Posts de Itamar Freitas
Cultura Material e Impressa na construção da História | Temporalidades | 2018
O que se imprime e o que se lê?
Oportuna é a proposta deste dossiê da Temporalidades de evidenciar reflexões que privilegiem o diálogo temático da cultura impressa com a perspectiva de análise historiográfica que busca na leitura dos objetos o caminho instrumental da compreensão histórica. Os elementos materiais da cultura – como prefiro nominar o que normalmente se chama de “cultura material” – apresentam-se ao historiador como documentos de realidades sociais. Não são apenas simples reflexos da construção social, mas, repertórios de objetos criados e feitos pelo homem e integrados em sua constituição histórica. Os artefatos não são, ainda, simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais. Leia Mais
Cores, classificações e categorias sociais: os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX / Estudos Ibero-Americanos / 2018
O presente dossiê reúne investigação de historiadores do Brasil, Canadá, Estados Unidos, México e Portugal, em torno das categorias sociais empregadas para classificar os africanos e seus descendentes nos impérios ibéricos. O elemento central das diversas contribuições é a tentativa de problematizar as classificações e as hierarquias na documentação e nas sociedades aqui examinadas, sejam elas Luanda, Rio de Janeiro, Paraíba, Coimbra, o norte de Moçambique, a fronteira sul do Brasil, a Nova Espanha ou o Reino do Congo. Na problematização, os autores acabam por historicizar as diferenciações sociais que, em distintos espaços e épocas, resultavam em privilégios ou exclusões.
Conquista e ocupação significavam impor uma nova forma de classificação nas populações sob domínio, aspecto esse que não foi exclusivo dos impérios espanhol e português (ANDERSON, 1983; APPADURAI, 1993; SCOTT, 2005; SALESA, 2011). Ao contrário da historiografia sobre os impérios britânicos e franceses, principalmente produzida em inglês e francês, que defende a invenção do conceito de raça como um fenômeno do século XIX, os agentes dos impérios espanhol e português já utilizavam categorias de classificação baseada na cor da pele no século XV (PERRONE-MOISÉS, 1989; SWEET, 1997; MENDES, 2012, 2013; BETHENCOURT; PEARCE, 2012). O conceito de raça está associado à crença de que “os fundamentos da alteridade postulada entre grupos humanos não é – e apenas – social, mas também – e igualmente – natural” (SCHAUB, 2016, p. 102). Entre outras características culturais e físicas, incluía-se a cor atribuída aos indivíduos. É certo que nos estados ibéricos, a genealogia medieval do conceito de raça aponta para a linhagem e o sangue, articulados posteriormente com critérios religiosos que, nos estatutos de limpeza de sangue, associavam “raça”, ou “raças infectas”, a judeus, mouros e infiéis, uma identificação que se foi afirmando a partir da expulsão dos judeus e muçulmanos da Península Ibérica. Essa marca alargou-se aos africanos e aos seus descendentes quando, na disputa por recursos, “mulatos” e “pardos” entraram no rol das raças infectas e viram ser-lhes recusados ou dificultados o acesso a determinados privilégios que ordenavam a sociedade estamental do Antigo Regime. Esse percurso não foi simples nem linear, sendo notório em diversa legislação do século XVII, apesar de medidas que, mais do que grupos, exceptuavam indivíduos (VIANA, 2007; FIGUEIROARÊGO, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; PAIVA, 2015). A cor “preto”, frequentemente relacionada com a qualidade mecânica do trabalho feito pelos escravos, foi conectada com os africanos e a escravidão. O padre António Vieira, por exemplo, escreveu tratados e sermões sobre brancos e negros, suas diferenças físicas e morais, e os vínculos entre ser negro e ser escravo. No Sermão XX do Rosário, sobre as irmandades de brancos e negros argumentou: “os brancos e senhores não se deixem vencer dos pretos, que seria grande afronta da sua devoção: os pretos e os escravos procurem de tal maneira imitar os brancos e os senhores, que de nenhum modo consintam ser vencidos deles” (BOSI, 2011, p. 244-245). Ou seja, o vocabulário e a atribuição de valores associados à cor da pele já estavam presentes no século XVII.
Classificações, sejam por afiliações religiosas e culturais ou cor da pele, atuam como instrumentos perniciosos empregados pelo estado para diferenciar populações e limitar direitos e o acesso a recursos. Toda a classificação implica ordenação e hierarquização. Nem todos os historiadores, entretanto, vinculam o uso de marcadores associados à cor da pele à existência do conceito de raça ou do racismo presente no período anterior ao século XIX e priveligiam a ideia de hierarquias de cores. (LARA, 2007; RAMINELLI, 2012; GUEDES, 2017; PAIVA, 2015). De qualquer modo, é importante destacar que os termos preto, negro, mulato ou branco eram utilizados antes do século XIX, como os autores dos artigos neste dossiê também demonstram. Na maioria dos casos, essas classificações são empregadas de forma ambígua, em que a terminologia tem o objetivo de, como apontado nas palavras do historiador e cientista político Achelle Mbembe, “transformar-se em um complexo perverso, gerador de medos e tormentos, de pensamentos perturbadores e de terror, mas especialmente de sofrimento infinito e, em última análise, de catástrofe” (MBEMBE, 2017, p. 10).
Os impérios ibéricos do período moderno na América, África e Ásia, independentemente dos modos de dominação aí introduzidos, colocaram em contato pessoas de origens diversas e implementaram classificações que priorizavam a textura do cabelo, a cor da pele ou o formato do nariz. Nessas sociedades, construíram-se formas de identificação e de hierarquização social baseadas em aspectos físicos como a cor, que se combinavam com o estatuto jurídico, o patrimônio, a distinção, a religião ou vinculação política. Tais critérios deram origem a um amplo vocabulário, que assumiu fórmulas comuns nos distintos territórios imperiais, mas traduziu, igualmente, especificidades locais. Com variações temporais e espaciais, as classificações eram construções subjectivas, mas estigmatizaram grupos sociais que foram alijados de uma série de direitos. O conceito de classificações, tanto no passado quanto no presente, possui a mesma definição, ou seja, são ficções epistemológicas que estão diretamente vinculadas ao contexto histórico e social (BOURDIEU, 2000; BOURDIEU; SAYAD, 2004; BETHENCOURT, 2014). A partir do final do período moderno, as associações entre a cor da pele dos indivíduos e os seus comportamentos foram reforçadas como critérios de classificação social e foram perdendo sua fluidez e flexibilidade. Em sua concepção, no final do período medieval, os sistemas de classificação eram teológicos e baseados na pureza de sangue, com o objetivo de excluir judeus e muçulmanos em um contexto de expansão do cristianismo e expulsão dos não católicos da Península Ibérica. Religiosos, juristas e burocratas cristãos eram responsáveis por um sistema epistemológico que permitia classificar os demais sem ser classificados. E essa classificação legitimava a conquista, o saque dos bens, a conversão forçada e a expulsão dos muçulmanos e judeus. Esse sistema classificatório passou por transformações, porém, criou a base da hierarquização que privilegiava os ideais cristãos, ancorado em diferenças ontológicas que justificavam a conquista e a colonização. Durante os séculos XVIII e XIX, a teologia foi lentamente substituída pela filosofia secular de Immanuel Kant e pela ciência de Charles Darwin, que elaboraram a noção de que as classificações são inerentemente biológicas, inatas e hereditárias (MIGNOLO, 2013, p. xiv-xv).
Foi, principalmente, no contexto da Iluminismo e das reformas administrativas então encetadas que os impérios começaram a expandir as suas redes de informação sobre os povos conquistados, e, assim, a tentar melhorar a governabilidade. Mapas populacionais, relação de moradores, apontamentos de viagens e inventários de chefes locais foram tentativas de enumerar e determinar a população a ser governada, com o objetivo de taxá-la ou de mobilizá-la para fins defensivos (CANDIDO, 2011, p. 75-99; MATOS, 2013; MATOS; VOS, 2014; RODRIGUES, 2013; SILVA, 2017; WAGNER, 2009). Enumerações e catalogações nunca funcionaram como simples coleção de informações sobre as populações colonizadas. Faziam parte da estratégia de enumeração e objetificação que culminaram com a criação de novas categorias de identificação, baseadas em simplificações binárias, como povos gentios ou vassalos, livres ou escravizados, solteiros ou casados. Essas categorias moldaram estatutos políticos e jurídicos e influenciaram as condições de mobilidade social. A lógica da classificação gerou uma riqueza documental nos arquivos coloniais, onde é possível consultar censos, mapas populacionais, relatórios de viagem, informes etnográficos, entre outros documentos, que justificavam a colonização e a subordinação e forneciam munições à administração colonial para impor tributos, resolver disputas, legislar sobre direitos e representação política, etc. (STOLER, 2002; APPADURAI, 2003; CRAIS, 2003). Apesar do caráter prático e utilitário, as classificações eram, e continuam a ser, uma ilusão burocrática, ou uma abstração, que sugere a ideia de compreensão e clareza. No entanto, o controle burocrático do estado colonial sempre foi frágil no período moderno, apesar do uso constante da violência para garantir a ordem desejada e o controle social.
No caso dos africanos e dos seus descendentes, tanto na África quanto nas sociedades da América e da Ásia, para onde foram transportados como escravizados, as classificações baseadas no mesmo tipo de normas tiveram um forte componente de cor associado à construção de categorias sociais, conquanto, em alguns contextos, elas fossem suficientemente maleáveis para os indivíduos poderem transitar de umas para outras (CASTRO, 1995; MATTOS, 2008; LARA, 1997, 2007; GUEDES, 2008; TWINAM, 2015). É importante ressaltar que nos impérios ibéricos a cor era uma entre outras formas de classificação, e, combinadas com outras categorias como o gênero, o estatuto jurídico, ou a ocupação, garantia ou excluía indivíduos de uma série de direitos e proteções. A crescente analogia entre características físicas e hereditárias moldou um discurso de classificação e hierarquização e a associação entre brancura, pureza, acesso a direitos, a privilégios e à cidadania, que se reforçou no século XIX (LARA, 2007; SILVA, 2009; FIGUEIROA-RÊGO; OLIVAL, 2011; MENDES, 2012; GUEDES, 2013). Tais formas de diferenciação, que não permaneceram fixas, ecoam ainda nas sociedades atuais, como acontece nos debates sobre cotas raciais no Brasil.
Em impérios onde a ideia da naturalidade e da pureza de sangue eram centrais para a organização social e o acesso a cargos, a mistura entre os povos também passou por um processo de organização que resultou na pintura das castas na Nova Espanha (MARTÍNEZ, 2008; VELÁZQUEZ, 2006; KATZEW, 2004), ou na criação de termos como cabra, pardo, mameluco, cafuzo para ordenar os mestiços nas colónias ibéricas da América (RAMOS, 2004; VIANA, 2007; PAIVA, 2015). A mestiçagem deveria ser legislada e encarada como parte do processo de expansão colonial e a categoria social do mestiço deveria ser definida. A miscigenação, seja no Brasil, em Portugal, Angola ou no México, forçou os centros de poder a repensar as relações jurídicas entre súditos e colonos e determinar o status e o lugar social de cada um. No Brasil e nas colónias espanholas da América, africanos e seus descentes, livres, libertos ou escravizados eram classificados não só pela cor como também pela “nação”, criando ainda mais camadas nos processos de identificação (REIS, 1993, 1996; SOARES, 2004; VIANA, 2007; TWINAM, 2015).
Este dossiê da Revista Estudos Ibéricos reúne estudos que revelam as dicotomias dos processos de classificação e mostram, na sequência de outras investigações, que nem sempre os critérios privilegiados pelos poderes centrais das monarquias ibéricas prevaleciam nas colônias. As categorias de cor, almejadas nos mapas populacionais ou nos registros eclesiásticos, eram suscetíveis de apropriação pelos actores locais, que adaptavam a terminologia imperial para exprimir as hierarquias sociais locais. Assim, os limites entre os termos brancos, pretos e mulatos eram constantemente negociados e repensados, em um contexto de expansão do comércio de seres humanos escravizados e do uso de mão de obra africana escravizada. Os textos aqui reunidos apresentam reflexões sobre o lugar dos africanos nos territórios dos impérios ibéricos e exploram a construção das classificações nos vários espaços imperiais. Os autores examinam como essas identificações se sobrepuseram, coexistiram e se transformaram ao longo do tempo, problematizando visões a-históricas das classificações que não consideram o lugar da epistemologia no processo de colonização. Os textos aqui reunidos interrogam a relevância que essas classificações tiveram na formação de categorias sociorraciais e em que medida condicionaram a mobilidade social dos indivíduos.
No artigo “Habitantes desta negra Etiópia, descendentes de Ham”, Carlos Almeida analisa o papel da literatura missionária na construção do mito de Ham para justificar e legitimar a escravização dos africanos centro-ocidentais e a sua comercialização. Almeida identifica a crônica de Gomes Eanes de Zurara, escrita no século XV, como o texto fundador da imagem do africano como o Outro, com uma clara associação entre os povos africanos, os mouros negros a serem temidos, e a maldição hamítica. Nos séculos seguintes, missionários capuchinhos fizeram uso da crônica de Zurara para justificar a conquista, o batismo e o cativeiro dos centro-africanos em textos religiosos. O autor mostra como a maldição de Ham favoreceu a criação de visões estigmatizantes sobre a cor negra e, posteriormente, sobre os africanos, o que levou a associar a cor branca com à pureza e à civilização. A ideia da descendência de Ham também justificou a escravização e o cativeiro como medidas disciplinadoras para salvar almas em um contexto onde a expansão colonial caminhava lado a lado com a missão evangelizadora da Igreja Católica. A associação entre Ham, negritude e cativeiro resultou em imagens estereotipadas dos africanos e seus descendentes e na associação entre comportamento e moral, com consequências que chegam aos nossos dias.
As representações dos africanos construídas a partir desse e de outros mitos operavam na estruturação classificaçções e categorias sociais na Europa e nos seus impérios. Lucilene Reginaldo examina a presença de estudantes de cor na Universidade de Coimbra, em Portugal, durante o século XVIII, apesar dos silêncios das fontes históricas no registro da presença desses indivíduos. “‘Não tem informação’: mulatos, pardos e pretos na Universidade de Coimbra” traz importantes contribuições metodológicas ao evidenciar as dificuldades que historiadores encontram para identificar a cor de indivíduos de certa posição social no passado. Defendendo o diálogo entre os estudos sobre as categorias de cor em Portugal e no seu império, Reginaldo analisa a história de estudantes na Universidade de Coimbra, entre eles o reinol António de Souza Falcão, o baiano Ignácio Pires de Almeida e o mineiro André Couto Godinho, para discutir os conceitos de limpeza de sangue e defeito mecânico nos processos de habilitação académica e seus significados para os africanos e seus descendentes. A miscigenação, ou o “impedimento da mulatice”, podia servir como argumento para negar direitos e o acesso a qualificações académicas e prevenir a mobilidade social de descendentes de africanos, com o argumento sustentado no defeito de qualidade, ou na origem mecânica, que também estava associada à escravidão. Apesar da ausência de estatutos que proibissem a admissão de homens de cor na Universidade de Coimbra, Lucilene Reginaldo registra os percalços que homens pardos e mulatos passavam para concluir o curso e obter o diploma. O texto mostra como se foram reforçando no século XVIII as hierarquias de cor na universidade, que reduziam a mobilidade social dos homens de ascendência africana e o acesso a direitos e privilégios inerentes ao percurso académico. Reginaldo demonstra claramente a variação temporal dos significados e usos dos termos pretos, pardos e mulatos no centro da Universidade de Coimbra.
No artigo “De castas, calidades y razas. Nociones y significados de las clasicaciones sociales”, Maria Elisa Vélazquez discute como as classificações sociais operavam no Vice-Reino da Nova Espanha, entre os séculos XVI e XIX. Conforme a autora destaca, ainda persiste um desconhecimento e silêncio sobre o papel dos africanos e seus descendentes no México, principalmente devido a uma representação da nação, com raízes oitocentistas, que celebra a miscigenação e silencia os processos de diferenciação. Conforme a prática na América espanhola em relação aos grupos sociais estruturados em função da colonização, no período vicereinal também emergiram classificações para os africanos transportados como escravos para o Novo México, sobretudo no período de união das coroas ibéricas, e para os seus descendentes. Em seu artigo, Maria Elisa Vélazquez analisa os conceitos de nação, casta, qualidade e raça ao longo de diversos contextos históricos e discute a complexidade e fluidez das classificações construídas para os africanos e afrodescendentes. Assim como no Império Português, um vocabulário rico foi inventado para descrever os grupos sociais baseados em hierarquia de cores, castas, nações e qualidades, frequentemente combinando mais do que uma dessas características atribuídas ou fazendo-as equivaler. No entanto, a autora sublinha, na sequência de outros estudos, que os famosos quadros de castas que, principalmente no século XVIII, catalogaram grupos sociais minuciosamente tinham pouca correspondência com as práticas quotidianas, onde emergia um leque mais reduzido de catalogações. O empenho por catalogar e hierarquizar indivíduos e grupos não preveniu a mobilidade social, em parte associada à ascensão econômica de africanos livres.
Transitando para o outro lado do Atlântico, “Donas, pretas livres e escravas em Luanda” traz como discussão as classificações e a hierarquização das cores para o maior porto escravista no litoral africano. Vanessa Oliveira compara as possibilidades de mobilidade social e os limites que as mulheres enfrentavam em Luanda. Algumas eram mercadoras e proprietárias de terras, gado e pessoas escravizadas e desfrutavam de posições econômicas e sociais de destaque, apesar de excluídas das decisões políticas. A maioria da população feminina, no entanto, eram mulheres escravizadas ou livres pobres que ofereciam serviços urbanos. A autora examina registros eclesiásticos, escrituras de compra e venda de propriedades e registros de escravos para demonstrar como a hierarquia das cores operava em Luanda no século XIX. As filhas da elite eram identificadas como donas na documentação colonial e, geralmente, classificadas como brancas ou pardas, independentemente da sua genealogia ou aparência física. Oliveira argumenta que “a posse de patrimônio embranquecia”. O comércio atlântico e as atividades urbanas atraíam mulheres de outras regiões do interior que se mudavam para Luanda em busca de oportunidades. A existência da escravidão e a possibilidade de sequestro e de cativeiro ameaçavam a circulação dos centro-africanos livres e os residentes de Luanda se viam obrigados a estabelecer redes de proteção para garantir sua liberdade. As mulheres escravizadas em Luanda eram classificadas como pretas e encarregadas de todas as atividades produtivas. Algumas chegaram a atuar como escravas de ganho, o que lhes permitia acumular algum dinheiro para uma eventual compra da alforria. Vanessa Oliveira indica como a classificação por cor estava associada ao estatuto jurídico e ao acesso à posse de bens materiais e de seres humanos. Assim, as mulheres centro-africanas eram classificadas como pretas, pardas ou brancas de acordo com a sua posição social e suas relações com a administração colonial.
Ainda com considerações sobre o continente africano, mas com um olhar voltado para a costa oriental, Regiane Augusto de Mattos reflete sobre a construção das categorias sociais no norte de Moçambique, durante o século XIX. O artigo “Entre suaílis e macuas: o norte de Moçambique como espaço de interconexões” mostra a importância das relações religiosas, culturais, econômicas e sociais entre diferentes espaços, e não necessariamente o fenótipo, na catalogação de indivíduos e grupos nas margens do império português. Usando fontes orais, incluindo as que foram registadas na escrita de autores coloniais, Mattos explora o modo como os grupos locais e os agentes externos, tanto os portugueses quanto os omanitas, construíam identificações para os povos do norte de Moçambique. Certas categorizações podiam assumir um caráter pejorativo, como no caso de “mouros”, transposto da Europa pelos portugueses para designar os africanos muçulmanos. Entretanto, vocábulos originalmente empregues de forma pejorativa podiam adquirir um significado positivo quando reapropriados pelos locais, como o caso do termo “suaíli”, usado pelos omanitas no século XIX para designar os muçulmanos da África Oriental, colocando-os na “margem” do Islão, já que estariam “contaminados” por valores africanos. Os próprios suaílis usavam a palavra “macua”, sinónimo de “sertão” ou “selva”, em sentido pejorativo para distinguir os habitantes do interior. As fontes permitem à autora problematizar classificações como suaílis, macuas, imbamelas, namarrais ou mujojos, e acompanhar as mudanças de significado, dependendo dos atores sociais que a empregavam. Mattos destaca o papel da geografia, trocas comerciais, alianças políticas, parentesco, migrações e afiliação religiosa nos processos de construção de identidades e de classificação no Norte de Moçambique. Neste caso, as “cores” não eram tão relevantes na configuração de catalogações e hierarquias que se estruturaram nos impérios como apontam os outros artigos que compõem este dossiê.
Os últimos três textos do dossiê analisam a mobilidade social e as hierarquias de cor no Brasil do século XIX. No artigo “‘Diz a preta mina…’: marcas e categorias sociais nos processos de divórcio abertos por africanas ocidentais, Rio de Janeiro, século XIX”, Juliana Barreto Farias examina as associações entre cor, estatuto jurídico, condição social e identidade étnica no Rio de Janeiro de oitocentos, a partir dos processos de divórcio iniciados por mulheres identificadas como pretas minas forras, africanas provenientes ou descendentes de originários da Costa da Mina na África Ocidental. Essas mullheres evidenciavam ser economicamente independentes de seus maridos, possuíam bens, inclusive seres humanos escravizados, e uma rede vasta de amigos e familiares que serviam de testemunhas. Autoras, réus e testemunhas desses processos revelam um mundo de relações em que emergem classificações sociais que, ainda que flexíveis, operavam no dia a dia e estruturavam as hierarquias sociais na cidade. Farias analisa neste artigo as formas de identificação e classificação accionadas por essas mulheres, discutindo como elas se articulavam com valores de bom comportamento, honestidade e recato. Relevantes para a discussão são, igualmente, os registros das classificações dos padres, que, permanecendo muito tempo nas freguesias, conheciam o vocabulário social. Embora o direito canónico não exigisse a indicação de quaisquer “cores”, elas eram anotadas para os africanos e seus descendentes, geralmente acompanhadas da “nação”, a partir de indumentárias, marcas corporais e comportamentos. Já no caso dos europeus, a cor era frequentemente omitida, constando apenas o bispado de onde eram naturais.
Em “Ser negro na Parahyba do Norte: cores, condições, qualidades e universo letrado no século XIX”, Surya Aaronovich Pombo de Barros discute, a partir da imprensa e de documentação administrativa, a polissemia das classificações empregadas para a população afrodescendente da Paraíba, que incluía definições de cor, qualidade e jurídica, relacionando-as com as que circulavam noutras regiões do Brasil. No caso da Paraíba de oitocentos, o estigma da escravidão e a possibilidade de rescravização actuavam na forma como os mesmos indivíduos eram classificados em diferentes documentos, identificados como escravos, negros, cabras, crioulos e pretos. Surya Aaronovich Pombo de Barros discute a flutuação nos usos dos termos e o seu carácter subjectivo e explora o modo como alguns escravos fugidos usavam as fronteiras fluidas entre a liberdade e a escravidão. Essas classificações e estatutos garantiam ou excluíam direitos, como o acesso à instrução, vedado a pessoas escravizadas. Aproveitando as brechas do sistema escravista, alguns escravos tentavam aceder à escolarização. Assim como o texto de Vanessa Oliveira sobre Luanda, a autora argumenta que o acesso à escolarização e a inserção cultural também influenciavam o modo como os afrodescendentes eram rotulados, seja como preto, pardo, mulato ou africano. Em todos os casos, a precariedade da liberdade e a ameaça de escravização rondavam os afrodescendentes. Marcelo Matheus narra a história de Maria Francisca do Rosário, outra mulher identificada como mina, para refletir sobre o lugar dos africanos e seus descendentes em Bagé, no Rio Grande do Sul. O artigo “A africana mina Maria Francisca do Rosário: escravidão, cor e ascensão social em um contexto fronteiriço (Brasil, segunda metade do século XIX)” é uma micro-história que permite compreender as mudanças políticas e jurídicas na segunda metade do século XIX no Brasil. Seguindo a tradição dos estudos sobre escravidão no Brasil, que fazem uso dos registros eclesiásticos para entender a formação das nações, a miscigenação e a mobilidade social, o autor examina como as classificações de cor, procedência e projeção social influenciavam na construção de identificações sociais. A novidade nessa contribuição está em explorar a vida dos africanos e seus descendentes na fronteira do Império Brasileiro e não necessariamente nos grandes centros urbanos ou nas áreas de importância econômica, que têm atraído um maior número de estudos. A atenção a eventuais diversidades regionais permite complexificar a história dos africanos e seus descendentes no Brasil.
Marcelo Matheus mostra como classificação da cor de indivíduos, e a marca da escravidão que estava associada à cor “preta” e “parda”, podia desaparecer ou ser alterada ao longo de sua vida, o que sugere mecanismos de mobilidade social. Esse foi o caso de Maria Francisca, que de escrava se tornou proprietária e branca, mesmo numa sociedade em que o estigma da escravidão operava na configuração das hierarquias sociais.
O dossiê conta, ainda, com uma resenha escrita por Kara Schultz do livro de David Wheat, Atlantic Africa and the Spanish Caribbean, 1570-1640. O estudo de David Wheat, publicado em 2016, destaca várias das questões abordadas nesse dossier e também a presença africana no processo de ocupação e colonização da América Espanhola. Uma entrevista com a historiadora Silvia Hunold Lara conclui o dossiê. Silvia Hunold Lara, professora na Unicamp, publicou obras importantes como dos Campos da Violência (1988) e Fragmentos Setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa (2007). Também escreveu dezenas de artigos e capítulos de livros que apresentam novas contribuições sobre os processos de classificação e hierarquização no Brasil durante o período moderno. Seus estudos constituem uma importante contribuição para a historiografia sobre a presença africana no Brasil. Nesta entrevista, Sílvia Hunold Lara reflecte sobre os desenvolvimentos da historiografia sobre os africanos no Brasil nas últimas dédadas e alerta para a importância da integração da História de África nesses estudos. E explica-nos como “o racismo está directamente ligado ao jogo de forças que constitui certa sociedade”.
Acreditamos que as contribuições nesse dossiê apresentam reflexões importantes no campo de debate sobre cores, classificações e categorias sociais. Ao reunir esses oito artigos, resenha e entrevista priorizamos a reflexão sobre os africanos nos impérios ibéricos, séculos XVI a XIX, e esperamos que despertem interesse para novas investigações e diálogos.
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Eugénia Rodrigues – Doutora em História pela Universidade Nova de Lisboa, é investigadora do Centro de História da Universidade de Lisboa e ensina na Faculdade de Letras da mesma universidade. Entre as suas publicações estão, com Mariana P. Candido, ed., African women’s access and rights to property in the Portuguese empire, número especial de African Economic History (n. 43, 2015), e Portugueses e Africanos nos Rios de Sena: Os prazos da Coroa em Moçambique nos Séculos XVII e XVIII (2013). E-mail: rodrigues6@campus.ul.pt
Mariana P. Candido – Doutora em História pela York University, é professora na University of Notre Dame. Lecionou também na University of Kansas, Princeton University e University of Wisconsin-La Crosse. É autora de Fronteiras da Escravidão. Escravatura, comércio e identidade em Benguela, 1780-1850 (Ondijara / Katyavala Bwila, 2018) e de An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its Hinterland (Cambridge University Press, 2013). Organizou Crossing Memories: Slavery and African Diaspora, com Ana Lucia Araujo e Paul Lovejoy (Africa World Press, 2011); Laços Atlânticos: África e africanos durante a era do comércio transatlântico de escravos, com Carlos Liberato, Paul Lovejoy e Renée Soulodre-La France (Museu da Escravatura, 2017); African women’s access and rights to property in the Portuguese empire, número especial de African Economic History (n. 43, 2015), com Eugénia Rodrigues.
CANDIDO, Mariana P.; RODRIGUES, Eugénia. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 44, n. 3, set. / dez., 2018. Acessar dossiê [DR]
Século XVI: interfaces entre o Velho Continente e o Novo Mundo / História Revista / 2018
O século XVI foi um período efervescente para o Ocidente. No Velho Continente estavam em curso intensas revoluções no campo cultural e no religioso. Ao mesmo tempo, a expansão das Coroas ibéricas contribuía para o nascimento de novos olhares sobre o homem e o mundo e de políticas de intervenção em uma realidade tida como sendo de crise. O encontro com o mundo físico tal como ele é passava a exigir a busca de novas construções imaginárias para os europeus lidarem com uma nova realidade que se apresentava. Mais que isso, estimulava o emprego dos novos recursos técnicos e científicos que nasciam das revoluções em curso para que a Europa cristã conquistasse aquele novo e extraordinário mundo. Não obstante, esse foi o período da “desforra do imaginário” [1]
de que falou Bartolomé Bennassar, mas, sobretudo, foi o momento em que as histórias de inúmeras sociedades se conectaram em função das ações encabeçadas pelos poderes políticos e religiosos e pela massa de anônimos que se lançaram além‐mar para incorporar o orbe recém‐desvelado à cristandade.
Este dossiê tem como objetivo trazer reflexões sobre algumas temáticas que gravitam na órbita desses processos históricos que têm o século XVI como seu ponto de partida ou como o momento definidor de suas características essenciais. Por isso, reúne artigos que se debruçam sobre fontes históricas produzidas por agentes da religião e da empresa ultramarina europeia e que problematizam e discutem questões historiográficas pertinentes a esse amplo universo da história da expansão ibérica na Época Moderna.
Os dois primeiros artigos desbravam as conquistas; não as territoriais que originaram os impérios de Portugal e da Espanha, e sim as do plano das mentalidades e das ideias que, antes de permitir a chegada dos europeus a novos mundos, promoveram a inserção das novas terras e de sua gente no imaginário cristão. Tiago Bonato, por exemplo, discute as mudanças nas técnicas empregadas na produção de mapas e de cartas de navegação, aspecto essencial da empresa ultramarina que resultou na tessitura de um império‐rede para Portugal. Destaca, nesse exame, a influência mútua entre a cartografia e as revoluções culturais em curso na Europa que incidiram não só na leitura de um mundo físico que se apresentava, mas nas técnicas empregadas para representar esse orbe à cristandade.
Já Cleber Vinicius Amaral Felipe analisa os relatos de naufrágio elaborados pelos portugueses para deles extrair a matriz do pensamento lusitano quinhentista. Seu intuito? Nos oferecer as diretrizes para a sua análise como fontes históricas privilegiadas para a compreensão do projeto político‐religioso de construção do império português. Nesse exercício, demonstra como as análises que levam em consideração apenas os aspectos estéticos de sua literatura são insuficientes para nos dar a entender os exercícios de retórica que revelam que os objetivos desse gênero literário era conformar uma identidade ideológica do ser português e do Estado luso.
Outros dois artigos mergulham em temas estruturantes que nos permitem compreender as bases político‐religiosas que sedimentavam a monarquia portuguesa e que norteavam a construção do império: a atuação da Companhia de Jesus e a prática do degredo. Em artigo de minha autoria, analiso os aspectos gerais do empreendimento missionário da Companhia de Jesus no império português em um período em que a ordem religiosa teve privilégio para atuar nos domínios de Portugal. Fundamentado em uma farta documentação produzida por jesuítas que atuaram na América, Ásia e África, o texto analisa os elementos condicionantes da missionação jesuítica que promoveram convergências e divergências na atividade apostólica em espaços diferentes do império. Assim, além de refletir sobre aspectos específicos da história das missões jesuíticas, também destaca a importância que a evangelização teve na estruturação do império português no século XVI.
Geraldo Pieroni, por seu lado, nos apresenta um universo importante da formação e manutenção do império português e de suas colônias ultramarinas: a prática do degredo. Para analisar a trajetória de D. Francisco Manuel de Melo, filósofo e poeta lusitano degredado para o Brasil, o autor mergulha na legislação portuguesa da Época Moderna; nos explica o funcionamento das práticas punitivas portuguesas que alimentavam o desterro como política de normatização social em Portugal (e, ao mesmo tempo, de povoamento das colônias ultramarinas); e analisa, com profundidade, como essas políticas lusas se refletiram no Brasil Colonial. Nesse exercício, Pieroni chama a atenção para o olhar pejorativo da nobreza portuguesa sobre a Terra de Santa Cruz – local de desterro – mas, ao mesmo tempo, destaca o papel preponderante que os indesejados e excluídos de Portugal tiveram na construção do Brasil.
Por esta razão, espera‐se que esse dossiê permita o trânsito dos nosso leitores em diferentes universos da história da expansão ultramarina e das que se com ela se conectam através das temáticas aqui abordadas. O maior desejo da História Revista é que, com este dossiê, naveguemos por mares já navegados que, ao serem revistados, nos revelem novos pontos que a historiografia possa desbravar.
Nota
1. BENNASSAR, Bartolomé. Dos mundos fechados à abertura do mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Funarte / Companhia das Letras, 1998, pp. 83‐93.
Luiz Antonio Sabeh – UNIFAL‐MG. E-mail: luiz.sabeh@gmail.com
Organizador
SABEH, Luiz Antonio. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 23, n. 3, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
História da Educação. São Leopoldo, v.22, n. 56, set./dez., 2018.
Apresentação – Introduction
- REGRAR O TUMULTO DAS PALAVRAS, PENSAR AS PRÁTICAS DE ESCRITA DA NARRATIVA HISTÓRICA
- Maria Stephanou (Brasil)
Sessão especial – Special issue
- PENSAR O SUJEITO MODERNO ATRAVÉS DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: ENTREVISTA COM CARLOTA BOTO
- Fernando Cezar Ripe (Brasil), Giana Lange do Amaral (Brasil)
Artigo / Article / Artículo
- ENTRE IDAS E VINDAS: VICISSITUDES DO MÉTODO CASTILHO NO BRASIL DO SÉCULO XIX
- Carlota Boto (Brasil), Suzana Lopes de Albuquerque (Brasil)
- INVESTIGACIÓN Y DOCENCIA CON FOTOGRAFÍAS: FONDOS FOTOGRÁFICOS DE INTERÉS HISTÓRICO-EDUCATIVO EN REVISTAS ILUSTRADAS (MALLORCA, ESPAÑA, 1902-1936) / RESEARCH AND TEACHING WITH PHOTOGRAPHS: HISTORICAL AND EDUCATIONAL PHOTOGRAPHY RESOURCES IN ILLUSTRATED MAGAZINES (MAJORCA, SPAIN, 1902-1936)
- Xavier Motilla Salas (Espanha), Sara González Gómez (Espanha)
- PDF (Español (España))
- PDF (English)
- HORACE LANE: CONSULTOR DA INSTRUÇÃO PÚBLICA PAULISTA E PARTICIPAÇÃO NA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DE ST. LOUIS (1885-1912)
- Ivanilson Bezerra da Silva (Brasil)
- LA PRENSA PEDAGÓGICA EN LA RECONSTRUCCIÓN DEL PASADO EDUCATIVO: EL CASO DE LA REVISTA ESCUELAS DE ESPAÑA (1929-1936)
- Rosa Ortiz de Santos (Espanha), Luis Torrego Egido (Espanha)
- PDF (Español (España))
- LITERATURA PARA A ESCOLA PRIMÁRIA E EDUCAÇÃO DO CIDADÃO REPUBLICANO, NA REVISTA DE ENSINO (SP-BRASIL) – 1902/1918
- Maria do Rosário Longo Mortatti (Brasil)
- POR UNA EDUCACIÓN PARA TODOS: LAS PERSPECTIVAS FORMATIVAS EN DOS PERIÓDICOS REVOLUCIONARIOS DURANTE LAS PRIMERAS DÉCADAS DEL SIGLO XX
- Eduard Esteban Moreno Trujillo (Colômbia)
- PDF (Español (España))
- DENTRE A REFORMA ROCHA VAZ E O ESTADO NOVO: OS PROFESSORES SUPLEMENTARES DO COLÉGIO PEDRO II
- Jefferson da Costa Soares (Brasil), Gustavo da Motta Silva (Brasil)
- UMA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS FÍSICAS, QUÍMICAS E NATURAIS NO ENSINO SECUNDÁRIO (1882-1950)
- Eva Maria Siqueira Alves (Brasil), João Paulo Gama Oliveira (Brasil)
- A HISTÓRIA DO ENSINO DA FILOSOFIA NO SISTEMA ESCOLAR FRANCÊS E BRASILEIRO
- Daniela Nienkötter Sardá (Brasil)
- O COLÉGIO DE APLICAÇÃO/UFRGS E A DIFUSÃO DAS CLASSES EXPERIMENTAIS SECUNDÁRIAS: ENTRE O ARQUIVO E A MEMÓRIA ORAL (1959-1981)
- Valeska Alessandra de Lima (Brasil), Doris Bittencourt Almeida (Brasil)
- O IMAGINÁRIO SOCIAL DE DEMOCRACIA NO PROCESSO DE MUNICIPALIZAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL NO BRASIL (1985-1990)
- Ariel Feldman (Brasil), Marina Feldman (Brasil)
Resenha / Digest / Reseña
- LA IDENTIDAD DOCENTE ANTE LOS NUEVOS DEBATES EDUCATIVOS: UN ANÁLISIS DESDE LA HISTORIA DE LA EDUCACIÓN
- Mariano González-Delgado (Espanha)
- PDF (Español (España))
Documento / Document / Documento
- DISCURSOS PROFERIDOS PELO REI D. PEDRO V NAS SESSÕES SOLENES DE ATRIBUIÇÃO DE PRÉMIOS NA ESCOLA REAL DE MAFRA (1858-1860)
- Carlos Manique da Silva (Portugal)
- PDF (Português (Portugal))
Publicado: 2018-08-09
Educação e Espaço Público em experiências históricas latino-americanas (Séculos XIX-XX) / Cadernos de História da Educação / 2018
Propomos como temática geral deste Dossiê a recorrência das relações que passam a ser estabelecidas entre educação e espaço público em ações, inclusive discursiva, produzidas por sujeitos e instituições situados em diversificados lugares de enunciação na América Latina dos séculos XIX e XX. Os textos que incidem sobre a realidade brasileira aqui presentes resultam, em sua maioria, da contribuição do Programa de Pesquisa “Moderno, Modernidade e Modernização: a educação nos projetos de Brasil (séc. XIX-XX) ”, desenvolvido entre 2010 e 2016 integrando pesquisadores de diferentes universidades e regiões do Brasil e que, atualmente, conta com o apoio do CNPq sob o título de “A Educação nos Projetos de Brasil: espaço público, modernização e pensamento histórico e social brasileiro nos séculos XIX e XX”, sob a coordenação do Prof. Dr. Luciano Mendes de Faria Filho (UFMG) e da Profa. Dra. Rosana Areal (UFOP).
Para enriquecer esse Dossiê Temático, foram convidados pesquisadores estrangeiros que pudessem ampliar o debate que vínhamos realizando em escala nacional. Assim, a partir de uma preocupação central com a circulação de referenciais de educação e espaço público, mas também de modernidade, civilização, progresso e nação, cada pesquisador participante procurou se debruçar sobre um ponto específico em que tais noções se entrelaçam, de modo a analisar os posicionamentos efetivos dos sujeitos individuais ou coletivos em seus contextos determinados.
É sabido que a educação, tanto em seu caráter escolar quanto não-escolar, guarda profunda relação com o espaço público. Sabemos também que em diferentes momentos, e sobretudo no século XIX, a imprensa tomou para si uma função educativa e constitui-se mesmo no registro da constituição de uma pedagogia do (e no) espaço público. E isso o demonstra muito bem o texto de autoria do Prof. Dr. Matheus da Cruz e Zica e da Mestra Patrícia Barros de Oliveira, intitulado “Modelos de Espaço Público em contraste: Imprensa e Modernidade Seletiva nas Províncias da Paraíba e Pernambuco (1870-1880)”, incidindo suas análises sobre a imprensa e o lugar de formadora da opinião pública que tomou para si naquele contexto.
Numa vertente de um debate mais aprofundado sobre a educação escolar que também é um objetivo importante desse dossiê podemos considerar a expressão “Ensino Público”, por sua vez, como a ocasião discursiva específica em que essa relação educação-espaço público fica mais evidente. A expressão “Ensino Público” pode, por outro lado, também nos levar a incorrermos em um engano bastante comum: a saber sobrepor-se automaticamente a ideia de público ao âmbito do que é estatal.
Estamos entendendo aqui a noção de espaço público como um processo dinâmico e abrangente o suficiente para alcançar outras instâncias que estão para além do estado, como é o caso da pluralidade de vozes da imprensa, por exemplo, ou o conjunto muitas vezes dissonante das organizações sindicais não controladas pelo estado.
Tendo colocado a questão desse modo, afirmamos que os trabalhos que integram essa coletânea nos permitem perceber que a educação ofertada gratuitamente pelo estado tem sido encarada com frequência como uma medida importante para o fortalecimento da dimensão do público e da sensação de pertencimento a uma comunidade. Já no Brasil do período regencial, década de 1830, os debates em torno dessa questão eram notáveis e chegam mesmo a ser inspiradores para pensarmos nossa situação no presente, conforme no aponta a escrita das Dras. Marcilaine Soares Inácio Gomes e Ilka Miglio de Mesquita, e do Dr. Luciano Mendes de Faria Filho: “A educação no espaço público: a pedagogia cívica dos jornais mineiros no período regencial”. Em todo esse processo a imprensa assumia papel importante.
Muito acertadamente também apontam para o fato de que o estado pode por vezes estar em descompasso com o movimento vivo que é característico do espaço público, como se dá com o caso apresentado pelo pesquisador chileno, Dr. Felipe Zurita, em seu artigo “Educación y Espacio Público en la experiencia histórica reciente de Chile: El caso de la transformación neoliberal y autoritaria del sistema educacional durante la Dictadura Militar (1973-1990)”, em que o governo trabalha contra o viés público no campo educacional.
O desafio que daí se impõe pode ser assim sintetizado: Como fazer do estado o garantidor da permanência ou mesmo promotor dos movimentos que marcam as dinâmicas do espaço público? Para essa pergunta o artigo proposto pelo colega do México, Dr. Renè Medina, sob o título “Los forjadores de hombres: Disputas por el control de las escuelas y el espacio público en comunidades mineras mexicanas, 1917-1978”, nos traz esclarecimentos importantes sobre a possibilidade de intervenção estatal a serviço de interesses públicos contra setores representativos do meio privado.
Do mesmo modo, trabalho proposto nesse dossiê pela Dra. Vera Lúcia Nogueira e pelo Dr. Dalvit Greiner de Paula, sob o título “A presidência de província e a instrução pública como fatores de ampliação do espaço público no Império brasileiro”, nos traz um enfoque interessante sobre as possiblidades de estabelecimento de uma relação positiva das relações estado, espaço público e educação, quando procuram argumentar que a centralização política teria contribuído para o fortalecimento da instrução pública.
De maneira geral podemos ressaltar que os resultados dessas pesquisas que ora apresentamos nos permitem afirmar que uma educação específica pode ampliar ou amesquinhar a construção de sensibilidades e práticas que demandem e reivindiquem a importância do espaço público. Por outro lado, também se pode considerar que um espaço público robusto e saudável tem papel fundamental na promoção e demanda contínua de um projeto educativo que não recaia na mesquinhez e estreiteza de interesses privados e exclusivistas.
A questão é saber se o estado está suscetível a servir mais aos interesses comuns ou aos privados. Daí parece provir a maior complicação para a relação entre educação e espaço público: se o estado está a funcionar no registro do privado, e se a educação que ele oferece tem a qualificação de “pública”, uma perversidade não apenas semântica, mas também política, aí passa a vigorar. Esse tipo de perversidade é notório, no Brasil, em várias áreas que afetam o lugar pretendido para o estado no desenvolvimento, ou não, de políticas públicas.
Ficou antiquado falar-se em escamoteamento da realidade, mas receamos que nesse caso não se dá outra coisa senão exatamente o que esse conceito designa. No entanto, o que se pode a isso acrescentar é que esse escamoteamento nunca é completo em seu sucesso. Está sempre ameaçado pelas brechas que ele mesmo produz. É assim que a dimensão do público resiste, ainda em momentos de solapamento das garantias da pluralidade de vozes.
Contentarmo-nos com esse resto que insiste, parece ser, no entanto, uma posição problemática. A insatisfação com essa situação de resto da economia a que o espaço público e a educação a ele vinculada têm sido relegados continua sendo uma posição de importância cabal. Assim nos ensina a pluralidade de discursos que consegue escapar da teia de ferro construída pela mídia de massa no Brasil atual. Esses são temas fundamentais para o desenvolvimento de nossas pesquisas, que ora pretendemos trazer a público e com isso contribuir para o fortalecimento da esfera pública e da educação que a ela está atrelada.
Matheus da Cruz e Zica – Doutor em Educação, com estágio de pós-doutorado concluído na Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Professor do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: matheusczica@gmail.com
CRUZ E ZICA, Matheus da. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 17, n.3, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Cristianismos de esquerda na América Latina / Revista Brasileira de História das Religiões / 2018
Ao longo da segunda metade do século XX, algo radicalmente novo aconteceu no campo religioso latino-americano. Na medida em que se aceleravam os processos de diversificação cultural e transformação política do continente, emergiu no seio das igrejas cristãs um renovado compromisso ético com a transformação das estruturas vigentes e com a superação da dependência e das desigualdades sociais. Na Teologia e nas Ciências Sociais, a força proveniente desses Cristianismos de esquerda passou a ser tomada como fator decisivo para o sucesso de processos revolucionários, para a luta pela retomada da democracia e para implantação de governos populares com projetos alternativos à hegemonia do capital e ao modelo da felicidade pelo consumo.
Nas primeiras décadas do novo século, mesmo depois de tantas ofensivas neoconservadoras – do Vaticano e da nova configuração das igrejas (neo)pentecostais – ecos desses “outros jeitos de ser cristãos” se fazem presentes nos movimentos de católicos e evangélicos na periferia, na luta de padres, pastores e seus fiéis pelo respeito aos direitos humanos e, mais recentemente, na sinalização do Papa Francisco à importância da crítica radical da “idolatria do dinheiro e do perverso sistema econômico atual, responsável ao mesmo tempo pela extensão da pobreza e pela destruição da natureza”.
Tendo em vista esse panorama, buscamos, de modo geral, com este dossiê, enfocar as aproximações entre cristãos e socialistas, marxistas, anarquistas, enfim um amplo conjunto de atores referenciados teórica e politicamente às esquerdas, bem como as suas repercussões no campo das práticas e representações religiosas ou do seu engajamento em movimentos contestatórios da ordem social vigente. Mais antigas entre os protestantes, essas afinidades surgiram no campo católico, paradoxalmente, como sugere Michel Löwy, a partir de finais do oitocentos, quando a Igreja, depois da amarga “condenação dos princípios liberais e da sociedade moderna (…) pareceu aceitar o advento do capitalismo e do Estado moderno como fatos irreversíveis”. Nascia aí um “catolicismo social” que abriu possibilidades para as críticas (às vezes minuciosas, radicais e profundas) produzidas por grupos que, embora minoritários, tornaram-se muito significativos nos ambientes religiosos europeus.
Na América Latina, a identificação das elites eclesiásticas com as forças do Estado e com projetos coloniais manteve por muito tempo encobertas as vozes de missionários que abraçaram, desde muito cedo, as culturas locais. Na medida em que se multiplicaram as revoltas, convulsões e promessas revolucionárias, figuras do clero emergiam (no presente e no passado), rompendo os silêncios impostos pela violência dos processos de evangelização do continente. Nesse ambiente, os projetos de formação de uma intelligentsia cristã abriram brechas para novas experiências que fundiam referências europeias (como no caso dos padres operários e da economia humanista) com os desafios urgentes e um tanto dramáticos do ter-ceiro mundo. Não à toa Löwy destaca que “no momento em que Fidel Castro, Che Guevara e seus camaradas entraram marchando em Havana, em Roma, João XXIII publicava a primeira convocação para a reunião do Concílio”.
Surgida de “baixo para cima” – nos “movimentos laicos (e alguns do clero), ativos entre a juventude estudantil e nas comunidades” mais carentes – essa fermentação espiritual não tardou a sensibilizar os setores eclesiásticos mais atentos à vida cotidiana de suas igrejas locais e a parcelas importantes do clero regular, “que muitas vezes estavam na vanguarda da nova prática e do novo pensamento teológico”. Nos anos que se sucedem ao Vaticano II, os desafios da sua recepção impuseram organizações de um novo tipo, algumas delas empenhadas na leitura sociorreligiosa do continente, com finalidades pastorais; outras engajadas em processos radicais de transformação da América Latina e cujo caso mais conhecido é o de Camilo Torres, que foi da militância popular à luta armada na Colômbia.
Os novos modelos de vida religiosa, a fundação de institutos que assumiam claramente os métodos das Ciências Humanas e Sociais para compreender a realidade, a criação de uma Teologia da Libertação, a aposta em reescrever a história da Igreja no continente do ponto de vista dos pobres e a proposição de um modelo comunitário alternativo à sociedade paroquial tornaram-se respostas às demandas dos padres conciliares, aprofundadas nas décadas seguintes pelos bispos latino-americanos nas conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979). Conforme descreve Enrique Dussel, um tempo eivado de esperança e sangue, no qual a utopia de uma sociedade igualitária se viu contrastada pelo assalto totalitário dos poderes políticos e os projetos de Igrejas transformadoras se chocaram com a força do aparato burocrático das instituições.
Na impossibilidade de tratar toda a complexidade desses processos, oferecemos aos leitores da Revista Brasileira de História das Religiões um conjunto de abordagens ricas e instigantes, que casam, como era nosso propósito inicial, vários enfoques interpretativos e referencias teórico-metodológicos, produzindo um rico panorama de questões importantes sobre os diferentes cristianismos e as distintas esquerdas.
Abrindo a chamada temática, está o texto de Alex Villas Boas e Ernesto Lazaro Sienna, intitulado “Catolicismo social europeu, rerum novarum e primazia do reino de Deus nas origens do catolicismo de esquerda na América Latina”. Nele, os autores traçam o panorama social e eclesial das revoluções, o impacto do avanço do capital sobre os ambientes católicos e a conformação de uma doutrina social da Igreja que respondesse à deterioração das condições sociais da classe operária. Além de apresentar um panorama das ordens e congregações religiosas do período, e suas personagens que deram corpo aos empreendimentos da Igreja nesse período, o artigo suscita a discussão acerca das noções teológicas e políticas já presentes nos escritos do papa Leão XIII e se desdobram, nas décadas seguintes, dando “origem ao que pode ser entendido como catolicismo de esquerda, terreno fértil para o desdobramento das Teologias da Libertação do século XX.”
Tema caro aos estudos do catolicismo no Brasil, as tensas relações políticas entre Igreja e Estado acaba por ocupar um lugar central na maioria dos textos deste dossiê. Alessandro Rodrigues Rocha, por exemplo, contextualiza a emergência do Cristianismo de Libertação durante os anos de repressão política no Brasil e nos oferece um quadro das transformações no posicionamento do episcopado acerca da ditadura e de seus projetos. Discute ainda a emergência de organismos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o projeto das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como formas de resistência à violência e aos arbítrios do Estado em associação com o capital.
“A dimensão política da Teologia Protestante da Libertação” é explorada em toda a sua riqueza por Claudio de Oliveira Ribeiro, que retoma as raízes do diálogo entre teólogos católicos e o movimento ecumênico na revista Cristianismo y Sociedade, no Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL) e, mais tarde, no Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI, hoje Koinonia Presença Ecumênica e Serviço). Contemplando os trabalhos de Rubem Alves e Richard Shaull, o autor nos desaconselha a tomar “a publicação de obras como marco fundante da Teologia da Libertação. Isto seria uma negação de seu próprio princípio metodológico, o de partir das experiências práticas concretas. O foco teológico latino-americano são as ações e as experiências no contexto de libertação social e política e as vivências eclesiais renovadoras que foram experimentadas” e, embora menos conhecidas, essas estão disseminadas nas igrejas protestantes do período. Um dos aspectos relevantes do texto é a discussão que apresenta sobre o ecumenismo em seu caráter político, colocando ênfase naquilo que “a doutrina divide, mas o serviço une”, segundo as palavras do teólogo metodista uruguaio Julio de Santa Ana. O autor nos apresenta ainda um rol de importantes teólogos da libertação protestantes na América Latina, suas ênfases teológicas no ecumenismo, “na primazia da graça, na vida em comunidade e nas tensões entre instituição e movimento, em geral frutos do princípio profético valorizado na teologia protestante”. No conjunto, a imagem fornecida é de uma produção teológica bastante comprometida com a “sustentabilidade da vida, com a solidariedade humana, com as formas de inclusão social, de cidadania e de respeito à pluralidade religiosa, com o exercício dos direitos humanos e com a integridade da criação”. Como propõe Ribeiro, “uma profunda e desafiadora aventura espiritual”.
Na mesma perspectiva – da aventura de fé – Marcos Roberto Brito dos Santos narra em seu artigo a luta do padre e teólogo belga José Comblin para permanecer no Brasil, desenvolvendo suas atividades intelectuais e pastorais, tendo em vista o processo de expulsão movido contra ele pelos militares no início dos anos 1970. Na realidade, o autor percorre caminhos mais largos, elucidando aspectos do anticomunismo católico alimentado por grupos conservadores durante a ditadura, o trabalho de espionagem do governo sobre os padres estrangeiros e também as articulações entre os setores mais “progressistas” para respaldar a ação transformadora dessa parcela do clero.
Em “‘Uma leitura Marxista das conclusões de Medellín’: problemas conceituaissemânticos nas relações Igreja-Estado no Brasil (1970-1971), Sérgio Ricardo Coutinho discute os diálogos truncados entre líderes católicos e agentes da ditadura acerca das recepções no Brasil do documento final da II Conferência Geral do Episcopado LatinoAmericano. Partindo da história dos conceitos de Reinhardt Koselleck, o autor nos apresenta as diferentes interpretações de Medellín trazidas à Comissão Bipartite e expressas em reuniões (como Seminário de Estudos “Missão da Igreja e transformação da sociedade brasileira”) e documentos (como “Exemplo de uma leitura marxista das conclusões de Medellín”). Não raro, retomar as oposições dos que viam o texto eivado de “jargão comunista” e linguagem subversiva contra os que o pensavam como manifestação de uma “doutrina integrada, ampla e coerente do desenvolvimento” ajuda a compreender os motivos pelos quais o documento foi olhado “com muita desconfiança por boa parte do episcopado brasileiro e latino-americano, mas acolhido de forma entusiástica pelo jovem clero e organizações laicais”. Para o autor, “receber Medellín de forma entusiasmada era correr sérios riscos diante da conjuntura política da época.
Duas trajetórias de conversão e engajamento em uma ação religiosa transformadora nos são oferecidos por Iraneidson Santos Costa, em “Pedro Gondra y Pedro Plá: dois cristãos a serviço dos pobres da América Latina”. O artigo narra, de maneira cruzada, as vidas religiosas do jesuíta Pedro Arrupe y Gondra e do bispo claretiano Pedro Maria Casaldáliga i Plá. O primeiro é basco e o segundo, catalão. Ambos flertaram com o fascismo e o anticomunismo nas suas juventudes e se sensibilizaram mais tarde com as dores da gente pobre espalhada pelas periferias da terra. Na opinião do autor, isso consolidou em ambos o “ideal de pobreza evangélica (…) como a base da radical opção missionária. Ao que tudo indica, sem se conhecerem pessoalmente, os “dois Pedros” colaboraram grandemente com a igreja latino-americana: Arrupe viajando todo o continente e participando de Medellín (1968) e Puebla (1979); Casaldáliga atuando de maneira vigorosa em defesa dos povos do Xingu, em São Félix do Araguaia.
Finalizando o dossiê, Leonardo Gonçalves de Alvarenga e Nelson Lellis discutem como os conservadorismos religiosos na Bolívia interagem com a figura política de Evo Morales, evidenciando um Cristianismos cujas identidades estão em disputa. O artigo toca questões complexas e delicadas, como a evolução do movimento neopentecostal no país, qual a implicação do art. 88 do Novo Código de Sistema Penal para a sociedade religiosa na Bolívia (?) em que medida a capitalismo e teologia da prosperidade (presentes no pentecostalismo) estão impactando sobre os indígenas (?) e como as igrejas voltadas para mobilização social (mais inclinadas à orientação de esquerda na política) se interpõem neste processo? Para responde-las os autores lançam mão da discussão de Manuel Castells sobre identidade, “que é pensada como construção social que ocorre sempre dentro de um contexto marcado pelas relações de poder”. Assim, a reação às propostas de modificação na legislação encaminhadas por Morales pode ser lida como tensão inerente às sucessivas ondas missionárias que chegam ao país desde o processo de colonização e às disputas recentes de um campo religioso cada vez mais plural. Esta seria certamente uma das questões mais atuais da relação entre cristãos de esquerda (e de direita) no continente.
Este volume da Revista traz ainda um rico debate teórico-conceitual e metodológico, bem como abordagens temáticas que evidenciam a proficuidade e complexidade do estudo do religioso. Em seus artigos livres temas instigantes nos impulsionam à reflexão. Boa leitura!
Fábio Py – Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), com estágio sanduíche no Centre d Études Interdisciplinaires dês Facts Religieux (CEIFR) do Centre National de la Recherche Sientifique (CNRS) da École des Hautes em Sciences Sociales (EHSS). Tem pós-doutorado em Políticas Sociais na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, onde é professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais. E-mail: pymurta@gmail.com
Diego Omar da Silveira – Mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Professor do curso da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). E-mail: diegomarhistoria@yahoo.com.br
PY, Fábio; SILVEIRA, Diego Omar da. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.11, n.32, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
IHGB: 180 anos / Revista do IHGB / 2018
Este número da Revista propõe, em especial, uma homenagem aos 180 anos de fundação do IHGB. Considerado por seu primeiro presidente, o Visconde de São Leopoldo, como um representante das ideias da Ilustração, o que significava associá-lo à civilização, à ciência, à filosofia da história e à polidez, o Instituto aparece, nas palavras de seu atual presidente Arno Wehling, como símbolo intelectual dos novos tempos da independência. E, passados quase 200 anos, os valores que marcaram sua fundação permanecem. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro continua em sua missão de produzir conhecimentos mantendo a guarda de uma “casa da memória” constituída não só de acervos, mas que pensa e interpreta o Brasil; uma instituição de preservação do patrimônio cultural do país, fiel aos valores de sua fundação, mas que se mantém aberta às novidades, a fim de compreender o presente para informar o julgamento sobre a realidade com as quais está por vir. Daí resulta um de seus principais objetivos: combinar história e memória.
Nessa direção, os três primeiros textos deste número voltam-se para o próprio IHGB. Sem constituírem artigos de louvação, referem-se à importância desta instituição enquanto centro de conhecimento. O primeiro, de Isadora Tavares Maleval, pretende destacar o tratamento que seus integrantes deram a alguns acontecimentos do seu tempo, ou seja, o Segundo Reinado, usando números da R.IHGB como fontes. Beatriz Piva Momesso, por sua vez, examina os resultados e as possibilidades da escrita da História Política do Segundo Reinado a partir do arquivo do Senador Nabuco de Araújo (1813-1878), doado ao IHGB em 2001. Por fim, Arno Wehling, em texto curto, destinado a marcar os 180 anos, salienta o papel de Pedro II na história do IHGB.
Em seguida, Antonio Celso Alves Pereira discute a situação política e militar de Portugal no início do reinado de D. João IV, tomando como fonte principal o Sermão de Santo Antônio, que Antônio Vieira pregou em Lisboa, na Igreja das Chagas, em 1642. Os últimos três textos da seção “Artigos e ensaios” tratam de temática da atualidade, embora situados em distintas conjunturas históricas. Érica Sarmiento discute a historiografia e a utilização de fontes para a temática da imigração, relacionada, em particular, ao associativismo, a partir da análise comparada da imigração galega ocorrida em duas cidades receptoras de fluxos migratórios ibéricos no período da Grande Imigração (1880-1930), Rio de Janeiro e Buenos Aires. Luís Fernando Cardoso e Cardoso, Petrônio Medeiros Lima Filho e Flávio Leonel Abreu da Silveira evidenciam as memórias de resistência do grupo quilombola de Bacabal (localizado no município de Salvaterra, na ilha do Marajó, PA), que vive há mais de três séculos em território reivindicado por particulares. Para tal, analisam as táticas criadas por essa população para manter-se diante do poder político e econômico exercido por fazendeiros e pelo agronegócio representado por empresas nacionais e internacionais. Por fim, o estudo de Bruno Rotta Almeida parte de propostas do século XVIII, a fim de ressaltar o debate em torno da humanização da prisão e mostrar, em seguida, o surgimento dessa discussão no Brasil e o desenvolvimento das práticas punitivas durante o século XIX, como também o papel insuficiente exercido nos séculos XX e XXI pelos instrumentos normativos nacionais e internacionais de proteção à dignidade humana.
Na seção “Comunicações”, há o trabalho do filólogo e membro da Academia Brasileira de Letras Evanildo Bechara sobre Antônio de Moraes Silva, o grande dicionarista brasileiro na virada do século XVIII para o XIX.
Na parte “Documentos”, encontra-se o trabalho da professora e sócia honorária do IHGB, Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade, que, utilizando a riqueza dos arquivos da instituição, propõe interpretar o legado cultural da Viscondessa de Cavalcanti, representado pelos estudos históricos que realizou, com destaque para a contribuição que deu à numismática.
Para finalizar o número, a resenha de Marcia Maria Cruz trata do livro Contribuições para a história do IHGB: entrevistas concedidas a Rogério Faria Tavares, que reúne 36 entrevistas de 36 sócios do IHGB, contando sua vida e sua obra e que hoje integram o acervo do projeto “Memória dos sócios”. Trabalho de fôlego, mais que apropriado para celebrar os 180 anos de uma instituição, que se afirma como Casa da Memória.
Aproveitem!
Lucia Maria Bastos P. Neves – Diretora da Revista.
NEVES, Lucia Maria Bastos P. Carta ao leitor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.179, n.478, p.11-13, set./dez., 2018. Acesso apenas pelo link original [DR].
A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968 – SHEPPARD (Topoi)
SHEPPARD, R. A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2016. 392 p.p. Resenha de: SILVA JÚNIOR, José Antonio Ferreira. Nacionalismo revolucionário e a política do discurso no México. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.
O México vem atraindo atenção da grande mídia nos últimos tempos principalmente por sua relação cada vez mais delicada com os Estados Unidos. Após a eleição de Donald Trump (2016), o tema dos imigrantes ilegais e a construção de um muro na fronteira mexicana se tornaram tópicos recorrentes. O livro de Randall Sheppard, A Persistent Revolution (disponível on-line na plataforma Project Muse), é uma importante contribuição acadêmica a questões que voltaram a surgir neste contexto e que demonstram como as análises da situação política mexicana ainda são parciais e enviesadas a partir do “poderoso vizinho do norte”. O historiador da Universidade de Leiden, na Holanda, dedica-se a estudar as relações entre política e história na construção do nacionalismo no México dominado pelo Partido Revolucionario Institucional (PRI), partido este que se construiu ao longo do século XX como o suposto herdeiro da Revolução Mexicana.
Esta não é a primeira publicação do autor sobre a história mexicana. O livro é resultado de seu doutorado, conduzido na Univesidade La Trobe, na Austrália. Tendo passado por um pós-doutorado na Alemanha, em Colônia, entre 2013 e 2016, suas produções mostram-se dedicadas a estudar o México durante o século XX. Em dois artigos, analisou a dimensão discursivo-política em torno da crise econômica do México nos anos 1980 e a construção de um pavilhão dedicado ao país num parque temático do Walt Disney World. A Persistent Revolution, como trabalho de maior profundidade, permite a Sheppard pesquisar um período mais amplo e dar conta das transformações que o discurso oficial do nacionalismo revolucionário sofreu ao longo de uma série de conjunturas políticas, econômicas e sociais durante o século XX e início do XXI.
Partindo de aportes teóricos consagrados, como os de Benedict Anderson e Eric Hobsbawm, em torno do nacionalismo, seus argumentos visam compreender como símbolos e mitos da história mexicana foram ressignificados conforme a necessidade do Estado príista e de atores políticos que buscaram legitimidade social no México. Dentre outras referências importantes para este livro estão os trabalhos de Mauricio Tenorio Trillo, historiador mexicano que atua na Universidade de Chicago. Esse autor destaca a importância do nacionalismo como categoria interpretativa da história mexicana. A obra de Claudio Lomnitz, antropólogo chileno da Universidade de Columbia, também é essencial para Sheppard interpretar e aplicar a teoria de Anderson sobre o nacionalismo na América Latina dos séculos XX e XXI. Além deles, os estudos de Ilene O’Malley, Thomas Benjamin, Samuel Brunk e Lynn Stephen são indicados como bibliografia básica no tema.
Segundo o autor, a construção e a consolidação do estado pós-revolucionário pelo PRI utilizou-se de mecanismos políticos e econômicos que pretendiam basear a sociedade em direitos coletivos adquiridos no processo revolucionário: as conquistas trabalhistas, a nacionalização do petróleo de 1938 e a reforma agrária são exemplos de como diferentes grupos foram setorizados na lógica corporativista da relação Estado-sociedade criada e fomentada pelo partido. Da mesma maneira, segundo Sheppard, mecanismos simbólicos foram essenciais nestes anos do século XX, neste período de construção do Estado-nação, para garantir a coesão social em torno do projeto nacional. Referências aos líderes do passado mexicano desde a independência da Espanha, em 1810, constituíram a principal forma de atribuir sentidos e significados às políticas pós-revolucionárias. No período de construção do Estado, então, teria ocorrido a consolidação de uma história nacional que narrava seus processos como momentos de ruptura capazes de estabelecer ou corrigir o percurso de desenvolvimento da nação. A Revolução do começo do XX, assim, foi vista como o “fim da história mexicana” (p. 59). O PRI erigiu-se como a manifestação da vontade da maioria da população que desejaria perpetuar suas conquistas e honrar as lutas daqueles heróis do passado que haviam se sacrificado para que o país atingisse tal momento.
A obra é dividida em seis capítulos que tratam de momentos políticos do país entre 1968 e 2012, investigando desde os usos da história pela política até campanhas eleitorais e resistências enfrentadas pelo PRI. Utilizando principalmente fontes oficiais, como pronunciamentos de líderes políticos em cerimônias cívicas, Sheppard analisa com cuidado a construção e o desenvolvimento do discurso nacionalista como orientador da ação política do governo mexicano.
Os capítulos seguem uma lógica temporal linear, entrelaçando temas políticos, econômicos e culturais com o contexto social do período em questão. Partindo da repressão violenta ao movimento estudantil no chamado Massacre de Tlatelolco (1968), o autor estuda como o presidente em exercício viu-se obrigado a enfrentar o descontentamento com o caráter autoritário que o Estado príista estava desenvolvendo. A partir de então, de acordo com Sheppard, todas as eleições presidenciais foram momentos de reconstrução da identidade e relação entre povo e partido, entre sociedade e Estado, entre os mexicanos e o PRI. As crises internacionais do petróleo na década de 1970 e a consequente crise por conta da dívida externa, já nos anos 1980, indicaram o esgotamento do modelo político-econômico empreendido até então no país. As reformas neoliberais que começaram a ser definidas no governo de Miguel de la Madrid (1982-1988), e caracterizaram um intenso processo de modernização no governo de Carlos Salinas de Gortari (1988-1994), pautaram as maiores transformações na lógica do nacionalismo revolucionário do PRI. Nesse contexto, o partido tinha de se sustentar como herdeiro da revolução enquanto implementava medidas que desconstruíam conquistas sociais que por tantos anos mantiveram a legitimidade do partido no poder. Essa conjuntura dos anos 1980 e 1990, que tem um de seus pontos cruciais na assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), em 1994, é o foco principal do autor neste livro.
Em 2000, o PRI sofreu sua primeira derrota eleitoral na disputa pela presidência do México, chegando ao poder o conservador Partido Acción Nacional (PAN). Assim, Sheppard argumenta e analisa como a crise de representação que retirou o PRI do poder tem, na verdade, raízes mais profundas no modo como o Estado vinha lidando com as necessidades e as questões sociais do país. Ao estudar os governos do PAN (2000-2012), fica claro que não houve uma ruptura com as práticas políticas do Estado príista. O autor demonstra que foi este entendimento que fez o povo mexicano optar nas eleições de 2012 pelo candidato do PRI, agora com uma agenda renovada e estruturada em premissas distintas daquelas dos governos anteriores.
Cada capítulo é precedido por um breve texto introdutório que o autor chama de snapshot, uma descrição aproximada do contexto político e social do país em cada um dos momentos considerados chave para as transformações e as reconfigurações do nacionalismo revolucionário mexicano. Esses textos servem como uma boa estratégia que permite ao leitor não especialista conhecer alguns detalhes de eventos que marcaram a história do país nos últimos anos. Dessa forma, Sheppard tem maior liberdade para abordar alguns acontecimentos, permitindo uma leitura mais fluida. Os capítulos, assim como os snapshots, trazem fotografias de alguns dos eventos mencionados que chamam atenção para a dimensão visual de monumentos, protestos, personagens e líderes.
A construção do discurso nacionalista, como estabelecem Anderson e Hobsbawm, passa também por apropriações populares que se expressam por outros circuitos além dos discursos oficiais, revistas intelectuais e imprensa (principais fontes do autor). O livro, embora não contemple com igual atenção outras manifestações populares, apresenta potencialidades: analisa movimentos sociais independentes ao PRI em protesto contra as diretrizes políticas impostas pelo Estado; elenca uma série de grupos que, longe de aceitar o nacionalismo revolucionário príista, criaram suas próprias dinâmicas de comunicação e construção identitária (sendo o mais representativo o neozapatismo dos anos 1990); e, por fim, indica como algumas minorias baseadas em identidades de diversidade cultural ou de gênero também se envolveram nos processos discutidos no livro. Novas pesquisas e trabalhos podem centrar-se nesses casos para analisar produções socioculturais que nos permitam observar como o nacionalismo e as identidades foram se constituindo em outros âmbitos da sociedade mexicana, além dos oficiais.
Esses temas de investigação já estão sendo explorados em obras como ¡Viva la Historieta! Mexican comics, NAFTA, and the Politics of Globalization (University Press of Mississippi, 2009), de Bruce Campbell, que analisa histórias em quadrinho produzidas no contexto da modernização dos anos 1990 e da assinatura do Nafta. Outro livro neste sentido é Detonación: contra-cultura (menor) y el movimiento fanzine de Tijuana (1992-1994) (NortEstación Editorial, 2014), de Pedro Valderrama Villanueva, que apresenta um coletivo de produção cultural independente, no norte do México, num período em que o PAN ocupava o governo da Baja California pela primeira vez.
Com um estilo claro e simples, o texto de Sheppard permite uma leitura cadenciada mesmo para aqueles com um domínio intermediário da língua inglesa. A obra se destaca por ser o resultado de uma pesquisa intensa que renova os debates sobre o nacionalismo. Sua data de lançamento, no cenário político de eleições presidenciais da América do Norte, se mostra oportuna, e suas contribuições podem ser valiosas para uma perspectiva que entenda o México em suas especificidades históricas, políticas e culturais. A Persistent Revolution é uma obra importante que traz discussões em torno da história recente do México, esclarece como o discurso príista resolveu as aparentes contradições entre neoliberalismo e Revolução no fim do XX e oferece uma competente interpretação do governo do PAN no início do século XXI.
Referências
SHEPPARD, R . A Persistent Revolution: History, Nationalism, and Politics in Mexico since 1968. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2016. 392 p. [ Links ]
José Antonio Ferreira da Silva Júnior – Doutorando da Universidade Estadual de Campinas. E-mail: joseafsj@gmail.com.
Calibã e a bruxa – FEDERICI (Topoi)
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax, São Paulo: Elefante, 2017. I Tomo, Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017, 194p.p. Resenha de: REIS, Marcus. A normatização dos corpos e a regulação dos gêneros no processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Topoi v.19 n.39 Rio de Janeiro Sept./Dec. 2018.
Calibã e a bruxa não é um livro que foge aos debates atuais envolvendo o movimento feminista. O fato de a tradução desta obra para o português ter sido encabeçada justamente por um “Coletivo”, o Sycorax, demonstra o alcance desse trabalho para além do contexto estadunidense. A proposta de Silvia Federicié clara ainda na introdução de sua obra, afirmando seu desejo em “esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” como modo de explicar a relação entre essa história e a exploração decorrente desse processo. Por outro lado, não se desvincula dos primeiros momentos em que o feminismo se posicionou contrariamente ao status quo, ainda que a publicação original seja de 2004.
Não há, ressalte-se, um apego ao anacronismo por parte de Silvia Federici, como se o conceito de gênero fosse utilizado para enxergar as raízes do feminismo na Época Moderna. A originalidade de sua obra consiste em se preocupar não apenas com a multiplicidade que o conceito de mulher possui, mas principalmente com os espaços sociais distintos e atrelados ao fenômeno sobre o qual a autora se debruça. É nesse sentido que Federici parte para o uso em plural da ideia de mulher, assumindo, no âmbito de seu trabalho, o entendimento de que as práticas capitalistas são essenciais para perceber como as relações sociais em que as mulheres se inseriram estiveram marcadas por um contexto de exploração (p. 27).
Há, também, a preocupação em discutir os conceitos de caráter marxista antes mesmo de operacionalizá-los, como a noção de acumulação primitiva. Ao tratar dessa noção, a autora a articula ao objetivo central de sua obra, a “caça às bruxas”, afirmando que esse fenômeno, seja no mundo europeu ou no Novo Mundo, “foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras” (p. 26). É nesse objetivo que, aliás, Federici destaca seu distanciamento das análises de Marx na medida em que o autor, a seu ver, negligenciou a participação das mulheres no contexto da acumulação primitiva. Se Marx “tivesse olhado sua história {do capitalismo} do ponto de vista das mulheres” (p. 27), não teria afirmado que o capitalismo prepararia o caminho para a libertação do proletariado. É, portanto, na tentativa de ampliar a ótica marxista ao atrelá-la à categoria de gênero que seu trabalho se insere, dividindo-se em cinco capítulos.
Seu primeiro capítulo, intitulado “O mundo precisa de uma sacudida”, parte essencialmente da discussão voltada ao surgimento dos Estados Absolutistas, iniciando o debate ainda no contexto da Baixa Idade Média, caracterizada pelas relações de servidão e seus conflitos. No campo das relações de gênero, a contribuição da autora reside no interesse em atrelar o surgimento desses Estados a uma forte política de regulação dos sexos, dos papéis sociais que homens e mulheres deveriam cumprir, apontando para o forte revés sofrido pelas mulheres por conta da legalização do estupro. O resultado disso, para além da degradação da honra feminina, foi o fato de que essa legalização “insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período” (p. 104).
“A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” confere título ao segundo capítulo da obra de Federici, acompanhando a lógica que finalizou o capítulo anterior, atrelando a emergência dos Estados Absolutistas à maior degradação social das mulheres e à emergência de uma nova feminilidade. É nesse espaço de discussões que, por exemplo, a autora retoma o conceito de acumulação primitiva. Ao defender a hipótese de que esse conceito não diz respeito apenas a uma “acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital”, a autora o entendeu como contexto de reformulação das relações de trabalho a partir da sujeição das mulheres. No entender de Federici, esse contexto contribuiu para o processo de ressignificação das funções sociais prescritas às mulheres, que teria atingido seu auge no século XIX “com a criação da dona de casa em tempo integral”, na medida em que à figura feminina coube exclusivamente o papel de reprodutora, distanciando-a da vida pública por conta da nova divisão sexual do trabalho.1
É também nesse segundo capítulo que a autora passa a apresentar com mais clareza sua hipótese central de trabalho: o fenômeno de caça às bruxas corresponderia à maior derrota sofrida pelas mulheres na medida em que teria culminado no surgimento de um novo modelo de feminilidade. As mulheres seriam, assim, destituídas do universo público, relegadas ao papel de reprodutoras, esposas, viúvas ou prostitutas, ficando, por fim, distantes das “relações coletivas e {dos} sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista” (p. 187). Desse modo, até finais do século XVII o que predominou foi um novo “cânone cultural”, encarando as mulheres como “selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem”.
Seu terceiro capítulo, “O grande calibã”, analisa como esse processo de disciplinamento dos corpos direcionado às mulheres foi colocado em prática ao longo da Época Moderna, já que, no capítulo anterior, a autora discutiu as bases que permitiram o avanço dessa estrutura normativa. Esse novo contexto foi caracterizado pela dicotomia da “Razão e as Paixões do Corpo”. Como pano de fundo desse binômio, enxergou a emergência de uma “engenharia social” interessada em reinterpretar as funções do corpo e inseri-lo numa nova lógica em que este foi encarado como fonte de todos os males. Sob a filosofia mecanicista, interessada amplamente em destrinchar as funções corporais, Federici percebeu como o controle da classe dominante sobre o mundo natural se deu progressivamente até culminar no “controle sobre a natureza humana”. Como consequência, ocorreu a morte do conceito de corpo enquanto receptáculo de forças mágicas, amplamente difundido ao longo do Medievo. Aqui, sentimos falta de uma reflexão mais atenta à diversidade documental do período. Nesse sentido, em que medida essa morte de fato teria ocorrido nos séculos XVI e XVII se tomássemos por base as narrativas presentes nos processos dos diversos tribunais do Santo Ofício, e não somente os tratados da época?
Outro argumento empregado por Federici baseia-se no crescente interesse da burguesia em desclassificar a magia, encarando-a como principal entrave para o disciplinamento social e, por consequência, do trabalho. Esse ataque aos indivíduos que se valiam do sobrenatural como forma de resposta às demandas cotidianas, foi, inclusive, um dos principais alicerces para que os Estados investissem na perseguição contra a magia, resultando no fenômeno que é base do trabalho da autora. Disciplinar o corpo esteve, portanto, diretamente relacionado à desconstrução da magia, ambas tornando-se “laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social” (p. 261).
Seu penúltimo capítulo, “A grande caça às bruxas na Europa”, busca, em sua essência, confirmar que o fenômeno da caça às bruxas foi resultado de um processo planejado e encabeçado pelas diversas estruturas de poder, maiormente Igreja e Estados, a fim de levar adiante um disciplinamento social em que as mulheres foram subjugadas.2 Foi, portanto, “iniciativa política”,3 com forte atuação da Igreja Católica por fornecer o “arcabouço metafísico e ideológico” que sustentou as perseguições a partir do século XVI. Além disso, tais perseguições devem ser vistas como uma reação à resistência das mulheres contra as relações capitalistas que ressignificaram a feminilidade. Por fim, esse fenômeno foi instrumento de construção de uma ordem patriarcal que criou modelos de feminilidade prescritos às mulheres, tornando seu “trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos” a serem controlados pelos Estados, segundo a forma de força de trabalho defendida pela burguesia. Se pensarmos numa síntese do que foi esse fenômeno, segundo Federici, poderíamos dizer que a caça às bruxas foi “uma guerra contra as mulheres; {…} uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social {…} onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade” (p. 334).
O derradeiro capítulo, “Colonização e cristianização”, se debruça na extensão que o fenômeno da caça às bruxas adquiriu no Novo Mundo. A autora defende que a abrangência desse fenômeno para além do espaço europeu foi motivada pelo interesse das autoridades em utilizá-lo como ferramenta capaz de minar a “resistência anticolonial e anticapitalista” e levar adiante o interesse exploratório. Seu foco se direcionou basicamente ao contexto da América espanhola, percebendo similaridades com o processo de definição da bruxaria no âmbito europeu, como no perfil das mulheres que foram acusadas por esse delito no espaço americano: “as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus filhos, ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes” (p. 402). Tal qual na Europa, a perseguição se direcionou ao combate de práticas e crenças heterodoxas ao catolicismo bem como às revoltas contra o sistema dominante, neste caso, colonialista.
Ao conferir protagonismo a um “sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro” (p. 35), o que implica na imposição da violência, a autora acaba por privilegiar sua análise a partir de uma estrutura hegemônica. E, talvez, seja no excessivo olhar estruturante de sua obra que as análises empreendidas por Federici perdem força, principalmente em relação a outros campos de discussões associados ao fenômeno estudado.4 Perde-se a avaliação precisa do peso das práticas encabeçadas pelas mulheres como resultado da própria crença dessas mulheres na sua capacidade de dialogar com o sobrenatural. Ao enxergar nas práticas heréticas protagonizadas por elas ao longo da Baixa Idade Média como exemplos claros de uma verdadeira “revolução sexual”, a autora cai no risco de desconsiderar que, por vezes, essas mesmas mulheres, ao ingressarem no universo do sobrenatural, almejavam apenas a manutenção de seus casamentos, sem que a estrutura normativa fosse colocada em xeque.5
Mesmo ao chamar o “Novo Mundo” para o debate, relacionando-o ao contexto de perseguição à feitiçaria, a autora não se descola de um olhar homogeneizante, como ao considerar o período de 1580 a 1630 como ápice da “caça às bruxas”. Se partirmos para a América portuguesa, espaço que é negligenciado em sua obra, é possível perceber que, mesmo no século XVIII, os índices de denúncias e processos promovidos pela Inquisição portuguesa por esse delito são elevados, até maiores que os números relativos ao século XVI.6
Mesmo nesse século, as realidades são diversas quando comparamos regiões distantes, ainda que seja possível identificar algumas coerências nos argumentos da autora. No contexto inglês, Federici enxerga uma relação intrínseca entre o elevado número de acusações contra supostas feiticeiras em Essex e a grande quantidade de terras cercadas nessa região. O mesmo vale quando a autora, concordando com Henry Kamen, estabelece um paralelo entre as graves crises econômicas e o avanço da perseguição à bruxaria, já que muitas mulheres participaram das revoltas como protagonistas. No entanto, a imprecisão existe quando outros contextos são comparados, como em Portugal, em que a realidade é outra. Conforme apontou Francisco Bethencourt, nesse espaço, a figura da mulher, pobre e marginalizada socialmente, pouco apareceu nos processos da Inquisição lusitana.7
Por fim, outro importante debate historiográfico no qual se insere Calibã e a bruxa diz respeito ao entendimento da autora de que a misoginia, juntamente com o conceito de acumulação primitiva, contribuiu decisivamente para que a “caça às bruxas” se sustentasse como importante ferramenta de submissão das mulheres aos mecanismos de poder marcadamente masculinos. Trabalhos como o apresentado por Silvia Federici demarcam, assim, uma diferença visível em relação a outro viés analítico defendido, por exemplo, por Stuart Clark, no qual o peso da misoginia é relativizado.
Em Pensando com demônios, o conceito de contrariedade é tomado como base para refutar a ideia de que a misoginia foi o grande pilar que sustentou a demonologia e a “caça às bruxas”. Clark parte do entendimento de que a modernidade europeia sustentou suas visões de mundo e interpretações a partir de um “extremismo cognitivo”, do qual a figura da “bruxa” foi resultado direto. Bem e Mal se tornaram conceitos essenciais para tais sociedades.8 Esse novo “idioma” foi recorrente não apenas nos corredores eclesiásticos, mas também no modo como a religiosidade foi vivenciada, fazendo com que a alma do indivíduo fosse objeto de disputas. Assim, a misoginia perde força como categoria explicativa, na medida em que a contrariedade se tornou o elemento capaz de explicar os motivos das mulheres terem sido relacionadas à bruxaria.9
Por isso, ao perceber a pouca ocorrência de tratados que se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres e tendo em vista que os trabalhos da época pouco se direcionaram a “explorar o fundamento da bruxaria no gênero”,10 o autor defendeu a necessidade de se relativizar o uso da noção de misoginia. No entanto, ao afirmar que havia uma conexão óbvia para os estudiosos entre a presença das mulheres e a sua predisposição às influências diabólicas, a ponto de fazerem com que tais autores não sentissem “a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo”, Stuart Clark acabou por abrir uma aresta nos seus pressupostos, o que faz com que trabalhos como o de Silvia Federici seja um importante contraponto a esse viés.
Essa relativização por parte do autor a respeito da misoginia foi sustentada por outras duas interpretações. Clark percebeu que na maioria das vezes os tratados demonológicos não se interessaram exclusivamente em injuriar as mulheres – elemento que, a seu ver, sustenta a ideia de misoginia. Além disso, os tratados interessados em discutir sobre o fenômeno da bruxaria “mostraram pouco interesse tanto em explorar o fundamento da bruxaria no gênero quanto em usá-la para denegrir as mulheres”. Assim, as obras que foram amplamente difundidas pela historiografia como exemplo da misoginia presente nas perseguições à bruxaria, como o Malleus Maleficarum e os tratados de Jean Bodin e Martin del Rio, foram encaradas sob uma leitura isolada que pouco ou quase nada se preocupou com a justificativa da presença de mulheres no fenômeno da bruxaria. Todavia, os argumentos de Stuart Clark também são passiveis de críticas.
Se há uma obviedade na conexão entre a figura das mulheres e a presença do Diabo, conforme aponta o autor,11 não é na identificação desse caráter que reside a chave para a compreensão de todo o fenômeno de “caça às bruxas”. Em Calibã e a bruxa , o aspecto central para responder à problemática levantada consistiu justamente em conferir peso à misoginia como instrumento que sustentou a conexão citada, sem perder de vista que a história das mulheres em meio ao contexto de “caça às bruxas” é uma história eivada de trajetórias por vezes silenciadas, inclusive pelos próprios historiadores que negligenciaram o peso das estruturas de poder na normatização dos corpos, na definição dos gêneros e na sustentação de uma heterossexualidade compulsória. Um dos méritos da obra de Federici consiste justamente em perceber como o consenso entre as autoridades religiosas e civis produziu uma série de mecanismos de vigilância e normatização interessados na manutenção do binarismo masculino/feminino. Vide exemplo apontado pela autora nos discursos que se produziram a respeito do pacto diabólico, em que, mesmo ao defenderem a existência de rituais em que as mulheres negavam o catolicismo, se relacionavam com os diabos e consolidavam sua posição de “feiticeiras”, prevalecia a supremacia masculina: “as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem {o Diabo} e o ponto culminante de sua rebelião – o famoso pacto com o diabo – devia ser representado como um contrato de casamento pervertido” (p. 343).
Calibã e a bruxa é uma obra que merece uma leitura atenta por se preocupar em compreender os longos séculos de associação das mulheres à figura do Diabo, à predisposição ao delito da feitiçaria, ou bruxaria, sem isolar as trajetórias dessas mulheres dos motivos que sustentaram essa associação. Por isso a relevância de sua obra: reafirmar a necessidade de se compreender passado e presente sem negligenciar o peso das relações de gênero e dos papéis sociais atribuídos aos homens e mulheres. Além disso, se levarmos em consideração não apenas a temática em que a autora se debruça, mas também o recorte temporal escolhido, percebemos o quão necessário são as publicações interessadas em articular religiosidade e relações de gênero na Época Moderna, tornando-se exemplos da diversidade de interpretações resultantes dessa interação. Para o contexto brasileiro, que tem acesso relativamente tardio à publicação em português deCalibã e a bruxa , tais aspectos estão igualmente presentes (talvez até com maior peso). Eles nos permitem entender que o estudo da bruxaria está longe de se esgotar quando o conceito de gênero é operacionalizado.
Referências
FEDERICI, Silvia; Calibã e a bruxa . Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017. Tomo I: Migraciones. Ciudad de México: Palabra de Clío, 2017. 194p. [ Links ]
1É nesse contexto de disciplinamento dos corpos e de normatização das mulheres, atrelando-as ao papel reprodutivo, que a autora enxerga um forte paralelo com o aumento dos processos envolvendo os delitos de infanticídio e bruxaria (p. 157).
2Um dos argumentos mais sólidos que a autora construiu referente à submissão feminina no âmbito da caça às bruxas diz respeito à mudança de status adquirida pela figura do Diabo a partir do século XVI, deixando de ser escravo e servo das mulheres, tornando-se figura abominável, “seu dono e senhor, cafetão e marido”. Tanto é que o pacto diabólico, considerado pelos demonólogos como auge dos rituais empreendidos pelas mulheres com a figura do Diabo, evocava a supremacia masculina através de tal personagem, para a qual as mulheres deveriam prestar juramento (p. 338).
3A autora chega a afirmar que a “caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus”, muito por conta de protestantes e católicos terem compartilhado do mesmo interesse em coibir a presença da bruxaria entre seus fiéis (p. 303).
4Como, por exemplo, a possibilidade de promover estudos mais aprofundados das crenças, das práticas, da possibilidade de se compreender o universo mágico-religioso e suas relações entre os indivíduos a partir do entendimento de que havia ali uma coerência interna distanciada do materialismo.
5No contexto da Coimbra Seiscentista, José Pedro Paiva identificou a predominância das mulheres casadas como as maiores interessadas em contar com a ajuda das feiticeiras para a manutenção de seus casamentos. Cf.: PAIVA, José Pedro. O papel dos mágicos nas estratégias do casamento e na vida conjugal na diocese de Coimbra (1650-1730). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1990, p. 168-169; 180-182.
6MATTOS, Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-Pará pombalino. 1750-1774. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.
7BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos, curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 371. Destaque-se ainda, entre os denunciantes, a multiplicidade de classes sociais interessadas em denunciar o delito da feitiçaria.
8CLARK, Stuart. Pensando com demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Trad. de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 87.
9Ibidem, p. 187.
10Ibidem, p. 166.
11“Os autores sobre bruxaria evidentemente davam como certo uma maior propensão das mulheres ao demonismo, e tudo em seu ambiente cultural os encorajava a isso. A conexão era tão óbvia para eles, tão profundamente enraizada em suas crenças e comportamento, que não sentiam a menor necessidade de elaborar sobre ela ou apelar para o ódio às mulheres em seu respaldo.” Cf.: Ibidem, p. 168.
Marcus Reis – Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: mv.historia@gmail.com.
Poder e religião no Egito Antigo / Hélade / 2018
Poder e religião no Egito
É muito raro encontrar uma pesquisa acerca da sociedade egípcia que não envolva de alguma forma o fenômeno religioso e sua interligação com o poder. Isso se deve ao fato de que a concepção de mundo para os antigos egípcios mesclava todas as esferas que atualmente insistimos em analisar separadamente: religião, poder, cultura, sociedade, economia, etc. A estrutura do poder faraônico estava solidamente baseada em preceitos cosmogônicos e cosmológicos, de forma que todos os habitantes do Egito compunham a parte de um todo ordenado pela concepção de Maat, princípio que regia o equilíbrio cósmico do mundo (BAINES, 2002, p. 200).
O faraó era o responsável pela manutenção de Maat através das práticas diárias de culto aos deuses, preservação de templos, conservação do ciclo natural do Rio Nilo. O surgimento de situações de caos significava que Maat não tinha sido devidamente respeitada. No entanto, não só o faraó tinha um papel importante no afastamento do caos, mas sim todos os egípcios que, por meio de seus respectivos papeis na vida social, auxiliavam no funcionamento próspero do Egito, desde um camponês que realizava a colheita de alimentos até um sacerdote iniciado nos mistérios dos deuses que executava rituais templários.
Existe uma complexidade inerente ao esforço de lidar analiticamente com uma sociedade tão distante espaço-temporalmente da nossa. No entanto, ao fazê-lo, verificamos não apenas que as estruturas de poder e as formas de agência se modificaram ao longo de mais de cinco mil anos, mas também permitiram uma continuidade que por vezes nos faz olhar para o Egito Antigo não com total estranhamento, mas com certa identificação. Assmann, historiador e egiptólogo alemão, afirma: “O Egito é o lugar clássico da experiência do tempo” (ASSMANN, 2005, p. 21). Tal afirmação caracteriza uma tendência nacional e internacional das pesquisas sobre o Egito Antigo e é a partir dessa premissa que as diversas pesquisas presentes neste dossiê foram desenvolvidas.
O primeiro artigo que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Dr. José das Candeias Sales, da Universidade Autônoma de Lisboa, e tem como objetivo traçar paralelos entre as narrativas cosmogônicas egípcias, mais especificamente as de Hermópolis e Mênfis, e o relato bíblico do Gênesis. O autor inova ao procurar diálogos intertextuais entre as narrativas egípcias e a hebraica, uma vez que grande parte dos pesquisadores tende a analisar o Gênesis à luz dos textos mesopotâmicos.
A segunda contribuição, de autoria do Prof. Dr. Mariano Bonanno, da Universidade de Buenos Aires, analisa o Sarcófago de Amenirdis (XXVI Dinastia) sob a luz dos conceitos de agência e mirada. Bonanno operacionaliza as diversas facetas do sarcófago, desde sua materialidade até sua iconografia, para demonstrar como um agente da não-elite mobilizou um objeto que, de forma limitada, conferiu-o certo status na sociedade egípcia. Segundo o autor, o sarcófago era um objeto de poder, tendo em vista o seu significado religioso e sociocultural.
O Prof. Dr. Pablo Martín Rosell, da Universidade de La Plata, analisa as fórmulas abidianas presentes nas estelas votivas do Reino Médio com o intuito de compreender o seu significado para o mundo social e religioso, e, ainda, demonstrar sua relação com os festivais em honra ao deus Osíris – o Mistério de Osíris. Rosell afirma que a análise da construção de capelas e estelas votivas em Abidos por parte das elites egípcias que peregrinavam anualmente para participar do festival auxiliam no entendimento da hierarquia social egípcia e nas formas de diferenciações sociais que tais elites procuravam elucidar através destas materialidade.
O artigo de Profa. Ms. Keidy Matias, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, adota o conceito de Espaço Absoluto do filósofo francês Henri Lefebvre para entender a relação entre os humanos e a natureza como uma forma de produção social do espaço. A autora objetiva compreender de que forma a expressão herodoteana “O Egito é uma dádiva do Nilo” encontra eco na prática social do espaço e da natureza no Egito Antigo.
A sexta contribuição que compõe o nosso dossiê é de autoria do Prof. Ms. Thiago Ribeiro, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e tem como objeto de estudo o conceito de magia no Egito Antigo e a sua relação com a religião egípcia. O autor delineia que é comum que os estudiosos da área entendam magia e religião como fenômenos distintos. No entanto, através da análise da documentação escolhida, Ribeiro demonstra que para os egípcios, religião e magia eram indissociáveis, constituindo em duas faces da mesma moeda.
Por fim, o artigo do Prof. Dr. Juan José Castillos, do Instituto Uruguaio de Egiptologia, versa sobre as primeiras formações institucionais da estrutura de poder faraônica através da análise da transição de uma situação de ausência de poder institucionalizado para o surgimento de chefes hereditário que posteriormente tornar-se-iam os faraós de um Egito unificado. Castillos afirma que a religião em construção no período pré-dinástico foi crucial para a justificação e validação desta nova ‘realidade social, política e econômica’.
Convidamos todos(as) a lerem o nosso dossiê Poder e Religião no Egito Antigo, composto por importantes pesquisas nacionais e internacionais que caracterizam o gradual crescimento dos estudos egiptólogos no Brasil, assim como a sua sintonia com o cenário internacional, especialmente na América Latina.
Boa leitura.
Referências
ASSMANN, Jan. Egipto: Historia de um sentido. Madrid: Abada Editores, 2005.
BAINES, John. Sociedade, Moralidade e Práticas Religiosas. In: SHAFER, Byron E. (org.). As Religiões no Egito Antigo. São Paulo: Editora Nova Alexandria Ltda, 2002.
Beatriz Moreira da Costa – Doutoranda em História pelo PPGH-UFF. Pesquisadora vinculada ao NEREIDA-UFF, LHIA-UFRJ e Coordenadora do Grupo de Estudos GEKmet. E-mail: beatrizmoreira190@ hotmail.com
COSTA, Beatriz Moreira da. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,4, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]
Political ecology – food regimes and food sovereignty: crisis – resistance and resilience | Mark Tilzey
In 1998, Giovanni Arrighi wrote an article with a curious subtitle: “Rethinking the non-debates of the 1970’s”. [3] He was referring to the “non-debates” between Immanuel Wallerstein, Robert Brenner, Fernand Braudel and Theda Skocpol, that remained undeveloped. These “non-debates” of the 70’s, especially the one between Wallerstein (with his world-system perspective) and Brenner (with his “Political Marxism” stance), now reemerge in Tilzey’s book, with Tilzey in the role of the “political Marxist” challenging the conceptions of Jason W. Moore and the proposals of his “world-ecology”, as well as Philip McMichael and Harriett Friedman’s conceptions of “food regime” (both developments of Wallerstein’s “world-system” perspective). [4] This is not simply a repetition, to be sure: the return to thematic and methodological questions derives from the rise and intensification of problems and questions in the present, specifically, how to treat ecology/nature and crisis in our historical and theoretical concepts of capitalism in the Anthropocene/Capitalocene era, characterized by repeated economic crashes. These new questions and problems motivate Tilzey’s timely effort. Nevertheless, many “non-debates” remain undebated, including Arrighi’s intervention in them.
The first chapters of Tilzey’s book condense his ontological and methodological premises. Tilzey tries to build an ontology on which his propositions on political ecology and food regimes would be based. In chapter 2, he criticizes Jason W. Moore’s “world-ecology”, claiming that his notion of “double internality” of society and nature is a “flat ontology”. Tilzey opposed a four-level stratification of ontological relations to this: a non-hybrid, extra-human reality, nature (level 1); a hybrid, socio-natural level of trans-historical use-values (level 2); an “allocative” hybrid level, related to class-mediated distribution and historically-specific technologies (level 3); a non-hybrid “authoritative” level, the underlying political dimension in class dynamics in which to seek “structural causality” (level 4) (p. 28). Tilzey claims that the ontology he proposes is better equipped to deal with class relations and the “authoritative dimension” than Moore’s is. This ontology sets the tone of the rest of the book. Despite his critique of Moore’s general approach, Tilzey recognizes his contributions related to the capital’s dependency on “cheap natures” and commodity frontiers.
It is worth it then to make some critical observations on this foundational first chapter. Tilzey’s assertion that Moore proposes a “flat ontology” is problematic. For starters, Moore denies it explicitly.[5] Moore also asserts the differentiation of humans in that “humans relate to nature as a whole from within, not from the outside. Undoubtedly, humans are an especially powerful environment-making species. But this hardly exempts human activity from the rest of nature”.[6] Finally, Moore distances himself from a “flat ontology” by qualifying Nature and Society as “real abstractions”, the “real historical power of ontologic and epistemic dualisms” that are in contradiction with the co-production of humans and nature.[7] Tilzey’s argument on the “flat ontology” of Moore could have been more convincing if he had addressed and criticized these elements of Moore’s work, but they are left untouched, and so his critique appears to be one-sided. Moore uses “value as method”, in which capital, class and nature conflate in a peculiar, historically-specific way, operating in the formation of classes and concomitant organization of historical natures. Sharply separating or hierarchizing them would be a “violent abstraction”, according to this perspective.[8]
Additionally, Tilzey’s conception of dialectics is not very clear. Both Lucio Colletti and Levins and Lewontin are known to support his position (p. 19-29), references that are at opposite ends regarding the methodological and historical statute of dialectics. For Levins and Lewontin, dialectics is trans-historical and imputed to nature itself (like in Engels’ “dialectics of nature”), while for Colletti it is historically-specific to capitalist modernity, including relations with nature but not extended to nature itself and neither to history as such.9 The assertion that Tilzey’s ontology entails “principles that are not specific to capitalism but to all social systems” (p. 24) clearly indicates the adherence to a trans-historical conception of dialectics, though it is not clear whether it is extended to nature as such or not.
In the next chapter, Tilzey uses his proposed ontology to discuss the origins of agrarian capitalism, “combined and uneven development” and the first agricultural revolution in Britain. Regarding the origins of agrarian capitalism, Tilzey defends a Brennerian position of a British origin of capitalism with specific “social-property relations” (with fully commodified land and labor), contrasting with the world-system perspective which proposes a West European (and American) origin based on for-profit production of commodities under different labor regimes in a world market, the “commodification of everything”.[10] The presentation of world-systemic perspectives on the origins of capitalism is oversimplified as the “Braudel-Wallerstein-Arrighi school”, when actually there are significant differences between these three authors’ view on the transition from feudalism to capitalism (p. 48-9). A discussion of these differences would have been important, especially because Arrighi claims to have incorporated Brenner’s critique of Wallerstein in his version of the theory of transition.[11] Though Tilzey rejects the world-systemic conception of core-periphery relations, he recognizes the crucial importance of cotton plantations in the American South for the Industrial Revolution (or, more generally, the interaction between English capitalism and the “external arena”). To conciliate both positions, he uses a theory of “combined and uneven development” based on Trotsky and more specifically on Anievas and Niasanciglu. It should be noted that what Anievas and Niasanciglu propose as “combined and uneven development” is a trans-historical ontology that is projected back to the time of hunter-gatherers.[12]
The combination of the reference to Levins and Lewontin when referring to dialectics and Anievas and Niasanciglu in relation to uneven and combined development indicate that there seems to be a tension in Tilzey’s theoretical framework: on the one hand, an attempt to specify capitalism in such a way that only England would initially comply; on the other, the use of analytical methods that lack historical specificity to deal with “nature” and the “external”, non-capitalist world. Contrasting with this trans-historical methodological choices, for example, Moishe Postone and Lucio Colletti would argue that dialectics and the dialectical method are historically-specific to capitalist modernity; and in the world-system perspective, core-periphery relations are historically-specific to a capitalist world-economy (which is not necessarily coincident with the whole globe, but comprises the states that are integrated in a single, large-scale market) that arose in the sixteenth century and will become extinct in the future. This world-economy would constitute an integrated market comprised of several states, with a scale and level of integration that characterize it as qualitatively very different from any exchange that might have occurred between groups of hunter-gatherers [13].
One passage reveals this difficulty in using a combination of historically-specific and trans-historical categories: “through the institution of slave plantation in the colonies, capitalists were able to reduce significantly the costs of constant capital in the form of raw materials” (p. 71, emphasis mine). The reader should note that while “constant capital” is a historically-specific category, “raw materials” is trans-historic; the historically-specific category would be “circulating capital”. There is no difficulty here for the world-system perspective, especially if considering Dale Tomich’s concept of “second slavery”. [14] But for the “social-property relations” approach, characterizing slave-produced cotton as “circulating capital” might be inconsistent, as that would mean that slave production was already subsumed under the law of value and the dynamics of the organic composition of capital. But if it was not produced as circulating capital from the beginning (which is difficult to accept, as the relation between Mississippi Valley plantations and English factories was systematic, instead of contingent) then we remain with the difficult question of defining where, between the plantation in the American South and the factory in Britain, this trans-historical “raw material” was converted into a historically-specific “circulating capital”, thus mediating the organic composition of capital and counteracting the profit rate’s falling tendency (a mediation that Tilzey correctly admits as being key for the Industrial Revolution). The problem does not seem to be solved by attributing this “raw material” to level 3 in Tilzey’s ontology, as “class” is still a historically indeterminate category (contrary to value).
The rest of the book is an “application” of the ontological premises presented in the first two chapters. Chapters 4 to 6 are dedicated to the discussion of food regimes. Tilzey characterizes them as the first or British liberal regime (1840-1870), the second or imperial regime (1870-1930), the third or “political productivist” regime (1930-1980) and the neoliberal regime. Tilzey proposed the first regime as a complement to the others that were previously proposed by Friedmann and McMichael. Here, in accordance with his proposed ontology, the emphasis is on class politics, class fractions and how they shape what he calls the “capital-State nexus”. For Tilzey, the “Polanyian” approach of Friedmann and McMichael regarding the State (the “double movement”) obliterates the “state as comprising the condensation of the balance of class forces in society” (p. 113). One of the best moments of the book is the explanation of the different interests of American corn, cotton and wheat famers and how this class-fractional struggle shaped state policies and food regimes (ch. 5).
In Part 2 (chapters 7 and 8), Tilzey discusses “crisis and resistance”. Tilzey’s previously defined ontology implies that crises are always “political” or legitimacy crises; an objective crisis of capitalism is out of question a priori (as well as the possible transition to a less democratic social order). In this respect, he distances himself from other authors for whom alienation plays a central role in crisis theory and that do consider the possibility of some kind of “regressive” transition, such as Moishe Postone or Robert Kurz, and is at least in this regard (crisis necessarily as crisis of legitimacy) in agreement with a non-Marxist scholar like Wolfgang Streeck.[15] In his exposition in chapter 7, Tilzey identifies as contradictions of neoliberalism the general falling rate of profit due to the rising organic composition of capital and the rising cost of raw materials. It should be noted that he characterizes the falling rate of profit with the “power of capital over labor” (p. 200), in line with the posited priority of the “authoritative” level of his ontology. But here, perhaps this ontology produces another one-sided result. The falling rate of profit is the result of mechanization not only in a struggle of capitalists against workers but also in a struggle among capitalists (competition for efficiency); besides, the tendency itself is an objectified outcome that is not “authoritatively” planned. This is part of a dialectic of subjectivity and objectivity peculiar to capitalism that seems to be obliterated by Tilzey’s ontology. In relation to the food regime in particular, Tilzey develops the idea that food and financial crises are different manifestations of the neoliberal social disarticulation, which combines a crisis of under-consumption (level 4 of the ontology) with increasing costs of raw materials (levels 3 and 4).
Again following his ontologies of class and combined and uneven development, Tilzey analyzes peasant “resistance” movements as assuming three different forms: what he calls “sub-hegemonic” (reformist), “alter-hegemonic” (progressive) and “counter-hegemonic” (radical). The sub-hegemonic movement is represented by the “Pink Tide” in South America and its focus on the combination of extractivism and social policies, with peasants appealing to indigenous identities. Alter-hegemonic movements are represented by small commercial farmers, mostly in core countries, that demand regulation and protection against the market. Peasant movements, mostly those in the “global South” and among subaltern classes whose demands include the socialization of means of production (land), are counter hegemonic. It can be seen that the existence of, or potential for, reactionary movements is overlooked, as the ontology does not seem to be equipped with the necessary analytical tools.[16]
Part 3 (chapters 9-13) is dedicated to country case studies, which includes Bolivia, Ecuador, Nepal and China, in which the author tries to trace the commonalities and differences between them (Brazil is not included). Some of the best moments of the book appear here, such as when Tilzey explains the difference between recent peasant movements in Bolivia and Ecuador, on the one hand, and their weakness in Chile and Peru, on the other, based on their different class structures and histories. The last chapter is political-normative, advocating a “food sovereignty” based on peasant communal production using a “resilient” food production system grounded on agroecological methods.
It is clear throughout the book that Tilzey makes great effort to be consistent with his proposed ontology of “Political Marxism”. Nevertheless, the one-sidedness of this ontology (despite the inclusion of “ecology” in lower hierarchical levels), which one could characterize as an extreme form of politicism (or a “violent abstraction”), might produce one-sided analyses, like a critique of Moore that ignores his use of “real abstractions” and a theory of crises that overlooks objectified tendencies (or is inconsistent by taking them into account). Additionally, the trans-historical elements of the ontology used to conciliate the supposed exceptionality of Britain and the intense relations with the “external arena” might generate problems of consistency and historical specification. But the approach can also produce useful sociological and class dynamics analyses and insights. The reader’s evaluation of this ontology will ultimately shape his or her broad evaluation of the book. Hopefully Tilzey’s book will be only the first of many to address the many “non-debates” that are still untouched, some of them barely scratched in this review and that include vitally important questions such as the concept of capitalism, its historical origins and its future demise.
Notas
3. ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.
4. WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011 [1974]; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.
5. MOORE, Jason W. op. cit, p. 39.
6. Ibid., p. 46. Emphasis mine.
7. Ibid., p. 47.
8. Ibid., ch. 2. SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.
9. LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.
10. WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.
11. Inspired by Braudel, Arrighi proposes an interstitial transition based on Italian city-states, which would include competition for mobile capital, thus addressing Brenner’s critique that competition was not a part of Wallerstein’s model. See ARRIGHI, op. cit.
12. ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.
13. COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moishe and REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.
14. On “second slavery”, see TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.
15. POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 {1986}; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.
16. Critical Theory could be helpful, but it seems to be far from Tilzey’s theoretical commitments
Referências
TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. 394 pp.
ARRIGHI, Giovanni. Capitalism and the modern world-system: rethinking the non-debates of the 1970’s. Review, 21, n. 1, 113-29, 1998.
WALLERSTEIN, Immanuel. The modern world-system I: capitalist agriculture and the origins of the European world-economy in the sixteenth century. Berkeley: University of California Press, 2011{1974}; BRENNER, Robert. The origins of capitalist development: a critique of neo-Smithean Marxism. New Left Review, I, 104, p. 25-92, July-August 1977; MOORE, Jason W. Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation of capital. New York: Verso, 2015; FRIEDMANN, Harriet; MCMICHAEL, Philip. Agriculture and the state system. Sociologia Ruralis, XXIX, no. 2, p. 93-117, 1989.SAYER, Dereck. The violence of abstraction: the analytical foundations of historical materialism. Oxford: Basil Blackwell, 1987.
LEVINS, Richard; LEWONTIN, Richard. The dialectical biologist. Harvard: Harvard UP, 1985. COLLETTI, Lucio. Marxism and Hegel. Trans. R. Garner. New York: Verso, 1973.
WALLERSTEIN, Immanuel. Historical capitalism. New York: Verso, 2011.
ANIEVAS, Alexander; NISANCIOGLU, Kerem. How the West came to rule: the geopolitical origins of capitalism. London: Pluto Press, 2015, p. 46-7.
COLLETTI, op. cit. POSTONE, Moisheand REINICKE, Helmut. On Nicholaus’ “Introduction” to the Grundrisse. Telos, 22, 130-148. WALLERSTEIN, Immanuel. Op. cit.
TOMICH, Dale W. Through the prism of slavery: labor, capital and world-economy. Lanham: Roman & Littlefield, 2004.
POSTONE, Moishe. The current crisis and the anachronism of value: a Marxian reading. Continental Thought and Theory, 1, no. 4, p. 38-54, 2017. KURZ, Robert. The crisis of exchange value: science as productivity, productive labor and capitalist reproduction. In Marxism and the critique of value, ed. N. Larsen et al, p. 17-76. Chicago: MCM’, 2014 [1986]; STREECK, Wolfgang. How will capitalism end? New Left Review 87, p. 35-64, May-June, 2014.
Daniel Cunha – Binghamton University. Binghamton – New York – United States of America. PhD candidate in Sociology under the supervision of Jason Moore, in Sociology, Binghamton University. Email: dcunha1@binghamton.edu
TILZEY, Mark. Political ecology, food regimes, and food sovereignty: crisis, resistance, and resilience. Cham: Palgrave MacMillan, 2018. Resenha de: CUNHA, Daniel. Nature, Food, Crisis: New Problems, Old Debates. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 282-286, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito | Marco Morel
O livro, como todos eles, tem um itinerário que extrapola em muito o tempo consumido em sua escrita. Marco Morel começou a pensar na temática ainda muito jovem, em 1989, quando apresentou um trabalho nas comemorações do bicentenário da Revolução Francesa organizadas por Michel Vovelle na Sorbonne. Naquela oportunidade, o historiador expôs uma hipótese original, a de que a revolução Haitiana tinha influenciado mais o Brasil que a própria Revolução Francesa. Vinte e sete anos depois, Morel permite que o público conheça os desdobramentos daquela primeira inquietação.
A Revolução do Haiti e o Brasil escravista se inscreve em um conjunto maior de publicações que aborda os “rumores”, influências, conexões e ecos da Revolução de Saint-Domingue no espaço do Caribe ou do continente americano. Revolução que se desenvolveu entre 1791 e 1804, quando finalmente foi declarada a independência, e a porção ocidental da ilha, que tinha sido chamada por Cristóvão Colombo de “La Española”, tomou o nome de Haiti [3]. Embora balizada entre esses dois anos, os desdobramentos da Revolução e do abolicionismo se estenderam por muitos mais. O livro propõe uma dupla temporalidade: a de 1791-1825 para o Haiti e a de 1791-1840 para o Império do Brasil. No primeiro caso, o período se delimita entre o início da Revolução no território insular e o reconhecimento francês da independência. No segundo, entre o mesmo início e o fim do período regencial.
Apesar de a perspectiva da conexão Haiti-Brasil ter uma longa tradição na história do pensamento social brasileiro, o viés “positivado” da Revolução foi muito menos explorado que o do temor senhorial ou administrativo ao chamado haitianismo [4]. O próprio vocábulo, neologismo do século XIX, surgiu carregado de negatividade, como sinônimo de anarquia, subversão (inversão da ordem), “governo dos negros”.
Morel inscreve seu livro na perspectiva do acolhimento dos acontecimentos caribenhos, mas o ponto de vista é o da história do Brasil.
A admissão/adoção do ideário haitiano no Brasil como modelo social (igualitarismo racial, abolicionismo, direitos de cidadania, redistribuição da terra) ultrapassa, segundo o autor, o âmbito da escravidão, incluindo sectores letrados e não letrados livres. Como se propõe a tratar da recepção da Revolução de Saint-Domingue, principalmente de sua aceitação, já não no formato de artigos, como tinha feito antes, mas numa obra de maior fôlego, o autor estrutura o livro em três capítulos: “A Revolução do Haiti – breve apresentação”, “Entre batinas e revoluções” e “Os fios de uma teia”.
No primeiro, é-nos advertida sua necessidade. Apesar de não ser um livro sobre o Haiti, considera o autor que uma introdução à Revolução é fundamental como protocolo ou pré-requisito de leitura, para o qual adota uma morfologia pouco frequente em livros acadêmicos: uma cronologia de 16 páginas exposta em forma de tabela; breves biografias das lideranças revolucionárias; um apanhado do vocabulário de época; uma descrição de ocupação e exploração da parte ocidental da ilha; a análise de um projeto de classificação racial do fazendeiro e escritor colonial Médéric Louis Élie Moreau de Saint Méry publicado em 1796, comparando-o com o do maranhense Raimundo José de Souza Gayoso, que em seu Compêndio histórico-político dos princípios da lavoura do Maranhão propunha uma classificação adotando a de Saint Méry; e, por último, uma tabela comparando as diferentes constituições desde 1801 – ainda como colônia autônoma – até 1816.
Um primeiro capítulo tão heterodoxo em sua composição nos lembra o romance de Daniel Maximin, L’Isolé soleil, analisado por Laurent Dubois. A personagem Marie Gabriel tenta escrever a história da ilha, Guadalupe, para a qual utiliza o diário de Jonathan, peça elaborada e abandonada por um antepassado seu – o texto não é um diário propriamente dito, mas um álbum de recortes de distintas fontes [5]. Para escrever a história dessa outra ilha, Haiti, Morel recorre a esse gênero constituído por recortes, fragmentos que são necessários para a recomposição do todo.
O segundo capítulo busca tecer as relações entre a França revolucionária, Saint- Domingue e o Brasil a partir dos escritos de três abades: Raynal, Grégoire e de Pradt. Nas páginas do livro, vemos surgir um Raynal idealizado: antiescravista, anticolonialista. As predições do abade sobre o futuro da escravidão africana podem ser interpretadas mais como advertência do que como condenação. Ou, nas palavras de Trouillot, como um “projeto de administração colonial. De fato [o pensamento de Raynal] incluía a abolição da escravidão, mas a longo prazo e como parte de um processo que aspirava a um melhor controle das colônias” [6]. O mesmo pode ser dito da apresentação do abade Grégoire. De qualquer forma, os três funcionam como mediadores letrados das revoluções atlânticas. Os três mantêm algum tipo de relação com o Brasil, presente em seus escritos sobre a escravidão/situação colonial. A busca de Grégoire por um escritor negro em língua portuguesa para sua obra De la Littérature des nègres (1808) o levou a estabelecer contatos no Brasil com Monsenhor Miranda, com quem manteve relação epistolar. A segunda parte do capítulo reconstitui certa formalização de ideias sobre o Haiti e sobre a Revolução do ponto de vista de letrados brasileiros. Afora os três abades, um punhado de escritos locais serve ao autor para evidenciar as conexões revolucionárias atlânticas, sobretudo no nível das ideias.
É no final deste capítulo e a partir da fala do terceiro abade, de Pradt, que Morel nos introduz no subtítulo do livro: “o que não deve ser dito”. Morel atribui a de Pradt a autoria sobre as estratégias comunicativas a respeito da Revolução do Haiti assentadas sobre dois eixos: “a rejeição dos horrores de São Domingos e a ocultação da densidade e das múltiplas possibilidades de seu exemplo histórico” [7]. Para Morel, esses dois eixos podem ser sintetizados como “o maldito e o não dito”.
Embora os silêncios e as ausências tenham nas ciências sociais uma base sólida de conceitualização e análise, foi o antropólogo Michel-Rolph Trouillot quem lhe deu a forma mais acabada em relação ao Haiti com seu livro Silencing the past: “a revolução era impensável no Ocidente embora tampouco fosse verbalizada entre os próprios escravos”, em grande medida porque as reivindicações seriam radicais demais para se expressar em palavras: abolição, expropriação, distribuição da propriedade etc. Esses princípios “só poderiam reivindicar-se quando impostos pelos fatos”. Nesse sentido, diz, “a revolução estava realmente nos limites do concebível” [8]. Mas Trouillot consegue romper o silêncio e encher o livro de alocuções.
O terceiro capítulo começa com a instigante frase: “Poucos personagens encarnam no Brasil a proximidade com o exemplo da Revolução do Haiti como Emiliano Felipe Benício Mundurucu”. O documento principal para apresentar Mundurucu é o texto autobiográfico breve que o brasileiro publicara em Caracas em 1826, mas, para certa decepção de Morel, Mundurucu não fala nada sobre o que seria uma pauta haitiana, senão da pauta do momento nas repúblicas americanas: republicanismo, liberdade, antidespotismo. Utiliza metáforas como “algemas do despotismo” para referir-se aos presos de 1817. Com isso, ele não foi mais longe do que a filosofia política ocidental. Disse Susan Buck-Morss que, no século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, enquanto a liberdade era considerada o valor político fundamental [9].
Mundurucu foi major do batalhão de pardos durante a Confederação do Equador. Como o autor diz, seu nome se apresenta em fugazes registros na historiografia, vinculado a uns versos sediciosos naquele contexto da revolta:
Marinheiros e caiados
Todos devem se acabar
Porque só pardos e pretos
O país hão de habitar
{…}
Qual eu imito Cristóvão
Esse Imortal haitiano
Eia! Imitai o seu povo
Oh meu povo soberano.
O capítulo traz outra trajetória singular, a do pastor negro, protestante, Agostinho José Pereira, “que alfabetizava negros e pregava contra o catolicismo na década de 1840” e, nessa tarefa, introduzia algumas ideias favoráveis ao Haiti. Nesse caso, como no anterior, trata-se de um haitianismo (no sentido positivo) difuso, próximo daquele que assumia o republicanismo hispano-americano. Um caráter difuso análogo ao da enunciação “mata caiados” para lembrar (timidamente) dos milhares de espanhóis mortos pelo Padre Hidalgo e seus seguidores na sua jornada. É provável que Mundurucu tenha refinado ainda mais sua pauta haitiana em sua estadia na Venezuela, onde o “haitianimo” teve forte influência desde o final do século XVIII.
Como evidencia Morel na última parte do livro, no século XIX fica difícil pensar num único Haiti. As divisões internas entre o Reino de Henri Christophe (1807-1820) ao norte e a República mulata de Alexandre Pétion (1807-1818) ao sul, posteriormente liderada por Jean-Pierre Boyer, deixam patente a complexidade de ecoar, refletir ou se conectar com uma realidade haitiana, sem falar na pertinência de se referir a um único haitianismo.
Escrito de maneira didática e clara, o livro é leitura obrigatória para os alunos de graduação em história que queiram ter uma primeira aproximação à Revolução do Haiti e suas conexões com o Brasil do século XIX.
Notas
3. FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012; GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em: <http://journals.openedition.org/nuevomundo/211>. Acesso em: 7 nov. 2018; GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004, entre outros.
4. SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016. NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008; SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002; REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, v. 28, p. 14-39, dez./fev. 1995/1996.
5. DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, [S.l.], v. 46, n. 5. p. 60-82, 2009.
6. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017, p. 68
7. MOREL, Marco. Op. cit., p. 160.
8. TROUILLOT, Michel-Rolph. Op. cit., p. 74.
9. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.
Referências
BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 90, p. 131, jul. 2011.
DUBOIS, Laurent. Los cimarrones en los archivos: los usos del pasado en el Caribe Francés. JBLA, {S.l.}, v. 46, n.5. p. 60-82, 2009.
FERRER, Ada. A sociedade escravista cubana e a Revolução Haitiana. Almanack, Guarulhos, n. 3, p. 37-53, jan./jun. 2012.
GÓMEZ, Alejandro. La Revolución Haitiana y la Tierra Firme hispana. Nuevo Mundo Mundos Nuevos {En ligne}, Débats, mis en ligne le 17 février 2006, Disponível em:<Disponível em:http://journals.openedition.org/nuevomundo/211 >. Acesso em:7 nov. 2018.
GONZÁLEZ-RIPOLL, María Dolores Navarro et al. El rumor de Haití en Cuba: Temor, raza y rebeldía (1789-1844). Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2004.
MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017.
NASCIMENTO, Washington Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista. Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142, 2008.
REIS, João José, Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, São Paulo, (28), 14-39, dez. fev.1995/1996.
SILVA, Luiz Gerardo. El impacto de la revolución de Saint-Domingue y los afrodescendientes libres de Brasil. Esclavitud, libertad, configuración social y perspectiva atlántica (1780-1825). Historia, Santiago, v. 49, n. 1, p. 209-233, jun. 2016.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio. Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: outras margens do atlântico negro. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 63, p. 131-144, jul. 2002.
TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciado el pasado. El poder y la producción de la história, Granada: Comares, 2017.
María Verónica Secreto – Universidade Federal Fluminense. Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Possui graduação em História – Universidad Nacional de Mar Del Plata – Argentina (1991), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1995) e doutorado em Ciência Econômica/História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Foi professora efetiva na Universidade Federal do Ceará (2002-2004) e na Federal Rural do Rio de Janeiro (2004-2008), atuando nessa última no programa de pós-graduação em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade. Atualmente é professora Associada da Universidade Federal Fluminense, atuando na graduação em História da América e no Programa de Pós-graduação.
MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Jundiaí: Paco, 2017. Resenha de: SECRETO, María Verónica. A Revolução de Saint-Domingue e sua conexão continental: de Toussaint a Mundurucu. Almanack, Guarulhos, n.20, p. 287-290, set./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Pesquisa (Auto)biográfica em educação na Europa e América | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2018
Não há dúvida de que a pesquisa biográfica se tornou cada vez mais importante em todo o mundo, nas ciências educacionais e sociais, nos últimos 50 anos, e que os padrões metodológicos e teóricos deste campo de pesquisa foram consideravelmente consolidados. Não obstante, permanecem os preconceitos culturais sobre as abordagens particulares. Essas culturas de pesquisa com certa influência internacional – como a pesquisa (auto)biográfica de língua alemã, francesa e inglesa – que, em sua maioria, remontam a uma longa tradição de pesquisa, mantiveram seu próprio perfil.
E mesmo que as atividades de pesquisa cooperativa tenham se intensificado internacionalmente – como na pesquisa biográfica comparativa centrada no estudante, a longo prazo, entre o Reino Unido, Alemanha, Suécia, Espanha, Polônia e Irlanda, ou a pesquisa de migração centrada na biografia entre Alemanha, Itália, França e na Grécia – os perfis de pesquisa “clássicos” das três culturas de pesquisa mais influentes permanecem em vigor por algum tempo. Leia Mais
Por Escravos e Libertos / Revista Brasileira de História / 2018
Dossiês em Perspectiva
Antes de adentrar o tema escolhido para este Editorial (a organização de dossiês), não podemos deixar de chamar a atenção para o fato de a Revista Brasileira de História vir a público num momento muito tenso da história do Brasil. Após a decisão do eleitorado no segundo turno em 28 de outubro de 2018, o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro começa a definir seu Ministério e suas principais políticas para a gestão que começará em 1º de janeiro de 2019. Entre as políticas anunciadas que causam justificadamente mais controvérsia estão: 1) a vinculação do Ensino Superior ao Ministério da Ciência e Tecnologia, saindo do Ministério da Educação (MEC); 2) o apoio à aprovação do Projeto de Lei 7180 / 2014, que institui a chamada “Escola sem Partido”, ameaça à liberdade de ensino e uma forma de discriminar e, eventualmente, punir docentes por pretensos “delitos de opinião”; 3) a promessa de intervenção na autonomia universitária. Tudo isso significará, para a disciplina História, muitos desafios, e exigirá muita atenção e resistência. A Associação Nacional de História (Anpuh-Brasil) une-se a outras associações científicas no intuito de garantir a liberdade de pensamento e o crescimento da qualidade da pesquisa e do ensino de História.
A publicação de dossiês, ou seja, de conjuntos de artigos sobre uma mesma temática mais ou menos estrita, faz parte integrante dos periódicos acadêmicos e evoluiu em suas formas ao longo do tempo. Esse tipo de instrumento, mesmo se usado por títulos especializados, é de grande importância para publicações como a Revista Brasileira de História que, sumamente generalista, publica artigos sobre os mais variados temas. Os dossiês têm originalmente como função dar um estado da arte sobre o tema abordado. Mais ainda do que os próprios periódicos acadêmicos, que “fixam-se no presente”, perdendo muitas vezes sua atualidade com o tempo,1 os dossiês estão claramente vinculados ao momento em que são publicados, pretendendo dar a ver novas abordagens de temas antigos, e também temas novos, em todo caso em sua abordagem histórica. Isso, é claro, apesar de tudo o que escrevemos estar fatalmente vinculado ao seu tempo.
Pode, no entanto, acontecer de dossiês se tornarem clássicos da historiografia, como é o caso daquele organizado neste periódico por Silvia Hunold Lara sob o tema da escravidão há exatos 30 anos. Tratava-se de aproveitar o centésimo aniversário da Lei Áurea não para comemorá-lo, mas para dar a ver temas até então pouco ou nada abordados pelos historiadores, como o da criança e da família escravas, ou o da diversidade regional mas também social da escravidão no Brasil (Lara, 1988). Os historiadores então convidados a colaborar com a revista, já eram ou rapidamente se tornariam referências nos estudos sobre a condição escrava no Brasil, assim como os textos que aqui publicaram. Pareceu natural que chegando os 130 anos da abolição, a mesma especialista do tema coordenasse mais um número da RBH, não só por conta da efeméride, mas igualmente pelo fato de o tema da escravidão contemporânea e as discussões de como defini-la e combatê-la preocuparem cada vez mais historiadores e cientistas sociais.2 No entanto, diferentemente do que foi feito 30 anos atrás, não se buscou mostrar a diversidade de temas passíveis de serem abordados em torno do tema da escravidão, mas, com o foco na importância das experiências individuais para a compreensão da realidade histórica, a chamada feita por Lara para o dossiê deste ano buscou incitar a produção de textos sobre como os próprios cativos e os libertos entendiam e viam suas condições. Tendo em vista o modo como são atualmente produzidos os dossiês, os resultados foram diferentes do esperado, mas nem por isso (muito pelo contrário) insatisfatórios, como a Apresentação que se segue a este Editorial claramente mostra.
As mudanças no modo como o dossiê devia ser elaborado de 30 anos para cá levam a pensar nas justificativas dessa organização. Com efeito, em 1988 Silvia Lara convidou individualmente os possíveis autores e com eles dialogou – antes e depois da recepção dos textos – sobre o conteúdo do que seria publicado. Outro modelo de dossiê (ou de coletânea, como eram chamados) era a publicação de trabalhos apresentados em conjunto em eventos acadêmicos, como no nº 5 (1983), com publicações resultantes do encontro da diretoria da Anpuh durante a 34ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sobre o tema “Documentação e pesquisa histórica”; ou ainda o nº 11 (1985 / 1986), com coletânea sobre “Sociedade e trabalho na História”, resultante do XIII Simpósio da Anpuh. Naquela época não se mobilizavam pareceristas, cabendo ao eventual organizador do dossiê, ao Editor e ao Conselho Editorial da revista decidirem sobre a relevância dos textos submetidos e, assim, sobre sua eventual aceitação ou recusa. O que se buscava, em 1988, era não só a qualidade dos textos, mas também certo diálogo entre eles e sua coesão, naquele caso relacionada à maior amplitude possível de abordagens.
Atualmente, os organizadores convidados elaboram a chamada do dossiê, que é aberta. Mesmo se um ou outro autor pode (e é) convidado a enviar um texto, sua submissão passa, como todos os demais textos da RBH, pelo processo de avaliação às cegas por pares. Uma primeira triagem feita pelo corpo editorial e pelos organizadores deixa de lado propostas que não se adequam à proposta do dossiê. Uma vez os textos retidos avaliados e aceitos pelos avaliadores, mesmo que condicionalmente, os organizadores também fazem correções e sugestões. Esse sistema de chamada universal e de avaliação às cegas, imposto pelas instâncias avaliadoras dos periódicos, tem como objetivo obter garantias da maior diversidade institucional dos autores e da maior isenção na avaliação possíveis. Ele tira uma parte do protagonismo dos organizadores, como de modo geral do próprio Editor, mas creio que apesar disso temos conseguido intervir positivamente nos dossiês. Se o sistema em uso poderia resultar em dossiês pouco coesos ou de relevância limitada, não é esse habitualmente o caso na RBH. Que o leitor o julgue.
O próprio formato dos dossiês mudou nas últimas décadas. Era habitual, nos anos 1980, haver dossiês sem apresentação específica; os artigos eram apenas publicados em conjunto sob um título único para o volume. Em outros casos a Apresentação, a cargo do Conselho Editorial, era bastante sumária e raramente fazia mais do que descrever os artigos publicados. Ultimamente a RBH vem pedindo aos organizadores apresentações mais densas, com algum tipo de discussão historiográfica que não só situe e justifique a temática abordada pelo dossiê, mas também se sustente enquanto contribuição acadêmica. Esperamos, com isso, que os dossiês aqui publicados tenham ganhado em relevância.
Desde que a RBH assumiu o formato quadrimestral, a praxe tem sido a publicação de dois números com dossiês por ano, deixando um número exclusivamente para artigos avulsos, o que não exclui estes últimos de também serem publicados nos outros números. Desse modo, o leitor encontrará aqui dois artigos de temática diferente da do dossiê. Os textos retidos abordam ambos a realidade política dos anos 1960 no contexto de maior tensão da Guerra Fria. O primeiro, de autoria de Rodrigo Patto Sá Motta, revê, nos 50 anos de sua promulgação, e a partir de fontes inéditas, as origens do Ato Institucional 5, chamando a atenção para o seu uso como instrumento de controle de segmentos integrantes do próprio campo do regime. Jaime Yaffé, por sua vez, analisa a atuação do Partido Comunista Uruguaio levando em conta suas posições heterodoxas entre a retórica incendiária cubana e o caminho pacífico, por via democrática, ao socialismo.
Este número também traz três resenhas, duas delas com análises de obras que dialogam com a temática do dossiê: “Por escravos e libertos”.
Ao lhes desejarmos uma boa leitura, não podemos deixar de agradecer ao Conselho Editorial, à Editoria Associada Internacional, aos Assistentes Editoriais Pablo Serrano e Marcus Vinicius Correia Biaggi, assim como à equipe de edição da RBH – Armando Olivetti, Flavio Peralta e Roberta Accurso.
A RBH não teria a qualidade que tem sem o apoio do Programa de PósGraduação em História, Cultura e Práticas Sociais da Universidade do Estado da Bahia (PPGHCPS-Uneb) e do CNPq.
Notas
- Enquanto os livros, por exemplo, teriam uma temporalidade mais longa (CALDEIRA, 2018).
- Veja o evento organizado também por Silvia Hunold Lara no dia 24 de setembro deste ano sobre as “Condições de trabalho no Brasil contemporâneo: políticas públicas e memória institucional” na Unicamp (programa disponível em: https: / / www.foruns.unicamp.br / eventos / condicoes-de-trabalho-no-brasil-contemporaneo-1; acesso em: 29 out. 2018) e o livro recentemente publicado por Ângela de Castro Gomes e Regina Guimarães Neto (GOMES; GUIMARÃES NETO, 2018) sobre o trabalho forçado na Região Amazônica.
Referências
CALDEIRA, Ana Paula S. Editorial: o tempo das revistas. Varia Historia, Belo Horizonte: UFMG, n.65, 2018. http: / / dx.doi.org / 10.1590 / 0104-87752018000200001. [ Links ]
GOMES, Ângela M. de C.; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Trabalho escravo contemporâneo: tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2018. [ Links ]
LARA, Silvia Hunold. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo: Anpuh, v.8, n.16, p.7-8, 1988. [ Links ]
Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História. Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: rbh@anpuh.br http: / / orcid.org / 0000-0003-1468-5680
FEITLER, Bruno. Editorial. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.38, n.79, set / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
O arquivo e o lugar: custódia arquivística e a responsabilidade pela proteção aos arquivos | Margareth da Silva
O livro O arquivo e o lugar é resultado da tese de doutorado da professora Margareth da Silva, defendida na Universidade de São Paulo, e tem reflexões muito oportunas a partir de sua atuação como arquivista no Arquivo Nacional, e professora e pesquisadora na Universidade Federal Fluminense. A tese preenche uma lacuna com relação às discussões epistemológicas na arquivologia, em particular sobre as questões conceituais que envolvem a custódia, o arquivo e os marcos teóricos da área. Leia Mais
Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico – RIBEIRO (PH)
RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017. 211 p. Resenha de: PAULINO, Davi Luiz. Geohistória e longa duração na obra de Fernand Braudel. Projeto História, São Paulo, v.63, pp. 387-395, Set.-Dez., 2018.
Guilherme Ribeiro, docente do Departamento de Geociências da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, desenvolve pesquisas acerca da História do Pensamento Geográfico, bem como a relação entre Geografia e História.
Fruto de uma complexa pesquisa de doutoramento com estágio na França apresentada em 2008 ao Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense, agraciada com o Prêmio Capes de Tese na área de Geografia, o livro busca mostrar o papel que a geografia cumpriu na formação da concepção de história de Fernand Braudel (1902-1985).
O referido estudo perpassa a trajetória intelectual do historiador francês, estudando obras como O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, Gramática das Civilizações, Civilização Material, Economia e Capitalismo – Séculos XV-XVIII e a Identidade da França.
O autor aborda as origens epistemológicas do conceito de Geohistória demonstrando que a Geografia será importante como instrumento que o permitirá estudar as atividades humanas em transcursos diferentes de tempo. Braudel a “transforma em aliada de peso no esforço de superação do obsoleto meio acadêmico francês, além de pedra angular na apreensão da temporalidade de longa duração e em seu ousado intuito de reorganização epistemológica das Ciências Humanas”.1 Partindo de grandes nomes da ciência geográfica como Paul Vidal de la Blache, Alfred Philippson e Emmanuel de Martonne, Braudel clama por uma ciência que aborde o todo, ou seja, que não somente o meio físico-natural, mas também o homem, sendo o começo do que mais tarde seria conhecido como Geografia Humana.
Ribeiro elucida que a questão da Geohistória e determinismo em Braudel teria como objetivo esclarecer os aspectos frágeis da leitura que se fazia da geopolítica como simples estudo das ações políticas e partindo do conceito de geohistória ele encontraria uma representação ampliada da sociedade. Este posicionamento mostra a influência da escola alemã de Geografia e através dela, Braudel “valorizará a economia como um produto das relações sociais, que ao longo do tempo, constrói redes e distribui informações em variadas escalas” utilizando as categorias analíticas de “espaço (Raum), economia (Wirtschaft) e sociedade (Gesellschaft)” para construir seus estudos sobre “a economia mediterrânica no século XVI, no desenvolvimento da civilização material, economia de mercado e capitalismo na era moderna e na história da França sob a égide das estruturas de longa duração”2.
Em seguida, Ribeiro centraliza sua análise em O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na época de Filipe II, obra resultante da tese de doutorado de Braudel apresentada a Sorbonne em 1947 e considerada um dos maiores livros de História do século XX. Obra em que a geohistória se faz presente do começo ao fim, o autor nos mostra como o historiador instrumentaliza-se da geografia para “desacelerar” a história e com isso desestrutura o passado, explicitando a dialética das durações com seus variados espaços revelando múltiplas temporalidades, partindo do tempo breve ao mais longo, o tempo das civilizações.
Segundo o autor, Braudel, ancorado nas estruturas de longa duração, considera que a história possui uma temporalidade mais duradoura, resistente a mudanças e que precisa ser compreendida não na brevidade dos acontecimentos, mas sim nas estruturas que sustenta o tempo longo.
Embora isto não queira dizer que há um menosprezo ao acontecimento por parte de Braudel, ele apenas defende que mesmo para entender as dinâmicas dos eventos é necessária a compreensão da longa duração.
Em O Mediterrâneo, é possível encontrar a centralidade do meio geográfico, isto porque, segundo Ribeiro, a história humana não se constrói fora do meio, mas sim a partir dele.
Com isso, no meio “estão contidas tanto as determinações quanto as possibilidades: é impossível parar a chuva ou conter o vento, mas é possível administrar as intempéries construindo diques ou drenando o solo, por exemplo”3, percebemos que sua análise prova que a questão geográfica está intrinsecamente atrelada as atividades humanas, portanto, há uma espacialização da ciência histórica.
Braudel sofreu críticas por sua posição determinista sob as atividades humanas, mas como podemos constatar no estudo de Ribeiro, há a defesa de que o meio age nas práticas dos homens, no entanto admite-se, que a ação do homem no meio seja de maior peso. Segundo o autor, o “determinismo geográfico braudeliano” não é outra coisa senão a evidência que os aspectos naturais não estão separados e isolados das atividades humanas. Eles fazem parte de um todo onde o clima, o relevo, a hidrografia, o sítio e a posição jogam papel crucial na história das sociedades. Assim sendo, em certas situações e períodos, o meio determina esta ou aquela decisão, esta ou aquela resposta social de acordo com as possibilidades técnicas e culturais. Segundo, Braudel, alimentação, agricultura, produção de mercadorias, vestimentas, crenças, economia, relações internacionais, enfim, o conjunto da vida social é indissociável do meio.4 Essa explicação de Ribeiro é importantíssima para o debate acerca do determinismo geográfico, principalmente porque o biógrafo de Braudel, Pierre Daix, alegara que a ausência do capítulo intitulado Geohistória e determinismo teria sido suprimido da segunda edição de O Mediterrâneo porque Braudel teria abandonado esse posicionamento, tese refutada por nosso autor, pois segundo ele, abandonar a geohistória seria a renúncia da própria concepção braudeliana de história.
Ribeiro não crê em abandono do conceito, mas defende a tese de que geohistória fora substituída pelo conceito de espaço, lembrando que esse conceito está na origem da formação da epistemologia braudeliana.
Com essa problemática, o autor trabalhará sobre as críticas historiográficas acerca do pensamento braudeliano, as quais alegam que a história de Braudel é imóvel, partindo da primeira obra do historiador, Ribeiro busca demonstrar que a sua concepção histórica não é imóvel, pois permite a mudança.
Em razão de não só trabalhar a partir do tempo longo, mas sim dialeticamente com o tempo conjuntural e com o tempo tradicional, sendo assim, há em Braudel a presença de “um tempo geográfico, de um tempo social e de um tempo individual”.5 Ribeiro explicita a dimensão teórica da obra de Fernand Braudel. Entre seus elementos constitutivos estão…
a longa duração como uma possibilidade de releitura do tempo cronológico; a geohistória representando a articulação do espaço com o tempo e a preocupação em comparar épocas e escalas diferentes; a apreensão do passado não como algo pronto e acabado, mas como questão a ser problematizada; conexões entre o passado e o presente; busca de explicações pluricausais dos fenômenos.6 Criticada por ser empirista e descritiva, o autor mostra que essa crítica demonstra a compreensão distorcida da totalidade da obra braudeliana que realiza uma notável coerência entre a longa duração, geohistória e a história-problema. Como mostra Ribeiro, por mais que a obra seja descritiva, ela está amplamente ancorada em um embasamento epistemológico que a sustenta: as estruturas de longa duração. Braudel, com sua concepção de história total, abarca as escalas local, regional, nacional e, principalmente, mundial, visto que as atividades dos homens se encontram misturadas em ritmos temporais diferentes.
Ribeiro mostra que a história para Braudel não é a ciência do passado, muito menos a descrição documental, mas sim a explicação das temporalidades dos fenômenos e suas relações entre si, buscando as permanências e o predomínio das profundidades.
Partindo da busca por permanências e profundidades, a obra Gramática das civilizações ocupa um ponto importante na reflexão histórica, pois Braudel, segundo o autor, compreende por gramática o tempo ou as temporalidades, pois para o historiador, as civilizações possuem ritmos e estações diferentes, embora estejam em contato entre si. Partindo desse pressuposto, a estruturas da história são mutáveis, mas seus movimentos são perceptíveis através da longa duração.
A proposta de Ribeiro é demonstrar que na obra braudeliana há a percepção dos problemas sociais, como a desigualdade, por exemplo, e, que sua eliminação se dará a partir de uma abordagem estrutural. Braudel também considera importante, os eventos como a Revolução Russa e a Revolução Cubana, isto porque a seu ver, causaram forte impacto nas civilizações. O conceito de civilização assume importância no pensamento de Braudel, pois é por meio dele que “a geohistória alcança todas as esferas da vida social: seja a política, a economia, a cultura ou as mentalidades, nenhuma delas escapa a um determinado contexto espaço-temporal”.7 Sua análise sobre a obra Civilização material, Economia e Capitalismo, mostra que o termo material, não se trata somente de trocas econômicas ou a dinâmica financeira, mas sim a concretude da civilização em relação ao que a estabelece na condição de poderosos grupos culturais, como é possível perceber nas civilizações mediterrânea e atlântica.
Em As estruturas do Cotidiano, Ribeiro defende que as relações sociedade-meio estão na base formativa da modernidade, com uma profunda reorganização espacial, isto com base no próprio pensamento braudeliano, pois argumenta Braudel que os agrupamentos civilizacionais possuem características geográficas distintas. Nessa obra é possível compreender a amplitude da concepção braudeliana de história, visto que “a geohistória é além do estudo ampliado das relações homem-meio, uma ferramenta de análise das múltiplas escalaridades urdidas pelas práticas econômicas modernas”.8 Nos próximos volumes O jogo das Trocas e O tempo do Mundo faz-se presente o conceito de origem alemã economia-mundo (Weltwirtschaft) que diferentemente de economia mundial, representa um determinado “espaço” com profunda coerência econômica que se basta por si mesmo. Ribeiro exprime este conceito da seguinte forma: Ao empreender o conceito de economia-mundo do ponto de vista geográfico, Braudel não o concebe apenas como delimitação cartográfica dos fenômenos econômicos, mas segundo um enfoque “vertiginoso” e “ativo” capaz de perscrutar como o jogo econômico cria e se reproduz a partir de determinada lógica espacial.9 Braudel fora tachado de “conservador” por parte de alguns historiadores, dentre eles, o brasileiro José Carlos Reis, mas como nos mostra o autor, por mais que a construção da concepção de história braudeliana passe por fora da questão das lutas de classe, ele não deixa de observar as tensões nas organizações sociais.
Aproximando-se de Lacoste, Braudel analisa o poder de quem controla e domina o espaço.
É possível perceber que na totalidade da obra braudeliana, A Identidade da França, segundo Ribeiro, seria o livro que possuí mais elementos que podem constituir um perfil político de Braudel. Ele retoma as origens da França buscando traçar a Identidade, ou seja, o típico de uma nação, embora para Braudel, é possível identificar aspectos de diversidade regional e cultural.
É interessante ressaltar que a obra de Ribeiro nos permite abordar que a tríade economia, espaço e sociedade perpassa toda a produção braudeliana, pois partindo da instrumentalização da geografia em sua concepção histórica, ela o permite adentrar em um passado longínquo, o tempo do mundo. Em A Identidade da França ele continua com seu tripé metodológico, pois é perceptível que…
seus três volumes revelam o movimento dos vilarejos aos burgos e às cidades, o sítio e a situação, as migrações, o papel das cidades na formação do mercado nacional e suas associações com as outras escalas; a urbanização e as estradas da Gália superando suas florestas; as villa galo-romana e suas muralhas protetoras e as cidades como loci privilegiados para o desenvolvimento da economia de mercado e, sobretudo, do capitalismo, a atividade econômica superior.10 Com esse panorama apresentado da obra braudeliana, acreditamos que o trabalho de Guilherme Ribeiro contribui sobremaneira para a reflexão acerca do pensamento de Fernand Braudel, principalmente pela atualização do debate e pela crítica aos críticos do historiador francês, como François Dosse, Yves Lacoste e José Carlos Reis, entre outros. A leitura do livro se faz necessário para o aprofundamento da discussão e abertura de novos caminhos para o estudo da obra e pensamento de Braudel.
Referências
RIBEIRO, Guilherme. Fernand Braudel, Geohistória e Longa Duração: críticas e virtudes de um projeto historiográfico. São Paulo: Annablume, 2017.
Notas
1 RIBEIRO, 2017, p. 30.
2 Ibid., p. 43-44.
3 Ibid., p. 55.
4 Ibid., p. 67.
5 Ibid., p. 79.
6 Ibid., p. 84.
7 Ibid., pp. 110-111.
8 Ibid., p. 127.
9 Ibid., p. 135.
10 Ibid., p. 178.
Davi Luiz Paulino – Graduando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). eto historiográfico. 1ª ed. São Paulo: Annablume, 2017.
L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa – TABUCCHI (A-EN)
TABUCCHI, Antonio. L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa. Traduzione di BETTINI, Clelia; PARLATO,Valentina, Palermo: Editora da Sellerio, 2015. Resenha de GUERINI, Andrea. A poética pessoana segundo Antonio Tabucchi. Alea, Rio de Janeiro, v.20 n.3, sept./dec., 2018.
L’automobile, la nostalgia e l’infinito. Su Fernando Pessoa é um livro que agrupa quatro ensaios sobre o autor português, preparados por Antonio Tabucchi como aulas para serem ministradas em francês, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em 1994, acrescido de um Prólogo, e uma parte final intitulada “Pessoa e os seus heterônimos”, que é uma breve apresentação dos heterônimos para indicar ao leitor “quem é quem” no interior da poética do poeta português (TABUCCHI, 2015, p. 103).
Conforme descrito por Tabucchi, essas aulas foram preparadas levando em conta e privilegiando, de um lado, aspectos da poética de Fernando Pessoa e a sua adesão às vanguardas do início do século XX (futurismo, cubismo, simultaneísmo de Delaunay) e de outro, a relação com o “Tempo, la Nostalgia, la ‘riappropriazione’ del Passato attraverso la scrittura (Proust, Bergson)” (TABUCCHI, 2015, p. 10).
Vale lembrar que Fernando Pessoa foi o autor português com o qual Tabucchi estabeleceu uma relação “che va al di là della semplice fedeltà del lettore”, um tipo de “relação ativa”, que é “proprio dei traduttori e dei critici” (TABUCCHI, 2015, p. 9). Portanto, esse intenso e estreito vínculo se deu pelas traduções que Tabucchi realizou para o italiano, sozinho ou em parceria com Maria José de Lancastre, das obras de Pessoa e pelos diversos ensaios que escreveu ao longo da sua vida sobre a personalidade e a poética do autor português.
Logo, não causa estranheza que este livro resgate essas aulas em um único volume, conservando o tom oral (como desejado pelo próprio autor) e a leveza de enfoque sobre temas profundos e complexos da poética pessoana.
Na primeira aula-ensaio, “La nostalgia del possibile e la finzione della verità su Pessoa”, Tabucchi trata da universalidade de Pessoa, que segundo ele reside apenas “nei contenuti della sua opera, nell’insieme delle categorie che costellano i suoi testi […], ma anche nel modo scelto per trasmettere questo messaggio, nella forma in cui è organizzato: in ciò che lui stesso ha definito eteronimia” (TABUCCHI, 2015, p. 19). A partir disso, o autor italiano busca elementos para explicar o que viria a ser a heteronímia pessoana. Para tanto, vale-se de um “grande fantasma”, o “Outro”, responsável por alimentar as obsessões dos maiores escritores europeus (TABUCCHI, 2015, p. 19), mas também da própria voz de Fernando Pessoa, a partir de “confissões” que aparecem, por exemplo, na célebre carta de 13 de janeiro de 1935, em resposta à entrevista do crítico Adolfo Casais Monteiro, nos seus diários, ou ainda nos seus poemas, como o célebre “Autopsicografia”.
O “Outro”, ou os heterônimos, não são, como destaca Tabucchi, “semplice alter-ego; […] sono altri-da-sé, personalità indipendenti e autonome che vivono al di fuori del loro autore” (TABUCCHI, 2015, p. 25). E aqui reside a potência da invenção pessoana, pois como mostra Tabucchi, Pessoa cria personagens, mas não são personagens normais que devem viver uma história, mas personagens que devem fingir aquela história: “sono creature creatrici, sono poeti: sono creature di finzione che a loro volta generano la finzione della letteratura” (TABUCCHI, 2015, p. 29). Ainda nessa aula-ensaio, Tabucchi analisa a presença da saudade nos três maiores heterônimos, pois, conforme destaca o autor, “Se la nostalgia del presente è una caratteristica di tutti gli eteronimi, ognuno di loro vive, naturalmente, anche la sua nostalgia specifica e individuale” (TABUCCHI, 2015, p. 31).
Na segunda aula-ensaio, “Gli oggetti di Álvaro de Campos”, Tabucchi apresenta uma lista de objetos caros a Fernando Pessoa para colocar em discussão o metafísico Álvaro de Campos e a ‘fisicidade’ banal dos simples objetos. Inicia a discussão com o monóculo, termina com a cadeira, passando pelo automóvel, o cigarro, a pasta, a Enciclopédia Britânica, os mapas, o espelho e outros. Todos são elementos/símbolos que serviram para caracterizar e vestir os personagens da “commedia umana” criados pelo escritor português (TABUCCHI, 2015, p. 46). São objetos de natureza estética, revestidos de uma forte densidade semântica, pois altamente significativos no contexto da escrita de Pessoa.
No terceiro ensaio-aula, “L’Infinito disforico di Bernardo Soares”, Tabucchi aborda o semi-heterônimo de Fernando Pessoa, autor do Livro do desassossego. Tabucchi elucida o fato de Bernardo Soares se atormentar com coisas aparentemente ‘insignificantes’, mas que são profundas. Tabucchi lembra que, ao longo desse livro de Pessoa, Bernardo Soares se pergunta: “chi sono io?” Para responder a essa pergunta, Bernardo Soares escreve um diário e, como destaca Tabucchi, “Un diario è sempre uno specchio, e quindi ogni giorno Bernardo Soares si guarda nello specchio del suo diario” (TABUCCHI, 2015, p. 69), em grande parte escrito à noite, nascido sobretudo da insônia (TABUCCHI, 2015, p. 72) de seu autor, o que o leva à disforia, porque para Tabucchi o Livro do desassossego “racconta le sue (di Bernardo Soares) depressioni quotidiane e notturne” (TABUCCHI, 2015, p. 72). Nessa aula-ensaio, Tabucchi procura, sem ser exaustivo, explicar a razão de Fernando Pessoa ser um disfórico, e a palavra-chave para compreender esse estado de ânimo é saudade, que se associa ao desassossego (TABUCCHI, 2015, p. 75).
No quarto ensaio-aula, “Pessoa, i simbolisti e Leopardi”, Tabucchi confronta Pessoa com Leopardi, não apenas para “stabilire parallelismi […], ma soprattutto per investigare la natura del dialogo che un lettore onnivoro come Pessoa ha potuto intrattenere con Leopardi” (TABUCCHI, 2015, p. 78). Para falar dessa relação, Tabucchi percorre a fortuna crítica de Leopardi em Portugal entre os séculos XIX e XX, mas também na Espanha. Ele sugere que Fernando Pessoa chegou a Leopardi pelo viés negativo de Antero de Quental e António Feijó; pelo viés simbolista-decadente, cujos autores foram seduzidos pelo binômio leopardiano amor-morte; e também pelo viés trágico do escritor espanhol Miguel de Unamuno. Além disso, Tabucchi destaca que os três temas que mais interessaram Pessoa a propósito de Leopardi foram: “1) la riflessione sul mondo fisico, o il conflitto tra natura e ragione; 2) il senso dell’infinito; 3) il concetto di tedio” (TABUCCHI, 2015, p. 82). A partir dessa constatação, Tabucchi esmiúça alguns aspectos da obra de Pessoa que se ligam aos três elementos da poética leopardiana citados acima e que culminam no “Canto a Leopardi”, poesia que Fernando Pessoa parece ter escrito em “homenagem” a Leopardi, na qual, de acordo com Tabucchi, é possível extrair uma espécie de epistolografia virtual, que teria agradado muito a Borges, já que Pessoa, nesse poema, “si rivolge al suo corrispondente in maniera interrogativa […] come qualcuno che aspetta una risposta” (TABUCCHI, 2015, p. 100). E Borges poderia ter se encarregado, segundo Tabucchi, de dar as respostas que Pessoa esperava […] Borges e, quem sabe, algum outro escritor.
Ficaremos à espera dessa resposta, assim como o leitor de língua portuguesa ficará à espera de poder ler essas aulas-ensaios em tradução, já que Tabucchi, de maneira simples, mas ao mesmo tempo sofisticada, descreve aspectos da poética de Pessoa com cumplicidade e serenidade, características próprias de quem conseguiu manter uma “relação ativa” e profunda com um dos maiores escritores europeus do século XX.
Andrea Guerini – Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Pós-doutora pela Università degli Studi di Padova (Itália) e Universidade de Coimbra (Portugal). Atualmente, é professora Titular do Departamento de Língua e Literatura Estrangeiras e da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e editora-chefe das revistas Cadernos de Tradução, Appunti Leopardiani e da ANPOLL. Atua na área de Letras, com ênfase nos Estudos da Tradução, Estudos Literários e Estudos Italianos. É bolsista de Produtividade em Pesquisa, do CNPq. E-mail: andreia.guerini@gmail.com.
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Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX – ARALDI (CN)
ARALDI, Clademir Luís. Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX. Pelotas: Dissertatio Filosofia, 2017. Resenha de: MEIRELES, Tulipa Martins. Dos românticos a Nietzsche. Oito estudos sobre a Filosofia do século XIX. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.3 set./dez. 2018.
Compreendemos que o período moderno e contemporâneo da história da filosofia ocidental é permeado pelo sentimento de crise e crítica vivenciado pelo ser humano europeu no final do século XVIII e ao longo do século XIX. Nesse contexto, o indivíduo passa a perceber a si mesmo a partir do estabelecimento das novas estruturas do mundo moderno que afetam sua maneira de viver. Após o triunfo científico e a derrocada dos ideais religiosos e humanistas próprios de uma sociedade dominada pela secularização e industrialização das massas, a constituição do sentido da vida e das formas de existir encontram na criação artística, na concepção de Subjetividade, própria do Gênio, e na noção de Natureza criadora uma forma de unir o Espírito com a Natureza, a Ciência com a Arte. Essa atitude, como manifestação do sentimento e do conflito entre a interioridade inquieta e a realidade racionalizada, tanto quanto os esforços por preencher o “vazio moderno” a partir de ideais laicizados como os de progresso, razão e ciência, parece ter ocupado grande parte do pensamento dos artistas e filósofos da época, assumindo sua forma mais acabada e radical no pensamento tardio de Nietzsche1.
Em Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do Século XIX encontramos uma seleção de estudos que oferecem um desenvolvimento para essa temática. A obra foi publicada em 2017 e constitui-se do material produzido em 2015 para a disciplina História da Filosofia Moderna e Contemporânea do curso de Licenciatura em Filosofia a Distância da Universidade Federal de Pelotas (CAPES – UAB). Ao selecionar os oito estudos que compõem essa obra e ao discutir com pensadores como Karl Löwith e Eric Hobsbawn, o autor propõe uma investigação sobre as “rupturas e transformações que se deram no âmbito da Filosofia Moderna e Contemporânea”. Essas transformações são tentativas de responder a questão: “Como a Filosofia reage ao triunfo das ciências naturais e da industrialização no século XIX?” (p. 2). Conforme expõe, o século XIX sentiu o impacto de dois importantes acontecimentos: a dupla revolução, francesa e industrial e o progresso tecnocientífico do mundo. Sua hipótese é que a dupla revolução no mundo ocidental e a consequente transformação no modo de viver das pessoas, gerou um desconforto por parte do indivíduo que sentiu o vazio deixado pela crise dos antigos valores que resultou em certo sentimento de perda do sentido da própria existência. A essa crise, a Filosofia encontrou nas noções de arte, natureza e subjetividade uma forma de conceber, pela via da arte, um caminho fecundo na direção de uma nova concepção de vida.
Nesse contexto, o Romantismo apresenta-se como uma das primeiras reações à secularização e à racionalização, propondo a criação artística e a Filosofia da arte como crítica às estruturas modernas, a partir da qual era possível ressignificar o mundo. O ímpeto revolucionário da arte e da criação artística perpassa os oito estudos propostos pelo autor, que encontra traços da atitude romântica de Schelling a Hegel, passando pelo Idealismo de Fichte e de Marx a Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard e o materialismo de Feuerbach. Nietzsche é apresentado como o filósofo que sustenta a crítica mais radical da modernidade. Ao anunciar a morte do Deus cristão como advento fundamental e a radicalização do niilismo moral consequente, o filósofo sustentaria a necessidade de instaurar um projeto de “transvaloração dos valores”, a partir do qual a criação de valores afirmativos da vida seriam possíveis.
O livro integra oito Capítulos e é precedido por uma Apresentação, na qual o autor expõe o tema geral, as principais problemáticas que serão tratadas e o desenvolvimento dessas questões por parte dos filósofos. A proposta dos românticos a Nietzsche torna visível tanto a crise da filosofia metafísica e moral como os novos caminhos que se abrem para a filosofia nessa época de crise e crítica da modernidade. Nelas são valorizadas as especulações românticas, assim como o reino da arte, no seio de uma época secularizada e dominada pela ciência natural. Araldi apresenta a riqueza do pensamento filosófico do século XIX, quando a modernidade passa a pensar a autossuperação de si mesma.
O capítulo 1, intitulado Os românticos e o idealismo alemão, é dividido em dois tópicos: Gênio, natureza e sentimento e Schelling e a filosofia da arte romântica. O autor apresenta o Romantismo como um movimento cultural, artístico e filosófico que pretendia através arte, do gênio artístico e criador, revolucionar todas as estruturas do mundo moderno. O Romantismo é caracterizado pelas noções de Subjetividade, próprias do gênio criador, de arte e de Natureza que se apresentavam como atitude, maneira de viver e movimento cultural e filosófico que tinham como objetivo preencher o “vazio da modernidade” a partir da união entre Espírito e Natureza. Pela arte e pela obra de arte os românticos manifestavam o caos e o desconforto que traziam dentro de si. Mesmo não sendo um movimento homogêneo, os românticos tinham em comum a busca pela “fuga da modernidade” que se dava no âmbito do refúgio em um passado remoto ou na projeção de um futuro utópico.
No contexto da “dupla revolução”, românticos como Hölderlin, Schlegel, Schelling e Schopenhauer consideravam que a Filosofia e a vida filosófica encontravam-se ameaçadas tanto pela política, como pela economia e pela ciência. Conforme Araldi, “A modernidade é marcada por abalos das estruturas religiosas, políticas e culturais tradicionais, assim como pelo pressentimento de novas formas de vida” (p. 9). Segundo ele, os românticos tinham consciência de que estavam vivendo em um período de transição para uma “nova era”.
Schelling é o considerado o principal filósofo do Romantismo, por ter construído uma Filosofia da Natureza que é também uma Filosofia da arte. Seu pensamento foi uma tentativa de unir a filosofia de dois pensadores importantes para o Romantismo: Fichte, filósofo da Subjetividade, que influenciou diretamente os românticos por ter valorizado o Espírito (Eu Absoluto) em sua Filosofia Idealista, e Goethe, através de sua concepção de Natureza criadora. Para Schelling, a Natureza possui um valor tão elevado quanto o Espírito, sendo também ela incondicionada, dinâmica e viva. O princípio originário em Schelling, como união entre Natureza e Espírito, não é, contudo, inteiramente racional e consciente, pois o Espírito não é somente razão, mas sobretudo vontade originária. Ainda que diferente de Schopenhauer, para quem a vontade é a própria origem consciente do mundo, a vontade para Schelling anseia pela consciência. A intuição estética, própria do gênio artístico, é considerada a via privilegiada para alcançar o princípio originário, pois a criação artística é o meio de tornar concreta a manifestação do Espírito. Schelling é nesse sentido considerado o pensador que traz os traços mais marcantes do Romantismo em sua Filosofia da arte, que é desenvolvida principalmente na obra Ideias para uma filosofia da natureza (1797).
O capítulo 2, intitulado De Fichte a Hegel: idealismo subjetivo e dialética especulativa, é composto por dois tópicos: Fichte e o idealismo da subjetividade e Dialética especulativa de Hegel. Segundo o autor, Fichte foi o filósofo que pretendeu unificar os antagonismos herdados da filosofia kantiana, tentando superar o dualismo entre o mundo da necessidade natural e o mundo do Espírito, da liberdade. Fichte fez a opção pela supressão de um dos termos e sustentou que o Espírito e sua interioridade eram o que havia de mais efetivo. Em sua obra Fundamento de toda Teoria da Ciência (1794) ao colocar o “Eu puro” no centro da filosofia teórica e prática, ele construiu um Idealismo da Subjetividade, que influenciou tanto o Romantismo como Hegel. Hegel, por sua vez, teria radicalizado a teoria da Subjetividade a partir da construção de uma “dialética especulativa”, na qual elaborou uma Metafísica da Subjetividade Absoluta, tendo sido o ponto culminante do Idealismo alemão.
Assim como os românticos, Hegel considerou a modernidade o momento de transição para uma época radicalmente nova, sendo o primeiro a desenvolver um conceito de modernidade propriamente filosófico. Em Fenomenologia do espírito (1807) o filósofo concebeu a filosofia como um processo histórico, sem, contudo, abdicar de pressupostos racionais e dialéticos. Assim, se Fichte está interessado pela história atemporal do Eu e Schelling pela história do mundo, da arte e dos mitos, Hegel estaria interessado pela “vida do Espírito” que ele considera um procedimento histórico no qual o Absoluto se manifestaria de maneira contínua, progressiva e racional. Sua intenção seria construir uma Filosofia da História, mostrando que o Espírito é história e que a História Universal resulta do Absoluto. No entanto, na visão do autor, Hegel não conseguiu unir satisfatoriamente os movimentos fenomenológicos com os históricos, nem sua Filosofia da História com a Filosofia do Espírito, pois ao valorizar a vida universal do conceito, Hegel teria desvalorizado as transitoriedades históricas. Seu método “dialético especulativo”, como o esforço sistemático para elaborar a primazia do Espírito diante das contradições e limitações do mundo histórico e real expôs, contudo, a miséria da filosofia idealista, e nesse momento a história entrou no período da crítica da esquerda hegeliana.
O capítulo 3, intitulado Feuerbach e a esquerda hegeliana é também apresentado em dois tópicos: Feuerbach, Hegel e a esquerda hegeliana e A crítica da religião e a antropologia. Segundo Araldi, a esquerda hegeliana considera-se a herdeira legítima da filosofia de Hegel e Feuerbach (1804-1872) é o filósofo que rompe com a “Direita hegeliana” escrevendo em 1830 a obra Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, em que se afasta das tentativas de justificar o Estado e a Religião pela razão. Em 1839 escreve a obra Crítica da filosofia hegeliana, na qual compartilha com outros autores da esquerda hegeliana a proposta de “despotencializar a filosofia”. No entanto, Feuerbach é um filósofo recolhido demais para propor a transformação da filosofia em práxis. Ainda assim, foi um importante pensador do materialismo do século XIX, tendo construído uma filosofia como tentativa de reduzir a metafísica e a teologia à antropologia. Com essa redução o filósofo pretendia sustentar a verdadeira essência do cristianismo, que tinha como foco o indivíduo. Sua obra A essência do cristianismo, escrita em 1841, teria sido muito relevante, segundo Engels, por pelo menos dois aspectos: por seu materialismo, a partir de sua concepção de natureza; e pela crítica à religião, que teria influenciado Marx. Segundo Araldi, a antropologia de Feuerbach consiste na compreensão de que todos os resultados da religião podem ser reduzidos à essência humana, definida como Razão, Vontade e Coração.
O capítulo 4, intitulado A dialética e a práxis histórica em Marx é apresentado em três momentos: A crítica a Hegel: a miséria da filosofia, A dialética como práxis histórica e Fim da Filosofia, Fim da História? Do círculo dos jovens hegelianos de esquerda, Marx foi o pensador que mais se destacou ao propor a superação da Filosofia a partir de uma crítica da sociedade inseparável da práxis revolucionária. Segundo o autor, a crítica de Marx a Hegel se dá pelo caráter abstrato atribuído ao homem. Hegel concebe a essência do homem como autoconsciência, pensamento puro e nesse sentido, a alienação para ele, é alienação da autoconsciência. Diferentemente, para Marx, a autoconsciência é apenas um aspecto da natureza humana e seu interesse é investigar a “alienação efetiva”. Desse ponto de vista, a dialética para ele consistiria no esforço em recuperar as forças essenciais do homem, que foram alienadas, e nasceram para a objetivação, concebendo o homem como ser objetivo e natural. Com relação a sua práxis histórica, o jovem hegeliano propôs uma Filosofia como “crítica interventora”, na qual concebeu a possibilidade de transformar a práxis histórica, política e social a partir da tomada de consciência do sujeito humano, em meio às tensões da sociedade. Para ele, esse caminho da sociedade culminaria no “comunismo”. O que move o processo histórico, em sua concepção, são as próprias capacidades dos seres humanos: a produção, o trabalho e a práxis social.
O capítulo 5, intitulado Schopenhauer, o pessimismo e o valor da vida, é exposto a partir de três tópicos: O pessimismo na juventude de Schopenhauer, O Pessimismo e a sabedoria dos Antigos e A vontade de viver, o ascetismo e o Nada. Nesse capítulo o autor sustenta que o tema do pessimismo esteve presente no pensamento de Schopenhauer desde sua juventude. Ainda que não tenha sido uma invenção sua, pois o pessimismo já estava presente na Antiguidade, tanto na filosofia como nas religiões, o pensamento de Schopenhauer é considerado ‘a forma mais acabada de pessimismo’. O filósofo pretendeu construir uma metafísica maior, ‘verdadeira’, que é também uma arte da vida, assente na ascética, sendo esta a proposta de uma “arte de viver pessimista” e afirmativa.
Em O mundo como vontade e representação Schopenhauer desenvolve sua “Verdadeira metafísica” que considera a vontade como o que há de mais essencial e originário, ela é a “coisa em si”. Para ele, o mundo dos fenômenos possui em relação ao mundo da representação uma preocupação prática, ética e ascética, que torna difícil justificar uma separação entre o mundo e a vontade. Enquanto “coisa em si”, a vontade é a essência do próprio fenômeno, mas ao mesmo tempo em que é independente, ela penetra no mundo para poder se manifestar. Para ele a vontade, ao se manifestar, abre a possibilidade para a “autorredenção”. A proposta do filósofo é conceber uma vontade que seja capaz de alterar o próprio querer e assim negar a vontade de viver.
Para ele, a vida é um constante necessitar e o homem é a manifestação concreta do querer que busca incessantemente saciar suas necessidades e logo após é conduzido ao tédio e à dor. A vontade de querer viver é nesse sentido negativa e consiste na passagem para o “nada”. Sua perspectiva sobre a vida ocorre, portanto, a partir da recusa no núcleo da vida e do vivente, no sentido de elevar-se acima do querer. Essa perspectiva é “relativa e fugaz”, proveniente de um indivíduo que a partir de si, se volta contra os instintos de dentro e de fora de si. Nesse movimento ele pode retornar a si transformado, mas nunca abandona completamente seu ser. A forma mais eficiente de arrancar-se dessa existência, para Schopenhauer, está no âmbito da ascese, mas também da arte e da ética. Assim, em meio às esperanças revolucionárias do século XIX, Schopenhauer quer livrar-se das paixões da vida e das ilusões modernas a partir de uma “arte pessimista de ser feliz”. Segundo o autor, o pessimista teria sido um dos primeiros a criticar o pensamento idealista de Hegel, por não considerar a efetividade do mundo, os sofrimentos do mundo, que ele compreendia como vontade e representação.
O capítulo 6, de título Kierkegaard: o indivíduo, o desespero e a fé cristã é constituído também por três seções: Kierkegaard e seu tempo, Da estética para a ética: por que Don Juan e Abraão se desesperam? E A doença para a morte. Segundo o autor, o filósofo dinamarquês buscou a superação da filosofia na religião, na fé e no desespero, a partir da estética e da ética. Para ele, o indivíduo decidido a si mesmo só poderia superar o desespero da existência no confronto com Deus. No contexto da existência transitória e angustiante da vida moderna, Kierkegaard sustentou que o indivíduo experimenta possibilidades de liberdade que o levam ao desespero. A angústia está na base da subjetividade própria do ser humano, tanto no estágio estético em que o indivíduo se depara com toda a transitoriedade da vida, como no estágio ético, em que se defronta com seu “eu mais próprio”, não podendo se furtar de assumir a tarefa de sua existência. O desespero, enquanto aspecto abstrato, pode ser considerado em Kierkegaard uma vantagem do ser humano em relação aos outros animais, mas pode também ser visto, como uma das “piores misérias”. Para ele é somente pela fé cristã que o homem consegue elevar-se acima do desespero, consistindo no ápice do desenvolvimento espiritual do ser humano. Contudo, segundo Araldi, o pensamento de Kierkegaard apresenta um paradoxo filosoficamente desafiador, a partir da concepção de um indivíduo único, como um Si-mesmo, que se eleva diante de Deus.
O capítulo 7, intitulado O positivismo e as ciências no século XIX, apresenta a importância filosófica do positivismo do século XIX com relação as ciências naturais que se consolidavam em todas as esferas da vida humana, em duas seções: Auguste Comte: a física social e a lei dos três estados e Spencer e o positivismo evolucionista. O positivismo de Comte é considerado a expressão do triunfo das ciências naturais no século XIX e também signo de uma nova mentalidade cientificista que tinha pretensão de torna-se a “nova religião”. A partir de sua “física social”, Comte pretendia compatibilizar a visão humanista com os progressos científicos, mas acabou em uma visão dogmática. Spencer por seu lado, pretendia compatibilizar as aspirações humanas e morais com o pensamento científico a partir de uma ciência moral e social, pela fisiologia. Nesse capítulo vemos os esforços da filosofia para preencher o vácuo da modernidade através da compatibilização com o progresso científico. Será, contudo, com Nietzsche que essas ideias encontrarão uma radicalização mais acentuada e à filosofia ficará a tarefa de “criar novos valores”, como tentativa de unir a ciência com a arte.
O capítulo 8, intitulado Nietzsche: a crítica da moral e a filosofia do futuro, é constituído por cinco tópicos: As três transmutações do Espírito, A crítica da moral em Humano, demasiado humano, A crítica da modernidade em Além do bem e do mal, A genealogia da moral e A criação de novos valores e a filosofia do futuro. Nesse capítulo, o autor apresenta os aspectos críticos e criativos do pensamento de Nietzsche, que busca ir além da modernidade ocidental, não só na moral, mas na metafísica e na religião. A partir da ênfase na tarefa afirmativa deixada à filosofia do futuro, como tentativa de compatibilizar a ciência com a “ética-estética”, encontramos nesse capítulo um dos projetos mais ambiciosos do século XIX para superar a crise dos valores.
A partir da exposição sobre Das três transmutações, discurso presente em Assim falou Zaratustra, o autor apresenta a tentativa ali presente de “abarcar todo o movimento do espírito humano, da vida do próprio Nietzsche e da história da filosofia ocidental” (p. 117). Segundo Araldi, estaria na base do pensamento de Nietzsche a ideia de uma “transmutação radical” na qual o indivíduo, livre dos valores transcendentes, buscaria ultrapassar a si mesmo para criar novos valores.
Através da criação da Filosofia do Espírito Livre, presente na segunda fase do pensamento de Nietzsche, o filósofo buscaria libertar-se dos mestres Schopenhauer e Wagner, que até então marcavam seu pensamento, buscando refúgio na ciência, no filosofar histórico, no positivismo e na psicologia moral de Paul Rée. A proposta de uma ‘história efetiva da moral’ teria sido realizada nas últimas décadas do século XIX, momento no qual Nietzsche compartilha com Paul Rée a derivação dos sentimentos morais a partir dos sentimentos de prazer e desprazer. Perspectiva que irá mudar na fase tardia, com o desenvolvimento da doutrina da vontade de potência que passa a ser o novo critério para a avaliação dos valores morais.
Em Além do bem e do mal, obra do período tardio do pensamento nietzschiano, a história natural da moral ganharia um novo desenvolvimento a partir do método de análise genealógico. Para Nietzsche, a vontade de potência foi o critério utilizado para criticar não só os valores morais tradicionais, mas também para estabelecer novos e construir uma tipologia da moral, que definiu dois tipos de moral: uma afirmativa, proveniente da moral dos senhores, e uma moral negativa, proveniente da moral dos escravos. O projeto de naturalizar a moral em Além do bem e do mal encontra, contudo, lacunas que Nietzsche irá tentar preencher em Genealogia da moral. Mas essa obra também não esgota o estudo sobre a história da moral e suas consequências niilistas, deixando a promessa para um estudo que estaria por vir: A vontade de potência que, no entanto, não fora concluída.
Ao distinguir o surgimento de dois tipos de moral, a moral dos senhores e a moral dos escravos, o genealogista mostra que no tipo nobre, o valor de bom, se refere ao que provém dos instintos fortes da vida. Em oposição, ruim, é tudo aquilo que é desprezível e fraco em relação ao nobre, que é forte. Para o tipo de homem da moral escrava a moral nasce a partir da forma de valorar do fraco: o bom é tudo que se opõe ao nobre, guerreiro, forte e dominador, que é considerado mau na moral escrava. Nietzsche compreende a forma de valorar do sacerdote ascético nos seguintes termos: “Ao ‘dizer-não’ para o odiado nobre, ao voltar-se para fora de sua existência malograda, o sacerdote propriamente não cria, mas inverte valores” (p. 129). A história da moral teria sido assim, dominada por essa inversão dos valores. Para ele, se a moral escrava triunfa é a partir da negação dos instintos afirmativos da vida, considerados bons na moral dos fortes. A análise genealógica, nesse sentido, apontaria a fonte moral não só da verdade e da religião, mas da metafísica e da ciência.
Conforme o autor apresenta, no período tardio das obras de Nietzsche, entre 1885-1888, o filósofo insere o caráter artístico no procedimento de criação de valores. Para Nietzsche, a moral poderia ser justificada como fenômeno estético, na medida em que os juízos e valores morais teriam origem em percepções estéticas, sem o suporte das oposições metafísicas. O projeto de reduzir a moral à estética, presente nos escritos tardios, deveria, contudo, ser questionado. Segundo o autor, esse projeto está no âmbito do indivíduo singular que se colocaria para além do período moral da humanidade. Para Nietzsche, o indivíduo soberano é aquele que, liberado da moralidade dos costumes, é igual apenas a si mesmo. O indivíduo soberano, considerado um indivíduo singular e autônomo, estaria no final do processo da história universal da moral. Ele encontrar-se-ia, portanto, no período “extramoral”, cuja condição é a naturalização do homem, que se torna possível através da investigação genealógica-histórica da moral. Para Nietzsche, a própria moralidade revelaria a imoralidade reinante tanto na natureza como na história.
Para o autor, Nietzsche seria precursor de uma “nova filosofia afirmativa”, como intenção de superar a moralidade consolidada no homem moderno. No entanto, teria se restringido a investigar criticamente a história natural da moral e lançado à filosofia do futuro a tarefa de afirmar a si mesmo pela via ético-estética – que consiste na sua tentativa de romper com a crise do mundo moderno. Segundo Araldi, é somente pela arte que a existência pode ser afirmada para Nietzsche. E para propor valores não-morais, como uma arte afirmativa de si mesmo, o homem precisa se liberar dos velhos valores herdados da tradição europeia. E nesse sentido, o projeto de naturalizar a moral, auxiliaria na tarefa deixada aos filósofos do futuro.
Ao final de sua trajetória Do Romantismo a Nietzsche, o autor deixa o questionamento: “Num mundo dominado pelas ciências, o que resta para a filosofia?” (p. 136). Esse questionamento encontra ao longo dos estudos selecionados por Clademir Araldi o seguinte desenvolvimento: a filosofia do século XIX buscou na união tanto do Espírito com a Natureza como da Arte com a ciência uma maneira de reagir ao vazio deixado na modernidade. Por meio desses estudos recentes, compreendemos que o filósofo alemão descreveu o espírito moderno a partir do niilismo moral, enquanto um processo que encontra aí sua forma mais radical. Esse sentido já estava presente em seu trabalho anterior Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche (1998), a partir da qual percebemos que a criação de novos valores como forma de conceber uma maneira de viver afirmativa torna-se necessária. Em Do romantismo a Nietzsche o autor insere tal problemática no contexto histórico da filosofia moderna e contemporânea que se apresenta como crítica mais radical a esse estado de crise já reivindicado pelos primeiros românticos.
Da subjetividade do gênio criador à tentativa de reduzir a ética à estética a partir de uma análise genealógica dos valores morais, vemos um percurso na história do pensamento ocidental que privilegia a via artística como tentativa de conceber a noção de vida, a partir de um indivíduo, que para além da moral e do progresso tecnocientífico, busca dar um sentido afirmativo à existência. Em nossa concepção, a aposta nos filósofos do futuro, enquanto criadores de novos valores, deixa, portanto, essa tarefa a ser realizada pela filosofia: a de conceber novos valores para a vida, que encontra na trajetória dos românticos a Nietzsche, como herança do ímpeto tempestuoso e ao mesmo tempo criador da modernidade, uma via significativa.
Referências
ARALDI, Clademir. Do romantismo a Nietzsche: rupturas e transformações na filosofia do século XIX. Pelotas: NEPFIL Online, 2017. [ Links ]
ARALDI, Clademir. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 5, p. 75-94, 1998. Disponível em: <Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/upload/cn_05_05%20Araldi.pdf >. Acesso em: 30/04/2018. [ Links ]
HOBSBAWM, Eric. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. [ Links ]
Notas
1 Assim, percebemos que se a ideia que dominou o século XX deixou de lado a compreensão das raízes românticas do século XIX, o historiador Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 ([1998]) apreendeu diferentemente esse significado, atribuindo grande valor a Filosofia da Natureza Romântica para o século XIX, contribuindo inestimavelmente para o pensamento filosófico contemporâneo, na mesma esteira seguida por Araldi.
Tulipa Martins Meireles – Doutoranda da Universidade Federal de Pelotas, UFPEL, Pelotas, RS, Brasil. E-mail: tulipameireles@hotmail.com
Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico – MURICY (CN)
MURICY, Katia. Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico. Coleção Pequena Biblioteca de Ensaios, Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2017. 39p. Resenha de: ZATTONI, Romano S. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.3 set./dez. 2018.
Nesse ensaio, Katia Muricy busca estabelecer uma reflexão acerca do valor filosófico de escritos de natureza autobiográfica, tomando como obra central para sua interpretação o texto nietzschiano de Ecce Homo. Trata-se do endereçamento a uma certa lacuna na pesquisa Nietzsche, no que se refere a esse texto do fim de 1888, a qual foi comumente encarada pejorativamente na recepção da obra do filósofo como um escrito de loucura.
Antes de se dedicar de forma mais direta à obra de Nietzsche, a autora engendra um pano de fundo histórico-filosófico a partir do qual é possível conceber a própria proveniência da noção de autobiografia, primeiramente como gênero literário. Trata-se de uma tarefa que se depara de início com a notável fluidez de sentido que essa espécie de texto pode demonstrar. Se tomada em seu sentido mais amplo, ou seja, como a menção de si mesmo no texto em seu nível mais ordinário, pode-se dizer que se trata de um ato que existe desde o início da escrita, contudo, sob um critério mais estreito, poderia ser compreendida como um empreendimento de autonarrativa que tem origem bem específica na Europa ocidental no século XIX, em paralelo com o que poderíamos chamar de a origem da noção contemporânea de indivíduo. Diante desse cenário, a autora toma como fio condutor para sua investigação o trabalho foucaultiano de genealogia do ato de escrita de si, sobretudo em sua relação com o fazer filosófico.1
São diversas as paradas que a autora realiza em seu traçado acerca do ato de escrita de si na história da filosofia, a começar pelas variações que a escrita de si toma nos primeiros séculos da era cristã no Ocidente, nomeadamente, os chamados hupomnêmata (anotações e memorandos para serem lidos pelo autor posteriormente) e as correspondências. Chama a atenção nesse âmbito o caráter etopoiético atribuído por Plutarco a escrita de si, no que se refere ao cuidado de si e fundação de um ethos próprio. Destaca-se também os trabalhos confessionais dos quais as Confissões de Agostinho tomam o lugar mais representativo, em uma modalidade na qual a escrita de si transfigura-se em um ato de louvor.
Na passagem para a filosofia moderna, seria possível identificar um ponto de quebra com relação ao valor filosófico da escrita de si, sobretudo no que se refere ao advento do pensamento cartesiano e as consequentes mudanças na concepção do que seria um sujeito. Com Descartes, aprofunda-se a certeza do que seria o eu da consciência, de modo que, a partir de sua existência, se fundam todas as outras certezas do espírito. Poderia-se supor que isso significaria o aumento da presença do eu no discurso filosófico, contudo, a argumentação da autora afirma justamente o contrário, pois o conceito de eu cartesiano, destilado pelo método da dúvida, estaria depurado de suas vivências que são em última instância o substrato da autobiografia. Para a autora isso se deve à retirada do corpo da cena filosófica:
Se o corpo é mera res extensa, desprovido de interesse no âmbito do pensamento, o cogito, desencarnado, é uma impossibilidade biográfica – seria o que a vida do cogito? Ficção tão improvável, da perspectiva cartesiana, quanto um relato do corpo, que só pode existir, para além do automatismo de máquina, insuflado pela consciência que detém uma incontestável autonomia, livre de qualquer condicionamento exterior. (p. 12)
Embora a autora veja no pensamento cético de Hume uma oposição ao caráter autoevidente do eu unificado, a recepção desse tema no século XIX estaria mais demarcada pela influência do pensamento de Kant. O filósofo alemão restaura a primazia do sujeito, desta vez longe da concepção de uma substância distinta, mas sim na fundação de um sujeito cognoscente, condição para a objetividade do conhecimento filosófico. O caráter não-empírico desse sujeito – um eu transcendental – manteria afastada da filosofia a dimensão da vida concreta.
De forma geral, esse é o cenário de despersonalização do exercício filosófico com o qual Nietzsche se depara, e contra o qual irá opor-se tanto teoricamente, ao afirmar que o pensamento é uma espécie de confissão pessoal do autor, quanto literariamente, ao escrever um texto autobiográfico como Ecce Homo. Para a autora, a pessoalidade seria o “testemunho de um regime de instintos do qual a filosofia é forma” (p. 14), e de acordo com sua interpretação, a presença dos instintos no exercício filosófico de Nietzsche não representa uma desvantagem ou demérito de seu pensamento, pelo contrário, é a implicação do corpo no pensamento que funda a possibilidade de transformação do próprio ethos.
Paradoxalmente, a incorporação da pessoalidade na filosofia nietzschiana representa uma desestabilização da unidade do sujeito moderno, em prol de uma hierarquia de multiplicidades instintuais, que no limite representa o próprio conceito de corpo para Nietzsche. Diante desse raciocínio, a autora realiza uma interessante aproximação com o pensamento de Montaigne, ao afirmar que esse movimento de construção da narrativa de si já estava relacionado com uma certa perda da identidade estabilizada do sujeito. Em seus ensaios, Montaigne se demonstra cético com relação ao fato de que seu eu pode ser encontrado por meio do puro discernimento. A mudança em si está sempre presente, portanto, escrever sobre si é um exercício que exige palavras rápidas, que não resistam ou se surpreendam com o acaso de encontrar-se onde não se era esperado. Nas palavras da autora, para Montaigne “o eu é uma multiplicidade de percepções cambiantes e contraditórias que exige a prontidão dessa escrita rápida para ser fixado provisoriamente nas palavras que o constituem e o dessubstancializam”. (p. 21)
Essa tese central para a autora, a de que a identidade se despedaça no exercício autobiográfico, parece encaminhar-se ao longo de seu ensaio para a proposição do que se poderia chamar de um paradoxo da autoria. Em Ecce Homo, por exemplo, por um lado há a presença constante do pronome eu, que transmite a ideia de um autor unificado, entretanto, as diversas e heterogêneas aparições e contextos desse eu implicam na ideia de que ele não pode ser previsto ou compreendido fora de transformação. De fato, a noção de eu em Ecce Homo é compreendida pela autora a partir da insígnia da ficção. Trata-se de uma construção narrativa que exprime “unificação a partir de uma exterioridade múltipla” (p. 31), e que de certa forma dissolve a dicotomia entre a estabilidade do ser e a transitoriedade do devir ao exprimi-las em simultâneo. Em última instância, é essa afirmação simultânea de ser e devir que se faz presente no subtítulo de Ecce Homo: “como tornar-se o que se é”. Em paralelo poderia-se adicionar aqui também a noção de amor fati, que poderia ser compreendida como o ato de imprimir de intenção o que foi contigente, em um ato de natureza interpretativa.
Para a autora, afirmar a multiplicidade do eu não significa compreendê-lo em uma espécie de desagregação absolutamente transitória. Trata-se de uma multiplicidade que se apresenta como organização hierárquica entre os instintos, cujas relações de domínio se referem diretamente ao que Nietzsche formula em seu conceito de “vontade de poder”. A estrutura instintual que compõe a noção de sujeito para Nietzsche se aproxima justamente ao que a autora se refere em seu ensaio como o conceito de corpo, que seria o “‘fio condutor’, a primeira forma de organização. Nele a diversidade simultaneamente se revela e se organiza sem conflitos, segundo suas necessidades e seus objetivos” (p. 33).
É nesse ponto que a autora engendra outra aproximação importante de Nietzsche com a tradição filosófica, mais precisamente com o pensamento estóico e epicurista. Trata-se da retomada do processo de escrita de si como technê tou biou, no qual a escrita – e também a leitura – se endereçam a um trabalho de elaboração das próprias vivências e de trabalho dos próprios instintos. Esse aspecto denota-se sobretudo no capítulo “Por que sou tão inteligente” de Ecce Homo, no qual alimentação, o clima, os livros, etc., são temas considerados por Nietzsche como “inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, KSA 6.295-296), ou seja, embora se tratem de “pequenas coisas” são fundamentais para o filosofar. Nas palavras de Katia Muricy, “a consideração dessa esfera do privado irá constituir não uma ética, mas uma minuciosa dietética” (p. 37). O ensaio termina de modo a afirmar o valor filosófico do escrito autobiográfico, dando ênfase ao fato de que se trata de um gênero privilegiado para a abordagem de temas relacionados ao exercício ético do “cuidado de si”.
Do ponto de vista formal, se trata de um ensaio que não se fundamenta no modus operandi estritamente acadêmico de fundamentação de hipóteses a partir de uma densa e exaustiva trama de citações, seja de artigos exegéticos ou mesmo de textos do próprio Nietzsche. As hipóteses dispostas no ensaio muitas vezes fundamentam-se na alusão à experiencia mesma de escrita de si, e não somente na interlocução com outros textos que tratam do tema; esse fato, aliado a performatividade estética do texto, possibilita outros modos de interação com o leitor, que não somente o da argumentação. A reflexão sobre a autobiografia é acompanhada da intenção literária de criação de cenários nos quais é possível imaginar Nietzsche em sua face efêmera e cotidiana, sentado na escrivaninha de sua casa, tomando seu sorvete, etc. Esse movimento literário da autora pode ser compreendido como o lançar mão de recursos ficcionais semelhantes aos utilizados por Nietzsche na construção performática de sua obra. Para além da veracidade possível desse tipo de narrativa, trata-se de um recurso muito interessante para promover justamente a atmosfera à qual o texto autobiográfico procura transmitir, qual seja: a pessoalidade na filosofia.
Referências
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, V. Paris: Gallimard, 1994 [ Links ]
MURICY, Katia. Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2017 [ Links ]
NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo ou como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [ Links ]
Notas
1Trata-se da investigação presente no ensaio “L’Écriture de soi” presente em FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, V. Paris: Gallimard, [1994].
Romano S. Zattoni – Doutorando em Filosofia pela UFPR, Curitiba, Paraná, RS, Brasil. E-mail: romanozattoni@gmail.com
Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura / Varia História / 2018
Este dossiê é resultado do trabalho de um grupo de pesquisadores que tem se abrigado sob um título amplo o suficiente, mas também claro o suficiente, para o recorte de seu objeto: “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Composto basicamente por historiadores que trabalham com história da imprensa, história da historiografia, história dos intelectuais, história do livro e da leitura e história das ciências, o grupo é também integrado por estudiosos da literatura e das ciências sociais.
Há alguns anos, membros do grupo vêm se debruçando sobre uma questão chave da área de investigações denominada história dos intelectuais, em cuja abordagem os intelectuais estão sempre imersos em redes de sociabilidade que os situam, inspiram, demarcam e deslocam através do tempo / espaço. Uma das contribuições importantes dessa abordagem é a maneira como se define (ainda que de forma fluida) a figura do intelectual. Entendido como um sujeito histórico que se envolve na produção cultural de bens simbólicos, sendo reconhecido por sua comunidade de pares, o intelectual, em uma acepção mais ampla, também é aquele que se volta para práticas culturais de difusão e transmissão, ou seja, que faz “circular” os produtos culturais em grupos sociais mais amplos e não especializados, razão pela qual pode ser identificado, entre outras possibilidades, como vulgarizador ou divulgador. As dificuldades, mas também as potencialidades de se investir em pesquisas para explorar a categoria de intelectuais e de intelectuais mediadores fizeram com que a maioria dos autores desse dossiê tenha participado do projeto de um livro, intitulado, Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos, organizado por Angela de Castro Gomes e Patrícia Hansen.[1]
A possibilidade do grupo – naturalmente reconfigurado, mas sempre aberto – continuar e avançar na investigação sobre a questão das práticas culturais de mediação e dos perfis dos intelectuais mediadores se renovou e ganhou força com o convite para participar de um projeto maior, “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX”, coordenado por Isabel Lustosa (FCRB) e Tânia de Luca (UNESP / Assis). Ora, o objetivo principal deste projeto era justamente aproximar pesquisadores que se dedicassem ao estudo da imprensa brasileira – jornais, revistas e almanaques – neste período de tempo, seja em âmbito local ou nacional, sem desconhecer sua necessária inserção no contexto internacional.
Como uma das orientações de nosso grupo era trabalhar teoricamente com uma gama de sujeitos históricos que atuava fortemente na imprensa escrita – embora não exclusivamente – realizando nela suas ações de mediação cultural no campo científico, artístico e político, integrar uma grande rede voltada para o estudo da imprensa adequava-se perfeitamente aos nossos objetivos. Isso significava aproximar esses intelectuais mediadores das atividades jornalísticas (inclusive, porque muitas vezes eles eram jornalistas), mas também demarcar o tipo de atuação que tinham na imprensa, pois, o que desejamos destacar é a atenção que davam a práticas culturais explicitamente voltadas à divulgação de ideias e conhecimentos para públicos variados. Até porque, para se trabalhar com o papel dos periódicos faz-se necessário um conjunto de atores entendido como muito diferenciado, já que se envolve diretamente tanto na feitura material dos impressos como na produção das ideias que eles propagam, o que exige uma grande preocupação com estratégias de promoção de seus títulos e de atração de públicos, segmentados ou não. Daí a importância da ação de editores, livreiros, escritores, jornalistas, tradutores, ilustradores, críticos literários e teatrais etc, muitos deles, embora não todos eles, podendo ser considerados intelectuais dedicados e até mesmo especializados em práticas de mediação cultural.
Se o interesse de fundo do projeto “Imprensa e circulação de ideias: o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX” é detectar e acompanhar a circulação dos títulos, formatos, propostas gráficas, organização do material textual e imagético, e também dos conteúdos publicados; o objetivo específico do subprojeto “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura” é trabalhar com a relação entre imprensa e intelectuais que estejam se dedicando à mediação cultural, situando, nessa dinâmica, o teor extremamente diversificado de seus temas, bem como as múltiplas formas assumidas por suas práticas (direta ou indiretamente ligadas aos periódicos), sempre entendidas em dupla dimensão: política e cultural.
Nesse sentido, a opção teórica realizada pelos artigos que compõem este dossiê é tratar esses intelectuais que estão atuando como mediadores culturais na imprensa, como sujeitos orientados por projetos individuais e coletivos que possuem dimensões políticas e socioculturais, e que sempre estão imersos em redes de sociabilidade diversas, fundamentais para a conformação de seu perfil de intelectual. Sendo assim, a figura dos mediadores culturais e suas formas de ação na imprensa se tornam o foco principal das reflexões dos pesquisadores que colaboram para o dossiê, aliando-se ainda ao enfrentamento de outra questão.
Nas pesquisas históricas recentes que contemplam a relação entre imprensa e mediadores culturais, destacam-se aquelas que apontam a centralidade dessa combinatória para se entender melhor os processos de fabricação e circulação de ideias, valores e conhecimentos no espaço e no tempo, na medida em que, por meio dela, é possível privilegiar seus múltiplos agentes e suas variadas formas de ação, que se beneficiam, crescentemente, do lugar estratégico do impresso no século XIX e XX. Dito de outra forma, o impresso funcionou, durante a maior parte desses séculos, como um vetor incontornável para qualquer projeto político-cultural de produção e divulgação de ideias e conhecimentos.
Por isso, a questão teórica da mediação cultural exige investigações que contemplem a imprensa escrita, lócus de debates e, sobretudo, da ação de divulgação para um público diversificado e não especializado. No caso deste dossiê, interessa atentar para processos e estratégias de divulgação que abarquem as artes (com ênfase para a literatura) e as ciências – quer as ciências da natureza quer as ciências sociais – com particular destaque para a história e, no caso do Brasil, para os chamados estudos brasileiros. Tal tratamento enfatiza a dimensão político-pedagógica dessas ações, ao menos para parte desses mediadores culturais que “militavam” na imprensa, acreditando na possibilidade e viabilidade de permitir a um público mais amplo acesso ao conhecimento científico e artístico, quando estampado de maneira acessível nas páginas dos periódicos. Uma proposta que guardava relações com uma “concepção democrática de ciência” então vigente. Isto é, da defesa do conhecimento “para todos” e / ou para públicos geralmente menos contemplados, como os trabalhadores, as crianças e, no limite, o “povo” de uma nação que desejasse ser moderna.
Os textos reunidos no dossiê foram apresentados, entre outros, no workshop de mesmo nome do subprojeto, “Imprensa e mediadores culturais: ciência, história e literatura”. Ele foi realizado na Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz, em 30 de outubro de 2017. Assim como na proposta do evento, o dossiê busca explorar algumas possibilidades de análise de práticas de mediação cultural na imprensa, a partir de dois caminhos que, embora possam ser tratados separadamente, acabam se interpelando por muitas vias: o de uma história da divulgação científica; e o de uma história dos intelectuais aliada à história da historiografia. Em um primeiro plano, dá-se destaque aos mediadores das ciências da natureza e da ciência histórica em suas diferentes estratégias de divulgação, cuja legitimação ou “popularização” pela imprensa, impôs determinadas hierarquizações frente aos saberes – academicamente constituídos. Nesse sentido, Kaori Kodama apresenta um estudo de caso sobre o intelectual Louis Figuier – um dos vulgarizadores das ciências mais reconhecidos da segunda metade do século XIX – cujo nome circulou na imprensa brasileira até ao menos a primeira metade do século seguinte. Por meio da trajetória de Figuier, que fez de sua atividade um meio de vida e de carreira, o texto conduz a reflexões sobre uma das questões centrais sinalizadas na historiografia sobre divulgação científica: a dupla posição / identidade dos vulgarizadores desse período, que são vulgarizadores e também autoridades que falam em nome da ciência. Paralelamente, o artigo pretende mostrar como o público de Figuier se modificou ao longo das décadas de 1850 e 1870, conforme se dava a maior circulação de seus textos. Assim, busca-se apresentar alguns aspectos das relações entre as variações do público leitor e o estabelecimento de novas culturas científicas.
Por um ângulo um pouco diferente, mas também tratando da divulgação do conhecimento científico nas publicações brasileiras, ao longo do século XIX, o texto de Maria Rachel Fróes da Fonseca procura mapear jornais e revistas, apontando-os como significativos loci para a afirmação da ideia de uma “ciência para todos”. Nessa perspectiva, apresenta um conjunto de periódicos dedicado à “vulgarização das ciências” e à promoção da instrução, dirigido e redigido por intelectuais mediadores. Entre eles estão A semana: Jornal litterario, scientifico e noticioso; a Academia popular – Semanário de Instrucção e Recreio para o Povo; e a Sciencia para o povo. A ideia do valor central da ciência e da educação para o Brasil era difundida nas páginas de muitos destes periódicos. O artigo igualmente ressalta a importância do pensamento de Rui Barbosa em relação ao ensino da ciência e ao método, na época, considerado mais adequado para seu ensino: o das lições de coisas.
Uma atenção particular é dada ao próprio suporte ou veículo através do qual alguns mediadores criaram seus bens culturais e se consagraram diante de seus públicos. Os vulgarizadores das ciências (como eram chamados) atuaram na imprensa das últimas décadas do século XIX e certamente se inseriram e se beneficiaram de uma conjuntura de crescimento da leitura. Alguns jornais e revistas chegaram a ter uma seção de ciências em suas páginas, e outros passaram a se dedicar exclusivamente a esses assuntos, adotando uma linguagem mais compreensível para a população em geral, o que também ocorria com a publicação de livros. Pode-se dizer, portanto, que no momento em que se ampliava o acesso aos impressos e se discutia, nos países ocidentais, a “educação popular”, os mediadores tornavam-se, eles mesmos, produtores de novas modalidades de bens culturais dentro da mídia impressa e, também, autores de um novo tipo, produzidos por esse mesmo suporte. Assim, transfiguravam-se em intelectuais altamente reconhecidos por seu público, bem como por aqueles que realizavam a crítica de seus textos na imprensa, valorizando-os ainda mais.
Porém, as características da consagração de um intelectual mediador quer pelo público, quer pela crítica – o que, em certo sentido, pode ser avaliado por sua capacidade de “popularizar” um determinado saber – podem ser encontradas também na primeira metade do século XX, como no artigo de Angela de Castro Gomes, que trabalha com o texto e a recepção da peça, A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, estreada em 1938. Nesse caso, o teatro histórico, enquanto texto e encenação, é que ganha destaque, estimulado pelo Estado Novo, então promovendo a nacionalização do ensino e a valorização do conhecimento histórico, que devia ser divulgado a partir de novas e variadas mídias. A Marquesa de Santos foi uma entre diversas produções de teatro histórico desse período a fazer muito sucesso. A numerosa e, em geral, elogiosa crítica publicada na imprensa permite tanto uma aproximação do espetáculo como a realização de reflexões sobre: o tipo de cultura histórica que estava então sendo construída e difundida; o tipo de batalhas de memória que eram travadas, quando um projeto nacionalista de Estado precisava “negociar” com eventos e heróis já conhecidos e consagrados; e o tipo de diálogo que se estabelecia entre uma escrita da história científica e uma escrita da história de teor cívico-patriótico, dirigida a um grande público, diálogo que, nesse caso, beneficiava-se do vetor das artes cênicas. Ambas, na verdade, em processo de construção e afirmação e, portanto, de discussão, dentro e fora das instituições acadêmicas.
Com o artigo de Angela de Castro Gomes, o dossiê começa a enveredar pelo segundo caminho nele contemplado, a saber, o que lida mais de perto com o enfoque dos estudos brasileiros e da história da historiografia. Se um dos interesses deste dossiê é o de situar a própria imprensa como objeto de análise, vislumbrando nela as possibilidades e significados da atuação dos mediadores culturais, é fundamental atentar para tudo que a estrutura e organiza materialmente, tal como os suplementos, as seções, os anúncios, as colunas, as fotografias, as manchetes, os encartes etc. Assim, Robertha Triches, volta-se para a coluna – “Terras de Nossa Terra” – do jornal, A Voz de Portugal, um entre os muitos periódicos da imprensa étnica que circulava pelo Brasil em meados do século XX. Mostra também como essa forma de imprensa se relacionava com o desenvolvimento de outras mídias populares à época, em particular, os programas de rádio. O jornalista e escritor encarregado da coluna era José Correia Varella, um imigrante português que por décadas se dedicou às mais diversas atividades culturais, tendo uma vasta rede de sociabilidade tanto entre a intelectualidade carioca como entre a vasta colônia portuguesa do Rio de Janeiro. Nesta coluna, ele se dedicou especialmente às históricas relações políticas e culturais entre Brasil e Portugal, celebrando a figura de Salazar e se transformando em um agente de propaganda do Estado Novo português no Brasil.
Por fim, Robert Wegner e Giselle Venancio elaboram uma instigante análise sobre o gênero do ensaio, a partir de uma série de artigos publicados no Suplemento Literário doDiário de Notícias, entre 1948 e 1950, com especial atenção para os escritos por dois intelectuais reconhecidos e festejados no momento em que escrevem: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Os debates sobre esse gênero de escrita histórica, travados entre eles, nas páginas do jornal (portanto, lidos por um público não acadêmico), abrem uma janela para um período muito especial: o da implementação das pesquisas históricas em instituições universitárias no país. Um período de mudanças e deslocamentos, com as decorrentes redefinições dos lugares do intelectual acadêmico-universitário e, por conseguinte, do erudito que estava “fora” dessa nova rede de sociabilidade, distinta das associações de pares até então dominantes, a exemplo dos institutos históricos e geográficos.
As diversas caixas de diálogo abertas neste dossiê esperam por contribuições e esforços, individuais ou coletivos, para que melhor possamos compreender o complexo perfil do intelectual que se delineia, quando consideramos que diversificadas práticas de mediação cultural são igualmente parte constitutiva de sua identidade. Algo que, como fica aqui demonstrado, não é tão novo, mas que se torna urgente e quase incontornável no mundo mediatizado em que vivemos no século XXI. Que a leitura do dossiê seja um convite estimulante e convincente.
Nota
1.. GOMES; HANSEN, 2016. O livro recebeu o Prêmio Sérgio Buarque de Holanda, na categoria Ensaio Social, atribuído pela Biblioteca Nacional em 2017.
Referência
GOMES, Angela de Castro e HANSEN, Patrícia. Intelectuais mediadores: práticas culturais e projetos políticos. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2016. [ Links ]
Angela Maria de Castro Gomes – Programa de Pós-Graduação em História Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: angelamariadecastrogomes@gmail.com
Kaori Kodama – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: kaori.flexor@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-5327-2689
Maria Rachel Fróes da Fonseca – Casa de Oswaldo Cruz Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: rachel.froes@fiocruz.br http: / / orcid.org / 0000-0003-0865-2436
GOMES, Angela Maria de Castro; KODAMA, Kaori; FONSECA, Maria Rachel Fróes da. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.34, n.66, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Boletim de História e Filosofia da Biologia. [?] v.12, n.3, 2021.
- Volume 12, número 3 (setembro de 2018)
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Brasília (II) / Urbana / 2018
Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.
O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.
Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.
Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.
Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.
Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.
Nota
1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.
Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br
DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais – LEON (C)
LEON, Denis (Org.). Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais. São Paulo: FiloCzar, 2017. Resenha de: TRINDADE, Gabriel Garmendia da. Conjectura, Caxias do Sul, v. 23, n. 3, p. 637-642, set/dez, 2018.
Poucos tópicos de reflexão são tão polarizadores quanto a questão das relações éticas estabelecidas entre humanos e membros de outras espécies.
Não é de se surpreender, portanto, que essa temática venha ganhando, cada vez mais, espaço nos programas de estudos e adentrando as salas de aula de instituições acadêmicas brasileiras. Em anos recentes, diversas obras têm sido lançadas precisamente com a finalidade de promover e estimular a investigação e o ensino de tais assuntos em território nacional. Dentre as últimas publicações dessa série, se encontra a coletânea Educação Vegana: perspectivas no ensino de direitos animais, organizada pelo educador e pesquisador paulistano Leon Denis.1 O livro é composto de quatro ensaios escritos por pesquisadores de variadas searas do saber, os quais almejam problematizar a chamada “Educação Vegana” interdisciplinarmente. Por “Educação Vegana”, o organizador da coletânea entende “uma ação direta pedagógica, cujo objetivo é levar a teoria dos direitos animais, sua prática e o modo de vida vegano ao conhecimento do maior número de pessoas”. (LEON, 2017, p. 13). Para fazê-lo, explica Denis, o educador vegano “insere no currículo escolar de sua disciplina todas as problemáticas inerentes ao debate suscitado pelo recorte biótico chamado Ética Animal”. (2017, p. 3).
Dado que a construção de um debate suficientemente aprofundado, acerca do modo como deveríamos agir para com os animais não humanos, depende de uma análise adequada de diferentes tópicos correlacionados, educadores veganos bebem de múltiplos campos do conhecimento, tais como: filosofia, biologia, psicologia, ciência política, nutrição, entre outros.
Denis, todavia, faz questão de ressaltar que, longe de se mostrar como uma ruptura antagônica do currículo adotado em instituições de ensino, a educação vegana surge, em realidade, para complementar a base comum dos manuais de educação desenvolvidos nos últimos anos, a qual atenta para a seriedade do combate ao sexismo, racismo e elitismo. (2017, p. 14).
Nesse sentido, educadores veganos partem dos costumes e sistemas curriculares preestabelecidos e, simplesmente, adicionam o especismo – i.e., a discriminação arbitrária de membros de outras espécies – à lista de preconceitos a ser urgentemente desmantelada.
O primeiro capítulo da obra, elaborado pelo próprio organizador do volume, intenta justamente expandir a discussão acerca desse tema. Mais precisamente, em seu ensaio, Leon Denis reflete sobre a possibilidade de fundamentar a Educação Vegana no cenário brasileiro por meio de propostas ético-filosóficas de cunho neoaristotélico. É observado que essa educação, quando tratada de maneira apropriada, é capaz de avançar um aspecto essencial da evolução educativa e do aprendizado que tem sido, há muito, deixado de lado, qual seja, a busca pela excelência no viver. No que tange ao âmbito nacional, até mesmo educadores veganos vêm negligenciando continuamente esse elemento pedagógico de crescimento ético-pessoal em seus seminários. Uma das principais razões para essa aparente falha educativa seria a ênfase exagerada dada à discussão de duas correntes de pensamento da ética voltada aos animais não humanos. Por anos, pesquisadores brasileiros da área têm centralizado suas investigações, quase exclusivamente, em apreciações consequencialistas, cujo principal defensor é o filósofo australiano Peter Singer, e/ou teorias baseadas em direitos, como as desenvolvidas por Tom Regan e Gary L. Francione. Embora as contribuições desses três autores para o campo em pauta sejam indiscutíveis, o contínuo foco na literatura por eles produzida tem, por sua vez, vendado muitos investigadores para a riqueza de posições concorrentes, tais como as neoaristotélicas.
Após feitas essas constatações, Leon Denis imediatamente lança-se em uma exposição pontual dos distintos posicionamentos pautados por virtudes de Stephen R. L. Clark, Rosalind Hursthouse, Bernard E. Rollin e Martha Nussbaum. Conceitos-chave dos posicionamentos – e.g., eudaimonia e telos – são, cuidadosamente, examinados em relação à Educação Vegana, bem como suas possíveis implicações pedagógicas. Ausentes dos comentários feitos por Leon Denis estão, no entanto, as costumeiras objeções filosóficas esboçadas contra a ética das virtudes e suas respectivas vertentes. Por exemplo, a crítica de que as virtudes não seriam capazes de fundamentar um código normativo propriamente dito. Tais objeções seriam particularmente significativas, sobretudo de um ponto de vista didático, em uma comparação entre as vantagens e desvantagens das propostas neoaristotélicas apresentadas ante os frameworks consequencialistas ou aqueles baseados em direitos. Não obstante esse pequeno detalhe, o capítulo elaborado por Leon Denis constitui uma importante e aguardada contribuição aos estudos brasileiros sobre a consideração moral de não humanos e à Educação Vegana como um todo.
O segundo capítulo é assinado pela educadora social Priscila Tessuto. Em seu texto, Tessuto examina a condição dos membros de outras espécies como propriedade por intermédio da teoria sociológica durkheimiana.
Como relatado em múltiplas publicações pelo jurista norte-americano Gary L. Francione, o status dos animais não humanos como propriedade é uma instituição inerentemente problemática. Uma vez que não humanos são tidos como coisas/mercadorias, quer de um ponto de vista econômico quer cultural e/ou político-filosófico, eles acabam sendo classificados em diferentes categorias com base em seus usos – e.g., não humanos para consumo, não humanos para entretenimento, experimentação, companhia, etc. – facilitando, assim, sua exploração sistemática. Tal exploração é, por seu turno, conservada e fomentada através de inúmeras práticas e tradições adotadas pela sociedade humana.
À vista disso, Tessuto utiliza, então, a noção durkheimiana de “solidariedade mecânica” para explicar os dispositivos sociais facilitadores da perpetuação da exploração não humana. Mais especificamente, é argumentado que a personalidade dos indivíduos estaria absorvida de tal maneira pela personalidade coletiva que o uso e o consumo de membros de outras espécies passaria a ser tomado como uma faceta completamente natural da sociedade humana; de modo que o repúdio ao exercício desses costumes ou atividades seria, por sua vez, imediatamente chacoteado pela grande maioria. A partir disso, Tessuto faz uma breve, porém acurada comparação histórico-social entre o tratamento depreciativo dispensado àqueles que se opunham à escravidão humana e os que hoje contestam o status dos outros animais como propriedade. Tessuto conclui sua análise defendendo a necessidade de uma mudança de paradigma concernente à condição de humanos e não humanos, a qual poderá, enfim, levar ao cerne da questão social como atualmente é compreendida. Se bem-explorada em sala de aula, a conexão entre os escritos de Durkheim e a proposta de Francione se verá que tem todos os ingredientes para gerar vários debates envolventes, sobretudo no campo das ciências sociais aplicadas.
O terceiro capítulo é, sem sombra de dúvida, o mais ambicioso da obra. Nesse, a Professora Sarah Rodrigues analisa a possibilidade da inclusão de tópicos referentes aos direitos não humanos em aulas de matemática.
Tomando como ponto de partida as ideias do educador matemático dinamarquês Ole Skovsmose, que articula uma abordagem pedagógica voltada à educação matemática crítica, Rodrigues propõe que o papel do docente da área sob escrutínio seja reconsiderado. Ao invés de estar limitado à mera função de propositor de “exercícios de fixação”, o professor de matemática deveria ser incumbido da responsabilidade de estimular a criticidade de seus estudantes. Tal responsabilidade abarcaria, entre outras coisas, a contemplação de questionamentos éticos, os quais estariam em linha com a realidade e vivência dos discentes.
Entre os assuntos a serem ponderados de forma crítica, encontra-se a polêmica atinente ao tratamento moral concedido aos integrantes de outras espécies. Para justificar a inserção dessa temática no leque de conteúdos apreciados pelo professor de matemática, Rodrigues constrói, então, um diálogo pormenorizado com a perspectiva educacional de Skovsmose e salienta a urgência e atualidade da questão não humana.
Em um segundo momento de seu texto, Rodrigues elenca sugestões específicas de como trabalhar a Educação Vegana matematicamente. O fato é que alguns manuais didáticos já apresentam exercícios matemáticos nos quais animais não humanos figuram – porém, somente de forma periférica e sob o completo prisma de uma consciência especista e antropocêntrica.
Por exemplo, há livros que solicitam aos alunos que calculem, com base em determinadas informações, o valor da arroba de boi gordo ou a região em que um cão de guarda acorrentado poderia circular livremente. Uma vez que ainda não existem compêndios da matemática que retratem os não humanos de modo alternativo, Rodrigues recomenda que o formador interessado em explorar a dinâmica das relações interespécies faça proveito de materiais complementares que possam contextualizar tais assuntos sob uma outra ótica.
Para citar um exemplo, dados sobre o desperdício de água na indústria do leite poderiam ser utilizados em aulas de estatística no Ensino Médio. Isso talvez possa levar à revitalização da matemática escolar, a qual é comumente estereotipada como inaplicável e estranha ao dia a dia dos estudantes. Há muito o que se considerar aqui. Se as reflexões levantadas por Rodrigues realmente atrairão docentes do campo da matemática para a problematização da Educação Vegana é uma pergunta em aberto. Dito isso, a proposta do capítulo em voga certamente será vista por muitos como sendo, no mínimo, intrigante.
O quarto e último capítulo de Educação Vegana versa sobre o ensino de Literatura e a ética nas relações interespécies. Mais especificamente, os pesquisadores Evely Libanori e Diego Fascina explicitam como as obras da aclamada escritora Clarice Lispector podem ser empregadas para despertar a preocupação moral dos alunos para com os membros das outras espécies.
É do conhecimento comum que muitas das publicações de Lispector trazem personagens que exibem uma inquietação bastante forte acerca do tratamento outorgado aos não humanos. Libanori e Fascina, todavia, vão além do que é geralmente conhecido acerca desse tema e estruturam uma apreciação escrupulosa do lugar do animal não humano na bibliografia lispectoriana.
Cerca de dez textos – entre romances, contos e crônicas – são examinados, constituindo uma avaliação que percorre desde o primeiro livro de Lispector, Perto do coração selvagem (1943), até o último: Um sopro de vida (1978).
As atitudes das personagens diante dos não humanos são diligentemente averiguadas à luz dos posicionamentos de algumas das maiores referências da “Ética Animal”, tais como Singer e Francione. Tudo isso é feito tendo em mente o que poderá ser requisitado dos estudantes em sala de aula.
No tocante a este capítulo final, pode-se afirmar, com segurança, que as obras de Lispector aparentam ser uma boa porta de entrada para discussões que relacionem clássicos da literatura brasileira e o pensamento ético contemporâneo direcionado aos outros animais. Entretanto, talvez valha a pena mencionar a necessidade de evitar extrapolações e exageros interpretativos ao realizar essas conexões. Pois, como Libanori e Fascina fazem questão de relatar, a despeito das especulações morais levantadas em seus escritos acerca dos integrantes de outras espécies, Lispector não era vegana ou vegetariana – o que revelaria os limites de tais comparações.
Em conclusão, Educação Vegana é um livro curto, porém significativo. Os contribuintes desse volume trazem à tona uma gama de tópicos rotineiramente negligenciados por educadores veganos e/ou pesquisadores brasileiros da “Ética Animal”. Tópicos os quais são passíveis de ser incorporados a seminários de diversas áreas em distintos níveis educacionais.
Tendo pontuado isso, ocasionais leitores da coletânea em pauta talvez possam ter a sensação de que muito mais poderia ser dito, no decorrer dos quatro capítulos, acerca das notórias dificuldades no processo de implementação de disciplinas voltadas à Educação Vegana. Afinal de contas, apesar da consideração de animais não humanos atrair, cada vez mais, a atenção de acadêmicos e docentes de numerosos campos do saber, a inclusão de cadeiras que abordem essa temática – especialmente em instituições com currículos já consolidados – continua sendo uma tarefa bastante árdua. É por isso que talvez seja importante realizar a leitura de Educação Vegana em conjunto com outras publicações organizadas pelo próprio Leon Denis, como, por exemplo, sua obra Educação Vegana: tópicos de Direitos Animais no Ensino Médio, a qual detalha, entre outras coisas, as possíveis maneiras de sobrepujar os obstáculos comuns ao desenvolvimento e à execução de aulas que lidem com Educação Vegana. Se assim for feito, essa nova antologia pode muito bem se tornar o alicerce intelectual de incontáveis colaborações interdisciplinares futuras sobre as relações mantidas entre humanos e não humanos.
Nota
1 Leon Denis é autor de Educação Vegana: tópicos de direitos animais no Ensino Médio (Libra Três, 2012) e organizador da antologia Educação e direitos animais (Libra Três, 2014).
Gabriel Garmendia da Trindade – Doutorando em Global Ethics pelo Centre for the Study of Global Ethics. Department of Philosophy da University of Birmingham (Reino Unido). E-mail: garmendia_gabriel@hotmail.com
História & Luta de Classes. [?], v.14, n.26, set. 2018.
Direita e Classes Dominantes no Capitalismo Contemporâneo
- Resumo
- Direita e Esquerda política: algumas considerações (Wilson da Silva Santos)
- Ampliando e Privatizando o Estado: o Binômio Embrapa – Abag. (Sonia Regina de Mendonça)
- Dominação Burguesa e os Aparelhos de Doutrinação da Nova Direita no Brasil Contemporâneo (Flávio Henrique Calheiros Casimiro)
- Reforma de Estado no Brasil e a atuação da sociedade civil (Anderson Tavares)
- Instituto Ludwig von Mises Brasil: formas de ação e rede extrapartidária (Raphael Almeida dal Pai)
- As contrarreformas educacionais na América Latina a partir da década de 1990: Brasil e Chile (Graciela Fabrício da Silva)
- A ofensiva ultraconservadora: uma análise da formação e atuação da frente de direita na educação brasileira (Luíza Rabelo Colombo; Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa)
- De joia da Coroa a inimigos públicos número um: Hayek, Thatcher e a legislação antissindical no Reino Unido dos anos 1980 (Thiago Romão de Alencar)
- Guerras Culturais ou Luta de Classes? A face atual do anticomunismo (Carla Luciana Silva)
- Democracia para o capitalismo na América Latina: o papel da Plataforma Democrática (2007-2018) (Diego Martins Dória Paulo)
- Livros e editoras marxistas em evidência (resenha) (Carlos Fernando de Quadros)
- Da Revolução Soviética à ascensão do stanilismo: os altos e baixos da luta de classes e da consciência de classe na Rússia (resenha) (Márcio Lauria Monteiro)
Brasília (II) / Urbana / 2018
Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.
O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.
Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.
Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.
Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.
Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.
Nota
1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.
Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br
DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos – RECH; LUCHESE (RHHE)
RECH, Gelson Leonardo; LUCHESE, Terciane Ângela. Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos. Caxias do Sul, EDUCS, 2018. Resenha de: FERNANDES, Cassiane Curtarelli. Escolas italianas no Rio grande do Sul: pesquisas e documentos. Revista de História e Historiografia da Educação, Curitiba, Brasil, v. 2, n. 6, p. 241-245, setembro/dezembro de 2018.
Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos, é o título da obra composta pelos pesquisadores Gelson Leonardo Rech e Terciane Ângela Luchese, publicada em 2018, pela editora EDUCS. O escrito é fruto da continuidade das pesquisas empreendidas pelos autores em torno dos processos educativos entre imigrantes italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul, assim como dos diálogos mantidos no Grupo de Pesquisa História da Educação, Imigração e Memória (GRUPHEIM) da Universidade de Caxias do Sul/RS.
De uma forma acessível, Gelson e Terciane partilham seus empreendimentos de pesquisa com o público interessado na temática da imigração italiana no estado gaúcho. As páginas, escritas a quatro mãos, reúnem três movimentos: narram uma história das escolas italiano no estado, apresentam uma reflexão metodológica e transcrevem documentos primários, alguns até então inéditos para a área da História da Educação.
O livro, organizado em três capítulos, inicia com prefácio elaborado pelo Prof. Dr. Elomar Antonio Callegaro Tambara, que aborda brevemente o processo imigratório italiano no Rio Grande do Sul. Em seguida, há uma apresentação da obra pelos autores, desejando que “a leitura das páginas que seguem possa inspirar outros investigadores e interessados pela temática a pensarem os processos educativos étnicos como uma importante singularidade no contexto brasileiro” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 12).
No primeiro capítulo intitulado O processo escolar entre imigrantes italianos e descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1938), os pesquisadores apresentam os resultados das investigações realizadas nos últimos anos acerca do processo escolar entre imigrantes e descendentes de italianos no estado, nos anos finais do século XIX, mais especificamente nas colônias da Serra gaúcha e na capital Porto Alegre.
O texto inicia com um panorama histórico acerca do processo imigratório italiano no estado, apontando brevemente as causas da imigração, o interesse do governo brasileiro no fenômeno migratório, assim como a formação das diversas colônias estabelecidas a partir de 1870. Em seguida, apresenta o contexto educacional do Rio Grande do Sul entre o século XIX e o XX. Depois, direciona o olhar para o processo escolar entre imigrantes italianos e os seus descendentes, apontando que “diversas foram as iniciativas dos imigrantes na organização de escolas” (RECH; LUCHESE, 2018, p. 25). Entre estas iniciativas, os pesquisadores destacam as escolas étnico-comunitárias rurais, as escolas étnico-comunitárias mantidas por Associações de Mútuo Socorro e as escolas ligadas a congregações religiosas. Ainda, ressaltam que às escolas públicas – isoladas, grupos escolares e colégios elementares, foram também requisitadas pelos imigrantes. No entanto, ressaltam que:
Essa escola frequentada pelos imigrantes, seus filhos e netos, mesmo sendo pública, era marcada por elementos étnicos. O próprio prédio escolar e a terra onde estava localizada, muitas vezes, foram doados pela comunidade, assim como os móveis. As comunidades frequentemente interferiam na nomeação e/ou indicação do professor, como averiguou Luchese (2007). As práticas pedagógicas e o sotaque dialetal, bem como outros elementos culturais étnicos, marcavam presença nas salas de aula. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 37).
Após, os autores apresentam algumas iniciativas de escolarização tendo como pano de fundo à capital Porto Alegre. Assim, evidenciam a organização do Instituto Médio Ítalo-Brasileiro que funcionou como um colégio-internato, entre os anos de 1917 a 1930, fundado pelo Professor Augusto Menegatti e sua esposa Linda Menegatti, como também a reorganização das escolas étnicas na capital.
Concluem este primeiro capítulo elencando algumas dificuldades encontradas para se manter as iniciativas das escolas étnico-comunitárias, bem como as influências do governo fascista de Mussolini a partir de 1922, sobre as escolas étnicas italianas e a preferência dos imigrantes e descendentes pela escola pública.
Análise documental histórica: considerações metodológicas sobre a história da escola entre imigrantes italianos e seus descendentes é o título do segundo capítulo organizado pelos autores, tendo como objetivo compartilhar considerações sobre os caminhos teóricos e metodológicos de suas investigações (RECH; LUCHESE, 2018). Sendo assim, destacam a utilização do aporte teórico-metodológico da História Cultural, a importância de tomar os documentos como monumentos nas pesquisas e o trabalho com a análise documental – organização e interpretação dos dados.
Nesta segunda parte do livro, os autores partilham com os demais pesquisadores da área, seis preocupações necessárias trabalho com a análise de documentos textuais, a saber: 1) as condições de produção do documento; 2) os procedimentos internos; 3) as condições de circulação do documento; 4) a materialidade do documento; 5) a apropriação; 6) a preservação. Da mesma forma, demarcam a importância do cruzamento das fontes selecionadas nas pesquisas, a diversificação das mesmas – textuais, orais e iconográficas, o diálogo com a teoria e o cuidado com as referências de localização dos vestígios com compõe o corpus documental da investigação. Desse processo, emerge “a tessitura da escrita”, nas palavras de Rech e Luchese (2018, p. 74). Para ambos:
Nesse jogo de vida e morte, de passado e presente, de documentos e monumentos, não podemos esquecer que as narrativas históricas da educação, derivadas das pesquisas que produzimos, são resultados de trabalho com questões de pesquisa possíveis no tempo em que vivemos e que, para respondê-las, construímos um corpus empírico. Destarte, indícios, rastros, sinais que são ordenados, montados, questionados na análise, na inter-relação e contextualização que procedemos para escrever história, escrever um possível sobre o passado educacional, reconhecendo a precariedade e a necessidade de revisitar documentos, munidos por novos questionamentos. É o movimento constante da pesquisa. (RECH; LUCHESE, 2018, p. 77).
No terceiro e último capítulo denominado Repertórios documentais, Gelson e Terciane, de forma generosa, compartilham quatro documentos que auxiliam na compreensão da história da escola entre imigrantes italianos e descendentes no estado do Rio Grande do Sul.
O primeiro documento apresentado pelos autores é um relatório elaborado pelo italiano Ranieri Venerosi Pesciolini, que em visita aos estados do Rio Grande do Sul, do Paraná e de Santa Catarina, escreve no ano de 1912, sobre a vida nas colônias italianas, incluindo um tópico sobre a as escolas e a instrução. A segunda fonte também é um relatório e foi produzida em 1923, pelo professor italiano Vittore Alemanni que escreve sobre as escolas italianas no Brasil. O terceiro do-cumento é um recorte do texto apresentado no livro Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande del Sud (1875-1925) por Benvenuto Crocetta em 1925, onde o mesmo compõe um pequeno escrito sobre as escolas. O último vestígio é uma carta de Celeste Gobbato, intendente de Caxias do Sul, endereçada a Benito Mussolini, no ano de 1927, “pedindo a intervenção do Duce para que os padres salesianos implantassem um ginásio em Caxias do Sul” (RECH; LU-CHESE, 2018, p. 150). Os documentos disponibilizados são apresentados na sua versão original em língua italiana e acompanham as res-pectivas traduções realizadas pelos autores do livro.
A obra escrita por Rech e Luchese (2018) é uma importante contribuição para os estudos historiográficos em torno dos processos educativos nas colônias de imigrantes e descendentes de italianos. A partir das investigações dos autores é possível perceber que a escola foi alvo de desejo e de interesse por parte das famílias italianas desde os anos iniciais de formação dos núcleos coloniais.
Sendo assim, além de compartilhar os conhecimentos construídos sobre a temática do livro, os autores dividem com os jovens pesquisadores da área da História da Educação os seus modos de trabalhar com a análise documental e narrar uma história. Refletem acerca do problema de pesquisa e do uso de documentos, apontam autores dentro do referencial teórico-metodológico da História Cultural e sugerem caminhos para a metodologia da análise documental. Ao final, ainda nos brindam com a reprodução de quatro documentos que tratam sobre a escolarização. Escolas italianas no Rio Grande do Sul: pesquisas e documentos é uma publicação inspiradora e que merece nossa atenção.
Cassiane Curtarelli Fernandes – Doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul, UCS (Brasil). Contato: cassianecfernandes@gmail.com.
LGBTTQI. Histórias, Memórias e Resistências / Revista Transversos / 2018
Ao nos defrontarmos com a imagem da capa desta edição (ELIAS1, Coraticum, 2018), nosso olhar se impacta com um coração que vibra num agenciamento de multiplicação de cores. Tonalidades que se chocam e se interseccionam em suas artérias, oxigenando uma vida não monocromática e sim uma “vida artista” como proposta ético-política (Foucault, 2004), potencializada por uma constituição de si que tem na diversidade sua beleza criadora. É com a força libertadora do Coraticum, da existência como obra de arte, que a 14ª edição da Transversos apresenta seu dossiê LGBTTQI: histórias, memórias e resistências, da linha de pesquisa Vulnerabilidades: pluralidade e cidadania do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES / UERJ).
Este dossiê é efeito de encontros e de esforços coletivos de pesquisadorxs que focalizam, estudam e exploram temas, experiências, histórias de vida, memórias, resistências e contracondutas do universo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Queer e Intersexuais (LGBTTQI).
Diversas correntes teóricas e perspectivas metodológicas, balizas temporais e geográficas e áreas do saber possibilitam debate sobre as diferenças sexuais e as de gênero, interseccionando, muitas vezes, gênero, raça, sexualidade, geração, classe, nacionalidade e estilo corporal, complexificando, assim, históricos programas culturais e matrizes de gênero.
Para além da visibilidade aqui oferecida às pesquisas e às reflexões de uma rede internacional de pesquisadorxs e instituições, sobretudo entre o LabQueer (Laboratório de estudos das relações de gênero, masculinidades e transgêneros, da UFRuralRJ) e o INTIMATE (projeto de pesquisa desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES- UC), o objetivo foi o de ampliar e verticalizar o debate sobre históricas formas de nomear os sujeitos, seus desejos e afetos, de atribuir sentido a si e aos outros, de produzir conhecimento sobre os gêneros e as sexualidades, sobre as diversidades corporais, as agendas teóricas e políticas da construção da subjetividade, os processos e códigos de significação, os esquemas binários de vigilância / controle e a “produção transversal das diferenças” (PRECIADO, 2004, p. 48). Ao mesmo tempo, os artigos oferecem análises sobre os processos por meio dos quais identidades são afirmadas e cristalizadas, realidades são social e culturalmente forjadas, as exclusões, marginalizações e apagamentos são produzidos, bem como destacam as inúmeras contestações das normas cisheterocentradas, as resistências e as fraturas do universal e assimilacionista, muitas vezes conjugado no masculino cisheteronormatizado.
O desafio proposto por Michel Foucault (1984, p. 13), o de tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe, foi potencializado por debates que desnaturalizam e fraturam os pertencimentos, identidades, papéis e expressões de gênero, os privilégios de visibilidade e de hierarquias, as estruturas definidoras de opressão, os saberes e discursos que legitimam a(s) sexualidade(s). Ao mesmo tempo, a provocação do filósofo francês foi matizada por conexões políticas e teóricas, como os feminismos, a teoria queer, o movimento transgênero e as diferentes demandas relacionadas à orientação sexual.
A genealogia, como pensada por Foucault e Nietzsche, da teoria queer nos é apresentada por Pablo Pérez Navarro por meio de suas aproximações com as políticas e teorias feministas. No artigo que abre o dossiê, Pérez Navarro problematiza como a proliferação e fragmentação do sujeito do discurso feminista promove um ataque ao sujeito universal do iluminismo ao questionar interna e fronteiriçamente a naturalização a-histórica de categorias como a “diferença sexual”, a unidade do sujeito “mulher”, os gêneros binários e a heterossexualidade. Os feminismos lésbicos, chicanos, latinos, asiáticos e afro-americanos (em suas análises da interseccionalidade das opressões de gênero, raça, classe, etnia) são destacados no artigo como caminhos que potencializaram a teoria queer no final do século XX.
Ana Cristina Santos focaliza a memória coletiva do movimento social LGBTQ em Portugal. A autora analisa as transformações associadas aos campos da lei e da política partidária, o progresso verificado na cobertura noticiosa dada a temas LGBTQ e sugere o conceito de ativismo sincrético, demonstrando o seu potencial analítico no que se reporta a compreender duas décadas de histórias, memórias e resistências do movimento LGBTQ.
Fábio Henrique Lopes traz à cena narrativas autobiográficas e escritas de si de Aloma Divina, travesti que viveu na cidade do Rio de Janeiro ao longo da década de 1960, considerada da “primeira geração”. Sua proposta foi a de identificar e explorar a emergência histórica de novas subjetividades, como a de travesti, marcadas por múltiplos e históricos eixos de diferenciação, como o gênero, a sexualidade, a diversidade corporal e a raça.
A construção de redes de amizade como táticas de (re)existência de pessoas trans na ordem cisgênera e heteronormativa são problematizadas por Rafael França Gonçalves dos Santos e Marcio Nicolau. A partir dos estudos queer, dos feminismos transgênero e negro, Gonçalves e Nicolau destacam como tais redes de afeto foram acionadas por sujeitos trans que partiram de Campos dos Goytacazes / RJ para o sul da Europa para a criação de subjetividades que borram as fronteiras binárias do existir, perturbam o controle biopolítico dos corpos e possibilitam vidas menos “normalizadas” e mais criativamente diversas.
As relações de amizade também se destacam no artigo de Beatrice Gusmano. Através de um olhar sociológico, mostra como pessoas LGB estabelecem relações de amizade e de cuidado, compartilhando o cotidiano. Um dos principais resultados apresentados é como as redes de amizade se tornam um meio não apenas necessário, mas escolhido, para construir relacionamentos íntimos resilientes, sublinhando, dessa maneira, o potencial transformador e subversivo da amizade entre pessoas LGB.
Desnaturalizar os dispositivos de poder que levam à desumanização de pessoas trans e intersexuais é o que Renata Santos Maia propõe em seu artigo Corpos dissidentes: as identidades que “intertransitam” no cinema argentino contemporâneo. Com esse fim, três produções cinematográficas (XXY [2007], El último verano de la Boyita [2009] e Mía [2011]) são as fontes escolhidas para focalizar os dilemas, dores e violências que vidas não binárias carregam em sociedades heterocentradas e masculinistas, com destaque para as latino-americanas, especialmente, a Argentina. Maia destaca como as vidas trans e intersexuais apresentadas nos filmes são atravessadas pelo determinismo dicotômico de ter que escolher um verdadeiro sexo / corpo / gênero / desejo.
Erica de Aquino Paes e Luciane da Costa Moas oferecem importantes chaves para o exame dos conflitos entre a normatividade cisgênera e a atuação transgressora da transgeneridade. A abjeção de pessoas trans produzidas pelas relações de saber-poder do discurso médico e jurídico é problematizada por meio de um estudo de caso: o da jogadora de vôlei Tiffany Abreu, mulher trans cuja atuação profissional é atravessada por tensões e negações em torno do exercício de seus direitos civis. Jogo que se desdobra na luta pela equidade de gênero em um domínio esportivo normatizado pela cis-heteronormatividade.
Ana Lúcia Santos analisa o potencial crítico e transformador de corpos protésicos e intersexo no regime capacitista e cisgénero. A partir do conceito de glitch, do feminismo digital, e das teorias crip e arte do fracasso, Santos apresenta essas vidas transviados e falhadas no desporto como resistências às classificações binárias do existir e como possibilidade de criação de identificações híbridas que transgridem positivamente a normalidade hegemônica.
A construção de certa identidade homossexual produzida pelo jornal Lampião da Esquina, durante os anos 1978-1981, é problematizada no artigo de Natanael de Freitas Silva & Natam Felipe de Assis Rubio. A partir da noção de contra-conduta, Silva e Rubio destacam os jogos de poder em torno dos diferentes significados sobre a homossexualidade presentes na sociedade brasileira de então. Aqui, mais uma vez, as existências silenciadas pela heteronorma ganham destaque nessa reescrita da história que tem nas demandas da atualidade seu ponto de partida.
Na seção de artigos livres, Santiago Arboleda Quiñonez examina a étnico-educação como meio de crítica e de transformação da colonialidade do poder (Quijano, 2002) presente nas sociedades latino-americanas. O ensino das relações étnico-raciais se destaca como forma de desnaturalizar o paradigma monocultural (masculino, branco, cristão, colonizador) e promover ações propositalmente decoloniais por meio do destaque e valorização das culturas, histórias e pensamentos das populações indígenas e afrocolombianas. A étnico-educação como ação decolonial, proposta no artigo de Quiñonez, é mais uma possibilidade de crítica e (re)existência ao “sistema-mundo patriarcal / capitalista / colonial / moderno europeu” (Grosfoguel, 2009) apresentada pela 14ª edição da Transversos
Para concluir, histórias e memórias, instituições, saberes e discursos, micro e macropolíticas, normas sexuais, programas culturais de gênero, autodeterminação e autoexpressão, demandas e direitos, opressões e hierarquias, vetores de normatização, dotações e cristalizações de sentido, possibilidades epistêmicas, intervenções corporais, potencialidades, afetos e encontros, negociações, jogos, subversões, fraturas, desestabilizações e contracondutas compõem o quadro de desafios e de objetivos desse dossiê sobre o colorido, plural e potente universo LGBTTQI, que ousa expandir e intensificar a vida.
Nota
- Páginas @raphaelelias @arterio.arteiro
Referências
FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática de liberdade.” In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.) Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
______________. História da Sexualidade 2; o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
PRECIADO, Beatriz. Entrevista com Beatriz Preciado, por Jesús Carrillo. 2004. Disponível em: http: / / www.poiesis.uff.br / PDF / poiesis15 / Poiesis_15_EntrevistaBeatriz.pdf. Acesso em 05 de setembro de 2017.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade, poder, globalização e democracia.” Novos Rumos, 37, 2002, p. 4-28.
Fábio Henrique Lopes
Marina Vieira de Carvalho
Ana Cristina Santos
Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2018.
LOPES, Fábio Henrique; CARVALHO, Marina Vieira de; SANTOS, Ana Cristina. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.14, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Reducciones: la concentración forzada de las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú – SAITO et. al. (tempo)
SAITO, Akira; LAURO, Claudia Rosas. Reducciones: la concentración forzada de las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú. Lima: Fondo Editorial Pontificia Universidad Católica del Perú, 2017. 682 p.p. (Colección Estudios Andinos). Resenha de: IBÁNEZ-BONILLO, Pablo. Reduções: experiências de aldeamento indígena no Vice-Reino do Peru. Tempo, v.24 no.3, Niterói set./dez. 2018.
Em 1569, a coroa castelhana empreendeu uma empresa sem precedentes na história do colonialismo europeu: repentinamente forçou toda uma sociedade conquistada a mudar sua forma de vida.” Com essas palavras, inicia-se a contribuição de Jeremy Ravi Mumford no trabalho coletivo que Akira Saito e Claudia Rosas Lauro editaram sob o título Reducciones. La concentración forzada en las poblaciones indígenas en el Virreinato del Perú.
O texto de Mumford analisa a política de reduções ordenada pelo vice-rei Francisco de Toledo no Peru e no Alto Peru entre 1569 e 1575. Como os próprios editores indicam na introdução, apesar da importância desse projeto de concentração das populações indígenas, são poucos os trabalhos dedicados até o momento a realizar um balanço geral. O volume resenhado tenta compensar esse vazio historiográfico com a contribuição de dez especialistas sobre as reduções toledanas.
Não é esse, porém, o único aporte do livro, já que também incorpora ao diálogo as missões jesuíticas estabelecidas nas fronteiras do Vice-Reino do Peru. A historiografia ainda não tem explorado em profundidade as conexões entre as reduções toledanas e as missões religiosas, mesmo sendo os dois projetos produto de uma mesma estratégia colonial pelo confinamento dos ameríndios. A inclusão de cinco textos sobre as missões jesuíticas facilita o diálogo no volume.
O conjunto de textos é organizado em oito capítulos. No capítulo inicial, Mumford e Luis Miguel Glave apresentam as linhas mestras do projeto do vice-rei Toledo. Os outros sete capítulos são dedicados a distintas regiões do Vice-Reino do Peru – desde Lima (capítulo 2) até as terras fronteiriças da Amazônia (capítulo 6), passando pela costa norte, pela serra (capítulos 3-5), pelo Paraguai e pelo Chile (capítulos 7-8). Os editores escolheram essa abordagem geográfica, como explicam na introdução, para não limitar as possíveis comparações e conexões temáticas que o leitor venha a estabelecer.
Na mesma introdução, indica-se que um dos objetivos do trabalho é “clarificar a formação e o desenvolvimento das reduções sobre o terreno”. Assim, editores e autores pretendem tomar distância em relação às abordagens tradicionais, que têm priorizado o plano ideal das reduções e seu desenho metropolitano. Em lugar disso, os autores convidados a participar desta coletânea focam na execução dos projetos de aldeamento e no funcionamento cotidiano de reduções toledanas e missões jesuíticas.
Essa aproximação enfatiza a importância do protagonismo dos diversos agentes coloniais, assim como os processos de negociação estabelecidos entre eles. Nessa linha, as populações indígenas são tratadas como um ator histórico proativo, tanto na escolha dos lugares de redução quanto no desenvolvimento dos projetos urbanos. Os diferentes textos dedicam especial atenção a elementos como religião, identidade coletiva, estrutura das chefias ou padrões de movimento das populações nativas.
Os autores consideram essas dinâmicas indígenas um elemento-chave na configuração das reduções, dado que os projetos iniciais tiveram de ser adaptados à realidade local. Mas, longe de oferecerem uma visão essencialista da cultura e da identidade, os diferentes estudos deste volume evidenciam as transformações experimentadas pelas comunidades nativas durante o intenso diálogo com os agentes coloniais. Dessa maneira, missões jesuíticas e reduções são apresentadas como espaços de negociação, superando as visões anteriores de imposição arbitrária.
Neste sentido, a inclusão da palavra forzada no título do livro não faz justiça ao esforço de enfatizar a agência indígena e sua intervenção decisiva na aplicação dos projetos de redução. Do mesmo modo, sente-se falta de um capítulo de síntese sobre as missões jesuíticas, similar ao dedicado a la política toledana, ou a inclusão de outros espaços geográficos, como as regiões de Mainas ou Nueva Granada, que ajudariam a oferecer uma imagem mais completa e poliédrica da realidade do Vice-Reino.
Isso, porém, são detalhes para completar uma análise que já é suficientemente profunda e estimulante. No conjunto, os quinze textos oferecem uma panorâmica geral da aplicação negociada das políticas de redução, mostrando o sucesso (relativo) dos distintos projetos estudados. Embora os historiadores tenham enfatizado o aparente fracasso do projeto reducional, os autores demonstram a profunda marca que missões e reduções deixaram na paisagem. Cada um dos casos, obviamente, oferece itinerários próprios, e cada autor explora perspectivas originais.
No capítulo dedicado a Lima y sus valles, por exemplo, Tetsuya Amino analisa os movimentos das populações indígenas entre suas terras de origem e os bairros aos quais foram reduzidos na capital do Vice-Reino. Amino organiza esses movimentos com base em suas pesquisas sobre um milagre acontecido no cercado de Lima. A oscilação contínua das populações, assim como sua capacidade de obter o reconhecimento colonial de suas reivindicações, é um bom exemplo da tensa negociação do período.
O artigo de Teresa Vergara Ormeño (“Un espacio integrado: Lima y los pueblos de indios de su comarca”) supera os limites da capital para estudar os movimentos entre a cidade e os espaços indígenas dos arredores de Lima.
Os dois artigos sobre a capital peruana oferecem uma visão coerente e complexa da Ciudad de los Reyes (Lima), onde pela primeira vez foram aplicadas as políticas de redução e que, portanto, teve um papel importante como modelo e laboratório para o resto do Vice-Reino.
A seção sobre a Costa Norte inclui o artigo de Parker VanValkenburgh acerca das experiências de redução nos vales de Zaña e Chamán. Esse texto – junto com o posterior, de Steven A. Wernke – é um dos mais inovadores da coletânea pelo seu uso do material arqueológico para a análise das transformações num espaço geográfico que vai além da redução. Assim, o autor combina fontes documentais e materiais a fim de estudar a agência indígena na transformação da paisagem e na aplicação do plano de redução.
Alejandro Diez Hurtado completa a seção com um texto intitulado “De la reducción al pueblo: procesos de conformación de grupos y territorios a raíz de la creación de Catacaos, Sechura y Colán en la costa de Piura (norte del Perú)”. Nele, estuda o longo processo de redução dessas três aldeias, focalizando a análise nas variações demográficas, onomásticas e espaciais. Tais transformações, porém, não conseguem ocultar uma forte continuidade que o autor se esforça em visibilizar. Trata-se, por certo, de uma observação recorrente nos demais estudos deste volume.
A mesma vontade de problematizar a redução como processo social se encontra nas seções posteriores. Em seu texto sobre as reduções em Huaylas, Marina Zuloaga Rada se propõe a entender as múltiplas transformações geradas pela negociação entre os atores locais e as autoridades coloniais. Objetivo semelhante apresenta o texto de Nozomi Mizota, intitulado “Pervivencia y cambios de las reducciones en la región de Huamanga, siglo XVII”.
A seguir, encontram-se dois dos textos mais interessantes do volume. O já mencionado artigo de Wernke combina de novo história e arqueologia em uma bem-sucedida demonstração das possibilidades metodológicas dessa abordagem. Dessa maneira, consegue estudar “La producción y desestabilización del dominio colonial en el proceso reduccional en el Valle del Colca, Perú”. Seu texto ilustra de maneira bem clara as resistências práticas dos indígenas frente às aspirações ideais da dominação colonial.
O texto de S. Elizabeth Penry (“Pleitos coloniales: ‘historizando’ las fuentes sobre pueblos de indígenas en los Andes”) merece especial atenção pela reflexão sobre as fontes documentais e o contexto de sua produção. Trata-se de uma crítica fundamental que aparece de forma latente em outros momentos do livro, mas que é explorada com maior profundidade neste artigo, onde entre outros aspectos se estuda a iniciativa indígena na criação de novas reduções.
Sem transição explícita, o livro passa a estudar, nas seções seguintes, as missões jesuíticas nos espaços periféricos da Amazônia, do Paraguai e do Chile. É possível reconhecer nesses textos muitos dos temas e das ideias que nos artigos anteriores se dedicam às reduções toledanas, comprovando, assim, que o diálogo prévio entre os autores – integrados num projeto de pesquisa de vários anos – tem sido fecundo, e não uma simples troca de perspectivas.
As mesmas preocupações sobre as agências locais e as negociações aparecem, por exemplo, no texto de Roberto Tomichá Charupá. Nele se estudam as políticas de aldeamento em Chiquitos nos séculos XVII e XVIII, usando-se como fonte os padrões de população e a onomástica local. A capacidade dos atores indígenas de adaptar o projeto missionário “a sus propias coordenadas culturales y simbólicas” provocou resultados inesperados e singulares. “De allí que la nueva cultura haya sido tal vez una versión única y creativa del misterio cristiano”.
A organização social das reduções é outro tema recorrente no livro e recebe especial atenção nos estudos sobre as missões, concentrados na parte final do volume. Akira Saito estuda a complexidade das parcialidades indígenas, argumentando que elas não necessariamente existiam em sua forma colonial antes da chegada dos jesuítas, os quais contribuíram para sua criação. A ação dos missionários, contudo, não implicou uma homogeneização cultural dos povos indígenas. Como indica o autor, “cada reducción era una síntesis única formada bajo circunstancias particulares”.
A figura do “cacique” foi uma das que se viram fortemente influenciadas pelos projetos missionários, como demonstra Guillermo Wilde no seu texto “Cacicazgo, territorialidad y memoria en las reducciones jesuíticas del Paraguay”. Wilde estuda o dinamismo sociopolítico das missões a partir do cacicado e sua influência na produção de memórias territoriais. Na mesma linha se situa o estudo de Kazuhisa Takeda, sobre as transformações dos cacicados e os processos etnogenéticos nas missões dos guaranis.
O livro termina com a contribuição de Rodrigo Moreno Jeria sobre a missão jesuítica no arquipélago de Chiloé (Chile), um espaço tão afastado de Lima que o próprio autor se refere a ele como “fim do mundo”. Seu texto é especialmente valioso por ser o único que estuda um fracasso evidente dos missionários, como assinalam os editores, mas também é relevante pela sistematização que oferece das estratégias missionárias usadas em diferentes etapas e regiões do arquipélago.
Em conjunto, o volume resenhado oferece um balanço muito completo que atualiza o estudo das reduções tanto no nível temático quanto metodológico. O leitor interessado no período colonial da América hispânica encontrará neste volume uma excelente plataforma para conhecer os mais recentes aportes sobre a construção negociada do universo colonial. Assim, a maioria dos textos situa o foco sobre as populações indígenas em uma aproximação etno-histórica.
O volume é também relevante para os pesquisadores interessados nos projetos de concentração indígena na América portuguesa. Apesar de não incluir trabalhos sobre essa região, o livro aqui resenhado é uma excelente oportunidade para aprofundar no diálogo entre os dois impérios ibéricos. Não é à toa que as duas Coroas aplicaram uma política similar de reassentamento urbano como meio de controlar e civilizar as populações indígenas – política que alcançou novas conexões durante o período da monarquia ibérica (1580-1640).
Tanto no Brasil quanto, em especial, no Estado de Maranhão e Grão-Pará, essa política se traduziu numa primeira fase de concentração humana nos aldeamentos, onde os indígenas foram instruídos na religião católica e na língua portuguesa, ao mesmo tempo que contribuíram com seu trabalho para o desenvolvimento da sociedade colonial. As principais ordens religiosas tomaram conta desses aldeamentos, não obstante a administração civil também tenha sido uma realidade em determinados momentos.
A historiografia brasileira tem estudado os aldeamentos em várias dimensões, destacando nos últimos anos o estudo da intermediação cultural dos missionários, como nos trabalhos de Paula Montero, Cristina Pompa, Adone Agnolin, Almir Diniz Carvalho ou Karl Arenz. A agência indígena na gestão das relações com o entorno colonial tem sido outro tema central das pesquisas realizadas nos últimos anos, e não resulta difícil imaginar as possibilidades comparativas com base nos trabalhos de John Monteiro, Maria Regina Celestino de Almeida ou Elisa Frühauf Garcia, que apresentou um dossiê sobre as missões na América Ibérica nesta mesma revista (2013). Outro exemplo dos diálogos possíveis entre as experiências missionais das Américas espanhola e portuguesa é a coletânea editada por Guillermo Wilde sob o título Saberes de la conversión. Jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad (2011).
Por outro lado, e para além do marco das missões jesuíticas, a aplicação do Diretório pombalino marcou o início, em meados do século XVIII, de outro projeto de redução que encontra pontos de comparação com as políticas da coroa espanhola no Peru. Nos dois casos, fixou-se uma regulamentação para ordenar o dia a dia das vilas, dirigidas por uma administração que incluía autoridades indígenas e europeias. Mesmo com tempos e dinâmicas próprias, a comparação entre os dois processos parece uma empresa promissora que talvez se anime com o trabalho resenhado.
Referências
GARCIA, Elisa Frühauf (Org.) Dossiê – Missões na América Ibérica: dimensões políticas e religiosas. Revista Tempo, v. 19, n. 35, p. 1-95, jul./dez. 2013. [ Links ]
WILDE, Guillermo (Ed.). Saberes de la conversión: jesuitas, indígenas e imperios coloniales en las fronteras de la cristiandad. Buenos Aires: Editorial SB, 2011. [ Links ]
Pablo Ibáñez-Bonillo – Pós-doutorando na Universidade Federal do Pará (UFPA) – Belém(PA) – Brasil. E-mail: panamsb@hotmail.com.
Ghana on the Go: African Mobility in the Age of Motor Transportation – HART (RBH)
A principal contribuição de Ghana on the Go é abordar a questão da mobilidade social na África colonial focalizando uma variável explicativa pouco intuitiva: o advento do transporte motorizado na Costa do Ouro (atual Gana) na década de 1910. O livro mostra que mesmo os africanos mais pobres eram capazes de identificar, nas brechas do regime colonial, formas de empreender, o que contradiz a interpretação de boa parte da literatura sobre o tema, a qual explícita ou implicitamente assume uma inadequação das populações nativas africanas ao desenvolvimento de ideias e técnicas vindas de fora. Ao abordar a questão dessa perspectiva, o livro amplia a discussão sobre mobilidade social, incluindo aspectos que vão além da maior mobilidade física propiciada pelos veículos a motor, como o impacto da nova tecnologia na configuração de valores, experiências e oportunidades criados no cotidiano. Leia Mais
Pessoas comuns, histórias incríveis: a construção da liberdade na sociedade sul-rio-grandense – SILVA (RBH)
O Brasil não sofre de falta de passado, talvez ele conviva com um excesso de passado. A questão que se coloca não é a ausência de uma noção do passado nacional, mas sim de qual passado se preserva. Essa ideia foi apresentada por Fernando Nicolazzi na conferência “História e Historiografia em tempos de transição”, oferecida no XVI Encontro Regional de História (Anpuh/Paraná, 2018). O passado que se cultiva no Brasil pode ser pensado nos termos propostos por Manoel Bomfim, ainda na primeira metade do século XX. Bomfim destacou em suas obras como o Brasil incorporava narrativas postas a deturpar sua trajetória histórica, bem como perpetuava um padrão de socialização calcado no parasitismo social (Bomfim, 2005; 2013). Esse passado que se cultiva é, em grande medida, aquele que perpetua as premissas estamentais da sociedade brasileira. Leia Mais
Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde – GOMES (TES)
GOMES, Rogério Miranda. Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 332p. Resenha de: FRANCO, Túlio Batista. A humanização do trabalho em saúde sob análise. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.16, n.3, set./dez. 2018.
Humanização, desumanização e o trabalho em saúde, temas do livro de Rogério Miranda Gomes, publicado pela Editora Fiocruz, em 2017, traz um instigante debate sobre o rico e espetacular universo do trabalho e cuidado em saúde. O tema é complexo e pode ser discutido a partir de inúmeras perspectivas. O autor toma para si o desafio de imergir no tema da humanização do trabalho, permeando a questão da alienação e embrenhando-se no que se chama desumanização.
Na revisão bibliográfica que perpassa os temas dos três capítulos iniciais, são chamados autores de diversas abordagens nos campos das ciências da saúde, sociais e humanas. Há nesse contexto uma competente e rica discussão, onde desfilam marxistas, psicanalistas, autores do campo da saúde coletiva de diversos matizes, compondo um amálgama que se fixa no tempo e espaço do estudo. É com esta diversidade que o autor monta sua caixa de ferramentas conceitual, e com ela se lança à conquista do seu objeto, o trabalho em saúde, na perspectiva analítica da humanização e desumanização.
Os muitos autores são tratados na obra como uma rica diversidade, que compõe o cenário e o torna rico, potente, capaz de olhar para a pesquisa e jogar luz sobre os enigmas que guardam o processo de trabalho e sua íntima relação com a humanização na saúde. Logo no início do livro, o autor compartilha questões instigantes: Enfim, o que seria humanizar o trabalho e as práticas em saúde? E o desumanizar, viria de onde? A aparente oposição entre estes dois conceitos é instigante pelo fato de que eles têm a mesma origem, o humano.
Convivemos com a ideia de que ‘humanização’ tem origem no humano, o que a qualifica; mas, ao mesmo tempo, seu contrário, a ‘desumanização’, é também uma produção humana. Ambos são produto e resultado de práticas desenvolvidas pelos trabalhadores da saúde, onde o principal dispositivo é o trabalho para a produção do cuidado. O trabalho é o propulsor desta produção, a energia que proporciona o manejo de instrumentos, conhecimento e as relações, para que, ao final, se tenha como produto o cuidado realizado.
Os conceitos que alimentam a perspectiva teórica do autor nos primeiros capítulos vão sendo esquadrinhados e tecidos ao mesmo tempo em que atravessam o plano concreto do trabalho em saúde, fornecido pelo estudo de campo. O livro é extremamente rico em material empírico, pacientemente produzido e processado por Rogério Miranda, e este conteúdo narrativo está detalhadamente descrito e discutido nos capítulos 4, 5 e 6. Sob diferentes e potentes categorias analíticas, cada fragmento de histórias de vida, ricas em figuras, afetos, cenários, vai merecer um tratamento singular e destacado na discussão proporcionada pelo autor. Usa os referenciais teóricos já suficientemente delineados, e com eles vai cotejando de diálogos, comentários e análises, as ricas narrativas do cotidiano dos trabalhadores, na sua atividade produtiva, nos cenários de práticas em saúde. Aqui a pesquisa ganha textura, cor, forma, a vitalidade necessária, para apresentar de forma direta, o ‘olho no olho’, as alegrias e tristezas do ato de cuidar, trabalhar, conviver, de quem busca, acima de qualquer questão, exercer com presteza o cuidado em saúde.
Por mais que a literatura enriqueça e instrumentalize o autor, o material empírico tem a magia e vitalidade do real, social e afetivo mundo do trabalho e cuidado em saúde. Aqui a realidade é tão forte, complexa, desafiante, e as situações vividas tão singulares, que não há espaço para o instituto da verdade absoluta. Impõe-se a necessidade de aprender com a própria experiência, e assim ser capaz de fazer o “resgate do momento clínico como espaço de criação, de produção de saberes” ( Gomes, 2017 , p. 142). Apenas para ilustrar, vale a pena ler as narrativas dos médicos que emprestam suas experiências para a pesquisa. Textos leves e fortes, como é a realidade na saúde; beleza singular no gesto, e ao mesmo tempo muito vivos. Por exemplo, Marina, infectologista, demonstra toda sua tolerância diante da negativa do usuário em não se tratar. O gesto delicado e gentil de esperar o tempo do paciente: “Eu acho que a pessoa tem que estar pronta para tratar, então eu sou tolerante, eu procuro deixar a pessoa chegar no seu tempo e alguns eu até faço profilaxia para infecção oportunista enquanto resolve se tratava ou não (…)” ( Gomes, 2017 , p. 142).
É com depoimentos fortes assim que o autor segue decifrando o dia a dia do trabalho em saúde, e revela que o cotidiano não é feito apenas do precário, sofrido, carente. Há muita vida pulsando, muita realização e descoberta, que revela o quanto a formação médica continua nos cenários de práticas. Marina tem na sua narrativa a demonstração da potência do cotidiano em produzir uma autoanálise e, ao mesmo tempo, um autoaprendizado. Isso é rico, forte e bonito. Este é o trabalho em saúde.
No capítulo 5, o autor enfrenta o tema das tecnologias de trabalho em saúde, tomando como base analítica as tecnologias de trabalho mediadas pelo trabalhador, o agente, que opera os vários instrumentos no seu processo de trabalho. A questão importante que vem à tona neste debate diz respeito à predominância ou centralidade do trabalho morto, aquele que está inscrito nos instrumentos, que subsume o trabalho vivo, o trabalho no exato momento da sua atividade produtiva ( Merhy, 2002 ; Franco e Merhy, 2013 ). O trabalhador, embora opere um trabalho vivo em ato no seu processo de trabalho, é fortemente capturado pelos instrumentos, a tecnologia dura, representada não apenas pelas máquinas, mas insumos e medicamentos. Este processo acontece por um forte agenciamento do mercado que opera no campo da saúde, e um processo de subjetivação presente entre trabalhadores e usuários, que associam o cuidado ao consumo de exames e fármacos. Neste cotidiano, médicos prescrevem sem necessidade técnica verificada, apenas para suprir a vontade do usuário: “Doutor, eu quero fazer todos os exames que eu tenho direito, tudo!”, conforme narrativa do médico Antônio. ( Gomes, 2017 , p. 194).
Essa dura realidade, difícil de ser enfrentada porque alimentada cotidianamente por dispositivos midiáticos, se repete para os medicamentos. Diversos meios são utilizados na sua apresentação, formulação de versões similares, propaganda, para aumentar consumo e margens de lucro dos fornecedores. Todas estas questões que habitam o mundo do trabalho, e muitas vezes não são visíveis, vêm à luz neste livro, e ganham força com as narrativas que lhes dão mais vida. Rogério Miranda dá visibilidade a estas questões, mostrando o quanto o campo do trabalho e cuidado em saúde é atravessado de muitos interesses, que se materializam em ações práticas, de alta repercussão no cotidiano.
Seguindo na análise empírica da pesquisa, o autor trata do encontro, um conceito importante para a compreensão do trabalho em saúde do ponto de vista da sua micropolítica. Este tema ganha centralidade por óbvio porque todo trabalho em saúde se dá com base no encontro, entre o trabalhador e o usuário, e o cuidado se produz na interseção entre eles. O encontro revela muito sobre a qualidade do cuidado, ele põe em análise a relação entre os envolvidos com o cuidado, o modo de acolher, o sentido que o trabalhador dá ao usuário, o valor à vida, o importar-se com o sofrimento alheio, a abordagem à fragilidade do outro. Situações onde o trabalho é o grande dispositivo do cuidado.
O livro nos revela, sem o citar explicitamente, muitos aspectos da micropolítica do trabalho, especialmente pelas narrativas, a discussão que estas proporcionam, os espaços de escuta, fala, acolhimento, na relação entre os trabalhadores e destes com os usuários.
A pesquisa, ao focar no cotidiano, releva ao mesmo tempo o espaço criativo, já citado aqui, o precário pela queixa dos trabalhadores: a falta de tempo, o trabalho apressado, a fila. “O vínculo pessoal, aquele vínculo amistoso, quase que de família, esse já desapareceu. Ainda peguei boa parte, um tempo dessa prática, que hoje praticamente desapareceu”, nos diz Luiz, clínico geral ( Gomes, 2017 , p. 230). A narrativa soa até saudosista, impressiona pela vontade de que fosse diferente, mas há uma resignação à realidade que se impõe, como a formação acadêmica, e o processo de trabalho excessivamente prescritivo, produtivista.
À boa análise e extrema riqueza de narrativas que ilustram as discussões que são mantidas no livro, o autor nas suas considerações finais se autoriza a reflexões das quais é possível extrair consequências diretas do estudo realizado. Em seis itens que propõem diretrizes para a organização dos serviços de saúde e processos de trabalho, são ofertadas possibilidades aos gestores, estudiosos, trabalhadores, para suas reflexões e ações.
Humanização e Desumanização no Trabalho em Saúde , de Rogério Miranda Gomes, é uma obra completa, com princípio, meio e fim, sustentada por volumoso e substancial referencial teórico, enriquecida por narrativas, tem a vocação de vida longa, e é uma boa referência aos estudiosos, e aos que trabalham efetivamente em serviços de saúde.
Referências
FRANCO , Túlio B. ; Merhy , Emerson E. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde . São Paulo : Hucitec , 2013 . [ Links ]
GOMES , Rogério M. Humanização e desumanização no trabalho em saúde . Rio de Janeiro : Editora Fiocruz , 2017 . [ Links ]
MERHY , Emerson E. Saúde: cartografia do trabalho vivo . São Paulo : Hucitec , 2002 . [ Links ]
Túlio Batista Franco – Universidade Federal Fluminense , Instituto de Saúde da Comunidade , Centro de Ciências Médicas , Niterói , Rio de Janeiro , RJ. E-mail: tuliofranco@gmail.com Brasil
[MLPDB]Estado da arte da arquivologia no Brasil 1/Acervo/2018
O Arquivo Nacional está celebrando 180 anos e por isso lança esta edição comemorativa da revista Acervo dedicada ao tema “Estado da arte da arquivologia no Brasil”. Leia Mais
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.179, n.478 set./dez. 2018.
Carta ao Leitor
I – DOSSIÊ
- DOSSIER
- IHGB: 180 anos
- História, memória e tempo presente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oitocentista
- History, memory and present time in the Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro of the nineteen century
- Isadora Tavares Maleval
- A escrita da história política e cultural a partir do arquivo do Senador Nabuco
- The writing of the political and cultural history from Senator Nabuco’s archive
- Beatriz Piva Momesso
- As instituições e suas sombras
- The institutions and their shadows
- Arno Wehling
II – ARTIGOS E ENSAIOS
- ARTICLES AND ESSAYS
- Restauração portuguesa: Justiça Tributária para “conservar o recuperado” no discurso político-jurídico de Antonio Vieira, S. J. – Sermão de Santo Antônio – 1642
- Portuguese restoration: Tax Justice to “preserve the recovered” in the political – legal discourse of Antonio Vieira, S. J. – Sermon of St. Anthony – 1642
- Antônio Celso Alves Pereira
- Aproximações da emigração galega no Rio de Janeiro e em Buenos Aires por meio do estudo comparado. Historiografia e associativismo étnico na Grande Imigração
- Approaches to Galician emigration in Rio de Janeiro and Buenos Aires through comparative study. Ethnic historiography and associativism in the First Immigration
- Érica Sarmiento
- Memória e Resistência Quilombola na Ilha do Marajó, Pará
- Memory and Quilombola Resistance on the Island of Marajó, Pará
- Luis Fernando Cardoso e Cardoso
- Petrônio Medeiros Lima Filho
- Flávio Leonel Abreu da Silveira
- Humanidades inumanas: dinâmicas e persistências históricas em torno do cárcere no Brasil
- Inumane humanities: dynamics and historical persistences about prisons in Brazil
- Bruno Rotta Almeida
III – COMUNICAÇÕES
- NOTIFICATIONS
- Antonio de Morais Silva (1-8-1755 – 11-4-1824)
- Antônio de Morais Silva (1-8-1755 – 11-4-1824)
- Evanildo Bechara
IV – DOCUMENTOS
- DOCUMENTS
- O Catálogo das medalhas brasileiras e estrangeiras referentes ao Brasil da Viscondessa de Cavalcanti
- The Viscountess of Cavalcanti’s catalogue of brazilian and foreign medals referring to Brazil
- Vera Lucia Cabana de Queiroz Andrade
V – RESENHAS
- REVIEW ESSAYS
- Contribuições para a história do IHGB: entrevistas concedidas a Rogério Faria Tavares Márcia Maria Cruz
- Normas de publicação
- Guide for the authors
Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (VH)
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. 589 p. GONÇALVES, Leandro Pereira. Marcello Caetano, uma biografia dos trópicos. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.
“Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim”
(Chico Buarque, “Tanto Mar”, versão I, 1974)
Os versos da canção de Chico Buarque, Tanto mar, foram entoados e intensificados, criando uma unidade entre Brasil e Portugal a partir dos desdobramentos de 25 de abril de 1974, quando, com a Revolução dos Cravos, ocorreu o processo de consolidação da democracia e a derrocada do Estado Novo português. Esse momento marcou o deslocamento para o exílio do último representante do regime, Marcello Caetano, que inspirado ou não em Chico, expressou: “mas entre nós está tanto mar…”, ao referenciar a nova vida na Cidade Maravilhosa, onde permaneceu até sua morte, em 1980.
A relação entre os dois países não é ocasional, não apenas com Chico Buarque ou mesmo Marcello Caetano, mas também com Francisco Carlos Palomanes Martinho, autor da mais recente biografia do líder português. O professor luso-brasileiro, que é livre-docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, autor de diversos estudos sobre Portugal Contemporâneo,1 desenvolve uma reflexão sobre a vida de Marcello Caetano em vários níveis, abordando o sentido do personagem em sua totalidade, desde aspectos do cotidiano, do âmbito privado e familiar, até momentos de sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Além disso, traz informações sobre o exílio, fase de grande contribuição historiográfica, pois o autor utiliza uma série de documentos que os colegas investigadores portugueses não alcançaram em outros trabalhos, devido ao depósito em acervos brasileiros. Há de ressaltar a quantidade significativa de materiais coletados em arquivos portugueses, estabelecendo, portanto, uma produção empírica sólida e de relevância.
O prefácio, escrito por António Costa Pinto – que ao lado de Angela de Castro Gomes, representam as principais influências historiográficas do autor -, mapeia a obra como a terceira “grande biografia” de Caetano publicada em poucos anos, expressando a relevância da investigação. Talvez o único ponto possível de reflexão mais aprofundada sejam as ausências das biografias antecessoras como elementos analíticos, mas há a compreensão do autor em optar por não utilizá-las, buscando uma interpretação sem balizas anteriores.2
A biografia, um gênero cada vez mais abordado na academia, é cercada de aspectos metodológicos e teóricos que o autor não se furtou quando analisou e refletiu de forma conceitual elementos centrados sobre a memória do personagem, ainda mais em torno de um líder que teve a “ingrata” missão de ser o “número dois” da ditadura, sucedendo a liderança consolidada em torno da imagem de António de Oliveira Salazar.
Marcello Caetano foi político, professor de Direito e o último presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, entre 1968 e 1974. Na área acadêmica, atuou na Universidade de Lisboa, tendo uma carreira docente de extrema relevância para a consolidação das doutrinas corporativistas na História do Direito. Na juventude, foi militante do movimento monárquico, fazendo parte do Integralismo Lusitano. Nos anos 1930, foi uma das peças-chave do regime salazarista no âmbito do Estado Novo, inclusive participando da redação da Constituição de 1933. Apesar de divergências políticas com Salazar, devido ao caráter reformista de suas propostas, manteve-se ativo no governo, o que contribuiu para a sua ascensão em 1968, momento em que António de Oliveira Salazar foi afastado por motivo de doença. Um governo reformista em um contexto de instabilidade gerou a derrubada do Estado Novo e do governo de Marcello Caetano com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, sendo exilado no Brasil, onde se adaptou bem na sociedade e desenvolveu atividades acadêmicas na Universidade Gama Filho, ocupando o cargo de diretor. Mesmo não tendo uma ação ativa na política, Caetano vivia em um país autoritário, ou seja, um espaço propício para o desenvolvimento de seus pensamentos e suas práticas políticas e intelectuais.
Um dos aspectos de maior relevância da produção de Francisco Martinho é a destreza do autor em criar um texto acadêmico que, ao mesmo tempo, fosse compatível com o grande público, não perdendo conceitos e equilibrando elementos aos leitores dos dois países. Com o impacto editorial, a biografia ganhou uma versão em língua inglesa e brevemente estará circulando na terra do exílio de Marcello Caetano (Martinho, 2018).
A obra é composta de uma produção linear da vida do líder português, contribuindo para o entendimento dos vários aspectos do biografado, principalmente em relação a um elemento de extrema relevância: o uso intelectual e acadêmico com uma finalidade política, demonstrando que a vida de Caetano não está restringida ao período de 1968 a 1974, momento que esteve na Presidência do Conselho de Ministros.
A biografia é composta por dez capítulos, e após o primeiro capítulo memorialístico sobre o Estado Novo, o autor dedica reflexões em relação ao contexto privado, focando a formação de Marcello Caetano, que nasceu em Lisboa no dia 17 de agosto de 1906 e presenciou todas as transformações políticas do século XX, sendo, desde jovem, quando estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, militante católico, monárquico e democrata-cristão conservador.
O livro segue uma estrutura cronológica, tendo o eixo político como base central a relação analítica. O terceiro capítulo apresenta a maturidade do biografado, quando assumiu a Mocidade Portuguesa, assunto do quarto capítulo. Devido às divergências entre Salazar e Caetano, o líder português o nomeia ministro das Colônias, período abordado no quinto capítulo. O capítulo sexto tem como ponto central o retorno de Marcello Caetano para o interior do Estado Novo, quando assumiu a Comissão Executiva da União Nacional e a Presidência da Câmara Corporativa, alcançando assim notório reconhecimento político. Sem abandonar suas atividades acadêmicas e intelectuais, conforme mostra o capítulo sete, quando assume a reitoria da Universidade de Lisboa, Caetano se destaca na política nacional com cargos no Executivo do Estado Novo, o que o faz assumir a função de ser o sucessor de Salazar, como exposto no capítulo oito. Com grandes dificuldades de dar sequência ao governo anterior, a queda do marcellismo com todas suas repercussões é o tema do capítulo nove. O exílio no Brasil é apresentado no último capítulo para concluir essa importante obra biográfica.
Trata-se de um líder político de expressão do século XX com características peculiares em torno de uma ótica católica e corporativista que passou a ser um dos braços centrais do Estado Novo, sendo um homem do Estado que possuía uma via acadêmica ativa com uma rede de intelectuais, o que propiciou uma vida (não muito intensa) no Brasil, mas que encontrou nos trópicos, no contexto ditatorial, um porto seguro para os últimos anos de sua vida.
1 MARTINHO, 2002; MARTINHO; COSTA PINTO, 2007; MARTINHO; COSTA PINTO, 2016.
2Refere-se aos estudos de: CASTILHO, 2012; LEITÃO, 2014.
Referências
CASTILHO, José Manuel Tavares. Marcello Caetano – uma biografia política. Lisboa: Edições 70, 2012. [ Links ]
LEITÃO, Luís Menezes. Marcello Caetano – um destino. Lisboa: Quetzal, 2014. [ Links ]
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A bem da nação: o sindicalismo português entre a tradição e a modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. [ Links ]
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano and the Portuguese “New State”. Sussex University Press, 2018. [ Links ]
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). O corporativismo em português: Estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. [ Links ]
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). A onda corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. [ Links ]
Leandro Pereira Gonçalves – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Rua José Lourenço Kelmer, Juiz de Fora, MG, 36.036-330, Brasil. leandropgoncalves@gmail.com.
Birders of Africa: History of a Network – JACOBS (VH)
JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University Press, 2016. 325 p. VELDEN, Felipe Ferreira Vander. História através dos pássaros. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.
Desde que Robert Delort, aliando a leitura de fontes históricas variadas com os conhecimentos da zoologia, declarou, em 1984, que “os animais têm uma história”, a assim chamada História Ambiental vem paulatinamente deixando sua preocupação clássica com a constituição de paisagens (Cronon, 1983; Schama, 1996) e passando mais e mais a se interessar pelos animais como produtores de história. “History is not just for people anymore”, declara Nancy Jacobs (Jacobs, 2016, p.8) nesta sua incursão pelas trajetórias das relações entre povos e pássaros no continente africano. Retomando a célebre assertiva do antropólogo Claude Lévi-Strauss, Jacobs sustenta que os pássaros são bons para pensar; neste caso, para pensar a história da África e das relações entre populações africanas e estrangeiros, negros e brancos, nas complexas articulações entre ciência, conhecimento local, política e poder, colonialismo e descolonização, raça, nação, trabalho, honra, hierarquia e desigualdade, colaboração e violência. A história da África pode ser escrita, assim, da perspectiva de sua rica avifauna ou, mais precisamente, das milenares interações entre humanos e aves naquele continente, captadas por meio na análise do conhecimento historicamente produzido pelas pessoas sobre os pássaros em solo africano.
É fato que, apesar da centralidade da África na história da América portuguesa e do Brasil, conhecemos pouco do que se passa e do que se passou do outro lado do Atlântico. E, se começamos a saber mais das histórias e das culturas na África subsaariana em distintas disciplinas acadêmicas no país, a natureza africana – e, sobretudo, as relações entre grupos humanos e seres naturais – ainda chega até nós basicamente por meio de imagens estereotipadas e espetacularizadas dos safaris, cujo efeito principal está justamente no apagamento da diversidade e da historicidade das relações entre humanos e não humanos ali (Igoe, 2017). A África, megadiversa em culturas, é também exuberante em pássaros (menos conhecidos do público do que seus icônicos mamíferos), que Jacobs busca historicizar por meio da atenção às atividades dos agentes que ela chama de birders, que traduzimos como “passarinheiros” – todos aqueles que, na história do continente, se interessaram em se aproximar das e seguir as aves, por razões variadas, vernaculares, ornitológicas e recreacionais (Jacobs, 2016, p.9). Descortinar a rede (network) que conecta estes birders aos pássaros e demais agentes não humanos na história antiga e recente da África constitui o objetivo primordial do livro.
Em oito capítulos, divididos em duas partes (a primeira, de caráter mais estrutural, focalizando o período anterior à colonização até o século XIX; a segunda, com foco em trajetórias individuais, centrada na consolidação hegemônica da ornitologia científica no século XX e na emergência do birdwatching como fenômeno global), a autora nos traz uma detalhada análise da África e suas muitas assimetrias – entre negros e brancos, colônia e império, ciência e conhecimento nativo. Mais do que apostar, contudo, numa pétrea oposição entre esses termos, Jacobs argumenta que a história da produção de conhecimento sobre a África é muito mais uma história de colaboração e interpenetração do que uma de (simples) exclusão. Sem negar a violência colonial (inclusive na ciência, fortemente racializada), o livro sugere que o estudo dos saberes sobre as aves africanas pensados como modalidades de cooperação entre conhecimentos, práticas e técnicas africanas e estrangeiras (europeias e norte-americanas) é a forma mais acurada para conhecermos um pouco da trajetória de gente comum que, na África ao sul do Saara (e, com especial foco, nas suas partes meridional e oriental anglófonas), esteve envolvida, de muitas maneiras, com as ricas faunas ornitológicas locais e seu estudo. A metodologia empregada é heteróclita – variando entre arquivos históricos, diários de viajantes, coleções museológicas, textos de estudantes, obras de arte, memórias e entrevistas com “passarinheiros” (profissionais e amadores) africanos – porque apenas assim, defende Jacobs, pode-se escrever a história desses sujeitos menores para os quais as elites olharam, mas sobre os quais pouco escreveram com profundidade (Jacobs, 2016, p.22-23).
Não se trata, o livro, de uma história (natural) ornitológica africana, nem tampouco de uma história da ornitologia em África, do conhecimento a respeito dos pássaros. Poder-se-ia definir a obra de Jacobs como uma reflexão sobre a história da relação entre humanos e aves naquele continente, uma história da história da ornitologia desenvolvida por lá. História que, coordenada desde o século XVI pelo império, narra a trajetória de consolidação da ciência, com o paulatino apagamento dos saberes vernaculares sobre as aves e a crescente hierarquização (sobretudo racializada) dos saberes. Traços desses conhecedores e conhecimentos originais africanos (e dos eventos que os colocaram diante de saberes e poderes europeus), evidentemente, permanecem nas espécies e nos espécimes – muitos nos seus nomes e nos “inert envelop[s] emptied of the living bird” (Jacobs, 2016, p.97). Recuperá-los, nos interstícios entre a zoologia moderna e os vernáculos nativos, constitui uma das tarefas da autora – o que ela faz, nos capítulos 5 a 8, reconstruindo as trajetórias individuais de “passarinheiros” africanos, alguns dos quais tiveram papel crucial no desenvolvimento da ornitologia naquele continente.
Este livro de Nancy Jacobs, assim, constitui-se, por sua novidade e tratamento refinado da temática, em excelente umbral de acesso a todos os interessados na história ambiental em geral, e na história das relações (majoritariamente assimétricas) entre humanos (negros e brancos, cientistas e assistentes) e não humanos (aves) em particular, na África sub-saariana e na ciência. Sua análise, fundada na ideia de acessar a história – do nível estrutural às histórias de vida pessoais – a partir das aves (e das relações entre distintos grupos humanos e a avifauna), permite compreender muito das redes que conectaram a África ao resto do mundo, e produzir algo como uma história africana do ponto de vista das associações nacionais, regionais ou locais com os pássaros. Deve agradar – por sua discussão pormenorizada do que seriam, a primeira vista, questões historiográficas menores – também àqueles que desejam aprofundar-se na micro-história africana, sejam especialistas (nas ciências sociais e nas ciências biológicas), seja o leitor comum – “passarinheiro” ou não – disposto a conhecer mais sobre as savanas e florestas que, densas em pássaros (2355 espécies), nos observam na margem oposta do oceano (Jacobs, 2016, p.239).
Referências
CRONON, William. Changes in the Land: Indians, Colonists, and the Ecology of New England. New York: Hill & Wang, 1983. [ Links ]
DELORT, Robert. Les animaux ont une histoire. Paris: Seuil, 1984. [ Links ]
IGOE, Jim. The Nature of Spectacle: on Images, Money, and Conserving Capitalism. Tucson: The University of Arizona Press, 2017. [ Links ]
JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University Press, 2016. [ Links ]
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. [ Links ]
Felipe Ferreira Vander Velden – Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Ciências Sociais, Via Washington Luís, Km 235, São Carlos, SP, 13.565-905, Brasil. felipevelden@yahoo.com.br.
Ars. São Paulo, v.16, n.33, 2018.
EDITORIAL
ENSAIOS VISUAIS
- A Longa Noite
- Lucia Koch
ARTIGOS
- Anotações e dilemas de um curador no Brasil
- Felipe Scovino
- O beijo de Judas de Cinthia Marcelle – algumas considerações sobre a montagem de ‘The family in disorder: truth or dare’, exposição da artista no Modern Art Oxford
- Patrícia Mourão
- Vantagens do caos brasileiro: o Brasil que Oswald de Andrade descobriu em Paris
- Thiago Gil de Oliveira Virava
- Notations in passing – uma tese visual por Nathan Lyons
- Inês Pereira Coelho Bonduki
- Entre ideal e real: estética e política no último quadro de Jacques Louis David – uma leitura benjaminiana
- Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado
- A exposição “Artistas da URSS dos últimos 15 anos” e o combate aos ‘formalistas’
- Thyago Marão Villela
- Revolução visual da arte de Eisenstein em Ivan, o Terrível
- Atilio Avancini, Fernanda Riscali
- Janelas sem horizonte: uma análise iconográfica da Anunciação no cinema
- Pedro de Andrade Lima Faissol
- Diante da catástrofe. Imagem em movimento, imagem-apagamento e cemitério marinho
- Lucia Ramos Monteiro
- Dispositivos de visibilidade & máquinas de programar. Imagens biomédicas na arte contemporânea: Juana Gómez e Laura Ferguson
- Regilene Sarzi Ribeiro
TRADUÇÕES
- Potências do falso
- Eric Baudelaire, Lucas Vieira Eskinazi, Nina Guedes
PUBLICADO: 2018-08-27
Contextos – Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales. Santiago, n.41 (2018): Edición Especial 20 años de Contextos
Número especial dedicado a temas de Innovación educativa desde la perspectiva tecnológica. 2018.
Presentación
- Presentación
- Carmen Balart Carmona
- Artículos
- Una mirada histórica del impacto de las TIC en la sociedad del conocimiento en el contexto nacional actual
- Carmen Balart Carmona, Silvia Cortés Fuentealba
- Contexto contemporáneo de la dimensión del espacio con la innovación tecnológica: el aprendizaje ubicuo
- Jorge Joo Nagata
- Impacto del uso de TIC en el desarrollo de habilidades de redacción en el idioma inglés como lengua extranjera
- Mauro Ramos Roa, Diego Cabezas Bravo, Luz Díaz Silva, Savka Sepúlveda Espinoza
- Gamificación de espacios virtuales de aprendizaje
- David Eduardo Reyes Jofré
- Concepto de cuerpo directivo e-competente y liderazgo en procesos de integración TIC en la gestión de instituciones educativas
- Yocsy Jiménez González
- El portafolio digital como estrategia pedagógica: carrera Licenciatura en Educación con mención en Alemán y Pedagogía en Alemán
- Luz Cox Méndez
- Educación para el sujeto del siglo XXI: principales características del enfoque STEAM desde la mirada educacional
- Tomás Zamorano Escalona, Yonnhatan García Cartagena, David Reyes González
- Los entornos personales de aprendizaje en el marco de la integración curricular de TIC a los procesos de aprendizaje
- Malcolm Álvarez Toro
- Uso de Tecnologías de Información y Comunicación (TIC) en inclusión escolar de estudiantes con Trastornos del Espectro Autista (TEA)
- María Eugenia Hernández Vásquez, María Eugenia Sosa Hernández
- Del texto al hipertexto, del discurso al discurso multimodal: una mirada desde la cibercultura
- Teresa Ayala Pérez
Notas
- Breve nota bibliográfica sobre TIC
- Bruno Contreras Araya
Reseñas
- Disruptive Classroom Technologies: A Framework for Innovation in Education
- Bruno Peralta González
Publicado: 2018-08-22
Contextos – Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales. Santiago, n.40, 2018.
Artículos
- La sangre y la pluma: corresponsales y cronistas de guerra chilenos
- Jaime Galgani Muñoz
- Espacios de uso publico: una nueva realidad sociogeografica de marginalidad territorial en la periferia barrial
- Joan Manuel Naranjo
- Política y tragedia en Esquilo: del ΠóΛεµοζ a la Δ¡κη
- Rodrigo A. Carrasco P.
- Proteccion medioambiental: material didactico virtual para su aprendizaje
- Sebastián Pascal Cortés Gianelli
- Rol de la mujer en un sistema de fabrica con villa obrera: la industria del cemento en Argentina (1940-1970)
- Griselda Lemiez
- Mito e historia: una revision filosofica e historiografica del concepto de mito para el estudio de la Grecia arcaica
- Alejandro González Ríos
- Contraste entre pretérito imperfecto y pretérito perfecto simple o indefinido en ele
- Bárbara Cáceres Riquelme
- La construcción de un enfoque para el desarrollo de la comprensión lectora en la formación inicial docente
- Vidal Basoalto Campos
- Poesía y fenomenología. Aproximaciones metódicas y de contenido: el ejercicio poético y la Fenomenología
- Graciela Maturo
Notas
- Cuentacuentos, recurso didáctico para desarrollar la expresión oral en estudiantes de primer año de Kinesiología en Universidad Arturo Prat
- Raúl Araya Becerra
Publicado: 2018-08-20
Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.18, n.2, 2018.
Artigos Gerais
- A importância do desenho instrucional para o sucesso de cursos online: uma revisão sistemática
- Karen Schmidt Lotthammer, Juarez Bento da Silva, Hélio Aisenberg Ferenhof
- A mediação da aprendizagem na educação permanente em saúde:análise da sua capacidade de problematizar
- Giovanna Santana Queiroz, Maria Ligia Rangel Santos
- A Universidade Aberta do Brasil e anova legislação que trata da educação a distância
- Ivanderson Pereira da Silva
- Aprendizagem móvel: percepções quanto à utilização por docentes da educação profissional e tecnológica
- Priscila Cabreira de Freitas, Nemésio Freitas Duarte Filho
- Educação a distância e democratização do ensino superior: discussão à luz do pensamento de Dewey
- Wanderson Gomes de Souza, Celso Augusto dos Santos Gomes, Simone de Paula Teodoro Moreira, Alessandro Messias Moreira
- Educação, ética e sustentabilidade no fortalecimento à cidadania ambiental
- Laysa da Hora Santos, Rosana de Oliveira Santos Batista
- Inclusão educacional e a educação a distância como objeto de legislação educacional
- Suellen Silva dos Santos de Souza, Edicléa Mascarenhas Fernandes, Glauca Torres Aragon
- Iniciação científica a distância:o WhatsApp como ferramenta para mediação
- Eliza Adriana Sheuer Nantes, Antonio Lemes Guerra Junior, Juliana Fogaça Sanches Simm, Maria Gorett Freire Vitiello
- Inovação no ensino de ciências biológicas: uma autoetnografia
- Marcos Felipe Gonçalves Maia, Etiene Etiene Fabbrin Pires Oliveira
- Interculturalidade e a formação de professores: reflexões a partir dos documentos que orientam as políticas públicas de ensino para a formação de professores da Educação Básica
- Gabriele de Sousa Lins Mutti, Cleonice Marçal, Maria Laura de Oliveira Machado
- Metodologias inovadoras no ensino da bioética para o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas
- Marta Luciane Fischer, Thiago Rocha Cunha, Ana Maria Moser, Ana Laura Furlan Diniz
- O design instrucional aplicado a infográficos em atividade educacional multimídia no Ensino Superior
- Graziela Frainer Knoll, Reinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi
- Relato de experiência: a pedagogia do surf na educação básica
- Larissa Mamede Araújo, Victor Alexandre Ferreira e Silva, Natália Cristina de Oliveira
- Un enfoque basado en Kinect para mejorar la experiencia de aprendizaje de los estudiantes
- Guillermo Horacio Rodriguez, Álvaro Soria, Luis Berdún, Fabio Gomes Rocha
- PDF (Español (España))
Publicado: 2018-08-14
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Aracaju, v.1, n.48, 2018.
Dossiê Os arquivos e a produção do conhecimento histórico
Expediente/Ficha Catalográfica/Sumário
Editorial
Apresentação Volume 1
- Apresentação: Dossiê: Os arquivos e a produção do conhecimento histórico
- Lorena de Oliveira Souza Campello, Marcia Cristina de Carvalho Pazin Vitoriano
Dossiê
- Historiadores e arquivistas: um diálogo possível
- Ana Maria de Almeida Camargo
- A reorganização do arquivo público e a produção historiográfica sergipana
- Terezinha Alves Oliva
- O poder da ancestralidade, a ancestralidade do poder: a história, os políticos e seus arquivos
- Miguel Soares Palmeira
- Dos meandros da administração aos bastidores da sala de aula: apontamentos sobre o potencial dos arquivos institucionais e pessoais para o estudo da história das universidades
- José Francisco Guelfi Campos
- Preservação e organização documental: O Centro de Pesquisa Documentação e Memória do Colégio de Aplicação – Cemdap
- Joaquim Tavares Conceição, Maria Magna Correia Menezes Nogueira
- Fazendo etnografia no arquivo: desafios e possibilidades
- Márcio Douglas de Carvalho e Silva
- Arquivo de Epifânio Dória, índice estratificado e possibilidades de pesquisa
- Lorena de Oliveira Souza Campello
Artigos Volume 1
- Família e Poder na Comarca de Aracaju: a trajetória dos Guerra Fontes (1855-1889)
- Bruna Morrana dos Santos
- Cotidiano escravo em Sergipe oitocentista na Revista do IHGSE
- Sura Souza Carmo
- A Grande festa do centenário da independência de Sergipe
- Renaldo Ribeiro Rocha
Resenhas
- Sei muito o que é a vida”: a biografia de Leandro Maciel
- Samuel Albuquerque
- Publicação Completa
Publicado: 2018-08-08
Revista de Literatura, História e Memória. Cascavel, v.14 n. 23, 2018.
PÁGINAS INICIAIS
- Informações sobre a Revista
- Comissão Editorial
- Apresentação
- Revista de Literatura, História e Memória. Cascavel, v.14, n.23, 2018.
DOSSIÊ CONFLUÊNCIAS ENTRE LITERATURA, CULTURA E OUTROS CAMPOS DO SABER
- EL SINDROME DE LAS NUEVE TROYAS
- María Rosa Lojo
- MEMORIA FAMILIAR, HISTORIA Y FICCIÓN EN ÁRBOL DE FAMILIA DE MARÍA ROSA LOJO
- María del Carmen Taccon
- ESCRITAS DE SI – SOBRE ALTERIDADES E MEDIAÇÕES
- Diana Araujo Pereira
- OPERAÇÃO SÍSIFO: PEDRAS E PÉROLAS NA FORMAÇÃO DE LEITORES
- Marta Morais da Costa
- LITERATURA ENTRE DESLOCAMENTOS E FRONTEIRAS: MEDIANDO VOZES
- Alai Garcia Diniz
- LITERATURA E REGIÃO CULTURAL EM CONTEXTO DE FRONTEIRA
- Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
PESQUISA EM LETRAS NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO E LITERATURA, ENSINO E CULTURA
- EL SILENCIO DE LOS PERSONAJES ANÓNIMOS, EN Y MATARAZO NO LLAMÓ…, DE ELENA GARRO
- Sunhee Park
- HISTÓRIA E ROMANTISMO FRENÉTICO EM MADAME PUTIPHAR (1839), DE PÉTRUS BOREL
- Fernanda Almeida Lima
- PALAVRAS PROIBIDAS: UMA LEITURA DE “O INCOMPREENDIDO” DE CARRY VAN BRUGGEN
- Alecrides Jahne Raquel Castelo Branco de Senna
- LUIZA AMÉLIA DE QUEIROZ O FEMINISMO EM POESIAS NO PIAUÍ NO SÉCULO XIX
- Janaina Cavalcante Correia
- ENTRE O REAL E O FICCIONAL: TRAÇOS AUTOBIOGRÁFICOS EM MARÍLIA DE DIRCEU
- Wellington Stefaniu
- FICCIONALIZAÇÃO HISTÓRICA-LITERÁRIA NO ROMANCE BOCA DO INFERNO DE ANA MIRANDA
- Thiago Bittencourt
- NADJA, A PITONISA MODERNA: O ENCONTRO SERÁ CONVULSIVO, OU NÃO SERÁ
- Ludmilla Kujat Witzel
- O ANJO DO LAR X FEMME FATALE: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER VITORIANA NA OBRA CARMILLA, DE LE FANU
- Tatiana Souza, Sueder Souza
- A TRADUÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO: UM ESTUDO DE CORPUS PARALELO COM O CONTO “MANUSCRITO ENCONTRADO NUMA GARRAFA” DE EDGAR ALLAN POE
- Patricia Denicolo David Prati
- A CONFIGURAÇÃO DA MULHER E A VERTENTE HUMANA PRESENTE NA POÉTICA DE BALZAC E BAUDELAIRE
- Simone Maria Martins, Silvio Cesar Masquieto
PUBLICADO: 04-08-2018
Revista Brasileira de Aprendizagem Aberta e a distância. São Paulo, v.17, n.1, 2018.
Publicado: 2018-08-02
Artigos Originais
- Contribuições para Preparação do Professor na Educação a Distância
- Elisangela Pavanelo, Myriam krasilchik, José Silvério Edmundo Germano (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Aprendizagem Baseada em Problemas na Educação a Distância e as Influências para Educação em Saúde: Uma Revisão Integrativa
- Versiéri Oliveira de Almeida, Helena Terezinha Hubert Silva, Andrea Wander Bonamigo (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Educação a Distância, Cultura da Convergência e Audiovisualidades: Apontamentos para a Formação de Professores
- Leonardo Nolasco-Silva, Vittorio Lo Bianco, Lia Faria (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Alfabetização Científica e sua Efetivação na Modalidade EaD
- Mariane Freiesleben, Irineu Mario Colombo (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Reconsiderando a Gestão da Educação a Distância a Partir da Análise das Vantagens dos Projetos de Transformação de Negócio por Meio de Processos e Digitalização: Foco nos Desafios e Oportunidades no Cenário Brasileiro
- Andrea Dalforno, Lívia da Silva Modesto Rodrigues (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Educação a Distância: Uma análise da Prática Docente Segundo Pressupostos da Natureza do Conhecimento Científico
- João Debastiani Neto, Valdeni Soliani Franco, Clélia Maria Ignatius Nogueira (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Uso da Rede Social Facebook como Ferramenta de Ensino-aprendizagem em Cursos de Ensino Superior
- Angelo Luís Scherer, Josefa Gomes de Farias (Autor)
- PDF – INGLÊS
- O Ambiente Virtual de Aprendizagem na Educação Básica: Uma Experiência com o EDMODO no Ensino-Aprendizagem de Artes Visuais
- Evaldo Magno Anchieta Pereira, Reinaldo Portal Domingo (Autor)
- Pesquisa-ação na Superação de Dificuldades de Acompanhamento de Curso de Pós-graduação a “Lato Sensu” a Distância por Meio de Apoio da Tutoria
- Ricardo Shitsuka, Dorlivete Moreira Shitsuka, Claudio Boghi (Autor)
Relatos de Experiência
- Análise de Procedimento Teórico-pedagógico Aplicado à Correção de Atividade em Educação a Distância: Estudo de Caso no Curso Técnico em Segurança do Trabalho do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba
- Ana Celecina Lucena da Costa Rangel, Braulio Roberto Rangel da Silva (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Permanência dos Alunos nos Cursos do Consórcio Cederj
- Carlos Eduardo Bielschowsky, Masako Oya Masuda (Autor)
- PDF – INGLÊS
- A Formação e as Práticas Pedagógicas dos Professores que Atuam nos Cursos Técnicos na Modalidade EaD na Rede e-Tec Brasil do CEFET-MG
- Marcia Gorett Ribeiro Grossi, Eliane Silvestre Oliveira (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Avaliação de Políticas Públicas para EaD no Brasil: Tendências nas Pesquisas Científicas (2006-2015)
- Katia Cilene da Silva, Ana Beatriz Gomes Pimenta de Carvalho, Querte Teresinha Conzi Mehlecke (Autor)
- PDF – INGLÊS
- Educação a Distância nos Cursos de Graduação em Odontologia no Brasil
- Fernanda Rosiak Gonzaga Faleiro, Blanca Martín Salvago (Autor)
História, Criminalidade e Violência: representações, fontes e abordagens | Revista Latino-Americana de História | 2018
É com imensa alegria que damos as boas-vindas ao vigésimo número da Revista Latino-Americana de História e nos despedimos do ano de 2018. Para esse final de ano gostaríamos de anunciar que nossa Revista, ao longo de 2018, conseguiu ampliar suas indexações, o que valoriza cada vez os trabalhos nela publicados. Atualmente contamos com as seguintes parcerias: Latindex, Dialnet; MIAR: Information Matrix for the Analysis of Journals; LatinRev; Sumários de Revistas Brasileiras (Sumários.org), Livre – Revistas de Livre Acesso, niversitat de Girona; International Standard Serial Number – International Center e Elektronische Zeitschriftenbliothek da Universität Regensburg. Leia Mais
O aberto: o homem e o animal – AGAMBEN (SY)
AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2 ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Synesis, Petrópolis, v.10, n.2, p.181-187, ago./dez., 2018.
As obras de Giorgio Agamben (1942) vêm ganhando espaço na academia brasileira não só a partir da tradução das mesmas, mas também a partir da publicação de trabalhos, da realização de eventos e da organização de grupos de pesquisa que se propõem a debater as temáticas suscitadas por este autor. Pode-se afirmar, na verdade, que as obras de Agamben estão sendo lidas sob diferentes matizes, tais como o da filosofia, da política, do direito, da economia, da teologia e das ciências da religião. O conteúdo trazido por Agamben permite essas diferentes abordagens porque está intimamente associado à interpretação dos problemas presentes na contemporaneidade. O diferencial das obras de Agamben, no entanto, está na capacidade de realizar uma arqueologia da contemporaneidade, de modo que sua análise não fica somente na superfície do problema: o que lhe interessa, de fato, é buscar o cerne do problema, ou seja, sua intenção está muito mais direcionada à compreensão do próprio problema do que propriamente buscar uma resposta para o mesmo. Essa é uma característica fundamental para se compreender as obras de Agamben de maneira geral, à qual se associam os múltiplos matizes de interpretação: eles se justificam porque os problemas da contemporaneidade estão fundados, basicamente, sob o eixo filosofia, teologia, direito, isto é, sob o pensar (razão), crer (religião) e legislar (lei).
A obra O aberto: o homem e o animal não está cindida dessa dinâmica. Ela está assim estruturada: vinte capítulos, seguidos da bibliografia utilizada pelo autor. O principal objetivo da obra: compreender como é possível distinguir o homem do animal, a humanidade da animalidade. Note-se: seu propósito está muito mais direcionado à compreensão de como é possível afirmar tal distinção do que propor um parâmetro para que ela seja realizada. Nesse sentido, o método arqueológico de investigação permite ao autor um regresso às fontes da distinção. Contudo, o olhar de Agamben não está no passado, mas no contemporâneo: trata-se de uma arqueologia da contemporaneidade. O que isso significa? A princípio: o problema da distinção homem-animal não é algo superado, de modo que buscar compreendê-lo já é um exercício válido para se compreender o homem contemporâneo. Esse é o principal pressuposto de qual parte Agamben: a distinção entre homem e animal não é algo de todo resolvida.
Nesse sentido, a obra pode ser dividida em quatro partes: a primeira abarca o trecho entre os capítulos um e três, a segunda se dá entre os capítulos quatro e onze, a terceira entre o doze e o dezesseis, a quarta entre o dezessete e o vinte. Pode-se dizer, na verdade, que tal reorganização da obra pode ser realizada mediante quatro objetivos específicos propostos por seu autor: 1) expor seu pressuposto principal, a saber, a distinção entre humanidade e animalidade não é algo de todo resolvido; 2) a dificuldade de se afirmar algo como o ser humano; 3) investigar como é possível distinguir o homem do animal; 4) mostrar de maneira crítica os desdobramentos da afirmação da distinção entre homem e animal.
Interessa ainda perceber que as quatro partes possuem interlocutores diferentes: a primeira está em interlocução com uma iluminura presente em uma Bíblia hebraica do século XIII, na qual se “representa o banquete messiânico dos justos no último dia” (AGAMBEN, 2017, p. 10)1. A segunda parte está em interlocução com a possibilidade de distinguir o homem do animal: aqui se percebe com maior nitidez o uso do método arqueológico. Nessa segunda parte ainda se vê que, pelo fato de a discussão de Agamben estar direcionada à dificuldade de se fixar uma definição, há uma interlocução com vários autores, dos quais se destaca a figura de Aristóteles. A terceira parte se põe em interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), do qual Agamben foi aluno em 1966 e 1968, nos seminários sobre Heráclito e Hegel. A interlocução com Heidegger se dá a partir da problemática da linguagem. Ela é trazida por Agamben ao final da segunda parte da obra como o ponto nevrálgico da distinção entre o homem e o animal. A quarta parte se inicia com o levantamento de alguns resultados da obra e conclui apontando para o fato de ainda se continuar pensando o homem como um ato de separação.
Atenta-se aqui para o fato de que essa divisão em quatro partes é assumida por essa resenha como uma chave de leitura para a obra O aberto: o homem e o animal. Abaixo, então, seguem alguns apontamentos a respeito dessas quatro partes, mostrando suas principais abordagens e como elas estão interligadas, perfazendo, assim, a obra como um todo.
Como dito acima, o principal objetivo da primeira parte da obra é apresentar a discussão a respeito da cisão entre animalidade e humanidade como um ponto nada pacífico. À interlocução com a iluminura do século XIII se soma a pergunta: como pensar o problema da cisão humanidade-animalidade nos dias atuais? A iluminura destacada pelo autor traz animais em formas humanas como sendo os justos que participam do banquete messiânico. A hipótese levantada por Agamben a partir disso: o artista tenta retratar uma reconciliação entre o homem e sua natureza animal (AGAMBEN, 2017, p. 12). Aqui se realiza um salto: Agamben traz, mesmo que brevemente, as figuras de Georges Bataille (1897-1962) e Alexander Kojève (1902-1968), mostrando diferentes modos de compreender (e, talvez, responder) a questão sobre o que resta do homem após o fim da história. O que é e como se dá o fim da história, porém, não é algo com o qual Agamben se ocupa aqui. Na verdade, o leitor não irá encontrar nada explícito a respeito disso; há somente indicações indiretas, tal como se pode ver mais adiante no capítulo dezesseis – Animalização (AGAMBEN, 2017, p. 119-122).
Note-se: a primeira parte da obra não busca esclarecer a cisão entre homem e animal, mas mostrar que, enquanto problemática, ela ainda é vigente. Dessa maneira, a primeira afirmação a respeito do homem é que ele existe de maneira histórica somente enquanto mantém essa tensão entre a humanidade que pretende afirmar e a animalidade que pretende negar. Leia-se: “ele pode ser humano apenas na medida em que transcende e transforma o animal antropóforo que o sustenta, somente porque, por meio da ação negadora, é capaz de dominar e, eventualmente, destruir a sua própria animalidade” (AGAMBEN, 2017, p. 24). Aqui se dá a passagem da primeira para a segunda parte da obra. Ela acontece quando se nota nas entrelinhas do texto a presença de uma pergunta: o que torna possível a afirmação da humanidade mediante a negação da animalidade?
A segunda parte do texto se inicia com uma constatação fundamental: o conceito de “vida” é aquilo que permanece como indeterminado na história do Ocidente, devendo, pois, ser sempre de novo articulado. Agamben destaca o texto De anima de Aristóteles como um momento decisivo: nele acontece a divisão entre os seres animados e inanimados. A partir de tal divisão se fazem outras: vida vegetal, animal, humana. O que é “vida”, porém, permanece sem definição. Define-se a vida humana mediante a divisão. Aí está o interesse de Agamben: pensar a afirmação do humano a partir da divisão, isto é, da separação com o animal. Pensar a separação permite, pois, pensar também a proximidade. Nesse sentido, se a noção de “vida” deve ser constantemente conquistada –definida sempre de novo, na verdade –, então, a arqueologia como método coincide com uma antropogênese. Em outras palavras: fazer uma arqueologia da vida é compreender o advento do homem se afirmando humano, logo, negando a animalidade. A arqueologia da vida é antropogênese.
Os capítulos cinco e seis se propõem a discutir a noção de identidade a partir de tratados medievais: há aí nas entrelinhas a tentativa de mostrar que a decisão a respeito do humano e do inumano – palavra que aparece pela primeira vez no texto – se aproxima, e muito, do conhecimento experimental de um campo de concentração. Esse ponto é decisivo para que no interior da segunda parte da obra apareça a dificuldade de uma classificação do que é o homem: “Homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2017, p. 48). O que é o humano, então? É um animal que, para ser humano, precisa se reconhecer em um não-humano. A pergunta ganha nova forma: o que distingue o humano do não-humano? A linguagem. Ela é a marca do humano (AGAMBEN, 2017, p. 55-63).
Decisivo, no entanto, é o modo como Agamben compreende a linguagem: não um dado natural, mas uma produção histórica. A linguagem, portanto, não pode ser associada nem à natureza animal, nem à natureza humana, dado que é uma construção. Suspender a linguagem significa, pois, suspender a diferença entre homem e animal. Pensar um homem pré-linguístico é pensar o animal, ou seja, a afirmação do humano implica em ter o próprio humano mesmo como pressuposto. Essa “máquina antropológica” (AGAMBEN, 2017, p. 61) funciona necessariamente por meio de uma inclusão e exclusão. A distinção entre humano e animal possui uma “zona de indiferença”. A segunda parte da obra caminha para seu fechamento afirmando que o animal é aquele que consegue sobreviver em um mundo ambiente (Umwelt), mas não se decide por ele.
O humano, assim, é aquele capaz da decisão, sempre rearticulada e atualizada. Aqui se faz a passagem para a terceira parte da obra, na qual o principal interlocutor será Heidegger. De antemão se adverte: Agamben não faz comentários à filosofia de Heidegger. Trata-se, na verdade, de perceber que Agamben está desenvolvendo sua obra de maneira autônoma, permitindo-se encontrar com Heidegger. A partir disso, pode-se dizer que há diálogo, confronto, tessitura de críticas, concordâncias e discordâncias. Querer encontrar em O aberto: o homem e o animalum comentário a Heidegger é reduzir a amplitude e a originalidade da obra.
Interessa ainda perceber o seguinte a respeito dessa terceira parte: o encontro com Heidegger se dá n]ao só a partir da noção de linguagem como uma construção histórica, mas também a partir da noção de tédio como uma disposição afetiva (Stimmung) própria do homem. Dessa maneira, Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão – preleções ministradas por Heidegger em 1929-1930 – é a principal obra do filósofo alemão mencionada, sendo decisiva para Agamben porque a partir dela o autor pode afirmar, de fato, que o aberto diferencia homem e animal: “o aberto nomeia o desvelamento do ente, somente o homem, e mais, apenas o olhar essencial do pensamento autêntico, o pode ver” (AGAMBEN, 2017, p. 92). E mais adiante: “o lugar dessa operação é o tédio” (AGAMBEN, 2017, p. 99).
O capítulo catorze – Tédio profundo – permite perceber que Agamben dá especial atenção à esfera da decisão, justamente porque nela está implicada a possibilidade. Disso se pode concluir que o aberto é o local da possibilidade. A possibilidade de escolha é o que diferencia homem e animal. Ter a possibilidade de escolha é estar no aberto. Estar aberto a quê, porém? A um fechamento, pois o animal não está no aberto: “aquele que observa no aberto vê apenas um fechar-se, apenas um não-ver” (AGAMBEN, 2017, p. 109). Essa abertura a um fechamento mostra, de acordo com Agamben, a luta entre o homem e o animal. Dessa maneira, estar no aberto não significa ser na condição humana de maneira decisiva: estar no aberto é ter a possibilidade da decisão.
Agamben pretende mostrar, assim, que algo como o humano só pode advir na medida em que pode ser escolhido. Erradicar a animalidade é, pois, um fechar-se ao fechamento. O mesmo vale para a tentativa de uma humanização integral do animal que é o homem. A tensão entre animal e homem precisa ser mantida para que o aberto seja, de fato, o lócus do humano. A partir desse ponto a obra caminha para seu fechamento.
O capítulo dezessete inicia a quarta parte da obra fazendo um levantamento de alguns resultados até aqui alcançados. Percebe-se que esses resultados estão aí postos muito a partir da interlocução com Heidegger, o que leva a concluir que o filósofo alemão é uma peça decisiva para se compreender a obra O aberto: o homem e o animal como um todo. O capítulo dezoito – Entre – entra numa breve interlocução com Walter Benjamin (1892-1940) e está intimamente associado ao capítulo subsequente, no qual Agamben traz a imagem de duas pinturas –Ninfa e pastor e As três idades–para discutir, também de modo breve, a sexualidade. O último capítulo aponta que deixar ser o animal significa deixá-lo ser fora do ser, ou seja, deixar ser o animal significa estar em uma zona de não-conhecimento, que, por sua vez, “está para além tanto do conhecer quanto do não-conhecer […]. Mas aquilo que é deixado, assim, ser fora do ser não é, por isto, negado ou removido, não é, por isto, inexistente. É um existente, um real, que está para além da diferença entre ser e ente” (AGAMBEN, 2017, p. 743). Agamben retorna, ao fim, à iluminura com a qual se iniciou a obra: ela talvez aponte para a superação da máquina antropológica.
Afirma-se, então: a divisão aqui apresentada da obra O aberto: o homem e o animal em quatro partes pretende ser justamente uma chave de leitura, uma vez que, como se percebe pela leitura da obra, é difícil querer lê-la a partir de outro ponto específico que não o seu início. A divisão aqui apresentada não pretende tornar a obra mais “fácil” de se compreender, mas tão somente situar o leitor que se sinta mais próximo de algum capítulo específico. Por fim, recomenda-se a leitura dessa obra, pois somente assim o leitor irá se deparar com a profundidade da discussão trazida por Agamben, bem como irá perceber porque este pensador italiano suscita discussões em diferentes áreas. As obras de Agamben trazem, de fato, uma riqueza epistemológica que também pode ser percebida em O aberto: o homem e o animal seja respeito ao método de investigação, seja respeito ao conteúdo aí abordado. Além disso, O aberto: o homem e o animal pode servir como porta de entrada para a leitura e investigação das demais obras desse autor que vem ganhando espaço nas discussões acadêmicas brasileiras.
Nota
1 A presente edição revista da tradução brasileira traz a iluminura destacada por Agamben no verso da capa. A iluminura foi impressa em cores, o que facilita ao leitor perceber algumas características destacadas por Agamben em seu texto.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes – 2ª ed. – Edição revista – Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2017. 162p.
Luís Gabriel Provinciatto – Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8472704203242937. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com
[DR]
A produção dos saberes em língua portuguesa / História e Cultura / 2018
A relação entre a história e os diversos saberes e práticas científicas produzidos em cada época tem se tornado cada vez mais foco da atenção do historiador contemporâneo. Pensar os saberes científicos não apenas como meio de expressão da experiência humana, mas como objeto incontornável para entendermos a própria historicidade das formas de conhecimento e construção do passado, só se tornou possível a partir de uma redefinição dos rumos do conhecimento histórico. Este redimensionamento ampliou as possibilidades de se contar o passado e abriu o caminho para novas abordagens. Assim, o presente dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa reúne trabalhos que exploram desde saberes que trataram das diversas doenças e tratamentos corpóreos, passando pela análise das formas pelas quais os homens atuaram no seu meio natural transformando-o, até trabalhos cujo enfoque foi justamente interrogar a historicidade do conhecimento, ou melhor, dos modos de conhecer as terras, os mares e até mesmo os céus.
Desde os séculos XI e XII, momento em que os saberes ganham um espaço institucional habitado por mestres ou pares, a preocupação com a definição de arte e ciência passa a ser matéria corrente para aqueles homens que se propuseram a registrar o passado, ou seja, a construção de novos parâmetros definidores dos domínios teóricos e práticos das diversas matérias torna-se peça-chave para pensar a produção do conhecimento. As ciências, nessa altura, fixaram-se ligadas ao conhecimento de caráter especulativo, que partia da crença na racionalidade e constância divina para deduzir as leis que regulavam a experiência terrena. Do mesmo modo, as artes foram concebidas como sinônimo de bem fazer e estiveram relacionadas à noção de execução de uma técnica, de uma ação que, em conformidade com a natureza, gerava ou restabelecia a harmonia dos corpos. Muito embora tais noções tenham sido retomadas da antiguidade, estas concepções de ciência e arte foram redefinidas em um ambiente outro, já que todo e qualquer conhecimento na Idade Média era proveniente de Deus, um Deus que os antigos desconheciam. É significativo dizer, inclusive, que a apropriação e difusão das noções de arte e ciência, apesar de não serem percebidas como uma unidade, estiveram no cerne da proposta dos letrados – ligada, por vezes, aos “estudos gerais” – de pensar a natureza dos saberes, suas relações, oposições e seu grau de participação na busca da verdade. Desse modo, tal interrogação foi muito significativa para definição de campos de estudo como a astronomia e a astrologia que, ainda no tempo das navegações, pendiam entre a ciência e a superstição, como mostra a autora Simone Ferreira Gomes de Almeida no seu Escritos sobre o céu para homens ao mar. Considerações e estudos sobre a astrologia e astronomia dos séculos XV e XVI.
Tal binômio, até o século XVIII, parece não ter tido suas fronteiras recortadas com nitidez, malgrado o saber científico tenha buscado se afirmar sobre novos parâmetros no Setecentos, ao deslocar do centro da análise a figura de Deus, especialmente com Kant na virada do século – que estabeleceu, grosso modo, a morte epistemológica de Deus e a ascensão do homem como sujeito do conhecimento. O Dicionário da Língua Portugueza, de Morais Silva, de 1789, por exemplo, trazia a seguinte definição de ciência e arte: a primeira seria o “conhecimento certo e evidente das cousas por suas causas; v.g., a geometria é uma ciência”; e a segunda seria a “coleção de regras, ou métodos de fazer: v.g., a arte de falar corretamente; a arte de ourivesaria, da carpintaria”, podendo ser tomada como sinônimo de artífice e artista. Pouco antes, M. D`Alembert, no Discurso Preliminar da Enciclopédia, afirmava que “a especulação e a prática constituíam a principal diferença que distinguia as ciências das artes”, ou seja, os saberes práticos estavam relacionados à arte e os saberes teóricos à ciência. Essa falta de delimitação entre a ciência e arte é perceptível, por exemplo, nos escritos arquitetônicos do século XVIII, como foi explorado por Luiza da Silva no artigo “Tratado da arquitetônica, ou arquitetura militar, ou fortificação das praças”: linguagens de defesa, de uma dimensão celestial a vitrúvio. Outros campos do conhecimento, como não poderia deixar de ser, também careciam de contornos mais definidos para se legitimarem, é o caso, por exemplo, da preparação dos remédios, ou a botica, que até o início do século XIX no Brasil, como analisa Viviane Machado Caminha, foi uma atividade quase exclusiva da Companhia de Jesus.
O presente dossiê traz, ainda, dois artigos que se ocupam do ocaso do século XVIII e do século XIX, momento em que a distinção entre arte e ciência se dará com mais precisão. É nesse cenário, pois, que o discurso científico se estabelece, fixa fronteiras entre o que seria “ciência” e “pseudociência” e define normas para qualificar a atuação de diferentes homens de saber, tais como médicos e farmacêuticos. Os artigo Saberes ocultos no Brasil Império: a arte da cura pelo magnetismo animal e a busca pela legitimidade, de Danielle Christine Othon Lacerda, e A produção de conhecimentos de José Pinto de Azeredo, físico-mor de Angola e 1º professor da primera escola médica de Angola, de 1791, parte integrante da rede de conhecimento úteis do Império Ultramarino Português, de Fernanda Ribeiro Rocha Fagundes, levantam justamente essas questões, partindo, porém, de ângulos opostos: no primeiro, uma prática considerada como pseudociência, a do magnetismo animal, ganha evidência e permite questionar a própria historicidade das formas de curar; no segundo, o discurso médico como ciência é destacado por meio dos escritos elaborados pelo célebre físico-mor José Pinto de Azeredo, personagem, cabe mencionar, fundamental na criação de uma rede conhecimentos úteis ao Império Ultramarino.
O dossiê A produção dos saberes em língua portuguesa, para finalizar, reúne, como o leitor observará, textos que tratam de diferentes registros e modos de produção dos saberes científicos, ou com pretensão a científicos. Essa variedade de objetos aqui abordados traz à tona a seguinte questão: quais os contornos e nuances das áreas ou matérias constituintes da construção do saber em cada época? Se o leitor não encontrar uma resposta robusta para a questão, dada a impossibilidade de tal empreitada em um dossiê, defrontará, ao menos, com algumas pistas para discutir tal problemática.
Desejamos a todos uma boa leitura!
Michelle Souza e Silva – Doutora pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP / Franca). Realiza, atualmente, estágio pós-doutoral financiado na Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Autora, entre outros, de Ler e ser virtuoso no século XV (Editora UNESP, 2012) e de estudos sobre a medicina e o corpo. Membro do grupo Escritos sobre os Novos Mundos.
Milena da Silveira Pereira – Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) e professora do Programa de Pós-Graduação em História na mesma instituição. Realizou estágio pós-doutoral com financiamento do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD / CAPES) na UNESP. Autora, entre outros, de A crítica que fez história: as associações literárias no Oitocentos (Editora UNESP, 2014), Insultos e Afagos: Sílvio Romero e os debates de seu tempo (Editora CRV, 2017) e organizadora, com Jean Marcel Carvalho França, de Por escrito: lições e relatos do mundo luso-brasileiro (EdUfscar, 2018). Membro da Association for Spanish and Portuguese Historical Studies (ASPHS) e do Grupo Escritos sobre os Novos Mundos.
As organizadoras.
SILVA, Michelle Souza e; PEREIRA, Milena da Silveira. Apresentação. História e Cultura. Franca, v.7, n.2, 2018. Acessar publicação original [DR]
Valsa brasileira: do boom ao caos econômico | Laura Carvalho
Os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2010-2016), constituindo parte de um contínuo temporal e fazendo parte de um mesmo grupo político, o Partido dos Trabalhadores (PT), conformam um período de experimentações fiscais que, em um período de pouco mais de uma década, foram do crescimento à contração. Herdando um país estagnado e às voltas com a inflação, os dois presidentes aplicaram políticas de incentivo e austeridade para tentar contornar a situação inusitada das décadas de 2000 e 2010, com variados graus de sucesso. Chama a atenção, no entanto, a transformação de uma matriz social-democrática, principalmente entre os anos 2006 e 2010, para um extremo conservadorismo fiscal, entre 2015 e 2016, que marcam o colapso do período petista com o impeachment da ex-presidente Dilma. Laura Carvalho, ao analisar essas transformações constrói, em Valsa Brasileira (2018), um panorama das políticas econômicas adotadas entre 2003 e 2016, lançando luz às escolhas e circunstâncias que, em cerca de uma década, levaram o Brasil de um crescimento sustentado a uma recessão profunda.
A autora, bem distante dos bastidores em que reside a maioria dos trabalhos de economistas, faz das suas análises propostas públicas para construir um novo modelo econômico de crescimento ao Brasil. Graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2006, se especializou em Economia da Indústria e da Tecnologia em 2008, pela mesma universidade, e em macroeconomia pela New School of Social Research, onde estudou os possíveis caminhos para a retomada de crescimento econômico após períodos de recessão. Foi professora na Fundação Getúlio Vargas (FGV) entre 2012 e 2015, quando se tornou docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Atualmente, contribui para o debate público através de suas colunas em jornais de grande circulação, como a Folha de São Paulo e o Nexo.
Como chave de análise econômica dos 13 anos que constituem o período petista, a autora apresenta a matriz fiscal como os três passos de uma valsa, que marcam três momentos distintos, alusivos às políticas levadas a cabo nesse período. O primeiro, “um passo à frente”, representa o governo Lula II (2006-2010), articulando a distribuição de renda com o investimento público elevado. O segundo, “um passo ao lado”, foi o governo Dilma I (2011-2014), com a adoção da “agenda Fiesp”, denominada “Nova Matriz Econômica”, com incentivos fiscais para o setor industrial. Por fim, o terceiro, “um passo atrás”, conforma o curto período do governo Dilma II (2015-2016), em que foram adotados políticas de austeridade e arrocho fiscal que, em última instância, representou o desmonte do frágil Estado de bem-estar social construído nas décadas anteriores (CARVALHO, 2018: 11-12). O livro é dividido em cinco capítulos distintos: os três primeiros descrevem respectivamente os três “passos de dança” da economia brasileira; o quarto traz uma análise global da situação nacional e de seus possíveis caminhos para superar as dificuldades, considerando as nossas especificidades econômicas; o quinto, um breve epílogo sobre a emergência do autoritarismo a partir do desgaste econômico que, no mundo todo, foi provocado pelas décadas sucessivas de austeridade.
No primeiro capítulo, “O Milagrinho brasileiro: um passo à frente”, Carvalho analisa os oito anos do governo Lula da Silva, considerando, especificamente, a sua matriz econômica. Conforme investiga a autora, esse período foi marcado por guerras intestinas dentro do governo e do próprio Partido dos Trabalhadores, nas quais se opunham os que procuraram manter, num primeiro momento, as políticas herdadas de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com baixas taxas básicas de juros e a busca por manutenção do superávit primário, e os que acreditavam na necessidade de uma maior ousadia fiscal. Essa política marcou o seu primeiro mandato (2003-2006), embora tenha mantido o baixo crescimento do PIB. Para demonstrar esses primeiros embates, a economista lança mão de reportagens e discursos que, embora apresentem in loco os desencontros nesse período, são usadas indistinta e acriticamente, sem considerar, por exemplo, os intuitos e silêncios nos discursos oficiais e as linhas editoriais dos diversos periódicos consultados.
Para Carvalho, foi apenas a partir do segundo governo que a matriz econômica foi alterada, focando, especificamente, em três aspectos: “a distribuição de renda da pirâmide, […] maior acesso ao crédito e maiores investimentos públicos em infraestrutura física e social” (CARVALHO, 2018: 19). Esse período, denominado “Milagrinho”, constituiu o “passo à frente”, uma vez que foi marcado por sustentado crescimento econômico e distribuição de renda. É notório que, a despeito de colocar em dúvida a continuidade indefinida desse sistema, apresenta estes três sustentáculos como uma política bem-sucedida de inclusão e crescimento, sob uma luz extremamente positiva. Baseando-se em estudos na área econômica (uma diferença em relação à primeira parte), a autora argumenta que esse crescimento permitiu não só o incremento da renda média da população, mas o próprio consumo, uma tese já consolidada nos estudos recentes sobre o período.[2]
No segundo capítulo, “A agenda Fiesp: um passo ao lado”, Laura Carvalho passa a analisar o incongruente período do governo Dilma, uma clivagem em relação ao governo anterior, a despeito de ser apontada como sua herdeira e sucessora direta. Mais ainda, é um período de intensas pressões políticas que a fizeram mudar radicalmente o rumo da economia brasileira, assumindo uma postura ortodoxa que, ao fim e ao cabo, sufocou o Milagrinho e fez o governo cair em uma espiral de austeridade e desregulação a partir de 2015. Segundo o histórico construído pela autora, a pressão do empresariado nacional levou à adoção de uma política fiscal rigorosa, contracionista, próxima ao “crescimento centrado nos desenvolvimentos industriais nos moldes asiático” (CARVALHO, 2018: 55). Como base, aponta os diversos manifestos de economistas que, a partir de jornais e colunas, propunham uma mudança na matriz econômica. Conclui, em retrospecto, que essa política não apenas não trouxe os resultados esperados, como acarretou a adoção de políticas cada vez mais ligadas ao neoliberalismo: incentivos fiscais, linhas de créditos às grandes empresas, o freio nos investimentos públicos estatais. Em última instância, isso provocou não apenas a deterioração fiscal, mas o aumento da dívida pública, que pautou, de 2015 em diante, uma política ainda mais radical.
O panorama desenvolvido pela economista termina no terceiro capítulo, “A panaceia fiscal: um passo atrás”, o terceiro movimento, e talvez o mais significativo, dos treze anos ininterruptos do governo petista. As políticas de austeridade iniciais tomadas no primeiro mandato de Dilma, ainda marginais, se tornaram agressivamente presentes a partir de 2015, principalmente com a posse, no Ministério da Fazenda, de Joaquim Levy. A completa desestruturação dos dois elementos que constituíram o Milagrinho – as políticas de distribuição de renda e o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, que constituía financiamento público de obras de infraestrutura) – levou ao colapso de um modelo popular e sustentável da economia brasileira. Em especial, aponta a constante contradição nos discursos, mantendo a linha geral dos primeiros anos, com a política efetivamente aplicada, de estabelecimento de estímulos fiscais propostos pelo empresariado.
A falta de resultados, no entanto, com a estagnação do crescimento (embora a então presidente tenha aplicado à risca o receituário liberal), levou à criação de uma panaceia de todos os problemas: o impeachment. Apontada como a culpada pela estagnação, Rousseff foi derrubada pelo grande empresariado, articulado em torno da Fiesp, que explorou o peso político das “pedaladas fiscais”, uma vez que essas recaíam em uma das práticas vedadas pela Lei da Responsabilidade Fiscal. O resultado foi o colapso da era petista e a ascensão de Michel Temer (MDB), que assumiu de peito aberto o programa liberal por meio da então denominada “Ponte para o Futuro”. Objeto de análise por diversos campos, entre eles a Economia, a História e o Jornalismo, o fim melancólico de Dilma Rousseff é em geral apontado como fruto de políticas econômicas equivocadas somadas a uma intensa intriga palaciana, na qual a presidente foi considerada um entrave à adoção de políticas econômicas mais ortodoxas. À semelhança de Carvalho, diferentes autores buscam dramatizar esses dois anos de inflexão na política brasileira, como é o caso da economista Monica de Bolle (2016), com a crônica Como matar a borboleta azul, e da cineasta Petra Costa (2019), com o documentário Democracia em Vertigem.
A análise da autora se consolida nos dois últimos capítulos, em que, a partir do panorama construído nos três capítulos anteriores, busca estabelecer como criar uma economia que fuja da frágil ortodoxia liberal sem, entretanto, necessitar das circunstâncias que tornaram o Milagrinho possível. Em “Acertando os passos”, Laura Carvalho propõe que a matriz econômica adotada a partir de 2015 foi um “tiro no pé” por parte do empresariado, que nem de longe teve os retornos esperados. Propõe, portanto, a retomada dos elementos que, anteriormente, garantiram alguma inclusão social pelas políticas de Estado: o fim da austeridade, a retomada dos investimentos públicos, a reestruturação do Estado de bem-estar social, uma reforma tributária progressiva e o controle da taxa de juros.
O último capítulo, “Dançando com o Diabo”, é sintomático não apenas do momento em que a autora escreve, mas de seus propósitos políticos no que assumira vocalmente desde então. Não apenas ela aponta uma conformidade entre as políticas de austeridade e o aumento de tendências sociais autoritárias e populistas, um reflexo evidente nas eleições de 2018 (que, embora não seja citada diretamente, por certo influenciou a escrita de seu estudo), quanto propõe que um caminho democrático se dá pela inclusão e estabilidade dentro de um crescimento sustentado. Não à toa, muitas de suas políticas serviram de base para a construção das propostas políticas de Guilherme Boulos (PSOL), um dos candidatos mais à esquerda na eleição de 2018, da qual ela participou diretamente como consultora (NSC TOTAL – NOTÍCIAS DE SANTA CATARINA, 2018). Longe de ser um folhetim político, no entanto, Valsa Brasileira é um estudo do corolário de diferentes políticas econômicas que passaram do caráter popular ao de cópia do receituário liberal — levando, em última instância, ao colapso fiscal brasileiro em apenas três anos; assim como apresenta o desenrolar de uma nova perspectiva, heterodoxa, para a reconstrução do país no médio e longo prazo.
Nota
2. Com efeito, Samuels (2004), Marques (2005) e Singer (2010) apontam essas duas “facetas” do governo Lula, apontando não apenas a virada no primeiro para o segundo mandato, numa mistura de pragmatismo com políticas sociais, mas também a própria manutenção das bases econômicas liberais, contraditórias ao discurso socialista dos primeiros anos do Partido dos Trabalhadores.
Referências
ACTIS, Esteban. Del condominio a la dicotomía: las relaciones entre los gobiernos del PT en Brasil con el empresariado internacionalizado brasileño (2003–2016). Polis — Revista Latinoamericana, Santiago (Chile), n. 48, p. 175–199, 2017.
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O governo Dilma frente ao “tripé macroeconômico” e à direita liberal e dependente. Novos Estudos, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 5–14, mar. 2013.
CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018.
CURADO, Marcelo. Por que o governo Dilma não pode ser classificado como novo-desenvolvimentista?. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 37, n. 1, p. 130–146, jan./mar. 2017.
DE BOLLE, Monica Baumgarten. Como matar a borboleta-azul: uma crônica da era Dilma. São Paulo: Intrínseca, 2016.
DEMOCRACIA em Vertigem. Direção: Petra Costa. Produção: Joanna Natasegara; Shane Boris; Tiago Pavan. Netflix, 2019. 1 vídeo (121 min). Acesso em: 24 set. 2020.
GURU econômico de Boulos, Laura Carvalho defende diminuir desigualdade como base do crescimento. NSC — Notícias de Santa Catarina, Florianópolis, 05 mai. 2018.
MARQUES, Luiz. Governo Lula: social-liberal ou social-reformista?. Porto Alegre: Veraz, 2005.
SAMUELS, David. From Socialism to Social-democracy: party organization and the transformation of the Worker’s Party in Brazil. Comparative Political Studies, v. 37, n. 9, p. 999–1024, nov. 2004.
SINGER, André. A segunda alma do Partido dos Trabalhadores. Novos Estudos, São Paulo, v. 29, n. 3, p. 89–111, nov. 2010.
Cláudio César Foltran Ulbrich1 – Estudante do 7º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. Realiza Pesquisa Individual sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.
CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018. Resenha de: ULBRICH, Cláudio César Foltran. Cadernos de Clio. Curitiba, v.9, n.2, p.127-135, 2018. Acessar publicação original [DR]
La enseñanza de la historia en siglo XXI: saberes y prácticas – GONZÁLEZ (REH)
GONZÁLEZ, María Pala. La enseñanza de la historia en siglo XXI: saberes y prácticas. Buenos Aires: Ediciones UNGS, 2018. 158p. Resenha de: LUQUE, Leandro. Reseñas de Enseñanza de la Historia, n.16, p.245-254, ago. 2018.
Leandro Luque Acesso apenas pelo link original
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O nascimento do Brasil e outros ensaios: pacificação, regime tutelar e formação de alteridades | João Pacheco de Oliveira
O presente trabalho trata-se de uma resenha sobre o prefácio da obra O nascimento do Brasil e outros ensaios: pacificação, regime tutelar e formação de alteridades, cujo o autor é João Pacheco de Oliveira, antropólogo e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicada no ano de 2016, segundo Oliveira, o livro reúne textos escritos nos últimos anos para eventos e conferências das quais ele foi convidado por colegas historiadores, explicitando que seu objetivo não é ordená-los de forma cronológica ou de modo casual, e sim atribuirá cada tema/capítulos olhares específicos numa perspectiva etnográfica, levando em conta alguns episódios históricos, a fim de discutir as inúmeras formas de agência e participação indígena na construção da nação brasileira.
É possível perceber como o autor se posiciona no que tange a dicotomia entre a História e a Antropologia, demonstrando que é possível dialogar entre as duas áreas, lembrando que um dos seus objetivos é recolocar as populações indígenas como agentes efetivos, ou seja sujeitos que agem, operam e atuam na construção do Brasil, para isso é necessário ir além dos instrumentos da etnografia, como por exemplo o estudo das relações e ações somente do presente, é preciso olhar o passado, estudá-lo, examiná-lo a partir de outras abordagens, como o próprio autor afirma: “[…] longe de se limitar, assim, de um exercício circunscrito de história indígena, etno-história ou etnologia indígena, os artigos desse livro constituem exercícios de uma antropologia histórica” (p. 08), enfatizando ainda as relações e outras forças que compõem a sociedade. Leia Mais
O documento arquivístico ante a realidade digital: uma revisão conceitual necessária | Rosely Curi Rondinelli
A publicação que ora apresentamos cumpre um importante papel na Arquivologia e na Ciência da Informação ao abordar de maneira interdisciplinar a questão do documento arquivístico digital. Esta é uma obra fundamental para quem lida com os documentos arquivísticos diante da realidade digital, sejam arquivistas, profissionais da informação em geral, ou para a sociedade como um todo. A autora consegue trazer uma obra essencial no conceito da arquivologia a partir de uma vasta bibliografia e um debate conceitual de autores de várias épocas de maneira interdisciplinar e acessível. Com isso, esse livro se torna essencial para o entendimento do documento arquivístico digital com discussões que vão além da sua área específica de conhecimento.
Um exercício epistemológico a partir do desafio de “dar nome as coisas”, nas palavras de Heredia Herrera (2005), uma ciência ou uma disciplina necessitam ter como veículo de expressão um léxico comum para conseguir um entendimento correto. É fundamental contarmos com termos claros, exatos, que correspondam a conceitos universais em matéria de arquivo. Uma saga, vislumbrando entendermos o desenvolvimento do conceito, para então pensarmos em sua consolidação na análise do documento arquivístico digital. O livro é dividido em quatro capítulos (Documento e informação: variações conceituais a partir da ciência da informação e da arquivologia; Diplomática e arquivologia: trajetória que se cruzam; documento arquivístico: o que é?; O conceito de documento arquivístico diante da realidade digital), além da introdução e considerações finais, organizados em subcapítulos, recurso que possibilita uma leitura mais objetiva. Leia Mais
Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-186 – VILLA (Tempo)
VILLA, Carlos Eduardo Valencia. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond e Rio de Janeiro, 1840-1860. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. 400 p.p. Resenha de: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. Ao longo daquelas ruas: a economia dos negros livres em Richmond. Tempo, v.24 n.2 Niterói maio/ago. 2018.
Embora a história comparada tenha uma longa e importante trajetória na historiografia contemporânea, ela implica enfrentar uma série de questões que fazem com que poucos historiadores se aventurem nesse ramo. Em primeiro lugar, é necessário definir muito bem o que será comparado, pois os objetos selecionados devem conter ao mesmo tempo semelhanças (para que possam ser de fato comparados) e diferenças (para que se consiga avançar no conhecimento da área). Em seguida, é preciso recortar escopos documentais que permitam realizar a pesquisa, e isso é mais problemático à medida que se recua no tempo, pois os tipos documentais disponíveis para os objetos escolhidos tendem a ser cada vez mais diversos. Em terceiro lugar, é fundamental que se tenha clareza das opções metodológicas, bem como segurança em seu uso, para que elas permitam de fato articular as questões levantadas e as fontes disponíveis. Finalmente, há um problema cada vez mais recorrente no meio acadêmico e que inviabiliza muitas pesquisas comparadas, que é o tempo demandado para sua execução, pois no mínimo deve-se ter familiaridade com discussões historiográficas e fontes documentais distintas, as quais se pretende comparar.
A obra de Carlos Eduardo Valencia Villa é um bom exemplo de como todas essas questões podem ser enfrentadas com sucesso, mesmo no curto tempo que hoje se pode dedicar à realização do doutorado. E a prova de seu êxito é o fato de ter sido distinguida com o prêmio Anpuh-Rio de Janeiro Eulália Maria Lahmeyer Lobo no ano 2014. A publicação em livro da tese revista permite agora que um número muito maior de leitores possa ter acesso aos resultados de sua pesquisa. Contudo, mais do que apenas os resultados, creio que a melhor contribuição do livro reside na exposição de suas opções metodológicas, calcadas em vasto levantamento documental, que respeitou as especificidades de cada uma das cidades que ele decidiu comparar.
O primeiro aspecto a se destacar na obra é, portanto, a definição daquilo que será comparado. A escolha recaiu sobre duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro) de dois países muito distintos (Estados Unidos e Brasil), embora entrelaçados por uma mesma instituição: o escravismo. Como destaca o autor, o que se irá comparar serão cidades oitocentistas, atlânticas e escravistas. Oitocentistas porque foi nesse momento histórico que ambas assumiram a posição de importantes centros econômicos, demográficos e políticos. Atlânticas porque a condição de porto não apenas as tornava semelhantes em muitos aspectos como também as unia por meio do comércio, sintetizado no binômio café (do Rio de Janeiro) com pão (do trigo de Richmond). Escravistas porque em ambas se empregavam vastos contingentes de escravos em amplos setores da sociedade. E, embora compartilhassem essas similaridades, elas também eram díspares: o Rio de Janeiro era uma cidade com uma população muito superior à de Richmond, e sua influência política no território nacional ao qual pertencia era muito maior do que o papel que Richmond chegou a desempenhar no sul dos Estados Unidos e mesmo em período posterior, durante a Guerra de Secessão. Entretanto, é exatamente nesse equilíbrio entre o que se assemelha e o que se diferencia que se buscam os melhores resultados de um estudo comparado.
O desafio seguinte enfrentado pelo autor foi conhecer as fontes documentais disponíveis em ambas as cidades que pudessem trazer informações sobre a economia de seus negros livres. E aqui residem os maiores problemas enfrentados. O autor reconhece que a grande flexibilidade social dos negros livres implicava desafios para conseguir acompanhá-los, tanto em Richmond quanto no Rio de Janeiro. Entretanto, em cada uma delas essa flexibilidade transparecia na documentação de forma diferente. A solução foi buscar fontes massivas de informação que também trouxessem os nomes dos indivíduos, de modo a poder cruzar as observações mais gerais da abordagem quantitativa com achados mais esclarecedores permitidos por uma abordagem qualitativa. Desse modo, foram levantados milhares de anúncios de jornais e de escrituras em ambas as cidades, além das listas de impostos pessoais e dos censos de Richmond. Também foram construídas algumas séries de dados econômicos, sobretudo de preços, que permitiram acompanhar as diversas conjunturas compartilhadas pelas duas cidades. Nesse sentido, deve-se destacar a periodização feita pelo autor, que dividiu as duas décadas de pesquisa em quatro momentos específicos: 1840-1846, 1847-1850, 1851-1856 e 1857-1860. A análise quantitativa deu à luz uma simetria bastante grande (embora não perfeita) entre os ciclos econômicos vividos pelas duas cidades, separadas por milhares de quilômetros, mas unidas pelo Atlântico. Essa união atlântica fica clara, por exemplo, quando se percebe que a conjuntura de crescimento econômico no início da década de 1850 no Rio de Janeiro, muitas vezes atribuída ao fim do tráfico de africanos e a consequente “liberação de capitais” para serem aplicados em outras atividades econômicas, na verdade foi compartilhada por Richmond, o que denota tratar-se mais de um movimento econômico internacional do que de uma conjuntura interna ao Brasil.
Um levantamento massivo de dados pode gerar, entre seus subprodutos, um atordoamento que impede a visualização de qualquer tendência ou sentido. Isso só pode ser minimizado por estratégias metodológicas bem-elaboradas e adequadas tanto ao objeto quanto aos dados disponíveis. Nesse sentido, a obra de Villa apresenta-se também como um bom guia metodológico para trabalhos historiográficos de mesma natureza. Além da análise estatística, tanto descritiva quanto inferencial, deve-se destacar o uso inovador da cartografia histórica em conjunto com o sistema de informação geográfica (SIG). O livro apresenta uma série de mapas das cidades de Richmond e Rio de Janeiro, baseados em cartas de época. Entretanto, esses mapas não são meras ilustrações, e sim uma estratégia metodológica elaborada para resolver o problema da falta de dados precisos sobre a localização dos sujeitos no espaço da cidade. Embora houvesse uma quantidade enorme de informações sobre indivíduos em locais específicos da cidade, não era possível compará-los no tempo, porque as referências a endereços não eram precisas. A solução encontrada foi trabalhar com áreas da cidade (em lugar de pontos individualizados), de modo a permitir acompanhar as transformações ocorridas ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito ao comportamento da mão de obra. Dado o uso ainda recente e incipiente do SIG na historiografia brasileira, esse é outro aspecto que torna a obra de Villa especialmente valiosa.
Do ponto de vista da apresentação, o livro se organiza em uma introdução, cinco capítulos e uma conclusão. A introdução é dedicada a uma discussão historiográfica que conduz o leitor à definição do tema: a economia dos negros livres em meados do século XIX. Daí, segue-se uma discussão da pertinência da comparação, justificando a escolha das duas cidades (Richmond e Rio de Janeiro). Há uma descrição das fontes que levaram a certas decisões quanto aos dados a serem levantados e às metodologias a serem adotadas. Finalmente, há uma justificativa do período a ser abordado (1840-1860).
O Capítulo 1 (“O vaivém nos portos”) descreve as cidades de Richmond e Rio de Janeiro, iniciando-se com a economia da cidade e sua ligação umbilical com as atividades portuárias. Esse é, inclusive, o elemento que ligaria duas cidades tão geograficamente distantes. Em seguida, descreve-se a situação dos trabalhadores, sobretudo escravos. O terceiro item trata do perfil demográfico de ambas as cidades desde a década de 1820 até a década de 1870; nesse momento também são apresentados os mapas das cidades que serão utilizados no georreferenciamento. O quarto item trata do perfil dos “negros livres”, e nesse ponto evidencia-se uma diferença nas fontes do Rio de Janeiro e de Richmond. Enquanto em Richmond a documentação censitária e fiscal identifica com mais clareza a cor (e em muitos casos a condição social), no Rio de Janeiro a documentação cartorária não traz essa informação. O autor contorna essa limitação ao concentrar seu foco nas escrituras de menor valor, supondo que nestas predominariam as pessoas de cor. O último item desse capítulo aprofunda a descrição das cidades e sua posição econômica e política em seus contextos nacionais.
Os capítulos seguintes vão apresentar o que seria o comportamento econômico dos negros livres nas duas cidades, e cada um deles abordará um dos quatro momentos específicos identificados pelo autor. O Capítulo 2 (“Na esquina ou na metade do quarteirão: primeiros negócios, 1840-1846) é o mais longo deles, porque se incumbe de apresentar pela primeira vez ao leitor como as informações foram sendo organizadas e tratadas para se obterem os resultados sistematicamente apresentados a seguir, sobretudo em relação ao georreferenciamento; e, em seguida, se estruturam os itens que se repetirão nos capítulos seguintes. Os Capítulos 3 (“Ainda na freguesia e no bairro: a vida econômica na metade do século, 1847-1850), 4 (“Para além da rua: a expansão econômica no começo da década de 1850”) e 5 (“A estrada que virou beco: os problemas econômicos, 1857-1860”) se organizam de forma semelhante, em quatro itens que contemplam a conjuntura econômica, o mercado de trabalho, o custo de vida, o patrimônio dos “negros livres” e sua localização espacial. Esse, que é o núcleo central do livro, apresenta um desafio quanto à narrativa. Os dados coletados e tratados pelo autor devem ser apresentados de forma sistemática e comparável, por isso parecem repetitivos e às vezes confusos. Entretanto, não há como escapar desse formato, porque é ele que costura a comparação e evidencia os achados que ela permite. O autor mescla tal abordagem com uma série de evidências qualitativas, construídas muitas vezes pelo cruzamento nominal de diversas fontes. Esse contraponto procura responder ao anseio do autor, formulado ainda em sua introdução, de fugir da mera descrição quantitativa, de cair em uma história descarnada. Essa estratégia funciona de forma variada. De modo geral, permite ao leitor “respirar” em meio ao oceano quantitativo; às vezes, vai mais longe e possibilita que se chegue perto dos atores sociais (como é o caso do Capítulo 5, no qual a crise econômica ganha uma face humana ao se observar mais de perto o que acontece com o patrimônio dos indivíduos).
O livro se encerra com considerações finais, que a rigor são verdadeiras conclusões. Enquanto muitos autores de livros e teses se abstêm de formular conclusões, Carlos Villa proporciona ao leitor uma revisão do que foi apresentado ao longo do livro, o que considero algo de louvor.
A obra resenhada, portanto, é um trabalho historiográfico de fôlego, tanto do ponto de vista das fontes documentais quanto das estratégias metodológicas e ainda da forma de apresentação. Merece figurar entre as melhores obras de história econômica lançada nos últimos anos, destacando-se sobretudo pelos desafios metodológicos que lança e soluciona.
Entretanto, há um conjunto de observações a serem feitas. Em primeiro lugar, na verdade, o autor compara dois grupos distintos: a população de cor de Richmond e o segmento mais pobre da população do Rio de Janeiro. Embora os dois grupos possam se sobrepor, eles são distintos. Isso fica claro no início da tese, e considero uma estratégia válida para superar as limitações da documentação carioca quanto à declaração da cor. Mas, à medida que a tese avança, essa diferenciação vai sendo ocultada, de modo que na conclusão já se fala em “negros livres richmonianos e cariocas” (p. 297). Considero que isso deveria ser mais bem explicitado e tratado com mais cuidado.
Em segundo lugar, chamo a atenção para a ausência de referências à obra de Zephyr Frank (2004). Os trabalhos de Frank e Villa abordam a mesma cidade (o Rio de Janeiro), tratam de período semelhante (meados do século XIX), usam fontes semelhantes (a documentação cartorária) e incorporam de forma inovadora o georreferenciamento. Seria bastante interessante se o leitor interessado nesses tópicos pudesse ver um contraponto mais explícito entre as duas pesquisas.
Finalmente, quero chamar a atenção para falhas na revisão do livro, e isso é um problema não do autor, mas da editora. Faltou uma melhor revisão gramatical, pois o texto contém palavras e expressões que não são de uso corrente na língua portuguesa. Ademais, há referências a livros que não constam na bibliografia final, privando o leitor dessa informação primordial. Um livro tão inovador mereceria um cuidado maior por parte da editora.
Tais observações não diminuem em nada a importância e o interesse do livro. Como já destaquei, suas inúmeras qualidades, tanto em termos de conteúdo historiográfico quanto em termos de avanços metodológicos, o tornam leitura obrigatória não apenas para os interessados em temas como escravidão urbana e história econômica, mas para todos aqueles que queiram se inteirar de novas perspectivas metodológicas para os estudos historiográficos.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FRANK, Zephyr Lake. Dutra’s world: wealth and family in nineteenth-century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004. [ Links ]
Tarcísio Rodrigues Botelho – Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: tarcisio.botelho@gmail.com
Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira – DANTAS (TES)
DANTAS, André V. Do socialismo à democracia: tática e estratégia na Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. 319p. Resenha de: MENDES, Áquilas; CARNUT, Leonardo . Decifra-me ou te devoro! Estado, capital e a urgência do debate crítico na Saúde Coletiva. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.16, n.3, Rio de Janeiro, set./dez. 2018.
Em tempos de tantos embates no movimento do capital contemporâneo, sob o comando do capital fictício, e seus reflexos perversos nas políticas sociais, em geral, e na saúde, em particular, promover uma reflexão crítica radical acerca dos rumos do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) constitui tarefa intelectual e política fundamental para traçar os desafios da Saúde Coletiva. Essa possibilidade certamente é materializada por meio do livro de André Dantas.
A grande contribuição desse autor refere-se à crítica a respeito da estratégia tomada pela Reforma Sanitária a partir da década de 1990. O movimento perdeu sua radicalidade – reivindicando o socialismo – e tentou assegurar os ganhos obtidos nos anos anteriores, insistindo no pleito da cantilena democrática burguesa (Marx, 2012). Porém, esse movimento optou seguir o caminho institucional do reformismo, defendendo um sistema de proteção social, desvinculado dos ideais antagônicos que o forjaram até a década de 1980.
Sobre esta situação, o trabalho de Dantas nos remete a uma indagação que permanece central na contemporaneidade, essencialmente para todos os que defendem a saúde pública no país: é possível apostar na construção institucional, ou seja, promover reformas no Estado Social, 1 como forma de superação da crise atual na saúde?
Historicamente, a esquerda sanitária veio trilhando apenas a institucionalidade das ‘reformas’ por iludirem-se com a ideia de que o Estado social existente possa estar a serviço da produção do ‘bem comum’ (Correia, 2015). Em nossa percepção, aproximada à visão de André Dantas, um passo promissor na constatação dos limites do Estado é reavivar, na memória da Saúde Coletiva, sua ‘intrincada’ relação com o modo de produção capitalista.
Para entender a dinâmica da crise capitalista e seus efeitos na saúde, consideramos importante, antes de tudo, (re)decifrar a natureza do Estado capitalista. Em última, instância, o Estado constitui expressão de uma sociabilidade determinada, assumindo as relações de poder e de exploração nas condições capitalistas. A assunção disso remete à análise do capital como uma relação social de produção – uma ‘forma social’ – e como a ‘forma política’ (estatal) que se associa a essa dinâmica (Hirsch, 2017). Por isso, desconsiderar que o Estado brasileiro, na medida em que é parte integrante das relações capitalistas de produção e sua consonância com a dinâmica mundial do capital, é um deslize crasso e que pôs em risco toda estratégia e tática delineada pelo Movimento da Reforma Sanitária até hoje.
Trata-se, então, de considerar que a relação Estado/capital é orgânica. Neste sentido, não existe separação (nem relativa, que dirá absoluta!) entre o Estado e o capital. Apoia-se aqui na contribuição do debate alemão da derivação do Estado dos anos 1970 que deduz a ‘forma jurídica/política’ (Estado), ou ‘forma contratual’ das contradições da dinâmica do capital. Esta relação atribui ao Estado sua natureza capitalista, assegurando a troca das mercadorias na sua forma-valor e a própria exploração da força de trabalho (Bonnet e Piva, 2017).
Cabe mencionar, nessa reflexão, principalmente a ilusão do processo atravessado pela Reforma Sanitária, a esfinge que os reformistas subestimaram, que nosso autor Dantas se debruçou de forma profícua e que Pachukanis 2 nos ajuda a desmitificar sua essência.
Dantas inicia seu livro explicitando o argumento de Hirsch em que “a maneira pela qual o Estado age para assegurar a reprodução é determinada, em seu conteúdo, pelo movimento do capital e pelas lutas de classe e, em sua forma, pela sua transposição ao nível do aparelho de Estado” (Hirsch apud Dantas, 2017, p. 20). Desse modo, o raio de manobra da burguesia para promover sacrifícios vem se reduzindo, e daí a dificuldade de manter presente a aposta política em relação ao caráter emancipatório da democracia burguesa. É justamente nesse contexto que Dantas indica a retomada do debate tático-estratégico de classe, essencialmente da classe trabalhadora dos anos 1970 para os dias atuais, tendo como central o processo político construído ao redor do Movimento da Reforma Sanitária, no sentido de avaliar os seus desdobramentos.
A tese central do livro polemiza com o que o autor considera o processo de absolutização da democracia no contexto de luta de classes daquele período, compreendida como ‘valor universal’ (Coutinho, 1979), isto é, aspecto nodal da estratégia sanitária e que serviu para que ela fosse ‘devorada’. Dantas adverte que “tal processo em torno da fetichização da democracia” expressa uma divinização ou, sendo fiel a suas palavras, “a absolutização do Estado na consecução da tática do movimento sanitário pela reforma do sistema de saúde” (p. 24). Nessa perspectiva, Dantas não poupa críticas: “a centralidade que crescentemente ganhou a questão democrática deslocou o verdadeiro debate estratégico em nome do socialismo, uma vez que – fosse para promover a autocrítica da esquerda; fosse para lutar contra a ditatura; fosse, enfim, para lutar pelo socialismo – o caminho a percorrer parecia ser o mesmo” (p. 24).
Na primeira parte do livro, o autor concede especial atenção a um panorama teórico-político sobre o Estado e a questão democrática segundo a tradição marxista. De forma geral, nos mostra como Marx e Engels elaboram sua crítica ao Estado burguês, indicando o descaso da burguesia com a questão democrática conforme o avanço das forças produtivas e a imposição de sua dominação no contexto do acirramento da luta de classes. No âmago dessa disputa, Dantas não deixa de ilustrar na base de discussão do papel do Estado, na tradição marxista na virada do século XIX, o debate sobre mais reforma e menos revolução, capitulado pela social-democracia alemã, resvalando em resquícios sobre o pensamento da esquerda marxista, em geral e da esquerda sanitária, em particular.
No segundo capítulo, Dantas se aproxima do debate brasileiro sobre a questão democrática, em sintonia com a temática da revolução. Nessa discussão, percorre o caminho que vai das principais questões ancoradas nas interpretações da formação social brasileira, acerca das quais havia se construído a Estratégia Democrática Nacional (EDN) à elaboração da Estratégia Democrática-Popular (EDP). É dada ênfase a crítica de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho à primeira Estratégia e, posteriormente, como esse último autor foi privilegiado pelo Movimento da Reforma Sanitária e influenciado nos esboços da nova estratégia das classes trabalhadoras que viria a ter no Partido dos Trabalhadores (PT) a sua mais forte vocalização.
Entre vários aspectos nessa discussão, Dantas nos possibilita a compreensão de que o MRSB abandonou a crítica importante de Florestan Fernandes à reflexão profunda do papel e da função do Estado capitalista brasileiro. Dantas destaca a ideia-síntese de Florestan em seu clássico, A revolução burguesa , de que “o Estado não só era incontornavelmente de classe, capturado precipuamente pelos interesses imperialistas e de suas burguesias locais” (…) “como atuava de fato como comitê executivo da burguesia, sem espaços para concessões, uma vez que sob um registro dependente” (p. 113).
Por sua vez, o MRSB priorizou o ensaio de 1979 de Carlos Nelson Coutinho, intitulado “A democracia como valor universal”, em que para além de fazer a crítica à estratégia etapista democrática-nacional, possibilitava as linhas gerais do que viria a ser a EDP liderada pelo PT – esquerda democrática – na década de 1980 e a mola-mestra da trajetória priorizada pelo movimento sanitário: o caminho institucional das reformas por dentro do Estado.
Na segunda parte do livro, Dantas explora as características estruturais e o sentido mais geral da Reforma Sanitária, desde sua ação nos anos 1970 até a atualidade. Destaque é dado às lutas travadas no campo da saúde em que tiveram prioridade a atuação pelo enfrentamento setorial em relação à luta mais ampla no âmbito da sociabilidade das relações capitalistas. Daí o autor mencionar a prioridade da estratégia sanitária se fazer muito mais pela via da institucionalidade, por um lado, e por outro, pela reclamação constante da ausência da classe trabalhadora na defesa de sua agenda.
Dantas chama a atenção, nessa parte, para o destacado papel do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) – ambas instituições nascidas na década de 1970 – na formulação das concepções e táticas do MRSB. O legado dessas instituições marcou os desafios conjunturais e os posicionamentos estratégicos assumidos pelo movimento. Nesse sentido, Dantas nos lembra, não por coincidência, o famoso documento do Cebes de 1979: “A questão democrática na área da saúde” (p. 182). Assim, o autor nos mostra que, nesse ambiente de ‘programa democrático’, o Estado passa a ser lócus preterido para desempenhar papel decisivo na formulação tático-estratégica que se desenhava no interior do MRSB. Por isso, Dantas insiste na ideia do “empenho dos sanitaristas na tática institucional de ocupação de postos na máquina estatal” (p. 183) nesse período.
Integra, ainda, nesta parte do livro, a importância a respeito da agenda democrática do movimento sanitário, nos anos 1970, por meio da pauta prioritária do Movimento Popular em Saúde (MOPS) e que foi elemento de destaque na 8ª Conferência Nacional de Saúde, na Comissão Nacional da Reforma Sanitária e na Assembleia Nacional Constituinte: a questão da participação social. Essa discussão Dantas desenvolve no capítulo 4, sob a forma de uma indagação provocativa, “Reeducar o Estado?”. O objetivo desse pleito foi o de se enfrentar a herança patrimonialista e clientelista da formação do Estado brasileiro, tendo como diretriz a institucionalização do ‘controle social’ na saúde, por meio dos conselhos de saúde nos três níveis de gestão do SUS. Dantas faz um balanço crítico desse mecanismo de democratização do Estado, evidenciando que o resultado do ‘controle social’, até os dias atuais, se resumiu a um processo altamente institucionalizado, distante da força de luta da classe trabalhadora. O autor chama a atenção para o caráter problemático da atuação desses conselhos.
No quinto e último capítulo, intitulado “Reforma Sanitária, SUS e socialismo: questão de princípios”, Dantas insiste na análise do debate estratégico da Reforma Sanitária, alertando para os riscos de suas formulações estratégicas que, por um lado, valorizavam a democracia burguesa, mas, por outro, se afastavam do reconhecimento do caráter capitalista do Estado. Aqui, o destaque do autor é para o desconhecimento dos fatores limitantes da forma e função dessa estratégia sanitária que acabou reforçando a ideia-síntese, ‘saúde é democracia’ (que até hoje é lema em congressos da Abrasco, por exemplo) e também para o não reconhecimento dos obstáculos de sua realização no interior da lógica do modo de produção capitalista.
Na conclusão, o autor discute alguns aspectos que contribuem para uma reflexão mais geral sobre a crise em que o movimento sanitário se encontra, conjuntamente com a dita ‘esquerda democrática’. Daí o título dessa parte ser extremamente provocador: “Da democracia ao socialismo”. Não resta dúvida, nesta parte, que Dantas reconhece os resultados devastadores que a contraofensiva neoliberal provocou a partir da década de 1990, principalmente contribuindo para o esvaziamento do debate estratégico da esquerda brasileira, mas também não escapa de sua análise a fragilidade dos desafios apontados para a luta por essa ‘esquerda democrática’, especialmente no contexto de pós-participação de seus quadros-chave nos postos de comando do governo federal. Dantas delimita bem sua síntese: “O essencial é o deslocamento que ela promoveu, ou pretendeu promover, da centralidade do socialismo para a centralidade da democracia” (p. 281). Para caminhar no sentido contrário, Dantas nos oferece uma alternativa: “Mais do que nunca é preciso que afirmemos que a democratização burguesa não se constitui como alternativa ao socialismo” (p. 282).
O mais importante para a reflexão acerca dos desafios do movimento sanitário é que Dantas não deixa, em nenhum momento, de articular muito bem a necessidade de um debate estratégico que se apoie firmemente numa crítica ao capital e suas formas de exercício de dominação, mantendo presente o socialismo no discurso e na prática democrática. Sem dúvida, trata-se de um livro essencial para ampliar o horizonte do campo da saúde coletiva e que instiga a autocrítica sem desqualificar o empenho dos sanitaristas na luta política do perverso tempo social em que se encontravam. Contudo, ainda assim, isso não nos exime de repensar as estratégias e táticas sobre o alcance de uma outra sociedade. Portanto, não há como fazer isso sem encarar o Estado como ‘a grande Esfinge’. Se não soubermos decifrá-la politicamente, seremos fatalmente devorados mais uma vez.
Referências
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KARL, Marx. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012 . [ Links ]
PACHUKANIS, Évgueni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017 . [ Links ]
Notas
1 A denominação ‘Estado Social’ se apoia em Boschetti (2016), que busca captar a regulação econômico-social por meio de políticas sociais, atribuindo ao Estado capitalista suas determinações objetivas, explicitando que a incorporação dessas políticas pelo Estado não extrai dele sua característica essencialmente capitalista.
2 Evguiéni B. Pachukanis, jurista soviético, escreveu na década de 1920 seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo, desenvolvendo uma ideia original no interior do pensamento marxista no tocante ao papel do direito e do Estado na sociedade capitalista e pós-capitalista. O autor propõe uma investigação sobre o direito com base no método da obra de maturidade de Marx e que se refere especialmente ao texto de O capital. Para mais informações, ver Pachukanis (2017).
Áquilas Mendes – Universidade de São Paulo , Faculdade de Saúde Pública , São Paulo , SP , Brasil. E-mail: aquilasmendes@gmail.com
Leonardo Carnut – Universidade Federal de São Paulo , Centro de Desenvolvimento de Ensino Superior em Saúde , São Paulo , SP , Brasil. E-mail: leonardo.carnut@gmail.com
[MLPDB]Cadernos Pagu. Campinas, n.54, 2018.
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- The Diccionario de Pedagogía by Labor, Barcelona (1936.
- the iconic-textual construction of a pedagogic discourse linked to the ideals of the “New School” / El Diccionario de Pedagogía de Labor, Barcelona (1936.
- la construcción icónico-textual de un discurso pedagógico ligado a los ideales de la Escuela Nueva/ (Bilingual Edition)
- Antón Costa Rico, María Eugenia Bolaño Amigo
- PDF-ENPDF-ES
- Escolarização da aritmética e produção de manuais escolares no Rio Grande do Sul no início do século 20
- Carmen Vieira Mathias, Claudemir de Quadros
- O Ensino de Arte na Escola Nova em Minas Gerais na Perspectiva da Revista do Ensino entre os anos de 1927 e 1933
- Denise Perdigão Pereira
- Maçonaria e Educação – Poucos mas bons
- Eduardo Arriada, Elomar Tambara
- O caderno de sabatinas: uma proposta de análise sobre culturas e práticas escolares do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Farroupilha (Rio Grande do Sul/Brasil)
- Gisele Belusso, Terciane Luchese
- Nigeria’s 1969 Curriculum Conference: a practical approach to educational emancipation
- Grace Oluremilekun Akanbi, Oluremi Adenike Abiolu
- PDF-EN
- “The Telescola… is an immense classroom, one the size of the Lusitanian Atlantic territory!” / “A Telescola … é uma imensa sala de aula, do tamanho da lusitana faixa atlântica!” (Bilingual Edition)
- Luís Alberto Alves, Rui Guimarães Lima
- PDF-ENPDF
- “Na Grande Pátria, Nossa Tão Amada, o Culto que lhe Devemos”: o Ensino de História no Grupo Escolar Barão de Mipibu – RN (1909-1920)
- Paula Lorena C. Albano da Cruz, Maria Inês S. Stamatto
- Entre a moral, a ciência e a doutrina: os discursos educacionais e a profissão docente
- Renata Marcílio Cândido, Arlindo da Silva Lourenço
- Alfabetizadoras da EJA: entre Memórias, Saberes e Viveres (1940-1960)
- Rita Tavares de Mello, Sônia Maria dos Santos
- Atos fundantes da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro: entre o ideal e o concretizado (1953-1960)
- Sonia Maria Gomes Lopes, Sauloéber Tarsio de Souza
Resenhas
- Entre morros, mares, campos e aldeias: costuras historiográficas sobre a escolarização das populações rurais. LIMA, S.C.F.; MUSIAL, G.B.S. (Orgs.). Histórias e memórias da escolarização das populações rurais: sujeitos, instituições, práticas, fontes e conflitos. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
- Juliana Pereira de Araújo
- O estudo do manuscrito de João Köpke: um objeto de memória e história da leitura FERREIRA, N.S.A. Um estudo sobre “Versos para pequeninos”, manuscrito de João Köpke. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2017. 275 p.
- Larissa de Souza Oliveira
Publicado: 2018-08-01
Relaciones entre autoritarismo y educación en el Paraguay (1869-2012) | David Velázquez e Sandra D’Alessandro
Em 2014, a equipe de Educação em Direitos Humanos e Cultura da Paz, do Serviço Paz e Justiça do Paraguai (SERPAJ-PY), dava a conhecer o primeiro de quatro volumes de uma coleção que busca estabelecer as Relações entre autoritarismo e educação no Paraguai (1869- 2012). Cada tomo é dedicado a um período da história paraguaia, sendo que o primeiro compreende de 1869 a 1930 (publicado em 2014), o segundo, de 1931 a 1954 (2016), e o terceiro, de 1954 a 1989 (2018), que coincide com o stronismo. Faltando ainda o último volume, a coleção conta com uma equipe de pesquisa integrada por Ana Barreto, David Velázquez Seiferheld e Sandra D’Alessandro, coordenada por Ignacio Telesca. A autoria do terceiro volume, apresentado aqui, corresponde a Velázquez Seiferheld e a D’Alessandro.
Ao apresentarem um balanço sobre os nexos entre autoritarismo e educação durante o stronismo, os autores se depararam com a necessidade de expor as principais interpretações que tentam explicar as causas da longevidade da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), para assim poder apresentar as fases e os principais elementos do desenvolvimento do ensino durante esse período no Paraguai. A tarefa, a princípio, hercúlea, é narrada a partir de uma linguagem que, sem abandonar o rigor científico, é acessível ao público em geral. O objetivo dos autores é mostrar à população paraguaia alguns dos mecanismos utilizados pelo stronismo para garantir sua sobrevivência ao longo de 35 anos, sendo a educação um fator chave para entender a permanência de um modelo autoritário bem-sucedido. Leia Mais
Rumos da História. Vitória, v.1, n.8, ago./out. 2018.
- Leonardo Bis Santos, Antonio Donizetti Sgarbi, Diones Augusto Ribeiro
Artigos
- “V de vingança” e a literatura no ensino da história quadrinizada
- Tânia Zimmermann, Mônica Suminami, Talles Bispo
- A construção da emancipação nos espaços campesinos pela via da educação do campo
- Sabrina Stein, Charles Moreto
- O cenário político/jurídico e atuação do MST na desapropriação de terras no estado do Rio Grande do Sul por interesse social (1960-2017)
- Caroline da da Silva
- Canteiro discursivo: transposição alagoana do rio São Francisco uma intervenção cíclica no semiárido?
- Amanda Monteiro Melo
- Patrimônio arquitetônico Igreja e Residência dos Reis Magos
- Henrique Sepulchro Furtado
- Cultura imaterial e formação docente: por uma educação emancipante
- Aldieris Braz Amorim Caprini, Nadia Juliana Rodrigues Serafim
- Cogitações acerca das com-possibilidades de se produzir uma educação patrimonial emancipatória através dos sambaquis kennedienses
- Vinícius Aguiar Caloti
História da Enfermagem. Brasília, v.9, n.1, 2018.
POSTED BY: HERE 31 DE JULHO DE 2018
EDITORIAL
- História da Educação de Enfermagem e as Tendências Contemporâneas | Lucila Cárdenas Becerril
- History of Nursing Education and the Contemporary Trends | Lucila Cárdenas Becerril
- Historia de la educación de Enfermería y las tendencias contemporáneas | Lucila Cárdenas Becerril
ARTIGOS ORIGINAIS
- Fundação e consolidação da Santa Casa de Misericórdia de Guaxupé-MG | Foundation and consolidation of Santa Casa de Misericórdia de Guaxupé-MG | Fundación y consolidación de la Santa Casa de Misericordia de Guaxupé-MG | Maria Regina Guimarães Silva, Maria Cristina Sanna
- “O governo do Estado de São Paulo se interessa pelo teu filho”: o ideal de mãe paulista entre 1937 e 1964 | “The government of the state of São Paulo is interested in your son”: the São Paulo mother ideal between 1937 and 1964 | “El gobierno del estado de São Paulo se interesa por tu hijo”: el ideal de madre paulista entre 1937 y 1964 | Danilo Fernandes Brasileiro, Rodrigo Contrera Ramos, Bianca Oliveira Ferro, Maria Cristina da Costa Marques
- O sismo de 1755: a atuação do enfermeiro na assistência aos feridos de Lisboa | The 1755 Lisbon earthquake: the work of nurses in the care provided to the wounded | El sismo de 1755: actuación del enfermero en la atención de los heridos de Lisboa | Ângela Fernandes, Anastasiya Trunova, Carolina Vicente, Miguel Valente, | Helga Rafael, Isabel Ferraz, Óscar Ferreira, Cristina Baixinho
- Recuento de lo escrito sobre historia de enfermería en México (1990-2015) | Recapitulação da história da enfermagem no México (1990-2015) | Recount of the history of nursing in Mexico (1990-2015) | Lucila Cárdenas-Becerril, Beatriz Elizabeth Martínez-Talavera, Sandra Sonalí Olvera Arreola, Reyna Reyes Reyes, María Martha Quintero Barrios, Liliana I. Benhumea Jaramillo
- Maria José de Oliveira: trajetória de vida e contribuições para a construção da identidade profissional da enfermeira na Bahia | Maria José de Oliveira: life trajectory and contributions for the construction of nurses professional identity in Bahia | María José de Oliveira: trayectoria de vida y contribuciones para la construcción de la identidad profesional de la enfermera en Bahía | Núbia Lino de Oliveira, Gilberto Tadeu Reis da Silva
- História e memória de Maria do Amparo Barbosa | History and memory of Maria do Amparo Barbosa | Historia y memoria de Maria del Amparo Barbosa | Francisca Aline Amaral da Silva, Benevina Maria Vilar Teixeira Nunes
IN MEMORIAM
- Victoria Secaf (1932-2018) | Emiko Yoshkiwa Egry
- Alfredo Bermúdez González (1956-2018) | Rosa María Ostiguín Meléndez
Revista TEL. Irati, v. 9, n.1, 2018.
Dossiê – Políticas locais, centralidades e regiões: Brasil, Chile e Argentina
Editorial | Editor’s Note | Presentación
- POLÍTICAS LOCAIS, CENTRALIDADES E REGIÕES: BRASIL, CHILE E ARGENTINA
- José Adilçon Campigoto, Ancelmo Schorner
Dossiê | Special Issue | Dossier
- Haciendo historia regional en la Argentina
- Making regional history in Argentina
- Fazendo história regional na Argentina
- Susana Bandieri (UNCOMA)
- Los procesos de regionalización en el Nordeste argentino en las décadas de 1960 y 70: el aporte de las Ciencias sociales
- The regionalization processes in the argentine Northeast in the 1960s and 70s: the contribution of social sciences
- María Silvia Leoni (UNNE), María del Mar Solís Carnicer
- Desde la acción racional individual a La cooperación: los caminos de la reciprocidad y la autogestión colaborativa
- From rational and individual action to cooperation: the route of reciprocity and collaborative self-management
- Da ação racional ind
- Fernando Marcelo de la Cuadra (UCM)
- Consumo e práticas do espaço nas letras musicais de Tonico e Tinoco (1920-1950)
- Consumption and practices of space in the musical lyrics of Tonico and Tinoco (1920-1950)
- Consumo y prácticas del espacio en las letras musicales de Tonico y Tinoco
- ANDERSON TEIXEIRA RENZCHERCHEN (UNICENTRO), JOSÉ ADILÇON CAMPIGOTO (UNICENTRO), ANCELMO SCHÖRNER (UNICENTRO)
- Artigos | Articles | Artículos
- “Importa o solo que eu piso?” Sêneca e a trajetória de um homem no exílio
- “Does it matter the soil i walk on?” Seneca and the trajectory of a man in exile
- “¿Importa el suelo que yo piso?” Séneca y la trayectoria de un hombre en el exilio
- Marcos Luis Ehrhardt (UNIOESTE)
- Mulheres e violência: lugares e trajetórias impressas em fontes criminais
- Women and violence: places and trajectories printed on criminal sources
- Mujeres y violencia: lugares y trajetorias impresas en fuentes criminales
- Claudia Priori (UNESPAR), Elaine Fernanda de Souza
Projetos de Pesquisa | Research’s Note | Proyecto de Investigación
- A questão do Timbó e Canoinhas: discursos e representações na imprensa do Paraná e Santa Catarina (1900-1908)
- The question of Timbó and Canoinhas: discourse and representations in the press of Paraná and Santa Catarina (1900-1908)
- La cuestión del
- Eloi Giovane Muchalovski (UNICENTRO)
Resenhas | Book Reviews | Reseñas
- Um retorno à solidez para a projeção de um novo futuro
- A return to solidity for the projection of a new future
- Un regreso a la solidez para la proyección de un nuevo futuro
- Debora da Costa Pereira (IFPR)
- Dimensões relevantes para o êxito dos programas de mobilidade acadêmica internacional
- Relevant dimensions to the success of international academic mobility programs
- Dimensiones relevantes para el éxito de los programas de movilidad académica inter
- RAPHAEL VIANA COUTO (UNESPAR)
Publicado: 2018-08-28
EmRede – Revista de Educação a Distância. Porto Alegre, v. 5, n. 2, 2018.
Abertura na educação: Recursos e práticas
Expediente
- Expediente v. 5, n. 2, 2018
- Mára Lúcia Fernandes Carneiro | PDF
Editorial
- Editorial
- Tel Amiel, Elena Mallmann, Henrique da Silva Oliveira, Mára Lúcia Fernandes Carneiro | PDF
Artigos convidados
- RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS NO BRASIL: 10 ANOS DE ATIVISMO
- Tel Amiel, Priscila Gonsales, Debora Sebriam | PDF
- OPEN EDUCATIONAL RESOURCES IN GERMANY STATE OF DEVELOPMENT AND SOME INITIAL LESSONS LEARNED
- Jan Neumann, Dominic Orr, Jöran Muuß-Merholz | PDF (English)
- RECURSOS EDUCATIVOS ABIERTOS EN URUGUAY: AVANCES Y DESAFÍOS
- Virginia Rodés, Patricia Dìaz | PDF (Español (España))
Artigos
- QUE SIGNIFICA SER UM EDUCADOR ABERTO? UMA PROPOSTA DE DEFINIÇÃO
- Fabio Nascimbeni, Daniel Burgos, Edison Spina | PDF
- WIKIPÉDIA, UM RECURSO EDUCACIONAL ABERTO?
- Teresa Cardoso, Filomena Pestana | PDF
- JOGOS DIGITAIS NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: ALTERNATIVA A APRENDIZAGEM E A DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
- Daniela Karine Ramos, Bruna Santana Anastácio | PDF
Relatos
- POR QUE USAR SOFTWARE LIVRE SERIA UMA OPÇÃO EDUCACIONAL?
- Ana Cristina Fricke Matte | PDF
Resenha Crítica
- PERFORMANCE DOCENTE NA (CO)AUTORIA DE RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS (REA) NO ENSINO SUPERIOR: ATOS ÉTICOS E ESTÉTICOS
- Juliana Sales Jacques | PDF |
Publicado: 2018-07-19
História Oral. Rio de Janeiro, v.21, n.1, 2018.
Instituições e práticas sociais institucionalizadas
- Expediente
- Luciana Quillet Heymann
APRESENTAÇÃO
- Apresentação
- Luciana Quillet Heymann, Regina Weber
- DOSSIÊ
- Instituições públicas e produção cultural em Teresina (PI) nas décadas de 1970 e 1980
- Raimundo Nonato Lima dos Santos
- Mapear instituições educacionais e suas práticas: os ginásios vocacionais paulistas
- Antonio Vicente Marafioti Garnica, Maria Eliza Furquim Pereira Nakamura
- Por uma história da implantação do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal de Lavras
- Bruno Adriano Rodrigues Silva, Kleber Tüxen Carneiro
- Memória e história: educação profissional numa escola industrial
- Vania Beatriz Merlotti Herédia
- Nas ruas com as baianas de acarajé: desafios, lutas e representatividade
- Debora Simões de Souza Mendel
- A festa do congado diante da salvaguarda: novas contribuições no processo de formação da irmandade Os Carolinos
- Wanessa Pires Lott
- Narrativas sobre o processo de patrimonialização das fortalezas catarinenses: estratégias de adesão em torno do patrimônio cultural
- Pedro Mülbersted Pereira
- Memória coletiva sobre a gênese e institucionalização da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas
- Geane Kantovitz, Claricia Otto
- “Então, de repente, a ideia de fazer uma coisa maior pra cidade…”: institucionalização e ação da Associação dos Festivais de Coros do Rio Grande do Sul
- Lúcia Helena Pereira Teixeira
- Envelhecimento em uma instituição de longa permanência para idosos: experiências do Lar dos Velhinhos de Campinas
- Vanessa Fernandez
ARTIGOS VARIADOS
- Repensando las articulaciones entre experiencias represivas y experiencias militantes: Walter Calamita, de la Unidad Penitenciaria 4 a la “opción” italiana (Argentina, 1974-1983)
- Silvina Inés Jensen, María Lorena Montero
- Pelo direito í cidade: memórias de uma ocupação de terra no Bairro Dom Almir, em Uberlândia(MG), 1990-2000
- Rosângela Maria Silva Petuba
NOTAS
- Pareceristas
- Luciana Quillet Heymann
PUBLICADO: 2018-07-16
Urbana. Campinas, v.10 n. 1, 2018.
jan./maio [18] – Dossiê: Cidade do século XVIII
EDITORIAL
- Editorial Dossiê Cidade do Século XVIII
- Rodrigo Almeida Bastos
- DOSSIÊ
- Décimas urbanas e censos: a dimensão material e visual de vilas e cidades em fontes textuais
- Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Esdras Araujo Arraes, Nádia Mendes de Moura, Diogo Fonseca Borsoi
- A paisagem urbana das cidades hispano-americanas e suas transformações no século XVIII
- Rodrigo Espinha Baeta
- As casas de ópera e o Rio de Janeiro no século XVIII: novos espaços de liberdade
- Sergio Moraes Rego Fagerlande
- A rede urbana no oeste do rio sapucaí – Cabo Verde: arraial, freguesia e vila
- Carolina Farnetani de Almeida, Renata Baesso Pereira
- As vilas mineiras setecentistas
- Simona Costa
- Comodidad y orden público en Madrid en el siglo XVIII. El proceso de configuración del límite oriental de la ciudad. Comfort and public order in Madrid in the eighteenth century. The process of setting the eastern boundary of the city.
- Concepción Lopezosa Aparicio
- PDF (ESPAÑOL (ESPAÑA))
- Robert Chester Smith e os estudos das cidades coloniais
- Sabrina Fernandes Melo
- ARTIGOS
- Santa Lucía: imágenes de un cerro que mira una cuidad
- Amari Peliowski Dobbs, Catalina Valdés Echenique
- PDF (ESPAÑOL (ESPAÑA))
- Goiânia, a metrópole do sertão: representações visuais da capital goiana na revista oeste
- Leonardo Dimitry Silva Guimarães
PUBLICADO: 2018-07-14
Urbana. Campinas, v.9 n. 3, 2017.
set./dez. [17] – Dossiê: Cidade e Memória
EDITORIAL
- Editorial – Dossiê Cidade e Memória
- Viviane Gomes de Ceballos
DOSSIÊ
- Memória como resistência na metrópole: transformação espacial e as homenagens ao operário Santo Dias da Silva
- Anaclara Volpi Antonini
- Patrimônio cultural potiguar: história, memória e narrativas do presente
- Gabriela Assunção
- Paulista aberta: significados da avenida símbolo da cidade de São Paulo
- Antonio Fagner da Silva Bastos, Sérgio Carvalho Benício de Mello
- O parque moscoso como espaço-memória da cidade de Vitória: trabalhando com leitura de imagens
- Larissa Pinheiro
- A cidade capitalista e o progresso gentrificador: o processo de remodelação do Anhangabaú (1877-1917)
- Rafael Carlos Lima Oliveira
- Uma São Paulo dos Kanz, 1860-1915
- Lindener Pareto
- Cartões-postais: entre as práticas visuais e a conservação do patrimônio urbano
- Maria de Fátima de Mello Barreto Campello, Renata Campello Cabral, Jaianny Fernandes Duarte, Thaysa de Oliveira Silva
- ARTIGOS
- El onganiato y el sueño de la casa propia: la propaganda gubernamental de los núcleos habitacionales transitorios
- Gabriela Gomes
- PDF (ESPAÑOL (ESPAÑA))
- Dos prazeres às interdições urbanas: imagens sensíveis de São Paulo nos contos de Mário de Andrade
- Thainã Teixeira Cardinalli
PUBLICADO: 2018-07-14
História da Educação. São Leopoldo, v. 22, n. 55, maio/ago., 2018.
Apresentação – Introduction
Sessão especial – Special issue
- Los estudios de las emociones en los manuales escolares desde el punto de vista historiográfico: una entrevista con Kira Mahamud Angulo
- Luciane Sgarbi Grazziotin
- PDF.ES (Español (España))
- Dossiê “Estudos sobre o ensino secundário na América Latina nos anos 1950 e 1960”
- Apresentação do Dossiê “Estudos sobre o ensino secundário no Cone Sul nos anos 1950 e 1960”
- Norberto Dallabrida, Myriam Southwell
- Formato, pedagogías y planeamiento para la secundaria en Argentina: notas sobresalientes del siglo XX
- Myriam Southwell
- PDF.ES (Español (España))
- Las Asambleas de Profesores en la consolidación del Consejo de Enseñanza Secundaria en Uruguay (1949-1961)
- Lucas D’Avenia
- PDF.ES (Español (España))
- Luis Contier como catalisador de redes: classes experimentais e renovação do ensino secundário em São Paulo nas décadas de 1950 e 1960
- Letícia Vieira, Daniel Ferraz Chiozzini
- A inspiração nos trabalhos dos “grandes centros de estudos pedagógicos”: considerações sobre as Classes Integrais do Colégio Estadual do Paraná (1960-1967)
- Sergio Roberto Chaves Junior
- Circuitos e usos de modelos pedagógicos renovadores no ensino secundário brasileiro na década de 1950
- Norberto Dallabrida
Artigo / Article / Artículo
- Educação dos sentidos e das sensibilidades: entre a moda acadêmica e a possibilidade de renovação do âmbito das pesquisas em história da educação
- Marcus Taborda de Oliveira
- PDF.IN (English)
- Utopías, distopías y retos creativos para la construcción de la humanidad en la historia educativa occidental: a propósito del V centenario de la edición de la Utopía de Th. More (1516-2016)
- María Eugenia Bolaño Amigo, Antón Costa Rico
- PDF.ES (Español (España))
- Luiza, Isabel e Leopoldina: uma história de mulheres, nobreza e educação no Brasil imperial (1856-1864)
- Ana Cristina Borges López Monteiro Francisco, Maria Celi Chaves Vasconcelos
- Educadora Henriqueta Galeno: trajetória de uma literata feminista (1887-1964)
- Lia Machado Fiuza Fialho, Évila Cristina Vasconcelos de Sá
- Têmpera forte e completo desprendimento: história e memória das docentes no sertão paulista (1932-1960)
- Jorge Luís Mazzeo Mariano, Arilda Ines Miranda Ribeiro
- Infancia y exilio: historias de vida de los niños de la guerra civil española en Bélgica
- Andres Paya Rico
- PDF.ES (Español (España))
- A educação ultranacionalista japonesa no pensamento dos nipo-brasileiros
- Monica Setuyo Okamoto
- El poder simbólico de la Unesco en América Latina sobre el vínculo Flacso y Unesco
- Anabella Abarzúa Cutroni
- PDF.ES (Español (España))
- Mestres do amanhã: o intelectual Anísio Teixeira e a pós-graduação no Brasil (1951-1964)
- Fernando César Ferreira Gouvêa
- O testemunho dos arquivos e o trabalho do historiador da educação
- Juarez José Tuchinski dos Anjos
- Mapping the museology of education in Spain: an examination of where the issue currently stands
- Pablo Álvarez Domínguez
- PDF.IN (English)
- PDF (Español (España))
- A linguagem posta à prova pelo tempo: Carlo Ginzburg e suas contribuições para a história da educação
- Rodrigo Ribeiro Paziani, Humberto Perinelli Neto
Documento / Document / Documento
- Portaria circular n. 2 da Diretoria de Educação e Saúde Pública do Município de Pelotas/RS (1941)
- Patrícia Weiduschadt, Renata Brião de Castro
- Publicado: 2018-07-12
Revista Eletrônica da ANPHLAC. São Paulo, n. 24, 2018.
Escritas de si nas Américas
Apresentação
- Apresentação do dossiê “Escritas de si nas Américas”
- Romilda Costa Motta, Fabiana de Souza Fredrigo
Dossiê
- As imagens de Simón Bolívar: do general iluminista aos usos do passado e das crônicas coloniais
- Marcus Vinícius de Morais
- As imagens do jornalista Héctor Florencio Varela sobre Madame Lynch e o Paraguai no pós-Guerra da Tríplice Aliança
- Natania Neres Silva
- Memórias e entrevistas de um professor primário para um inquérito folclórico argentino
- Vitor Hugo Silva Néia
- Para quebrar o monólogo masculino: reflexões sobre o papel das mulheres no mundo das letras nas correspondências entre Gabriela Mistral e Victoria Ocampo, 1926 a 1956
- Ana Beatriz Mauá Nunes
- “Desterro”, “Exílio Dourado”, “Esquecimento”: a experiência do ostracismo de dois intelectuais paraguaios em primeira pessoa (1950-1965)
- Marcela Cristina Quinteros
- Esculpir a vida com palavras: Autobiografia de Marina Núñez del Prado (1908-1995)
- Giovanna Pezzuol Mazza
- A traição do falcão: Ángel Rama nos Estados Unidos
- Pedro Demenech
- Cartas da Revolução Cubana: Reinaldo Arenas antes do exílio Mariel
- Jorge Luiz Teixeira Ribas
- O Fundamentalismo Cristão e ascensão da Direita Cristã nos Estados Unidos através da obra “Jerry Falwell: uma autobiografia”
- Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior
- “O que é normal e o que é louco?” A vida com transtorno bipolar na autobiografia em quadrinhos Parafusos de Ellen Forney
- Yonissa Marmitt Wadi, Diego Luiz dos Santos
Resenhas
- Quando trincheiras de ideias valem mais que trincheiras de pedras: combates de ideias entre dois líderes das independências hispano-americanas
- Eugênio Rezende de Carvalho
Artigos
- O Pensamento latino-americano nos anos 1960 e 1970: Debates, ideias, conceitos
- Alexandre Queiroz
- Gabriela Mistral: Uma trajetória intelectual
- Ana Amelia de Moura Cavalcante de Melo
- Os robôs de Asimov e o futuro da humanidade
- Andreya Susane Seiffert
Publicado: 2018-07-11
Os papéis da Inquisição. Conservação e dispersão na Europa, América e Ásia / Revista de Fontes / 2018
O legado documental das Inquisições: reflexões sobre a sobrevivência dos arquivos do Santo Ofício.
Falar do património documental legado pelos diferentes processos de abolição dos tribunais inquisitoriais ibéricos e romano significa algo de muito diverso dependendo das historiografias que dele se ocupam. Os cartórios dos Conselhos de Portugal e de Espanha tiveram maior fortuna que o arquivo da Congregação do Santo Ofício de Roma, o qual perdeu muito do seu acervo durante as suas deslocações. Não obstante, os cenários são contrastantes: os três tribunais peninsulares portugueses conservaram a sua documentação, enquanto que o de Goa foi destruído. Quanto aos tribunais que dependiam do Consejo de Madrid, quase todos viram os seus fundos desaparecer, com excepções notáveis como os de Cuenca, Toledo, Canárias e o tribunal do México, com jurisdição sobre parte da América espanhola e Filipinas.
O dissemelhante destino dos cartórios inquisitoriais não gerou o mesmo tipo de respostas nos vários países. Os estudos sobre as inquisições reflectiram, em larga medida, as prioridades das sociedades liberais nascentes, bem como, por seu turno, imperativos etiológicos das novas nações americanas. No entanto, as historiografias oitocentistas, apesar dos caminhos autónomos que trilharam, das fontes que os particularismos nacionais e intelectuais convocaram para apreciar o fenómeno histórico do Santo Ofício, não deixaram de convergir em topoi comuns. Temas como a censura, o atraso cultural ou a dissidência geraram inquietações reflexivas, cujas respostas procuraram os estudiosos encontrar em documentos que mais directamente ilustraram a manifestação persecutória / repressiva dos tribunais, como as listas de autos-da-fé ou, sobretudo, os processos inquisitoriais. Com efeito, esta tipologia de fonte adquiriu uma projecção transversal às diferentes historiografias, que fomentaram práticas de edições integrais de processos e contribuíram para uma tendencial centralidade dos mesmos no apreciar da fenomenologia inquisitorial. Uma das consequências da preponderância desta documentação foi, provavelmente, o relativo atraso que gerou quanto à dissociação da função persecutória / penal do tribunal e ao seu reconhecimento enquanto instituição, cujo funcionamento implicava uma variedade de tramitações burocráticas para além do auto judicial em si mesmo, as quais se manifestavam em outras tipologias documentais.
Ao invés, a necessidade de olhar para a documentação procedente dos cartórios inquisitoriais de forma ampla, promovendo um esforço de sistematização e de inventariação dos fundos remanescentes, teve um forte impulso em contextos historiográficos como o espanhol, onde as lacunas documentais afectavam vários dos tribunais peninsulares e americanos. Com efeito, a historiografia espanhola registou um aturado esforço de reflexão relativo a este legado patrimonial, mas também à constituição e organização dos cartórios inquisitoriais [1]. Não é, seguramente, uma coincidência que a consagração dos “estudos inquisitoriais [2] ” enquanto área disciplinar teorizada tenha ocorrido em Espanha, país em que um quadro documental profundamente lacunar obrigou os seus historiadores, num momento histórico particular [3], a diversificar o seu olhar para a Inquisição e as suas fontes de conhecimento. Foi a recusa de uma leitura particularista (atomizada), dividida em tribunais, dos editores da Historia de la Inquisición en España y América, e a opção de uma narrativa que revelasse a Inquisição no seu “sistema orgánico de sincronías” e “como proceso global” que permitiu que o Santo Ofício fosse encarado enquanto instituição, enquanto – diríamos hoje – realidade sistémica. É por demais significativo que a expressão institucional da consagração dessa área disciplinar – o Centro de Estudios Inquisitoriales, criado em 1980 e o Instituto de Historia de la Inquisición, fundado em 1985 [4] – não tenha nunca tido o seu paralelo em países como o México ou Portugal, onde os cartórios peninsulares se conservaram num estado de invejável integridade, mas não se verifica qualquer tradição historiográfica que reclame essa filiação intelectual.
Sintomaticamente, a evolução dos arquivos inquisitoriais, na sua organização interna, nos seus silêncios ou lacunas, são inquietações que permaneceram, em grande medida, à margem dos percursos historiográficos devedores de contextos de hiper-abundância documental [5]. Em Portugal, como no México, os vazios documentais não foram tidos como suficientemente significativos para gerar inquéritos sistemáticos à questão da ausência enquanto expressão de uma problemática, quer de evolução orgânica e de prioridades institucionais, quer custodial [6]. O quadro visível de abastança informativa contribuiu, desta forma, para emprestar à lacuna o valor de um natural desaparecimento ocasionado pela passagem do tempo, atrasando a possibilidade do seu estudo enquanto fruto de uma escolha, de uma perda ou de uma espoliação pela acção de agentes concretos e, portanto, da identificação desses mesmos momentos [7].
Este dossier pretende ser um contributo para o conhecimento das atitudes institucionais, sociais e culturais sobre o património documental inquisitorial que possibilite uma releitura dos “fundos inquisitoriais” à luz da sua constituição – isto é, da conservação dos antigos cartórios dos tribunais –, mas também dos canais de dispersão que promoveram a divisão do que seriam, no início, unidades sistemicamente integradas.
O estudo das lacunas documentais enquanto via para a reconstituição da organização dos cartórios inquisitoriais [8] faz com que o historiador deva conferir especial atenção, não só ao período que compreende o processo de encerramento dos tribunais entre os finais do século XVIII e primeira trintena de anos do século XIX, mas também às décadas que se seguiram à sua extinção, quando as inquisições passaram a ser objecto de curiosidade histórica. Devido aos sentimentos de animadversão que suscitou, mas também à fidelidade de quantos haviam participado do múnus inquisitorial, latu sensu, o ocaso do Santo Ofício fez-se acompanhar de uma dispersão dos papéis inquisitoriais, mais célere que o cumprimento das normativas régias em vista à sua conversão, primeiro, e acomodação, depois [9]. Entre o afã de quem invadia as instalações do Santo Ofício para destruir, pilhar ou observar e o zelo de quem procurava manter o segredo e por isso subtraía (preservava) ou destruía, a extinção dos tribunais converteu os seus antigos documentos, devido à ineficácia da sua própria conservação, em curiosidades históricas que alimentaram um comércio de papéis destinados a enriquecer bibliotecas públicas ou particulares. Paralelamente, mesmo onde a supressão dos tribunais decorreu sem tumultos ou sobressaltos, a lenta execução das normativas oficiais não impediu a divisão do património documental do Santo Ofício, que permaneceria repartido em diferentes depósitos, formando-se núcleos progressivamente olvidados à medida que os fundos primaciais dos tribunais se assumiam enquanto tais perante novas gerações de estudiosos [10]; ou, mesmo, quando uma visão patrimonialista da documentação por parte dos seus responsáveis motivou a abertura de canais “eruditos” de dispersão transnacionais [11].
A reconstituição destes canais de dispersão é, hoje, fundamental, para se atingir um conhecimento mais consolidado da estrutura dos cartórios inquisitoriais no momento da supressão dos tribunais e, por conseguinte, da sua progressão enquanto instituição. Sendo certo que os tribunais do Santo Ofício conheceram períodos de maior ou menor organização dos seus cartórios, o conhecimento das opções institucionais tomadas durante o seu período de vigência, das suas necessidades e prioridades é um desígnio que exige uma compreensão das vias de sofisticação do aparelho inquisitorial, nomeadamente, a partir das necessidades de criação de séries documentais específicas para cada função ou tarefa. A vida da instituição, plasmada através dos registos escritos dos procedimentos inquisitoriais, foi confrontada com exigências impostas pela mudança dos tempos e das mentalidades, o que obriga a que a evolução do arquivo, na sua inovação, mas sobretudo nas suas lacunas – para além das perdas ocasionadas por conflitos ou desastres naturais – seja forçosamente entendida como o resultado de uma vontade, seja esta institucional, ideológica ou de outra ordem [12]. É este mapa de maturação institucional que o estudo dos processos de conservação, em articulação com os canais de dispersão, permitirá ilustrar. Por este motivo, os organizadores deste dossier desafiaram estudiosos de diferentes tribunais a olhar para além dos núcleos documentais reunidos nos arquivos nacionais, onde tendencialmente foram acomodados os antigos cartórios dos tribunais, e analisar os processos de constituição de fundos inquisitoriais paralelos ou a circulação de documentação dispersa e a sua ulterior incorporação em bibliotecas ou arquivos. Este desafio, foi primeiramente concretizado no Workshop internacional “Os papéis da Inquisição: conservação e dispersão na Europa, América e Ásia”, realizado na Universidade Católica Portuguesa a 25 de Junho de 2018 em co-organização pelo Centro de Estudos de História Religiosa, pela Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste e por El Colégio de México. É agora acolhido pela Revista de Fontes na sua versão escrita.
O dossier consta de sete contributos, referentes aos fundos documentais das várias inquisições modernas na Europa e na América. O primeiro texto, da autoria de Bruno Lopes e Fernanda Olival, centra-se na documentação produzida pelo fisco da Inquisição e conservada na Biblioteca Pública e no Arquivo Distrital de Évora. Os autores procuram traçar a história custodial destes documentos e a sua relação com outros fundos documentais semelhantes, procurando aferir a importância desta documentação para o estudo do funcionamento do tribunal inquisitorial.
Bruno Feitler encetou, no seu artigo, uma difícil investigação sobre as peculiaridades e ritmos de um cartório desaparecido, pertencente ao único tribunal português que funcionou em território não europeu. Identificando os momentos fundamentais que afectaram a integridade do arquivo da Inquisição de Goa até à sua extinção definitiva, o autor proporciona uma panorâmica do que terá sido a estrutura do cartório nos momentos mais próximos à sua destruição, bem como, contexto dessa orgânica, o material remanescente, hoje custodiado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
À semelhança do primeiro artigo, elaborado por Bruno Lopes e Fernanda Olival, o terceiro contributo centra-se também, essencialmente, na documentação de natureza fiscal produzida pela Inquisição. Trata-se do caso do tribunal de Valencia. Enrique e José María Cruselles Gómez, Irene Manclús Cuñat e María José Carbonell Boria analisam as dinâmicas de dispersão dos fundos inquisitoriais valencianos, apresentando os documentos que se encontram dispersos por vários arquivos da cidade.
Andrea Cicerchia centra-se na Congregação romana através da análise de um documento produzido num contexto muito particular. Elaborando uma minuciosa análise e transcrição de uma minuta de inventário elaborada no âmbito da república romana de 1849, o autor apresenta uma descrição do que seria o arquivo da Congregação naquela data, bem como as formas de organização dos papéis do Santo Ofício romano, num momento em que as inquisições ibéricas tinham já sido abolidas.
No seu artigo, Gabriel Torres Puga apresenta-nos uma questão presente nas realidades americanas e europeias da Inquisição espanhola: a escolha entre manter o segredo ou preservar o arquivo em momentos críticos. O estudo apresenta-nos um quadro geral e comparativo das atitudes dos ministros do Santo Ofício quanto à gestão dos papéis inquisitoriais, quer no que diz respeito à sua recuperação, quer quanto à preservação do segredo de que se esperava serem alvo. Numa incursão por vários arquivos inquisitoriais, o autor apresenta uma reflexão sobre um aspecto menos estudado da preservação dos cartórios inquisitoriais: a intervenção dos seus próprios responsáveis e a possibilidade de que eles mesmos tivessem tido alguma responsabilidade na destruição do seus respectivos arquivos.
Jaqueline Vassallo alerta para um outro nível de dispersão, decorrido a nível local, de acervos que não foram alvo da mesma atitude por parte dos poderes centrais no momento de extinção dos tribunais: os arquivos das comisarías das periferias dos distritos inquisitoriais, nomeadamente, o caso das regiões do Río de La Plata e do Tucumán. Numa aproximação ao interesse e atenção das elites letradas para com o passado inquisitorial da sua sociedade, a autora revela-nos rastos de papéis inquisitoriais em bibliotecas e arquivos da cidade de Córdoba.
Com Gerardo Lara Cisneros alarga-se a reflexão a uma outra instituição de controlo da fé e dos costumes presente no território da Nova Espanha, o chamado “Provisorato de Indios y Chinos”, integrado na estrutura de funcionamento do arcebispado do México e direccionado para a vigilância das práticas supersticiosas e idolátricas dos indígenas. O autor apresenta os traços gerais de funcionamento da instituição, procurando também dar-nos algumas pistas para a reconstituição do seu arquivo, apesar das perdas significativas que este sofreu.
Notas
1. Veja-se, a este respeito, os trabalhos de Jean Pierre Dedieu. “Les causes de la foi de l’Inquisition de Tolède (1483-1820): Essai statistique”. Mélanges de la Casa de Velázquez, 14 (1978), pp. 143-171; Jaime Contreras e Gustav Henningsen. “Forty-four thousand cases of the Spanish Inquisition (1540-1700): analysis of a historical data bank”. In: J. A. Tedeschi, G. Henningsen e C. Amiel (ed.). The Inquisition in early modern Europe: studies on sources and methods. Dekalb: Northern Illinois University Press, 1986, pp. 100-129; Virgilio Pinto Crespo, Dimas Pérez Ramírez e Manuel Ballesteros Gaibrois no capítulo “Fuentes y tecnicas del conocimiento historico del Santo Oficio”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, vol. I. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos y Centro de Estudios Inquisitoriales, 1984, pp. 58 e 135.
2. Termo assumido, por exemplo, por José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”. In: J. A.. Escudero. Estudios sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons / Colegio Universitario de Segovia, 2005 [1986], p. 61; também Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición, op. cit., vol. I, p. 6.
3. Em J. Pérez Villanueva, a leitura sobre o fenómeno inquisitorial acompanha uma reflexão mais alargada acerca das atitudes transversais ao ser humano de relação com a dissidência e a diferença. Com esta perspectiva, o autor alude à “experiencia historica de gran intensidad” vivida pela sua geração, a qual deveria situar os historiadores “en terrreno de mayor penetración y tolerancia, de mejor entendimiento para juzgar, y de más moderado criterio para interpretar y comprender”. Pérez Villanueva, que escreveria adiante que as leituras históricas do Santo Ofício constituíam um óptimo barómetro do clima intelectual, ideológico e político de cada tempo, manifesta um claro compromisso ético com esta obra, amadurecida durante os primeiros anos da Espanha da transição democrática. Joaquín Pérez Villanueva. “La historiografía de la Inquisición española”, op. cit., pp. 3 e 23.
4. Joaquín Pérez Villanueva. “El Centro de Estudios Inquisitoriales”. Arbor, 484 (Abril 1986), pp. 173-182; José Antonio Escudero. “Instituto de Historia de la Inquisición”, op. cit., pp. 61-63.
5. Para o atraso sobre a história dos arquivos inquisitoriais em Portugal alertara já, na esteira de Fernanda Ribeiro, Nelson Vaquinhas. Os autores de História da Inquisição Portuguesa, por seu turno, apontaram a enganadora aparência de completude dos acervos documentais procedentes dos tribunais peninsulares, um contexto de abundância que consideravam ter sido prejudicial ao estudo do Santo Ofício no seu conjunto. Nelson Vaquinhas. Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve (1700-1750). Lisboa: Colibri / CIDEHUS-UÉ, 2010, p. 10; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 12.
6. Apenas o caso da Inquisição de Goa gerou várias aproximações ao problema da sua documentação, motivando a preparação de inventários de fundos de arquivo, bem como a de colectâneas documentais, mas também esforços destinados a suprir a ausência dos fundos inquisitoriais “clássicos” e estudos sobre a documentação proveniente do arquivo. Contudo, estamos a falar de respostas que reagem a um quadro de precariedade documental derivada da perda do cartório do tribunal de Goa após a sua extinção em 1812, à semelhança do que encontramos também na Colômbia, onde se procurou superar o vazio deixado pelo desaparecimento do seu cartório através da reunião de documentos localizados no Archivo Histórico Nacional de Madrid. Veja-se António Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos Inquisidores da Índia (1569-1630), vol. II. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930; Miguel Rodrigues Lourenço. Macau e a Inquisição nos Séculos XVI e XVII. Documentos. Lisboa / Macau: Centro Científico e Cultural de Macau / IP / Fundação Macau, 2012 (2 vols); Carmen Tereza Coelho Moreno (coord.). “Inquisição de Goa. Inventário Analítico”. Anais da Biblioteca Nacional, 120 (2000), pp. 7-272; José Alberto Rodrigues da Silva Tavim. “A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira metade do século XVII): algumas perspectivas”. Mare Liberum, 15 (Junho de 1998), pp. 17-31; Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa: Uma base de dados. Problemas metodológicos”. Anais de História de Além-Mar, 13 (2012), pp. 531-537, assim como o estudo integrado neste dossier. De referir, ainda, a base de dados sobre uma das principais fontes para o estudo do Santo Ofício de Goa, o Reportorio de João Delgado Figueira de 1623, executada sob a sua coordenação. Disponível em http: / / www.i-m.mx / reportorio / reportorio / home.html (acesso a 19 de Setembro de 2018). Anna María Splendiani, José Enrique Sánchez Bohórquez y Emma Cecilia Luque de Salazar. Cincuenta Años de Inquisición en Cartagena de Indias, Santa Fé de Bogotá: Centro Editorial Javeriano / Instituto Colombiano de Cultura Hispánica, 1997 (4 vols.).
7. Entre os estudos que, em Portugal, procuraram abordar o legado documental do Santo Ofício vejam-se Pedro A. d’Azevedo e António Baião. “Cartorios do Santo Officio”. In: O Archivo da Torre do Tombo. Sua Historia, Corpos que o compõem e organisação. Lisboa: Annaes da Academia de Estudos Livres, 1905, pp. 62-71; Maria Teresa Geraldes-Barbosa. “Les Archives de l’Inquisition Portugaise”. In: Mélanges offerts par ses confrères étrangers à Charles Braibant. Bruxelas: Comité des Mélanges Braibant, 1959, 163-173; Charles Amiel. “Les archives de l’Inquisition portugaise. Regards et réflexions”. Arquivos do Centro Cultural Português de Paris, 14 (1979), pp. 421-443; Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. Os Arquivos da Inquisição. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990; Francisco Bethencourt. “Les sources de l’Inquisition portugaise: évaluation critique et méthodes de recherche”. In: L’Inquisizione Romana in Italia nell’Età Moderna. Archivi, problemi di metodo e nuove ricerche. Atti del seminario internazionale. Trieste, 18-20 maggio 1988. Roma: Ministero per i Beni Culturali e Ambientali / Ufficio Centrale per i Beni Archivistici, 1991, pp. 357-367; Fernanda Olival. “Archivi e Serie Documentarie: Portogallo”. In: A. Prosperi (dir.). Dizionario Storico dell’Inquisizione, vol. I, Pisa: Edizioni della Normale, 2010, pp. 86-87.
8. Apesar de normativas de sentido uniformizador para a organização dos arquivos, estudos como o de Bruno Feitler a respeito do cartório da Inquisição de Goa mostram que a personalidade ou a praxis individual de cada oficial dos tribunais conduziram a resultados diferenciados. Cf. Bruno Feitler. “João Delgado Figueira e o Reportorio da Inquisição de Goa”, op. cit., p. 534. Sobre os esforços promovidos pelos inquisidores-gerais de Espanha para a uniformização dos arquivos dos diferentes tribunais veja-se Virgilio Pinto Crespo. “Archivos Nacionales Españoles”. In: J. Pérez Villanueva e B. Escandell Bonet (dir.). Historia de la Inquisición en España y América, op. cit., pp. 66-70.
9. Vejam-se, a este respeito, René Millar Carvacho. “El archivo del Santo Oficio de Lima y la documentación inquisitorial existente en Chile”. Revista de la Inquisición, 6 (1997), pp. 101-116; Gabriel Torres Puga. “Conservación y pérdida de los archivos de la Inquisición en la América española: México, Cartagena y Lima”. In: J. Vassallo, M. Rodrigues Lourenço e S. Bastos Mateus (coord.). Inquisiciones. Dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX). Córdoba: Editorial Brujas, 2017, pp. 45-62.
10. Pedro Pinto. “Fora do Secreto”. Um contributo para o conhecimento da documentação do Tribunal do Santo Ofício em arquivos e bibliotecas de Portugal (no prelo pelo Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa).
11. No caso do México, alguns processos e volumes inquisitoriais dispersaram-se após o seu arresto pelo governo, em 1861.O general Vicente Riva Palacio, a quem se deve, em boa medida, a sobrevivência do arquivo durante a guerra da Reforma (1862-1867) conservou em seu poder meia centena de volumes que, afortunadamente, se foram reintegrados. No entanto, é muito provável que o próprio Riva Palacio tenha emprestado ou até mesmo oferecido alguns volumes ou processos a outros eruditos, incluindo o célebre historiador da Inquisição espanhola, Henry Charles Lea. José Ortiz Monasterio, “Avatares del archivo de la Inquisición de México”. Boletín del Archivo General de la Nación, 5 (2003), pp. 93-110.
12. Para uma problematização sobre os silêncios nos arquivos como condicionantes da memória histórica, veja-se Rodney G. S. Carter. “Of Things Said and Unsaid: Power, Archival Silences, and Power in Silence”. Archivaria. The Journal of the Association of Canadian Archivists, 61 (Spring 2006), pp. 215-233. https: / / archivaria.ca / archivar / index.php / archivaria / article / view / 12541 / 13687 (acesso a 30 de Setembro de 2018).
Miguel Rodrigues Lourenço – Universidade Nova de Lisboa, Faculade de Ciências Sociais e Humanas, CHAM – Centro de Humanidades, Lisboa, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mjlour@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0002-0432-3240
Susana Bastos Mateus – Universidade de Évora, Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS), Évora, Portugal. Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), Lisboa, Portugal. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, Lisboa, Portugal. E-mail: mateus.susana@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-5350-100X
Gabriel Torres Puga – El Colegio de México, Centro de Estudios Históricos (CEH), México, DF, México. E-mail: gtorres@colmex.mx https: / / orcid.org / 0000-0002-5616-777X
LOURENÇO, Miguel Rodrigues; MATEUS, Susana Bastos; PUGA, Gabriel Torres. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.5, n.9, 2018. Acessar publicação original [DR]
1968: protestos, arbítrios e reações no Brasil e no mundo | Ars Historica | 2018
Revista de Ensino de Geografia. Uberlândia, v. 9, n. 17, jul./dez. 2018.
APRESENTAÇÃO
ARTIGOS
- CIBERESPAÇOS DE RECURSOS DIDÁTICOS: OS REPOSITÓRIOS DIGITAIS E O ENSINO DA GEOGRAFIA ESCOLAR
- Graziani Mondoni Silva | Vanessa Battestin Nunes |
- O USO DA PLATAFORMA MOODLE COMO APOIO AO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA EXPERIÊNCIA COM O PRIMEIRO ANO DO ENSINO TÉCNICO EM INFORMÁTICA INTEGRADO AO MÉDIO
- Guilherme da Silva Pedroza | Ernani Viriato de Melo
- UM ESTUDO SOBRE A GEOGRAFIA URBANA DE SANTA MARIA/RS COM ALUNOS DE ENSINO FUNDAMENTAL
- Maurício Rizzatti | Natália Lampert Batista | Roberto Cassol
- ANÁLISE DA DESIGUALDADE SOCIAL POR MEIO DA PESQUISA COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO: ESTUDO DE CASO NA CIDADE DE PATOS-PB
- Antonio Izidro Sobrinho | José Ronaldo de Lima | Jemima Silvestre da Silva
- TEMÁTICAS DE DIVERSIDADE NA FORMAÇÃO E PRÁTICA DOS PROFESSORES DE GEOGRAFIA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
- Lucas Antônio Viana Botêlho |
- HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA EM ESCOLA AGRÍCOLA DE PORTO NACIONAL-TO | Genilza Paiva da Silva | Núbia Nogueira do Nascimento
- ATIVIDADES COM FOTOGRAFIAS PARA DINAMIZAR O ENSINO DE GEOGRAFIA | | Alcimar Paulo Freisleben | Nestor André Kaercher
- ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA E FORMAÇÃO DOCENTE PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
- Jaqueline Gorisch Wilkomm Fruet
- O ENSINO DO CONTEÚDO DE CERRADO: REALIDADE E DEMANDAS
- Luline Silva Carvalho Santos | Willian Ferreira da Silva | Suzana Ribeiro Lima Oliveira
- DAS ESCOLAS RURAIS ÀS ESCOLAS DO CAMPO: UM ESTUDO DE CASO NO MUNICÍPIO DE TERRA BOA-PARANÁ
- Liriani de Lima Santos
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS E PRÁTICAS
- ENSINO DE GEOGRAFIA FÍSICA E HUMANA POR MEIO DE JOGO DE TABULEIRO | Mariane Félix da Rocha | Luiz Paulo P. Fernandes
- ELEIÇÕES NA ESCOLA: UMA DINÂMICA DE INTEGRAÇÃO ENTRE A GEOGRAFIA E A POLÍTICA | | Matheus Marques da Silva | Tiago Araújo Campos | Maria de Fátima de Macedo Oliveira
NOTAS
La investigación en la enseñanza de la historia en América Latina – PLÁ; PAGÉS (A-RDH)
Sebastián PLá. Foto: Boletim IISSUE /
PLÁ, Sebastián (Org); PAGÉS, Joan (Org). La investigación en la enseñanza de la historia en América Latina. México: Bonilla Artigas, 2014. Resenha de: SALDAÑA, Bastián, Sepúlveda. Andamio – Revista de Didáctica de la Historia, Valparaíso, v.5, n.1, p.179-184, jul., 2018.
El libro objeto de esta reseña, fue editado en México, a cargo de este proceso estuvo Bonilla Artigas editores. La publicación de la primera edición, sucedió en noviembre del año 2014 y consto de 500 ejemplares.
La obra está coordinada por Sebastián Plá y Joan Pagés. De nacionalidad Mexicana, Sebastián Plá, es Doctor en Pedagogía por la Universidad Nacional Autónoma de México, sus líneas de investigación comprenden los procesos de enseñanza y aprendizaje de la historia en distintos niveles educativos y la construcción de la epistemología de la enseñanza de la historia como objeto de estudio. Joan Pagés, Español, es Doctor en Ciencias de la educación por la Universidad Autónoma de Barcelona, profesor de didáctica de las ciencias sociales/historia desde el año 1977; considerado uno de los pioneros en la investigación en enseñanza de la historia. Leia Mais
Las fronteras en el mundo atlántico (siglos XVI-XIX) | Susana Truchuelo e Emir Reitano
El libro Las fronteras en el mundo atlántico (siglos XVI-XIX) reúne una serie de artículos compilados por Susana Truchuelo (Universidad de Cantabria, España) y Emir Reitano (Universidad Nacional de La Plata, Argentina). Inaugura una colección de estudios monográficos en la que se proyecta difundir las investigaciones realizadas por historiadores de la Red Interuniversitaria de Historia del Mundo Ibérico: del Antiguo Régimen a las Independencias (Red HisMundI).
El tema vertebrador de los textos es la significación histórica de las fronteras y las concomitancias de las mismas (límites objetivos, marcas territoriales concebidas como constructos culturales, definición de identidades, construcciones de otredades, conflictos, tránsitos humanos y comerciales). Se trata de un asunto que, conceptualmente, ocupa a la historiografía desde la antigüedad clásica y que genera actualmente arduos debates y polémicas. La preceptiva teórico-metodológica está pautada por enfoques de larga duración – que trascienden los limes cronológicos de los imperios ibéricos- y abordajes de carácter comparativo que incluyen los diversos espacios del orbe luso-hispánico (de los Países Bajos a Filipinas). Leia Mais
“Argentina será industrial o no cumplirá sus destinos”. Las ideas sobre el desarrollo nacional (1914-1980) | Marcelo Rougier e Juan Odisio
«Argentina será industrial o no cumplirá sus destinos» es un novedoso y trabajado libro que explora “Las ideas sobre el desarrollo nacional (1914-1980).” Escrito por Marcelo Rougier y Juan Odisio, en el trabajo se parte de la asunción de que el desarrollo y la industrialización pueden tratarse como sinónimos, y por tanto se rastrean las ideas vernáculas sobre la industria y sus posibilidades a lo largo de lo que denominan el “corto siglo XX fabril”, período en el cual primó un pensamiento económico propio y no la incorporación de ideas foráneas. Lo que no es tan transparente, o al menos merecería algún tipo de enunciación, es el concepto de desarrollo que se asume ya en general o en cada momento del tiempo.
Los autores tienen una reconocida trayectoria en el campo de la historia económica e industrial argentina, siendo Rougier además, un activo promotor de ese último campo de estudio en la vecina orilla. Conforman un equipo potente y complementario desde el momento que Rougier es formado em Historia y Odisio en Economía, lo cual les permite hacer dialogar la riqueza y singularidad de ambos campos disciplinares. Leia Mais
Impressões Rebeldes. Niterói, v.6, n.2, jul./dez., 2018.
Imprensa e ideologia / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2017
Esse novo número da Revista História em Reflexão é composto por um dossiê com artigos que possuem o periódico como objeto de pesquisa para a construção do conhecimento histórico por parte dos historiadores e das historiadoras e um conjunto de artigos de temática livre.
Atualmente o historiador e a historiadora possuem no periódico uma rica fonte para a pesquisa histórica. Contudo, nem sempre foi assim. No texto História dos, nos e por meio dos periódicos, Tania Regina de Luca afirma que na historiografia brasileira até a década de 1970 era relativamente pequeno o número de trabalhos que se valiam de jornais e revistas como fonte para o conhecimento da história do país. Para isso pesava uma tradição historiográfica moldada desde o século XIX, associada ao ideal de busca da Verdade dos fatos, que acreditava que isso apenas seria possível com fontes de tempos longínquos, analisadas de modo objetivo e imparcial. Os periódicos, por tratarem do cotidiano, com registros fragmentários da vida presente, pareciam pouco adequados para esse fim. Foi ao longo do século XX, quando o território de Clio gradativamente ampliou seus temas de pesquisa, abrindo espaço para uma história social, econômica e cultural, e não apenas política, que passou a redefinir o que seria fonte histórica, incluindo dados estatísticos, literatura e periódicos, por exemplo. Os Annales, a história cultural, a nova história política, foram propostas historiográficas que valorizaram o periódico como fonte histórica. E a historiografia brasileira não ficou isolada dessa renovação que atingiu Clio, contribuindo para isso a produção acadêmica, por meio de teses, dissertações e revistas especializadas. Nesse sentido, os diversos artigos que compõem esse número de História em Reflexão estão em sintonia com essa nova forma de compreender a produção do conhecimento histórico.
Na parte do dossiê há o artigo de Edvaldo Correia Sotana que analisa o material jornalístico sobre a manutenção da paz mundial publicado pela revista O Cruzeiro entre os anos de 1945 e 1953. Com esse artigo ele estabeleceu como objetivo demonstrar: a) o anticomunismo da revista O Cruzeiro; b) a possibilidade de investigar o noticiário internacional em periódicos brasileiros; c) a importância de olhar a posição político-ideológica de periódicos voltados para o entretenimento.
Cláudio Kuczkowski e Tatiane Dumerqui Kuczkowski abordam sobre a condição dos periódicos enquanto objetos e documentos de pesquisa no espaço da escrita acadêmica em História. Especificamente, examina a matéria nas teses defendidas nos Cursos de Doutorado dos Programas de Pós-Graduação de três Universidades do Rio Grande do Sul, Brasil: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). O artigo propõe-se constituir uma visão panorâmica de como esses materiais vêm sendo estudados.
Ana Gonçalves Sousa e Adriana Aparecida Pinto apresentam como as mulheres eram representadas no jornal A Tribuna, de Rondonópolis / MT, analisando o discurso da imprensa local sobre o papel e lugar social atribuído as mulheres na década de 1980, buscando perceber as formas de resistência e manutenção da ordem e de uma sociedade machista, que ainda concebia o lugar da mulher na esfera do privado e aos homens na esfera pública.
Matheus de Carvalho Leibão faz uma análise de editoriais do jornal O Globo que comentavam a questão das cotas raciais no acesso ao ensino superior público no Brasil. A partir de uma leitura do material do jornal entre os anos de 2003 e 2012, destacam-se os argumentos mais recorrentes utilizados pelo jornal na sua posição contrária à Lei de Cotas, encaminhada pelo governo federal e sancionada em 2012 por Dilma Rousseff.
Paula Antonia Henn e Marta Rosa Borin analisam a figura do Papa Pio XII e de que forma o Vaticano atuou no cenário internacional durante a Segunda Guerra Mundial, partindo da análise das ações do Pontífice Romano de 1939 a 1945, através da revista A Ordem e Revista Eclesiástica Brasileira (REB). Com isso elas buscaram entender a linha de ação política do Vaticano veiculada na imprensa brasileira neste período.
Herib Caballero Campos e Carlos Gómez Florentín estudam o discurso político do periódico “El Semanario de Avisos y Conocimientos Útiles”, que era voz do governo paraguaio para mobilizar os cidadãos no conflito do país contra o Brasil, Argentina e Uruguai. Luiz Eduardo Pinto Barros investiga como os periódicos paraguaios e brasileiros trataram a ocupação militar brasileira numa região de fronteira, em 1965. De acordo com Luiz Eduardo Pinto Barros, manifestações de repúdio ao Brasil foram expostas no Paraguai de diferentes formas, tendo grande espaço na mídia controlada pela ditadura militar de Alfredo Stroessner, que soube tirar proveito da situação e explorar o litigio fronteiriço a favor de sua imagem como “defensor dos interesses nacionais”. Já no Brasil, sob um regime militar, o assunto teve menor repercussão, mas foi explorado por periódicos brasileiros de maior circulação como interesse nacional, ao mesmo tempo em que houve casos de veículos oposicionistas declarados fizessem do impasse mais um objeto de crítica ao governo Castelo Branco.
Bruno Cortês Scherer discute as relações entre o espiritismo e outras perspectivas religiosas no Rio Grande do Sul em meados do século XX, a partir das publicações da revista A Reencarnação, editada pela Federação Espírita do Rio Grande do Sul (FERGS). São analisadas as percepções do movimento espírita organizado sobre o catolicismo e a umbanda, entrevendo a posição e as ações do espiritismo no campo religioso.
Na parte dos artigos livres há o trabalho de Mirian Martins Finger e Jorge Luiz da Cunha, o qual aborda noções de representação balizadas em fragmentos pertencentes aos domínios da filosofia, da história e da arte, a partir de um recorte da série do artista Iberê Camargo, intitulada Carretéis. Na primeira parte do texto é exposto noções de representação vinculadas à noção de verdade, tanto no que tange as narrativas dos eventos históricos, quanto às produções artísticas. Na segunda, são analisadas duas obras da Série e verificar como Iberê representou plasticamente seu objeto de memória, o carretel.
Dulceli de Lourdes Tonet Estacheski reflete em seu artigo sobre a morte e seus lugares de memória e sobre o suicídio cercado de tabus e silenciamentos. Para isso utiliza narrativas de testemunhas de inquéritos policiais sobre suicídios do final do século XIX e início do século XX em Castro / PR como exemplos de ‘não lembrar’, ‘não dizer’, para não constituir uma memória que justifique um ato suicida.
Maria Verónica Perez Fallabrino trabalha com diários familiares escritos por mercadores florentinos do Tre-Quattrocento, chamados Ricordi ou Ricordanze, são uma documentação muito rica para o estudo dessa sociedade. Esse material é analisado não somente por se tratar de uma tradição amplamente difundida ou pela diversidade de informações registradas – acontecimentos familiares, impressões pessoais, sentimentos, negócios e assuntos da vida pública –, mas também pela intenção desses mercadores de reconstruir a memória familiar e pela consciência que tinham da importância que o passado familiar exercia para o homem. Esses diários apresentam anotações precisas, de caráter informativo e de natureza prática, apelam à invocação religiosa e refletem a individualidade de cada mercador na forma e conteúdo dos registros. Luciene Carla Corrêa Francelino analisa a atuação das irmãs de Jesus na Santíssima Eucaristia na Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro de Itapemirim, entre os anos de 1929 a 1950, período em que as freiras administraram internamente o hospital.
Luciene Carla Corrêa Francelino defende a hipótese que as religiosas cuidavam dos doentes internados na instituição, mas esse cuidado rompia as fronteiras do corpo e alcançava os limites da alma, visto que estas se preocupavam com o conforto espiritual dos convalescentes e de seus familiares, favorecendo a cura ou minimizando o sofrimento e possibilitando uma melhoria na qualidade de vida daqueles que eram atendidos no hospital.
Por fim, há o texto de Marisa Bittar, convidada especial para escrever na Revista História em Reflexão. Nesse trabalho ela expõe os fatos mais imediatos que culminaram na lei de 11 de outubro de 1977 que dividiu Mato Grosso e criou Mato Grosso do Sul sem consulta à população. Baseado em fontes primárias de pesquisas sobre o regionalismo, o divisionismo, a criação de Mato Grosso do Sul e atuação de suas elites políticas, o artigo focaliza a decisão do general Ernesto Geisel, então presidente da República, a posição dos dois últimos governadores de Mato Grosso (uno), a postura dos seus parlamentares e políticos em geral no processo de divisão do Estado. Marisa Bittar revela que não houve mobilização popular pela divisão, e expõe as articulações “subterrâneas” que respaldaram a decisão de cima para baixo, concluindo que a criação de Mato Grosso do Sul só foi possível porque o regionalismo secular que caracterizou a sua formação encontrou contexto favorável ao coincidir com os interesses geopolíticos do regime militar.
Ricardo Oliveira da Silva – Professor do Curso de História UFMS / CPNA
Nova Andradina / MS, 1º de fevereiro de 2018.
SILVA, Ricardo Oliveira da. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão, Dourados- MS, n. 11, v. 22 jul. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]
Futebol, biografias e memórias / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2018
O período que vai de 2007 a 2016 foi cognominado, em coletânea recente, de “a década esportiva” (Spaggiari; Machado; Giglio, 2016). O balizamento temporal desses dez anos faz alusão, por suposto, ao intervalo que se estende entre o anúncio da Copa do Mundo no Brasil pela FIFA e a realização dos Jogos Olímpicos de verão na cidade do Rio de Janeiro, ocorridos há três anos atrás.
No referido decênio, como sabemos, o país assistiu a uma série de convulsões político-sociais. O otimismo, o crescimento, a inclusão e as promessas até então reinantes, e que incluíam os megaeventos esportivos na agenda das transformações e promoções por que passava a nação, parecem ter sido levados de roldão pela onda conservadora e pelo abalo institucional vivenciado em tal conjuntura histórica, a se arrastar até os dias de hoje.
Não cabe aqui, nos limites dessa apresentação, discorrermos sobre esse ponto, mas talvez valha a pena pinçar desse quadro de múltiplas, sucessivas e desencontradas crises das instituições de poder ao menos um aspecto que pode ser considerado positivo. Dentro daquilo que nos compete, tal aspecto diz respeito ao contexto dos grandes eventos de esportes transcorridos no país, com especial atenção ao futebol.
O estudo de Campos (et. al., 2017), dedicado a mapear a presença do futebol nas Ciências Sociais e Humanas no decorrer do século XXI, traz um levantamento que pode ser tomado como alvissareiro para a consolidação desse subcampo disciplinar no país. A despeito da persistência das disparidades regionais, apontadas criticamente pela equipe de pesquisa associada ao GEFuT – Grupo de Estudos em Futebol e Torcidas, da Escola de Educação Física / UFMG –, a investigação mostrou um incremento quantitativo notável na produção científica com temática futebolística nos últimos anos.
Talvez seja problemático postularmos aqui os efeitos de um “legado acadêmico” – apropriação do termo nativo, supostamente beneficente, da organização promotora da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014 –, mas é indubitável que a visibilidade do megaevento planetário estimulou a criação de grupos e projetos de pesquisa; propiciou a realização de fóruns e reuniões em associações de pós-graduação; e motivou a organização de dossiês e artigos nos periódicos científicos centrados no temário do futebol.
Se a consolidação de tais estudos vai-se mostrar duradoura, apenas os próximos anos e as futuras pesquisas de mapeamento irão dizer. De todo modo, é de se esperar que a quantidade de novos trabalhos implique em elevação de qualidade e em adensamento analítico, bem como que a curva ascendente apontada pela equipe do GEFuT reverta-se, pelo menos no médio e no longo prazo, na estabilização dessa seara de investigações.
Para as gerações que hoje começam a lidar com o objeto, trata-se de uma forma otimista de dizer que o futebol doravante não será mais “tema menor”. Tampouco que o mesmo carecerá de seriedade e legitimidade no rol dos assuntos relevantes, tal como parte da Academia e do senso-comum quis, durante bom tempo, nos fazer acreditar.
Um dos sinais da afirmação e da consolidação dos estudos futebolísticos é o interesse dos pesquisadores em fase de formação na pós-graduação dos cursos de História e de Ciências Sociais em se dedicar a este assunto. Mais do que contabilizar números de dissertações e teses defendidas, um caminho possível para aferir o estado da arte é levantar os dossiês que vêm sendo organizados ultimamente nas revistas discentes de pós.
A título de exemplificação, invoquemos os volumes que resultaram em publicações no ano de 2018. Um primeiro exemplo é o da Revista Mosaico, dirigida pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (CPDOC-FGV), que se intitulou “Diálogos com o futebol” [1]. O segundo, denominado “História dos esportes e do lazer”, foi uma iniciativa da Revista discente Hydra, vinculada à pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo / UNIFESP [2].
O presente dossiê, cuja chamada foi lançada no ano passado, vem ao encontro dessa tendência que consideramos positiva e sintomática do interesse de mestrandos e doutorandos pela abordagem acadêmica do futebol. Pertencente ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), sediado no estado de Mato Grosso do Sul, o periódico eletrônico discente História em Reflexão, criado há mais de dez anos (2007) e publicado com regularidade semestral, também elegeu para tematização em 2019 o futebol.
Convidados pela editora da revista Kelen Katia Prates Silva, mestranda do Programa, a delinear as diretrizes do supracitado dossiê, amadurecemos inicialmente qual seria o escopo preferencial por definir. Com o critério preliminar da exclusão dos temas relativamente explorados em publicações precedentes, orientamo-nos pelo capítulo de balanço feito pela professora da UFF, Simoni Lahud Guedes, acerca da produção científica concernente ao eixo “Esporte, lazer e sociabilidade” (2010), em coletânea organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a ANPOCS.
No tocante à antropologia do futebol, a pesquisadora destaca duas temáticas que avultaram nos últimos anos, tornando-se recorrentes, em função de sua visibilidade e de sua percepção mais abrangente como “problema social”. A primeira concerne às identidades construídas por meio do futebol, com mais ênfase para a relação identitária do país com a Seleção Brasileira e com as Copas do Mundo, à luz das chamadas “comunidades imaginadas”, de que falava Benedict Anderson para pensar a emergência do nacionalismo no contexto pós-colonial dos países do sudoeste asiático.
O segundo assunto destacado por Guedes na sua apreciação de conjunto relaciona-se às torcidas organizadas, cujo envolvimento com a pauta da opinião pública atinente à violência urbana vem demandando da Academia estudos de relativização dos estigmas, da naturalização de comportamentos desviantes e do etos associado a estes agrupamentos juvenis na contemporaneidade.
Tendo em vista os avanços reflexivos na exploração da identidade nacional e da violência no futebol, consideramos de modo alternativo um dossiê com foco futebolístico capaz de cobrir um ângulo novo do assunto e, ao mesmo tempo, de não deixar de incitar questões tradicionais e caras ao terreno da historiografia.
Nesse sentido, elegemos dois flancos de abrangência: a relação dual entre história e memória, sempre importante como suporte conceitual na elaboração teórica dos historiadores; e a biografia, dimensão de igual importância na reflexão em torno da escrita historiográfica, em função do que pressupõe para o entendimento da relação entre indivíduo, sociedade e temporalidade, ou, para usarmos os termos críticos de Bourdieu, para desconstruir sua “ilusão biográfica”.
Ambos os temas sugeridos consistem em questões frequentes de interpelação, quer aos estudiosos do futebol tout court, quer aos historiadores que se dedicam a analisar as fronteiras de seu métier profissional com outras áreas. O dossiê Futebol, biografias e memórias mobiliza, pois, um ponto de partida metodológico para refletir sobre o estudo da prática deste esporte profissional, a saber, a escrita de sua história vis-à-vis a narrativa dos jornalistas esportivos.
O aquecimento do mercado editorial com livros sobre futebol, especialmente na conjuntura dos megaeventos esportivos, é uma das expressões mais candentes dos desafios de se pensar uma história científica desta modalidade esportiva, face a um volumoso material preexistente, com a capacidade de fornecer dados e informações abundantes, mas dotados de objetivos e métodos diversos daqueles almejados pelos historiadores profissionais. Assim, embora com objetos convergentes, os objetivos de cientistas sociais e jornalistas muitas vezes divergem quando se trata de procedimentos de pesquisa relacionados ao futebol.
Em artigo seminal sobre os usos do gênero biográfico na história e no jornalismo, Benito Bisso Schmidt (1997) detém-se na gama de aproximações e de afastamentos entre as duas áreas, mediadas pela literatura ou pelo que Walter Benjamin compreende como a “arte de narrar”. Ao abordar a emergência da biografia na vida contemporânea, Bisso salienta, entre os jornalistas, o advento do new journalism nos Estados Unidos, em meados do século passado, bem como o modo pelo qual as biografias são exploradas, porquanto suscitam a curiosidade e despertam de sedução no imaginário coletivo em face da vida privada de personalidades e homens célebres.
Em contrapartida, os historiadores assistiram a uma retomada dos relatos biográficos desde fins dos anos 1970, quando a historiografia deixa de lado postulados estruturalistas e críticas ao positivismo da história oficial, também chamada dos grandes vultos, para apostar no potencial de abordagens históricas que podem, no limite, ajudar a reconstituir painéis históricos inteiros. O reconhecimento do papel do sujeito na história permite a recuperação das histórias de vida de anônimos, seja os egressos da cultura popular do Renascimento – como no caso do moleiro Menocchio de Carlo Ginzburg – seja os personagens saídos da cavalaria medieval – como no episódio do marechal Guillaume, enfocado por Georges Duby.
Não é o momento apropriado, nos limites de uma Apresentação, para aprofundar a longitude dessa discussão. Nosso intuito consiste apenas em sublinhar a pertinência do debate escolhido para esse dossiê, bem como sua relevância de fundo, na medida em que se trata de articular os estudos futebolísticos com a agenda de questões biográficas e memorialísticas com que a historiografia se depara de maneira cíclica.
Para este número, após o cumprimento das etapas constitutivas do “fazimento editorial”, quais sejam, a divulgação da chamada, a submissão dos autores, o parecer por pares cegos, a retificação dos originais em atendimento às avaliações, o cumprimento dos prazos e a padronização final dos textos à guisa de publicação – o presente dossiê chegou à seleção de 8 artigos aprovados, somados a uma entrevista e a uma resenha.
Além de uma contribuição em espanhol, submetida por trio de pesquisadores uruguaios, observa-se o alcance nacional do dossiê, em termos de diversidade regional, institucional, disciplinar e de titulação dos autores cujos textos foram afinal aprovados. Haja vista que a maioria das biografias tende a enfocar futebolistas que se tornaram ídolos esportivos, o presente dossiê contempla análises de personagens históricos, como Pelé e Garrincha, chegando até os dias de hoje, com o caso de Neymar Jr.
Outro alvo tematizado no dossiê são os livros apologéticos que narram a saga dos clubes de futebol, via de regra escritos por aficionados e memorialistas. Estes, na linha dos antiquaristas, voltam-se para o passado das suas agremiações clubísticas, em busca de datas, anedotas, mitos de origem e feitos extraordinários protagonizados por figuras lendárias do seu panteão.
Ainda no quesito do memorialismo, o dossiê conta com uma contribuição que se debruça sobre a trajetória do torcedor-símbolo de um modesto clube de Pelotas, o Farroupilha. Neste trabalho, o argumento incide na construção da persona abnegada, cujos sacrifícios altruísticos em prol do time do coração exemplificariam o lídimo amor clubístico, à primeira vista autêntico e incondicional.
Dois outros artigos perscrutam as origens futebolísticas por meio dos espaços, um deles com foco no futebol de várzea paulistano, outro com respeito à introdução da prática nas praças públicas da cidade de Fortaleza. Aqui lança-se luz no caráter espacial do jogo, seguido por modificações bruscas desses mesmos espaços ao longo do século XX e no início do século XXI, relegando-as à condição de esquecimento.
Não obstante, tais artigos chamam ao mesmo tempo a atenção para a imbricação dos dois episódios com as abordagens contemporâneas que entendem a relação espaço-temporal na chave não somente dos documentos, mas também dos monumentos, com destaque para os lugares de memória a que se referia Pierre Nora.
Last but not least, o dossiê completa-se com a publicação de uma entrevista e de uma resenha, sendo ambas voltadas para as práticas e representações do futebol feminino no Brasil. Esta temática, não custa repetir, vem cada vez mais galvanizando pesquisadores interessados em revisitar a escrita da história deste esporte à luz dos estudos de gênero e das questões que se colocam para a mulher e para o corpo feminino na contemporaneidade.
Por fim, não podemos deixar de reiterar nosso agradecimento ao generoso convite de Kelen para a organização do dossiê que ora vem a público, após quase um ano de labor e de preparação.
Notas
1. Disponível em: http: / / bibliotecadigital.fgv.br / ojs / index.php / mosaico / issue / view / 4166.
2. Disponível em: http: / / www.hydra.sites.unifesp.br / index.php / pt / numeros / 75-numero-5-volume-3-dezembro2018
Referências
CAMPOS, Priscila (et. al.). “Produção sobre futebol nas ciências humanas e sociais: um mapa a ser analisado. In: CORNELSEN, Élcio Loureiro; CAMPOS, Priscila; SILVA, Sílvio Ricardo da. Futebol: linguagens, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.
GUEDES, Simoni. “Esporte, lazer e sociabilidade”. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010.
SCHIMDT, Benito Bisso. “Construindo biografias…historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p. 3-21.
SPAGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio (Orgs.). Entre jogos e copas: reflexão de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios / Fapesp, 2016.
Bernardo Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC)
Raphael Rajão Ribeiro – Doutorando em História Política e Bens Culturais (FGV-CPDOC)
HOLLANDA, Bernardo Buarque de; RIBEIRO, Raphael Rajão. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 12, n. 24, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Modernização Conservadora no Brasil (XIX-XXI) / Cantareira / 2018
No primeiro semestre de 2017, as manchetes de todos os jornais de grande circulação do país insistiram na afirmação de que a Reforma Trabalhista traria facilidades aos patrões e aos trabalhadores, pois permitiria a geração de emprego e renda a partir de uma “legislação moderna”. Entretanto, a lei 13.467 / 2017, aprovada em julho, trouxe como consequência o inverso dos objetivos anunciados: desemprego, rebaixamento de salários e precarização das relações laborais. O patronato, por sua vez, foi agraciado com novos instrumentos de pressão que proporcionaram o enfraquecimento dos sindicatos e a ampliação da vulnerabilidade tanto dos trabalhadores legalmente empregados, quanto daqueles que recorrem à informalidade como alternativa de sobrevivência.
Introduzimos este dossiê com um exemplo claro do que os artigos aqui reunidos defendem: os processos modernizantes brasileiros foram, via de regra, conservadores. Isto é, serviram para reforçar a estrutura social e seu apartamento de classes, mesmo nos momentos em que esteve em mutação dirigida. A isto chamamos de Modernização Conservadora.
A matriz do conceito de Barrington Moore Junior3 se mantém em nossa apropriação: a associação de diferentes frações de classe para a construção de uma sociedade capitalista, a partir de sua dominância e articulação no Estado Nacional e tecendo um pacto entre os interesses das tradicionais castas de proprietários rurais, negociantes e financistas. Entretanto, procuramos sofisticar o conceito para que sua potência explicativa dê conta da complexidade social brasileira.
Em nossa elaboração, procuramos deixar claro três dimensões fundamentais que esclarecem os processos de Modernização Conservadora no Brasil: 1- o pacto entre as frações da classe dominante compunha interesses internos e externos, assim como operava dentro e fora do Estado Nacional. De forma que a situação de direção entre as frações da classe dominante obedecia não só a lenta mutação estrutural brasileira, como às conjunturas externas. Entretanto, o que se observa desses processos é que a divisão entre dominantes e dominados não só era mantida nas mais diferentes formas de exploração, como poderia ser aperfeiçoada com a conjugação de interesses distintos; 2- o alvo dessa modernização não se tolhe à industrialização, como preconiza Moore Junior para os casos alemão e japonês. Pensamos Modernização Conservadora no Brasil como aquelas transformações infraestruturais, passíveis em todos os setores da economia, e superestruturais, que modificam a política e a sociedade; 3- não é possível ver uma dualidade entre “atrasado” e “moderno” nos processos de Modernização Conservadora no Brasil, já que os dois campos supostamente duais se retroalimentam e sustentam-se politicamente de forma recíproca.
Alguns autores como Jessé de Souza4 tem atentado para o engano da “panaceia da modernização”, que aplacaria a todos os males de nossa sociedade. Entretanto, grande parte da tradição sociológica brasileira tem trabalhado com a hipótese de que as modernizações efetuadas no Brasil não só mantiveram as desigualdades estruturais de nossa sociedade, como as garantiram, aprofundaram e formaram consenso em torno das mesmas.
Para tanto, as formulações mais definitivas, nesse sentido, são de José de Souza Martins5 (1994) e Francisco de Oliveira6 (2003). Trabalhando primacialmente com a questão da concentração fundiária como ponto fundamental para produção do pacto conservador e modernizante, Martins deixa claro:
[…] a constatação é uma só: as grandes mudanças sociais e econômicas do Brasil contemporâneo não estão relacionadas com o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos, portadores de um novo e radical projeto político e econômico. As mesmas elites responsáveis pelo patamar de atraso em que se situavam numa situação histórica anterior, protagonizavam as transformações sociais7.
Demonstrando como a dualidade entre “atrasado” e “moderno” não só é inexistente no caso brasileiro, como sua integração dialética moldou o caráter geral de nosso capitalismo, Chico de Oliveira esclarece:
[…] as formas irresolutas da questão da terra e do estatuto da força de trabalho, a subordinação da nova classe social urbana, o proletariado, ao Estado, e o “transformismo” brasileiro, forma da modernização conservadora, ou de uma revolução produtiva sem revolução burguesa. Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução produtiva sem revolução burguesa era o caráter “produtivo” do atraso como condômino da expansão capitalista8.
Sobre o próprio tema da industrialização brasileira, Otávio Ianni9 demonstrou como a indústria brasileira tem características do capitalismo dependente, assim como se deu devido ao alto grau de internacionalização da economia e da classe burguesa brasileira, estando longe de representar algum processo de emancipação econômica ou de disputa acirrada entre uma nova postulante à classe dominante e os antigos proprietários de terras e escravos.
Ao longo do século XIX, diferentes frações da classe dominante construíram um pacto cujo os objetivos eram a formação de um Estado Nacional e sua subsequente integração à Divisão Internacional do Trabalho. O intenso aperfeiçoamento das infraestruturas de transportes, comunicações, comércio, financeiras e produtivas, bem como a transformação de boa parte do arcabouço jurídico-político do Império e da República, renovaram os instrumentos de dominação que viabilizaram a manutenção das classes dominantes enquanto tais. Estes diversos processos de modernização pelos quais as formações sociais do Brasil passaram contribuíram decisivamente para uma industrialização e surgimento da classe burguesa industrial que não ameaçaram a ordem político-social vigente. Os privilégios das tradicionais classes dominantes do país foram mantidos.
Os séculos XX e XXI testemunharam a mesma dinâmica, por mais que os condicionantes estruturais e conjunturais tivessem modificado as intensidades da mesma. A organização e resistência de massas de escravizados e trabalhadores livres foi, por diversas vezes, duro revés nos intuitos de implementar novos projetos modernizantes e conservadores. Assim mesmo, boa parte dos processos que reconhecemos como Modernização Conservadora são ataques às conquistas históricas dos dominados. Ou seja, lidamos com repetidos exemplos de processos supostamente modernizantes que intentam verdadeiros retrocessos civilizacionais.
Neste sentido, entendemos que a Revolução Burguesa no Brasil é permanentemente pactuada com os segmentos latifundiários, não se mostrando capaz de abrir mão totalmente da estrutura escravista e dependente que a sustenta. Ou seja, essa Sociedade Ornintorrinco, em que o “progresso” e o “atraso” se retroalimentam dialeticamente, busca aprimorar a dominação de classe tanto no espaço urbano, quanto no rural. Modernização Conservadora no Brasil se define, portanto, não como conceito explicativo apenas de nossa industrialização, mas como uma chave explicativa para o entendimento de diversos processos históricos de mudança em nossa sociedade.
Pensado no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália & Bárbara, esse dossiê congrega esforços de pesquisadores que se debruçaram sobre a longa tradição brasileira de mudanças cuja finalidade última é tão somente a manutenção e / ou aprofundamento do status quo.
O artigo de Álvaro Saluan da Cunha e de Raphael Braga de Oliveira demonstra como o processo de modernização brasileira era retratado nas pinturas de Edoardo de Martino e de Victor Meirelles, durante a Guerra do Paraguai.
Já o artigo de Amanda Marinho aborda uma questão tão interessante, quando ainda pouco estudada: o desenvolvimento da legislação de patentes no Brasil oitocentista e os seus efeitos para a industrialização brasileira.
Um excelente estudo de caso é o de Bruna Dourado sobre a Companhia Pernambucana de Navegação Costeira a Vapor. Explorando a história da empresa, a autora oferece rica comprovação empírica do processo de modernização na navegação costeira e o correlaciona com a marcante presença dos capitais estrangeiros, nomeadamente ingleses.
Célio Diniz oferece um olhar privilegiado para a política internacional do Império, demonstrando como os diplomatas literatos retratavam as mudanças nas estruturas sociais, políticas e econômicas de seu tempo.
Glauber Florindo colaborou com um estudo sobre o rearranjo entre poderes local e monárquico no bojo da discussão da Assembleia Constituinte de 1823.
Guilherme Barreto, em grande esforço de síntese histórica, demonstra como se desenvolveu o setor de transformação brasileiro ao longo do século XIX. O autor correlaciona os processos de industrialização de Rio de Janeiro e São Paulo, utilizando de documentação censitária para chegar a conclusões sobre a relevância do setor agroexportador e do Estado neste processo.
O artigo de Hiolly Batista aborda o complexo processo de modernização da agricultura durante a ditadura militar, na região oeste do Paraná. A peculiaridade do recorte espacial se justifica, pois esse processo é truncado com a construção da Usina Hidrelétrica Binacional de Itaipu.
Processo fundamental para entender o conceito de Modernização Conservadora no Brasil, o fim do tráfico transatlântico de escravos é abordado de forma inovadora por João Marcos Mesquita de forma a associar pressões externas e resistências senhoriais internas para o entendimento da forma como foi levado a cabo.
O texto de Juliana Valpasso de Andrade oferece uma mirada original sobre as mudanças na política externa brasileira, no século XXI, através do conflito entre a revista Veja e o governo Lula.
Marcos Marinho instiga uma nova leitura sobre a produção açucareira no Norte Fluminense, oferecendo relevante comprovação empírica sobre a transformação tecnológica dos engenhos de Campos dos Goytacazes e seu significativo impacto na produção, na segunda metade do oitocentos.
Natânia Silva Ferreira e Fernando Henrique do Vale contribuem com artigo que compara as urbanizações de Varginha e Pouso Alegre, ao sul de Minas Gerais, no alvorecer do século XX.
O fundamental texto de Pedro Sousa esclarece um pouco mais sobre a construção da Avenida Presidente Vargas, durante o Estado Novo, apontando para as empresas beneficiadas com a execução das obras.
Ricardo Alves contribui para um dos processos mais afins ao conceito de Modernização Conservadora no Brasil. A chamada “transição do trabalho escravo ao trabalho livre” é demonstrada pelo autor, com recorte espacial em Alagoas, levando em conta as rupturas e permanências neste processo.
O artigo de Silvana Andrade demonstra com clareza como do intercâmbio entre duas instituições do nascente Estado Imperial surgiu um conjunto de medidas sobre a atividade industrial, com regulação e promoção modernizadas já na década de 1830.
Thaiz Barbosa Freitas nos surpreende com uma pesquisa impactante sobre o teor modernizante e conservador do Estado português na Capitania de Minas Gerais, considerando especialmente as mudanças nas políticas e práticas fiscais, ainda no século XVIII. O artigo nos instiga questionar como este fenômeno luso pode ter influenciado na formação do Estado Nacional Brasileiro, no que concerne ao que definimos como Modernização Conservadora como conceito explicativo de parte de sua história.
Thiago Reis publica importante artigo sobre como a economia brasileira se abateu e modificou perante às complicações impostas pela crise de 1929.
Em importante diálogo com o artigo de João Marcos Mesquita, Victor Romero de Azevedo explora o processo contíguo à cessação do tráfico transatlântico de escravos, em 1831, enfocando nas reações políticas de defesa do tráfico negreiro.
O artigo de Yasmin Vianna Bragança oferece um recorte de gênero sobre o processo de modernização que afetava a vida das famílias durante o Estado Novo, o que representava um novo papel para as mulheres na sociedade e, concomitantemente, a produção de novas políticas públicas visando a “senhora do lar proletário”.
Boa Leitura!
Notas
- MOORE JUNIOR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
- SOUZA, Jessé de. A Elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
- MARTINS, José de Souza. O Poder do Atraso: Ensaios de Sociologia da História Lenta. São Paulo: Hucitec, 1994.
- OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
- MARTINS, op.cit., p.58.
- OLIVEIRA, op.cit., p.151.
- IANNI, Otávio. Industrialização e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
Thiago Alvagenga de Oliveira – Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (2009-2013). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2013-2016). Atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (2016-atual). Membro do grupo de pesquisa História Econômica Quantitativa e Social (HEQUS) da Universidade Federal Fluminense. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália e Bárbara (GEPEB). E- mail: thiagoalvarenga@id.uff.br
Thiago Vinicius Mantuano da Fonseca – Doutorando no curso de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense, por onde também é graduado em História (2014) e mestre em História Social (2017). É membro do grupo de pesquisa Portos e Cidades no Mundo Atlântico (CNPq), do laboratório POLIS – História Econômico-Social (UFF), do grupo de investigação internacional La Governanza de los Puertos Atlánticos (UNED – ESP) e sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, além de membro fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas Eulália & Bárbara, também é colaborador do Foro Internacional de Ciudades Portuarias (IDEHES / CONICET – ARG) e do laboratório HEQUS – História Econômica, Quantitativa e Social (UFF). E-mail: thiago_mantuano@id.uff.br
OLIVEIRA, Thiago Alvagenga de; FONSECA, Thiago Vinicius Mantuano da. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.29, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v. 8, n. 3, jul./dez. 2018.
- Elza de Sá Nogueira e Érika Kelmer Mathias
RELATOS DE EXPERIÊNCIA
- (8 – 27) OS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR: EXPERIÊNCIAS DE LEITURAS LITERÁRIAS NA SALA DE AULA
- Mônica Araújo Trugano
- (28 – 36) DANDO VISIBILIDADE ÀS DIFERENÇAS: UM PROJETO DE TRABALHO COM ALUNOS DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NA CIDADE DE PARÁ DE MINAS-MG
- Hércules Tolêdo Corrêa
- (37 – 44) CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: MEIO DE DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
- Graciane Biolchi e Siderlene Muniz-Oliveira
- (45 – 56) PRODUÇÃO DO JOGO PERFIL PARA CARACTERIZAÇÃO DE PERSONAGENS
- Bárbara Delgado Azevedo e Mariana Souza Veiga
- (57 – 69) UMA EXPERIÊNCIA DE LEITURA LITERÁRIA NO PRIMEIRO CICLO
- Ana Paula Pedersoli Pereira e Eliana Guimarães Almeida
- (70 – 79) CORDEL E PLURALIDADE CULTURAL NO ENSINO MÉDIO: UM TRABALHO COM LÍNGUA E LITERATURA POPULAR
- Magda Wacemberg Pereira Lima Carvalho
ARTIGOS
- (80 – 96) POESIA NO ENSINO MÉDIO: CONTRIBUIÇÕES AO LETRAMENTO LITERÁRIO A PARTIR DA PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE
- Mônica de Queiroz Valente da Silva
- (97 – 119) LETRAMENTO LITERÁRIO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES: DE PRÁTICAS E EVENTOS DE LETRAMENTOS PARA PRÁTICAS DOCENTES HUMANIZADORAS
- Soraya de Melo Barbosa Sousa e Ana Maria de Mattos Guimarães
- (120 – 139) À PROCURA DA CARTA ROUBADA: EXPERIÊNCIAS DE LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
- Raquel Souza de Morais
- (140 – 149) AS OBRAS DISTÓPICAS NA CONSTRUÇÃO DA CRITICIDADE
- Edrielly Kristhyne da Silva Sá
RESENHA
- (150 – 152) Um livro para conhecer bem a literatura para crianças e jovens e refletir sobre ela. Resenha do livro INTRODUÇÃO À LITERATURA INFANTIL E JUVENIL ATUAL, de TERESA COLOMER
- Hércules Tolêdo Corrrêa
Los jóvenes frente a la Historia: Aprendizaje y enseñanza en escuelas secundarias – AMÉZOLA; CERRI (CA-HE)
De AMÉZOLA, Gonzalo; CERRI, Luis Fernando (coords). Los jóvenes frente a la Historia: Aprendizaje y enseñanza en escuelas secundarias. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, 2018. 211 p. Resenha de: ROCHA, Milagros. Clío & Asociados. La historia enseñada. La Platat, v.27, p.141-143, Julio-Diciembre 2018.
Un volumen interesante se suma para seguir pensando la enseñanza de la historia. En esta oportunidad, se pone en superficie una investigación realizada en varios países de América Latina que nos desafía a reflexionar en escalas no sólo propias y locales, sino más amplias.
Esta obra se materializa producto de un recorrido previo y orquestado a partir de un conjunto de trabajos que son resultado del proyecto de indagación “Los jóvenes y la historia en el Mercosur”, llevado adelante por investigadores de distintas Universidades de Argentina, Brasil, Chile, Paraguay y Uruguay, bajo la coordinación general del profesor Luis Fernando Cerri (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil).
Durante agosto de 2012 y mayo de 2013 se llevan a cabo encuestas dirigidas a estudiantes de entre 15 y 16 años de edad y a docentes de esas mismas escuelas. Se tomaron como referencia 7 tipos de instituciones educativas: pública de excelencia, pública central, pública periférica, rural, privada laica, privada religiosa y privada alternativa, ubicadas éstas en diferentes ciudades de los países nombrados anteriormente (págs. 9-11). Esto arroja una muestra (no probabilística) de 4 mil cuestionarios de alumnos y 300 de profesores. Por su parte mencionamos que la edad de los estudiantes no resulta ociosa puesto que éstos se encuentran finalizando su educación obligatoria y por tanto tuvieron acceso a un abanico importante de contenidos históricos (los cuestionarios se pueden observar detenidamente en el Anexo del libro, págs. 183-206). Asimismo cabe destacar que este proyecto hunde sus raíces de inspiración en el proyecto Youth and History, desarrollado en Europa a partir de 1994, con base en la red European Standing Conference of History Teachers Associations, Euroclio, el cual exploró sobre la calidad, características y resultados de la enseñanza de la historia, la conciencia histórica y las actitudes políticas de los jóvenes europeos.
Producto de este camino transitado este libro compendia una multiplicidad de voces de diversa procedencia y localía: estudiantes y profesores interpelados por los modos de aprender y enseñar la disciplina. Se suma a esta disímil composición el tono de los distintos autores1 que van entramando, al calor de las categorías de conciencia histórica2 y conciencia política, 7 capítulos.
El primero de éstos titulado, “Contenidos y métodos en el aprendizaje histórico en Argentina, después de dos décadas de reformas educativas”, coloca en autoría a los coordinadores del libro, los profesores Gonzalo de Amézola (Universidad Nacional de La Plata, Argentina) y Luis Fernando Cerri (Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil). Los autores recortan dentro de este amplio espectro que les ofrece las encuestas, la enseñanza y el aprendizaje de la historia en Argentina. El capítulo versa por diversos tópicos, entre ellos: las políticas públicas educacionales del país anclando en el campo curricular de historia, las políticas y métodos de enseñanza, los medios de acceso al conocimiento histórico, las representaciones predominantes sobre algunos contenidos aprendidos. Se alude a que la enseñanza de la historia, en las escuelas secundarias argentinas, se mantienen sin grandes alteraciones por 100 años, deteniéndose ésta en acontecimientos políticos universales, y en el plano nacional, recuperando ese ideal patriótico, desplegando prácticas explicativas y aprendizajes memorísticos. Se menciona la Ley Federal de Educación de 1993 y la Ley de Educación Nacional de 2006, señalando cambios y continuidades de índole estructural como de contenidos, para concluir preguntando en qué medida dichas modificaciones impactan/ron en las prácticas pedagógicas. Los cruces estadísticos, a nivel geográfico, les permite a los autores comenzar a construir reflexiones provisorias donde poder analizar el impacto de esas reformas educativas en las aulas, en lo enseñado y aprendido; arrojando como resultado temporal una combinación de innovaciones de bajo impacto sustentadas en una fuerte tradición en las prácticas pedagógicas.
El segundo apartado denominado: “Entre el desconocimiento juvenil y las nuevas demandas de ejemplaridad. Las representaciones sobre los héroes en la Argentina actual”, tiene por autoras a dos mujeres, Mariela Coudannes Aguirre y María Clara Ruiz, docentes e investigadoras de la Universidad Nacional del Litoral, Argentina. El mismo teje su argumento y problematización en torno a la pregunta 33 del cuestionario que refiere a: “Escribe debajo el nombre de 3 héroes de tu país en orden de importancia”. Toman como cruce de análisis a escuelas de gestión estatal y privadas, en Argentina. Los resultados recabados se articulan con un despliegue teórico que contribuye a una mayor profundización (aparecen puntos de contactos con el capítulo anterior respecto a ese peso de la tradición, ese ideal patriótico corporizado en sujetos varones de bronce que todavía, y paradójicamente, sobreviven). Esas figuras heroicas construidas desde la historiografía y las escuelas argentinas que todavía persisten (entre ellos San Martín, Belgrano) se tensan ante la invisibilidad de ciertos sujetos históricos, los “personajes del interior” y el lugar de las mujeres en la historia enseñada, en manuales escolares y en las representaciones en la vía pública. Quedan en la periferia de estos listados: Perón, Eva Perón, Maradona, Favaloro, entre otrxs. Las autoras también advierten que la pregunta no permite relevar si se identifican con sus respuestas de modo afectivo o racional. A partir de este “podio” el capítulo despierta preguntas para re-pensar no sólo la historia enseñada, y aprendida, sino también el lugar simbólico e historiográfico que todavía ocupa la historia de los “grandes hombres”.
El siguiente capítulo escrito por María Cristina Garriga, Viviana Pappier (Universidad Nacional de La Plata) y Valeria Morras (Universidad Nacional de La Plata y Universidad Nacional de Quilmes) titulado: “La conciencia histórica en jóvenes de la Provincia de Buenos Aires” construye, a partir de indagar en las respuestas de los jóvenes estudiantes, la relación que establecen éstos con el pasado, presente y futuro. Bajo el soporte teórico que explicitan se traza una línea de indagación cuantitativa tendiente a problematizar el modo en que estos jóvenes interpretan: la historia y su sentido, el pasado, presente y el/su futuro, es decir, un entrecruzamiento entre esas 2 esferas a las que alude Rüsen (1992) externa-social y la interna que interpela la subjetividad del individuo. En este marco se seleccionar las preguntas: ¿qué significa la historia para vos?, ¿cómo pensás que era la vida en tu país hace 40 años?, ¿cómo pensás que será la vida en tu país dentro de 40 años?, ¿cómo pensás que será tu vida dentro de 40 años? y las respuestas obtenidas en escuelas públicas y privadas de ciertas ciudades argentinas como: La Plata, Quilmes, General Sarmiento y Mar del Plata (Provincia de Buenos Aires). Asimismo las autoras plantean que este análisis puede enriquecerse, a su vez, a partir de introducir elementos cualitativos para pensar la conciencia histórica en diálogo con la enseñanza de la historia.
Desde un análisis que recorta la mirada en la Provincia de Buenos Aires se pasa, posteriormente, a un capítulo que pone en el centro de la escena a jóvenes de la Provincia de La Pampa, específicamente, la ciudad de Santa Rosa. Éste tiene como autores a María Claudia García, Gabriel Gregoire y Laura Sánchez (de la Universidad Nacional de La Pampa, Argentina) quienes lo titulan: “Una mirada local: los jóvenes de Santa Rosa. Cultura histórica /cultura política”. El capítulo explora las actitudes políticas de los jóvenes de dicha ciudad y de la localidad de Toay, tras la idea de indagar qué representaciones tienen los jóvenes sobre: la política, religión y el tiempo en clave de conciencia histórica. Los autores incorporan a su vez ciertos cruces con los datos relevados a nivel nacional y los demás países latinoamericanos que participan del proyecto. Por último, mencionamos que los autores tensionan los resultados planteando, por ejemplo, cómo esa concepción de historia que se interioriza interviene, también, en la formación política y cómo a su vez esto les resulta ajeno a sus modos de participación política.
El capítulo de Virginia Cuesta y Cecilia Linare (ambas docentes de la Universidad Nacional de La Plata) toman de referencia otra escala de análisis, como bien anticipa el título: “Los jóvenes, la enseñanza de la Historia y su mirada frente a los procesos de integración regional”. Las autoras se enfocan en relevar, por un lado, cómo los jóvenes se vinculan con la enseñanza de la historia en Latinoamérica en relación con las historias nacionales, y por otro, qué piensan sobre el integracionismo regional latinoamericano, pos conformación del Mercosur. En función de esta propuesta de abordaje se sirven de la pregunta 18 de la encuesta la cual refiere al interés acerca de la historia local, regional, nacional, latinoamericana y la historia del resto del mundo exceptuando América Latina. Además presentan un análisis sobre el regionalismo en el Cono Sur, los propósitos y las políticas educativas que los países poseen respecto al integracionismo latinoamericano y la enseñanza de contenidos vinculados. De esta manera cimentan aportes significativos para sondear qué intereses tienen esos estudiantes sobre las distintas dimensiones de la historia y sobre su enseñanza.
El sexto trabajo escrito por Gonzalo de Amézola, presenta: “Veinte años de dictadura. La enseñanza de la última dictadura militar (1976-1983) en las escuelas secundarias de Argentina”. Un panorama general sobre: las políticas de memoria, las tensiones o inconvenientes de enseñar estos contenidos, el abordaje y lugar que estos contenidos ocupan en los diseños curriculares en el marco de las dos últimas reformas educativas (1993 y 2006), su tratamiento en manuales escolares, y su consecuente pregunta, qué piensan los estudiantes. El artículo alza información de las encuestas realizadas en Brasil, Argentina, Uruguay y Chile, respecto a qué asocian estos jóvenes cuando piensan en los gobiernos militares, en la democracia, en los “nuevos derechos”, entre otras, Esto posibilita construir conclusiones parciales dadas no sólo desde el propio proceso histórico de cada país, y su particular forma de enseñanza, sino también enriquecer los resultados a la luz de una mirada comparada.
El libro cierra con las voces de los docentes a través de un artículo elaborado por María Paula González (Universidad Nacional de General Sarmiento) que se titula: “La historia escolar y los profesores. Una mirada desde el Mercosur”. En función de 288 encuestas a docentes de Argentina, Brasil, Chile, Paraguay y Uruguay se estructura el texto presentando un perfil general que toma de referencia: la formación docente, la antigüedad profesional, sus perspectivas, preferencias y participación políticas y religiosas, asimismo se reflexiona sobre el propio oficio docente respondiendo, por ejemplo, la importancia de la Historia para lxs estudiantes, el tiempo de preparación de las clases, cuestiones de salario, entre otras. Nuevamente aparece esta idea de reflexionar sobre la práctica y la formación docente desde una mirada nacional que se complejiza a través de la perspectiva comparada.
En definitiva, una producción que levanta y amplifica preguntas que nos interpela como docentes. Sin duda un volumen que deja un importante antecedente desde el cual anclar para seguir pensando nuestra práctica profesional desde lo personal, como colectivo y en una dimensiones local y latinoamericana. En suma, de manera subterránea, se puede observar la idea de que bajo el ejercicio continuo de nutrir los interrogantes: qué, cómo y para qué enseñar historia en la escuela es que podremos convocar a estos jóvenes estudiantes a pensar el pasado, presente y el/su futuro.
Notas
1 El libro presenta un pequeño recorrido académico de los autores (págs. 207-210) a fin de conocer sus trayectorias, áreas de trabajo e investigación.
2 El concepto de conciencia histórica acuñado por el historiador y filósofo alemán Jörn Rüsen (1992) es entendido por éste en tanto relación mediada entre el pasado y presente que habilita pensar el futuro. Creencias, valores que estructuran el pensamiento humano.
Milagros Rocha – Universidad Nacional de La Plata. E-mail: milagrosmrocha@gmail.com
Fontes Históricas: Desafios e Possibilidades Metodológicas / Ofícios de Clio / 2018
Nas últimas décadas, a historiografia vem passando por uma expansão das fontes. Influenciados pela terceira geração dos Annales, historiadores tem buscado não apenas a diversificação de documentos como novas possibilidades metodológicas para suas pesquisas. Além disso, a interdisciplinaridade é cada vez mais comum e necessária à operação histórica.
O dossiê aqui proposto tem como finalidade demonstrar essa variedade de pesquisas, fontes e aportes teórico-metodológicos, existentes nas diversas instituições de ensino de História pelo país. A profissão de historiador, embora ainda não regulamentada por lei, tem passado por várias modificações, entre as quais, sua crescente participação no espaço público. Cada vez mais as pesquisas transpõem os muros da academia e ganham visibilidade em meio ao grande público.
Os dez artigos expostos nessa edição mostram as múltiplas facetas de pesquisas e possibilidades de atuação de historiadores, com diferentes níveis de titulação, temáticas e instituições. O número cinco da revista Faces de Clio demostra de maneira diversificada e completa as temáticas variadas, mostrando parte dessa ampliação de fontes e novas metodologias no campo das pesquisas históricas nas últimas décadas.
O primeiro artigo intitulado Estilhaços do Espelho: crise dos paradigmas na teoria da história e historiografia de 1970 ao século XXI, da doutoranda em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina, Ana Paula Jardim Martins Afonso, faz uma discussão teórico-metodológica do campo da história em 1970, com destaque para a emergência da História Cultural. Apresenta também o campo da Micro História como promissor para o debate de uma História Cultural atualizada, além de discutir a emergência dos estudos em História Global. A autora tem como ponto de partida os Annales e mobiliza ideias de autores como Fernand Braudel, Roger Chartier, Carlo Ginzburg e Sandra Pesavento. Finaliza o texto com a frase de Jaques Le Goff (2001): “o historiador não pode ser um burocrata da história, deve ser um andarilho fiel a seu dever de exploração e aventura”. Assim, reafirma o espirito do historiador como inquieto e em constante movimento.
Darlan de Farias Rodrigues, mestrando de História da Universidade Federal de Pelotas, em História e Historiografia: uma breve discussão teórico-metodológica sobre a História Social, mostra de que maneira esse debate permeia sua pesquisa sobre o patronato rural rio-grandense e o processo de intercâmbio de seus grupos com as estruturas de dominação.
Clarice Garcia Barbosa, mestranda em História Econômica na Universidade de São Paulo, em Fontes Históricas: cotidiano e história por meio de periódicos, narra a trajetória dos jornais enquanto fontes de pesquisa dos historiadores, remontando a ampliação das fontes com a Escola dos Annales e citando pesquisas de Gilberto Freyre, Fredrich Engels e Karl Marx como autores que utilizaram periódicos em seus trabalhos. A autora pontua diferentes formas de se trabalhar com esse tipo de fonte, além de destacar aspectos que geraram controvérsias sobre a utilização da fonte em seus momentos iniciais, e de que maneira driblaram esse descredito.
Em Política e Sociabilidade no século XIX: as correspondências recebidas pelo Visconde de Pelotas, o mestrando em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Guilherme de Mattos Gründling explicita a importância e possibilidades de se trabalhar com as correspondências enquanto fontes históricas. Para isso, ele toma como referência as cartas recebidas por José Antônio Corrêa da Câmara (Visconde de Pelotas), e analisa as redes de sociabilidade do militar rio-grandense, estratégias para ascensão. O autor mostra como esse tipo de fonte nos ajuda a remontar aspectos da história que estão fora das fontes ditas oficiais.
O próximo artigo tem como fonte central os Postais Franceses difundidos no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), escrito pela graduada em História pela Universidade do Estado de Ponta Grossa, Kimberly Natalie Diehl. No artigo Representações e concepções relativas à mulher em postais franceses da Grande Guerra (1914-1918), a autora evidência que a guerra promove um rearranjo social, uma vez que parte dos homens vai para o campo de batalha, e a necessidade de fabricação de armas faz com que as mulheres tenham de sair da posição de donas de casa e passem a fazer parte do mundo do trabalho das fábricas, sindicatos e outros espaços antes não ocupados. A autora também aborda a imagem enquanto fonte e as respectivas metodologias. Também discute o gênero enquanto categoria de análise histórica. Por fim, Kimberly demonstra que mesmo havendo essa mudança na vida das mulheres, essa imagem não é retratada nos postais aos quais teve acesso. A mulher nesses postais era retratada de forma doce, muitas vezes com a família, pensando no companheiro que estava na guerra ou como enfermeira, nesse caso fazendo parte da retaguarda do homem e não como figura central.
Caroline da Silva e Djiovan Vinicius Carvalho trazem a importância de trabalhar com arquivos pessoais. No texto intitulado “Espelho verdadeiro da vida de seus autores?”: memória e esquecimento em acervos pessoais, os dois mestrandos em História da Universidade de Passo Fundo nos ajudam a pensar não apenas na importância que os acervos pessoais ganharam nas últimas décadas, fazendo parte de arquivos de grandes instituições como o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), mas também permitem repensar a forma como os arquivos são construídos, por quem, quem é o doador do arquivo, que imagem querem passar, e na seleção realizada, uma vez que dentre os documentos produzidos durante a vida apenas uma parte é guardada.
Mostrando que o trabalho do historiador com a fonte audiovisual é possível e que cada vez ganha mais adeptos, Gabbiana Clamer Fonseca Falavigna dos Reis, com doutorado em história em andamento na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, tem como fonte central filmes. No artigo Cinema e oficio do historiador: As possibilidades multifacetadas de pesquisa a partir do estudo de caso do longa-metragem A Dama da Lotação (1978), a autora trabalha com a película nominada no título, fazendo analise de cenas do filme e com a recepção do filme por críticos de três jornais. Além disso, Gabbiana faz um pequeno guia de possibilidade para historiadores que querem trabalhar com esse tipo de fonte.
Da fonte Audiovisual para a fonográfica, Stênio Ronald Mattos Rodrigues, doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, intitula seu trabalho Uma análise sobre os discos promocionais como elementos estimuladores para a projeção de Raimundo Fagner na ambiente profissional da MPB(1973-1982). O autor parte do mercado do disco para explicar de que forma é possível trabalhar com suas fontes, além de explicitar as outras maneiras de se trabalhar com a história da música. Para além dos fonogramas, cita dados de vendagem e notícias em jornais e revistas, que ajudam a remontar trajetórias artísticas. Stênio usa como fontes principais dois compactos promocionais lançados nos anos de 1973 e 1982 e discute a forma como eles influenciam e compõem a história de Raimundo Fagner, cantor cearense que inicia sua carreira na década de 1970 e atinge grande sucesso de público, crítica e vendas.
O nono artigo é fruto de parte da dissertação de Elisiane Medeiros Chaves, que conferiu a autora o título de mestre pela Universidade Federal de Pelotas. Um estudo sobre a violência contra a mulher a partir de narrativas de réus julgados no juizado da Violência Doméstica da comarca de Pelotas-RS (2011-2018), trabalha com fontes orais e Tempo Presente. A autora entrevista 18 réus de casos de agressão contra suas companheiras, usa como fonte os processos no qual esses homens eram julgados. Demonstrando os lapsos, escolhas e ênfases da memória, a autora constrói o artigo de maneira que conseguimos observar como os entrevistados vão tecendo suas narrativas. Também apresenta possibilidades de trabalho histórico com a memória e com um período de tempo menos recuado. Elsiane nos ajuda a vislumbrar a potencialidade das pesquisas sobre história e Tempo Presente, além de nos mostrar que é possível trabalhar com temáticas sensíveis e ainda sim manter o rigor metodológico e vinculação com a historiografia.
Finalizando o dossiê temos a importante contribuição do graduando em História da Universidade Federal de Pelotas João Gomes Braatz. O Bhagavad Gita como fonte de estudo de filosofia guerreira indiana evidência a escassez de produção acadêmica no Brasil a respeito da antiguidade na Índia. Ainda destaca que frequentemente assumimos o olhar do pesquisador europeu ao consideramos o Oriente como um elemento homogêneo, apesar dessa região envolver diferentes países que devem ser analisados através das suas singularidades. Como fonte central ele mobiliza o texto indiano Bhagavad Gita, pertencente à obra Mahabharata. João Gomes demonstra a importância de trabalhar não apenas com uma fonte pouco analisada no país, mas também a riqueza de detalhes na fonte trabalhada.
Ao todo, são dez artigos que nos ajudam a pensar a pesquisa histórica como um caleidoscópio, uma vez que temos inúmeras possibilidades de abordagens, fontes e metodologias. O dossiê cumpre sua finalidade suscitando diferentes indagações e questionamentos. Além disso é de grande importância para o historiador em início de carreira, pois possibilita o olhar para caminhos diferentes, possíveis de serem seguidos.
Boa leitura!
Daniel Lopes Saraiva – Doutorando em História / UDESC
SARAIVA, Daniel Lopes. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 3, n. 5, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura | Adriana Zierer, Álvaro Alfredo Bragança Junior
As relações entre História e Literatura já não são novidade nos corredores das universidades pelo mundo e no que diz respeito ao prazeroso ofício da medievalística, entendemos que ela se apresenta como condição sine qua non para uma percepção mais ampla dos poderes e das culturas do Ocidente e Oriente medievais. Ao mesmo tempo, é inevitável não afirmar que refletir sobre o medievo sem se atentar para os discursos historiográficos e literários seria o mesmo que partir para uma batalha desguarnecido de proteção.
Adriana Zierer, reconhecida pesquisadora e medievalista, docente da Universidade Estadual do Maranhão, e Álvaro Alfredo Bragança Jr., um dos mais importantes germanistas brasileiros e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fizeram justiça as suas longas caminhadas acadêmicas e trazem a público este fundamental Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura (Eduem, 2017). Mais do que um apanhado revisto e aprofundado de suas reflexões sobre cavalaria e nobreza, os autores vão além e possibilitam aos seus leitores – pesquisadores formados e em formação e, por que não?, o grande público – uma pertinente abordagem que faz dos temas cavalaria, nobreza, história e literatura um laboratório de profícuo diálogo entre conceitos, métodos e teorias.
O serviço prestado na reunião de alguns trabalhos que, até então, encontravam-se em veículos diversos e a exposição de outros inéditos, é algo que deve ser exaltado e, ao mesmo tempo, uma última característica de fundo necessita de luz: a contribuição que este livro traz a um campo cada vez maior em nosso país: O estudo da guerra!
Mesmo que os professores Adriana Zierer e Álvaro Bragança Jr. não tomem a guerra como objeto principal da publicação, é inevitável não reconhecer que suas investigações a respeito das representações da cavalaria medieval e, consequentemente, da nobreza, tanto na historiografia quanto na literatura são pilares importantes para, cada vez mais, pesquisadoras e pesquisadores interessados na guerra medieval tenham uma bussola, um Norte que os guie.
Dividido em três partes, Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura foi pensado de modo que a Idade Média não soasse como um aspecto distante da nossa própria cultura, é possível até afirmar que os textos, e seus resultados, apresentados na primeira parte, intitulada A formação da Cavalaria no Ocidente – Ethos de uma ordem e ordens para atos, são um exemplo marcante de uma arqueologia da cultura cavaleiresca. Como não aprender e apreender com as conclusões expostas por Bragança Jr. em Do guerreiro germano ao cavaleiro do século XIII – personagens históricos e modelos civilizacionais no mundo germânico continental: faces e interfaces (p. 43-56)? Ou com as reflexões de Zierer nos textos O modelo pedagógico de cavaleiro segundo Ramon Llull (p. 137-154) e O mundo da cavalaria no século XIII na concepção de Ramon Llull (p. 175-200)? Os leitores mais atentos perceberão a cada parágrafo a preocupação dos autores com o método e a teoria, logo, nos diálogos possíveis entre a História e a Literatura. A interdisciplinaridade pulsa e nos arrasta ao desafio de encarar a primeira parte do livro como um modelo a ser seguido. Ao mesmo tempo, o manejo documental e o arcabouço do estado da arte nos temas tratados servem aos mais jovens como um atalho às boas e necessárias revisões historiográficas e de literatura cobradas nas monografias e pré-projetos de mestrado e doutorado.
Como dito anteriormente, mesmo que o fazer a guerra stricto senso não tenha sido objeto de larga reflexão, isso não significa que as atuações, estratégias e mesmo a pedagogia bélica não façam parte de suas preocupações. A experiência dos autores demonstra muito bem que a mesma impossibilidade de se pensar o medievo sem a Igreja Cristã também é encontrada ao se analisar os aspectos da própria cultura política e literária oriundas da Cavalaria e que legaram para a posteridade modelos comportamentais que viajaram pelos mares e desaguaram em terras distantes de suas origens (para o bem ou para o mal).
Mas antes de partirmos para a análise do elo cultural que a publicação nos demonstra muito bem, vale relembrar que o mundo da cavalaria seria opaco sem as relações entre homens e mulheres e a isto, de certo modo, se dedica a segunda parte do livro, intitulada Entre cavaleiros e damas.
Nos quatro capítulos que a compõem, mais uma vez temos o pertinente exemplo de manejo documental e do exercício prático entre a História e a Literatura. Dessa vez, parte do leque de documentação gira em torno da Demanda do Santo Graal, conhecida novela de cavalaria redigida na França do século XIII. Zierer, tanto no primeiro como no segundo capítulos, presentes nessa segunda parte, faz valer sua afirmativa sobre o documento em questão:
Através deste livro [A Demanda do Santo Graal] podemos observar os aspectos da cavalaria, seu papel na sociedade e uma tentativa de suavização nos seus costumes, através da imagem de um cavaleiro perfeito, modelo a ser mostrado à nobreza da época, envolvida em disputas por territórios e guerras privadas (p. 233).
De fato, a literatura cavaleiresca produzida durante a Idade Média é um dos mais importantes – não o único – para podermos entender melhor as ações dos agentes históricos dedicados ou não à guerra. Não podemos nos esquecer que, no que tange às relações de poder naquele período, a tentativa de contenção do poder de violência é um tema que se arrastará continuamente e que estava presente insistentemente na literatura medieval.
Por outro lado, além da violência, a sexualidade e a religiosidade pulsantes na Idade Média eram outra margem de preocupação de tais agentes (eclesiásticos, sobretudo). Não há como ignorar que a misoginia medieval se constituía como o mote que impulsionava grande parte dos escritos religiosos cristãos. Contudo, Zierer demonstra em Entre Ave, Eva e as Fadas: as visões femininas na Demanda do Santo Graal (p. 251-273) que:
Apesar de imaginarmos que só existe a imagem feminina negativa no relato, ao analisarmos mais detidamente a visão sobre elas, percebemos que as mesmas possuem um caráter ambíguo, mesmo as consideradas pecadoras, como Guinevere (Genevra), Iseu (Isolda) e Morgana (Morgaim), em virtude de sua valorização em outras narrativas medievais e do fundo céltico do texto (p. 252).
A autora parte então para um interessante estudo de História do Imaginário aprofundando a importância da mulher na Demanda do Santo Graal e nos apresentando resultados que não deixam de ser surpreendentes.
Seguindo na mesma linha de inserção do feminino como preocupação para um melhor entendimento da cultura cavaleiresca, Álvaro Bragança Jr. se debruça analiticamente no texto Der arme Heinrich, romance em versos redigido por Hartmann von Aue. Para o germanista, Der arme Heinrich, talvez seja, a seu ver, “dentre toda a produção romanesca do autor, aquela que melhor sintetiza a união perfeita do homem d’armas ao homem de espírito cristão” (p. 276). Seguindo de perto a herança dubyniana, Álvaro Bragança Jr. vai além do que foi o tradicional e importante estudo apresentado pelo medievalista francês em O cavaleiro, a mulher e o padre (1988). O medievalista e germanista brasileiro traz luzes à uma “melhor compreensão do fazer literário em terras germanófonas, em especial no tocante aos pontos convergentes entre a vida ideal e a representação da realidade através da arte da palavra” (p. 275).
Ao mesmo tempo, ele está preocupado em entender e explicar a lógica literária e, consequentemente, a representação social da mulher no documento analisado juntamente ao masculino, neste caso, o cavaleiro. Por esse motivo o modelo de estudo de Georges Duby é importante para suas reflexões, porém, como dito, o autor abre um leque que vai muito além ao conhecido modelo da França feudal. Mais uma vez, um pertinente exemplo de embasamento metodológico é exposto aos leitores.
Em se tratando de metodologia, no último capítulo da segunda parte, intitulado Der arme Heinrich, de Hartmann von Aue – Introdução à proposta de tradução (p. 285- 329), o autor nos brinda com uma tradução sua desta riquíssima fonte do médio-altoalemão, língua que muitas vezes grande parte dos escolares, infelizmente, não domina. É uma oportunidade ímpar aos leitores de terem acesso ao documento em português.
Como procurei insistir, em Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura, Adriana Zierer e Álvaro Bragança Jr., não se limitam apenas em dar mostras da erudição que carregam como pesquisadores reconhecidos no campo, sob suas mãos a Cavalaria vai além do que um elã histórico, ela é um verdadeiro objeto de reflexão numa longa duração sobre a Idade Média, como tão bem nos apresentou um dia Jacques Le Goff.
Seguindo em marcha os autores fecham o livro com uma terceira parte intitulada Cavalaria e Contemporaneidade.
A atenção prestada por eles ao impacto da representação cavaleiresca na sociedade contemporânea é a mostra do papel social que os historiadores devem procurar exercer. Ao mesmo tempo, é a comprovação acadêmica do quanto a História e a Literatura caminham de mãos dadas.
Os dois capítulos que finalizam o trabalho – ratifico – são a demonstração cabal da importância do estudo da Idade Média nas escolas e universidades brasileiras. Um medievo que não se limita ao seu próprio passado, mas que se reapresenta, é manuseado, refeito, redescoberto constantemente e que nos lega a nos questionarmos constantemente os limites entre o passado e o presente. Ou melhor, os passados e os presentes!
Em O Germano e os Ritter a serviço do Nacional-socialismo – Propaganda e reapropriação política dos germanos e dos cavaleiros medievais na Alemanha dos anos 40 (p. 333-349) e Coração de Cavaleiro (2001): Uma visão contemporânea do guerreiro medieval (p. 351-377), Álvaro Bragança Jr. e Adriana Zierer, respectivamente, adentram a seara do contemporâneo deixando aos leitores importantes exemplos dos usos e desusos, da mitologia e dos mitos relacionados ao período medieval, especificamente no caso da Cavalaria e dos cavaleiros.
A conclusão a que chegamos é que a pergunta colocada pelos autores em sua Apresentação: “Por que estudar a cavalaria é importante em nossos dias?” (p. 15), é devidamente respondida sem rodeios por eles. A(s) resposta(s), o(s) motivo(s), etc., nos são apresentados com a receita infalível do bom uso da erudição através da análise documental; da teoria, por meio das demonstrações do apurado conhecimento dos métodos da História e da Literatura… Mas, principalmente, por uma segurança na narrativa que somente os bons professores carregam em suas bagagens e esse tipo de característica só é possível de ser alcançada com o tempo de muito esforço e dedicação.
Cabe agora ao público leitor, com o cuidado que a obra merece, mergulhar profundamente em cada um desses capítulos e ir além, sempre.
Bruno Gonçalves Alvaro – Professor Adjunto IV de História Medieval do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: brunoalvaro@ufs.br
ZIERER, Adriana. BRAGANÇA JUNIOR, Álvaro Alfredo. Cavalaria e Nobreza: Entre a História e a Literatura. Maringá: Eduem, 2017. Resenha de: ALVARO, Bruno Gonçalves. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 131- 135, 2018. Acessar publicação original [DR]
La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales | Lídia Raquel Miranda
Este livro é uma introdução geral à cultura medieval, particularmente à sua literatura, destinada aos que, estudantes ou leitores comuns, precisam conhecer os traços fundamentais dessa cultura. O livro está dividido em oito capítulos, cada um deles concluindo com exercícios de análise e interpretação prática: “Manos a obra” prevendo portanto o seu uso em sala de aula ou em grupos de estudo. A Professora Lídia Raquel Miranda, editora e inspiradora da obra, redigiu cinco capítulos, pelos quais começaremos a apresentação. O primeiro tem como título (tradução nossa):” O medievo em metáforas e apreciações: a cultura popular e a cultura acadêmica na encruzilhada”, e discute como formamos mentalmente nossas ideias acerca do passado. As recordações do passado pessoal e familiar são distintas das elaborações acadêmicas acerca da história das culturas e civilizações, mas existe certa contaminação das imagens comuns, por vezes perpassadas de ideologias, mesmo em sala de aula, por preconceitos e noções deturpadas. É o que explica que a palavra Idade Média seja rodeada de conotações estranhas, mesmo entre pessoas instruídas: teria sido uma sociedade violenta, pobre, sem lei, ou então exótica, vivendo na natureza… A historiadora desenvolve a seguir sua argumentação sobre qual seria o modo mais correto de abordar a Idade Média, já que ela se constitui como a matriz do presente. Aqui radica a questão que conclui o capítulo: porque estudar a Idade Média? Mais do que respostas prontas Lídia Raquel levanta reflexões, indica bibliografia variada, e propõe dois exercícios: um de análise de um texto de autoria de um medievalista da Universidade de Córdova (Argentina), e outro de interpretação de um texto de opereta medieval. A mesma historiadora aborda, no capítulo 5º, a tradição do amor cortês na cultura ocidental. A construção e consolidação da cristandade europeia deu-se através de sucessivas realizações e conflitos, e deu origem a uma cultura diferenciada regionalmente, mas que tinha na região central da Europa seu principal foco de criação de dispersão. Foi aí, na França, que se originou um dos complexos culturais mais significativos e quase onipresentes: o amor cortês. Dele a autora descreve e analisa as variantes e características. Destaque especial merece a obra de André Capelão – Os três livros do amor – extensamente descrito e comentado. No 6º capítulo Lídia Raquel trata da retórica medieval introduzindo o tema sob uma ampla teoria semiótica, e ao mesmo tempo atenta à importância prática e às variedades do discurso medieval; para ter em conta esses diversos aspectos a autora aborda questões da retórica clássica grega e romana, da exegese cristã e da pregação dos primeiros séculos, e da posterior arte de pregar, bem como os modelos do discurso escolástico. A retórica é característica da vida pública e na Grécia nasceu com as práticas jurídicas e políticas, passando depois às educacionais; pouco a pouco nela se distinguiram as partes da comunicação, suas operações e formas. Santo Agostinho recomendava que para o orador cristão é mais importante conhecer as Escrituras (exegese) do que usar os artifícios da oratória, princípio que orientou os sermões medievais; mas o capítulo lembra também os poetas laicos, particularmente os jograis, e sua influência na fala religiosa; menos poético, mais formal e estruturado, foi o discurso acadêmico, que conhecemos como escolástica. O capítulo conclui ressaltando a importância da retórica atual, e propondo vários exercícios baseados em texto literários medievais, e sobre o marketing político (coach). No capítulo 7º Lídia Raquel estuda o surgimento dos idiomas românicos, a partir do latim, sua vulgarização e evolução por influência de outros povos que circularam no continente e ilhas. Dois tipos de idiomas se formaram, em toda a Europa romanizada: os regionais, muito variados e mesclados, e o latim erudito, que permitia a comunicação literária entre as novas nações. A autora detém-se na descrição de como se formou a língua castelhana, estudando não só os processos filológicos, mas também os políticos, que conduziram ao predomínio do castelhano como idioma espanhol, tanto na Península como na América Hispânica. Algumas propostas de exercícios, e a bibliografia auxiliam o estudante a aprofundar as questões, nomeadamente a origem dos vocábulos e as ambiguidades fonéticas. O capítulo final (8º), ainda de autoria da organizadora da obra tem como título “Um estudante perdido no museu: à procura das cores e formas do Medioevo” (tradução nossa); propõe-se ser um guia para que o iniciante se oriente no meio dos significados estéticos medievais: as cores e as formas das imagens. Resume em poucos traços o tipo de arte das várias épocas e lugares – primeiros séculos, bizantina, arte das nações germânicas, arte nos mosteiros, românico, gótico. Feita esta apresentação o capítulo discute os valores humanos transmitidos pelas imagens, pelos espaços divididos e organizados. Assim, no que se refere ao simbolismo da cidade, encontra-se a sobreposição ou justaposição de quatro modelos: Jerusalém, Babilônia, Roma e Bizâncio; conforme as intenções e propósitos o mapa medieval, ou a ilustração, trazem um ou mais desses modelos, substituindo deste modo longas explicações. Outras metáforas e símbolos do espaço são explicadas: o castelo, o labirinto, o mar, a floresta, o jardim, a água… O imaginário medieval passa ainda pelas representações de Deus, de Jesus Cristo, e dos santos, e também do homem e do corpo humano em suas atividades. Lugar importante era dado aos animais (os bestiários) e também aos animais mitológicos. Nas propostas de atividades práticas do capítulo destaca-se a intenção de relacionar entre si as diversas artes medievais e a literatura.
Passamos aos três capítulos elaborados por autores convidados. Jorge Luís Ferrari faz um percurso histórico pela economia e pela sociedade medievais (cap. 2º) dos séculos XI ao XV. Em breves pinceladas Ferrari expõe a composição social do Império Romano, seus conflitos de classe, e as causas da decadência, onde o cristianismo se insere. Entretanto os germanos invadiram o mundo romano, e de toda essa mescla surge o sistema político, social e econômico do feudalismo. Este é descrito em sua estrutura e fundamentos ideológicos e em suas fases e modificações, inclusive pela introdução de técnicas agrícolas. Mecanismos e rotas de mercado explicam o apogeu dos séculos finais da Idade Média, mas a crise do século XIV –peste negra e Guerra dos Cem anos – decretaram o declínio da civilização europeia, enquanto o feudalismo estremecia, e o poder real se fortalecia com o apoio da burguesia. Helga Maria Lell, no capítulo (o 3º) sobre as instituições jurídicas e filosóficas da Idade Média, começa por expor o nascimento das instituições do direito romano para em seguida mostrar como elas se alteraram, ou completaram, com o advento do cristianismo. Essa evolução conduz ao estudo da filosofia, e ao seu uso a serviço da religião cristã. A autora dedica então algumas páginas a expor as doutrinas dos dois principais mestres da filosofia cristã – Agostinho e Tomás – feito o que volta à Hispânia Romana, para se deter na relação entre direito, filosofia e religião durante o domínio visigótico, e apenas lembrando a fase seguinte da Península: as peculiaridades da cultura árabe/muçulmana. É também de forma breve que a autora descreve os traços do direito canônico, da organização universitária, e da consolidação do direito hispânico, sobretudo em Castela. Uma linha de tempo, ou cronologia simplificada, permite abranger em síntese rápida os principais traços destacados no capítulo. O exercício final é bastante extenso e completo, baseado na Carta Puebla, ou ordenação de repovoamento, confrontando-a com um texto de Tomás de Aquino. O capítulo 4º é de autoria de David Rodríguez Chaves; nele se descreve e comenta a literatura irlandesa e inglesa medievais, destacando no título duas características: o sincretismo pagão/cristão, e o uso da alegoria e da metáfora. Da literatura irlandesa e sua continuidade bretã são expostos temas mais conhecidos: as viagens para Ocidente e o ciclo arturiano, mas também outro menos citado: o Sonho da Cruz. As viagens dos monges irlandeses, os imrama, eram um derivado da tradição celta da aventura espiritual incerta em direção ao desconhecido; elas são símbolos da busca da perfeição repassados de fantasias, de encontros com animais fabulosos, homens estranhos, gigantes, visões e miragens, fontes milagrosas, seres meio homens meio animais. O autor não diz, mas sugere, ou subentende, que as Viagens de Gulliver podem ser descendentes desta literatura, até porque seu autor, Jonathan Swift (1667-1745) era irlandês. A narrativa de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde utiliza outro topo de simbolismo para passar do relato pagão para o cristão: os símbolos referentes aos ciclos da natureza. Neles sobressai a passagem da natureza morta para o mundo dos vivos por ação do Sol (Gawain) e da Deusa Mãe. O caso do Sonho da Cruz é inverso: o evento cristão é visto pela cosmovisão pagã celto/germânica, em que a cruz é a árvore Yggdrasil, e Cristo é um chefe guerreiro. No conjunto da obra este capítulo é importante porque é o que mais clara e consistentemente relaciona o apogeu do cristianismo com seus antecedentes da Antiguidade Tardia e com as religiões proto-históricas. Essa interpretação, realizada em poucas páginas, foi possível não só pela habilidade e conhecimentos do autor mas também pelas características da cultura celta, que manteve até aos dias atuais uma capacidade de inserção no cristianismo que lhe deu durabilidade e pervivência. Os exercícios propostos em Mãos à obra dão sequência a essa ideia de interpenetração cultural, ao usar verbos como relacionar, mesclar, amalgamar, influir apontando não só para comparações de formas externas mas de temáticas, que evoluíram sem perder seu significado original.
O livro cumpre os seus objetivos de forma muito adequada e satisfatória: mostra a grande variedade de expressões da cultura medieval, contrapondo-se à ideia comum de uma Idade Média uniforme e monótona; destaca a vitalidade das realizações medievais, e sua criatividade; sugere e desperta curiosidade para futuros estudos de quem lê o livro. Talvez por necessidade pedagógica de se ater ao que é mais usualmente discutido, e ao que é mais diretamente influente na realidade sul-americana os autores optaram por não desenvolver algumas dessas variáveis, sobretudo as que dizem respeito à primeira fase da Idade Média – ou Alta Idade Média – e as que tratam da cultura medieval na Europa do Norte e do Leste. No entanto os diversos capítulos, e o conjunto da obra, oferecem suficientes indícios para que o estudante procure colmatar essas lacunas.
João Lupi – Docente do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lupi@cfh.ufsc.br
MIRANDA, Lídia Raquel (Editora). La Edad Media en capítulos. Panorama introductorio a los estudios medievales. Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, 2015. Resenha de: LUPI, João. “La Edad Media en capítulos” por João Lupi. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 136- 139, 2018. Acessar publicação original [DR]
A escrita da história de um lado a outro do Atlântico | Maria Eurydice de Barros Ribeiro
“O mar uniu, mais do que o que separou”. Os versos de Fernando Pessoa inspiram a reflexão sobre unidade e diversidade entre os universos singulares aproximados pelo processo de expansão portuguesa e fornecem sentido à organização do livro A escrita da história de um lado a outro do Atlântico, projeto encabeçado por Maria Eurydice de Barros Ribeiro e Susani Silveira Lemos França.
Movidas pelo propósito de “resgatar e mensurar as faces de um processo de identificação”, as autoras aludem aos diálogos entre formações históricas situadas dos dois lados do Atlântico e expõem, no texto da introdução, o lamento frente ao fenômeno contemporâneo de abandono de categorias que, em tempos pretéritos, teriam servido ao reconhecimento dos povos e indivíduos e que hoje se vêem abandonadas em favor da difusão dos conceitos de diversidade e do desenvolvimento de ações afirmativas de identidades.
Efetivamente, votadas à resistência, conservação ou transformação, as ações afirmativas de identidades revelam-se, em nosso tempo, não somente legítimas como eficazes no processo de autoconhecimento, de organização e luta dos povos, e estão na base de princípios e de direitos conquistados. Os princípios afirmativos de identidades foram propulsores dos movimentos de descolonização desde a segunda metade do século XX e contribuem, até os nossos dias, para a ruptura com elaborações tradicionais relativas a origem e pertencimento. Em contraponto a esse movimento de dispersão, situam-se os múltiplos esforços, em campos da produção acadêmica como da arte, de identificação e reafirmação de elementos comuns aos povos e sociedades aproximados pelos fenômenos de expansão e dominação portuguesa. Mais do que acentuar as diferenças, esses esforços se orientam pela perspectiva de valoração positiva dos “pactos que foram se firmando ao longo do tempo” e são movidos pela perspectiva de identificação de um fundo patrimonial comum a esses povos e sociedades. Mas o destaque é dado às “raízes” greco-romana, judaico-cristã e árabe como “fontes de conhecimento que ajudaram a definir o mundo português”. É, pois, sobretudo no campo da escrita que essas tradições transplantadas da Europa para o “outro lado do Atlântico” no tempo de dominação colonial devem ser procuradas.
Nos territórios conquistados, o registro escrito, fundamental ao funcionamento e à ação das instituições, serviu de vetor de transmissão de valores, de difusão de práticas e, ao mesmo tempo, de registro sobre as realidades encontradas nas novas terras. Foram fundamentais, portanto, como destacam as organizadoras do livro, para o “autoreconhecimento e conhecimento do outro em um período de afirmação do reino de Portugal para além de suas fronteiras”.
O livro se organiza em duas partes: na primeira, os autores transitam por uma ampla variedade de fontes documentais, a partir das quais buscam refletir sobre distintos objetos e contextos concernentes à História de Portugal e do Brasil; a segunda parte tem como propósito fazer uma reflexão sobre o trabalho dos historiadores, com foco sobre os avanços e os limites da produção escrita portuguesa ou sobre aspectos da História de Portugal.
O texto de abertura da primeira parte, de autoria de Manuela Mendonça (Universidade de Lisboa), é dedicado ao processo de construção da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, desde o projeto inicial, levado a cabo por António Caetano de Sousa (1674-1759), fundador da Academia Real. Mendonça situa a origem da publicação na conjuntura política e cultural pós-restauração, sob o reinado de Pedro II de Portugal. De acordo com a autora, concebido no âmbito da Academia Real e entrelaçado com o projeto correlato de uma história eclesiástica do reino, a História Genealógica foi publicada, entre 1735 e 1748, em 12 tomos, e compreendeu também seis volumes de documentos, inseridos a partir de 1739. A inserção das cópias dos documentos obedecia à intenção de chancelar a obra com a existência de provas e servia, segundo os seus propositores, como garantia de verdade, objetividade e neutralidade no tratamento das matérias.
No segundo capítulo do livro, Maria Helena da Cruz Coelho (Universidade de Coimbra) propõe a abordagem da corte portuguesa enquanto “instituição política de composição tripartide representativa dos corpos da sociedade e com perfil colaborativo em relação ao monarca”. A origem das cortes portuguesas, de acordo com a autora, pode ser situada no processo de implantação das Cúrias Extraordinárias, no início do século XIII. Convocadas pelos monarcas em situação de crise política, as cúrias contemplavam, além da tradicional representação do clero e da nobreza, a presença dos representantes dos concelhos. Além de discutir os processos que resultaram na constituição das cortes, Mendonça traz importantes reflexões sobre as transformações que as afetaram até o final da Idade Média, sobre a composição social e os assuntos tratados em diferentes conjunturas.
A matéria de que trata Dulce O. Amarante dos Santos (Universidade Federal de Goiás), no capítulo seguinte, é constituída pelos prólogos que acompanham a escrita científica ibérica. A autora delimita o campo de investigação: trata-se da produção textual votada ao conhecimento sobre o mundo da natureza como criação divina. Escritos em latim, esses textos, em especial aqueles dedicados a temas compreendidos como próprios à medicina, eram quase sempre orientados a partir de critérios classificatórios, que distinguem e estabelecem correlações entre elementos variados que constituem o universo. Associado a esses textos, o prólogo é tomado como um gênero literário, cuja singularidade reside nas informações que abriga sobre o conteúdo por ele introduzido, sobre a autoria e, também, sobre o público que, no tempo inicial da produção, integra o horizonte de expectativa dos autores. Amarante dos Santos põe em destaque os métodos e os propósitos de composição dos prólogos e procura demonstrar como eles são claramente marcados por estratégias discursivas, orientadas pelos princípios da retórica, que visavam captar a atenção e modificar a percepção dos leitores sobre os conteúdos.
Francisco José Silva Gomes (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no texto seguinte, dedica-se à análise dos Manuais de Confissão elaborados durante os séculos tridentinos. Esses manuais deveriam orientar os confessores encarregados de conduzir os fiéis na contrição e no exame de consciência, atos que deveriam anteceder à confissão. Funcionam como textos de mediação entre a doutrina e a prática. De acordo com o autor, a uniformidade desses manuais reflete o projeto unanimista, levado a cabo pela Igreja e pelo Estado, que orienta a reestruturação da Cristandade nos séculos XVI a XVIII. O seu surgimento deve ser pensado a partir da reestruturação dos conceitos de cristandade e da identidade católica desde o advento da reforma protestante, no século XVI, e o seu desenvolvimento ulterior deve ser situado no processo de secularização que acompanha a difusão do pensamento iluminista e as revoluções burguesas. Gomes põe em destaque as relações e a busca de equilíbrio entre a Igreja e os Estados, de perfil absolutista, que permaneceram ligados ao catolicismo romano. Enquanto a Igreja almejava consolidar a sua imagem como uma ordem independente, os Estados, que dela retiravam os fundamentos ideológicos do poder régio, não só pleiteavam autonomia frente à Sé Apostólica como o direito de intervenção nas estruturas eclesiásticas. É esse o pano de fundo sobre o qual, de acordo com Gomes, se consolida o regime penitencial baseado na confissão auricular. No novo modelo de espiritualidade cristã, cuja origem remonta às reformas dos séculos XII e XIII, a confissão auricular reforça os princípios de individualidade e subjetividade na experiência do arrependimento. Por outro lado, como destaca o autor, as instituições tridentinas que sustentam a introdução da confissão auricular reforçam o papel do sacerdote como mediador com o plano do sagrado e dos sacramentos como “canais de transmissão da graça divina”.
No texto intitulado “Medicina da mulher em Portugal”, Maria de Fátima Reis (Universidade de Lisboa) reflete sobre a atuação de parteiras no campo mais amplo do que se entende como medicina da mulher. Além de um rápido balanço historiográfico sobre o tema, o texto traz o resultado de investigações sobre o regimento das parteiras que, no século XVI, ordenava o trabalho dessas profissionais e definiam os parâmetros para a sua atuação sob a chancela de outros profissionais e subordinada a determinações de natureza religiosa.
Já o texto de Cintia Maria Falkenbach Rosa (Universidade de Brasília) está centrado na análise iconográfica e iconológica de uma cena de natividade – em especial dos elementos concernentes à Adoração dos Magos – que ilustra o Livro de Horas de Dom Manuel I, datado de meados do século XVI. A autora aponta para a singularidade das imagens que ilustram o documento e as associa ao claro propósito de edificação da obra do Rei Venturoso em um contexto de consolidação e expansão do Estado Português.
A primeira parte do livro se conclui com o texto de uma das organizadoras, Maria Eurydice de Barros Ribeiro (Universidade de Brasília). Intitulado “Operários do evangelho”, o capítulo trata da difusão da espiritualidade franciscana no Brasil, tendo por foco conjunto arquitetônico dedicado a Santo Antônio, na cidade de Cairu, no recôncavo baiano. O texto resulta de um exaustivo trabalho de pesquisa documental e bibliográfica sobre história, arquitetura e imagética cristã no período colonial.
O capítulo que abre a segunda parte do livro, dedicada à escrita historiográfica portuguesa e/ou sobre Portugal, é da autoria de Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa) e tem por título “O elogio do contraditório”. Em revisita à obra de Zurara, em particular às narrativas sobre a tomada de Ceuta, a autora ocupa-se de analisar os escritos do cronista no intuito de evidenciar a presença do contraditório na discussão dos temas sobre os quais se impunham deliberações por parte da realeza portuguesa no século XV. Nas justificações e objeções ao projeto de conquista de Ceuta e permanência da corte portuguesa no local, a autora identifica o uso retórico do contraditório como elemento constitutivo da memória e da consciência nacional.
A cronística de Zurara também serve de fonte às pesquisas de Susani Silveira Lemos França (Universidade Estadual Paulista), cujo texto se propõe a debater a presença de elementos de abordagem moralizante no tratamento de temas associados à expansão portuguesa. Para tanto, a autora analisa o processo de seleção, atualização e ressiginificação de virtudes exaltadas na narrativa consoante as circunstâncias históricas.
O texto seguinte, de José Rivair Macedo (UFRGS), explora as imagens e os discursos sobre a Costa da Guiné, enunciados nas narrativas portuguesas produzidas entre os séculos XV e XVII. O conjunto documental que orienta a abordagem do tema compreende narrativas memorialistas, roteiros de viagens, literatura de missionários, além de um subconjunto que o autor nomeia como narrativas locais, escritos marcados pela vivência em terras Africanas. As reflexões sobre a natureza e os indicativos de localização das fontes fazem do texto de Macedo um guia fundamental aos estudos sobre representações do continente africano no contexto da expansão portuguesa.
A natureza das fontes históricas é também matéria de discussão no texto de Armando Martins (Universidade de Lisboa). O autor parte da reflexão sobre as relações entre memória e história escrita para discutir duas acepções do termo hagiografia: por um lado, o termo é utilizado para definir a escrita medieval sobre as vidas de santos, compreendendo várias formas, como as vitae propriamente ditas, os relatos de milagres, as narrativas associadas às relíquias etc; por outro lado, a expressão serve ara nomear os estudos sobre textos hagiográficos. As hagiografias medievais, o autor as analisa no panorama das grandes transformações da espiritualidade e do conceito de santidade que ocorreram na Europa ocidental a partir do século XII. O texto se conclui com a apresentação de um quadro analítico em que, a partir de elementos estruturais próprios ao texto histórico, busca-se inferir sobre a natureza do texto hagiográfico.
Já o texto intitulado “Fernão Lopes, o rei D. João I e a historiografia lusobrasileira”, escrito por Adriana Zierer (Universidade Estadual do Maranhão), resulta de importante levantamento sobre pesquisa documental e produção bibliográfica acerca de Fernão Lopes e D. João I. A autora destaca temas, formas de abordagem e fontes relativas à Dinastia de Avis e ao seu mais importante cronista e põe em relevo os historiadores e grupos de pesquisa que, em Portugal e no Brasil, têm a elas se dedicado.
É também na perspectiva da revisão bibliográfica e de reflexão sobre natureza das fontes documentais que Douglas Mota Xavier de Lima escreve as suas notas bibliográficas sobre a história da diplomacia portuguesa do século XV
O livro se conclui com o texto de João Marinho dos Santos (Universidade de Coimbra), que tem como propósito debater a abordagem das cartas e da “relações” dos jesuítas como gênero narrativo historiográfico. O autor principia por delimitar o universo de temas que os jesuítas, em missão missionária na colônia portuguesa da América, instigados pela direção da ordem inaciana, contemplaram em seus escritos sob a designação genérica de “cousas do Brasil”. Aos temas selecionados, Marinho dos Santos procura relacionar as circunstâncias da produção e os potenciais destinatários das cartas e das relações para concluir que “os primeiros jesuítas que escreveram do e sobre o Brasil foram mais memorialistas do que historiadores”, mas que os seus escritos estão em perfeita sintonia com o que se compreende como historiografia dos séculos XVI e XII.
A riqueza do trabalho que ora se apresenta ao público resulta da diversidade de objetos e de fontes abarcados pelos textos que o compõem. Além disso, deve-se destacar o número expressivo de instituições de Portugal e do Brasil que, por meio dos pesquisadores-autores, estão a indicar a renovação permanente da produção historiográfica sobre os contextos civilizacionais que têm o Oceano Atlântico como fronteira, como espaço de interseção, no tempo alargado que remonta à consolidação do Estado Português e se estende por todo o período de dominação colonial.
Rita de Cássia Mendes Pereira – Doutora em História (USP). Pós-Doutorado na Universidade Federal da Bahia (2015-2016). Professora Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Docente do Mestrado em Letras: Cultura, Educação e Linguagens. E-mail: ricamepe@hotmail.com
RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; FRANÇA, Susani Silveira Lemos (Org.). A escrita da história de um lado a outro do Atlântico. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2018. Resenha de: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.18, n.2, p. 140- 144, 2018. Acessar publicação original [DR]
História das Relações Internacionais / História.com / 2018
O que o patrimônio muda (II) / História – Questões & Debates / 2018
Within this issue, readers will find the remaining papers resulting from the session we organized at the 2016 meeting of the Association of Critical Heritage Studies (ACHS), in Montréal, Canada. The first papers of the session were published in early 2018, in volume 66, issue 1, of História: Questões & Debates. While some papers in that issue relate to the practice of archaeology and the management of buried heritage locally, in the Province of Quebec, other papers explore international examples, such as management of heritage in Turkey and the impact of archaeology on the local population in Egypt, a centre for cultural tourism since the 19th century. A methodological case study presents the classification of Chinese large-scale archaeological sites. Several First Nations were present at the meetings, and five of these Nations presented papers or participated in our session. The Waban-Aki Nation contributed to the first set of published papers, presenting its approach to co-managing cultural heritage and natural resources.
The present group of papers brings together a variety of topics surrounding how heritage studies can serve the development of identity. Their contents span community archaeology in Newfoundland and Labrador, a 14th-century mythical figure having built castles in southern France, a hermit living on a small island in the St. Lawrence River, the need for an emic perspective in archaeological research into Huron-Wendat heritage, the Cherokee conception of landscape, the memory of enslavement in French Guiana, and public archaeology in Brazil.
What do these seven papers have in common? First, they all answer the question “What does heritage change?” The answers stem from a thoughtful and purposeful archaeology that considers visitor interest and the development of knowledge. Second, they all relate to the theme of economics, reminding us of a question asked two years ago by economists concerning heritage. They argued that, rather than asking “What does heritage cost?” to a society that values the study of its past, we should be asking “How much does heritage contribute to societal development?” Through the spirit and meaning it gives to a place, heritage can be a means of creating a sense of belonging. Together, economic benefits and a sense of belonging enhance the quality of life.
As we mentioned above, the ACHS meetings are an appropriate venue for bringing together scholars who have chosen to study heritage as a field of critical inquiry. Critical heritage studies challenge conservative views and encourage inclusive, participatory practices while increasing dialogue and debate among researchers, practitioners, and communities. Critical heritage studies also contribute to the decolonization of the humanities through the encouragement and training of communities and through collaborations with indigenous communities (BAIN & AUGER, 2018).
In the current issue, the first paper, by Gaulton and Rankin, discusses the use of archaeology as a catalyst for public engagement. The authors eloquently demonstrate how the Province of Newfoundland and Labrador was the first to ask itself “What does heritage change and what can it bring to the province?” rather than “How much does it cost?” Through conscious community engagement – first at the World Heritage Red Bay site and now at the Ferryland site, which has become an important purveyor of employment – archaeology has been making a difference in Newfoundland and Labrador since 1979. The authors’ most recent community archaeology project, in southern Labrador, has brought a sense of identity and recognition to Labrador Métis communities. Their public engagement “prioritized community-based research agendas, promoting social justice at the local scale by providing education; training; and economic opportunities; and, more recently, paths toward reconciliation with indigenous communities.” Gaulton and Rankin show how each project learned from the previous ones about the economy of heritage studies.
What characterizes the next two papers is that both of these projects in public archaeology were initiated at the request of the local community, both involved a local legend, and both were intended to stimulate the economy through tourism. The archaeology undertaken went beyond simply reinforcing local lore and, instead, documented history properly, through good archaeological practices. Béague challenges the existence of a legend from the Middle Ages which insists that a particular style of castle construction can be attributed to a larger-than-life figure, that of Gaston Fébus.
Béague developed a project in the Béarn region of southwestern France, where the mythical figure was supposed to have built a defensive line as protection against an English invasion. This is an exemplary project in public archeology, as it demonstrates that a scientific approach to archaeology can appeal to a wider audience in search of a sound explanation of history and legend.
As for Savard and Beaudry’s contribution, they took the opportunity that was offered to them, in a project conceived by a well-intentioned group of laypeople, and went beyond proving what was already known about a mythical figure reputed to have lived during the 18th century on an island in the estuary of the St. Lawrence River, opposite the town of Rimouski, Quebec. They used the assignment at hand to show their sponsor that anchoring a regional tourism attraction with a single event or character is problematic. They eventually expanded their mandate to include the interpretation of the prehistory of a wider area. Although the project was short-lived, it did allow for the creation of a field school to train students registered in the history and geography programs at the University of Québec in Rimouski.
Two other papers examine indigenous history. The first paper, by Sampeck, discusses how research on landscape heritage is used as a tool for the development of self-identity, while the second paper, by Hawkins and Lesage, takes the reader one step further in making explicit the need to draw up a research design which tries to take into account an emic perspective when practicing archaeology with First Nations peoples.
The central argument of Sampeck’s paper is that cultural dispossession has worked against the Cherokee Nation. Their culture was almost destroyed during the contact period, when trans-Atlantic colonists took half of their territory. The current collaboration helps restore the Cherokee’s connection to their lands. Spaces that were previously simply considered “empty” have been identified as being crucial to the construction of Cherokee communities.
As exemplified by the first set of papers published in História: Questões & Debates, a theme that has developed over the past decade is the decolonization of archaeology and anthropology. The paper on Huron-Wendat heritage is an example of what the practice of decolonization can mean in archaeology. The authors show that First Nations are now actively making decisions related to the study of their past. Citing Warrick and Lesage (2016), Hawkins and Lesage define the respective limits of competence and responsibility of each: “… archaeology can make meaningful contributions to interpretations about technology, economy, and settlement patterns but […] archaeologists are not qualified to make pronouncements on the ethnic identity of past peoples.” Quoting Warrick and Lesage (2016, p.139), they state, “Indigenous people know best who they are and where they come from.” This position highlights two contrasting, yet valid, paradigms of their history.
The paper by Auger, on the work he and his collaborators conducted on a plantation cemetery in French Guiana, discusses their experience of making archaeology socially relevant. They created a lieu de mémoire, with the intention of memorializing the place occupied by the local population and their ancestors in France’s colonial history and of thus beginning a dialogue about this history. They discuss the dilemma of working on the delicate issue of slavery in the Caribbean and the reaction of the local, French authorities.
The last paper, presented by three Brazilian scholars, Garraffoni, Funari, and de Almeida, focusses on the use of archaeology and material culture as tools of social inclusion in Brazil. The authors discuss the history of Brazilian archaeology across various political regimes and examine how archaeology can be “instrumentalized” to suit a specific political vision. During the 20th century, archaeology in Brazil was heavily influenced by European practices. Today, Brazil is strongly invested in developing its own brand of public archaeology, which strives to be inclusive, while being aware of the present political climate.
Our Ontario colleague Gary Warrick, who was present at the ACHS meetings in Montréal, has kindly prepared a discussion that addresses the conference’s main question: “What does heritage change?” Covering both sets of papers, this discussion is presented at the end of this issue. He has grouped the papers into two themes: ownership and management of archaeological heritage and community-based archaeology. While his discussion highlights both strengths and challenges facing our discipline, Warrick rightfully reminds us that “archaeological heritage is best conserved, examined, and interpreted through collaborative partnerships of archaeologist and community members, in which ownership […] and production of knowledge is shared.”
Acknowledgments
We offer our sincere acknowledgment to the organizing committee and to Lucie K. Morrisset, chair of the 2016 ACHS meetings, for the invitation to participate. The CELAT research centre of Université Laval, Québec, and the Groupe de recherche en archéométrie at Université Laval also generously supported our initiative. We wish to thank all the participants in our session for the lively discussions and for preparing their contributions to these two issues of História: Questões & Debates in a timely manner. Finally, we wish to mention the support we received from the editorial board of História: Questões & Debates while preparing the papers for publication; it has been a wonderful collaboration.
Referências
BAIN, Allison, and AUGER, Réginald. Introduction. História: Questões & Debates, n. 66 (1), 2018, p. 7–9.
WARRICK, Gary, and LESAGE, Louis. The Huron-Wendat and the St. Lawrence Iroquoians: New Findings of a Close Relationship. Ontario Archaeology, n. 96, 2016, p. 133–143.
Réginald Auger
Allison Bain – Professors of Archaeology, CELAT, Université Laval, Québec, QC, CANADA, G1V 0A6. E-mail: allison.Bain@hst.ulaval.ca
BAIN, Allison; AUGER, Réginald. Introduction. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.66, n.2, jul./dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Historiografia dos Espaços / Revista Espacialidades / 2018
Frequentemente, para respondermos qual o cerne da História como disciplina, recorremos à relação da ação humana ao longo das diferentes temporalidades, portanto, centralizamos o Tempo como a dimensão fundamental do conhecimento histórico. Todavia, conforme a História foi avançando, a sua complexidade também o foi, deste modo, à dimensão temporal – que ainda permanece como dimensão central da ciência histórica – foi incorporada outras dimensões fundamentais de serem perscrutadas para a compreensão da disciplina. Escopo da Revista, o Espaço surge, destarte, como uma dessas novas dimensões a serem questionadas para o enriquecimento das produções historiográficas sob os mais diversos prismas e problemáticas.
Partindo do pressuposto teórico de que a produção histórica é circunstancial, logo, suscetível de mudanças, de acordo com as diferentes interpretações da mesma, a dimensão espacial traz consigo novas perspectivas capazes de questionar a história e a memória oficial; traz consigo a capacidade de descristalização do conhecimento histórico consagrado; traz, sobretudo, um novo campo de análises que ainda tem muito a dizer. Como afirmou, certa vez, à Revista Espacialidades, o Prof. Dr. Durval Muniz: “A história, para mim, é uma empresa crítica, no sentido de abrir possibilidades de vermos coisas diferentes. Não é crítica no sentido de oferecer uma alternativa, no sentido de dizer o que é correto, mas crítico no sentido de abrir possibilidades de pensarmos diferente, de sermos diferentes, de caminharmos diferente. A história não é para oferecer receitas, mas para abrir horizontes, abrir possibilidades, fazer a gente enxergar num dado lugar, numa dada estrada, muitas veredas, muitas possibilidades de divergir, sair para o diverso, perceber os devires”. Logo, os estudos que analisam, para além do tempo, a historicidade dos espaços, preenche uma lacuna, possibilitando novos insights e representando a essência da história como ciência questionadora.
Dito isso, o presente dossiê traz artigos que contemplam a dimensão espacial como posto basilar de suas discussões, contribuindo, assim, para a Historiografia dos Espaços. Agradecemos imensamente aos membros do Conselho Consultivo que com muita generosidade, celeridade e, acima de tudo, competência, contribuíram com pareceres sérios e consistentes que garantiram a qualidade do presente dossiê. Agradecemos também aos colaboradores que, através de suas contribuições, garantem a continuidade da discussão crítica sobre diversos conceitos que abordam as espacialidades enquanto objeto histórico.
Abrindo o dossiê temos o artigo “A geografia-histórica da região metropolitana de Belém”, de Luiz Augusto Soares Mendes. O doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense busca fazer uma análise histórica da produção do espaço das cidades que compõem a região metropolitana de Belém. Desse modo, o objetivo é revelar os aspectos econômicos, populacionais, sociais e a incorporação das cidades no processo de metropolização, gerando marcos espaço-temporais comuns a história das cidades alvo desse processo.
Em seguida temos o artigo “Taperoá: a capital literária do sertão-reino de Ariano Suassuna”, da historiadora Jossefrania Vieira Martins, doutoranda em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. O artigo relaciona história, literatura e espaço, além de explorar alguns elementos da obra do escritor paraibano Ariano Suassuna. A autora faz um paralelo entre a dinâmica espacial presente na vida do autor e suas marcas na produção literária do mesmo. Um dos objetivos do artigo é o de entender como as interações entre esses espaços vividos pelo autor se relacionam com um conceito de sertão a partir da literatura.
O próximo artigo do dossiê intitula-se “A experiência da espacialidade colonial: São Luís, cercanias e sertões (final do século XVII e início do século XVIII)”, escrito por Mariana Ferreira Schilipake. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, a autora busca discutir a espacialidade do território do Maranhão entre o final do século XVII e início do século XVIII. A perspectiva trabalhada pela historiadora, a qual busca compreender a relação de São Luís com as cidades circundantes, ajuda-nos a pensar a complexa dinâmica social da região nestes séculos, para além de contraposições entre espaços urbanos e rurais.
Compondo o volume 14 da revista espacialidades, trazemos a resenha do livro “The secret War: Spies, Ciphers and guerrilhas 1939 – 1945”, do historiador britânico Max Hastings e feita por Raquel Anne Lima de Assis. O livro busca apresentar como ocorreram as batalhas da guerra secreta entre o Eixo e os Aliados durante a segunda guerra mundial.
Na sessão “Entrevista”, temos a honra de apresentar a entrevista concedida pelo professor doutor Dilton Cândido Santos Maynard, professor colaborador no Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC / UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS (PPGED / UFS) e do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFS (Profhistória UFS).Na entrevista, Dilton Maynard falou sobre seu trabalho com representação, História do Tempo Presente e Ciberespaço.
Para fechar o volume 14 da Revista Espacialidades, trazemos a segunda parte do corpo documental referente à história da escravidão no Ceará. Essas fontes foram catalogadas pelo Programa de Educação Tutorial em História da Universidade Federal do Ceará, tendo como objetivo mapear documentos ligados à compra e venda de escravos no estado, ao longo do século XIX, entre os anos de 1843 a 1879. O Projeto, intitulado Fundo Documental e Guia de Fontes para a História da Escravidão no Ceará, foi realizado pelos bolsistas do Programa e teve início em 2007, com o mapeamento do corpo documental e catalogação destes, no qual resultou em fichas / resumo e sistematização desses documentos, concluída em 2012. O projeto catalogou cerca de 12 livros, que se encontram em sua versão original, no Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC). Nesse sentido, é com imenso prazer que a Revista Espacialidades apresenta aos seus leitores, mais um trecho destas fichas / resumos. Agradecemos novamente ao Programa de Educação Tutorial pela confiança, em especial à Kênia Rios, Viviane Nunes e Tayná Moreira.
O editor-chefe e a Equipe editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma boa leitura!
Editor-chefe: Magno Francisco de Jesus Santos
Equipe editorial:
Arthur Fernandes da Costa Duarte – (mestrando do PPGH / UFRN)
Emanoel Jardel Alves Oliveira – (mestrando do PPGH / UFRN)
Maria Luiza Rocha Barbalho – (mestranda do PPGH / UFRN)
Matheus Breno Pinto da Câmara – (mestrando do PPGH / UFRN)
Ristephany Kelly da Silva Leite – (mestranda do PPGH / UFRN)
Rodrigo de Morais Guerra (mestrando do PPGH / UFRN)
Thaís da Silva Tenório – (mestranda do PPGH / UFRN)
Victor André Costa da Silva (mestrando do PPGH / UFRN)
SANTOS, Magno Francisco de Jesus et al; Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.14, n. 01, 2018. Acessar publicação original [DR]
História Indígena e estudos decoloniais / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2018
Os debates em torno da história indígena ganharam relevância nas últimas décadas e continuam a provocar novas elaborações teóricas e conceituais. O alargamento da reflexão sobre a temática indígena coloca cada vez mais em cena histórias e culturas singulares e diversas, em diferentes épocas e lugares. Apesar dos avanços, a história indígena ainda enfrenta obstáculos para ser reconhecida. É, por vezes, tolerada apenas na sua versão étnica (nossa representação historiográfica do indígena) e não histórica êmica (a representação historiográfica dos próprios indígenas). É necessário, portanto, o questionamento da concepção eurocêntrica / colonial sobre o mundo que resulta no epistemicídio, ou seja, na invisibilidade e exclusão de saberes e histórias dos povos originários. É verdade que a academia estava de costas para esses povos e indivíduos, apenas nos últimos anos passou a incorporar os indígenas nas universidades; não apagados como acontecia no passado, mas trazendo consigo sua bagagem cultural, seus saberes e pedagogias e fundamentalmente outra forma de ver e narrar a história.
Nessa perspectiva é imprescindível perpetuar um posicionamento epistemológico e político de valorização das teorias e epistemologias do sul, que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais / sexuais subalternizados pelo processo histórico da colonialidade. Nesse sentido, os estudos decoloniais promovem uma profunda crítica a colonialidade (do poder, do saber e do ser) no combate à violência epistêmica. A construção de uma interpretação decolonizada acerca das experiências de diferentes sujeitos sociais perpassa pela interdisciplinaridade entre campos do conhecimento como a antropologia e arqueologia e pela análise de fontes diversas; escritas, visuais e orais. O dossiê História Indígena e estudos decoloniais revela, justamente, o desafio em questão. Temos avançado, não sem dificuldade, e temos muito ainda a prosseguir. O caminho é longo, apenas iniciamos a jornada.
A Lei Federal 11.645 / 08, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígenas nas escolas brasileiras, foi promulgada há dez anos. Para sua efetiva implementação, é necessário que haja mudanças no âmbito escolar e no ensino superior. Em ambos espaços, é fundamental que se reflita a partir do que os próprios indígenas produzem de conhecimento para a construção de uma educação verdadeiramente intercultural. As narrativas mitológicas ameríndias, nesse sentido, são importantes para o estudo da temática indígena, como nos alerta Renata Carvalho Silva no artigo “Mito e o ensino de história e cultura indígena em perspectiva decolonial”. Além de nos instigar a questionar dicotomias eurocentradas como natureza X humanidade / cultura e racionalidade X subjetividade, a mitologia têm o potencial de gerar empatia com sujeitos e visões de mundo outras. Como a própria autora adverte, o texto aponta “para uma dimensão rica e diversificada dos complexos de conhecimento e apreensão da existência humana e que o parâmetro universalizante da mesma nunca ultrapassou a linha de suas matrizes teóricas originais”. Suas reflexões destacam múltiplos desafios, mas também apontam para as inúmeras possibilidades de construir novos referenciais para estudo da história e cultura indígena.
Nas universidades, por sua vez, o ingresso crescente de estudantes indígenas e da luta por políticas efetivas de permanência estão transformando instituições ainda coloniais através da diversidade de corpos, vivências e conhecimentos. Elison Antonio Paim e Tatiana de Oliveira Santana apresentam algumas das memórias e das experiências trazidas e vivenciadas para e na universidade por mulheres Guajajara e Akrãtikatêjê no artigo “Mônadas sobre mulheres indígenas na universidade”. As dificuldades são evidentes, assim como a existência / resistência dessas acadêmicas indígenas. Em que pesem as dificuldades, os autores apontam para o novo, em que “os conflitos e tensões no âmbito acadêmico (…) contribuem para a construção de um futuro mais dialógico e respeitoso dentro do espaço acadêmico em relação à experiência de quem vive a universidade e tem o que falar sobre esse espaço, revelando as violências e tensões que se fazem presentes em seus corpos e em suas experiências”. Esse novo, segundo os autores, perpassa uma série de elementos fundamentais, como o acesso e a permanência, mas fundamentalmente a produção de novos saberes, ou seja, deixar as portas das universidades abertas para as experiências múltiplas que dão sentido a vida.
A presença indígena é revelada também a partir de artigos resultantes de pesquisas históricas referentes aos períodos pré-colonial e colonial. O sítio arqueológico AP.CG.1, localizado nas margens do rio Apuaê, Rio Grande do Sul, remete a uma ocupação guarani ancestral investigada no artigo “Arqueologia nas margens do rio Apuaê: um estudo de caso sobre a história pré-colonial do Alto Uruguai”. Fabricio José Nazzari Vicroski e Ânderson Marcelo Schmitt analisam vestígios arqueológicos desse povoamento pré-colonial, a saber: material lítico com indícios de ação antrópica e fragmentos de recipientes cerâmicos relacionados à indústria oleira dos horticultores Guarani. O estudo auxilia na construção da história do povoamento da região, majoritariamente indígena, inclusive de presença pluriétnica, ou seja, não exclusiva das populações Jê meridionais que tiveram seu território alterado após a chegada dos europeus no século XIX. Dois elementos, portanto, se sobressaem nesse estudo: o primeiro, que o povo Guarani também ocupou a região; o segundo, que as “pesquisas arqueológicas desenvolvidas nas margens do rio Apuaê também podem ser integrados às discussões acerca das disputas fundiárias entre indígenas a agricultores no Alto Uruguai, auxiliando assim na composição de um panorama geral acerca do povoamento da região”.
Essas pesquisas inseridas sobretudo no campo da Nova História Indígena enfocam na agência de sujeitos e povos indígenas, diante de realidades diversas, ao longo da história do Brasil. O texto de André Luís Bezerra Ferreira ““Mães das Liberdades”: os processos de mulheres indígenas no tribunal da Junta das Missões na Capitania do Maranhão (1720-1757)” revela a luta de mulheres indígenas pelas suas liberdades através da análise de processos instaurados no tribunal da Junta das Missões do Maranhão. São histórias incríveis de mães como Inácia e Margarida, que acionaram a justiça durante o período colonial e escravista na luta por melhores condições de vida. O autor conclui que “diante dos casos apresentados, podemos evidenciar a eminente agência de mulheres indígenas em prol de sua liberdade e a de seus filhos na Junta das Missões. Mães solteiras que empreendiam ações para o sustento de sua prole e que lutavam para que suas famílias permanecessem reunidas em um mesmo local.”
A história da capitania de Mato Grosso, por sua vez, é abordada no artigo de Gilian Evaristo França Silva intitulado “No século XVIII, uma encruzilhada de povos: os indígenas na formação da capitania de Mato Grosso”. O autor revela a significativa presença e trabalho dos povos indígenas e de origem africana através, sobretudo, da análise de dados demográficos presentes em documentação do Arquivo Histórico Ultramarino, situado em Lisboa. Conclui informando que “os indígenas (…) tiveram sua força de trabalho amplamente utilizada no cotidiano colonial matogrossense. Suas marcas estão visíveis na composição social dessa capitania, nos traços físicos, nas formas de uso do espaço, bem como nas práticas culturais carregadas de sincretismos”.
No século seguinte, criou-se na província do Paraná uma visão estereotipada sobre os Xokleng, como demonstra Soeli Regina Lima no texto “Do imaginário coletivo em torno dos indígenas na região de Rio Negro-PR: um estudo dos relatórios de governo (1853 – 1890)”. Os discursos pejorativos acerca dos “bugres” presentes nos relatórios governamentais, vale ressaltar, eram bastante comuns em toda a região Sul do Brasil no século XIX. Infelizmente, além de incitarem ações violentas, ainda têm ressonância no tempo presente. A autora concluiu que “a desumanização do indígena, a inferiorização do sujeito em comparação com a sociedade ocidental dominante acabou por legitimar a implementação de leis e as narrativas do governo imperial”.
Como resposta à uma história de exclusão, o movimento indígena e as pautas identitárias têm se fortalecido. Os indígenas Kaingang estão em luta pela finalização do processo de demarcação da Terra Indígena Toldo Pinhal, localizada no município de Seara, oeste de Santa Catarina. O artigo “Lugares de memória e ressignificação cultural na Terra Indígena Toldo Pinhal”, escrito por Jaisson Teixeira Lino e Jéssica Alberti Giaretta, revela a vivência contemporânea de aspectos culturais do “ser Kaingang” pela referida comunidade. Num processo de reafirmação étnica, os indígenas acionam lugares de memória e organizam evento cultural que atestam a necessidade do uso de sua terra coletiva e sagrada. Observam os autores que “a concepção sobre a formação da Terra Indígena Toldo Pinhal, (…) se configura também como uma forma de expressão da vontade contida na população indígena de reviver sobre seu território e novamente desfrutar da cultura Kaingang”.
A Revista Catarinense de História Fronteiras traz também nesta edição uma resenha e um artigo recebido em fluxo contínuo, portanto, não pertencentes ao dossiê História Indígena e estudos decoloniais. Andréia Amorim da Silva resenhou o livro de Olivier Dumoulin, “Reflexões sobre o papel social do historiador”, publicado em português pela Editora Autêntica em 2017, quatorze anos após a edição original. A reflexão, com enfoque em países europeus (sobretudo a França) e América do Norte, abarca desde o final do século XIX até a contemporaneidade, quando crescem as demandas pela atuação do historiador em espaços públicos para além da universidade. Antonio Marcos Myskiw e Guilherme Luís Adamczyk revelam a história dos “Grupos dos Onze” no Paraná, fronteira com a Argentina, através da análise dos arquivos da Delegacia de Ordem e Política Social do Paraná. O artigo “O Sudoeste do Paraná nos arquivos da DOPS / PR (1963-1970): os Grupos dos Onze” possibilita uma reflexão urgente e necessária sobre os movimentos de resistência à ditadura militar no Brasil.
Por fim, destacamos com satisfação a entrevista realizada com Ariel Ortega, cineasta Mbyá-Guarani que dirigiu, entre outros, os filmes Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas Aldeias, uma caminhada (2008), Bicicletas de Nhanderú (2011), Desterro Guarani (2011) e Tava, a casa de pedra (2012). A conversa inspirada com os entrevistadores nos permite adentrar no fazer cinematográfico indígena, especificamente guarani: “Hoje em dia já não podemos mais, para defender nossas terras, lutar com arco e flecha. Eu estou usando a câmera de outra forma, como luta. É uma ferramenta ocidental, mas que eu estou usando para me defender e para contar outra história. Por isso eu sempre digo que quando pego a câmera dentro da aldeia ela se transforma como um ser da aldeia também. (…) Os povos indígenas têm uma contribuição enorme para construir uma sociedade melhor”.
Desejamos a todos / as uma excelente leitura!
Clovis Antonio Brighenti
Luisa Tombini Wittmann
BRIGHENTI, Clovis Antonio; WITTMANN, Luisa Tombini. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.31, 2018. Acessar publicação original [DR]
Culturas Políticas / Historiae / 2018
No segundo número de 2018 Historiæ apresenta o dossiê “Culturas Políticas”, como o próprio título indica abarca estudos que trabalham dentro desta perspectiva e / ou refletem sobre este conceito dentro de uma perspectiva histórica.
Da terminologia de uso corrente na Ciência Política, até as discussões e interpretações nos domínios historiográficos, o conceito de cultura política fornece uma matriz interpretativa de grande riqueza para as interfaces entre a História Política e História Cultural, em torno de temas como as representações sociais, os imaginários políticos, entre outros. O dossiê temático aqui organizado reúne trabalhos que se dedicam aos estudos das culturas políticas, com ênfase em pesquisas que busquem estabelecer relações entre a efeméride e os longos processos, em perspectiva que vão desde estudos de caso, até abordagens comparatistas e transnacionais.
Este dossiê foi organizado pelos Professores Doutores Leandro Pereira Gonçalves, da Universidade Federal de Juiz de Fora e Odilon Caldeira Neto da Universidade Federal de Santa Maria.
Rodrigo Santos de Oliveira – Professor Doutor. Editor
OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. Apresentação. Historiae, Rio Grande- RS, v. 9, n. 2, 2018. Acessar publicação original [DR]
Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo / Anos 90 / 2018
Se fosse preciso definir com três conceitos-chave a conjuntura deste primeiro quarto de século XXI, os organizadores deste dossiê acreditam que a maioria dos questionados conviria em utilizar, pelo menos, alguma das palavras que propomos como título. A ideia, então, de organizar um volume sobre a temática da guerra, da violência e da migração no mundo antigo nasce, simplesmente, de nossa observação da realidade contemporânea. Impotentes como historiadores, professores e / ou seres humanos, assistimos à eclosão de conflitos militares de rara violência na região do Oriente Próximo que atingem o planeta inteiro. A guerra na Síria, a ofensiva do autointitulado Estado Islâmico, a invasão do Iraque pela chamada “coalizão internacional”, liderada pelos EUA, trouxeram enorme instabilidade política e, mais importante, uma tragédia humanitária sem precedentes na história recente. Não podemos esquecer a outra face das guerras, tão dramática quanto a primeira, que representa as migrações forçadas de milhares de pessoas. Tudo isso, associado à destruição, ao espólio e ao saque do patrimônio cultural da humanidade presente nesses territórios, teve um efeito provocador a nós, historiadores da antiguidade.
Nosso dever de ofício aceita como tarefa primordial, então, o fato de tentarmos entender o mundo que hoje nos cerca estabelecendo um diálogo entre passado e presente, se quisermos construir o melhor futuro possível. Eis aí, para nós, a pedra fundamental do conhecimento e do estudo da antiguidade. Mais do que nunca, faz- -se necessário propor o debate, instigar a pesquisa, incitar a reflexão construtiva como nossa contribuição para a sociedade. E assim, algumas indagações nortearam nossa proposição. É possível tirar lições do passado? Somos capazes de compreender o conflito como fato e suas diversas dimensões na antiguidade e na atualidade, para estabelecermos paralelismos válidos e evitá-los, no futuro?
A partir dessas questões, formulamos a proposta do dossiê Violência, Guerra e Migração no Mundo Antigo, com o objetivo de refletir sobre temas urgentes e atuais a partir do estudo das sociedades antigas. Sabemos que as práticas de violência legitimadas pelas guerras, tendo como consequência a migração massiva de populações, têm uma longa historicidade, pois essas diversas experiências históricas foram preservadas e deixaram inúmeros indícios nos textos, nas imagens e na cultura material. Assim, entendemos que investigar essa temática na antiguidade pode contribuir para a compreensão dos recentes acontecimentos que atingem o mundo, especialmente o Mediterrâneo, a Europa e os EUA.
O enunciado deste dossiê abraça, entretanto, diversos outros enfoques, tais como questões relacionadas à tecnologia da guerra, à retórica da violência, à situação das mulheres e crianças nos conflitos, às agressões sexuais, à migração e ao fenômeno de transculturação, entre outros. Como afirma Magnoli (2006, p. 14): “A guerra é um fenômeno total, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades, o espelho de um tempo e um lugar”.
Foram vários os autores que atenderam ao nosso chamado. Eles provêm de distintos horizontes de pesquisa, alguns atuando no Brasil e outros no exterior. Vários são especialistas no Mundo Clássico, enquanto outros se interessam pelo Oriente, mas todos aportam uma reflexão original e uma boa dose de erudição.
O dossiê abre com a contribuição de Pedro Paulo A. Funari, intitulada “Migration flows from a long-term perspective”, que traz um estudo de longa duração sobre o fenômeno das migrações na história da humanidade. O autor discute os fluxos migratórios desde o processo de hominização até o período pós-segunda guerra mundial, incluindo a história brasileira, e argumenta que as migrações são um grande desafio tanto para as sociedades como para os intelectuais que refletem sobre elas.
A professora Katia Maria Paim Pozzer contribui com “Guerra, violência e memória cultural nas imagens assírias”, artigo no qual faz partir sua reflexão dos baixos-relevos em pedra resgatados dos palácios assírios de Nínive, analisando alguns elementos estéticos da antiguidade que o mundo contemporâneo tem reutilizado, levando a cabo um interessante paralelismo multisecular.
Com “The power of a powerless woman: examining the impact of violence on a Biblical nation”, Elizabeth Tracy nos conduz pelos caminhos da concubina levita, ou Pilegesh, analisando os últimos capítulos do bíblico Livro dos Juízes, cruel em algumas das suas imagens de violência contra a mulher e tão atual, lamentavelmente.
Viajamos depois para a Bretanha na pena da Dra. Tais Pagoto Bélo, com “Britannia: violência, poder e contato”, que propõe uma reflexão contemporaneamente válida através da cultura material representada por epitáfios da província da Britannia.
A professora Lorena Lopes da Costa contribui com “Troianas, de Eurípides (415 a. C.): a guerra injusta e o fim da linhagem dos heróis”, no qual traça um paralelismo da história de Atenas, dos crimes e excessos da guerra, com a tragédia euripidiana.
Estefanía Bernabé-Sánchez trata o tema da violência sexual em “El mito de Inanna y Šukaletuda: violencia sexual en Sumer”, mito no qual a deusa Inanna é estuprada pelo mau jardineiro Šukaletuda. A autora estabelece um paralelismo entre o crime sexual cometido contra a deusa suméria e aqueles que estão sendo, hoje, moeda comum nos conflitos armados do Oriente Médio, especialmente na Síria.
Finalmente, encerra este dossiê o trabalho do professor Fábio Vergara Cerqueira, “‘Melodia sangrenta’ (Anth.Pal. VI.159): a trombeta e a guerra na Grécia Antiga”, em que ele analisa o instrumento de vento chamado salpinx (σάλπιγξ) na iconografia e nos textos relacionados com a guerra na Grécia antiga, particularmente em Atenas, estabelecendo paralelismos entre as funções militares e os simbolismos.
O intuito deste volume que apresentamos, então, nos convida à reflexão crítica sobre a nossa realidade, partindo do conhecimento da remota antiguidade, de seus personagens e suas histórias, assim como da ideia de que guerra e violência, entendidas em todas as suas manifestações, são nefastas e não atendem aos pressupostos em que a humanidade deve enxergar a evolução e o desenvolvimento.
Frente àqueles que esquecem o passado e, por conseguinte, descuidam do presente enquanto olham para o futuro, anotemos aqui a definição que Sêneca nos deixou em De brevitate vitae (Sobre a brevidade da vida): sábio é aquele que lembra o passado, sabe aproveitar o presente e dispõe do futuro.
Que isso seja como uma de nossas bússolas.
Referência
MAGNOLI, Demétrio (Org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.
Estefanía Bernabé-Sánchez – Professora da Pontificia Universidad Católica del Peru – PUCP. E-mail: e.bernabe1976@gmail.com ´
Katia Maria Paim Pozzer – Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: katia.pozzer@ufrgs.br
Pedro Paulo A. Funari – Professor da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail: ppfunari@uol.com.br
BERNABÉ-SÁNCHEZ, Estefanía; FUNARI, Pedro Paulo A.; POZZER, Katia Maria Paim. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 25, n. 47, jul., 2018 .Acessar publicação original [DR]
Introdução à literatura infantil e juvenil atual | Teresa Colomer
Conteúdo indispensável na formação de professores da educação básica, os fundamentos de uma teoria da literatura infantil e juvenil são importantíssimos na formação desse profissional, bem como para bibliotecários, especialistas em educação e demais formadores de leitores e mediadores de leitura. Portanto, a obra da professora e pesquisadora espanhola Teresa Colomer, Introdução à literatura infantil e juvenil atual é fundamental na biblioteca de todos aqueles que lidam ou se interessam pela temática, seja nas formações iniciais ou em serviço. A mesma autora de A formação do leitor literário (Global, 2003) e Andar entre livros (Global, 2007), nos presenteia com essa versão reelaborada e atualizada do livro publicado no finalzinho do século passado, em 1999, na Espanha. A presente edição, até então inédita no Brasil, foi traduzida pela também especialista em literatura para crianças, Laura Sandroni.
Com sua característica de manual introdutório, o livro, com 336 páginas e organizado em cinco capítulos de discussão, mais introdução e dados bibliográficos, dá uma panorâmica da literatura destinada aos leitores crianças e jovens, tratando de sua função, mediação, características e critérios de seleção. A obra também, ao mesmo tempo em que proporciona uma reflexão sobre a história da produção literária para crianças e jovens, apresenta sugestões de atividades práticas, além de uma lista extensa, dividida em vários quadros, de obras a serem trabalhadas em diferentes níveis educacionais. Leia Mais
Las revistas montoneras: cómo la organización construyó su identidad a través de sus publicaciones | Daniela Slipak
As lutas armadas e os projetos políticos das esquerdas latino-americanas contemporâneas são temas vastamente trabalhados pela historiografia. A opção pelo uso da violência como instrumento político para a tomada do poder, fortalecida na América Latina a partir da vitória da experiência cubana em 1959, recebeu grande atenção de acadêmicos, que analisaram a constituição dos grupos, suas táticas e estratégias, seus fundamentos políticos, publicações e discursos, bem como a repressão às suas ações e, finalmente, os seus fracassos.
No caso argentino, agrupações como os Uturuncos, as Forças Armadas Revolucionárias (FAR), as Forças Armadas Peronistas (FAP), o Exército Revolucionário do Povo (ERP) e os Montoneros foram amplamente estudadas pela academia nacional. A partir da redemocratização argentina, este último grupo recebeu especial atenção da intelectualidade. Se naquele período, a década de 1980, os montoneros foram tratados como vítimas do último regime militar daquele país, posteriormente as análises vieram a se tornar mais complexas. Leia Mais
Acuerdos y desacuerdos. La DC italiana y el PDC chileno: 1962-1973 | Raffaele Nocera
Nos marcos de uma história política transnacional,2 certamente podemos incluir o livro Acuerdos y desacuerdos. La DC italiana y el PDC chileno: 1962-1973, do historiador italiano Raffaele Nocera, como uma importante e necessária referência, sobretudo para os estudiosos de uma história recente chilena. Percebermos na obra do historiador latino-americanista da Universitá di Napoli “L’Orientale” reflexões sobre as experiências da Democracia Cristã chilena e italiana em suas zonas de contato e reciprocidade, de influências, intercâmbios e interesses mútuos – embora nem sempre equânimes. A escrita do autor evidencia tons que tendem ao descritivo, com uma clara preocupação em apresentar uma história que certamente se torna ainda mais rica e complexa se compreendida de maneira conjunta e conectada, contemplando uma narrativa preocupada com uma abordagem que considere a simetria e as influências de situações de coexistência.3
Raffaele Nocera estabelece como objetivo central em Acuerdos y desacuerdos analisar as relações ítalo-chilenas a partir de contatos frequentes estabelecidos entre os personagens de relevo da política nacional dos dois países, enfatizando as relações entre dois partidos, a Democrazia Cristiana Italiana (DC) e o Partido Demócrata Cristiano no Chile (PDC), no contexto de organização e atuação da Internacional Democracia Cristã, que integrava formações políticas similares de várias partes do mundo, destacando-se Venezuela e Chile na América Latina. Dentre os principais líderes dos partidos salientados pelo autor estiveram, pela DC, Amintore Fanfani, Aldo Moro, Mariano Rumor e Giulio Andreotti, e pelo PDC, Eduardo Frei Montalva, Radomiro Tomic, Patricio Aylwin e Gabriel Valdés Subercaseaux. A escolha do autor pelas duas formações políticas ocorre pela sua então centralidade na política nacional de seus respectivos países durante boa parte da segunda metade do século XX, inseridos em redes internacionais e conformando fortes vínculos ideológicos, e mesmo de amizade, entre seus membros dada certa similitude cultural e de base doutrinária. Leia Mais
De Satiricón a Hum®: risa, cultura y política en los años setenta | Mara Burkart
O golpe militar de março de 1976 inaugura um dos períodos mais violentos e repressivos da história argentina, consistindo em um dos temas centrais nos ciclos de produção e reflexão intelectuais sobre as experiências ditatoriais latino-americanas. De Satiricón a Hum®: risa, cultura y política en los años setenta, livro de Mara Burkart, publicado no ano de 2017, dedica-se justamente a abordar um tema relevante e ainda pouco visitado na produção historiográfica argentina envolvendo o período ditatorial: as relações entre imprensa gráfica de humor, cultura e política a partir da perspectiva de resistência cultural.
Com a queda da última ditadura militar argentina em 1983 e em meio ao clima de transição democrática, as análises produzidas no calor dos acontecimentos sobre o passado recente foram provenientes sobretudo dos campos da sociologia e da ciência política, tendo os historiadores se mantido inicialmente distantes desse processo. Somente em anos posteriores, devido ao processo de afirmação da ditadura militar como problema histórico e o desenvolvimento do campo e dos aportes trazidos pela história recente é que foi possível perceber um avanço mais consistente na produção que situa a ditadura militar como objeto de investigação e reflexão a partir de uma perspectiva histórica2. Leia Mais
Pensando a música a partir da América Latina: problemas e questões | Juan Pablo González
Pensando a música a partir da América Latina: problemas e questões, lançado em 2016 pela editora Letra e Voz, é a primeira obra de Juan Pablo González publicada no Brasil. Musicólogo e historiador chileno, o autor pretende discutir a história da música e da musicologia latino-americanas no século XX, visando entender os processos que levam à formação de ritmos, gêneros, artistas, identificações e diferentes representações no continente. Tendo em vista a extensão do recorte temporal e espacial, o autor toma como foco principal de análise três países – Chile, Argentina e Brasil, porém durante sua narrativa são estabelecidas conexões com outras regiões, tais como os Estados Unidos da América.
Composto por 12 capítulos, que podem ser divididos em dois grupos, o livro reúne textos produzidos e publicados pelo autor no decorrer de sua carreira como pesquisador, possibilitando ao seu leitor conhecer pontos distintos sobre a música latino-americana no século XX. Entre os principais temas abordados estão: as predominantes correntes historiográficas sobre a música latino-americana, as propostas pós-coloniais para compreensão da musicologia no século XX, o espaço feminino na música, os movimentos de vanguardas e as relações inter-americanas. Leia Mais
Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.2, n.2, jul./dez. 2018.
Editorial
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- Apresentação e Balanço do III Encontro Nacional da ABECS, Porto Alegre (UFRGS) | Cristiano das Neves Bodart, Marcelo Pinheiro Cigales | PDF
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Discursos políticos na Época Moderna: produção, circulação e recepção / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2018
O homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon) [1], conforme afirmou Aristóteles em uma célebre passagem do capítulo II, do livro I da Política. A principal razão da natureza política do homem reside em sua capacidade de se comunicar através das palavras, ainda de acordo com o filósofo grego. Enquanto outros animais, como por exemplo as abelhas, são capazes de expressar dor ou prazer, os homens, graças à sua habilidade de fazer uso das palavras, podem ir muito além desta expressão rudimentar de sensações básicas e compor discursos que servem para “tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” [2]. Finalmente, é a capacidade unicamente humana de discernir entre justo / injusto e bem / mal que possibilita a existência da família e da cidade, estágios prévios da existência da comunidade política. Assim, na concepção aristotélica, é a associação direta entre política e discurso que compõe um dos traços mais fundamentais da natureza humana. Através do discurso, os homens comunicam ideias, valores, ideologias, interesses, projetos, sonhos e utopias. Através do discurso, os homens geram consensos ou dissensos, ambos vias essenciais de concretização da vida política. A temática geral deste dossiê é precisamente a diversidade de abordagens e análises do discurso político na Época Moderna.
E o que os homens comunicam em seus discursos políticos? Quais são os assuntos tratados nestes discursos? A reflexão filosófica entende como temas clássicos da política as estruturas e as formas de governo, as fontes de poder, a legitimidade do governo, os direitos e os deveres dos membros de uma comunidade, o caráter das leis, a natureza e os limites da liberdade, a obrigação política e a natureza da justiça. Em suma, são temas essencialmente políticos todas as problemáticas suscitadas pela organização dos seres humanos em sociedade, especialmente, aquelas diretamente relacionadas às causas, às razões e à legitimidade do arbítrio de um grupo de homens sobre os outros. Contudo, o próprio campo da reflexão filosófica é célere em afirmar o quão tênues são os limites que separam a política de outras áreas de investigação como as questões éticas, morais, sociais, econômicas e de antropologia filosófica. Essa frágil demarcação acerca de assuntos de ordem política multiplica a existência de temas que podem ser legitimamente considerados de caráter iminentemente político[3].
A reabilitação da história política pela historiografia[4], operada na década de 1980, deu-se exatamente a partir da flexibilização do entendimento do que configuraria o terreno dos fenômenos políticos por excelência. O âmbito da história política dilatou-se em diversas direções, indo muito além dos recortes tradicionais como, por exemplo, a história dos grandes personagens e a história da diplomacia, temas clássicos da velha história política que vinha sendo rechaçada desde os momentos inicias do surgimento da Escola dos Annales na França[5]. Vários movimentos confluíram para alcançar este resultado nos anos 1980 e, sem dúvida, merece destaque o papel exercido pela reflexão foucaultiana acerca da natureza fluída e polimórfica do poder[6] que contribuiu inquestionavelmente para a expansão das fronteiras da História, bem como para a compreensão da diversidade das experiências humanas ao longo dos tempos. Convém, contudo, recordar aqui a crítica precisa, feita por Emília Viotti da Costa, de que algumas análises, oriundas de uma interpretação simplificada e parcial da obra de Foucault, falharam em esclarecer os mecanismos através dos quais o poder se institui, se perpetua e se transforma, apesar de identificarem a multiplicidade de lócus a partir dos quais o poder é exercido, pois, afinal, “Quando o poder está em toda parte, acaba por não estar em lugar nenhum” [7].
Os signos da vida política passaram a ser localizados onde antes não eram percebidos e, assim, os historiadores passaram a estar cientes da presença do elemento político a despeito do assunto investigado. Esse movimento só pôde ser efetuado porque a realidade social foi compreendida a partir de seu polimorfismo político. Entretanto, não somente a uma ampliação de temas se deve a renovação da história política, mas também ao diálogo estabelecido com outras disciplinas, sobretudo a antropologia[8], e outras vertentes historiográficas, como a microhistória, a history from bellow e a história social. Destes colóquios interdisciplinares resultaram novas técnicas e metodologias aplicadas agora a velhos e novos temas. No campo da História Moderna – seara de pesquisa a qual se dedicam os artigos que compõe esse dossiê – essas mutações da história política originaram toda uma nova concepção da vida política na época Moderna, da gênese do Estado Moderno e das revoltas e revoluções que permearam o período[9] . Estas novas concepções dos fenômenos políticos modernos ensejaram igualmente a necessidade de outras abordagens teórico-metodológicas das quais algumas possibilidades em voga são: o emprego do método prosopográfico para o estudo das elites e das redes de compadrio – em alta nos estudos coloniais –, as análises sobre a cultura política de um grupo ou de uma determinada região e, finalmente, as investigações acerca dos discursos políticos.
A proposta teórico-metodológica mais corriqueira acerca da análise dos discursos políticos é aquela identificada com os pressupostos formulados pela chamada Escola de Cambridge, rebatizada por Quentin Skinner de enfoque collingwoodiano[10]. O enfoque collingwoodiano, do qual são autores emblemáticos Quentin Skinner e John Pocock, beneficiouse de um profícuo intercâmbio com a filosofia da linguagem de Wittgenstein e com a teoria dos atos de fala de Austin. A partir de então, os autores definiram o contexto em sua especificidade linguística, na qual importa interpretar as proposições da teoria social e política produzidas ao longo da história. Todavia, é claro que as propostas de análise do discurso político não foram e não são fomentadas apenas em língua inglesa, tampouco esgotam suas possibilidades de concretização em torno do enfoque collingwoodiano, como bem o comprovam os artigos presentes nesse dossiê, que adotam variados modelos de percepção, análise e interpretação dos discursos políticos.
Os trabalhos aqui reunidos podem ser agrupados em cinco eixos temáticos distintos: 1) as controvérsias teológico-jurídicas, 2) a publicística e a disputa pela opinião pública, 3) a circulação de textos e a cultura impressa, 4) o vocabulário político e suas transformações semânticas e, finalmente, 5) a dimensão política da escrita da história. Em relação ao recorte espaço-temporal, os textos se organizam em três grupos: o conturbado contexto britânico e de sua colônia americana no século XVII, assunto ainda pouco desbravado pela historiografia brasileira; a América portuguesa nos séculos XVII, XVIII e XIX; e o agitado Portugal do século XVII. Salta aos olhos o fato de que, em um total de oito artigos, seis sejam circunscritos ao século XVII, o século que suscitou, e ainda suscita, um acalorado debate sobre a crise na Europa[11], o século da convulsionada cultura do Barroco tão magistralmente descrita por José António Maravall [12], igualmente alvo de polêmicas. Querelas historiográficas à parte, o século XVII de fato vivenciou uma série de alterações que modificaram os arranjos político-institucionais, os estilos de comunicação política, o vocabulário e a semântica política e as formas de participação na vida política. Todas estas facetas foram diligentemente contempladas nos artigos aqui reunidos.
Assim, Carlos Ziller Camenietzki, em um belo exercício de história intelectual, aborda as transformações nos arranjos político-institucionais ao longo dos seiscentos, ao examinar as tensões inerentes à formação do Estado Moderno em Portugal, através da análise de uma controvérsia teológico-jurídica. Os diversos estilos de comunicação política – que apontam para relevantes matérias como a publicística moderna e a fulcral questão da existência de uma esfera pública para além dos moldes habermasianos – são contemplados nos artigos de Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro e Daniel Saraiva. Este último também efetiva uma importante reflexão sobre a participação das camadas populares na vida política de Portugal. Já Verônica Calsoni Lima, ainda dentro do universo dos estilos de comunicação política, explora o universo da cultura escrita seiscentista ao analisar o trânsito de correspondências, a publicação e a circulação de livros dos dois lados do Atlântico, entre a Velha e a Nova Inglaterra. Coube a Jaime Fernando dos Santos Junior esquadrinhar, no âmbito britânico seiscentista, as mudanças no vocabulário e na semântica política, ao investigar a historicidade e as disputas em torno do conceito de Commonwealth que mais do que uma mera disputa semântica, representavam a defesa de distintos projetos políticos, como esclarece Santos Júnior. Concluindo as reflexões sobre os aspectos políticos do século XVII, temos o artigo de Bruno Boto Martins Leite, o qual examina a reflexão teórica sobre a escrita da história do fidalgo português Francisco Manuel de Melo. Sublinhando o panorama ilustrado por Melo acerca das diversas possibilidades cabíveis à escrita da história de seu tempo, Leite afirma que para o erudito português o discurso histórico apenas ganharia pleno sentido em sua acepção como instrumento de uso político.
As diversas facetas políticas da escrita da história na América Portuguesa reúnem os dois derradeiros artigos deste dossiê. Kleber Clementino examina as múltiplas temporalidades presentes na obra historiográfica de Varnhagen, com ênfase no contraste de diferentes modelos historiográficos em vigência nos séculos XVI e XVII, especificamente: a história perfeita renascentista e a história política associada às teorias da razão de Estado. O exame da obra de Varnhagen é utilizado como pretexto, por Clementino, para compor sua tese sobre a história da histografia na Época Moderna, sustentando que Varnhagen não representaria o início da moderna historiografia crítica no Brasil e, tampouco, a origem da história da historiografia no Ocidente poderia ser situada no oitocentos. Marcone Zimmerle Lins Aroucha, ao investigar duas licenças presentes na História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, indica a fisionomia composta da escrita da história no mundo português do século XVIII, sugerindo que esta fisionomia deve-se ao embate entre paradigmas narrativos e teóricos distintos. Aroucha, incorporando a dimensão política da escrita da História na época moderna, avalia conteúdo e forma da obra de Rocha Pitta a fim de averiguar a instrumentalização política da mesma. Ambos os artigos – bem como o trabalho de Verônica Calsoni Lima – transitam com fluidez entre os universos intelectuais que se constituem dos dois lados do Atlântico. Este livre trânsito sinaliza um aspecto caro à historiografia contemporânea que, no ímpeto de libertar-se das amarras de uma narrativa nacionalista, coloca ênfase na circulação não apenas de bens e pessoas, mas também de ideias, comportamentos e valores. Circulação esta que se daria em constante processo de retroalimentação, estando apta a alterar tanto os contextos europeus quanto os contextos americanos, como afirma Carlos Zeron [13].
Desejamos que a leitura deste dossiê forneça informações sobre os contextos e conteúdos analisados, da mesma maneira que suscite questionamentos sobre as temáticas apresentadas, conduzindo assim ao fomento de novas investigações. Na cena política contemporânea, em que assistimos à progressiva banalização e ao esvaziamento intelectual dos discursos políticos, esperamos que as análises aqui reunidas sirvam de contraste e recordem a afirmação basilar de Aristóteles sobre um dos aspectos cruciais da natureza humana ser precisamente a capacidade de comunicação política. Aproveitamos também para agradecer a todos e todas envolvidos na elaboração deste dossiê, especialmente aos autores e aos pareceristas. Boa leitura!
Notas
- A tradução bilíngue que utilizamos emprega a palavra “político”, ao invés de “social”. A justificativa é que a palavra político representa melhor a inserção de todo ser humano na polis, a mais abrangente e superior forma de vida comunitária. Conforme, nota do tradutor: “O termo político (politikon) deve ser tomado na estrita acepção de “cívico”, isto é “participante da vida da cidade”, e não no sentido demasiado lato e fluído de “social”. In: ARISTÓTELES. Política; edição bilíngue. Tradução: António Campelo Amaral e Carlos Gomes. Lisboa: Vega, 1998. p. 595.
- Ibidem, p. 55.
- MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
- É certo que não devemos ser ingênuos e acreditar que apesar de um boom da história social e econômica, especialmente na França e na Inglaterra, a história política tenha sido completamente alijada da atenção historiográfica.
- A coletânea organizada por René Rémond é um forte indício desse movimento. Ver: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão Roberto Machado, 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
- COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida: 1960-1990. In: COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: Editora da Unesp, 2014. p. 15.
- O diálogo com a antropologia propiciou um entendimento diferenciado acerca do que pode ser compreendido como cultura. Esta compreensão foi fundamental para o campo de investigação da cultura política.
- Cf. GIL PUJOL, Xavier. Tiempo de Política; Perspectivas historiográficas sobre la Europa Moderna. Barcelona: Publicacions i Edicions, Universitat de Barcelona, 2006.
- JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual. In: JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs). História dos Conceitos: Debates e perspectivas. Rio de janeiro: Editora PUC- Rio, Edições Loyola, IUPERJ, 2006, pp. 09-38, p. 11.
- ASTON, Trevor (ed.). Crisis in Europe; 1560 – 1660. New York: Routledge, 2011.
- MARAVALL, José Antonio. La Cultura del Barroco. Barcelona: Ariel, 1990.
- Cf. ZERON, Carlos. Prefácio. In: GALERA, B.; SOALHEIRO, B.; SALGUEIRO, F.; VELLOSO, G.; SAENS, L.; LARA, L.; TORIGOE, L.; BERNABÉ, R. Exercícios de metodologia da pesquisa histórica. São Paulo: Casa & Palavras, 2015.
Camila Corrêa e Silva de Freitas – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: camilacorreaesilva@gmail.com
Rachel Saint Williams – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou Pós-doutoramento pelo programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo. E-mail: lwllsrachel@yahoo.com.br
FREITAS, Camila Corrêa e Silva de; WILLIAMS, Rachel Saint. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.36, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
José Marques de Melo / Revista Brasileira de História da Mídia / 2018
Em junho de 2018, a área da Comunicação perdeu um de seus maiores expoentes. O professor José Marques de Melo, criador, fundador e incentivador de tantas iniciativas fundamentais para a constituição e consolidação de nosso campo de atuação profissional nos deixou, mas deixou conosco também um importante legado. Suas pesquisas continuam a iluminar as nossas. As instituições que criou, a exemplo da Alcar, continuam sendo os principais pontos de encontro e de disseminação das investigações da área. Os tantos pesquisadores formados por Marques de Melo seguem os caminhos apresentados pelo mestre.
Nesta edição da Revista Brasileira de História da Mídia-RBHM, tem destaque o Dossiê José Marques de Melo, reunindo um conjunto de textos que abordam as contribuições de Marques de Melo para os estudos de história da imprensa, para a construção e consolidação do pensamento comunicacional brasileiro e ibero-americano, para as pesquisas sobre folkcomunicação e para a organização das instituições de pesquisadores da área. Os trabalhos são de autoria de Ana Regina Rêgo, Cremilda Medina, Guilherme Moreira Fernandes, Jorge Pedro Sousa, Karina Janz Woitowicz, Maria Cristina Gobbi e Ranielle Leal. Leia Mais
História e narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica – MALERBA (PL)
Em História e narrativa: a ciência e a arte na escrita histórica, Jurandir Malerba, professor da UFRGS, reúne textos de importantes pesquisadores, filiados a diferentes áreas das Ciências Humanas, cuja temática nos convida a refletir em que medida a história se aproxima de um discurso científico e/ou artístico.
Resultado de uma disciplina ofertada no Programa de Pós-graduação em História da PUC-RS, o livro tem o mérito de trazer ao público que compartilha a língua portuguesa a tradução de estudos seminais para o campo da narrativa histórica, além de textos inéditos ou reeditados que evidenciam o reconhecimento e a competência de pesquisas produzidas por brasileiros no campo da teoria da história. Leia Mais
O Ensino de História frente às demandas sociais do século XXI | Outras Fronteiras | 2018
As discussões acerca da educação pública brasileira nunca foram tão intensas como hoje. O ensino público, em um período relativamente curto, passou por uma série de mudanças e de ataques. Entre aquelas, destacamos a reforma do ensino médio, expressa na Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que flexibiliza o currículo e dissolve a disciplina escolar de história no itinerário formativo “ciências humanas e sociais aplicadas”; a aprovação em dezembro de 2018 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define os direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio para escolas públicas e privadas; e os vários projetos de lei submetidos, desde 2014, seja no Congresso Nacional como em sedes de poderes legislativos locais, pela organização Escola sem Partido, com o objetivo de combater uma suposta “doutrinação ideológica” nas escolas. Leia Mais
Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto – SILVA (RTA)
SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017. Resenha de: SANTIAGO, Fernanda Lucas. Narrativas sobre mulheres negras: diálogos entre a História e a Museologia. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.5, p.509-514, jul./set., 2018.
Nós, historiadoras/es, partilhamos com nossas/os colegas museólogas/os alguns dilemas próprios do nosso ofício, como a responsabilidade com a narrativa que construímos, os desafios da análise crítica à fonte documental e o risco da fetichização e folclorização dos documentos. Para além disso, a função social de ambas as profissões, está intimamente ligada com a desconstrução de estereótipos e a necessidade constante de rever métodos e atualizar abordagens discursivas, entre outros aspectos. Desse modo, tanto na História como na Museologia, e em outras ciências humanas, a análise das fontes é o ponto-chave na construção da narrativa em que não se pode esperar que a fonte fale por si. Anterior à análise da fonte é necessário ter em vista o que pode ser considerado fonte. Quais sujeitos essa, ou aquela fonte nos permite acessar? Apesar dessas discussões não serem novidade na área da História, ainda determinados sujeitos ficam à margem das narrativas especialmente quanto à interseccionalidade de gênero, raça e classe. Qual o lugar destinado à mulher negra nas narrativas históricas? Qual o lugar destinado às mulheres negras nas exposições museológicas? Nesse sentido, Joana Flores Silva critica a “romantização da escravidão” nos museus de Salvador e o “não lugar” da mulher negra nos museus e em nossa sociedade. Foram essas questões, que motivaram a Museóloga a aprofundar sua análise e escrever sua dissertação de Mestrado em Museologia (2015) pela UFBA. Essa resenha refere-se ao texto de sua dissertação, cujo lançamento em formato de livro deu-se no dia 21 de julho de 2017 no Solar Ferrão1, Pelourinho, Salvador – BA. A pesquisadora possui profunda experiência na área da Museologia, assumiu diversos cargos de gestão e coordenação de museus em instituições governamentais, sendo responsável por diversos projetos com a finalidade de criar políticas públicas para atender a demanda social com relação às questões de acessibilidade, identidade e pertencimento do público soteropolitano. Sua militância segue lado a lado com sua sólida trajetória profissional. Atualmente, é museóloga da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Branco e Preto” é um marco na Museologia brasileira, pois inaugura2 a discussão de gênero e raça, além de ser um ato político extremamente simbólico a presença de uma museóloga negra discutindo racismo; representatividade; o lugar da população negra na narrativa oficial; acessibilidade aos museus; no mesmo lugar em que, há pouco mais de um século, pessoas negras estavam sendo vendidos em praça pública.
A pesquisadora analisou sete museus de tipologia histórica de Salvador contidos no Guia Brasileiro de Museus, buscando entender como são representadas as mulheres em exposições de longa duração, e o tratamento diferenciado dado às representações de mulheres negras e mulheres brancas. Para entender a composição dos cenários dos museus analisados, a museóloga considerou duas etapas do projeto expográfico: a primeira refere-se à preservação dos objetos, ou seja, o que é valorizado como documento digno de preservação? O que compõe uma coleção? E a segunda etapa refere-se à exibição. O que merece ser exibido ao público? Quem são os sujeitos representados nos lugares de maior ou menor destaque dentro dos museus? Como resultado da análise, a museóloga percebe que os acervos são pouco explorados e/ou distorcidos, no que tange a representação da mulher negra; há pouca ou ausência de referência sobre objetos que são atribuídos às mulheres negras. Caso parecido ocorre na História, quanto à invisibilidade das mulheres negras nas narrativas históricas. É necessário pensar qual a importância desse sujeito histórico (mulher negra) naquele contexto, e as experiências das mulheres negras na atualidade, e assim, questionar a intencionalidade de ligar o corpo negro ao passado de escravidão, promovendo seu silenciamento.
A museóloga explica que os recursos de luz e cor, conteúdo das legendas, a escolha dos objetos e espaços de maior ou menor destaque nos museus, evidenciam a intencionalidade expográfica de cristalizar hierarquias sociais. Assim como na narrativa histórica, escolhe-se apenas o que se deseja lembrar e o restante é esquecido, não há espaço para a pluralidade de experiências. A memória da mulher branca e pobre é Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml>. Acesso em: 30 abr. 2018. 2 Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/>. Acesso em: 30 abr. 2018. apagada, assim como a memória de mulheres negras livres e com poder de influência são esquecidas. Cristalizar a imagem da mulher negra como escravizada impede-nos de perceber a história da mulher negra para além dessa imagem, invisibiliza suas ações enquanto sujeito histórico ativo na construção socioeconômica do país e sua atuação como líderes comunitárias, em clubes, coletivos e outros movimentos sociais. Segundo a museóloga, a memória da mulher branca da elite nos museus de Salvador é sustentada através da memória da mulher negra escravizada, ou seja, a memória de um grupo é reforçada pela subalternização da memória de um outro grupo .
Joana Silva faz um apelo no sentido de que as teorias e práticas museológicas devem ir além de pensar no acesso ao museu, mas devem repensar as formas de representar os sujeitos que não frequentam museus, por não se reconhecerem nos discursos ultrapassados exibidos nessas instituições. É necessário dar um tratamento digno aos objetos que pertenceram às mulheres negras e contextualizar os usos dos objetos, que são parte da história esquecida pela historiografia oficial. Trazer legendas com referências mais precisas sobre os objetos e sujeito que os possuíam, ou os utilizavam. Tornar visível a herança cultural desde tempos remotos dos grupos excluídos, para resgatar o sentimento de pertencimento e identidade racial e social dos sujeitos históricos no presente. A autora indica como possibilidade contrapor historiografia oficial com as produções artísticas que valorizam a mulher negra.
A pesquisadora apresenta alguns marcos de reflexões sobre a função social do museu que está na pauta da Museologia internacional dos últimos 40 anos: a Mesa Redonda de Santiago no Chile em 1972, segundo Silva (2017, p.51) “o desenvolvimento e o papel dos museus no mundo contemporâneo”; a Declaração de Caracas, de 1992, de acordo com Silva (2017, p. 51) “compreende os museus como um dos principais agentes de desenvolvimento integral”. O Código de ética do ICOM (Conselho Internacional de Museus) que assegura a autonomia dos museus no tratamento de suas coleções mas, atenta para o compromisso em tornar acessível e representativo para os diversos grupos sociais. Mesmo após esses avanços, a autora constata que a maioria dos museus de Salvador ainda não se alinharam a essas determinações internacionais. A museóloga também apresentou marcos nacionais de maior relevância para a renovação da museologia, como a Constituição de 1988, que instituiu o Plano Nacional de Cultura. As conquistas do movimento negro através das Políticas de Ações Afirmativas, como a criação da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção à Igualdade Racial) e SEPROMI (Secretaria de Promoção à Igualdade Racial), o Estatuto da Igualdade Racial. Esses marcos de Políticas Públicas sinalizam, de maneira geral, o respeito à diversidade cultural, a atualização da narrativa de maneira que promova a valorização dos sujeitos e grupos excluídos, resgatando o sentimento de pertença e identidade cultural.
A autora apresenta um breve histórico abordando a fundação de três instituições: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1838, o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro em 1922 e o Instituto Feminino da Bahia fundado em 1923. Segundo a autora, essas três instituições foram responsáveis por construir os símbolos de identidade nacional, progresso, modernidade, o modelo de mulher burguesa e por cristalizar o continuísmo do espaço marginal destinado à população negra e indígena no estado da Bahia.
A narrativa oficial da História inseriu a mulher negra no papel de escravizada e da mesma forma operou o discurso Museológico durante anos. Tanto a historiografia quanto a museologia são beneficiadas quando as/os pesquisadoras/res consideram em suas abordagens o recorte racial, e suas interseccionalidades com gênero e classe. Faz-se urgente a difusão de trabalhos como de Silva (2017) para o combate ao racismo, machismo e sexismo. Esse trabalho de análise da museóloga deve servir de exemplo as/aos pesquisadoras/res brasileiros, assim como em todo mundo afro-diaspórico. Não se trata de tentar esconder o passado de escravidão mas, trata-se de evidenciar que a população afro-diaspórica tem uma história rica e plural em experiências, não sendo aceitável a reificação da imagem do escravizado. Silva (2017) traz nas últimas páginas de seu texto uma lista emblemática referenciando diversas mulheres negras que merecem ser lembradas por seu trabalho e atuação política, como Maria Beatriz Nascimento, Karol com K, Jovelina Pérola Negra, Olga de Alaketu, Tia Ciata, Djamila Ribeiro entre outras.
Entre as funções sociais do museu também podemos considerar a função didático-pedagógica, para que os museus possam servir aos propósitos da Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira no Ensino Básico, desde que os objetos representados dialoguem com o público visitante numa perspectiva de desconstruir estereótipos; dessa forma, os museus podem ser aliados na construção de uma Educação Intercultural.
Referências SILVA, Joana Angélica Flores. Mulheres negras e museus de Salvador: Diálogos em branco e preto. Salvador: Edufba, 2017.
Escritora Joana Flores lança livro ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ no Solar Ferrão. G1 Bahia. Disponível em: <https://g1.globo.com/bahia/noticia/livro-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-e-lancado-no-solar-ferrao-nesta-sexta-feira.ghtml> Acesso em: 30 abr. 2018.
Lançamento do livro de Joana Flores ‘Mulheres Negras e Museus de Salvador’ lota o Museu Abelardo Rodrigues. Dimus Bahia. Disponível em: <https://dimusbahia.wordpress.com/2017/07/25/lancamento-do-livro-de-joana-flores-mulheres-negras-e-museus-de-salvador-lota-o-museu-abelardo-rodrigues/> Acesso em: 30 de abr. 2018.
Fernanda Lucas Santiago Mestranda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópólis – SC – Brasil. E-mail: flucasantiago@gmail.com.
Protesto: uma introdução aos movimentos sociais – JASPER (RTA)
JASPER, James M. Protesto: uma introdução aos movimentos sociais. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Resenha de: ZANGELMI, Arnaldo José. Um olhar sobre a dimensão cultural dos protestos e os dilemas da mobilização. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.10, n.25, p.502-508, jul/set., 2018.
Publicada originalmente pela editora Polity em 2014, com o título Protest: a cultural Introduction to social movements, a obra aqui apresentada foi disponibilizada em português pela Zahar no ano de 2016, em edição que conta com prefácio e posfácio dedicados especialmente ao contexto brasileiro. James Macdonald Jasper, professor da City University of New York, busca compreender as dinâmicas de mobilização em diversos contextos, dando especial atenção à dimensão cultural dos protestos. Apesar do reconhecimento sobre a relevância das forças estruturais, a atenção do autor está direcionada principalmente para as significações, emoções, valores morais e estratégias de ação dos atores em interação nas diversas arenas.
O livro é formado por oito capítulos, cada um baseado na articulação entre as mobilizações de um determinado movimento e um dos aspectos centrais nas dinâmicas dos movimentos em geral. Ao longo da obra, o autor também relaciona reflexões sobre os movimentos mais recentes e processos históricos mais antigos, como o caso de John Wilkes, ator que desencadeou uma série de movimentos na Inglaterra do século XVIII.
O primeiro capítulo é voltado principalmente para as definições e abordagens sobre os movimentos sociais. Jasper traça um breve panorama das principais perspectivas, delimitando entre as teorias psicológicas (ressentimento, multidões, escolha racional etc.), estruturalistas (oportunidades políticas, mobilização de recursos etc.) e históricas (Marx, Touraine, Tilly etc.). O autor busca, então, demonstrar como essas várias tendências, quando isoladas, se mostraram incapazes de compreender a realidade social, problema que tem levado algumas delas a incorporar a dimensão cultural em suas análises. Um exemplo é o sociólogo estadunidense Charles Tilly, que incorporou a persuasão como elemento relevante em seus últimos trabalhos. Jasper embasa parte significativa de suas reflexões nas concepções conceituais e históricas de Tilly, especialmente sobre as mudanças nos repertórios de ação dos movimentos nos séculos XVIII e XIX, em países como França e Grã-Bretanha.
O segundo capítulo trata da construção e projeção de significados, utilizando o movimento feminista como principal referencial empírico. Jasper salienta como a feminilidade é uma construção cultural, não um imperativo biológico, sendo assim foco das mobilizações de diversos movimentos ao longo da história. O movimento feminista, por diversos meios físicos e figurativos, buscou transformar as significações vigentes, influenciar a sociedade e conquistar novos direitos.
No terceiro capítulo, o autor trata das infraestruturas (comunicações, transporte, redes sociais, organizações, profissionais etc.) nas quais os atores se mobilizam, espaços que influenciam no processo de criação e transmissão de significados culturais pelos movimentos. Tratando especialmente das mobilizações da direita cristã nos Estados Unidos, Jasper deixa entrever que sua perspectiva tem um forte caráter relacional, na medida em que argumenta que o surgimento e desenvolvimento dos movimentos se dão nas interações com outros atores em diversas arenas. Assim, o autor demonstra como as ações de religiosos conservadores tiveram como principais contrapontos o feminismo e o movimento LGBTQ, se constituindo, em grande medida, pelo contraste em seus enfrentamentos.
As análises de Jasper também têm um enfoque processual, pois abordam as continuidades e transformações nas formas de enfrentamento, demonstrando como antigos movimentos deram base para novas mobilizações. Nesse sentido, o autor explica como os conservadores da direita cristã tiveram influência do anticomunismo dos anos de 1950, assim como os movimentos de homossexuais se valeram das linguagens de direitos praticadas pelos movimentos de afro-americanos, mulheres, indígenas etc. da década de 1960.
A partir dessas análises, o autor critica o uso de diferentes teorias para explicar movimentos de esquerda e direita, uma das tendências entre os estudiosos dos movimentos sociais. Assim, Jasper enfatiza a necessidade de superarmos os relatos que apontam motivações psicológicas e patológicas para os movimentos de direita, sendo mais proveitoso buscar compreender as formas como esses atores significam suas ações.
A dinâmica de recrutamento de novos membros nos movimentos é discutida no quarto capítulo, que analisa o movimento LGBTQ. O autor destaca o relevante papel dos contatos pessoais, em redes formais e informais, como incentivos para o ingresso e permanência nas mobilizações. Assim, as relações de confiança pré-existentes, orientações afetivas e intuições morais são elementos fundamentais para a adesão aos movimentos. O desenvolvimento das mobilizações dos homossexuais nos EUA é um bom exemplo também para o que o autor denomina como “dilema da desobediência ou cordialidade”, no qual os atores se deparam com escolhas entre táticas aceitas, que geram simpatia de outros atores, ou ações temidas que podem alcançar maior orgulho pelo grupo e recuo dos adversários, porém com maior risco de repulsa e repressão. Quando surgiu a epidemia de AIDS no início dos anos de 1980, assim como sua conotação depreciativa pela direita cristã, a ascendente mobilização das comunidades gays se direcionou para cuidados com os moribundos e a busca por aparência de normalidade e amorosidade. No entanto, os crescentes avanços conservadores sobre as políticas públicas, ocasionaram duras formas de discriminação, causaram um “choque moral” e um crescente sentimento de indignação entre os gays a partir da segunda metade da década de 1980, atraindo milhares de militantes, muitos deles jovens.
O “choque moral” é uma reação emocional que gera sentido de urgência, ameaça, indignação e medo. Desencadeado por eventos dramáticos que quebram a rotina, ele abala o senso de realidade e normalidade, sendo forte motivador para a ação. Assim, houve uma guinada no sentido da desobediência, inconformidade, enfrentamento no movimento LGBTQ, que canalizou a culpa e a vergonha para o Estado, sistematicamente homofóbico, assim como para outras instituições conservadoras da sociedade.
A questão da manutenção dos membros em um movimento é discutida no quinto capítulo, que destaca as diversas satisfações e incentivos promovidos nos movimentos, como a identificação com o grupo, o sentimento de estar fazendo história, o senso de pertencimento etc. Jasper buscou demonstrar como as mobilizações dos dalits, na busca por direitos contra o hinduísmo bramânico dominante, caminharam no sentido da transformação da vergonha em orgulho para o grupo.
O sexto capítulo é voltado para a análise dos processos decisórios nos movimentos, tendo como base o movimento por justiça global. Mobilizando-se principalmente através de fóruns, entre os quais o Fórum Social Mundial tem maior expressão, esses atores têm formulado fortes críticas às políticas neoliberais de diversos países. Jasper analisa diversos mecanismos de tomada de decisão, como a formação de consensos, disputas pelo voto etc. O autor salienta as tensões entre as discussões horizontais, que demandam mais tempo, e as necessidades de tomada de decisão mais rápida e incisiva. Jasper demonstra como as rotinas organizacionais, ao cristalizarem certos procedimentos, diminuem a necessidade de muitas discussões, porém com prejuízo da criatividade e flexibilidade no processo decisório. O autor destaca também que as discordâncias entre facções, a respeito dos objetivos, estratégias etc., podem caminhar para a conciliação ou cismas nos grupos. Assim, mostra como as alianças são dinâmicas, influenciadas por uma multiplicidade de fatores, gerando grande incerteza nessas interações.
O sétimo capítulo trata da revolução egípcia, principalmente quanto às interações dos diversos grupos, entre os anos de 2011 e 2013. Jasper discute como outros atores se envolvem nas mobilizações, em complexas teias de alianças e disputas nas várias arenas. Assim, busca demonstrar como exército, governo norte-americano, grupos religiosos, partidos políticos etc. interagiram nesse processo, influenciando seus rumos. Dessa forma, o autor argumenta que os diversos grupos, cada qual com métodos e objetivos próprios, se envolvem numa mistura de cálculo e emoção, coerção e persuasão. A eficácia dos movimentos, em grande medida, depende de sua capacidade de envolver outros atores numa mesma causa.
No oitavo capítulo, Jasper discute as vitórias, derrotas e demais impactos dos movimentos sociais no mundo contemporâneo, tendo como referencial empírico central o movimento pelos direitos dos animais, principalmente na Grã-Bretanha e nos EUA. Esse movimento obteve várias conquistas, como leis que reduziram consideravelmente o sofrimento dos animas, mas enfrenta fortes obstáculos relacionados a hábitos arraigados, mercado, pesquisas científicas etc. Jasper argumenta que, além das conquistas concretas, vale atentar para os impactos nas visões de mundo, nas sensibilidades morais e interpretações históricas das sociedades. Os movimentos sociais transformam as maneiras de sentir e pensar, conduzindo, mesmo indiretamente, para novas práticas. Os integrantes dos movimentos sociais mudam também a si mesmos, desenvolvendo pensamento crítico, confiança e hábitos que os acompanham em suas trajetórias. Antigos movimentos inspiram os novos e também abrem espaços ao transformarem as regras das diversas arenas, potencializando as lutas futuras.
Jasper procura tecer algumas considerações sobre os movimentos no Brasil, principalmente no prefácio e posfácio à edição brasileira. O autor reflete sobre os protestos desencadeados a partir de 2013, enfatizando como as mobilizações contra o aumento das passagens, com proeminência do movimento Passe Livre, envolveram outros atores e catalisaram demandas mais amplas. Numa guinada para novos rumos, destoantes dos originais, esse processo culminou com a contundente queda presidencial, algo ainda efervescente em nossa sociedade. Retrocedendo um pouco mais em nossa história recente, Jasper também discute a importância do choque moral causado pelos massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás que, ao gerarem indignação, impulsionaram o governo FHC no sentido das reivindicações do MST no final da década de 1990. Por fim, enfatiza como a tática das ocupações ajudou a inspirar outros movimentos pelo mundo, como se pode ver em vários movimentos da atualidade.
Apesar de parte significativa dos problemas tratados por Jasper nesse livro já terem sido discutidos por outros estudos1, sua abordagem traz contribuições relevantes, na medida em que enfatiza as dimensões mais subjetivas dos movimentos, como a produção de significados, estratégias, sentimentos, efeitos morais etc. Essa ênfase é concretizada principalmente na sua exposição de certas questões como “dilemas”2, delimitação original que direciona a atenção para a perspectiva dos atores em suas interações concretas e suas escolhas diante dos universos de possibilidades que vislumbram.
O livro apresenta tanto uma visão introdutória e abrangente quanto profundidade analítica sobre os movimentos sociais, o que o torna interessante para os estudos de iniciantes e especialistas no tema, assim como para que militantes possam revisitar e reinventar suas práticas. Também se trata de uma obra profundamente atual, dado o crescente impacto dos protestos na dinâmica política recente. Entender os movimentos sociais e os protestos é, cada vez mais, algo imprescindível e estimulante para aqueles que se dispõem a conhecer e buscar transformar o mundo de hoje. É sugestiva a aproximação entre o que Jasper denomina como “dilema de Jano” e a “lógica dual” retratada por Cohen & Arato (2000), assim como os dilemas da “mídia” e “da cordialidade e desobediência” encontram em Champagne (1996) questões comuns. Algumas discussões sobre as dinâmicas das organizações de movimentos sociais (Cefai, 2009. Neveu, 2005) também abordam problemas similares ao “dilema da organização” de Jasper que, no entanto, coloca essas questões noutras perspectivas. 2 Os principais dilemas analisados são: dilema de Jano, dilema das mãos sujas, dilema da caracterização dos personagens, dilema da inovação, dilema da mídia, dilema da organização, dilema da expansão, dilema da desobediência e cordialidade, dilema da identidade, dilema dos irmãos de sangue, dilema dos aliados poderosos, dilema da segregação do público e dilema da articulação.
Arnaldo José Zangelmi – Doutor em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Professor na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana – MG – Brasil. E-mail: arnaldozan@yahoo.com.br.
Pibid / Revista do LHISTE / 2018
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) foi, inicialmente, uma proposta de governo para incentivar a permanência dos estudantes em cursos de licenciatura e para aperfeiçoar a formação docente inicial, com foco na articulação entre o mundo universitário e as escolas públicas de Educação Básica[1]. Atualmente, a realização de programas de iniciação à docência está prevista no artigo 62, parágrafo 5o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394 / 1996), mas seu formato se modifica conforme são lançados editais por parte do setor da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) responsável por políticas para a Educação Básica.
Por ser um programa de formação inicial de professores que reconhece e institucionaliza a escola como espaço privilegiado de aprendizagem docente, sua concretização buscou uma difícil conciliação entre as expectativas das escolas, dos gestores da política pública e dos docentes das instituições de ensino superior envolvidas. Além disso, distintas concepções sobre formação docente, carreira, estágio e prática como componente curricular atravessaram os muitos formatos de execução do Programa, havendo variações conforme a instituição coordenadora e, dentro desta, das escolhas tomadas em cada subprojeto.
O essencial é que o Pibid apóia uma concepção de formação docente que recusa a visão do professor como exclusivamente técnico ou exclusivamente artesão de práticas e de saberes. A interlocução com professores experientes da educação básica, orientadores universitários e licenciandos potencializa a articulação das dimensões estética, política e cognitiva do aprendizado da docência. Obviamente, o programa por si só não garante tal conexão, mas abre espaço para isso, caso os agentes envolvidos tenham a intenção de romper com velhos paradigmas do aprendizado da docência.
Nesse sentido, o modelo de formação inicial e contínua proposto pelo Pibid permite que concepções de professores como intelectuais transformadores (conforme propõe a tradição da pedagogia crítica [2]) e como agentes culturais (proposta explícita nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores de 2015 [3]), ganhem espaço institucional, na medida em que as ações desenvolvidas passam ao largo do modelo de intervenção pontual para sanar problemas de aprendizagem. Trata-se de um exercício coletivo, de ritmo lento, mas progressivo, em que o diagnóstico da escola e das situações de sala de aula; o planejamento de atividades (aulas, oficinas, objetos de aprendizagem, intervenções, etc.); e a avaliação se dão em função do aprendizado da docência. E não se trata apenas da formação dos estudantes da Licenciatura, mas também dos docentes supervisores e dos coordenadores de área.
A primeira iniciativa de implementação de um subprojeto História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul aconteceu em 2009, conduzido por alguns professores da Área de Ensino de História do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação. Parte das produções desse primeiro período foi publicada em um livro em 2013 [4]. Com o edital Pibid 2014-2018, foi composta uma coordenação interdepartamental, com os docentes já existentes e outros, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Nesse período, mantiveram-se 24 bolsas de Iniciação à Docência (contemplando aproximadamente o dobro de estudantes, devido a distintos tempos de permanência no projeto), quatro bolsas de Supervisão (sete professores diferentes revezaram-se nesse lugar [5]) e duas bolsas de Coordenação de Área. As escolas que participaram desse período foram o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Colégio de Aplicação da UFRGS, a Escola Estadual Coronel Afonso Emílio Massot e a Escola Estadual Técnica Irmão Pedro. As atividades desenvolvidas entre 2014 e 2017 foram palco de estudo de um projeto de pesquisa sobre formação docente e construção coletiva de conhecimentos [6].
Além de espaço de produção de conhecimento, o Pibid também é espaço de luta. Esses dois aspectos se dividem apenas para análise, pois, na prática, não há separação (pelo menos, não na nossa perspectiva de docência) entre manifestar-se nas ruas e nos fóruns em defesa da educação pública e produzir conhecimentos didáticos de forma responsável e com qualidade negociada. Em 2015, os primeiros rumores de cortes financeiros ou, até, de suspensão do programa se fizeram ouvir. Houve mobilização no país todo, ao longo das diversas ondas de disputa entre a Capes e o Fórum de Coordenadores Institucionais do Pibid (Forpibid). Da mesma forma, os participantes do Pibid envolveram-se nas greves docentes, nas ocupações, nas greves gerais e em outras iniciativas nesse período de golpes sucessivos.
Para finalizar o ciclo 2014-2018, decidimos organizar uma publicação que, de alguma forma, refletisse parcialmente os conhecimentos produzidos por professores (em formação inicial ou contínua, da escola e da universidade) e estudantes da educação básica em coletivo. Para isso, enviamos convites para todas as pessoas que foram ou estavam vinculadas ao Subprojeto História do Pibid UFRGS no final de 2017, para que enviassem suas propostas por meio da Revista do LHISTE. As produções que foram recebidas, avaliadas e aprovadas são as que seguem.
O dossiê está composto principalmente por relatos de experiências produzidos por bolsistas de iniciação à docência e trazem reflexões sobre as vivências escolares, a elaboração e aplicação de sequências didáticas e oficinas.
“Lembrando a greve: relatos produzidos como parte do acervo do memorial da escola técnica estadual Irmão Pedro”, de autoria de Fernanda Sperotto e Arthur Maia Gomes, relata a ação educativa desenvolvida por bolsistas de iniciação à docência no sentido de realizar uma exposição sobre a greve docente do ano de 2017. Quais os significados daquela greve para a comunidade escolar? Quais as marcas que ela deixou e o que os e as estudantes queriam dizer sobre aquele acontecimento? A experiência desenvolvida é um bom exemplo de como as aulas de história podem se valer de acontecimentos do presente para pensar sobre o conhecimento histórico, suas relações com a memória, as relações de poder e a construção de narrativas históricas.
Andressa Borba, Bibiana Harrote Pereira da Silva e Caio Tedesco apresentam “Gênero e ensino de história: reflexões sobre práticas de iniciação à docência no Pibid / história (UFRGS)”, uma reflexão sobre como surgiu a proposta de realizar uma oficina sobre história e relações de gênero para estudantes do Ensino Médio e quais foram os desafios de trabalhar com essa abordagem. A oficina realizou atividades ao longo de um semestre, tendo como eixos centrais os debates sobre gênero, corpos e sexualidades na história e nas sociedades contemporâneas.
“É imperialismo que nem o Donald Trump Sor?: um relato de experiência sobre Imperialismo no âmbito do PIBID”, de autoria de Carlos Eduardo Barzotto e Bruno Corrales apresenta as estratégias utilizadas pelos bolsistas para trabalhar o conceito de Imperialismo, contextualizando as diferenças entre o imperialismo ateniense do século V e o uso do conceito na história contemporânea.
Ainda como relato de experiência, o professor Leonardo de Lara, que atuou como supervisor do Subprojeto História UFRGS entre 2015 e 2017, discute a importância da docência compartilhada como um lugar de aprendizagens mútuas que permitiu a professores e professoras das escolas uma proximidade com a Universidade e com debates atuais no campo da historiografia e do ensino de história. Ao mesmo tempo, o autor fala da experiência de ser supervisor e trabalhar com os e as bolsistas de iniciação à docência.
Carolina Monteiro e Ignacio Angues apresentam o relato intitulado “O partido nazista era o PT da Alemanha?”. Esta pergunta realizada por uma estudante para a dupla de bolsistas do PIBID UFRGS fomentou uma reflexão sobre o ensino de história de temas sensíveis, especialmente quando o passado é ressignificado nas disputas políticas do presente.
Ainda como relato de experiência, o professor Leonardo de Lara, que atuou como supervisor do Subprojeto História UFRGS entre 2015 e 2017, discute a importância da docência compartilhada como um lugar de aprendizagens mútuas que permitiu a professores e professoras das escolas uma proximidade com a Universidade e com debates atuais no campo da historiografia e do ensino de história. Ao mesmo tempo, o autor fala da experiência de ser supervisor e trabalhar com os e as bolsistas de iniciação à docência.
Júlia Barbosa e Douglas Ramos discutem em seu relato de experiência o trabalho desenvolvido nas aulas da disciplina de Estudos Latino-americanos, ofertada para os anos finais do ensino fundamental no Colégio de Aplicação / UFRGS. O texto indica que as atividades de iniciação à docência foram importantes não apenas para pensar o ensino de história da educação básica. Mas também para refletir sobre a própria formação, enquanto graduandos de uma licenciatura em história.
Além dos relatos, temos um artigo de Lidiane Malaguês, que realizou um levantamento e análise das produções bibliográficas resultantes do Subprojeto História, indicando a diversidade de temas e problemáticas discutidas por integrantes das diferentes equipes que o integraram. Este artigo é importante permite dimensionar que a iniciação à docência precisa considerar alguns aspectos: o contato com o cotidiano da educação pública, o estudo e o planejamento das atividades docentes e a reflexão sobre as práticas desenvolvidas em sala de aula. Acreditamos que, desde 2013, quando o Subprojeto História iniciou, estes três eixos da ação docente foram objeto de nossa preocupação.
Em “O ensino de História e a resistência aos medos de falar, de ser e de dizer” Pedro Soares Gediel e Fernando Seffner discutem o crescente cenário de cerceamento à liberdade de ensinar recorrente de movimentos e projetos de lei que visam censurar temas e abordagens dentro das instituições escolares. Para os autores, essas propostas visam sublinhar que estudantes não possuem qualquer tipo de senso crítico e informações prévias. E desacreditam o lugar dos professores e das professoras como intelectuais, capazes de exercer mediações e produzir conhecimentos junto com os seus alunos / as.
Finalizando o dossiê, apresentamos uma entrevista concedida pela Profa. Dra. Katani Monteiro da Universidade de Caxias do Sul, que coordenou o Subprojeto História PIBID UCS durante 2015-16. Na conversa, realizada em maio de 2018, a Professora Katani reflete sobre os impactos do PIBID para a Universidade, para os e as bolsistas de Iniciação à Docência e para as escolas envolvidas.
Na sessão de temas livres, a Revista do LHISTE apresenta cinco artigos que versam sobre temas extremamente atuais para o ensino de história. Matheus Oliveira da Silva apresenta os debates sobre a Base Nacional Curricular Comum. Lair Faria apresenta sua experiência abordando história das mulheres e música. O tema dos Direitos Humanos é o assunto do texto de Anita Natividade Carneiro, desenvolvido a partir de uma experiência de estágio no ensino médio. Filipe Cambraia do Canto analisa o potencial do ensino de história como disciplina transformadora, a partir de sua experiência no projeto Territórios Negros. Finalizando esta edição, o artigo de Luciano Teles apresenta a experiência do desenvolvimento do jornal discente Folha da História e convida à reflexão sobre a importância dos periódicos alternativos, especialmente dentro dos espaços universitários.
Notas
1. CAPES. Portaria n. 72, de 09 de abril de 2009. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2018.
2. GIROUX, Henry. Professores como intelectuais. Porto Alegre: Artmed, 1997.
3. Conselho Nacional de Educação. Resolução n. 01 de 2015. Disponível em: http: / / portal. mec.gov.br / conselho-nacional-de-educacao / atosnormativos- -sumulas-pareceres-e-resolucoes?id=21028 . Acesso em: 11 jan. 2016.
4. MEINERZ, Carla B. et al. (orgs.). Caderno pedagógico de História – Pibid / UFRGS: saberes e práticas de professores de História em formação. Porto Alegre: Oikos, 2013.
5. Ana Gabriel, Leonardo Lara, Raquel Grendene, Franciele Luvison, Larissa Grisa, José Luis Morais e Edson Antoni.
6. Até o momento, foi publicado um artigo acadêmico sobre essa pesquisa, além de resumos e comunicações em eventos (PACIEVITCH, Caroline. Conhecimento didático e formação de professores de História: contribuições para a teoria e a prática. Diálogo Andino, Tarapacá, n. 53, p. 117-126, 2017. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2018).
Caroline Pacievitch – Doutora em Educação pela Unicamp e professora do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS.
Natália Pietra Méndez – Doutora em História pela UFRGS e professora do Departamento de História da UFRGS.
PACIEVITCH, Caroline; MÉNDEZ, Natália Pietra. Editorial. Revista do LHISTE. Porto Alegre, v.5, n.7, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Panorama de las Relaciones Internacionales en el Paraguay actual | Diego Abente Brun e Florentín Carlos Gómez
Panorama de las Relaciones Internacionales en el Paraguay actual é um livro de acadêmicos sobre as relações internacionais contemporâneas. Organizado entre dois internacionais pesquisadores paraguaios que combinam experiência e juventude, Diego Abente Brun e Carlos Gómez Florentín, respectivamente, trata-se de uma publicação que reflete um momento de “renovação acadêmica” no Paraguai.
Fruto de discussão ocorrida em seminário realizado em dezembro de 2017 em Assunção, o livro é composto de cinco artigos, além do prólogo e da conclusão. Os professores Herib Caballero e Edgar Sánchez Báez, da Universidade Nacional de Assunção, assinam o prólogo, no qual fazem um breve e importante balanço sobre a produção paraguaia sobre as relações internacionais contemporâneas, citando diversos autores nacionais e internacionais. Leia Mais
Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul – RODEGHERO (HO)
RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. São Paulo: Letra e Voz, 2017. 264 p. Resenha de: MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Uma história do medo: o anticomunismo católico no Rio Grande do Sul. História Oral, v. 21, n. 2, p. 177-180, jul./dez. 2018.
Antes de me dedicar ao conteúdo principal da obra Memórias e combates: uma história oral do anticomunismo católico no Rio Grande do Sul, chamo a atenção para a peculiaridade de sua capa. Criada e diagramada pelo Estúdio Xlack, apresenta uma foto (de 1941) que retrata o dormitório do Seminário de Gravataí, com aproximadamente treze jovens em posição de sentido entre as camas. A capa é composta em preto e branco, sob película plástica transparente, vazada pelo símbolo do comunismo – foice e martelo cruzados. Os jovens que essa imagem dá a ver estão entre aqueles que seriam preparados para retransmitir a mensagem de combate ao comunismo.
Carla Rodeghero inicialmente apresenta as circunstâncias sob as quais a obra foi concebida e executada, e expõe o conteúdo que ocupa lugar central na sua investigação: o anticomunismo praticado pela igreja católica. Ele consiste em “uma postura católica que teve abrangência espaço-temporal bem mais ampla do que tal decorre – se manifesta em situações concretas e em temas relacionados ao período em questão” (p. 21). A seguir, demonstra como se processou a “construção de um imaginário [que] […] demarcava o campo dos ‘inimigos’ do catolicismo e da civilização ocidental, inimigos representados por […] comunistas ou [o que era] encarado como comunismo” (p. 21).
A obra abrange o período que se estende de 1945 a 1964, e está dividida em cinco capítulos. O primeiro trata das fontes orais – as perspectivas teóricas e metodológicas em que se apoia a construção de fontes –, e discute como ocorre a recepção e reprodução dos discursos anticomunistas, percorrendo a literatura relativa ao tema. O segundo capítulo discute aspectos relacionados à Espanha e México, em cujos territórios ocorreram embates envolvendo a igreja e suas posturas concernentes ao comunismo – as lembranças externam conteúdos relacionados às recepções da campanha anticomunista. O terceiro capítulo, Esse tal comunismo, aborda como a mensagem sobre “comunismo” ou “anticomunismo” é discutida num grupo de leigos católicos no Rio Grande do Sul – suas lembranças e seus interlocutores. O quarto capítulo aponta os conteúdos interpretados pelos líderes católicos como ameaças comunistas e a sua transmissão aos fiéis e aos católicos em formação clerical. O quinto capítulo deslinda os combates entre católicos e comunistas, mais precisamente entre a Liga Eleitoral Católica (LEC) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Carla Rodeghero se preocupa em historicizar brevemente os partidos comunistas PCB e PCdoB, atuantes no Brasil, para que seus leitores possam compreender a temática do comunismo naquele contexto.
A historiadora inicia a revisão literária com Rodrigo Patto de Sá Motta, que pesquisa o anticomunismo na história brasileira. Motta indica que ocorreram ondas anticomunistas no Brasil, e registra dois momentos de abrangência, de 1935 a 1937 e de 1961 a 1964. O anticomunismo esteve presente de modo mais contundente nos meios empresariais, católicos e militares, e também vicejou na grande imprensa.
Rodeghero também recorre ao estudo de Dulce Pandolfi, para quem o PCB, no governo Goulart, desempenhava destacado papel político. A respeito das preocupações do empresariado em combater o comunismo, dialoga com a brasilianista Bárbara Weinstein. Essa pesquisadora pontua a criação do chamado Sistema S, Serviço Social da Indústria (Sesi) e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), na qual é possível distinguir preocupações que podem ser entendidas como de prevenção ao comunismo. Dos trabalhos de René Dreifuss, a autora destaca certo modus operandi de organismos como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que promoviam campanhas de desestabilização do governo Goulart, com o fim de criar caos econômico e político. Aponta que Carlos Fico encontrou vasto material produzido pelos órgãos de segurança do regime civil-militar de 1964 a 1985, escritos que expressavam preconceito ao se reportarem aos autores de teatro, jornalistas, cinema, TV, classificando o ambiente cultural e de notícias como dominados por comunistas. Rodeghero salienta ainda o trabalho de Carla Luciana Silva, que examina políticas anticomunistas em outros períodos.
Carla Rodeghero sinaliza que as ondas de combate ao comunismo são muito mais dinâmicas e extensas que o apontado inicialmente, donde se pode interpretar que o chamado anticomunismo seria uma condição permanente na vida política brasileira. O estudo é muito bem-fundamentado teórica e metodologicamente. Através da história cultural, deslinda o modo como seus entrevistados agiam, movimentando-se “entre as maneiras de representar o que é comunismo e formas de combatê-lo” (p. 35). Rodeghero ancora-se em Roger Chartier para discutir o conceito de representação, um marco que dá sentido à análise das narrativas dos sujeitos que entrevistou, e alinhava, assim, um diálogo que facilita ao leitor compreender as diversas perspectivas contidas nos discursos e práticas sociais.
O conceito de imaginário social, de Cornelius Castoriadis, é também útil para interpretar o discurso anticomunista. Essa prática discursiva consiste em evocar imagens que, expressas pelos mecanismos de linguagem, constroem sentido para um certo objeto. O discurso anticomunista observado pelo prisma do imaginário social toma forma concreta no quotidiano da sociedade interiorana sob análise, conforme se demonstra claramente através dos relatos apresentados.
Bronislaw Braczo é acionado para proporcionar a compreensão da ocorrência dessa imaginação que enuncia e significa o discurso anticomunista, que aponta como determinados conteúdos são associados ao comunismo. O fenômeno social (combate ao comunismo) ocorre no tempo presente, mas se relaciona ao mesmo tempo a uma projeção do “[…] futuro e à construção/ reconstrução do passado” (p. 37). A pessoa que enuncia combina aspectos e acontecimentos que não necessariamente tinham aquele sentido histórico, mas com aquele sentido são trazidos para o presente e assinalados como perigosos para o futuro – como se aquele sentido tivessem, porque nas imagens descritas no discurso anticomunista passam a ter aquela explicação.
O texto de Carla Rodeghero é claro quanto ao perfil constitutivo do discurso anticomunista, que ocorre carregado de sentidos, emoldurando grupos, sujeitos e situações como comunistas. Esses aspectos são facilmente demonstrados em fontes variadas, mas aparecem sobremaneira nos relatos orais. A autora estuda o fenômeno da recepção dos discursos anticomunistas amparada em Michel de Certeau: “[…] o ensaio de Certeau sobre leitura permite questionar o papel da escrita e da leitura no âmbito da Igreja […]” (p. 39). Recorre consistentemente à história oral também para explorar esse aspecto, e aproveita o ensejo para fundamentar esmeradamente o uso da metodologia. O texto indica compreensiva bibliografia de referência, com autores de renome nacional e internacional que, ao descrever suas efetivas práticas de pesquisa, aportam ao campo relevantes contribuições.
Estamos diante de um rico e bem-acabado trabalho de história oral. Ainda que o estudo seja de um aparente caráter local (concentrado no Rio Grande do Sul), ele se projeta nacional e internacionalmente. O comunismo e o anticomunismo construídos através dos discursos do medo carregam um apelo que transpõe fronteiras. Posto que esses discursos e a consequente pregação de ódio se mostram bem vivos na onda conservadora que assola o Brasil (e o planeta), arrisco dizer que a autora tem tema permanente para a continuidade de suas pesquisas.
Marcos Fábio Freire Montysuma – Professor das disciplinas de História Oral e História do Brasil Contemporâneo no Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: mmontysuma@gmail.com.