintonia e mostrano sul piano locale il corso della globalizzazione.

Note

[2] Gruzinski S., L’Aigle et le Dragon. Démesure européenne et mondialisation au XVIsiècle, Fayard, Paris 2012.

[3] Cfr. Gruzinski S., Abbiamo ancora bisogno della storia?, op. cit., p. 7.

Patrizia Fazzi

Acessar publicação original

[IF]

DEP. Deportate, esuli, profughe. Rivista telematica d studi sulla memoria femminile (BC)

DEP. Deportate, esuli, profughe. Rivista telematica d studi sulla memoria femminile. Resenha de: ERMACORA, Matteo. Il Bollettino di Clio, n.9, p.61-62, feb., 2018.

Pubblicata online dal luglio 2004, la rivista “DEP. Deportate, esuli, profughe. Rivista telematica di studi sulla memoria femminile” si è proposta come luogo di analisi scientifica e di riflessione sul tema della memoria femminile nelle situazioni di esilio, deportazione e profuganza, – temi poco indagati dalla storiografia –e darne nel contempo massima visibilitàattraverso ricerche, documenti, scritti inediti etestimonianze orali.

Proprio per favorire la circolazione delle idee, superare la marginalità tematica della questione di genere e raggiungere un pubblico ampio, si è pensato ad una rivista scientifica “leggera”, digitale, indipendente, gratuita (tutti di documenti sono scaricabili e consultabili), aperta alla partecipazione di collaboratori italiani e stranieri mediante meccanismi di peer review. La rivista, inserita nel sito dell’Università degli studi di Venezia Cà Foscari, è strutturata su cinque sezioni: “Ricerche”, “Documenti”, “Interviste”, “Strumenti di ricerca” (bibliografie, sitografie) e “Recensioni”, concepite come “contenitori aperti”, tali da consentire vicendevoli rimandi.

Sin dagli esordi la rivista ha cercato di contraddistinguersi attraverso una marcata dimensione internazionale, l’ampiezza dello spettro geografico e cronologico preso in considerazione, la pluralità degli approcci disciplinari e metodologici, il graduale passaggio da un “tradizionale” orientamento storiografico ad una più ampia riflessione sui nodi teorici della questione femminile nella contemporaneità. In questa direzione la struttura della rivista si è modificata, aggiungendo la rubrica annuale “Una finestra sul presente”, volta ad illustrare una particolare situazione o tematica d’attualità, e le rubriche “donne e terra”, “donne umanitarie”, volte a valorizzare il rapporto delle donne con la natura, la solidarietà e l’attivismo femminile per la giustizia e i diritti umani. Tali rubriche hanno permesso di allargare lo sguardo a tematiche e situazioni extraeuropee e di ospitare studiosi e studiose di altra nazionalità.

Contestualmente anche la periodicità, dapprima basata su due uscite annuali (gennaio/luglio), alternando numeri monografici a miscellanei, si è via via arricchita con la presenza di “numeri speciali” curati da singoli o gruppi di studiosi esterni; la serie è stata inaugurata da Violenza, conflitti e migrazioni in America Latina (n. 11/2009).

L’attività della rivista si è accompagnata ad una serie di presentazioni pubbliche, mostre, seminari, convegni e giornate di studio, i cui materiali sono poi comparsi nella rivista stessa. Tra gli eventi promossi è necessario ricordare la giornata di studio su La lingua della memoria (giugno 2005), la mostra sui disegni dei bambini nei campi di concentramento italiani di Rab e di Arbe, i convegni Donne in esilio. Esperienze, memorie, scritture (ottobre 2006), Genere, nazione, Militarismo (ottobre 2008) e La violenza sugli inermi (maggio 2009), la Giornata della memoria La Shoah in Serbia (gennaio 2010), i seminari dedicati a Lo stato di eccezione (febbraio 2007), Donne e tortura (giugno 2010), lo sradicamento attraverso l’analisi di Hannah Arendt e Simone Weil (2011-2013), Tortura ed infanzia (giugno 2015), i convegni internazionali Vivere la guerra, pensare la pace 1914-1921 (novembre 2014) e Confini: la riflessione femminista (novembre 2017).

Se inizialmente, proprio partendo dal caso paradigmatico della Shoah, la questione posta al centro dell’analisi storiografica era data dalla necessità di ridare una “identità” e una “dignità” alle vittime indistinte della violenza genocidaria, della deportazione, dei sistemi totalitari, dei vari episodi di “infanzia negata” (n.3/2005: I bambini nei conflitti. Traumi, ricordi, immagini), dando valore ai destini individuali di donne e bambini, valorizzando le loro voci, le strategie di sopravvivenza e di reciproco aiuto, nel corso degli anni la rivista, adottando un approccio interdisciplinare, ha progressivamente dilatato i campi di indagine, spostandosi progressivamente su tematiche che riflettevano il rapporto guerra totale e profuganza nelle guerre del Novecento (nn.13-14/2010: La violenza sugli inermi), la privazione dei diritti e la “violenza estrema” dello stupro (n. 10/2009: Genere, nazione, militarismo. Gli stupri di massa), la prostituzione forzata, fino ad arrivare al femminicidio messicano (n. 24/2014). Costante in questo senso è stata l’attenzione alla lingua, alle parole, alla rappresentazione letteraria come strumento per esprimere il trauma ed esorcizzare il dolore (n. 8/2008, Donne in esilio; n. 22/2013, Voci femminili nei lager sovietici; n. 29/2016, Primo Levi e le scritture della salvazione).

Accanto al versante prettamente storiografico l’indagine si è progressivamente estesa all’esplorazione del filone del pensiero femminile e femminista, mettendone in luce complessità, soggettività, aperture critiche e alterità rispetto alle idee dominanti, pubblicando scritti inediti, opuscoli, antologie. Partendo dal tema della cittadinanza, della presenza/assenza delle donne sulla scena pubblica e dei diritti delle donne negati per forza di legge (nn. 5-6/2006), si è articolato il tema dello “sradicamento” – fisico, culturale, territoriale, da “sviluppo” capitalistico – come aspetto cruciale della condizione femminile nel tempo di guerra e di pace e si è cercato di valorizzare la capacità delle donne e del pensiero femminile di cogliere questa condizione e nello stesso tempo di metterla in discussione mediante la proposta di nuovi orizzonti sociali, relazionali, economici. Di qui l’attenzione riservata alla riflessione pacifista e femminista sulla denuncia della natura della guerra (nn. 18-19/2012; n. 31/2016), la ricostruzione di biografie di donne attive sul versante del relief work, l’analisi delle azioni di militanti pacifiste ed ecologiste, la riscoperta del pensiero di attiviste rispetto all’economia, alla pace, all’ambiente e ai diritti umani (Ruth First, n. 26/2014; Rosa Luxemburg, n.28/2015; Rachel Carson, n. 35/2017; lecollaboratrici di Gandhi, n. 37/2018) nonchél’ecofemminismo (n. 20/2012), il femminismo e laquestione animale (n. 23/ 2013). Questetematiche, variamente indagate dal punto vistastorico, filosofico, giuridico e sociologico,consentono di offrire un prisma rappresentativodella ricchezza del pensiero femminista e nelcontempo costituiscono un promettente campo dinuove indagini.

Matteo Ermacora

Acessar publicação original

[IF]

L’età del transito e del conflitto. Bambini e adolescenti tra guerre e dopoguerra. 1939-2015 – BACCHI (BC)

BACCHI, Maria; ROVERI, Nella. L’età del transito e del conflitto. Bambini e adolescenti tra guerre e dopoguerra. 1939-2015. Bologna: Il Mulino, 2016. 592p. Resenha de: CITTERIO, Silvana. Il Bollettino di Clio, n.9, p.66-69, feb., 2018.

Il volume: le sue parti e i suoi significati  In un ponderoso volume di ben 592 pagine, le curatrici Maria Bacchi e Nella Roveri tengono insieme vicende che hanno come comun denominatore l’esperienza di bambini, bambine, adolescenti in guerra, in fuga dalle stesse e nei vari “dopoguerra”. Dette vicende si collocano nel tempo lungo dalla Seconda guerra mondiale ai giorni nostri e in un contesto globale.

Marcello Flores, nel saggio introduttivo Cartografie del Novecento: luoghi e forme del conflitto, ricostruisce la cornice spazio-temporale del “secolo breve” e ne indica i segni distintivi e contraddittori. Se, infatti, per un verso è il periodo in cui si conclamano i diritti delle persone, nasce l’opinione pubblica e si afferma il valore della libertà e della democrazia, (Flores cita per esempio la campagna di Conan Doyle e Mark Twain contro il dominio personale e feroce di Leopoldo II nel Congo), per l’altro è e sarà ricordato come un secolo di totalitarismi, razzismi e stermini. Flores ricorda: in Africa la distruzione degli Herero in Namibia da parte dell’esercito tedesco, i campi di concentramento inglesi per i boeri e, più recentemente, il Rwanda e il Congo; in Asia la Cambogia di Pol Pot; In America Guatemala e Argentina. In Europa, dopo la Shoah, ex Jugoslavia e Cecenia.

Dopo l’introduzione di Marcello Flores, il volume si articola in tre parti. La prima, Infanzie e guerre del Novecento, raccoglie l’esperienza di solidarietà e salvataggio dei ragazzi di Villa Emma a Nonantola, la testimonianza di intellettuali approdate in Italia dopo la Shoah (Edith Bruck) e dopo il conflitto serbo-bosniaco (Anja Galičić e Elvira Muičić) e la vicenda di Keiji Nakasawa che, sopravvissuto alla bomba di Hiroshima, racconterà la sua storia in un fumetto manga.

La seconda, All’inizio del terzo millennio, tratta dei ‘minori non accompagnati’ in fuga dai loro paesi e in transito o in arrivo in Italia, all’inizio del XXI secolo.

Nella terza, Memorie dell’infanzia in guerra, vengono riesaminate le esperienze dei bambini in guerra narrate nella prima parte e si aggiungono altri racconti, per esempio la vicenda della colonia di Izieu e della sua eroina e testimone, Sabine Zlatin.

Nello spazio temporale coperto dal volume (1939 – 2015), l’esperienza dei ragazzi di Villa Emma a Nonantola (fra il luglio 1942 e l’ottobre 1943) si colloca come esempio positivo di gruppo, che seppe attivare dinamiche di salvezza e di crescita. Nel 2004, la nascita della Fondazione Villa Emma a Nonantola si inserisce come buona pratica di ricostruzione storica e di conservazione dei luoghi della memoria.

Figure e ruoli femminili nel Novecento attraversato dalle guerre  Mentre le storie attuali dei minori non accompagnati sono essenzialmente storie al maschile, le vicende della Shoah e quelle relative alla sanguinosa deflagrazione dell’ex Jugoslavia sono popolate da figure femminili. Le donne, si sa, sono “vittime storicamente designate”, ma chi sopravvive assume spesso il ruolo di testimone consapevole. Vediamo di seguito quali storie “al femminile” hanno rilievo nel volume.

Dalle pagine dedicate all’ex-Jugoslavia nell’ultimo decennio del Novecento, possiamo ricavare le testimonianze, analoghe ma differenti, di due scrittrici, Anja Galičić e Elvira Mujčić, preadolescenti al tempo del loro esodo in Italia durante la guerra di Bosnia.

Entrambe provengono da famiglie di intellettuali, musulmane ma profondamente laiche; entrambe trovano rifugio in Italia e vi si laureano con una tesi analoga sul ruolo dei media nella guerra dell’ex Jugoslavia; entrambe useranno l’italiano come lingua della loro produzione letteraria. Tuttavia, mentre Anja arriva 13enne in Italia dalla nativa Sarajevo con l’intera famiglia nell’aprile 1992 e si stabilisce a Gressoney, Elvira vi arriverà nel 1993 a 14 anni, dopo essersi separata dal padre e dallo zio che perderanno la vita e il corpo nel genocidio di Srebrenica, e dopo aver trascorso un anno presso un campo profughi della Caritas in Croazia.

Da queste esperienze emerge, come dato rilevante del vissuto delle bambine e dei bambini in tale contesto, quanto ci ricorda Maria Bacchi “La guerra angoscia i bambini prima e li perseguita dopo, quando gli adulti pensano che i più piccoli non ne siano toccati o ne siano finalmente fuori. Il suo svolgimento li espone a rischi terribili che, sappiamo, genera traumi, ma crea anche, paradossalmente, una sospensione della normalità che offre imprevisti spazi di libertà e di avventura”.1  Dello stesso tono la diretta testimonianza di Elvira Mujčić: “Uno degli aspetti più allucinanti di una guerra è la noia. […] Mentre gli altri bambini in giro per il mondo raccoglievano le figurine, noi raccoglievamo i pezzi di granata e facevamo le nostre collezioni, con tanto di scambi.”2 Si tratta di bambini e bambine che non possono proprio credere all’evidenza della guerra nella multiculturale Sarajevo e nella Bosnia tutta. A conforto si cita anche la testimonianza di Sasa Stanisic, giovane scrittore bosniaco in lingua tedesca.3 Del resto, il nodo della inesplicabilità dell’esplosione nazionalista nell’ex Jugoslavia è il rovello delle vittime (la stessa Mujčić lo tratta nel suo romanzo E se Fuad avesse avuto la dinamite) ed è un tema su cui si va facendo via via maggior chiarezza: con la pubblicizzazione di documenti secretati paiono delinearsi incapacità, incuria e connivenza dell’Occidente.

Un’altra storia d’infanzia in guerra è quella di Edith Bruck. Lo scenario qui è quello della Seconda guerra mondiale. Edith viene deportata a 12 anni dal suo villaggio ungherese nei lager nazisti a cui sopravvive per arrivare, dopo varie peregrinazioni, in Italia, dove comincia, con la sua autobiografia in italiano –Chi ti ama così- un’intensa attività di scrittrice e testimone. Bruck si riconosce nell’ebraismo laico (per lei archetipo di tutte le diversità) e assume la responsabilità di denunciare a quanti non sanno e non conoscono l’orrore indicibile dell’Olocausto. “Dire terrore, orrore, paura, dolore, sofferenza, fame, freddo non esprime quel freddo, quella fame, quel terrore. Anche adesso ho fame e freddo, ma non c’è confronto.”4 Signora Auschwitz verrà rinominata la Bruck da una studentessa che ne ascoltava la testimonianza. E Signora Auschwitz diventerà poi il titolo di una sua opera.

Infine Izieu. La memoria e il luogo di Pierre Jérome Biscarat ricostruisce l’episodio della colonia di Izieu, da cui il 6 aprile 1944 vennero arrestati dalla Gestapo, per ordine di Klaus Barbie, 44 bambini ebrei e 7 educatori. Imprigionati a Lione vennero successivamente internati ad Auschwitz. Sola sopravvissuta Lea Feldblum, un’educatrice di 26 anni. Tra il maggio 1943 e l’aprile 1944 la direzione della colonia era stata affidata a una coppia di ebrei francesi: Sabine e Miron Zlatin. Sabine si salverà perché quel 6 aprile 1944 si trovava a Montpellier e si prodigherà per avere giustizia, salvando la memoria e la storia di Izieu, fino a ottenere l’estradizione dalla Bolivia di Klaus Barbie che, processato nel 1987, sarà condannato all’ergastolo per crimini contro l’umanità.

Nel 1994 il Presidente Mitterand inaugurerà il Museo memoriale dei bambini di Izieu che è oggi accessibile alle scuole e svolge un’importante funzione pedagogica per salvare la memoria e ricostruire la storia della vicenda nell’ambito della Shoah e della Seconda guerra mondiale.

Quali analogie ritroviamo fra le storie di Anja e Elvira, le due adolescenti in fuga dalla guerra di Bosnia che eleggono l’Italia a loro luogo d’asilo, e le vicende di Edith, sopravvissuta al campo di sterminio, o di Sabine che per caso lo evitò?  Sicuramente le accomuna una formazione laica, acquisita in ambito familiare – è il caso dichiarato di Anja e Elvira, intellettuali e musulmane – o conquistata successivamente, come Edith Bruck, che si riconosce in un “ebraismo laico”, o Sabine Zatlin, ebrea naturalizzata francese. In secondo luogo la volontà e la necessità di testimoniare sia con i modi della finzione letteraria (Bruck, Mujčić, Galičić) sia attraverso incontri con i giovani (Bruck). Infine l’esigenza profonda di avere giustizia a cui dedicò la sua vita Sabine Zatlin, ricostruendo la memoria di un luogo e la storia di chi altrimenti sarebbe stato cancellato.

Riflessioni e spunti didattici tra storia, memoria, narrazione  Il testo offre contributi interessanti per una ricostruzione storiografica che accosta, in una riflessione non convenzionale, le storie della Shoah e il conflitto di fine Novecento nell’ex-Jugoslavia.

Il saggio di Maria Bacchi Elementi essenziali per una cronologia delle guerre jugoslave inquadra sinteticamente la complessità della vicenda. Lo sguardo di lungo periodo coglie, nella battaglia di Kosovo Polije del 1389, uno degli snodi in cui “la storia viene usata come un coltello per smembrare una nazione.”5 Infatti, in tale battaglia, divenuta simbolo della nazione serba, i serbi furono sconfitti dai turchi dell’Impero ottomano. Allo stesso modo, nel conflitto che insanguina i Balcani negli Anni ’90, Seconda guerra mondiale e Resistenza vengono richiamate in modo distorto: “Dove erano i vostri padri, mentre i nostri combattevano i nazisti?” (Detto dai paramilitari serbi ai bosniaci mentre li torturavano). Con tali modalità si sanciva la negazione del principio di Unità e Fraternità su cui si era costruita la Repubblica Jugoslava di Tito fino alla nuova Costituzione del 1974, che, a giudizio di Bacchi, è sintomo e, insieme, fattore di disgregazione.

Il testo di Nella Roveri La memoria e i luoghi. Nonantola, Izieu, Sarajevo. Quadri della memoria Note di lettura6 richiama i concetti fondamentali di memoria individuale e collettiva e il loro ruolo nella ricostruzione storica, avvicinando le vicende della Shoah – Nonantola e Izieu – a quelle del conflitto di Bosnia (Sarajevo). Con l’istituzione dei giorni della memoria e del ricordo, in Italia e in Europa si rende ufficiale la memoria collettiva del gruppo di appartenenza (sia esso l’intera nazione o la comunità religiosa e politica) e se ne rischia, al contempo, la mitizzazione e/o la banalizzazione con pratiche di “uso pubblico della storia”. In proposito Biscarat pone la questione della significatività e dell’efficacia dei “viaggi della memoria”, in particolare ad Auschwitz, in inverno e con studenti fra i 13 e i 15 anni.7  Occorre invece una ricostruzione storiografica che renda ragione dei fatti, onde evitare per le guerre e gli stermini di fine Novecento i silenzi e le negazioni imposti dopo la Seconda guerra mondiale, quando la verità dei vincitori è diventata la storia ufficiale.8  Giulia Levi nella sua intervista del 2011 a Mirsad Tokača, direttore del Centro di Ricerca e Documentazione di Sarajevo – finanziato da enti internazionali e sponsor privati – ne mette in luce la metodologia di ricerca scientifica. Il Centro opera per una ricostruzione storica capace, incrociando fonti d’archivio plurime e di diverso tipo con le testimonianze dei sopravvissuti, sia di informare con dati certi, pur se non definitivi, sia di restituire nome, volto e dignità a ogni vittima. Il lavoro del Centro ha portato alla pubblicazione nel 2013 del volume The Bosnian Book of Death, in cui viene attestato il numero di 97.207 vittime accertato a quella data. Numero che si colloca tra le cifre minime (25/30.000) e massime (300/400.000) utilizzate per una ricostruzione strumentale e di parte dei fatti.

Un altro aspetto interessante del volume dal punto di vista didattico è il rapporto fra Storia e storie personali, in particolare le storie di cui Elvira, Edith e Keiji sono stati protagonisti e vogliono essere testimoni.

Elvira Mujčić e Edith Bruck utilizzano i modi della finzione letteraria e identificano nel romanzo e nella lingua italiana (non materna e, quindi, in grado di offrire più significati e una nuova identità) la forma più adatta a veicolare la propria vicenda, perché è nella trasposizione letteraria e attraverso una lingua acquisita che la propria storia più si avvicina alla verità.

Invece Keiji Nakasawa usa la forza narrativa del manga per raccontare “la sua esperienza di bambino che rimane solo con la madre in un inferno di fuoco, mostri e morte.”9  Il contesto storico e socio-culturale del Giappone nell’estate del 1945 e nel primo dopoguerra è ben descritto nel contributo di Rocco Raspanti, Un sussidiario del dolore. La storia di Gen di Hiroshima.10 Il contributo è completato da alcune strisce del fumetto manga, con traduzione italiana in calce. Strisce, a mio avviso, molto efficaci per una presentazione del tema “Hiroshima e bomba atomica” anche con gli allievi della Scuola Primaria.

In tutti e tre i casi la volontà di narrare si intreccia con il desiderio di collocare la propria storia nella Storia ed è molto evidente l’intento di consegnare alla Storia, con la S maiuscola, dati che le siano utili.

[Notas]

1 Cfr. M. Bacchi, Racconti di guerra, di fuga, di esilio.Note di lettura, pag. 187.

2 Cfr. Elvira Mujčić, Scrivere la memoria, p. 227.

3 Cfr. M. Bacchi, cit. pag. 187.

4 Cfr. N. Roveri, L’evento, il silenzio, il racconto.Note di lettura, pag. 254.

5 Cfr. M. Bacchi, cit. pag. 186.

6 Cfr. N. Roveri, pp. 473 – 485.

7 Cfr. P.J. Biscarat, Izieu. La memoria e il luogo, pp. 507-532.

8 Cfr. in N. Roveri, cit., pag. 480; Cfr. Giulia Levi, Intervista a Mirsad Tokača pag. 557 e seg.

9 Cfr. N. Roveri L’evento, il silenzio e il racconto. Note di lettura, pag. 258.

10 Cfr. pp. 287- 322.

Silvana Citterio

Acessar publicação original

[IF]

Donne ai margini. Tre vite del XVII secolo – DAVIS (BC)

DAVIS, Natalie Zemon. Donne ai margini. Tre vite del XVII secolo. Bari: Laterza, 1996. 372p. Resenha de: COCILOVO, Cristina. Il Bollettino di Clio, n.9, p.70-72, feb., 2018.

Tre donne introdotte da un’intervista impossibile, che le costringe a prender vita in un libro e a confrontarsi, loro così lontane nella religione (rispettivamente ebraica, cattolica, luterana). Ma al dunque, grazie alla caparbietà dell’autrice Natalie Zemon Davis, riescono nella simulazione a trovare il fondamento della loro identità comune: l’affermazione della loro autonomia, del loro talento, della loro intraprendenza. Eccezionale per un’epoca caratterizzata dal “silenzio” delle donne, dall’assenza di loro tracce, nella ricostruzione selettiva della storiografia ufficiale.

Glikl Bas Yehudah Leib, ebrea askenazita cioè di origine tedesca, a differenza delle altre donne del suo tempo non disdegna il lavoro. Nonostante una numerosa famiglia, collabora con l’attività dell’amato marito, commerciante di gioielli e prestatore di denaro, che a seconda del momento può portare a vistosi arricchimenti come a repentine rovine. Glikl non dà al denaro valore in sé. Non desidera vivere nel lusso. Come la maggior parte degli ebrei abita in una casa d’affitto, non potendo per legge possedere proprietà. Per lei il valore assoluto è l’onore, l’essere considerata degna di rispetto, lei come la sua famiglia. Sappiamo tutto questo da una autobiografia articolata in ben sette libri, in cui Glikl alterna la narrazione della sua vita a vere e proprie parabole, che hanno lo scopo di far comprendere i valori positivi della solidarietà, dell’amore, il senso della sofferenza. Una donna di grande cultura teologica e tecnico – commerciale, rispettata per la sua acutezza nel gestire questioni finanziarie e insieme profondamente religiosa e giusta. Sebbene lei e la sua famiglia abbiano talvolta subito le conseguenze di persecuzioni antiebraiche, che li costringono a trasferimenti forzati, accetta la sofferenza, mai si ribella a Dio che muto e immobile non interviene. Semmai lo interroga e con rassegnata accettazione e cerca di ricominciare ex novo.

Marie de l’Incarnation, se si può considerare per il nostro tempo personaggio singolare, per non dire psichicamente disturbato, è invece perfettamente inquadrabile nell’epoca della Controriforma. Ispirata fin da giovane dalla vocazione divina, trascorre la vita secondo due passioni apparentemente poco conciliabili: un forte trasporto per la vita mistica e una spiccata capacità organizzativa del quotidiano. Divenuta vedova precocemente, percepisce il potente richiamo del misticismo come altre “sante” dell’epoca, che trasfigurano in estasi religiosa le pulsioni del proprio corpo, ma nel contempo gestisce con molta maestria, quasi con piglio imprenditoriale, l’azienda commerciale della sorella e del cognato, che la ospitano insieme al figlioletto. Per il resto della sua vita vivrà questa difficile dicotomia. A circa trent’anni decide di prendere i voti come suor Orsolina, separandosi dal figlio adolescente e disperato. Vive in clausura, mortificando con sofferenze fisiche il suo corpo secondo l’esempio di Teresa d’Avila, finché non ha l’occasione di poter educare al pensiero cristiano i “selvaggi” del Nuovo Mondo. Si trasferisce in Canada, dove lavora con efficientismo invidiabile nelle difficili condizioni di una Missione delle suore Orsoline. Qui lei, che rifiutava il suo corpo, si accosta alla corporeità degli altri e tocca, cura, pulisce, insegna, impara le lingue locali, converte indios in un’opera pastorale a tutto campo. Soprattutto ha una ultra decennale corrispondenza con il figlio Claude, che a sua volta aveva preso i voti, e scrive testi religiosi per le genti locali nella loro lingua e scrive anche la sua autobiografia. Il figlio raccoglierà con devozione gli scritti della madre, ma li correggerà adattandone il linguaggio ingenuo allo stile sospettoso della Chiesa dell’epoca, per pubblicarli in un’opera postuma, “Vie”, dove però non inserisce gli scritti teologici di Marie in lingua irochese, algonchina e urone, utilizzati nella sua azione pastorale in Quebec.

Nonostante gli attacchi di misticismo e autoflagellazione, Marie ha un aspetto che la avvicina alla nostra sensibilità, per la relazione che ha creato con i “selvaggi”. Il suo scopo non è quello di emarginarli, ma di includerli nel mondo dei cristiani, in una visione universalistica, secondo cui non esiste differenza fra esseri umani, se questi abbracciano la parola di Cristo. Marie, mentre cerca di convertirli, educa gli indios al rispetto dell’igiene, della lettura e della scrittura. Qualora essi fuggano per l’innato desiderio di libertà di vivere nella natura, lontano da un convento di clausura, Marie li comprende e li perdona, riscoprendo il ruolo di madre generosa, che non aveva saputo assumere con il figlio al momento dell’abbandono.

Maria Sibylla Merian, luterana, originaria di Francoforte, figlia d’arte di un famoso incisore, non visse una vita familiare e borghese, come le sue condizioni le consentivano, allineandosi così alle stranezze delle altre due donne del libro. Si trasferì nel corso della vita in diversi luoghi, in seguito a scelte di vita radicali. La sua vita si potrebbe definire una metamorfosi, mimando il titolo della sua opera più famosa “Metamorfosi degli insetti del Suriname”, una raccolta di incisioni artistico-scientifiche che rappresentano la stupefacente natura tropicale. Acquisita fin da giovane una certa notorietà, grazie al suo talento di incisore1, diventa famosa dopo la pubblicazione nel 1679 del libro in due volumi “I bruchi. Le meravigliose metamorfosi dei bruchi“, in cui affianca a un centinaio di splendide incisioni di bruchi e insetti, descrizioni basate sulle sensazioni soggettive provate nell’osservazione degli aspetti naturali. Nell’organizzazione dei libri, rifiutò ogni criterio classificatorio, ritenendolo inadeguato. Non seleziona i viventi distinguendoli in catalogazioni di piante, bruchi e insetti; la sua osservazione ruota attorno a una foglia di cui si nutrono simultaneamente bruchi ed altri insetti, mentre le crisalidi si trasformano in farfalle. Evidenzia la vitalità delle relazioni fra gli esseri di un medesimo habitat. Tuttavia la sua visione della natura è profondamente religiosa, perché vi individua la straordinaria onnipotenza divina.

Morto il padre, probabilmente in crisi con il marito, si separa e sceglie di andare a vivere con le due figlie in Frisia, presso la comunità luterana dei Labadisti, che praticavano una fratellanza mistica. Qui rinuncia a ogni bene terreno e tronca le relazioni con l’esterno. Dopo pochi anni vissuti come cristallizzati in quella realtà, ecco la metamorfosi di Maria. L’eccessiva mortificazione, il distacco dalle cose del mondo e della natura, persino il ripudio del suo orgoglio di creatrice di oggetti artistici la spingono a un nuovo cambiamento.

Abbandona la comunità e si trasferisce ad Amsterdam per ricostruire la vita sua e delle figlie, ritornando all’arte incisoria, intraprendendo la strada dell’insegnamento e costruendosi una solida vita borghese, in piena autonomia di scelte anche economiche. Grazie poi al genero, che commercia con le colonie del Suriname, incuriosita dalla ricchezza di vita di quei luoghi, vi si trasferisce per due anni con la figlia minore.

In seguito a quella esperienza, pubblicò la sua opera più originale “Metamorfosi”, in cui riaffermò la sua visione della natura come un insieme di relazioni dinamiche tra viventi, che mutano nel tempo e a seconda del luogo in cui si realizzano. Consultò, senza i pregiudizi coloniali del tempo, indios e schiavi neri, che le diedero preziose indicazioni sulle caratteristiche di piante e animali del luogo, oltre alle loro abitudini di vita. Informazioni che riportò nel libro, anticipando aspetti delle attuali ecologia e antropologia. Tornata in patria, ottenne fama e riconoscimenti.

Che cosa hanno in comune queste tre donne così diverse tra loro, vissute in un periodo storico che condannava al silenzio le figure femminili?  La cultura innanzitutto. Tutte e tre abitanti di città hanno realizzato importanti opere nel loro campo specifico con una cultura libera da schemi. Tutte e tre hanno superato radicali cambiamenti, hanno impostato un rapporto profondo con la divinità che prospettava una vita migliore, per superarla e trovare riscatto nel lavoro. Tutte e tre erano esperte contabili, avevano indubbio talento per gli aspetti organizzativi del lavoro e non mancavano di spirito d’avventura.

Ma vivevano ai margini. In che senso? Perché lontane dal potere politico ed economico, perché la loro era una cultura da autodidatta, non costruita nelle accademie. Grazie alla loro intraprendenza riuscirono però a dare significato originale alle loro opere.

Cosa ci resta di loro? L’autobiografia di Glikl ebbe diverse edizioni e una certa diffusione nel mondo ebraico, finché non fu dichiarato libro “velenoso” dal nazismo. Fortunatamente l’autrice ne ha ritrovato una copia alla biblioteca di Berlino.

Le opere in lingua algonchina, irochese e urone di Marie forse andarono disperse dai missionari che si avventurarono all’ovest. Invece è rimasto come testo di riferimento per le Orsoline la sua “Vie” curata dal figlio.

Maria Sibylla ebbe più fortuna. Le sue opere vennero utilizzate e citate da Linneo e la sua raccolta postuma di incisioni fu acquistata da Pietro il grande. Oggi fa bella mostra di sé nella Kunstkammer dell’Accademia delle Scienze di San Pietroburgo, mentre il suo libro delle Metamorfosi è considerato patrimonio nazionale dal Suriname.

Le storie ritrovate delle tre donne potrebbero rientrare nella storia scolastica per ricostruire quadri d’insieme: la vita di ebrei askenaziti in Germania, il rapporto contorto con la religione controriformista di sante in estasi mistica, le relazioni contraddittorie con le genti del Nuovo Mondo, la faticosa affermazione del metodo d’osservazione scientifica.

Per gli studenti il libro costituisce probabilmente una lettura impegnativa, ma in un laboratorio storico di 17/18enni può essere interessante delineare temi come quelli accennati attraverso la costruzione di tre biografie femminili. Potrebbe diventare un’operazione capace di dare una luce diversa a queste tematiche e insieme di valorizzare i contributi ignorati di tre grandi donne del passato.

[Notas]

1 Significativo che in italiano non esista la versione femminile del termine incisore.

Cristina Cocilovo

Acessar publicação original

[IF]

La violenza contro le donne nella storia. Contesti, linguaggi, politiche del diritto – FECI; SCHETTINI (BC)

FECI, Simona; SCHETTINI, Laura Schettini. La violenza contro le donne nella storia. Contesti, linguaggi, politiche del diritto. (Secoli XV-XXI). Roma: Viella, 2017. 287p.  Resenha de: GUANCI, Vicenzo. Il Bollettino di Clio, n.9, p.73-74, feb., 2018.

Le guerre di fine Novecento si sono distinte non solo per il 95% di vittime civili non combattenti ma per l’uso del corpo delle donne come arma. In particolare le guerre etniche nella ex Jugoslavia e in Ruanda hanno messo in evidenza come gli stupri di guerra fossero programmati e usati come un’arma vera e propria. Un’arma particolarmente efficace nelle società patriarcali fondate su una concezione proprietaria del corpo femminile. La guerra non solo rende legittimo infrangere i comandamenti divini del non rubare e non uccidere ma anche quello di non desiderare la “donna d’altri”; lo stupro della “donna del tuo nemico”, infatti, ha la duplice funzione di umiliare nell’immediato il nemico incapace di proteggere la “propria” donna e di garantirsi in aggiunta effetti dirompenti che vanno oltre la fine del conflitto.

Del resto, la retorica nazional-patriottica usa la metafora della nazione-donna da difendere e lo sfondamento dei confini un disonore; proprio questo fece assumere allo stupro un valore chiave nei conflitti tra nazionalismi, rendendolo nel corso del Novecento una tra le più efficaci e ricercate pratiche di guerra.

Ma andiamo per ordine. Il volume curato da S. Feci e L. Schettini affronta il tema della violenza maschile sulle donne nell’Europa degli ultimi cinquecento anni. Le fonti principali sono di tipo giuridico: testi normativi e atti processuali.

Analizzati e interpretati alla luce del contesto storico e sociale nel quale venivano utilizzati e applicati.

Ad esempio, in età moderna (e medievale) le prerogative del capofamiglia di esercitare un diritto di correzione (ius corrigendi) nei confronti della moglie, dei figli, dei domestici era considerato ovvio, riconosciuto ovunque in Europa e nei domini coloniali, qualsiasi fosse la confessione religiosa, la situazione patrimoniale della famiglia, il contesto politico e sociale. Era considerato, altresì, ovvio l’uso della forza per correggere e imporre comportamenti adeguati all’obbedienza e al rispetto che si deve al capofamiglia.

Tuttavia, l’uso della “forza” non doveva eccedere, sconfinando nella “violenza”. In questo caso, la moglie poteva ricorrere a istituzioni e magistrature per denunciare gli abusi. Diventava in quel caso decisiva la testimonianza dei vicini, la percezione che il contesto sociale aveva delle violenze. Va detto che la tendenza naturale di magistrati sia ecclesiastici che laici era quella di salvaguardare l’unità della famiglia limitandosi, nei casi più favorevoli alle donne, ad un ammonimento al maschio violento.

La cosa interessante è che l’esame attento delle carte processuali, pur narrando storie di violenze prolungate nel tempo e di progressiva gravità, consentono di individuare un limite, una “soglia”, pur flessibile, tra l’uso della forza per correggere comportamenti ritenuti inaccettabili e l’abuso violento e ingiustificato.

Oggi la violenza contro le donne, in particolare i tanti femminicidi degli ultimi anni, da qualcuno è stata vista come un ultimo colpo di coda del patriarcato declinante.

Non è detto. La partita è lunga. L’indagine storica può aiutare a capire di più e meglio. Si pensi, per esempio, al rifiuto inflessibile e religiosamente fanatico del “matrimonio affettivo” in molte società, ritenendo un sacro obbligo divino per il pater familias scegliere lo sposo per la “propria” figlia. La storia ci fa capire tanto. Prima di tutto ci rende chiari i tratti costitutivi del patriarcato ancora presente nelle nostre società contemporanee; in secondo luogo, fa piazza pulita di ogni generalizzazione e semplificazione circa i contesti nei quali è presente la violenza maschile contro le donne. Essa non conosce confini geografici né epoche storiche; non ha barriere culturali né di classe né tantomeno religiose.

“D’altronde, scrivono nell’introduzione le curatrici nell’Introduzione, tra uomini e istituzioni era e resta a lungo in atto una partita circa i margini di immunità e impunità spettanti al pater familias, condotta e giocata con variazioni ed esiti difformi nel tempo e nei diversi contesti, ma assai viva.”

Vicenzo Guanci

Acessar publicação original

[IF]