O que pode a biografia – AVELAR; SCHMIDT (PH)

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Existem limites para a biografia? Projeto História, São Paulo, v.64, pp. 354-361, Jan.-Abr., 2019.

Aguardada desde a publicação de Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (2013), a nova coletânea de textos organizada por Alexandre de Sá Avelar e Benito Bisso Schmidt a respeito do gênero biográfico foi lançada em 2018. Publicado pela editora Letra e Voz, o livro intitulado O que pode a biografia segue a mesma proposta da primeira obra: a reunião de textos téorico-metodológicos e relatos de experiências sobre a produção de biografias. Esse processo é perceptível, inclusive, nas diferenças de estruturação de ambas as obras. Enquanto a coletânea de 2013 foi organizada em três eixos reunindo onze autores (além da apresentação feita por Marieta Ferreira), a publicação de 2018 é dividida apenas em dois, focando, através de doze capítulos, nos elementos teóricos e nas práticas.

Iniciando com uma concisa apresentação, que faz referência a própria continuidade do trabalho iniciado em 2013, os organizadores afirmam que o livro nasce em um contexto de sedução pelo gênero biográfico no país, aumentando o número de interessados e convocando novas reflexões no campo das humanidades e das letras. Em seguida, são apresentados cinco textos que debatem a biografia a partir de seus “horizontes teórico-metodológicos”. Em “Contar vidas em uma época presentista: A polêmica sobre a autorização prévia”, Benito Schmidt retoma o tema da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida em 2015 pela ANEL, onde se previa a necessidade de anuência prévia concedida pelo biografado ou seus familiares ao escritor/pesquisador. Partindo da ADI e de casos brasileiros, como a polêmica envolvendo o historiador Paulo Cesar de Araújo1, o autor reflete sobre os regimes de historicidade, com ênfase no presentismo (HARTOG, 2013), e nas disputas de memórias que cercam o tema. Em seu texto, Schmidt pensa a constituição do campo biográfico na historiografia, entendendo as múltiplas temporalidades que transitam dentro do processo que chamou de “a biografia em julgamento”.

Em Os usos da biografia pela micro-história italiana: interdependência, biografias coletivas e network analysis, Deivy Ferreira Carneiro aborda as relações entre micro-história e biografia sob a chave de análise das experiências, das relações e do contexto social. Partindo da micro-história, o autor procura entender os sujeitos biografados como relacionais, pertencentes a determinados grupos e redes o que aproximaria a biografia da micro-história. Tal processo também rompe com a própria certeza da vida dos sujeitos biografados e com a ideia da linearidade das biografias produzidas predominantemente até o século XX. Segundo o autor, “a maior contribuição trazida pelo debate microanalítico acerca da biografia, a meu ver, foi trazer à tona um indivíduo cheio de incertezas que, na verdade, não tem uma percepção clara de si mesmo. (CARNEIRO, 2018. p. 56).

Maria da Glória de Oliveira, em Para além de uma ilusão: indivíduo, tempo e narrativa biográfica, dá seguimento à temática do sujeito, pensando a construção das trajetórias através dos processos de mediação narrativa, partindo de Pierre Nora. Historicizando a própria biografia, a historiadora tece sua reflexão acerca do papel da construção narrativa, especialmente da intriga, como maneira de “confrontar o indivíduo com a experiência do tempo” (OLIVEIRA, 2018. p. 61). Retomando também a noção de ilusão biográfica se destaca a compreensão que uma trajetória, e a experiência dos biografados, ocorre através não apenas de sua inserção contextual, mas igualmente da configuração do ato narrativo pelo qual essas experiências são materializadas.

A temática da narrativa é continuada por Mary Del Priore, autora de Biografia, biografados: uma janela para a história. Através também de uma historicização do gênero, Del Priore problematiza como os próprios historiadores opinaram e se relacionaram com as biografias. Em suas análises a autora reflete sobre as relações entre História e Literatura nesse processo, além de provocar o leitor a refletir sobre a própria disciplina e o lugar social e narrativo dos historiadores.

O último texto da seção, “Histórias de vida: um lugar de resistência para a reportagem”, é assinado por Rose Silveira. Destacando a distinção entre reportagem e notícia, a autora discute as possibilidades de pensar o livro-reportagem como uma forma de escrita biográfica. Aproximando História e Comunicação, o capítulo pontua elementos centrais da relação, abrindo espaço para reflexão sobre outras formas de produção de biografias no presente por não-historiadores. Como a autora destaca, esse processo ocorre através da noção de operação historiográfica a partir de Michel de Certeau. Por fim, visando exemplificar seus argumentos, Silveira analisa as biografias: A vida imortal de Henrietta Lacks (Rebecca Skloot) e Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (2012).

A segunda parte do livro, que reúne sete textos que apresentam como os enfoques teórico-metodológicos discutidos anteriormente perpassam as “experiências de pesquisa e leitura” de biografias. O texto que abre a sessão, assinado por Alexandre de Sá Avelar, discute a experiência de escrita de uma vida a partir da ideia de trajetória, o que foge do perfil totalizante da biografia. Procurando repensar o processo de elaboração de sua tese de doutorado defendida em 2006, o autor, em O reencontro com o general e o meu labirinto: sobre a releitura de uma tese, reflete sobre os meandros da pesquisa, suas motivações e principalmente os processos de delimitação do enfoque teórico. Avelar destaca que apesar de focalizar na trajetória de um individuo, isso não o excluiu “das preocupações propriamente biográficas” (AVELAR, 2018. p. 131). Sua noção de trajetória não se opõe à de biografia. Trata-se de uma forma da compreensão de um personagem através de uma proposta especifica ou um fio condutor em especial, que em seu caso foi a leitura da produção de Macedo Soares como modo de entendimento da estabilização dos processos de consolidação do capitalismo industrial brasileiro.

Dando seguimento ao relato de Avelar, Francisco Martinho aborda sua relação com o português Marcello Caetano, pensando os percursos que o levaram a produzir uma biografia política e intelectual sobre essa figura. Marcello Caetano: sobre a travessia de uma pesquisa é um relato de pesquisa primoroso no sentido que demonstra não apenas o processo de elaboração da biografia, mas compartilha as angústias e os desafios desse gênero de produção, especialmente com sujeitos que viveram em outros países que não o de origem do biografo. Abordando os limites e dificuldades da pesquisa, inclusive de acesso a documentações no exterior, Martinho lembra ao leitor a importância de se reconhecer a impossibilidade de apreensão total da vida de um sujeito, principalmente de maneira linear.

Em seguida, o brasilianista James Green nos presenteia com um relato sobre os bastidores de sua obra recentemente publicada pela Editora Civilização Brasileira. Green faz uma analogia direta aos próprios dilemas que perpassam a segunda seção da coletânea ao intitular seu texto como “Herbert Daniel: revolucionário e gay, ou é possível captar a essência de uma vida tão extraordinária”. Pensando a relação biografo e biografado, o historiador compartilha dilemas muito semelhantes aos dos dois textos anteriores, mas aponta outro elemento: a proximidade temporal e pessoal com o tema, marcada especialmente pelo potencial uso da história oral. Narrando, por exemplo, suas tentativas de diálogo com parentes de Daniel, o autor destaca como um personagem é construído, através dos rastros e das memórias, pelo próprio pesquisador apenas no decorrer da própria pesquisa.

A questão dos rastros é retomada em seguida por Jorge Ferreira em Escrevendo João Goulart. Autor de uma das obras de não ficção mais vendidas de 2011 (FERREIRA, 2016), o pesquisador destaca seus processos de pesquisa, assim como os acasos e momentos inesperados de acesso da documentação. Apesar dos pontos de contato com os relatos anteriores, Ferreira atenta algumas questões próprias de pesquisadores da área de história política e econômica. Nesse sentido, uma das principais contribuições de seu texto é reforçar que o sujeito é, não apenas relacional com seu contexto, mas também “conformado por estruturas econômicas ou pelas ideias de classe social” (FERREIRA, 2018. p. 182).

A temática da autobiografia é discutida nos dois textos seguintes da coletânea. Laura de Mello e Souza, em “Vitório Alfieri, a vida e a história”, mergulha em suas memórias com Vitório Alfieri e sua obra autobiográfica Vita produzindo um ensaio sobre a trajetória e o desenvolvimento intelectual de um dos autores que mais a intrigaram. Nesse sentido, mais do que pensar o procedimento de uma biografia escrita por ela, Mello e Souza reflete também sobre os processos de construção autobiográfica do escritor do século XIX.

Em seguida, “autobiografia, gênero e escrita de si: nos bastidores da pesquisa”, de Margareth Rago, constrói uma reflexão autobiográfica de seu envolvimento com o tema das autobiografias apresentando ao leitor suas inspirações, motivações, estratégias e referências. Seu capítulo propõem ao leitor compreender as tecituras da composição dos sujeitos, que nunca se veem totalmente excluídos de processos e estruturas maiores como o gênero, ou ainda a dimensão coletiva existente na própria produção de si.

O último texto da seção é, certamente, um dos mais intrigantes. Temístocles Cezar, em “Bartleby e Nulisseu: a arte de contar histórias de vida sem biografia”, brinca em um eterno jogo entre realidade e ficção ao narrar a história de Nilusseu, uma jovem estudante de história encantada com Bartleby, personagem do conto de Herman Melville, publicado em 1853. Em uma trama instigante e reflexiva, permeada por referências a teóricos como Marx, Hegel, Foucault, assim como estudiosos das teorias da biografia como Sabina Loriga, Cezar provoca o leitor a refletir sobre as possibilidades de escrever uma história de vida sem fazer biografia.

Colocando sob sua mira a própria ideia dos indivíduos serem ou não únicos, o autor nos instiga a refletir sobre quem determina essa individualidade e protagonismo dos sujeitos. Mais que isso sua trama possibilita pensar a ideia de ilusão biográfica, ao intrigar o leitor com a jovem Nilusseu que se confunde ao seu próprio mundo de leituras.

A pergunta inevitável que marca esse capítulo – e penso não ser a toa os organizadores o terem colocado como o último texto do volume –, seria: é possível contar histórias de vida sem biografia, se afinal existem histórias no plural? Penso que a estruturação da obra caminha para esse ponto central. A coletânea, O que pode a biografia não fornece um manual prático sobre como trabalhar ou pesquisar o gênero. Ao mesmo tempo, sua intenção também não é o que o título poderia sugerir: um manifesto acerca das regras e diretrizes do campo. A obra organizada por Avelar e Schmidt convoca a uma reflexão sobre um campo aberto e de fronteiras móveis.

Apesar das conexões, cada texto elencado apresenta pontos de vista únicos sobre o fazer biográfico. “Pode a micro-história dialogar com a biografia? São campos iguais?” “Somente historiadores produzem biografias?” “Não seria toda forma de escrita uma auto-biografia?” “Biografia e trajetória são campos distintos?” são apenas algumas das reflexões provocadas, não tendo por objetivo fornecer respostas definitivas. Passando da teoria a prática, os textos demonstram a impossibilidade do próprio pesquisador ver esses dois campos como dimensões dissociadas. Em momentos de crise da história e de consolidação e crescimento da história pública O que pode a biografia é um sopro renovador ao campo.

Referências

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (Orgs.). Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica. São Paulo (SP): Letra e Voz, 2012.

FERREIRA, Jorge. De volta ao público: João Goulart, uma biografia. MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Janiele Rabêlo de; SANTIAGO, Ricardo (Org). História Pública no Brasil: Sentidos e Intinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016. p. 121-131.

HARTOG, François. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Belo Horizonte, Mg: Autêntica, 2014.

OLIVEIRA, Márcia Ramos de Oliveira. Reflexões sobre o gênero biográfico: literatura, ilusão e disputas de memória. In: GONÇALVES, Janice (Org.) História do Tempo Presente: Oralidade, memória, mídia. Itajaí: Casa Aberta, 2016. p. 101-116.

Nota

1 Em um texto recente, a pesquisadora Márcia Ramos de Oliveira (2016), também discutiu os embates em torno do gênero biográfico ocorridos na sociedade brasileira a partir de 2015. Apesar de ambos focalizarem temáticas semelhantes, a autora destaca principalmente os diferentes embates de memória, ligados a narrativa, focando especificamente no caso de Paulo Cesar de Araújo.

Igor Lemos Moreira – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES-DS e Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: igorlemoreira@gmail.com. Número do ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6353-7540. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

TransVersos. Rio de Janeiro, v. 17, 2019.

RELIGIÃO E MUDANÇA SOCIAL

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TransVersos. Rio de Janeiro, v. 15, 2019.

REFLEXÕES SOBRE E DE ANGOLA – INSCREVENDO SABERES E PENSAMENTOS

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Entrepalavras. Fortaleza, v.9, n. 1 (9), 2019. / v. 11, n. 2 (11), 2021.

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A dimensão fônica das línguas na construção de estruturas e sentidos

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Estudos em homenagem a Paulo Mosânio Teixeira Duarte

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Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos | Marcos Napolitano

Os estudos mais recentes do historiador Marcos Napolitano, professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo (USP), têm se tornado indispensáveis para aqueles que pretendem alçar voo em pesquisas sobre o processo de militarização da ditadura brasileira. Nos últimos anos, o autor vem se dedicando a um balanço histórico do regime militar no Brasil e aprofundando o debate sobre os deslocamentos de sentido das diferentes memórias produzidas e cultivadas sobre o período autoritário.[2] Tal esforço ficou evidente com o livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, lançado em 2014, exatamente 50 anos após o golpe de 1964.[3]

No entanto, Coração Civil vem coroar anos do trabalho que o autor vem realizando, pelo menos desde o doutorado, no campo da cultura de oposição à ditadura por meio da MPB, do cinema e do teatro. Nesse sentido, o livro retoma questões levantadas pelo próprio Napolitano na sua tese, publicada em livro em 2001,[4] e se une ao Brasilidade Revolucionária do sociólogo Marcelo Ridenti,[5] no intento de elaborar reflexões relevantes para a compreensão da resistência cultural no Brasil.

Logo de início, Napolitano busca reposicionar a cultura no campo de oposição e resistência ao regime militar brasileiro, principalmente após o AI-5, quando ela parece simplesmente ser colocada para escanteio. Assim, o autor se propõe a identificar o quanto os dilemas vividos no seio das diferentes oposições culturais traduziam as contradições e desafios da própria resistência política. Para isso, são apresentados quatro grandes grupos de atores na arena político-cultural: os liberais, os comunistas do PCB, os grupos contraculturais e a “nova esquerda”, surgida nos anos 1970. A partir da separação didática desses quatro grupos, Napolitano procura apontar convergências e divergências, que ajudem a explicar porque prevaleceu na memória social uma imagem de resistência cultural de consenso entre as mais diferentes tendências artísticas, sob uma percepção pouco aberta às clivagens da vida cultural que pulsava no coração civil das oposições ao regime.

Valendo-se das tipificações apresentadas por Roderick Kedward[6] para caracterizar as ações e movimentos de resistência, Napolitano procura entender quais valores marcaram a resistência ao regime militar brasileiro, qual o papel dos mediadores e das instituições na afirmação das resistências ao regime e quais os resultados, sobretudo no plano cultural e estético, do culto à inversão de valores defendidos pela direita militar encastelada no Estado pós1964. (p. 32)

Com esse aporte teórico, o autor procura complexificar o debate sobre as dinâmicas de apoio e resistência à ditadura, que nos últimos anos acabaram gastando muita tinta com um binarismo, que por vezes, não serve à análise histórica. Desta forma, a organização dos capítulos segue uma lógica cronológica, mas também teórica, que pretende dar conta das várias facetas da vida cultural sob a tutela autoritária, assumindo um caráter ensaístico com vistas a suscitar menos conclusões e mais reflexões.

O livro está dividido em nove capítulos: o primeiro apresenta os diferentes atores culturais e suas estratégias elaboradas ao longo do regime; o segundo detalha as ações e debates artístico-culturais da oposição, especialmente o campo teatral, formuladas entre o golpe e o AI-5; o terceiro aponta os impasses de cada grande grupo de oposição no baile das cinco artes (com destaque para o cinema, a música popular e o teatro); o quarto discute as lutas culturais entre os comunistas e os contraculturais a partir da ideia de vazio cultural que surge no início dos anos 1970; o quinto problematiza as políticas culturais de oposição assimiladas pelo Estado e o jogo de acomodações costurado pelos comunistas no contexto de abertura do regime; o sexto analisa o debate sobre as “patrulhas ideológicas” que ganhou capas e manchetes de jornais, revendo o papel do artista-intelectual e esgaçando qualquer possibilidade de aproximação entre a velha e a nova esquerda já no contexto da luta pela anistia e da “invenção de honras e futuros”;[7] o sétimo se debruça sobre as novas perspectivas culturais e políticas propostas pela “nova esquerda” sintetizada na proposta de criação do Partido dos Trabalhadores, ao final dos anos 1970; o oitavo faz um balanço dos diferentes caminhos que a cultura segue durante o processo de redemocratização e por fim, o nono dedica um precioso espaço de reflexão para as “batalhas de memória” no seio da resistência cultural.

Para a historiografia da cultura brasileira que tem se estabelecido nos últimos dez anos, talvez os três primeiros capítulos não suscitem grandes questões, embora o exame do conceito de resistência seja fundamental para o início de qualquer debate no campo das oposições ao regime militar brasileiro. Ainda assim, a análise dos diferentes níveis de consciência em torno da ideia de resistência político-cultural, desde posições ideológicas estratégicas e doutrinárias até posições táticas e conjunturais, continuam tendo o seu valor na discussão a respeito da complexidade de ações e posições assumidas pelos resistentes. As lutas culturais entre comunistas e contraculturais, analisadas no quarto capítulo, ganha ainda mais corpo com o questionamento da cultura nacional-popular pela vanguarda e pela cultura popular da “nova esquerda”, demonstrando o quanto o processo de esfacelamento do nacional-popular se confunde com a própria história da resistência cultural no Brasil.

Por outro lado, os grandes problemas se situam a partir do quinto capítulo quando o debate a respeito das tensões e negociações do regime e o campo cultural, envolve o Estado, o mercado e os produtores culturais de esquerda, juntos em nome da necessidade da defesa de uma “cultura nacional” e da valorização do “produto brasileiro” (p. 234). Nesse campo minado para o debate em que os extremos (controle e cooptação) aparecem como os atalhos muito tentadores, Napolitano, mais uma vez, opta por conferir maior complexidade a esse debate indagando por que a pretensa “hegemonia” da cultura de oposição nos segmentos sociais mais influentes (setores da burguesia e da classe média) não se traduziu numa organização social e política eficaz para “derrubar a ditadura”. (p. 235)

Questões como essa não são fáceis de serem respondidas e, nem mesmo o próprio autor busca respondê-las de forma definitiva, mas aponta caminhos interessantes para se pensar saídas para esses problemas ao analisar com mais vagar os interesses de cada grupo e os seus impasses, sem perder de vista o fato de que, apesar da especificidade das relações do regime brasileiro e a cultura de oposição, ainda se vivia sob o arbítrio e o terrorismo de Estado.

O quadro de confusão sintetizado pela polêmica das “patrulhas ideológicas” abordada no sexto capítulo, lança luzes sobre o quanto o campo cultural ainda estava associado ao campo político no contexto de abertura e de crise profunda da arte engajada e do frentismo como estratégia de oposição ao regime. Enquanto apontavam-se patrulheiros e assumiam-se patrulhados, o mercado ganhava cada vez mais força, tanto à direita quanto à esquerda. Talvez a reflexão mais instigante – e necessária – de todo o livro esteja exatamente na identificação das políticas culturais da “nova esquerda”. Muitas lacunas permanecem. Napolitano consegue traçar em linhas gerais as diferenças entre a proposta de cultura popular da “nova esquerda” e a velha estratégia de frentismo cultural da “velha esquerda” e as disputas entre os intelectuais que acabam migrando do PCB para o PT nascente. No entanto, existe a necessidade de reflexões mais aprofundadas sobre o processo de formulação da chamada cultura popular da  “nova esquerda”, que não se inicia nos anos 1970, mas já corre nas margens do cotidiano antes mesmo do golpe de 1964.

Por fim, o debate sobre a memória da resistência cultural ainda muito impregnado de certa hegemonia aliancista, aglutinando liberais e comunistas sob uma mesma resistência democrática, continua a suscitar reflexões sobre a real existência de uma hegemonia cultural de esquerda, bem como os seus limites e seus legados. Se não responde essas questões diretamente, Marcos Napolitano oferece um importante ponto de partida para quem deseja entrar no campo de batalha das memórias de resistência cultural, a partir da desmistificação de algumas percepções cristalizadas na memória social do período.

Napolitano questiona a ideia de que a arte engajada tinha uma hegemonia limitada a pequenos grupos de consumo, restrita a classe média brasileira, historicamente conservadora. O autor não entende que a dimensão quantitativa seja suficiente para pensar o alcance da cultura de esquerda e rejeita certa concepção que parece confundir maioria com hegemonia, sem atentar para o fato de que as bases sociais radicalmente democráticas não permitiram que a revolução cantada nas músicas ganhasse as ruas.

O autor também rejeita a ideia de que a massificação da cultura, via mercado, seja responsável por um suposto esvaziamento da crítica ao regime e que os artistas de esquerda possam a ser enquadrados em meros produtos de entretenimento a partir dos anos 1970. Napolitano prefere apostar nas complexas interações entre a produção cultural de esquerda, mercado e militância para evitar que se esqueça da dinâmica dos militares em busca de uma classe média crítica ao regime e o maniqueísmo que resiste em considerar a televisão, por exemplo, como espaço exclusivo de alienação e transmissão de lixo cultural.

Napolitano também relativiza a ideia de que o regime autoritário brasileiro tenha sido capaz de interromper os batimentos do coração civil da vida cultural. Em que pese a força do tripé repressivo, o Estado militarizado também buscou desenvolver uma política cultural proativa, aproximando-se e afastando-se dos artistas de esquerda. O autor, principalmente no quinto capítulo, demonstra como o mecenato oficial e a repressão conviveram de maneira tensa e contraditória, mobilizando diferentes grupos e interesses dos militares, dos empresários liberais e dos artistas de esquerda.

Enfim, Napolitano procura reconciliar uma dicotomia, há muito difundida e adotada ainda nos debates historiográficos, que opõe o nacional-popular e a vanguarda cosmopolita como inimigos eternos. O autor consegue demarcar de forma brilhante um campo comum de debate entre as duas correntes, para além das visões opostas sobre o papel do intelectual e da arte. Napolitano conclama os historiadores a adentrarem por um portal de mistérios ainda desconhecido das relações entre o nacional-popular e a vanguarda brasileira, deixando de lado  as acusações mútuas e as simplificações elaboradas por ambas as correntes, há, sem dúvida, um tesouro perdido a ser encontrado.

Porém, ainda há mais um tesouro por encontrar. A memória da nova esquerda ainda carece de um mapa mais detalhado que aponte para a origem das suas derrotas. Talvez o processo que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 sirva como um bom estímulo ao evidenciar as consequências das estratégias de acomodação adotadas pelos governos petistas e a combinação explosiva entre uma crise econômica, a ascensão rápida e marcante das direitas, a campanha anticorrupção da Operação Lava-jato, o declínio do projeto petista/lulista, abandonado pelas elites econômicas que o haviam apoiado, além da manipulação das informações orquestrada pela grande mídia.[8] Por ora, devemos celebrar a importância do trabalho de Marcos Napolitano ao pavimentar caminhos já percorridos até aqui e apontar belíssimos horizontes de pesquisa. Coração Civil preenche com maestria a necessidade de um grande trabalho sobre a resistência cultural ao regime militar brasileiro. Cabe aos próximos estudos, trabalhar para que esse coração continue batendo.

Notas

2. Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

3. NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2014.

4. NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural (1959-1969). São Paulo: Annablume/Fapesp. 2001.

5. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

6. KEDWARD, Roderik. “La resistance, l’histoire et l’anthropologie: quelques domaines de la theorie”. In: GUILLON, Jean Marie et LABORIE, Pierre (eds.). Memoire et Historie: La Résistance. Toulouse: Éditions Privat, 1995, pp. 109-120.

7. ROLLEMBERG, Denise. “História, memória e verdade: em busca do universo dos homens”. In: SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson Luís de Almeida; TELES, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Hucitec, 2009. p. 7.

8. Cf. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O lulismo e os governos do PT: ascensão e queda. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília A.N.. (Org.). O Brasil Republicano 5. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, v., p. 415-445.

Mathews Nunes Mathias1 –  Graduando em Licenciatura em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: nunes.mathias@outlook.com


NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. A vida cultural brasileira sob o regime militar. 1964-1985. Ensaios históricos. São Paulo: Intermeios, 2017. Resenha de: MATHIAS, Mathews Nunes. Resistência cultural sob arbítrio: a busca por um tesouro perdido? Cantareira. Niterói, n.30, p.145-149, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21 – BENTIVOGLIO (RTF)

BENTIVOGLIO, Júlio César. História & distopia: a imaginação histórica no alvorecer do século 21. Serra: Milfontes, 2017. Resenha de: DILLMANN, Mauro. Fazer histórico-pós-moderno como atividade ética e filosófica diante de múltiplos passados. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

Professor de Teoria da História na Universidade Federal do Espírito Santo, Júlio César Bentivoglio é autor do enxuto porém significativo livro “História & distopia”, publicado pela editora Milfontes, em 2017 (108 páginas). Nele o historiador aponta para as mudanças pelas quais a investigação do passado e os modos de entender e narrar a história sofreram ao longo do século XX, uma vez que tais tarefas (não apenas realizadas pelos historiadores) se depararam, nas últimas décadas, a uma abertura a muitos passados (possíveis, incontroláveis, diferentes) socialmente considerados. Esse reconhecimento teórico, filosófico e social da multiplicidade de leituras do passado abalou as certezas do conhecimento histórico e seus estatutos de verdade carregados desde o final do século XIX (p. 13). Bentivoglio defende que entre o final do século XX e início do XXI houve a emergência de uma “nova” imaginação histórica, de concepção pós-moderna e distópica. A história abandonaria o singular, a utopia, o passado totalizante, otimista, desejado e pacífico, tratando-se, a partir de então, de “histórias” elaboradas com pessimismo, preocupação, ceticismo, de passados incertos, indesejados, estilhaçados. Esta discussão sobre as novas concepções e possibilidades de produção de história se insere no debate contemporâneo da teoria da história, sendo que outros historiadores brasileiros também têm dedicado especial atenção ao tema.2 Embora dialogue relativamente pouco com a historiografia brasileira, Júlio Bentivoglio se aproxima bastante dessas reflexões, ao procurar problematizar um novo conceito de história e as apreensões contraditórias do passado no presente.

Situado nessa perspectiva que busca encarar a tradição disciplinar, o autor tem o mérito de trazer à discussão os entendimentos da história distópica. Por distopia, entende “um deslugar”, “um lugar e sua negação”, um “lugar em deslocamento” (p. 17), um “mau lugar”, “a desfiguração da própria possibilidade da utopia” (p. 85). Assim, o entendimento de passado, para os historiadores, seria múltiplo, e não um ponto fixo e pronto a ser localizado e recuperado. Nesse caso, destacam-se os diferentes modos de entender os passados, as discordâncias, as interpretações, os questionamentos, as tensões, as diversas narrativas, os variados discursos, os sentidos forjados, as capacidades de produção, as projeções. A história, as estórias e qualquer modalidade de consciência histórica seriam, portanto, distópicas.

Nesta reflexão, Bentivoglio destaca o principal elemento em pauta, que, por sinal, já é tema recorrente entre os historiadores: a concepção de história e o estatuto de verdade histórica. Trata-se de pensar a mudança de uma concepção de história pautada na “verdade”, no “correto”, na “certeza”, no massificado, no homogêneo, no singular para uma história pautada na suspeição da verdade, no “relativo a…”, nas possibilidades, nas incertezas, nas reconstruções, nas tensões, na multiplicidade, na heterogeneidade, na diferença.

Amparado em Hayden White e Frank Ankersmit, entre outros pensadores do século XX, Bentivoglio argumenta que o passado fixo, que ocupa um único lugar, um lugar de verdade, foi, já há algum tempo, questionado, reconhecendo-se a existência de passados possíveis a partir das possibilidades de imaginação. Passou-se de uma ideia de passado possível de ser esgotado para passados incompletos e imprecisos, acionados em espectros, a partir dos quais os historiadores tentam ordenar em narrativa. O autor traz como exemplo as narrativas construídas para explicar o passado recente brasileiro, especialmente a destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, ora encarado como golpe, ora como impeachment numa disputa por esgotar, fixar ou representar esse passado (p. 19). Bentivoglio aponta claramente que “a narrativa jamais é um veículo neutro”, sendo necessário reconhecer a intenção do historiador-autor, que não esgota nem o passado nem o contexto construído, mas os inventa na tentativa de controlar e buscar consenso (p. 22). E essas invenções das histórias (note-se o plural) ocorrem no presente e dialogam com as formações discursivas vigentes, caracterizadas – entre outros aspectos – pelas disputas de sentido (p. 57). Assim, as narrativas históricas devem ser entendidas considerando o “universo do historiador”, o “seu estado de espírito”, a “sua urdidura do enredo”, as “suas ferramentas analíticas”, o “seu quadro teórico” (p. 91), suas posturas éticas e seus usos políticos.3 Além disso, na dinâmica da criação narrativa atual, Bentivoglio atenta para um aspecto importante na produção e difusão dos conhecimentos históricos “inventados”: o de que importa “menos saber se o historiador é marxista ou historicista e mais se suas análises são pertinentes ou eficazes” (p. 58).

A questão que se coloca atualmente na historiografia brasileira parece ser a de que os historiadores insistem na manutenção de suas ficções científicas utópicas que distopicamente controlam os passados possíveis reduzindo-os a lugares fixados por interpretações mais consagradas, ao passo que as narrativas distópicas que defendem passados alternativos são menos numerosas e bastante combatidas. Em contrapartida, a sociedade manifesta, visivelmente níveis significativos de ceticismo em relação ao passado típicos do presentismo. Ou seja, no Brasil, o realismo histórico resiste na universidade, mas não é convicção na sociedade. Diante desse quadro, nas narrativas construídas sobre o passado, científicas ou não, presencia-se, cada vez mais a descrença nas utopias (p. 58).

Nessa relação com o tempo marcada pela valorização do presente (o presentismo) e pela ânsia de passados, a narrativa dita histórica passa a ser reconstruída constantemente,4 dependendo dos interesses e das atribuições de significados por parte de indivíduos, grupos ou sociedades. Assim, espera-se uma narrativa que dê conta de explicar e compreender o passado e o presente de determinados contextos sob variadas argumentos: ou pela necessidade de entendimento do passado que não passa, ou pelo dever de memória, ou pela intencionalidade de justiça, ou pela reparação histórica, ou ainda pela possibilidade de aprender com erros e acertos no melhor estilo mestra da vida.

Para Bentivoglio, o predomínio do estranhamento entre passado e presente e a restrição de projetos eficazes de futuro possibilitaram “a abertura radical do passado, que hoje se apresenta como uma caixa de Pandora aos historiadores” (p. 56). Sobre os historiadores pairam desconfianças sociais, notadamente diante da ausência de consensos, e sobre a história, de modo geral, paira alguma descrença.5 Por conseguinte, as narrativas do passado não fornecem uma apresentação positiva de futuro – não todo e qualquer futuro, mas o futuro que pertence ao regime moderno de historicidade, enquanto locomotiva da história, como destacou Hartog6 – ao contrário, indicam perspectivas temerárias, céticas, incômodas e duvidosas (p. 82),7 embora a capacidade de produzir futuros (e de compreendê-los) tenha se multiplicado.8 De igual modo, Hartog9 já teria refletido sobre o sentido da história, enfatizando que “crer em história” não implica, necessariamente, “crer que ela tem um sentido”, ao passo que o fazer história pode se acomodar tanto à crença quanto à descrença. Então, se a história perdeu a capacidade de fornecer “guias para a ação transformadora”,10 é pertinente a constatação de Bentivoglio de que “as carências de sentido histórico têm sido preenchidas por curiosidades mais prementes do cotidiano” (p. 85).11 Encarando esses dilemas pós-modernos, Bentivoglio defende não apenas a história como ciência, mas também como arte. Aponta para o caráter narrativo (ficcional) da história, mas sem abandono dos ideais científicos e dos elementos de realismo que conferem reconhecimento social para os passados possíveis. São, para o autor, os limites éticos da ciência (histórica) e o entendimento de que fazer história é uma atividade filosófica, que permitem a construção de uma análise do passado despretensiosa em relação à “revelação” do “passado verdadeiro”. Amparado em Hayden White, o autor afirma que “toda história já é, em si, relativista; mesmo que seus autores não se proclamem relativistas” (p. 78-79). Assim, o conceito de história tradicional não daria conta das expectativas atuais na teoria da história, apontando, talvez de modo um pouco apressado, para “quatro pecados” da história moderna: reducionismo, funcionalismo, essencialismo e universalismo (p. 84).

A história hoje, numa perspectiva pós-moderna, traria expectativas muito mais difusas, relacionais e complexas. E a crítica à essa história distópica estaria na fragmentação temática e no risco do relativismo, este último, na verdade, localizado “nas discordâncias entre como se produz a história e o modo como ela é pensada” (p. 49). Ou o passado seria acionado em sua suposta integridade, ou seria construído em seu deslocamento, muito mais a partir da “cabeça dos historiadores” (p. 49). O autor defende que os historiadores, hoje, não podem deixar de considerar “como os fatos são retratados por meio da narrativa” e ainda que, nas suas estratégias narrativas, considerem os diferentes passados e seus deslocamentos (p. 79).

A história defendida por Júlio Bentivoglio é aquela que se constrói com pertinência, eficácia, afetividade e ética, incorporando o que chama de “fruição”, pois potencializaria “experiências subjetivas com o passado” (p. 88). A ética seria a tônica principal a limitar quaisquer “liberdades expressivas dos historiadores” (p. 91) na articulação das suas narrativas.

Em síntese, História & distopia é um livro inteligente, bem escrito, carregado de metáforas que permitem refletir, do início ao fim, sobre as possibilidades da escrita da história e da produção (não apenas por parte dos historiadores) de narrativas e sentidos para ela na contemporaneidade.12 Destaco a interessante relação estabelecida com a obra literária Frankenstein para comparativa e metaforicamente se referir às transfigurações do passado realizadas por narrativas históricas produzidas com imaginações distópicas. Embora algumas ideias sejam constantemente reforçadas ao longo do texto, a obra não perde seu tom primoroso e sua qualidade teórica de reflexão sobre o fazer histórico, podendo interessar a todos os historiadores e historiadoras – dos iniciantes aos mais experientes –, independente dos domínios específicos em seus campos de pesquisa.13

2 O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior vem realizando, há tempos, inúmeras problematizações tanto sobre a crise da história como metanarrativa quanto sobre a conformação dos objetivos do saber histórico, entre os quais despontaria como fundamental a formação de subjetividades menos reacionárias às transformações de toda ordem (ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007). Um outro exemplo, mais recente, é do historiador Rodrigo Turin que tratou de pensar a crise da forma, do lugar, da identidade da história e a condição para elaboração de uma “nova imaginação disciplinar” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos: figurações do historiador na crise das humanidades. Tempo, Niterói, vol. 24, n. 2, p. 186-205, maio/ago. 2018).

3 Veja-se o ensaio de Caroline Bauer e Fernando Nicolazzi, que apontam com perspicácia para os usos públicos e políticos da história. Eles consideram que hoje há um deslocamento da antiga questão sobre a “serventia” da história para os modos e as formas pelas quais a história é “usada” (BAUER, Caroline; NICOLAZZI, Fernando. O historiador e o falsário. Usos públicos do passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia História, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, p. 807-835, set/dez. 2016, p. 819). Sobre ética, responsabilidade e função do historiador, veja-se também DUMOULIN, Olivier. O papel social do historiador: da cátedra ao tribunal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 19-22 e TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 192.

4 Nesse sentido, veja-se HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Trad. Andréa Sou de Menezes et. al. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 140; ROUSSO, Henri. A última catástrofe. A história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho. Rio de Janeiro: FGV, 2016, p. 30.

5 Conforme HARTOG, François. Crer em História. Trad. Camila Dias. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 15-16.

6 Ibidem, p. 223.

7 HARTOG, François. Regimes de Historicidade, Op. Cit., p. 17-41.

8 Veja-se HARTOG, François. Crer em História, Op. Cit., p. 25; e também PEREIRA, Mateus; ARAÚJO, Valdei. Reconfigurações do tempo histórico: presentismo, atualismo e solidão na modernidade digital. Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 23, n. 1 e 2, p. 270-297, jan./dez., 2016, p. 280-286.

9 HARTOG, François. Crer em História, Op. Cit., p. 23.

10 A analítica de Hartog (Crer em História, Op. Cit., p. 224) é inspirada em Marcel Gauchet.

11 A disciplina história, nesse sentido, tem perdido alguma legitimidade social e, segundo Turin, tem sido constrangida a justificar sua existência, sua inserção social, já que seu lugar institucional e “seu papel pedagógico são colocados em questão” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 196-197).

12 Um desses sentidos, curiosamente, tem sido o de recuperar consensos e lugares para a história. Guldi e Armitage destacaram: “Em qualquer momento de divergência política, a síntese histórica pode ajudar a recriar um consenso onde o consenso foi perdido” (GULDI, Jo; ARMITAGE, David. Manifesto pela história. Trad. Modesto Florenzano. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 183). Já Hartog (Crer em História, Op. Cit., p. 231), embora um tanto lastimoso pela decomposição do regime moderno de historicidade, defende a “capacidade de nossas sociedades” em “articular de novo as categorias do passado, do presente e do futuro, sem que venha a se instaurar o monopólio ou a tirania de nenhuma delas”. Entre os sentidos práticos e os sentidos disciplinares, a história parece estar à procura de uma nova inserção no presente, como destacou Rodrigo Turin ao se questionar sobre a capacidade das novas demandas sociopolíticas implicarem o “esvaiamento dos critérios internos” e “disciplinares legados pela tradição” (TURIN, Rodrigo. Entre o passado disciplinar e os passados práticos, Op. Cit., p. 192).

13 Tal afirmativa ganha relevância se considerarmos que estudos sobre a condição da história ainda seriam motivo de desprezo por parte da comunidade historiadora brasileira, mesmo que tenham sido crescentes as pesquisas sobre teoria da história e história da historiografia. Foi o historiador Temístocles Cezar, em recente publicação, quem destacou que “a regra geral” é “a despreocupação com os modos de pensar a prática do fazer do historiador” (CEZAR, Temístocles. Ser historiador no século XIX: o caso Varnhagen. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 178).

Mauro Dillmann – Endereço profissional: Rua Alberto Rosa, 154, Pelotas – RS. E-mail: maurodillmann@hotmail.com. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pelotas. Instituto de Ciências Humanas – UFPEL.

Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh – SIN-LÉQI-UNNÍNNI (RTF)

SIN-LÉQI-UNNÍNNI. Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh. Tradução do acádio, introdução e comentários de Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. Resenha de: FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Ele que o abismo viu: a epopeia de Gilgamesh. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

Há paradigmas heroicos que persistem em nosso presente, nos alcançando sem que os busquemos nos clássicos que os inventaram. É o caso dos poemas homéricos, nos quais ora se sobressai a ménis, a ira que imprime em Aquiles força descomunal e excelência guerreira, ora destaca-se a métis, a astúcia prudente que permite a Odisseu enfrentar inúmeras peripécias e manter-se vivo para retornar a Ítaca. Enéias, por sua vez, herói derrotado na guerra de Tróia e identificado com a virtude da pietas, partiu na posse dos deuses penates para fundar uma nova Tróia no Lácio, seguindo o destino ditado pelos Fados. Por fim, como último exemplo, há a gesta camoniana e o protagonismo de um herói guiado pela reta razão e pela moderação, virtudes escolásticas incentivadas pela Igreja contrarreformada do século XVI que enaltecia aqueles que atuavam como braço da Providência, fonte de todo bem e sede da justiça Com sua tradução do poema Ele que o abismo viu (comumente denominado Epopeia de Gilgámesh), Jacyntho Lins Brandão concedeu-nos acesso a outro paradigma, representado pela empresa heroica do quinto rei de Úruk que governou após o dilúvio, por volta do século XXVII a. C. Filho de uma deusa e, portanto, dois terços divino e um terço humano, Gilgámesh tornou-se objeto de uma longa tradição poética, por meio da qual foi-lhe atribuído feitos importantes como a construção da muralha da cidade de Úruk. As narrativas conhecidas sobre suas façanhas remontam ao século XXII a. C., disponíveis por meio de tabuinhas registradas inicialmente em sumério, depois em acádio. A tradução de Brandão, publicada no ano de 2017 e reimpressa em 2018, utilizou uma versão criada no ápice desse ciclo heroico, atribuída ao sábio Sin-léqi-unnínni e estabelecida por volta do século XIII a. C.

Mas que tipo de herói foi Gilgámesh? Vários termos foram dispostos ao longo do poema para designá-lo: “sábio”, “proeminente”, “herói de imponente físico”, “valente”, “selvagem”, “indomável”, “alto”, “perfeito”, “terrível”, “majestoso”, “formoso”, “poderoso”, “sapiente”. Sem falar nos epítetos adotados para caracterizá-lo: “margem firme”, “abrigo da tropa”, “corrente furiosa que destroça baluartes de pedra”, “amado touro de Lugalbanda”, “cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun”, “touro selvagem indomável”. No entanto, nem todas as suas qualidades são positivas, pois ele também “age com arrogância”, “assedia os jovens de Úruk sem razão” e se porta, muitas vezes, como um “touro selvagem altaneiro”. Em síntese, a trama apresenta-nos o herói responsável pela reposição daquilo que foi destruído pelo grande dilúvio, mas não deixa de destacar suas falhas e excessos. É frente a suas desmedidas que a população de Úruk teria recorrido às divindades: foi assim que a deusa Arúru criou, com argila, Enkídu, espécie de homem primitivo que vivia junto aos animais e não conhecia a civilização. Foi Gilgámesh o responsável pela sua introdução na civilidade, recorrendo aos serviços de Shámhat, uma prostituta que o tornou “homem” e atraiu-o para a cidade. Durante o confronto entre ambos, Gilgámesh sente que finalmente encontrou um igual, e dessa batalha nasce uma grande amizade.

Convém mencionar algumas particularidades do poema, a começar pela longa duração de sua matéria, que circulou ao longo de um intervalo de quase dois mil anos, a tomar pela data do fragmento mais antigo, conhecido como Bilgames e o touro do céu, datado de cerca de 2100 a. C., e do mais recente, do século II a. C. Sua história contemporânea, por outro lado, é extremamente recente, o que indica outro diferencial: foi somente em 1872, quando George Smith apresentou a narrativa do dilúvio durante a conferência na Society of Biblical Archaeology, em Londres, usando uma tabuinha descoberta em 1846, que pudemos introduzir a ciclo de Gilgámesh no cânone literário da Antiguidade. Brandão, frente a essas particularidades, assevera-nos: Que seu nome tenha desaparecido e não tenha ficado em “nossa” literatura e cultura nenhuma lembrança dele até que as placas de argila enterradas sob as areias do deserto iraquiano no-lo apresentaram dá-nos a dimensão de quão profunda pode ser nossa ignorância, de quanto mais vasta do que supõem nossas certezas são a história e a cultura humana e de quão pouco a matéria de Gilgámesh pode ser dita “nossa” num sentido comum” (p. 18).

Ao longo da sua introdução, o autor insistiu sobre a impertinência de se atribuir ao poema categorias como “autor” e “originalidade” em seu sentido moderno. Trata-se de um detalhe importante, já que as condições históricas eram absolutamente outras. Para escrevê-lo, Sin-léqi-unnínni trabalhou com uma tradição escrita em sumério e acádio que, em sua época, somava mais de meio milênio. Além disso, da mesma forma como não se deve creditar a Homero a categoria “autor” da maneira como a concebemos hoje, seria imprudente fazê-lo em relação ao poema acádio estabelecido por volta do século XIII a. C. por um escriba. Isso porque a noção de autor não é auto evidente, uma vez que, frequentemente, ela aparece em nosso meio como princípio explicativo, algo inventado no século XIX quando se generalizou a autoria como presença do indivíduo na obra. Desde então, muitos, assumindo a posição de críticos, buscaram nas obras a intenção do autor para evidenciá-la ao público, negligenciando seus códigos linguísticos e naturalizando os nossos.

Para dar a ler uma síntese, o tradutor apontou para a existência de quatro grandes movimentos na trama: a) os excessos do rei Gilgámesh em Úruk, que levam os deuses a criar para ele um par heroico, Enkídu; b) os feitos de ambos, compreendendo a morte de Húmbaba, guardião da floresta de cedros, e do touro do céu, enviado pela deusa Ishtar contra Úruk, por Gilgámesh ter repelido seu assédio amoroso; c) a enfermidade e a morte de Enkídu, que leva Gilgámesh a perambular em busca do segredo da imortalidade, chegando a lugares jamais palmilhados por algum homem, até o encontro com Uta-napíshti; d) o retorno do herói a Úruk, cansado e pacificado por saber que a morte é o lote inelutável do homem.

O que fez Gilgámesh para merecer encômios ao longo dos séculos? Além de reconstruir templos destruídos pelo dilúvio e instituir ritos para a humanidade, algo que só foi possível graças à sua busca pela imortalidade, ele visitou os confins do mundo para encontrar uma personagem emblemática: Uta-napíshti, que, na companhia de sua esposa, sobreviveu ao dilúvio graças à construção de uma arca e, por isso, foram agraciados com a vida eterna. A sabedoria do rei de Úruk adveio desse contato, por meio do qual ele pôde acessar segredos ocultos dos deuses e conhecer, de perto, a condição humana. Além disso, ele teria registrado, por escrito, o relato que o leitor pôde conhecer e que possibilitou a glória de seu próprio nome: Isso se expressa não só pelo recurso de apresentar a narrativa como o registro escrito pelo próprio herói numa tabuinha preservada num cofre, como por trazer-se o poema anterior, inscrito em tabuinhas de argila, para o interior do poema mais novo, como se este, o texto mais recente, fosse o próprio cofre de cedro que contém o texto anterior.

Trazer em seu bojo o poema anterior pode indicar que a produção poética ocorria de forma cumulativa, seguindo um princípio próximo à imitatio latina. A maneira como o escriba incorporou em seu poema versões antigas da lenda levou Brandão a pensá-lo como um monumento mantido como traço fidedigno da tradição. No proêmio, por exemplo, parte introdutória do poema, é possível notar uma dupla divisão: nos 28 versos iniciais, possivelmente da autoria de Sin-léqi-unnínni, destaca-se a sabedoria de Gilgámesh, alcançada a duras penas por meio de uma empresa duradoura, ora coberta de louros, ora de lágrimas e lamentos; na segunda parte, situada entre os versos 29 e 62, o tradutor encontra fragmentos da versão antiga do ciclo heroico, intitulada Proeminente entre os reis, que retrata uma visão mais grandiosa do herói e de suas façanhas.

Há outros elementos dispostos ao longo do poema que dão a entender não somente as qualidades do herói, mas também os atributos que se esperava de um homem. É o caso de Enkídu que, para ser levado à cidade e, posteriormente, poder contar com a amizade do rei, precisou passar por algumas etapas, como ser iniciado no sexo pela prostituta enviada por Gilgámesh e alimentar-se de pão e cerveja para, só então, viver em sociedade. A partir dessa amizade, dois grandes feitos heroicos foram efetuados: inicialmente, uma expedição à Floresta de Cedros, situada no Líbano, para enfrentar o seu guardião, o monstruoso Húmbaba. A finalidade não é somente aniquilá-lo, como também conseguir extrair a madeira de seus domínios para continuar a construção de sua cidade. A outra ocasião se manifesta quando o rei recusa os amores da deusa Ishtar, insultando-a com palavras duras. Foi então que a deusa subiu aos céus para pedir a Ánu e Antum, seus pais, o touro do céu, com o intuito de destruir Úruk. Na tabuinha que relata a vitória sobre o touro, há fragmentos perdidos, mas tomando como base a parte remanescente se pode inferir que os deuses decretaram a morte de Enkídu em razão do assassinato do touro: é nesse momento que se inicia a parte lúgubre, incialmente com as lamentações do moribundo Enkídu, acometido por doença mortal e sendo consolado por Gilgámesh, e depois com a lamentação do rei de Úruk após a morte do amigo.

Da lamentação de Enkídu, Jacyntho Brandão levanta três momentos interessantes a maldição que ele lança contra a porta feita com a mais soberba das árvores que fora trazida por ele da floresta de cedros – o que poderia ser interpretado como a maldição da vida heroica por ele assumida; a maldição contra o caçador que o vira pela primeira vez entre os animais, provocando que deixasse a condição de lullû para tornar-se plenamente humano – o que não deixa de ser a maldição da condição humana por ele assumida; finalmente, a maldição contra a prostituta Shámhat, que fizera dele não apenas humano, mas civilizado – a maldição estendendo-se, portanto, à civilização e a seus requintes.

Foi nesse momento que se deu a intervenção de Shámash, o Sol, em defesa da maldição lançada contra a prostituta, censurando a postura de Enkídu. Em seu discurso, ele deixa claro que a meretriz não merece as maldições, pois foi ela quem introduziu Enkídu nos prazeres da civilização, fez com que se tornasse ele amigo de Gilgámesh e, o que é agora o mais importante, em consequência de tudo isso, é também por causa dela que ele terá uma morte digna, honrada e pranteada. Ele, no leito de morte, está fazendo o duro aprendizado de que, diferentemente do que se passa com os deuses, a morte é o fado do homem, mas um fado que os homens, com os rituais de luto, podem tornar nobre. Se até então, como se depreende das três maldições, tudo se resumia ao contraste entre o homem civilizado (impuro) e os animais (puros), com a perspectiva da morte novo contraste se estabelece, entre o homem (mortal) e os deuses (imortais).

Em sua busca pela imortalidade, Gilgámesh aprendeu que morrer é uma condição insuperável da humanidade, tirando dessa dedução a sabedoria que lhe atribuiu o escriba nos versos iniciais do poema. Nesse caso, Brandão tem razão ao aproximá-lo à literatura sapiencial, gênero muito recorrente no Oriente Médio.

Voltando àquilo que foi dito no início dessa reflexão, convém notar que o éthos do herói diz muito sobre as próprias circunstâncias históricas de sua criação: não se trata, como no caso das primeiras epopeias gregas, de um herói preocupado com realizações coletivas (o que também poderia ser atribuído aos casos de Enéias e Vasco da Gama). Por outro lado, Brandão deixa claro que os poemas atribuídos a Homero são poemas de guerra, diferentemente de Ele que o abismo viu, que não se ambienta em meio a um conflito bélico. Na esteira de West, chega-se à conclusão de que o melhor equivalente grego ao herói mesopotâmico seria Héracles, “que age sozinho em aventuras que não se dão no contexto de guerra alguma”.

se Aquiles e Ulisses são guerreiros-heróis, Gilgámesh é herói sem ser guerreiro. Aquiles tem um companheiro, Pátroclo, mas luta tendo em torno de si seu exército, bem como o de todos os gregos; Ulisses chega sozinho a Ítaca, terminada a guerra, mas na maior parte de sua viagem conta com os companheiros de navegação. São exemplos de sagas coletivas, em que inclusive outros heróis se sobressaem, como Diomedes e Heitor, ao passo que Gilgámesh é um herói solitário, o próprio mote de Ele que o abismo viu sendo sua solidão, quebrada brevemente com a criação, pelos deuses, de um par para si, Enkídu, mas logo reimposta a ele com a morte do amigo, sendo essa solidão o que motiva sua busca pela imortalidade e leva ao desfecho sobre a impossibilidade de conquistá-la.

Na companhia de Brandão, é possível problematizar a associação do poema em questão a uma epopeia, termo usado inicialmente por Heródoto para referir a Ilíada e a Odisseia. O autor deixou claro que a associação pode vir a ser verossímil, sendo possível estabelecer paralelos entre os poemas gregos e a saga de Gilgámesh, mas evidenciou que epopeia “implica o domínio coletivo de tradições em que cada performance constitui um exercício de variedade e variação, em todos os sentidos, mesmo quando, exarada por escrito, tem ela no desempenho dos rapsodos o seu modo de realização por excelência”.2 Sendo assim, ele prefere apreender o poema como narû, ou melhor, como “a contraparte poética de um narû”, monumento por meio do qual se deixava inscrito, sem omissões ou acréscimos, informações importantes merecedoras de sobrevida.

Estando em causa registrar a experiência heroica e sapiencial de Gilgámesh, inclusive no que tem de extremamente particular, pois ele fez sozinho sua longa viagem, que é o clímax do poema, não se contando com outras testemunhas, o que se configura é o uma espécie de autobiografia mandada fazer (ou ditada?) pelo próprio monarca, ou seja, uma autobiografia em terceira pessoa. Parece que é esse estatuto que o prólogo de Ele que o abismo viu reivindica para o poema – um vislumbre da poética implícita suposta pelo texto.3 Convém recordar que a precisão narrativa implicada na fórmula “sem omissão ou acréscimos” sobreviveu como lugar comum, tendo marcado os fundamentos da historiografia helênica. Na verdade, seria exaustivo estabelecer os paralelos possíveis entre as culturas suméria, acádia e grega, até porque fazem parte de uma mesma zona de confluência. O importante, no entanto, é não supor que a maior antiguidade dos poemas registrados em cuneiforme indique que as epopeias posteriores não passariam de uma variação sua, como se houvesse um momento “original” do qual irradiasse toda e qualquer possibilidade de manifestação cultural.

Para finalizar, gostaria de levantar dois contrapontos em relação à cultura grega, a começar pelo caráter ruinoso requisitado como modo de propulsionar a empresa heroica. Por intermédio das Musas, Homero inventou tipos como Aquiles e Odisseu, mas também versou também sobre a fragilidade humana. A preservação do feito ilustre só seria possível por intermédio do canto inspirado, que anuncia a memória e celebra o kléos, a fama imorredoura. Na proposição/invocação da Ilíada, depois de pedir o auxílio da Musa, o aedo introduziu o embate entre Aquiles, filho de Peleu, e Agamêmnon, “rei dos homens”, que “aos Aqueus tantas penas / trouxe, e incontáveis almas arrojou ao Hades / de valentes, de heróis, espólio para cães, / pasto de aves rapaces” (Hom. Il. I, 2-5). Algo parecido ocorreu nas liminares da Odisseia, quando Homero mencionou as dores que Odisseu padeceu quando de seu retorno, “empenhado em salvar a vida e garantir o regresso dos companheiros” (Hom. Od. I, 2-5). Em Ele que o abismo viu, o teor ruinoso foi mencionado na metade do poema, quando Enkídu estava prestes a padecer e, especialmente, na ocasião em que Gilgámesh lamentava a perda do amigo. Isso porque o texto não foi escrito in media res, como era comum à epopeia grega. Aliás, ele também não cumpriu outro requisito, já previsto na Poetica de Aristóteles: a adoção do hexâmetro datílico, algo inventado muitos séculos depois.

Por fim, poder-se-ia retomar a narrativa situada ao final da tabuinha 2, quando, numa assembleia organizada em Úruk que antecedeu a partida do herói rumo à Floresta de Cedros, seu companheiro e conselheiros recomendaram da desistência da missão, alegando os perigos que espreitavam nesse limite, protegido por um guardião “muito grande”: “sua voz é o dilúvio! / Sua fala é fogo, seu alento é morte” / Ele ouve a sessenta léguas um murmúrio da floresta” (2, 221-223). Várias acusações então foram feitas: “És jovem, Gilgámesh, teu coração te impulsiona, / Isso que julgas não conheces.” (2, 289-290); “Não confies, Gilgámesh, em toda tua força! / Teus olhos se fartem, no ataque confia!” (3, 2-3). A floresta parece figurar algo como as colunas de Hércules, um limite que não convinha ultrapassar. Talvez, a morte do amigo seja uma punição também à sua hýbris, amplificada com as palavras rudes dirigidas a Ishtar. Assim, Humbaba representaria uma espécie de Polifemo, seja pela falta de hospitalidade, seja pelo fato de não comer pão e viver apartado da cidade. A analogia, no entanto, é limitada, já que Odisseu caiu nas garras de Polifemo a contragosto, e Gilgámesh buscou Humbaba por livre iniciativa, o que não o impediu de tremer perante o desafio: “O medo cai sobre Gilgámesh: / Um torpor toma seus braços / E debilidade cai-lhe sobre os joelhos” (5, 28-30).

O ato de recuar ao poema Ele que o abismo viu não deve ser encarado como uma tentativa de buscar a pré-história da epopeia, o que seria improdutivo, mas pode-se encontrar ali, nessas práticas letradas redescobertas há pouco, artefatos capazes de nos tornar mais próximos os códigos de sua composição. Os paralelos com a cultura grega ajudam a digerir as novas informações e, ao mesmo tempo, indicam nossos limites uma vez que, para estudar o poema acádio, carecemos de recorrer a outra “literatura” para, por meio de analogias, criar hipóteses verossímeis. A despeito do quanto ainda ignoramos, a tradução de Jacyntho Brandão não apenas nos torna menos ignorantes em relação a uma cultura tão longínqua, mas também nos apresenta um universo a ser cartografado. Aliás, imagino o quanto de heroico há numa tradução direto do acádio. Para os aventureiros que ainda não viram o abismo, eis que surge, de mãos habilidosas, um mapa.

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-doutor pelo Programa de Pós-graduação em Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Autor do livro Heroísmo na singradura dos mares: histórias de naufrágios e epopeias nas conquistas ultramarinas portuguesas. São Paulo: Paco, 2018.  2 BRANDÃO, Jacyntho Lins. A “Epopeia de Gilgamesh” é uma epopeia? (artigo no prelo). Endereço profissional: Av. João Naves de Ávila, 2121 – Santa Mônica, Uberlândia – MG, 38408-100. E-mail: cleber.ufu@gmail.com.

Culturas Populares, Gênero e Diversidade Sexual: interfaces, tensões e subjetividades / Caminhos da História / 2019

Nos últimos anos, é notório o crescente interesse pelos estudos sobre as artes e culturas populares. Multiplicam-se os trabalhos acadêmicos, artigos e livros dedicados ao tema, assim como o número de agências não governamentais e privadas interessadas na execução de projetos na área. As abordagens mais recorrentes focam questões como as tensões entre a dimensão tradicional e mecanismos de (re)invenção, processos de espetacularização, as dimensões performativas e processos de patrimonialização, dentre outros temas. Também é notória a consolidação, no Brasil, do campo dos estudos de gênero, assim como daquele sobre a diversidade sexual, ao longo das últimas quatro décadas com temas diversos e abordagens múltiplas. Mas, o que falar da relação entre as culturas populares, as perspectivas de gênero e as experiências da diversidade sexual?

Com o intuito de reunir subsídios para responder a essa pergunta, coordenamos um grupo de trabalho na terceira edição do Seminário Internacional Desfazendo Gênero, realizada em Campina Grande, em 2017, evento organizado por Jussara Carneiro Costa, na Universidade Estadual da Paraíba. O grupo de trabalho procurou reunir, assim, pesquisadores / as interessados / as em um território ainda pouco explorado em ambos as áreas de pesquisas, a saber, as interfaces entre as artes e culturas populares e as questões relativas às expressões de gênero e da diversidade sexual. O que se sabia sobre gênero e / ou sexualidade nos contextos de produção cultural, situações ritualizadas, festividades ou processos de patrimonialização? Quais as expressões de gênero e da diversidade sexual nas artes e culturas populares? Que conflitos, tensões, silenciamentos e resistências perpassam esses campos em suas interações? O que este olhar pode nos oferecer como possibilidades de visualizar formas de produção de sujeitos no mundo contemporâneo? Estas são algumas das questões levantadas pelo grupo e que os textos reunidos aqui tentam, de alguma maneira, responder. Uma parte desses textos é oriunda do grupo de trabalho, outra parte foi acrescentada em seguida ao evento com a continuidade de nossos diálogos sobre o tema.

Os saberes populares se materializam na vida social frequentemente por meio de situações ritualizadas. Os rituais são aqueles espaços-tempo em que são formuladas e reformuladas culturalmente, negociadas e renegociadas socialmente, editadas e reeditadas simbolicamente e tensionadas politicamente as múltiplas formas de pertencimento e as mais variadas demonstrações identitárias, entrecruzando os eixos da identidade (indivíduo versus coletividade) e da alteridade (mesmo versus outros). A maneira como tais saberes são performados, portanto, não são apenas um mecanismo de reprodução da vida social por meio da repetição, mas são sobretudo um conjunto de dispositivos acionados para produzir reflexões críticas acerca dos arbitrários culturais sobre os quais se assenta a ordem social e, assim, denunciar, de forma quase sempre lúdica, os efeitos de poder instituídos nos saberes, discursos e práticas sociais. Num aparente paradoxo, no âmbito das culturas populares a liminaridade dos rituais parece contribuir para a naturalização do status quo hegemônico, no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual, representado por um regime de verdade médico-científico e jurídico-moral instaurador do binarismo de gênero, do dimorfismo sexual e da heterossexualidade compulsória, ao mesmo tempo em que subvencionam potentes críticas a essa naturalização, ao promover, ainda que momentaneamente, a subversão, a transversão, a reversão ou a inversão da ordem – ou, pelo menos, a ponderação sobre a sua versão oficial e a possibilidade de sua instabilização.

Além disso, podemos notar também que o impacto das discussões sobre identidade, gênero e sexualidade resultaram na pressão crescente para o reconhecimento e a abertura de novos espaços, dentro de tais manifestações antes ocupados majoritariamente a partir de uma lógica heteronormativa. Tais reivindicações possibilitaram a emergência de novos agentes e narrativas bem como tornando visíveis aquelas até então silenciadas. Assim, à potência das ambiguidades do espaço da liminaridade ritual somou-se também o da reivindicação e luta política.

Os resultados das pesquisas que compõem esse dossiê, de alguma maneira, tratam da tensão entre discursividades hegemônicas naturalizadas / naturalizadoras e possibilidades culturais / existenciais alternativas no que diz respeito às expressões de gênero e da diversidade sexual (e outros marcadores sociais da diferença, em alguns textos). Em certos casos aqui relatados, essa tensão é mediada (ou neutralizada?) pelas manifestações das culturas populares diretamente, como nos artigos de Hayesca Costa Barroso, de Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, de Thayanne Tavares Freitas e de Camila Maria Gomes Pinheiro; em outros, como no artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, a mediação se dá através de situações ritualizadas representadas, por exemplo, pela participação em programas especiais de promoção da cidadania e de valorização da vida, como o Programa ViraVira, que funciona como uma espécie de rito de passagem para pessoas transexuais e travestis. Os processos de patrimonialização abordados diretamente por Laura C. Vieira e indiretamente por Daniel Oliveira da Silva poderiam ser vistos também como meios daquela mediação através de situações ritualizadas.

O artigo de Hayesca Costa Barroso, intitulado “A Produção do Gênero na / da Cultura Popular: problematizando um habitus de gênero junino”, mostra como, apesar de baseadas numa estrutura simbólica heteronormativa e binária, as grandiosas festas juninas cearenses, marcadas pelas apresentações das quadrilhas, têm-se tornado um espaço importante de visibilização de pessoas homossexuais (gays e transexuais, principalmente) e de questionamento – ou reelaboração – da fixidez dos papeis de gênero tradicionais, produzindo, desse modo, uma reflexão sobre o que a autora chamou, baseada na obra de Pierre Boudieu, de “habitus de gênero da cultura popular junina”. Já o artigo de Diego S. Santos e Sérgio Luiz Baptista, intitulado “Como ser Transexual e / ou Travesti num Universo Simbólico Heterossocial? A “Carreira Bicha” na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro” é baseado numa pesquisa de campo realizada junto ao Programa ViraVida, desenvolvido naquela favela carioca com o intuito de promover a cidadania de pessoas transexuais e travestis. Os autores analisam o que designam como “carreira bicha”, um conjunto de atividades e instrumentos que ilustram a passagem da “identidade gay” para a “identidade trans”, numa espécie de rito de passagem instituidor de uma posição política dissidente em relação à heteronormatividade hegemônica. Lady Selma F. Albernaz e Jailma Maria Oliveira, no artigo intitulado “Maracatu Nação em Pernambuco: raça, etnia e estratégias de enfrentamento ao racismo”, estudam os rituais de maracatu dos carnavais recifenses a partir de uma minuciosa análise das indumentárias utilizadas pelos / as participantes e apresentam uma instigante reflexão sobre as interseções de raça e gênero nos processos de etnização em vigor nessas manifestações culturais.

A cena dos grafismos murais conhecidos como graffitis na cidade de Belém, capital paraense, foi o objeto de estudo de Thayanne Tavares Freitas. No artigo, Thayanne apresenta os principais resultados de uma pesquisa etnográfica refinada realizada junto a um coletivo feminino de grafiteiras belenenses (que inclui mulheres e um homem transexual). A autora partiu do questionamento do processo que apagou ou excluiu as mulheres dessa cena e, no final de sua pesquisa, acabou revelando a maneira como, nos últimos tempos, o protagonismo feminino vem despontando (com muita negociação) nessas manifestações culturais, não só em Belém, mas também alhures. Por sua vez, Camila Maria Gomes Pinheiro, em seu artigo intitulado “„Mulher na Roda Não é pra Enfeitar‟! A Ginga Feminista e as Mudanças na Tradição da Capoeira Angola”, após perceber que os estudos sobre as culturas populares pouco se interessam pelas desigualdades sociais e as diversas formas de discriminação, utiliza-se também da etnografia para verificar o lugar ocupado pelas mulheres na prática da capoeira angola e, principalmente, para mostrar o modo como essa manifestação cultural vem se transformando a partir do momento em que elas passam a ocupar os espaços de poder antes exclusivamente masculinos e se tornam lideranças na organização de grupos, num movimento demonstrativo daquilo que é definido pela autora como feminismo angoleiro.

Laura C. Vieira, em “As Mulheres Erveiras do Ver-o-Peso e os Olhares Patrimoniais” apresenta os resultados de uma pesquisa etnográfica e histórica realizada junto a mulheres feirantes do maior complexo comercial atacadista e varejista do Norte do Brasil, em Belém, sobre os seus costumes, saberes e práticas relacionados à biodiversidade amazônica e a qualidade patrimonial que lhes é aferida. A autora alerta para os cuidados que o processo de patrimonialização em voga tem que ter para evitar objetificar, exotizar e essencializar as práticas culturais no Ver-o-Peso e, em particular, aquelas protagonizadas pelas erveiras – mulheres que comercializam principalmente ervas e produtos fitoterápicos originários da floresta e propiciam atendimentos mágico-espirituais –, gerando estigmas e retirando-lhes a agência enquanto cidadãs, comerciantes e conhecedoras das coisas amazônicas. Ainda no registro dos processos de patrimonialização, Daniel Oliveira da Silva nos oferece um texto intimista e comprometido, intitulado “Comida, Memória e o Encontro de Gerações: um estudo de caso sobre o resgate de uma receita de família”, que trata da importância da oralidade na rememoração de receitas culinárias tidas como “receitas de família”. O autor traz as histórias contadas pelas mulheres de sua família oriunda do interior do Piauí para construir uma narrativa sobre o mirrado, um bolinho feito à base de goma de mandioca. A narrativa assim constituída por essas mulheres nos ensina que as receitas condensam informações sobre trânsitos culturais passados, catalisam relações sociais presentes e se atualizam como matrizes de pensamento para a existência futura, confirmando o que Lévi-Strauss já dizia: os alimentos não são apenas comidos, mas são também bons à penser.

Já Paula Zanardi e Jorgete Lago nos oferecem uma reflexão sobre a invisibilidade das mulheres nas manifestações culturais, a partir da categoria “mestra”, com um olhar a partir do Pará. Se a primeira parte de sua experiencia enquanto gestora do patrimônio e nos provoca a pensar nas representações de genero nas culturas populares no ambito dos grupos e da formulaçao de políticas de cultura, Lago investe na abordagem de temas sobre classe, gênero e raça sob a ótica da etnomusicologia e a reflexão entre a sua subjetividade e seu papel enquanto acadêmica, mulher e cidadã.

Convidamos todas / os, através da leitura dos artigos desse dossiê, a se apropriarem das reflexões propostas pelas / os autoras / es que, de uma forma ou de outra, convidam-nos a pensar em formas de promover um mundo melhor.

Daniel Reis – Doutor em Antropologia pela UFRJ. Pesquisador do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (IPHANDF). Professor do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural-IPHAN. E-mail: drreis55@yahoo.com.br ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0002-2366-0285

Fabiano Gontijo – Professor Titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e à Faculdade de Ciências Sociais (FACS) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA). É Doutor em Antropologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. fgontijo2@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-4153-3914


REIS, Daniel; GONTIJO, Fabiano. Apresentação. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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As Américas na primeira modernidade – CAÑIZARES-ESGUERRA (H-Unesp)

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; MARTINS, Maria Cristina Bohn. (Orgs.), As Américas na primeira modernidade. Curitiba: Prismas, 2017. 1, 359p. Resenha de: SÁ, Charles Nascimento. Novo Mundo e Modernidade: debates e estudos sobre a colonização das Américas na Idade Moderna. História v.38  Assis/Franca  2019.

Uma das qualidades que se busca na produção acadêmica é a capacidade de cativar e prender a atenção de seu leitor. Ao longo de séculos, escritores e suas obras têm tido sucesso ou insucesso nesse sentido: conseguir produzir um texto que seja interessante, que produza reflexões no ledor e que estimule a busca por mais conhecimento, seja para seu interesse pessoal ou para sua área profissional, é prova inequívoca de que o trabalho atingiu seu objetivo.

Em um romance publicado pela Editora Record, intitulado A livraria mágica de Paris, de autoria da francesa Nina George, a autora, por meio de seu personagem Jean Perdu, define a função da livraria similar à de uma farmácia literária. Perdu nega-se a vender um livro quando percebe que não é aquele que a pessoa necessita. Por meio dos livros, o indivíduo, com seus problemas, dores, tristezas e incertezas, pode aí encontrar sua cura, ou, pelo menos, um paliativo (GEORGE, 2016).

Inicio esse texto abordando uma obra literária porque entendo que, no que concerne à escrita e seu reflexo na formação e melhoramento do conhecimento humano, todo tipo de saber deve ser aproveitado. Seja para momentos de deleite – de puro prazer literário, seja para crescimento profissional e acadêmico, todo livro deve trazer em seu bojo as benesses que uma boa escrita traz para a mente e o coração.

Se na obra literária a narrativa deve sempre buscar a atenção do leitor, prendendo-o com recursos estilísticos diversos – suspense, drama, assassinatos, crises, traições, reviravoltas, etc. -, no livro acadêmico nem sempre isso é possível, ou tem o autor a verve necessária para produzir tal feito. Algumas obras historiográficas conseguiram esse feito: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, Caminhos e Fronteiras, de Sérgio Buarque de Holanda, Apologia da História, de Marc Bloch, Segredos Internos, de Stuart Schwartz, Um Contraponto Baiano de Bert Barickman são alguns dos autores que produziram obras acadêmicas relevantes e paradigmáticas que também possuem estilo literário que cativa e prende a atenção de seus leitores.

As obras acima referidas possuem outra característica em comum: são frutos de um único autor. Nesse sentido, possuem uma coerência narrativa e vigor estilístico que surge da força criativa, da concepção teórica e da escrita de seu autor, ou mesmo de um dom que este possua.

Essa capacidade da escrita de ser leve e profunda, de fácil percepção para quem lê, nem sempre é conseguida em livros com vários autores. Obras coletivas, mesmo as literárias, perdem muito pela forma e característica com que cada escritor percebe sua produção e a transmite por meio de sua grafia. Esse desequilíbrio é sempre um fator a desmerecer o quantum de uma obra com vários autores.

Passados por esta breve introdução, adentremos no que de fato concerne este texto, isto é, a análise do livro: As Américas na primeira modernidade (1492-1750). Organizado por Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins, publicado pela Editora Prismas, conta com textos de diversos autores em colaboração com os três já citados, ou em outras parcerias. Os autores são docentes e pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e Europa. Instituições como Unicamp, UNISINOS, Universidade da Califórnia, Universidade do Texas, Universidade da Integração Latino-Americana e Universidade de Barcelona estão aí representadas. Todos esses centros estudam e pesquisam o passado do continente americano, e seus professores, presentes no livro, demonstram por meio dos capítulos o estágio atual da pesquisa sobre a história da América colonial.

Na introdução da obra, os organizadores fazem uma análise historiográfica da produção sobre a América na Idade Moderna. O processo de colonização, os entendimentos sobre a conquista, as ideias e conceitos que foram utilizados ao longo do tempo para compreensão desse fenômeno são aí abordados. Ao mesmo tempo, indicam os novos olhares e caminhos que têm sido discutidos pelos estudiosos para o entendimento da colonização do continente entre os séculos XV até o XVIII.

Alexandre C. Varella abre o primeiro capítulo, intitulado: Os índios: povos ancestrais, sujeitos modernos. Estes são tratados não apenas dentro de sua ancestralidade, mas também naquilo que carregavam e carregam de moderno. Os povos indígenas que habitavam o continente não são encarados como vítimas circunstanciais da dominação europeia na América, mas se apresentam como indivíduos ou coletivos que produzem com suas ações e ideias sua própria história. Em seu texto, a dicotomia usual entre opressores e oprimidos cede lugar a “caleidoscópio de posições e situações instáveis, contextuais, plurais”. No seu texto fica claro que “existem mais paradoxos que soluções para a análise dos indígenas no início da modernidade” (p. 48).

O segundo capítulo traz em seu bojo o processo de conquista da América, intitulando-se A conquista da América como uma história emaranhada: o intercâmbio de significados de uma palavra controversa. O primeiro item a destacar aqui diz respeito ao fato que esta ação deve ser compreendida não apenas como um processo unilateral, que parte de ibéricos sobre americanos. Segundo o texto de Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Eliane Cristina Deckman Fleck, um dos elementos a obnubilar o entendimento do conflito que terminou por colocar o continente americano sobre a égide espanhola foi o de entendê-lo a partir de uma visão unilateral.

Para os autores do segundo capítulo, a gênese e o desenvolvimento de todo esse épico conflito devem ser compreendidos a partir das junções de acordos e da geopolítica que envolvia os povos e nações existentes no mundo mexicano e peruano, para ficar aqui nas regiões mais famosas. Para os ameríndios que participaram do processo que resultou na queda de Tenochititlán e Cuzco, os espanhóis não foram os senhores que comandaram o processo, mas parceiros em toda a guerra que resultou na queda dos adversários históricos dos grupos oprimidos por astecas e incas. Além disso, o texto possui uma fluidez e uma escrita muito cativante. Nesse texto, o leitor torna-se partícipe de todo o conflito, a narrativa possui aquela característica tão carente em obras de história feita por historiadores: lucidez e simplicidade, atrelados a excelente pesquisa de fontes e bom diálogo com outros autores.

O terceiro capítulo, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins e Leandro Karnal apresenta a questão da fé, atrelado a dois outros efes: fama e fortuna, seu título, por isso mesmo chama-se Fama, fé e fortuna: o tripé da conquista. Nesse texto, os autores desenvolvem uma interessante discussão sobre o impacto que a chegada dos europeus e a conquista dos impérios asteca e inca tiveram no desenvolvimento do imaginário europeu no início da modernidade e a importância disso para que outros indivíduos sonhassem em conquistar os mesmos louros que Cortez e Pizarro. Questões envolvendo fé, fama e fortuna foram paralelas e congênitas no empreendimento que resultou na conquista do Novo Mundo. Para os autores, porém, é importante não esquecer que o elemento que dominou toda a ação dos ibéricos foi sempre a fé católica e sua propagação para outros povos, afinal, “a compreensão das ações espanholas não pode prescindir da sua dimensão religiosa e espiritual” (p. 176). Nesse sentido, assemelha-se ao que Charles Boxer, em sua clássica obra O império marítimo português – 1415-1825, já assinalava quando de sua publicação em 1969. Para o historiador britânico, das quatros questões que nortearam a expansão lusitana – a saber, a guerra contra infiéis, a busca de ouro, a busca do reino de Preste João e a expansão da fé católica, foi sempre esta última a que de fato serviu como elemento justificador e impulsionador das navegações portuguesas em mares nunca dantes navegados (BOXER, 2002).

No quarto capítulo, que tem como título O lapso do rei Henrique VIII: inveja imperial e a formação da América Britânica, Jorge Cañizares-Esguerra e Bradley J. Dixon analisam o impacto da conquista e a formação do império ibérico no mundo anglo-saxão. Com suas minas e riquezas advindas do Novo Mundo, a Espanha se consolidou como a maior potência na Europa do início da modernidade. Isso, mais a rivalidade com a consolidação da Reforma na Inglaterra, levou os ingleses a buscarem imitar seus rivais castelhanos na construção de colônias na América. Ao longo dos séculos XVI e XVII encontrava-se na península ibérica a inspiração que os ingleses buscavam para a construção de seu próprio império. Foi somente no século XVIII, com a disseminação da “Legenda Negra” e a percepção de que o modelo ibérico não seria viável para os objetivos anglicanos, que a Grã-Bretanha encetou novo processo de povoamento e conquista na América desvinculado do modelo ibérico. Isso, porém não simbolizou o abandono do modelo espanhol. Durante todo o período de construção de suas colônias a Inglaterra teria no seu adversário o exemplo a seguir ou criticar.

Não foi só de pessoas que se constituiu a formação do mundo colonial americano. Benjamin Breen, no quinto capítulo do livro, analisa o Meio ambiente e trocas atlânticas. A migração de povos do Velho para o Novo Mundo se deu por volta de 60.000 anos atrás, segundo as pesquisas desenvolvidas por vários arqueólogos na América. Houve contatos com vikings durante o ano 1.000, mas as colônias por eles fundadas desapareceram sem deixar traços mais profundos. Assim, ao longo de vários séculos, povos, animais e plantas, além dos micro-organismos, estiveram longe do contato com outras espécies. A vinda dos europeus trouxe consigo não apenas as transformações no estilo de vida desses povos, mas representou também o intercâmbio entre diferentes indivíduos e seres vivos. Dessa forma,

[…] a história ambiental do mundo atlântico também ajuda a compreender duas das mais colossais catástrofes da história humana recente. A primeira é a impenetrável tragédia ocasionada pelas mortes de dezenas de milhões de nativos americanos devido a doenças infecciosas como a gripe, o sarampo e a varíola, contra as quais os indígenas não possuíam resistência. A segunda é a contínua diminuição da biodiversidade global, a qual muitos ecologistas identificam agora como a maior extinção em massa desde o desaparecimento dos dinossauros há 65 milhões de anos (p. 247).

As trocas envolvendo os dois lados do Atlântico e a inclusão do Índico e suas variedades de fauna e flora estão diretamente vinculadas à constituição do mundo contemporâneo e suas variedades de flores, frutos e fauna tal qual conhecemos hoje; seu custo para povos e seres que habitavam a América foi altíssimo.

O sexto capítulo da obra, Saberes e livros no mundo atlântico: o intercâmbio cultural na carreira das Índias, aborda as trocas de livros e saberes no mundo atlântico moderno. De autoria de Carlos Alberto González Sánches e Pedro Rueda Ramírez, faz uso de documentos e produções do período para discutir como o saber e sua disseminação por meio de obras muitas vezes não permitidas se fizeram presentes no universo colonial ibérico. A perseguição da Coroa e da Igreja a obras consideradas impróprias e a manutenção por parte do Estado espanhol do sigilo em torno de mapas e descrições do Novo Mundo, com o objetivo de proteger suas minas e riquezas de seus adversários, foram elementos a direcionar a atuação do governo e sua censura sobre livros e saberes.

No último capítulo da obra, Entre textos, contextos e epistemologias: apontamentos sobre a “Polêmica do Novo Mundo”, Beatriz Helena Domingues e Breno Machado dos Santos discutem os textos e obras que, no século XVIII, polemizaram a respeito do Novo Mundo e seus habitantes. De modo particular são aqui estudadas as obras de Buffon e De Paw, na discussão que o italiano Antonello Gerbi denominou como disputa ou controvérsia do Novo Mundo em seu clássico livro O Novo Mundo: história de uma polêmica.

Nesse texto que encerra o livro, as discussões sobre as características inferiores que a América apresentaria quando comparada com o Velho Mundo, tese defendida por Buffon e ampliada por De Paw, são contextualizadas e inseridas dentro de todo o debate que os estudos desses dois intelectuais produziram no período das Luzes. De modo particular, tem-se aqui a ação dos padres jesuítas da América espanhola e portuguesa, bem como dos representantes dos recém-emancipados Estados Unidos, em sua defesa pela semelhança entre os continentes da América e Europa.

A atuação de personagens da América espanhola e dos norte-americanos foi mais destacada que a dos residentes na América portuguesa. Tal fato é explicado por terem sido os padres jesuítas lusitanos encarcerados em Portugal na ocasião da expulsão dos membros da Ordem pelo Marquês de Pombal. Já os espanhóis puderam ir para o exílio em Bolonha, nos Estados Pontifícios. Como apontam os autores: “ainda que a situação do exílio seja sempre terrível, há uma enorme diferença entre Bolonha e as masmorras portuguesas” (p. 336).

Retomam-se aqui, para concluir a presente resenha, os tópicos indicados no início desse texto. Quando escreveu seu emblemático livro Apologia da História, ou o ofício do historiador, o historiador francês Marc Bloch disse: “decerto, mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços, restaria dizer, a seu favor, que ela entretém” (BLOCH, 2001, p. 43). Em outras palavras, quis esse estudioso indicar que compete ao texto histórico fazer com que seu leitor se entusiasme pelo que lê. Partindo desse ponto, os artigos encontrados no livro As Américas na primeira modernidade, 1492-1750 cumprem a contento tal expectativa. Torna-se prazerosa e instrutiva sua leitura, pois o leitor fica preso ao texto. Ao mesmo tempo, a precisão acadêmica, o confronto entre diferentes fontes, o diálogo envolvendo a bibliografia mais atual e a já consagrada encontram-se aí presentes. Sendo uma obra coletiva, o vigor acadêmico em nenhum momento se perde no conjunto da obra.

Outra perspectiva que a obra possui tem correlação com aquilo que o historiador Luiz Felipe de Alencastro defende em sua obra O Trato dos Viventes (2000) Nela, Alencastro aponta que, para entender o Brasil dos séculos XVI ao XVII, é preciso ir para fora dele, isto é, só se pode compreender a gênese da formação da América portuguesa olhando para o Atlântico. Nesse oceano e em suas conexões, no caso de Alencastro, de modo particular, a África, pode-se esclarecer e entender todo o processo formativo da sociedade e economia brasileira nesses dois séculos. O livro organizado por Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de Oliveira Fernandes e Maria Cristina Bohn Martins cumpre bem esse papel ao dar o destaque necessário às correlações envolvendo povos e territórios do além-mar e suas conexões não apenas com a Europa e África, mas também com a Ásia.

Tanto o indicativo de Bloch quanto o de Alencastro são seguidos no livro. Outro item que vem tendo destaque nas pesquisas envolvendo o mundo colonial da era moderna é abordado no volume que analisamos. Trabalhos oriundos dos Estados Unidos e Europa, bem como outros feitos na África, Ásia e América Latina, têm chamado a atenção para a necessidade de se pesquisar o passado colonial focando em questões e conceitos muitas vezes relegados pela historiografia. As noções de rede, nobreza, império ultramarino, monarquia pluricontinental, monarquia compósita, Antigo Regime, absolutismo, conquista, colonização, hibridismo cultural, miscigenação, direito, dentre outras temáticas foram incorporadas ou rediscutidas para compreensão do passado colonial da América e suas conexões com outros povos.

Nesse sentido, As Américas na Primeira Modernidade tem o mérito de abordar em seus capítulos essa discussão já tão presente no mundo europeu, na América do Norte, em partes da África e do continente asiático. A literatura por eles utilizada assenta-se em nomes como Serge Gruzinski, Sanjay Subrahmanyam, Stuart Schwartz, Jack Greene, Anthony Pagden, Vitorino Godinho, Charles Boxer, Antonello Gerbi, além dos próprios organizadores da coleção e seus autores. Nesse sentido, o diálogo aí presente é fecundo e levanta diversas indagações.

Nós, latino-americanos, fomos marcados pela intolerância, perseguição, guerras, mortes, doenças e pela conquista, mas também nos caracterizamos por dotar o planeta de sua concepção de modernidade. Foi somente pela chegada dos europeus ao Novo Mundo que o planeta iniciou o processo de constituição da economia mundo, afinal “o impacto das explorações oceânicas europeias estava sendo sentido fora da Europa, em uma terra que não possuía atividades transatlânticas […]” (WOOLF, 2014, p. 257).

Ao mesmo tempo, ao saber que outros povos e outras concepções de mundo existiam além do universo do Velho Mundo, religiosos e estudiosos depararam-se com temas que os levaram a redefinir suas concepções sobre o planeta, bem como sobre suas crenças. Como indica Serge Gruzinski, as certezas do conhecimento clássico foram postas em cheque e um novo saber pôde ser realizado.

A obra, porém, possui um revés. Mesmo se tratando das “Américas”, o livro ainda permanece com a divisão que exclui do universo colonial do Novo Mundo a América portuguesa. A região dominada pelos lusitanos somente é abordada no último texto e em vagos momentos está presente em outros poucos capítulos. Argentina, Paraguai e Uruguai são também pouco abordados. Nesse sentido, é necessário que se possa de fato interconectar os diversos povos e histórias da América em seu contexto colonial. Cada vez é maior o número de pesquisas no Brasil, e fora dele, que apontam para as redes abarcando os mercados e povos do mundo luso tropical com áreas da América sob domínio de Madri ou Londres. Envolver esses povos e territórios em uma única rede, ou em várias conexões, tende a tornar a história do continente em algo verdadeiramente americano.

O ponto acima não desmerece o livro analisado aqui. Pelo contrário, serve de indicação para outras obras futuras. Estas, por sua vez, tendem a ser beneficiadas pelo roteiro bibliográfico que todos os capítulos, bem com a Introdução do livro, trazem. Neles é possível entrar em contato com a historiografia sobre o continente e suas diversas concepções. O livro As Américas na primeira modernidade torna-se, assim, valioso contributo para todos aqueles que pesquisam, estudam ou querem entender o passado colonial de Novo Mundo, sejam alunos ou professores.

Primeiro volume de uma coleção que deverá ter mais dois livros, essa obra inaugural nos leva à expectativa quanto ao teor e profundidade dos demais, ao mesmo tempo em que embala novos debates e saberes sobre o mundo colonial da América. Boa leitura.

Referências

ALENCASTRO, Luiz Filipe de. O Trato dos Viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. [ Links ]

BOXER, Charles R. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras , 2002. [ Links ]

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; MARTINS, Maria Cristina Bohn. (Orgs.) As Américas na primeira modernidade. Curitiba: Prismas, 2017. v. 1. 359 p. [ Links ]

FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. Na trama das redes: política e negócios no império português. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ Links ]

GEORGE, Nina. A livraria mágica de Paris. Rio de Janeiro: Record, 2016. [ Links ]

WOOLF, Daniel. Uma história global da história. Petrópolis: Vozes, 2014. [ Links ]

Charles Nascimento de Sá – Historiador, Mestre em Cultura e Turismo, Doutorando em História e Sociedade na UNESP/Assis. Professor da Universidade do Estado da Bahia -UNEB, campus XVIII, Av. David Jonas Fadini, 300, Eunápolis 45823-035, Bahia, Brasil. E-mail:  charles.sa75@gmail.com.

A Escola Normal de Natal (Rio Grande do Norte, 1908-1971) | Francinaide de Lima Silva Nascimento

Evidenciar o tema da história da formação de professores por meio do estudo da Escola Normal de Natal é proposta da obra intitulada Escola Normal de Natal (Rio Grande do Norte, 1908-1971), que se apresenta como produto da tese de Doutorado em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte da autora Francinaide de Lima Silva Nascimento, que está alinhada aos estudos do grupo de pesquisa História da Educação e Gênero da UFRN e ao Projeto História da Leitura e da Escrita no Rio Grande do Norte – presença de professores (1910-1940), fator esse importante, pois foi através das discussões ocorridas nestes espaços que constituiu a obra agora resenhada.

Professora e pesquisadora da área de Educação, Francinaide de Lima Silva Nascimento, atualmente exerce a função docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, na graduação e pós-graduação. A aproximação com pesquisadores portugueses como Justino Magalhães e Joaquim Pintassilgo no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa durante seu estágio doutoral, possibilitou uma análise comparativa da gênese dos estabelecimentos entre a Escola Normal de Lisboa e a de Natal, “percebendo as relações implicadas na apropriação de uma forma escolar própria” (Nascimento, 2018, p. 16). Leia Mais

Der Diaspora-Komplex. Geschichtsbewusstsein und Identität bei Jugendlichen mit türkeibezogenem Migrationshintergrund der dritten Generation – YLDIRIM (ZG)

YILDIRIM lale1 Geschichtsbewusstsein und Identität
Lale Yldirim /

YILDIRIM L Der diaspora Geschichtsbewusstsein und IdentitätYLDIRIM, Lale. Der Diaspora-Komplex. Geschichtsbewusstsein und Identität bei Jugendlichen mit türkeibezogenem Migrationshintergrund der dritten Generation. Bielefeld : transcript , 2018. Resenha de: DEGNER, Bettina. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p.223-225, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Holocaust und Vernichtungskrieg. Die Darstellung der deutschen Gesellschaft und Wehrmacht in Geschichtsschulbüchern für die Sekundarstufe I und II – SCHINKEL (ZG)

SCHINKEL, Etienne. Holocaust und Vernichtungskrieg. Die Darstellung der deutschen Gesellschaft und Wehrmacht in Geschichtsschulbüchern für die Sekundarstufe I und II. Göttingen : V&R unipress , 2018. Resenha de: MITTNIK, Philipp. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, v.18, p. 221-222, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Textquellen im Geschichtsunterricht. Konzepte – Gattungen – Methoden – SAUER (ZG)

SAUER, Michael. Textquellen im Geschichtsunterricht. Konzepte – Gattungen – Methoden. Seelze : Klett, Kallmeyer , 2018. Resenha de: KUCHLER, Christian. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 218-220, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888) – GONÇALVES (RTF)

GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017. Resenha de: SANTOS, Zidelmar Alves. Sobre escravos e senhores na terra do cacau (Ilhéus, sul da Bahia). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 12, n. 1, jan.-jul., 2019.

A história do sul da Bahia está intrinsecamente ligada à saga do cacau. A literatura regional, principalmente as obras de Jorge Amado e Adonias Filho, contudo, contribuiu para a construção de uma memória que, se não apagou o passado colonial e escravocrata de Ilhéus e região, o omitiu, deixando-o no esquecimento.

Não podemos esquecer que o sul da Bahia estava inserido no contexto da escravidão, o que fortalece a ideia de que a riqueza advinda com os “frutos de ouro” foi construída ao custo muito sangue e suor não apenas de trabalhadores livres, mas também de escravos e negros libertos.

O livro Escravos e senhores na terra do cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888), de autoria do historiador Victor Santos Gonçalves, lança nova luz às relações estabelecidas entre os senhores, donos de grandes, médias e pequenas propriedades rurais, e escravos, que buscavam, além da sobrevivência, conquistar a liberdade, ainda que precária.

O trabalho é fruto de dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA entre 2012 e 2014 e possui prefácio da historiadora Maria de Fátima Novaes Pires. A obra é dividida em três capítulos. Em um primeiro momento, analisa a formação do espaço socioeconômico da vila de Ilhéus, destacando-a, a partir do século XVIII, principalmente como uma vila produtora de mantimentos. Aponta que, ao longo da primeira metade do século XIX, experimentou um crescimento populacional de forma gradual, que continuou na segunda metade deste século, seguindo o rastro do desenvolvimento econômico que pode ser observado pelo aumento das exportações de cacau e pelo tráfico ilegal de escravos africanos.2 Esse crescimento populacional, contudo, vai ao encontro dos discursos de crise de mão de obra construídos pelo governo provincial, que passou a estimular a criação de colônias agrícolas no sul da Bahia a partir dos anos 1850. Henrique Lyra salienta que “a criação de núcleos coloniais agrícolas na região Sul da Província estava diretamente ligada a uma política governamental para, muito mais que proporcionar a fixação de colonos como proprietários de terras, direcionar para aquela região o excedente populacional existente na Província”.3 Isso gerou “um fluxo migratório do centro e do norte para o sul da Província”4 em um momento em que a população escrava diminuía por conta da proibição do tráfico negreiro.

A leitura da obra de Gonçalves, inclusive, faz a relação “exportação de cacau – trafico negreiro” saltar aos olhos do leitor, descartando a concepção de que a lavoura cacaueira na comarca de Ilhéus desenvolveu-se única e exclusivamente por meio do trabalhador livre. O historiador Carlos Roberto Arléo Barbosa, por exemplo, destaca o envolvimento de grandes fazendeiros de cacau com a escravidão. Observe: grandes fazendeiros, com auxílio de escravos, plantaram cacau em suas propriedades. Em Castelo Novo, Sá Homem Del Rei, com 52 escravos, transformou o engenho de açúcar em fazenda de cacau, com 50 mil pés. Fortunato Pereira Galo, com 23 escravos, plantou 200 mil pés. O Dr. Pedro Cerqueira Lima, de família de traficantes de escravos, de Salvador, comprou a Fazenda Almada com 35 escravos. Depois, o seu filho, Pedro Augusto Cerqueira Lima, em 1892, possuía 200 mil pés de cacau. Outras propriedades cacauicultoras surgiram nessa época, como as dos Lavigne e as de Pedro Weyill.5 O desenvolvimento da lavoura cacaueira no sul da Bahia se deu em um momento em que o número de engenhos no estado passava por grande crescimento ao longo do século XIX, principalmente no interior, conforme indica Katia Mattoso: No final do século XVIII, a Bahia tinha 260 engenhos; em 1818, Spix e Martius encontraram 511. Num famoso ensaio sobre a fabricação de açúcar, o futuro Marquês de Abrantes arrolou 603 em 1833. Mais tarde, em 1853, em relatório a Assembleia Provincial, o presidente da Província falou em 759 engenhos registrados. Finalmente, em 1875, Manuel Jesuíno Ferreira citou 839 engenhos, 282 dos quais equipados com máquinas a vapor.6 Isso ratifica a hipótese de que a mão de obra escrava utilizada nos engenhos de açúcar era aproveitada ao mesmo tempo no plantio, não apenas do cacau, bem como de outras monoculturas estabelecidas em outras áreas do estado baiano.

Em um segundo momento, Gonçalves traça um painel da escravidão em Ilhéus, concebendo ela nos quadros do Antigo Regime português, que legitimava as desigualdades sociais. Assim, investiga os processos de busca pela liberdade por meio de vias legais. Destaca-se o caso do escravo Vicente, por exemplo, que não conseguiu provar à justiça que seu pai havia desembarcado no Brasil após a promulgação da lei que proibia o tráfico em 1831.7 No entanto, a conquista da liberdade poderia acontecer pelo mecanismo da alforria, seja ela onerosa (condicional e incondicional) ou gratuita (condicional e incondicional). O fato é que, em Ilhéus, “até as últimas décadas da escravidão, os escravos lutaram e pagaram vários preços pela sua liberdade”8 visto que muitas alforrias eram concedidas de forma condicional, o que sugere que estas dependeram da habilidade de negociação dos escravos para com seus senhores9.

O trabalho de Elciene Azevedo10 sobre lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo, por exemplo, demonstra outras nuances na busca pela liberdade, como a atuação e influência do movimento abolicionista sobre os escravizados, onde destaca-se a figura do poeta e advogado abolicionista Luiz Gama. Robert Slanes, em Na senzala, uma flor11, por outro lado, já havia demonstrado a importância da construção de laços familiares entre escravizados, utilizando como recorte empírico a região de Campinas. Procede, dessa forma, uma forte crítica às visões clássicas do escravismo, que reduzia os negros a animalidade e desenfreada promiscuidade sexual, o que impedia a constituição da família escrava, família esta que, conforme aponta Gonçalves, impulsionou as manumissões em Ilhéus.

Gonçalves, por fim, analisa os significados das cartas de alforria para senhores e escravos: “os senhores viam nela um reforço de poder, prestígio e ampliação de subordinados, já os cativos percebiam-na como um passo para ascender socialmente à condição de libertos”.12 A família escrava e o compadrio fortaleceram as iniciativas por manumissões, ao passo que funcionavam como elementos de resistência às dificuldades impostas pelo regime escravista. Em 1840, o Tenente-Coronel Egídio Luiz de Sá, por exemplo, alforriou seu afilhado João, cinco anos de idade. Recebeu de seu pai, José Fillippe, a quantia de duzentos mil reis. Ainda que tenha sido cobrada uma quantia, “a família escrava e o compadrio impulsionaram a carta de liberdade de João”13 o que ratifica a tese de Gonçalves.

A obra de Victor Santos Gonçalves, Escravos e Senhores na Terra do Cacau, dessa forma, constitui-se enquanto uma importante contribuição para a historiografia da escravidão em Ilhéus, principalmente se considerarmos que os trabalhos sobre esse universo escravocrata ainda são escassos. As fontes primárias utilizadas pelo autor, a exemplos de processos-crime, cartas de alforria, registros notariais, registros de casamento e de batismo, dentre outras, coletadas principalmente no Arquivo Público do Estado da Bahia – APEB, no Centro de Documentação e Memória Regional – CEDOC da UESC, no Arquivo da Cúria Diocesana de Ilhéus e na Secretaria da Catedral de São Sebastião de Ilhéus, indicam vários caminhos para novos pesquisadores, pois demonstram diversas possibilidades de análise, o que ratifica a ideia de que há muito a ser feito. Considerando ser este o livro de estreia do pesquisador, pode-se dizer que trata-se de um trabalho de peso. Embora escravos e senhores tenham na terra do cacau seu campo de ação, os “frutos de ouro”, o latifúndio e os coronéis não são os protagonistas. Isso demonstra que o historiador lançou um olhar diferenciado para o universo escravocrata do sul da Bahia, privilegiando as relações sociais e estratégias de resistência de minorias que foram silenciadas pela historiografia e pela literatura regional.

2 GONÇALVES, Victor Santos. Escravos e Senhores na Terra do Cacau: alforrias, compadrio e família escrava (São Jorge dos Ilhéos, 1806-1888). Ibicaraí: Via Litterarum, 2017, p. 66-71.

3 LYRA, Henrique Jorge Buckingham. A “crise” de mão-de-obra e a criação de colônias agrícolas na Bahia: 1850 – 1889. In: CARRARA, A. A.; DIAS, M. H. Um lugar na história: a capitania e comarca de Ilhéus antes do cacau. Ilhéus: Editus, 2007, p. 253.

4 Ibidem, p. 247.

5 BARBOSA, Carlos Roberto Arléo. São Jorge dos Ilhéus: um panorama histórico. In: PÓVOAS, Rui do Carmo. (Org.). Mejigã e o contexto da escravidão. Ilhéus: Editus, 2012, p. 432.  6 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia, Século XIX: uma província no Império. 2. Ed. Tradução de Yedda de Macedo Soares. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 462.

7 GONÇALVES, op. cit., p. 135-139.

8 Ibidem, p. 205-206.

9 Entre 1806 e 1888 foram registradas 251 cartas de alforrias em inventários, testamentos e no Livro de Notas do Município de Ilhéus. Destas, 69,7% envolviam pagamento e/ou condição e apenas 25,5% eram totalmente gratuitas. Apenas uma carta (4,8%) não teve tipologia identificada por Gonçalves (2017, p. 233).

10 AZEVEDO, Elciene. O Direito dos Escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na segunda metade do século XIX. 2003. 232 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

11 SLANES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2. Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.

Zidelmar Alves Santos – Mestrando em Letras: Linguagens e Representações pela UESC, Ilhéus, Bahia. Graduado em História e Especialista em História do Brasil pela mesma instituição. Endereço profissional: Campus Soane Nazaré de Andrade, Rod. Jorge Amado, Km 16 – Salobrinho, Ilhéus – BA, 45662-900. E-mail: zid175@hotmail.com.

Escravidão e comércio de escravos através da história / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2019

A escravidão é uma das instituições mais antigas da humanidade. Ao contrário do que se possa pensar, a escravização começou muito cedo de tal forma que a propriedade de uma pessoa sobre outra é anterior à propriedade privada da terra. Em diferentes locais e épocas, houve povos que comerciaram cativos, escravizaram vizinhos e até gente do seu próprio meio, mas não conheceram a propriedade privada da terra. Inúmeros povos vivendo em sistemas muito próximos ao chamado comunismo primitivo, traziam em suas culturas o costume de apropriar-se dos corpos de prisioneiros para uso e abuso da comunidade ou de algum indivíduo.

São inúmeras as possibilidades de usufruir do corpo escravizado: imolar, devorar, usar, punir, e colocar para trabalhar ou para exercer atividades consideradas indignas ou arriscadas. Existem quase infinitos exemplos em todos os continentes em diferentes épocas. As sociedades costumam sair da escravidão, mas, em algum ponto do passado, todas passam ou passaram por ela. Há quem distinga sociedades com escravos de sociedades escravistas. Umas possuíam escravos apenas. Outras tinham todo o ritmo da economia e da vida social ditados pela escravidão. Há, todavia, quem ache essa distinção irrelevante, pois é uma questão basicamente de escala, de fronteira imprecisa. Mas, uma coisa é certa, a escravidão marcou profundamente a experiência humana desde a Antiguidade mais remota.

Além de antiga, a escravidão é uma das instituições mais resilientes que conhecemos, como bem demonstram os relatórios online da Anti-Slavery Society, sediada em Londres, talvez a ONG humanitária em atividade há mais tempo no mundo. Já se falou que seria superada por motivos religiosos, e no entanto, é comum escravizar-se gente do mesmo credo. Já se falou que a ética secular a superaria, e no entanto, a guerra e as necessidades do vencedor sempre falaram mais alto. Já se falou que o capitalismo era incompatível com a escravidão, e no entanto na periferia das engrenagens dos grandes mercados, ela retorna e enraíza-se sob diferentes disfarces. E convém lembrar, que, mesmo nos centros mais avançados ela pode ser empregada sob diferentes justificativas, algumas muito apropriadas ao mundo moderno. Na contemporaneidade, multidões de trabalhadores vivem em condições análogas à escravidão em países onde os direitos civis mais básicos são conquistas centenárias. Pessoas desprotegidas ainda são traficadas como mercadorias.

Escravidão, stricto sensu, todavia, significa que uma pessoa, ou um grupo, possui o direito de propriedade, de uso e abuso sobre o corpo de uma outra pessoa, e não apenas sobre os produtos do trabalho. E não é uso temporário, mas ininterrupto. Sendo o corpo uma propriedade, havendo comércio, a pessoa pode ser trocada como qualquer outra mercadoria, repassada, herdada. O comércio de gente escravizada vem de tempos imemoriais, mas como tema da História ainda incomoda. Quem vendeu, quem comprou, quantos foram vendidos e comprados, de onde e para onde e quais os resultados disso, são problemas históricos que tocam em questões éticas e políticas profundas. O estudo do comércio de gente africana para as Américas é uma parte dessa temática quase tão ampla quanto a história humana.

A partir de meados do século XX houve um intenso desenvolvimento de pesquisas a respeito desse assunto. Os estudos sobre o impacto do comércio atlântico de gente escravizada nas várias margens do Atlântico, sobre os cativos e seus descendentes, desdobraram-se em um campo de reflexão teórica e metodológica consolidado tanto nas Américas, como na África e na Europa. As demandas sociais em torno das experiências da escravidão e pós-Abolição demonstram a vitalidade do tema na contemporaneidade. Todavia, ainda há muito o que se fazer. Só para exemplificar, no caso de Pernambuco, a historiografia sobre o tema ainda é tímida, apesar do quarto lugar entre os pontos nas Américas que mais receberam cativos da África. A historiografia sobre o Nordeste, portanto, ainda é carente de trabalhos que tratem, não apenas da demografia do tráfico, mas também do fiscalismo, tributação, consumo, comércio, monopólios, contratos e negociantes. Isso, tanto de forma genérica, como específica, no que corresponde à mercancia de gente.

Esse dossiê pretende somar à historiografia que problematiza essas questões, acolhendo pesquisas sobre escravizados e escravizadores imersos na dinâmicas do comércio de cativos. Numa perspectiva abrangente cronológica e geograficamente, tentamos aqui motivar pesquisas primárias e / ou análises comparativas e ampliar abordagens sobre o comércio de pessoas escravizadas em diferentes contextos e circunstâncias, fomentando assim a discussão. Há muito o que se estudar sobre os processos que permitem relacionar os pontos de origem dos cativos e os locais da exploração dos seus corpos e trabalho, submetendo pessoas a condições degradantes de vida e supressão das liberdades, desde épocas remotas até à contemporaneidade. Os trabalhos que compõem o elenco do dossiê abordaram o assunto entre os séculos em que o Brasil foi uma conquista portuguesa até os estertores da escravidão legal no Brasil do segundo reinado.

O texto de Gustavo Acioli e Leonardo Marques intitulado “O outro lado da moeda: estimativas e impactos do ouro do Brasil no tráfico transatlântico de escravos (Costa da Mina, c. 1700-1750)”, retoma um tema já tratado pela historiografia do comércio atlântico, mas que ainda apresenta muitas lacunas, uma vez que quantificar o volume de ouro saído da América portuguesa, em direção à África Ocidental para a troca por cativos sempre apresentou-se como uma empreitada difícil. Ao longo da argumentação os autores chegam a conclusão que 2 / 3 dos cativos comprados na costa africana foi através do ouro retirado das minas no Brasil e que, de forma indireta, a conquista portuguesa contribuiu para o incremento das trocas globais e a hegemonia do sistema capitalista mundial, o que não teria acontecido se não fosse a via africana a conectar os elos que formavam esse conjunto.

Já o trabalho de Maximiliano Menz “Uma comunidade em movimento: os traficantes de escravos de Lisboa e seus agentes no Atlântico , c. 1740-1771”, desenvolve um estudo sobre os principais traficantes atuantes em Lisboa entre 1740 e 1771. Trata-se de um ramo português de investimentos no tráfico de Angola. Com levantamento circunstanciado de fontes primárias, o texto narra a participação de mercadores e o exercício mercantil de homens de negócio portugueses que transitaram entre o Reino e a conquista Angola, aproveitando as conjunturas vantajosas para o comércio de cativos. Apresenta variados negociantes, alguns reconhecidos como os mais ricos no sistema, demonstrando com suas práticas e estratégias que os negócios atlânticos vão além de esquemas “triangulares” e “ bipolares”.

Por sua vez, o artigo de Alexandre Bittencourt trata da complexa rede estabelecida entre as regiões exportadoras e importadoras de pessoas escravizadas, África, América portuguesa e Europa. Em “A travessia de escravos dos sertões de Angola para os sertões de Pernambuco (1750-1810)”, desenvolve o entendimento de que pessoas colocadas em lugares chave e exercendo funções variadas se tornaram essenciais para viabilização do comércio de escravos. Dentre as personagens tratadas sobressaem-se as que residiam em Pernambuco e atuaram através da Companhia de Comércio Pernambuco e Paraíba. Delineia um processo que conecta de sertão a sertão, tendo o Atlântico como intermediário, concluindo-se quando as pessoas escravizadas alcançavam o seu destino fossem nas minas ou nas fazendas de gado dos rincões Setecentistas.

Com o texto de Janaína Bezerra mergulhamos no universo dos homens de cor atuantes principalmente nos centros urbanos. O trabalho “Luís Cardoso: de Escravo a Homem de Negócio da Praça do Recife (XVII e XVIII)”, seguiu a trajetória de vida de um homem pardo, forro, filho de um senhor branco com sua escrava, que chegou a alcançar a distinção como homem de negócio de grosso trato na Praça de Pernambuco. Participou de instituições sociais frequentadas pela elite branca, demonstrando quão fluidos foram os padrões de inserção e as negociações para impedimentos ou não, nas conquistas portuguesas do Antigo Regime.

Arthur Danillo Castelo Branco de Souza lida com o comércio interprovincial e intraprovincial de cativos na segunda metade do oitocentos. Analisa anúncios de compra e venda de cativos nos jornais e a atuação de alguns negociantes e daí busca entender esse complexo processo que permitiu repor a mão de obra escrava em Pernambuco. Tal como no tráfico atlântico, o comércio interprovincial de cativos também se fez em boa parte à margem da legalidade. Os escravizados, por sua vez, aproveitaram-se da demanda pela mão de obra para, sempre que possível, tentarem trocar de senhor à procura de um cativeiro menos brutal.

George F. Cabral de Souza trabalha com documentos recolhidos em diversos acervos, tanto no Brasil como em Portugal, que lhe permitem apresentar dados substanciais sobre 38 negociantes que operavam no Recife, aproximadamente entre 1660 e 1760, os quais estavam envolvidos no comércio de africanos escravizados. O foco central do texto são quinze negociantes listados em um relatório sobre as embarcações negreiras da praça do Recife, em 1758. Atendendo pedido do governo central, o governador da capitania produziu aquele documento sob o pretexto de apurar a possível superlotação das embarcações.

O texto analisa as trajetórias e inserção desses personagens na sociedade pernambucana, os quais diversificavam seus negócios e teciam redes de forma a permanecerem no topo da hierarquia social. O texto de Gian Carlo de Melo Silva tem por base uma densa pesquisa no Rol de Confessos, uma fonte rica em dados populacionais que não costuma ser utilizada em estudos sobre escravidão no Nordeste. Partindo de uma descrição crítica daquele acervo documental, o trabalho analisa os dados obtidos sobre a escravidão em Alagoas, com especial atenção para a freguesia de Santa Luzia do Norte, cujo território engloba tanto uma área mais urbana como uma região ocupada por engenhos de cana. O foco central do trabalho são as complexas relações entre os arranjos familiares no Brasil colonial, a escravidão e as mestiçagens.

É com muita satisfação, portanto, que apresentamos este dossiê, na certeza da relevância do seu tema e na qualidade dos trabalhos aqui publicados que esperamos que sirvam de base para outras pesquisas e debates futuros.

Suely C. Cordeiro de Almeida

Marcus J. M. de Carvalho

Organizadores

Suely C. Cordeiro de Almeida – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, integra o corpo docente da Graduação e Pós-Graduação do Curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: suealmeida.ufrpe@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-8267-4719

Marcus J. M. de Carvalho – Doutor em Historia pela University of Illinois at Urbana-Champaign. Atualmente é professor titular de História nos programas de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: marcus.carvalho.ufpe@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-1912-2879


ALMEIDA, Suely C. Cordeiro de; CARVALHO, Marcus J. M. de. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.37, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Mundos del trabajo y clases trabajadoras en los siglos XIX y XX: nuevas perspectivas y aproximaciones | Claves – Revista de Historia | 2019

En las últimas décadas la historiografía sobre el mundo del trabajo y las clases trabajadoras en América Latina y el Uruguay ha tenido una transformación significativa. La conformación de un campo de estudio sobre estas temáticas es el resultado de un largo recorrido que puede leerse en diálogo con la peripecia histórica de los sujetos sociales en cuestión.

Un primer tipo de abordaje priorizó como objeto de pesquisa a la “clase” (obrera, trabajadora, proletaria) y sus “organizaciones”. La primera, pensada en tanto sujeto histórico dotado de motivaciones e intereses propios (y unívocos) y protagonista central de una transformación estructural de la sociedad, que se consideraba en curso. Las “organizaciones” que era necesario conocer, en tanto expresiones del accionar y los intereses de la clase trabajadora, eran los “sindicatos” -que representaban sus intereses reivindicativos inmediatos- y los “partidos” o “movimientos” que la expresaban en la arena política. No es de extrañar que esa primera historiografía se haya centrado en la historia de las grandes organizaciones, por sobre los colectivos más pequeños y de base territorial. Y que tampoco haya incluido en sus estudios aquellas multitudes de trabajadores y trabajadoras, asalariados o no, que escapaban de ese interés fundamental, sin incorporar dimensiones como las relaciones de género o las diferenciaciones étnico-raciales y etáreas. Leia Mais

Trabalhadores e Segunda Guerra Mundial | Mundos do Trabalho | 2019

Diversas vertentes da história do trabalho no Brasil convergem na identificação da conjuntura situada entre 1941 e 1945 como um momento marcante tanto para a consolidação institucional do sistema varguista de relações de trabalho quanto para a emergência de um padrão de participação popular na política que viria a se constituir em base do projeto político trabalhista. Na maior parte da historiografia dedicada a esses temas, entretanto, a coincidência desses processos com o progressivo envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial costuma ser ignorada, ou, quando muito, tratada como um mero pano de fundo. Permanece imensamente influente, até os dias de hoje, por exemplo, a abordagem cunhada por Francisco Weffort, que enfatiza a reorganização do movimento operário no pós-guerra e afirma que a ditadura do Estado Novo havia apagado completamente a memória das lutas anteriores.1 Entretanto, já em 1981, o trabalho pioneiro de Alem2 demonstrou que as greves e as transformações vividas pelo sindicalismo no período de redemocratização tiveram origem no próprio contexto da guerra. Como comentaremos posteriormente, as conexões entre “esforço de guerra” e “pós-guerra” vêm sendo exploradas de forma pontual por diversos trabalhos nas últimas décadas. Até recentemente, porém, raros eram os autores que colocavam a conexão entre guerra e mundos do trabalho no centro de suas análises. Leia Mais

Beatriz Ana Loner: mundos do trabalho e pós-abolição | Mundos do Trabalho | 2019

A análise das associações negras mereceu um estudo à parte. Isso porque, em razão do forte preconceito e discriminação que enfrentavam na sociedade, os negros foram obrigados a desenvolver uma rede associativa completa e diferenciada das demais. Eles formaram desde entidades recreativas até entidades de classe, para organizarem-se na luta pelos seus direitos como trabalhadores e de resistência contra o preconceito e a dominação branca. Nesse processo, provaram possuir um alto grau de criatividade e determinação que a simples enunciação de suas entidades deixa entrever.1

Embora o fragmento disposto acima evoque uma epígrafe, damos início à apresentação explicitando que ele é bem mais que isso. Aquilo que entendemos como a síntese da unidade entre o campo de estudos dos Mundos do Trabalho e aquele que viria a se constituir como campo de estudos sobre as Emancipações e o Pós- -Abolição, foi escrito pela pesquisadora e professora que dá nome ao dossiê, Beatriz Ana Loner. O excerto foi retirado de seu livro, “Construção de Classe: operários de Pelotas e Rio Grande, 1888-1930”, de 2001, com segunda edição em 2016. O livro é oriundo de sua tese de doutorado, defendida em 1999, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Leia Mais

Educar e aprender em museus. Perspectivas para o ensino de História | Anais do Museu Histórico Nacional | 2019

As pesquisas sobre educação em museus cresceram enormemente nas últimas duas décadas, ainda que a área de História não ocupe um lugar de proeminência, sendo subsumida pelas Ciências Naturais e pelas Artes. Ademais, o universo dos museus e suas práticas monológicas e lineares foram intensamente bombardeados tanto pelos movimentos sociais, como por pesquisadores/as e profissionais desse campo, ensejando rupturas e densidades nas narrativas museais, tendo na educação, muitas vezes, a plataforma para atualização memorial e diálogo com as diferentes demandas sociais.

É possível perceber, assim, uma inflexão ético-política no debate sobre representações históricas nos museus, que se aprofunda nas reflexões sobre nossa própria capacidade de historicizar e narrar experiências tão diversas em relação à temporalidade. Evidentemente, tal debate também questiona a possibilidade dos museus atuarem como atores importantes nas disputas memoriais e na projeção (ou mesmo alargamento) de novos horizontes de experiência, tão estrangulado pelo presentismo e pelas demandas consumistas da contemporaneidade. Leia Mais

Pensar la migración: entre la historia y la literatura/Historia y Grafía/2019

A mediados de 2015, la Dirección de Investigación de la Universidad Iberoamericana Ciudad de México-Tijuana instrumentó un nuevo esquema de investigación que recibiría el nombre de “Cátedras de Investigación”. El cometido principal que debían perseguir éstas era promover, desde grupos interdisciplinarios armados en el seno de la universidad, la confección de redes de investigación que tuvieran impacto en las problemáticas sociales vividas actualmente. Leia Mais

Ingesta | USP | 2019

Ingesta Geschichtsbewusstsein und Identität

A Revista Ingesta (São Paulo, 2019-) é uma publicação eletrônica de periodicidade semestral, editada por alunos de pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, membros do Laboratório de Estudos Históricos das Drogas e Alimentação (LEHDA), fundado em 2016 na mesma instituição.

Nosso objetivo é publicar artigos, resenhas e dossiês temáticos (em português, inglês ou espanhol) produzidos por pós-graduandos e pesquisadores pós-graduados, que possam contribuir com o desenvolvimento dos estudos históricos sobre alimentação e drogas, em seus amplos aspectos.

Textos relacionados ao campo da História serão privilegiados, mas aqueles que abordarem a temática e estiverem relacionados a disciplinas afins, como a Antropologia, a Sociologia, a Arqueologia, entre outras, também serão considerados para avaliação do Conselho Editorial e do Conselho Científico da revista.

[Periodicidade semestral].

Acesso livre

ISSN 2596-3147

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Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.13, n.2 2019.

Artigos

Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas – TERVANASIO (HU)

TERVANASIO, Marcela. Candidata a la corona: La infanta Carlota Joaquina en el laberinto de las revoluciones hispanoamericanas. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2005. 284 p. Resenha de: ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Uma princesa entre dois mundos: Carlota Joaquina e o projeto de regência na América. História Unisinos 23(1):124-127, Janeiro/Abril 2019.

No contexto das comemorações do bicentenário da vinda da Corte portuguesa para o Brasil e do início do processo das revoluções de independência na América ibérica, eventos comemorativos foram realizados, livros foram publicados, promovendo uma maior interlocução entre pesquisadores interessados no tema ao revisitar questões até aquele momento abandonadas pelo senso comum e/ou satisfeitas por certo consenso historiográfico. Novas lacunas passaram a ser tratadas no universo destes eventos e a constante busca pelo preenchimento e elaboração de novas questões permite que sempre nos voltemos ao tema das independências, cuja importância não se esgota na figura de grandes homens e heróis nacionais2.

Período conturbado, o início do Oitocentos nos apresenta novas leituras em torno de ideias como representação, soberania e poder, as quais foram revistas de modo a atender as demandas dos pesquisadores em busca de uma maior compreensão das mudanças e das expectativas de um conjunto de sociedades que viviam num mundo convulsionado pelos efeitos da Independência dos Estados Unidos (1776), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (1794) e do surgimento do Império Napoleônico (1799-1815) com todas as suas peculiaridades no conjunto do equilíbrio europeu e americano. No bojo destas transformações, houve a construção de valores e ideais opostos aos modelos sociais e políticos vigentes. A colonização na América encontrava-se ameaçada pelos preceitos de igualdade e de representatividade política, pois os espaços coloniais foram ganhando crescente importância no seio das metrópoles europeias.

No decorrer dos últimos anos, historiadores de várias nacionalidades têm se debruçado no tema das revoluções que culminaram na independência dos atuais países latino-americanos. No âmbito das Américas, os trabalhos pioneiros de Tulio Halperín-Dongui e José Carlos Chiaramonte propõem uma reflexão sobre a construção dos Estados-Nação e suas implicações no continente3.

O trabalho de João Paulo Garrido Pimenta (2002) tem apontado as relações entre guerra e identidades no contexto pelas lutas pela posse da Província Cisplatina, o atual Uruguai. Outro trabalho importante a ser considerado é Independencias iberoamericanas: nuevos problemas y aproximaciones, coletânea organizada pela professora Pilar Quirós (2015).

Esta última tem trazido à tona uma série de reflexões em torno do caráter internacional das independências latino-americanas.

Embora o Brasil tenha levado mais tempo para tornar-se independente de Portugal em relação às colônias hispânicas, a presença da Família Real foi fundamental para a compreensão de diversas facetas de nossa história nacional, assim como de uma história internacional e atlântica. E uma dessas facetas incorpora a figura da princesa Carlota Joaquina, membro da dinastia dos Bourbon e princesa de Portugal ao contrair matrimônio com o príncipe D. João, aos 10 anos de idade. Eles assistiram às abdicações ao trono espanhol e ao cativeiro do rei Fernando VII, irmão da Infanta, nas mãos de Napoleão Bonaparte entre 1807 e 1814. Pessoa vista sob uma série de lentes de análise na literatura, na produção cinematográfica, nos materiais didáticos e acadêmicos, Carlota Joaquina era uma princesa espanhola que partia para o Rio de Janeiro em meio às turbulências ocorridas com seus familiares na Europa.

Diversas vezes apresentada como uma mulher “ambiciosa, conspiradora e dona de um caráter audaz e temerário”, a Infanta espanhola assumiu um papel importante no decorrer dos problemas enfrentados pela Espanha e, consequentemente, pelo Império espanhol após a deposição de Fernando VII. Situação até aquele momento inesperada, o trono vacante tornou-se problemático aos súditos do rei tanto no âmbito das relações internas de poder como no conjunto mais amplo das relações internacionais; isso, por sua vez, garantiu novas possibilidades de representação no meio político e permitiu que a figura de Carlota Joaquina se apresentasse como uma opção de poder frente a um governo estrangeiro. Na historiografia brasileira, o trabalho de Francisca Nogueira de Azevedo (2003) mostra Carlota Joaquina como personagem político importante: de uma mulher marcada por uma visão excêntrica e destinada à alcova, descortina-se uma mulher com poder político, ciosa de suas prerrogativas monárquicas e atuante.

Este momento de protagonismo político remete às aspirações desta mulher em torno da manutenção de sua linhagem, do ordenamento social e das relações de poder com base na lógica do Antigo Regime. Ao se colocar como herdeira do trono espanhol, em substituição ao seu irmão, Carlota Joaquina abria outra possibilidade de governo para seus súditos, forma esta abraçada por alguns e rechaçada por outros em nome de projetos políticos mais ou menos audaciosos. A diplomacia aparece como aliada importante a projetos políticos de médio e longo prazo, os quais envolviam tanto o continente europeu quanto a América. Portanto, uma das alternativas vigentes para a Infanta era se portar enquanto depositária da soberania espanhola para pleitear a Coroa e, consequentemente, o império colonial hispânico. Isso, por sua vez, nos permite o afastamento do senso comum com relação a princesa espanhola, ainda que a mesma seja limitada pelas questões de gênero de seu tempo.

O trabalho de Marcela Tervanasio, especialista em história política argentina e ibero-americana nas primeiras décadas do século XIX, remete-nos a um universo conspiratório e intrigante cujo epicentro era Carlota Joaquina.

Observar a princesa enquanto objeto nos coloca diante de um tema importante, porém pouco estudado – à exceção da pesquisa de Francisca Nogueira de Azevedo, citada anteriormente. Os “silêncios” historiográficos em torno desta figura emblemática foram acumulados ao longo dos anos, de modo que a mesma se tornou desprovida de importância em inúmeras obras.

Ao procurar afastar-se desta leitura, repleta de preconceitos, especialistas têm repensado o carlotismo como parte de série de redes que uniram as monarquias ibéricas tanto na América quanto na Europa. Este parece ser o maior esforço de Tervanasio em seu livro: ressaltar uma espécie de geografia em torno das repercussões do carlotismo e – por que não? – das possibilidades (reais ou ilusórias) de uma mulher assumir o poder na monarquia espanhola. Ao nos apresentar uma leitura dinâmica e conectada dos processos históricos, numa relação de ir à Europa e vir para a América e vice-versa, a autora ressalta como as ideias da Infanta espanhola incidiram em conflitos importantes para um mundo contemporâneo em construção: absolutismo versus liberalismo; o poder das Juntas provinciais versus a regência em nome do Rei e, não menos importante, colonialismo versus revolução.

Dentro do campo da história política e em meio à série de escolhas teórico-metodológicas efetuadas pela autora, o livro pode ser tratado em partes, embora seja dividido em capítulos. Um primeiro momento consiste na apresentação do trono vacante e como a natureza jurídica espanhola tratou da questão nos idos de 1808. O decorrer do texto nos aponta quais possibilidades a princesa teria numa situação inesperada como aquela. Já num segundo momento, a ideia de soberania aparece como elo fundamental ao projeto carlotista em oposição às outras opções de governo para a Espanha, representadas pelas Juntas provinciais. Os capítulos 2 e 3 se entrelaçam no sentido de tratar da discussão sobre a soberania na América e na Península na medida em que, em meio aos conflitos de autoridade e à instabilidade política vivida, a figura de Fernando VII foi elevada a um patamar de Rei amado e desejado, ao passo que a América hispânica passava a ser vista como parte cada vez mais importante do Império. Assim, a presença da Infanta na América era crucial aos interesses espanhóis e também lusitanos, pois o Rio da Prata era uma região estratégica aos objetivos geopolíticos da dinastia dos Bragança.

Gradualmente, a formação de uma identidade política e institucional entrava em oposição às justificativas baseadas em direitos dinásticos, destacando-se as fragilidades do projeto de Carlota Joaquina no conjunto do Império espanhol. A ideia de “americanizar o império” era vista como uma ameaça às relações de poder estabelecidas entre a Espanha e suas colônias, subvertendo a ordem colonial ao ponderar a possibilidade de uma princesa assumir a regência na América e, por conseguinte, disputar direitos ao trono no futuro. Tais inquietações foram expressas desde manifestos até ações de espionagem para burlar a busca de apoio a uma regência sediada na América. Nesta linha de raciocínio, os diversos interesses dos impérios atlânticos europeus estavam imbricados, e o apoio ou não a Carlota Joaquina era interpretado de distintas formas.

Em continuidade a uma dimensão geográfica e espacial dos impactos do carlotismo, Tervanasio dedica dois capítulos à América: um ao conjunto do continente e outro especificamente à cidade de Buenos Aires. Enquanto seus projetos foram rechaçados por muitos espaços coloniais, na cidade de Buenos Aires, uma parte da elite portenha passou a ser favorável ao possível reinado de Carlota Joaquina. Dentre estes membros, destaca-se a figura de Manuel Belgrano, um dos artífices do processo de independência, em 1810. Especificamente no capítulo 4, “Las dos máscaras de la monarquía”, Tervanasio se debruça sobre os sentidos da palavra independência a fim de revisar pressupostos da historiografia tradicional inspirados na concepção de que, em nome do rei Fernando VII, os sentimentos de independência eram encobertos.

A perspectiva de um sentimento de independência e a ideia de uma nacionalidade preconcebida têm sido refutadas na produção historiográfica dos últimos anos. Contudo, a percepção dos apoios angariados pelo projeto de regência espanhola na América nos mostra a viabilidade de uma terceira via de governabilidade, ainda que mantendo intactas as estruturas e a ordem colonial.

Tervanasio nos mostra como a imprensa, os políticos locais e a princesa levaram a sério esta terceira via de governabilidade. Uma “guerra de papéis” ressaltando os prós e contras da regência mostrava o empenho de muitos em apoiar ou destruir o projeto. O receio do domínio dos Bragança, sobretudo na região meridional, era importante, porém não se apresenta como única chave de interpretação dos interesses envolvidos pelas elites criollas locais e os peninsulares na Espanha.

No decorrer do capítulo 4, um dos mais interessantes do livro, percebemos como foi possível a construção de uma retórica política para que Carlota Joaquina partisse do Rio de Janeiro em direção a Buenos Aires a fim de ser coroada regente no Rio da Prata. Porém, os efeitos da revolução de 1810 contribuíram para pensar o impacto das propostas de regência da Infanta no seio dos conflitos locais. A regência passava a ser, por um lado, um mal menor se comparado à criação de uma Junta em nome de Fernando VII na capital do Prata. Por outro, esse mal menor não garantia sucessos para a via reformista, o que fez com que os maiores representantes do carlotismo se transformassem em líderes do processo revolucionário e, consequentemente, depositários da soberania do rei.

No último capítulo se revela o impulso da Infanta em realizar seu propósito de assumir seu lugar na Península, ocupando o trono de seu irmão, sem abrir mão do restante do Império já envolvido pelos movimentos de independência. Nesse sentido, antes de realizar uma tentativa de golpe de Estado, Carlota Joaquina procurava manter a legitimidade do irmão dentro dos limites que ela conhecia e em que fora formada: a defesa da linhagem, da família e da casa, elementos estes diminuídos pelos efeitos das ondas liberais e pela perspectiva de transformação social. O retorno de Fernando VII ao poder, em 1814, “apagou” os anseios do projeto de Carlota Joaquina, que se resignara à sua posição anterior. Contudo, o retorno do rei abria uma nova luta tanto na Espanha quanto na América: restauração versus revolução.

Distante de ser uma biografia narrativa e factual, o livro nos desperta para o labirinto de possibilidades nas quais Carlota Joaquina estava política e diplomaticamente inserida. Por um viés político, a princesa estava diante de possibilidades concretas de governar na América, o que era sumamente interessante para o propósito de união das coroas ibéricas, invertendo a lógica das relações coloniais. Diplomaticamente, a irmã de Fernando VII buscava conferir legitimidade ao seu projeto de governo ao assegurar que o rei reassumiria o poder tão logo saísse do cativeiro, evidenciando as desconfianças em torno de sua figura feminina e, também, em torno do conjunto dos Bragança e seus interesses expansionistas, destacadamente no Rio da Prata. Ao longo do livro, podemos observar uma série de escolhas efetuadas pela princesa no intuito de proteger os seus interesses naqueles anos incertos.

A incerteza é, para fins deste livro, a pedra de toque para a compreensão do período e, ao mesmo tempo, evidencia o quanto o carlotismo era um projeto político passível de ser implantado no mundo colonial hispano-americano e não uma mera conspiração política contra o rei. Os caminhos percorridos pela princesa para galgar o poder e o retorno de Fernando VII ao poder nos remetem a um labirinto onde, ao final do seu percurso, um monstro os espera: a crise dos valores coloniais e do poder absoluto.

Referências

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CARVALHO, J.M. de. 2008. D. João e as histórias dos Brasis. Revista Brasileira de História, São Paulo, 28(56):551-572.

https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000200014 CHIARAMONTE, J.C. 2007 [1997]. Ciudades, provincias, estados: orígenes de la Nación Argentina, 1800-1846. Buenos Aires, Emecé. 645 p.

CHUST, M. 2008. Reflexões sobre as independências ibero-americanas.

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https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.v0i159p243-262 HALPERÍN-DONGUI, T. 2005 [1972]. Revolución y guerra: formación de una élite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires, Siglo Veintiuno Argentina. 480 p.

LUSTOSA, I. 2008. O período joanino e a eficiência analítica de alguns textos desbravadores. Revista da Casa de Rui Barbosa / Fundação, 2(2):353-371.

MELLO, E.C. de. 2004. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo, Ed. 34, 264 p.

PAMPLONA, M.A.; MADER, M.E.N. (org.). 2007. Revoluções de independência e nacionalismos nas Américas: região do Prata e Chile.

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PIMENTA, J.P.G. 2002. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata: 1808-1828. São Paulo, Edusp. 266 p.

QUIRÓS, P.G.B. de (org.). 2015. Independencias ibero-americanas: nuevos problemas y aproximaciones. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 383 p.

SCHULTZ, K. 2008. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 444 p.

SLEMIAN, A.; PIMENTA, J.P.G. 2008. A corte e o mundo: uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo.

Notas

2 Alguns trabalhos importantes nessa discussão são Lustosa (2008), Carvalho (2008), Slemian e Pimenta (2008) e Schultz, Kirsten. Versalhes Tropical: Império, monarquia e a corte real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (2008). Uma posição crítica ao processo de independência, ressaltando que a vinda da corte lusitana atendeu aos interesses do Centro-Sul em detrimento do Nordeste, é a do historiador e diplomata Evaldo Cabral de Mello (2004). Outra iniciativa importante e de debates profícuos foi o Congresso Internacional 1808: a corte no Brasil, realizado na Universidade Federal Fluminense, março de 2008.

3 Halperín-Dongui (2005 [1972]); Chiaramonte (2007 [1997). Para refletir sobre a temática das identidades e construção de nacionalismos nas Américas, ver também Pamplona e Mader (2007). Alameda. 180 p.

Hevelly Ferreira Acruche – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo São Francisco de Paula, 1, Centro, 20051-070 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: hfacruche@gmail.com.

História, tempo e espaço / Caminhos da História / 2019

Prezadas (os) leitoras (es),

O dossiê desta edição da Revista Caminhos da História, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes-MG), propõe analisar a temática “História, tempo e espaço”. Trata-se de um dossiê organizado pelos geógrafos Dr. Emerson Costa de Melo (Doutor em Geografia pela UERJ) e Dra. Aline da Fonseca Sá e Silveira (Doutora em Geografia pela UERJ e Professora do CEFET-RJ).

Os artigos do dossiê abordam temáticas caras à relação interdisciplinar entre os campos da Geografia e da História, principalmente quando se aproximam o espaço geográfico e o tempo histórico em abordagens e perspectivas que tornam centrais temas como região, territórios, margens e fronteiras, por exemplo. Neste sentido, os artigos aqui selecionados analisam os territórios e revisões de propriedade na práxis de colonização da Companhia de Jesus na Província do Paraguai entre os séculos XVII-XVIII; a economia de abastecimento e pequeno escravista do Vale do Macacu no século XVIII; a geografia social da morte nas práticas de sepultamento na cidade de São João Del-Rei, no século XIX. Questões de ordem técnica, teórica e metodológica também são enfatizadas em discussões sobre modelos metodológicos de espacialização dos registros paroquiais de terras e na relação entre a circularidade cultural e os agenciamentos territoriais.

Esta edição conta, também, com sua seção de artigos em fluxo contínuo. Apresentamos, de tal modo, estudos que apontam a relação “cor da pele / cidadania” nas Constituições da Venezuela (1811) e do Brasil (1824), reflexões sobre a figura do Pe. Diogo Antônio Feijó e o catolicismo como religião civil e, por último, as vivências entre boiadeiros e boiadas no Noroeste paulista.

A imagem que ilustra a capa da edição é uma pintura produzida pelo ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988), intitulada Paisagem com carro de boi, pertencente à Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Esperamos que todxs tenham uma excelente leitura!

Atenciosamente,

Ester Liberato Pereira,

Rafael Dias de Castro,

e Comissão Editorial


PEREIRA, Ester Liberato; CASTRO, Rafael Dias de. Editorial. Caminhos da História, Montes Claros, v. 24, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

É lugar comum a divulgação da imagem do Brasil e dos brasileiros como amigáveis, respeitosos, hospitaleiros e, acima de tudo, pacíficos. A imagem de uma nação pacífica, detentora de uma natureza edênica, terra do samba, da mulata sensual e do futebol, tornou-se, por assim dizer, cartão postal do país, a qual definiria nosso lugar em um mundo pretensamente civilizado e heteronormativo. Uma propaganda, sem dúvida, que naturaliza o Brasil como uma terra cheia de alegrias e prazeres exóticos. Leia Mais

Lacan para historiadores | Danieli Machado Bezerra

Se buscássemos um tema constantemente presente na trajetória de pesquisa da historiadora Danieli Bezerra, certamente a psicanálise seria logo destacada. Sua tese de doutoramento, publicada pela editora Appris em 2018 com o título de Lacan para historiadores, aprofunda seu interesse debruçando-se nas teorias de Jacques Lacan (1901 – 1981), e nos leva a um diálogo interdisciplinar entre história e psicanálise2. Esta desafiadora obra vem enriquecer estudos de teoria da história, e será aqui apresentada ao leitor. Leia Mais

Estranho à nossa porta | Zygmunt Bauman

O presente trabalho de Zygmunt Bauman, é muito rico e capaz de nos informar e, mais que isto, capaz de tornar compreensível um tema contemporâneo, que clama por uma atenção e solução. O tema abordado pelo eloquente sociólogo e filósofo polonês (1925- 2017) se refere à questão da “crise migratória”, que em suas próprias palavras “inunda os noticiários” que comunica seu “avanço sobre a Europa”. Leia Mais

Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80 – SANDKÜHLER; BLANKE (ZG)

SANDKÜHLER, Thomas; BLANKE, Horst Walter (eds.). Historisierung der Historik. Jörn Rüsen zum 80. Geburtstag, Wien ; Köln ; Weimar : Böhlau , 2018. WAGNER, Helen. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 214-218, 2019.

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Geschlechterkonstruktionen. Gender im Geschichtsunterricht – KUHN; WINDUS (ZG)

KUHN, Bärbel; WINDUS, Astrid. (eds.). Geschlechterkonstruktionen. Gender im Geschichtsunterricht. St. Ingbert : Röhrig Universitätsverlag, 2017. Resenha de: LÜCKE, Martin.  Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 209-211, 2019.

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Postmigrantische Perspektiven. Ordnungssysteme, Repräsentation, Kritik – FAROUTAN et al (ZG)

FOROUTAN, Naika; KARAKAYALI, Juliane; SPIELHAUS, Riem (eds.). Postmigrantische Perspektiven. Ordnungssysteme, Repräsentation, Kritik. Frankfurt : Campus Verlag, 2018. Resenha de: VÖLKEL, Jana. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 207-209, 2019.

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Frühes historisches Lernen. Projekte und Perspektiven – FENN (ZG)

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Deserteur-Denkmäler in der Geschichtskultur der Bundesrepublik Deutschland – DRÄGER (ZG)

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Geschichte im Internet – DANKER; SCHWABE (ZG)

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Die NS-Volksgemeinschaft. Zeitgenössische Verheißung, analytisches Konzept und ein Schlüssel zum historischen Lernen? – DANKER; SCHWABE (ZG)

DANKER, Uwe; SCHWABE, Astrid (eds.). Die NS-Volksgemeinschaft. Zeitgenössische Verheißung, analytisches Konzept und ein Schlüssel zum historischen Lernen? Göttingen : V&R unipress GmbH, 2017. Resenha de: BUNNENBERG, Christian. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 199-200, 2019.

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Holocaust Education 25 Years On. Challenges, Issues, Opportunities – PEARCE; CHAPMAN (ZG)

PEARCE, Andy; CHAPMAN, Arthur (eds.). Holocaust Education 25 Years On. Challenges, Issues, Opportunities. London : Routledge , 2019. Resenha de: SANDKÜHLER, Thomas. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 197-198, 2019.

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Medien analysieren im Geschichtsunterricht. Kompetenzorientierte und binnendifferenzierte Aufgaben für Karten, Bilder, Plakate, Karikaturen, Schemata, gegenständliche Quellen, Statistiken, Texte und Lieder – BUCHSTEINER et al (ZG)

BUCHSTEINER, Martin; LORENZ, Tobias; SCHELLER, Jan. Medien analysieren im Geschichtsunterricht. Kompetenzorientierte und binnendifferenzierte Aufgaben für Karten, Bilder, Plakate, Karikaturen, Schemata, gegenständliche Quellen, Statistiken, Texte und Lieder. Frankfurt/M.: Wochenschau Verlag, 2018. Resenha de: PETERS, Jelko. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 195-196, 2019.

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Holocaust Education in der heterogenen Gesellschaft. Eine Studie zum Einsatz videographierter Zeugnisse von Überlebenden der nationalsozialistischen Genozide im Unterricht – BRÜNING (ZG)

BRÜNING, Christina Isabel. Holocaust Education in der heterogenen Gesellschaft. Eine Studie zum Einsatz videographierter Zeugnisse von Überlebenden der nationalsozialistischen Genozide im Unterricht. Frankfurt : Wochenschau Verlag , 2018. Resenha de: KRÖSCHE, Heike. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 193-195, 2019.

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Deutschland und Frankreich. Geschichtsunterricht für Europa / Fance – Allemagne. L`enseignement de l`histoire pour l`Europe – BENDICK (ZG)

BENDICK, Rainer; BONGERTMANN, Ulrich; CHARBONNIER, Marc; COLLARD, Franck; STUPPERICH, Martin; TISON, Hubert (eds.). Deutschland und Frankreich. Geschichtsunterricht für Europa / Fance – Allemagne. L`enseignement de l`histoire pour l`Europe. Frankfurt/M. : Wochenschau Verlag, 2018. Resenha de: FREYBERGER, Bert. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 191-192, 2019.

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Schulpraktika im Fach Geschichte betreuen. Konzeption und Reflexion fachdidaktischer Lehrveranstaltungen – ALBERS et al (ZG)

ALBERS, Helene; HINZ, Felix; MEYER-HAMME, Johannes; WOSNITZA, Christopher Matthias. Schulpraktika im Fach Geschichte betreuen. Konzeption und Reflexion fachdidaktischer Lehrveranstaltungen. Frankfurt/M.: Wochenschau Verlag , 2018. Resenha de: VEH, Markus. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 190, 2019.

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1968 an der Universität Opole, der Universität Olomouc und an der Pädagogischen Hochschule Hiedelberg. Ein trinationaler Blick in “provinzieller” Perspektive – DEGNER; ŚWIDER (ZG)

DEGNER, Bettina;  ŚWIDER, Małgorzata (eds.). 1968 an der Universität Opole, der Universität Olomouc und an der Pädagogischen Hochschule Hiedelberg. Ein trinationaler Blick in “provinzieller” Perspektive. Heidelberg : Mattes Verlag, 2018. Resenha de: LEINUNG, Silja. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 188-189, 2019.

Acesso somente pelo link original

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Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, v.13, n.1 2019.

ERRATA: O Editor da Revista de História Comparada informa que foi incluída, em 08 de agosto de 2019, a versão revisada do artigo “EXPLAINING STATE FORMATIONS AND TRANSFORMATIONS IN GLOBAL HISTORY, C.1000 – PRESENT”, de Roy Bin Wong.

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Vozes, Pretérito & Devir. Teresina, v.8, n.1, 2019.

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Editorial

Dossiê Temático

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Monografias: resumos expandidos

Chamada de Artigos

Sobre política capixaba na primeira República | Nara Saletto

O Arquivo Público do Estado do Espírito Santo lançou, na coleção Canaã, relevante contribuição da historiadora Nara Saletto sobre a Primeira República no Espírito Santo. A pesquisadora possui destacada produção historiográfica a respeito da história regional, especialmente sua dissertação de mestrado, intitulada “Transição para o trabalho livre e pequena propriedade no Espírito Santo”, e tese de doutorado, “Trabalhadores nacionais e imigrantes no mercado de trabalho do Espírito Santo (1888-1930)”.

Nas duas últimas décadas, a historiografia colocou as investigações de Nara Saletto entre os estudos clássicos sobre o Espírito Santo. No livro publicado pela coleção Canaã em 2018, a pesquisadora oferece ao leitor novos subsídios para a compreensão da história capixaba na Primeira República. E, uma vez mais, ela apresenta estudo seminal sobre nossa história regional. Leia Mais

Questões Étnicas Raciais na formação do Professor / Formação Docente / 2019  

A Revista Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores (RBPFP) – é uma publicação do Grupo de Trabalho Formação de Professores (GT8), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) publicada em parceria da Autêntica Editora. Esta publicação refere-se ao número 22, do volume 11 referente aperiodicidade de Setembro – Dezembro de 2019.

Para esse número que contamos com a publicação de um dossiê de pesquisas sobre as questões Étnicas Raciais na formação do Professor, organizado pelo Prof. Dr. Erisvaldo Pereira dos Santos, quem divide comigo a apresentação desta publicação. Desta forma os artigos que compõem esse número são reflexões de temáticas do referido dossiê e de artigos da demanda espontânea, oriundos de diversas da área da formação e do ensino.

A partir da promulgação da Lei Federal nº 10.639/2003, a qual alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394) para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e da instituição das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” pelo Conselho Nacional de Educação em 2004, nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil houve um incremento de projetos de pesquisa sobre as relações étnico-raciais e o problema do racismo no Brasil. O nosso dossiê sobre formação de professores e questões étnico-raciais traz cinco (5) trabalhos que são resultados de pesquisas realizadas em Programas de Pós-Graduação em Educação nos estados de Minas Gerais, Maranhão e Pernambuco. Essas pesquisas têm como objetivo principal oferecer aportes teóricos, críticos e pedagógicos para a formação de professores. Além disso, os trabalhos nos oferecem um nível de conhecimento sobre os limites e os desafios da implementação das questões étnico-raciais no currículo escolar.

O primeiro artigo discute a questão das relações étnico-raciais na educação infantil a partir do trabalho de pedagogas do Município de Governador Valadares em Minas Gerais. Trata-se de uma investigação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto, sob a nossa orientação e no âmbito do Grupo de Pesquisa Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais. Os resultados da pesquisa aproximam-se de outras investigações sobre as relações étnico-raciais na Educação Infantil, remetendo para o campo de formação de professores alguns desafios relacionados às bases teóricas e também às práticas pedagógicas desenvolvidas.

O segundo artigo aborda a questão da formação docente e relações étnico-raciais, diante do desafio da implementação da Lei nº 10.639/2003 e do desenvolvimento de uma educação antirracista. Trata-se de um trabalho de pesquisa realizado sob a orientação do professor Dr. Antônio de Assis Cruz Nunes do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica da Universidade Federal do Maranhão, no âmbito do Grupo de Estudo e Pesquisa Investigações Pedagógicas Afro-brasileiras da Universidade Federal do Maranhão. A educação das relações étnico-raciais é compreendida em uma perspectiva intercultural. A educação antirracista é compreendida como um pilar para a equidade social que valorize o debate intercultural.

O Terceiro artigo aborda a temática da formação continuada para a diversidade étnico-racial discutindo suas repercussões nas práticas pedagógicas de professores da Rede Municipal de Educação do Município de Contagem em Minas Gerais. Trata-se de trabalho que teve como objetivo analisar as repercussões do curso “Grupo de Trabalho Educação para as Reações Étnico-Raciais”, coordenado pela professora Dra. Silvani dos Santos Valentimdo Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Os resultados obtidos evidenciaram uma rede de troca de informações, conhecimentos e experiências, oportunizando ressignificar saberes que resultaram em práticas pedagógicas antirracistas.

O quarto artigo também aborda a Lei nº 10.639/2003 e alguns percalços para sua implementação nas escolas da partir do atendimento voltado para o ensino das relações étnico-raciais no Maranhão. Trata-se de uma pesquisa orientada pela professora Dra. Vanja Maria Dominices Coutinho Fernandes do Programa de Pós- Graduação em Gestão do Ensino na Educação Básica da Universidade Federal do Maranhão. Os resultados demonstram que no Estado Maranhão, a ação de formação de professores mais significativa para a área das relações étnico-raciais vai se configurar em um curso de licenciatura em nível superior denominado de “Curso de Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiro”, oferecido pela universidade supracitada, no qual se oferecem aportes legais, teóricos e metodológicos para superar os percalços e desafios da implementação da Lei supracitada.

O quinto é ultimo artigo deste dossiê aborda os caminhos para a desconstrução do racismo epistêmico no ambiente escolar a partir da Lei nº 10639/2003. Trata-se de uma pesquisa orientada pela professora Dra.

Denise Maria Botelho do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Nos resultados da pesquisa, o trabalho interdisciplinar com bases nas discussões sobre colonialidade foi evidenciado como um meio importante para a desconstrução do racismo epistêmico e religioso no seio do ambiente escolar, demonstrando como para além do trabalho interdisciplinar, o racismo preciso ser estudando sob a perspectiva da interseccionalidade, pois existem múltiplos fatores que interferem e agravam o problema do racismo na sociedade.

Ao socializar os resultados dessas pesquisas, pretendemos contribuir para que a temática das relações étnico-raciais na formação docente e no ambiente escolar continue sendo investigada a partir de múltiplas abordagens teóricas e metodológicas, a fim de que o racismo seja enfrentado e combatido e a interculturalidade seja afirmada como um valor fundamental nos processos de formação humana para o bem viver na sociedade brasileira.

Os demais artigos, oriundos de demanda espontânea da revista compõem outro corpus de pesquisa e estudos de variadas abordagens no campo do Ensino e da Formação de Professores que enriquecem, sobremaneira, o debate sobre a formação do professor neste número que ora publicamos. A primeira pesquisa traz para nosso campo de investigação os resultados de uma pesquisa sobre a formação de professores na Colômbia para a Educação Básica. Dra. Marlén Rátiva-Valendia, apresenta os resultados de sua pesquisa sobre as Escolas Normais Superiores na Colômbia, que formam em cursos complementares, os professores para desempenhar a docência na transição da educação básica primaria para os estudos secundários. No que concerne ao sistema brasileiro – Fundamental II.

As pesquisas seguintes trazem temas novidosos para o campo da Formação de Professores. Trata-se de um debate pouco veiculado na área, a saber: a Formação de Professores para o trabalho com estudantes com altas capacidades/Superdotação. A pesquisa realizada pela Profa. Dra. Carina Rondini, especialista no campo da inclusão da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Rico Claro, na qual busca compreender o desafio desta temática na formação professores.

O outro artigo da professora Geilsa Costa Santos Baptista e sua orientanda Laryssa Santos da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) BA, discute a Monitoria como espaço de formação inicial do docente.

O estudo no campo da Biologia tem com foco a questão da diversidade cultural. Tema bastante original para a formação de professores, inicial e continuada.

A reflexão é seguida por mais dois (2) artigos, fundamentados na perspectiva histórica e sociológica, sobre as problemáticas da carreira docente e suas implicações na vida profissional: As questões das políticas de avaliação da profissão e do trabalho docente e as de inserção no mundo sindical da profissão professor.

Nesse bloco, a primeira pesquisa realizada no locus da experiência portuguesa, os autores. Macedo, Paixão e Tomaz da Universidade de Aveiro, Portugal, analisam e identificam fatores inerentes ao processo de avaliação dos professores que influenciam o Desenvolvimento Profissional (DP) dos docentes em exercício, assim como apresentam as potencialidades deste tipo de avaliação docente para o DP do professor. O segundo texto, é uma pesquisa de cunho históriográfico da lavra do professor Carlos Bauer e seu orientando Luiz Paiva que estudam de maneira comparada a inserção sindical de professores no Argentina, Brasil, Colômbia e México. O artigo está estruturado a partir de depoimentos de docentes participantes da vida sindical e política das entidades sindicais. A análise da atividade sindical e política prioriza o período de implementação das contrarreformas neoliberais na educação durante a década de 1990.

Agradecemos atenção do leitor e o convidamos à leitura.

José Rubens Lima Jardilino – Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Belo Horizonte, Minas Gerais – Brasil.

Erisvaldo Pereira dos Santos. Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mariana, Minas Gerais – Brasil.


JARDILINO, José Rubens Lima; SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Apresentação. Formação de Professores. Belo Horizonte, v.11, n.22, p.9-12, set./dez. 2019. Acessar publicação original [IF].

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Reformulação dos Cursos de Licenciaturas no Brasil: Analises de algumas regiões / Formação Docente / 2019

A Revista Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisa sobre Formação de Professores (RBPFP) é uma publicação do Grupo de Trabalho Formação de Professores (GT8), da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) publicada em parceria da Autêntica Editora. Esta publicação refere-se ao número 21, o segundo número do volume 11 que abrange a periodicidade de Maio-Agosto de 2019.

Este número apresenta artigos organizados em torno da discussão sobre as licenciaturas, portanto um número temático em que o foco incide sobre a reformulação dos cursos de licenciatura. A proposição deste Dossiê “Reformulação dos Cursos de Licenciatura” traz para o debate os encaminhamentos institucionais desencadeados pela Resolução Nº 2, de 1º de julho de 2015, que dispõem sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada.

Consideramos de fundamental importância divulgar as iniciativas das universidades sobre as propostas em andamento de modo reforçar a pertinência de investigações sobre essas diretrizes e a socialização das propostas em torno dos cursos de licenciaturas de modo a fomentar o diálogo.

Os cursos de licenciatura constituem-se a formação básica do professor, portanto sua importância na profissionalização dos professores. Os artigos reunidos favorecem essa compreensão pois apresentam as reformulações desencadeadas em diferentes estados brasileiros.

A seguir apresentamos os artigos que compõem esse número da revista. Um dossiê com análise de algumas regiões do país: O artigo Reformulação de cursos de licenciatura na Bahia: interesses e desafios subjacentes situa a discussão da formação no bojo das políticas educacionais, considerando um contexto do sistema capitalista neoliberal. Retrocede as políticas dos anos de 1990, em que se firmam os governos neoliberais.

Depois apresenta dados específicos da pesquisa realizada sobre reformulações naquele estado.

O segundo artigo Formação inicial de professores para a educação básica em uma universidade tecnológica apresenta a evolução do processo de organização para a reformulação dos cursos de licenciatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná.

A reformulação dos cursos de Pedagogia neste mesmo estado é abordada no artigo Os cursos de licenciaturas em pedagogias das universidades públicas do Estado do Paraná destacando que os projetos dos Cursos de Licenciatura em Pedagogia das universidades públicas do Paraná pautam-se na formação do pedagogo, numa perspectiva de totalidade do trabalho pedagógico, prevendo a atuação nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; Magistério para a Educação Infantil; Gestão Pedagógica na Educação Formal e não-formal bem como atuação nos Magistérios de Matérias Pedagógicas.

O curso de Pedagogia também é alvo da pesquisa relatada no artigo Desafios da formação docente: o curso de pedagogia da faculdade de formação de professores (FFP/UERJ) trata-se de uma investigação exploratória que tem como objetivo compartilhar reflexões acerca do processo de reformulação do curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores (FFP/UERJ) O exame de um curso de licenciatura no campo das artes é feito no artigo Formação do professor de dança: em análise o currículo do primeiro curso de licenciatura de Santa Catarina. O referido artigo discute a implantação do primeiro curso de dança na região sul, trazendo para o debate importantes elementos para a formação de professores no campo das artes (música, dança, teatro, artes visuais) para a educação básica. O artigo faz sua análise com base na legislação sobre o tema.

E artigo A formação docente na educação profissional e tecnológica no IFNMG estuda a formação do professor para esta modalidade de educação. Trata-se de pesquisa que analisou como acontece a formação dos professores que atuam como formadores nas diferentes modalidades e níveis de ensinoem especial no IFNMG/Campus Januária.

A definição da direção do estudante pelo o curso de licenciatura é tratada no artigo A Escolha pela licenciatura em cursos com Área Básica de Ingresso (ABI) apresenta um estudo em que a escolha é realizada pelos estudantes no decorrer do curso. A pesquisa está ambienta no curso de Ciências Biológicas do sul do país e investiga as motivações da escola dos alunos pela licenciatura.

Deste modo, o dossiê expressa contribuições importantes para os cursos de formação básica dos professores considerando que a reformulação é um esforço para que as finalidades dos cursos superem as dicotomias da organização curricular, bem como estabeleçam articulação entre a formação e a prática docente e elevem o estatuto da profissionalização docente.

O dossiê é seguido de dois artigos do fluxo de submissões de artigos à revista. Ambos estão dentro da temática geral do dossiê. O primeiro trata-se de um estudo, a partir de trajetórias de educadores, sobre a sua formação inicial no curso de pedagogia e a preparação para atuação no ensino multisseriado. O segundo artigo trás a discussão sobre a formação do professor de Educação Física, a partir de um conteúdo pouco veiculado no campo da formação, a saber, a análise das representações do professor por meio das imagens utilizadas nos websites de sete universidades brasileiras.

Com esse corpus de trabalhos originados de pesquisas sobre a formação de professores no Brasil – Licenciaturas – apresentamos ao público a produção do referido campo, desejando boa leitura e que esse material possa auxiliar, inspirar as pesquisas e reflexões vindouras ou em curso neste campo de pesquisa no Brasil.

José Rubens Lima Jardilino

Joana Paulin Romanowski


JADILINO, José Rubens Lima; ROMANOWSKI, Joana Paulin. Reformulação dos Cursos de Licenciaturas no Brasil: Analises de algumas regiões. Formação Docente. Belo Horizonte, v.11, n.21, p.9-10, mai./ago. 2019. Acessar publicação original [IF].

História da Fronteira Sul – RADIN et al (HU)

RADIN, J. C.; VALENTINI, D. J.; ZARTH, P. A. (org.). História da Fronteira Sul. Chapecó: Editora UFFS, 2016. 352 p. Resenha de SCHMITT, Ânderson Marcelo. Uma História da(s) fronteira(s): possibilidades de análise sobre uma região limítrofe. História Unisinos 23(1):128-132, Janeiro/Abril 2019.

Este livro é uma coletânea de 16 textos que fazem um apanhado de vários assuntos considerados importantes para a história e para a memória do sul do Brasil. Os méritos de uma proposta neste sentido, em um período em que cada vez mais se discute a internacionalização – ou dissolução – das fronteiras geopolíticas e do conhecimento, são vários. A construção do Estado-nação brasileiro foi possível, sobretudo, pela amálgama de locais diversos em um mesmo aparato administrativo, processo este que redimensionou pátrias locais do Antigo Regime português, em um transcurso não necessariamente pacífico. As explicações para características e problemas atuais de diferentes regiões brasileiras podem ser encontradas, desta forma, em diversos recortes temporais, variando entre a curta e a longa estrutura. Esta é a proposta geral em que se pretende que seja pensada a fronteira sul no livro organizado por Radin, Valentini e Zarth.

A fronteira é tema de pesquisa recorrente na História. No entanto, quando o historiador norte-americano Frederick Turner ressignificou a fronteira nos seus estudos sobre a expansão para o oeste estadunidense, os limites deixaram de estar conectados exclusivamente por questões políticas e passaram a possuir outras abordagens (Knauss, 2004). A Frontier Thesis, de Turner, assim como a obra aqui apresentada, aposta em fatores econômicos, culturais e sociais para a fluidez das fronteiras. Vale a pena se registrar a existência de poucos estudos sobre esta região chamada de fronteira sul do Brasil. Projetos neste sentido têm surtido bastante sucesso, porém, tratam de temáticas ou regiões bastante específicas. As obras “História do campesinato na Fronteira Sul”, organizada por Paulo Zarth (2012); “Colonização, conflitos e convivências nas fronteiras do Brasil, da Argentina e da Paraguai” (2015), organizada por Delmir Valentini e Valmir Muraro, e, mais recentemente, “Big Water: The Making of the Borderlands between Brazil, Argentina, and Paraguay” (2018), de organização de Frederico Freitas e Jacob Blanc, são exemplos neste sentido. Desta forma, o livro aqui resenhado apresenta um pioneirismo ao tratar da fronteira sul a partir de uma abordagem multitemática. Os autores dos capítulos são reconhecidos por suas pesquisas, e ao agrupá-los se demonstrou que há uma coesão regional que tangencia as temáticas abordadas.

Por mais que não haja no livro uma divisão interna entre os temas abordados, é possível perceber interesses comuns implícitos entre os textos. O capítulo introdutório escrito por Paulo A. Zarth, por exemplo, faz uma profícua discussão teórica sobre a função da História, da memória, e sobre como a ideologia do progresso e o mito do vazio demográfico marcaram as identidades sulinas.

Ao demonstrar que a história regional também é uma “guerra de histórias”, ressalta a função das pesquisas acadêmicas e seu contraponto às histórias tradicionais escritas por historiadores diletantes e que por vezes predominam na criação do imaginário local e da cultura histórica de uma região. Adelar Heinsfeld, por sua vez, complexifica esta discussão e interpreta a existência, a função e os usos da fronteira. Heinsfeld destaca algo que se encontra nas entrelinhas de todo o livro: “As fronteiras e os países não estiveram sempre onde estão, bem como não existiram sempre. Ambos não são mais que construções da história humana, resultado e expressão de processos sociais” (p. 30). Interpreta-se que a fronteira-linha político-administrativa pode ser enganosa, escondendo pontos que devem ser abordados para além – ou através – delas.

Os capítulos de Valmir Francisco Muraro, Antonio Marcos Myskiw e Tau Golin acrescentam os elementos empíricos à discussão teórica sobre a fronteira. Muraro estuda a formação fronteiriça entre Brasil, Argentina e Paraguai, dando destaque, em um primeiro momento, à Questão de Palmas ou Misiones, embate diplomático entre Brasil e Argentina pelo controle do que hoje é uma vasta região entre o sudeste do Paraná e oeste de Santa Catarina, no início do período republicano. O autor salienta, com muita razão, a importância dos atores sociais presentes na região no século XIX e XX, buscando compreender a fronteira de acordo com o “sentido atribuído pelos indivíduos que ocupam, organizam, disputam ou convivem em determinados espaços geográficos próximos e pertencentes a países diferentes” (p. 168). Afasta-se, desta forma, da ideia de que a fronteira se construiu apenas por uma imposição política consubstanciada em acordos firmados entre governos.

O capítulo escrito por Antonio M. Myskiw frisa os acordos de construção da fronteira com os países platinos, indo também até a Questão de Palmas. Analisa como movimentos insurrecionais – como a Guerra dos Farrapos (1835-1845) – ou guerras externas nas quais o Brasil se envolveu diretamente – como a Guerra da Cisplatina (1825-1828) e do Paraguai (1864-1870) – foram importantes na delimitação territorial. Estes conflitos também tiveram influência nas relações entre líderes políticos dos países vizinhos e seus congêneres brasileiros. Porém, o principal mérito de sua análise é regressar até o período colonial para buscar as origens da ocupação europeia e dos acordos territoriais entre os impérios ibéricos, como o Tratado de Madrid, de El Pardo e de Santo Ildefonso.

Sem a compreensão destes acordos, torna-se impossível entender a conjuntura territorial que conformou a fronteira meridional na época da independência e que continuou a ser delimitada por quase um século. Quando trata dos conflitos em que o Brasil se envolveu durante o século XIX, Myskiw acaba, de forma implícita, por sugerir que o processo de formação do Estado brasileiro se deu por meio da preparação para estes embates fronteiriços. Aproxima- se, assim, do olhar lançado por Charles Tilly (1996) sobre os estados nacionais europeus – modelo seguido por diversos historiadores que analisam os conflitos bélicos na América Latina durante o século XIX.

Os acordos territoriais também foram pontos centrais do texto de Tau Golin, principalmente o Tratado de Madrid, assinado em 1750 por Espanha e Portugal. Ao analisar a atividade missioneira e a Guerra Guaranítica que desorganizou as diversas ocupações jesuíticas no Rio Grande do Sul, Golin enfatiza a resistência guarani contra a passagem para o outro lado do Rio Uruguai, conforme propunha o Tratado. Os exércitos ibéricos coligados conseguiram uma vitória paliativa, com chacinas – como a ocorrida em Caiboaté –, mas não obtiveram sucesso em transferir todos os guaranis aldeados, o que ocasionou a sua dispersão pelo território e miscigenação com o restante da população. Assim, “devido à difusão dos missioneiros, juntamente com parcelas que não se ‘cristianizaram’”, as populações do Sul do Brasil “passariam gradativa e lentamente por um contínuo processo de guaranização étnica e cultural” (p. 89).

Questões étnicas também estão expressamente presentes em outros três textos da coletânea. Jaisson T. Lino, a partir de contribuições tanto históricas quanto arqueológicas, vislumbrou a longa duração da ocupação do atual Sul do Brasil, datada de 12 mil anos atrás. Estes primeiros ocupantes eram caçadores-coletores nômades e foram sendo assimilados por grupos de matriz linguística jê e tupi-guarani, que começaram a chegar à região por volta de 2.500 anos atrás. Lino traz uma detalhada apreciação da cultura material destes povos, relatando os contatos ocorridos principalmente entre os guaranis, que seguiam os cursos dos principais rios, e os demais povos que já se faziam presentes na região. Entre eles os construtores dos cerritos, na campanha do Rio Grande do Sul, e dos sambaquis do litoral, que se supõe tenham sido assimilados culturalmente ou exterminados por meio de guerra. Ao adentrar no período histórico, o autor entende, à semelhança das conclusões de Tau Golin, que embora houvesse projetos que excluíam a presença indígena da sociedade, estes permaneceram até o presente: “apesar das concepções raciais etnocêntricas e preconceituosas forjadas pela intelectualidade brasileira desde o século XIX, na qual os índios deveriam com o tempo se integrar ao projeto de Estado-nação, dezenas de etnias indígenas continuam sua trajetória histórica no Brasil” (p. 106). Fica evidenciado que a disputa pelo território no Sul do Brasil se iniciou muito antes da chegada dos europeus, conquanto os significados dados à terra fossem muito diferentes dos atribuídos posteriormente.

As comunidades quilombolas no Sul do Brasil, mais particularmente em Santa Catarina, são o tema de Raquel Mombelli. A autora também dialoga com outra área do conhecimento – a Antropologia – para explicar o processo de reconhecimento de grupos quilombolas na região sul. Ao relatar como ideologias do branqueamento surgiram e forjaram um modelo de nação, Mombelli também reconhece que a própria historiografia contribuiu para o desenvolvimento de um racismo velado na sociedade, uma vez que a teoria – ou mito – da democracia racial defendia que existia uma harmonia e cordialidade nas relações raciais no Brasil. Ao demonstrar que existem quilombos reconhecidos ou que solicitam reconhecimento – 133 comunidades, segundo a autora – no Sul do Brasil, ajuda a comprovar que a mão de obra negra escravizada era utilizada em diversas atividades também no interior, como a historiografia recente vem apontando. Nos termos gerais da coletânea, um capítulo sobre a escravidão – suas relações intrínsecas, formas de dominação e resistência – poderia ter contribuído para a compreensão das relações étnicas existentes na fronteira sul da colônia ou do Império, uma vez que nos últimos anos diversas pesquisas vêm abordando este tema no Sul do país e/ou em suas regiões de fronteira. Pesquisas como a realizada por Gabriel Aládren (2012) ou a coletânea organizada por Beatriz Mamigonian e Joseane Vidal (2013) podem ser aqui lembradas.

Em seu texto, José C. Radin também reconhece a pluralidade étnica na fronteira sul do Brasil. Antes de passar a falar sobre seu tema principal – (i)migração alemã, italiana e polonesa –, o autor adverte que, além dos “imigrantes europeus, espanhóis, portugueses, alemães, italianos e poloneses, a história dessa região se fez com a participação de negros, caboclos e por povos indígenas” (p. 143). As imigrações europeias do século XIX foram motivadas, via de regra, pelas guerras, a escassez de emprego e terras, e pela instabilidade política. “Fazer a América” se tornou o sonho dos imigrantes. Entre os diversos destaques do texto de Radin, merece ser realçada a importância dada pelo autor à migração da segunda geração de colonos, que, a partir do início do século XX, seguiram para regiões ainda consideradas desabitadas pelos governantes. Assim se dão a atividade das empresas colonizadoras e os choques sociais e étnicos com grupos que habitavam a região do extremo norte do Rio Grande do Sul, o oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná há séculos – conflitos que ainda não foram totalmente resolvidos. O autor dá suporte, portanto, para que sejam pensados os movimentos sociais que surgiram durante a segunda metade do século XX, notadamente o Master, o MST e o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), e que buscaram democratizar o acesso à terra; acesso este que é central na discussão sobre imigração e migração destes colonos. Neste sentido, questões que em um primeiro momento podem ser consideradas étnicas se transformam em conflitos sociais muito mais complexos.

Por sua vez, o texto de Délcio Marquetti com Juraci B. L. da Silva e o de Gerson W. Fraga com Isabel R. Gritti lidam com questões que podem ser consideradas correlatas, e dizem respeito ao reconhecimento identitário dos sujeitos da fronteira sul. Marquetti e Silva estudam as características da cultura cabocla na região. O caboclo teria surgido da miscigenação entre portugueses, índios e negros e suas características foram constantemente negativadas. A desvalorização da figura do caboclo foi tanto racial como social, pelo modo de vida que levavam, sendo atribuídos a eles “estereótipos do tipo ‘acomodados’ ou ‘incapazes’, que contrastam com os atributos do imigrante, este, ‘trabalhador’, ‘desbravador’ que com seu comportamento diferenciado introduziu uma dinâmica capitalista às terras” (p. 110).

Por outro lado, o texto de Fraga e Gritti interpreta o fato histórico e a criação memorialística da Revolução Farroupilha (1835-1845). Os autores dão atenção às festividades que ajudaram a criar o mito de uma revolução que teria sido gloriosa. Para eles, o 20 de setembro como “data magna estadual enseja atualmente acampamentos e desfiles, em uma espécie de eterno retorno comemorativo à figura do gaúcho pampeiro, mobilizando grande quantidade de pessoas e recursos e gozando de boa exposição midiática” (p. 199). Neste sentido, os autores trazem uma contribuição importante para a compreensão da identidade sulina a partir do mito do gaúcho, discussão que vem sendo realizada há algum tempo por historiadores e jornalistas dedicados ao tema, como Tau Golin (2004).

Resta saber como houve o processo de disseminação de Centros de Tradições Gaúchas em outros estados da região sul, principalmente em locais que foram alvo da migração de sul-rio-grandenses durante o século XX. Quanto ao próprio contexto da Farroupilha, trabalhos recentes, como o de José Iran Ribeiro (2013), vêm demonstrando que a partir da análise deste evento é possível compreender como ocorreu parte do processo de criação do nacionalismo e do Estado-nação brasileiros, principalmente a partir das interações de soldados que se deslocavam de outros locais do Brasil para os campos de batalha no Rio Grande do Sul. Santa Catarina foi um dos locais que mais sentiu esta interação, pois servia como ponto de preparação e aclimatação aos ares sulinos. Estes detalhes, se interpretados de forma mais sistemática pelos autores, poderiam auxiliar a entender a importância desta guerra para toda a região sul, e quiçá à formação do nacionalismo brasileiro.

O eixo central dos capítulos de Delmir J. Valentini, Jaci Poli e Monica Hass são as implicações e conflitos gerados na região de fronteira agrícola aberta a partir do início do século XX e que levaram diferentes grupos sociais a uma convivência forçada e a expurgos constantes. Valentini analisa a Guerra do Contestado (1912-1916), enfatizando os elementos sociais presentes na região, a religiosidade cabocla a partir das crenças nos monges, e a atuação da Brazil Railway Company e da Lumber, sua subsidiária, no processo de extração de madeira e colonização. Ao optar por não realizar um apanhado de toda a guerra, o autor dá valiosas interpretações sobre as bases do movimento e apresenta subsídios importantes para pesquisadores que venham a analisar os movimentos messiânicos como um todo. No mesmo sentido, o texto de Jaci Poli demonstra a complexidade das relações sociais e políticas envolvidas nos conflitos por desapropriações de colonos no sudoeste do Paraná na década de 1950.

Colonos, indígenas, jagunços, madeireiras, entre outros, possuem interesses diversos e são produtos históricos da falta de diálogo, do preconceito e de projetos de desenvolvimento linear. Uma das maiores implicações da expansão para o oeste catarinense e sudoeste do Paraná foi, como apontado em outros capítulos da coletânea, a atuação de empresas colonizadoras. O capítulo escrito por Monica Hass aponta as relações entre estas empresas e o mandonismo local. Hass historiciza o coronelismo desde a colônia e traz elementos para comprovar que, entre a segunda e a sétima décadas do século XX, as relações coronelistas no oeste de Santa Catarina sofreram mutações, refletindo também as modificações políticas nacionais, porém, não foram eliminadas. Ressalta-se que, “como práticas políticas resultantes do sistema coronelista estão enraizadas na ossatura do Estado e na sociedade, os novos personagens políticos acabam se acomodando e se reajustando a elas” (p. 323). As conclusões trazidas pela autora podem servir de ponto de partida para historiadores que queiram entender as relações políticas e sociais em termos diacrônicos, principalmente naqueles locais marcados por terem servido de fronteira agrícola.

O texto de Gentil Corazza e o de Claiton M. da Silva, Marlon Brandt e Miguel M. X. de Carvalho convergem para a compreensão das relações econômicas e da interação entre ser humano e meio ambiente. Corazza analisa a modernização da agricultura, os avanços da indústria e a urbanização, vislumbrando suas consequências sociais durante o século XX. Por seu turno, Silva, Brandt e Carvalho demonstram as transformações nas formas de se pensar e interagir com o meio natural, enfocando as seguintes temáticas: a ocupação da região dos campos do planalto catarinense; a pecuária e modernização agrícola vinculadas à paisagem; a destruição das matas de araucárias no Sul do Brasil e, ao exemplo de Corazza, a modernização agrícola que, a partir de meados do XX, cada vez mais se voltou à lógica do mercado. Estes dois textos têm em comum a preocupação latente novamente com a região que abrange desde o norte do Rio Grande do Sul até o oeste paranaense. A recente corrente da História Ambiental ainda carece em contemplar áreas de estudo como o bioma Pampa, existente na fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina, que serviram de plano de fundo para a história e não receberam a devida atenção enquanto objeto central de estudo.

Os capítulos da coletânea, se vistos em conjunto, não possuem uma proposta teórico-metodológica rígida, pois são entrecortados por História Social, Política, Econômica, Cultural, Ambiental, etc.; ressalta-se que, de fato, este não era o objetivo da obra. Tampouco pretendem um tema específico, como guerras, colonização, conflitos pela terra, lutas identitárias, ao mesmo tempo que estas preocupações estão presentes simultaneamente em diversos textos. Esta liberdade possibilita uma contribuição muito maior por parte dos autores e permite que o livro apresente subsídios para diversos assuntos, tanto no Sul do país como para além – no sentido do restante do Brasil ou mesmo para outros países fronteiriços. Outro mérito do livro é que consegue trazer em vários momentos a história vista de baixo, mostrando a agência de sujeitos históricos que, de outro modo, poderiam parecer passivos.

Os autores, em sua grande maioria, dialogam com a História Social; também convergem, com algumas exceções, para estudos voltados à região de colonização nova, leia-se, as áreas de ocupação da segunda geração de (i) migrantes, a partir do início do século XX. Não obstante, por todos os seus pontos positivos e pela qualidade dos trabalhos, a coletânea já se apresenta como obrigatória a todos os interessados na historicidade do Sul do país, uma vez que explicita que a fronteira-linha pode ser enganosa, ao simplificar processos muito mais amplos.

Referências

ALADRÉN, G. 2012. Sem respeitar fé nem tratados: escravidão e guerra na formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835). Niterói, RJ. Tese de Doutoramento, Universidade Federal Fluminense, 374 p.

BLANC, J; FREITAS, F. (org.). 2018. Big Water: The Making of the Borderlands between Brazil, Argentina, and Paraguay. Tucson, AZ, The University of Arizona Press, 329 p.

GOLIN, T. 2004. Identidades: Questões sobre as representações socioculturais no gauchismo. Passo Fundo, Clio, Méritos, 111 p.

KNAUSS, P. (org.). 2004. Oeste americano: quatro ensaios de história dos Estados Unidos da América de Frederick Jackson Turner. Niterói, EdUFF, 126 p.

MAMIGONIAN, B.G.; VIDAL, J.Z. 2013. História Diversa. Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis, Ed. da UFSC, 281 p.

MURARO, V.F.; VALENTINI, J.D. 2015. Colonização, conflitos e convivências nas fronteiras do Brasil, da Argentina e do Paraguai. Porto Alegre, Letra & Vida; Chapecó, Ed. UFFS, 317 p.

RIBEIRO, J.I. 2013. O Império e as revoltas: Estado e nação nas trajetórias dos militares do Exército imperial no contexto da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 331 p.

TILLY, C. 1996. Coerção, capital e Estados europeus. São Paulo, Edusp, 356 p.

ZARTH, P.A. (org.). 2012. História do campesinato na Fronteira Sul. Porto Alegre, Letra & Vida; Chapecó, Universidade Federal da Fronteira Sul, 319 p.

Ânderson Marcelo Schmitt – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, R. Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, Trindade, 88040-90 Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. E-mail: anderschm@gmail.com.

Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, v.62, n.1, 2019.

·        Free trade agreements and regional alliances: support from Latin American legislators Article

Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, v.62, n.1, 2019.

·        Free trade agreements and regional alliances: support from Latin American legislators Article

Manuais disciplinares, discursos pedagógicos e formação de professores (Séculos XIX e XX) | História da Educação | 2019

Neste dossiê estão reunidos artigos em que os autores envidaram esforços para compreender os aspectos instituintes presentes nos diferentes discursos pedagógicos que fundamentaram a ideia de renovação educacional desde o final do Século XIX e durante o Século XX. Para tanto, tomam como fonte privilegiada diferentes manuais disciplinares que foram muito utilizados nos processos de formação de professores internacionalmente, ainda que a análise recaia particularmente naqueles em circulação no Brasil e em Portugal, o que ocorreu, destacadamente em Escolas Normais, mas, também, em cursos superiores de formação de professores. Nessa direção, os manuais disciplinares elencados como fonte nos diferentes artigos propostos para integrar o presente dossiê incluem os de História da Educação, Psicologia Educacional, Didática, Pedagogia e Metodologias e Práticas de Ensino.

Assim, pode-se perceber que parte considerável dos manuais disciplinares publicados em uma primeira fase, que se estende até meados do Século XX comportava um ideário cientificista, evolucionista e higienista que estava acompanhado do estabelecimento e da disseminação de um código moral laico eminentemente cívico, considerado fundamental para o progresso das diferentes nações e para o alcance dos fins gerais da Humanidade. Em um segundo momento, a ênfase recaiu na dimensão científica e crítica, o que se estende até os tempos atuais. Com certeza este esforço discursivo e formativo contido nos manuais disciplinares encontrou forte ressonância, mas também resistência, o que se espera deixar evidenciado com o presente dossiê. Leia Mais

Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.8, n.1, 2019.

Revista Brasileira de História da Mídia

DOI: https://doi.org/10.26664/issn.2238-5126.812019

Expediente/Sumário

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Editorial

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Artigos Gerais

Why Learn History (When it’s Already on your Phone) – WINEBURG (ZG)

WINEBURG, Samuel S. Why Learn History (When it’s Already on your Phone). Chicago : The University of Chicago Press, 2018. Resenha de: HEUER, Christian. Zeitschrift für Geschichtsdidaktik, Berlin, v.18, p. 225-228, 2019.

Acesso somente pelo link original

[IF]

 

Lúdico e História / História, histórias / 2019

Apresentação

Em 1938 o medievalista holandês Johan Huizinga publicou Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (Homo ludens. Proeve eener bepaling van het spel-element der cultuur), a primeira obra dedicada a examinar o elemento lúdico nas culturas e sociedades humanas. Em 1990, o assiriologista britânico Irving Finkel organizou um colóquio no Museu Britânico que deu origem à International Board Game Studies Association. Onze anos depois, a revista online Game Studies (Suécia/Dinamarca) publicava seu primeiro número, no qual o editor Espen Aarseth declarava 2001 como o “ano um” dos estudos de jogos eletrônicos.

Embora o campo tenha demorado a se constituir como uma área independente, a produção dos estudos lúdicos nos últimos vinte anos é tão vasta que se torna impossível listá-la. Impulsionada pela popularidade dos jogos eletrônicos, a ludologia se enraizou e se expandiu abarcando áreas previamente inimagináveis como o uso de jogos para a produção artística, o estudo das ‘economias virtuais’ internas aos jogos, a análise das ‘culturas lúdicas’ criadas pelos jogadores interconectados ao redor do mundo, o efeito dos jogos na saúde (especialmente os benefícios de jogar para idosos), a aplicação de conceitos lúdicos na administração de negócios reais ou em políticas públicas, entre outras.

A Historiografia não se manteve à parte desses desenvolvimentos. Por um lado, ela se enveredou em um tipo de estudo bastante venerável e tradicional: os jogos como instrumento de ensino. De fato, a pedagogia tem, por muito tempo, explorado a ludicidade: Platão já discutia o tema há 2.500 anos e os mais importantes pedagogos do século XX, como Piaget e Vygotsky, ou o pediatra britânico Donald Winnicot dedicaram páginas à questão.1

Um marco importante para esse tipo de estudo foi a tese de doutoramento (2004) do norte-americano Kurt Squire, hoje professor na Universidade da Califórnia em Irvine, sobre o jogo eletrônico Civilization III como forma de aprender história. Nela, Squire analisou importantes questões teóricas e realizou estudos de diferentes aplicações do jogo ao ensino, mostrando que era possível discutir conceitos historiográficos por meio de um jogo eletrônico.2 No Brasil, até hoje essa é a subárea da ludologia mais explorada pelos historiadores, com publicações recentes como Jogos e ensino de história ou Ensino de história e games.3

Mas a historiografia também criou uma subárea própria dentro da ludologia, o estudo de jogos históricos.4 Aqui, o marco fundamental foi o texto do norte-americano William Uricchio, ‘Simulation, history, and computer games’, publicado em 2005 como um dos capítulos do Handbook of Computer Game Studies. Afastando-se da ‘aplicação’ de jogos à outras áreas (como o ensino) ou da análise isolada de seu conteúdo (e, portanto, da questão simplificadora de saber se o jogo era ‘fiel’ à realidade histórica como discutida na historiografia profissional), Uricchio analisou os jogos como uma ‘forma’ de historiografia, buscando compreender as características e implicações desse modo de fazer história, incluindo as teorias históricas que os jogos – com frequência inconscientemente – expressavam.

Essa nova subárea ainda é muito pequena em comparação com outros campos do estudo ludológico e menor ainda quando comparada com outros campos da pesquisa e da teoria historiográfica. Não obstante, trata-se de um horizonte de investigação em expansão com imenso potencial inexplorado, no qual começam a surgir contribuições deveras interessantes. Arrisco-me a listar, sem a intenção de ser exaustivo, as coletâneas Playing the past. History and nostalgia in video games, editada por Zach Whalen e Laurie Taylor (2008), Playing with the past. Digital games and the simulation of history, editada por Matthew W. Kappell e Andrew B. R. Elliott (2013) e Early modernity and video games, editada por Tobias Winnerling e Florian Kerschbaumer (2014), além do instigante livro de Adam Chapman, Digital games as history. How videogames represent the past and offer access to historical practice (2016).

Neste dossiê, dois artigos caminham por essa nova seara dos estudos históricos. Alex Alvarez Silva, em Simulações do tempo histórico em jogos eletrônicos: a estrutura procedimental da história universal em Sid Meier’s Civilization, analisa o tempo histórico conforme estruturado na popular série de jogos eletrônicos Civilization (1991-hoje). Conjugando a leitura de ludologistas como Jesper Juul com a de historiadores como Adam Chapman e Jörn Rüsen, o professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia investiga a temporalidade do jogo, confrontando-a com noções como ‘consciência histórica’ e derivando questões interessantes para a constituição de uma cultura histórica pelos jogadores.

Marco de Almeida Fornaciari, em Progredir ou perecer: modernidade, aceleração da história e etnocentrismo em Sid Meier’s Civilization, analisa igualmente o tempo histórico na mesma série de jogos, mas de um ponto de vista diferente, relacionando o sucesso no jogo ao domínio da temporalidade. De fato, caso o jogador deseje ‘vencer o jogo’, ele deve maximizar uma série de fatores que lhe permitam manter-se na temporalidade ‘correta’ ou, ao menos, ‘à frente’ de seus concorrentes no tempo da história (conforme narrada pelo jogo). Confluindo noções antropológicas e historiográficas, o artigo de Fornaciari complementa e expande os elementos discutidos por Alvarez Silva em seu texto.

O ensino de história e a sala de aula também se encontram representados neste dossiê. Rodrigo Cardoso Soares de Araújo, em “Nunca foi tão divertido descascar batatas”: os jogos como possibilidade a ser explorada no ensino de História, analisa a ludicidade em sala de aula de um amplo ponto de vista, destacando os chamados ‘jogos educativos’, tanto em suas potencialidades quanto limitações. O texto do professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais, traz diversas considerações teóricas e práticas sobre a ludicidade em sala de aula e certamente constitui uma contribuição instigante para professores que desejem se aventurar pelo caminho dos jogos.

Laura Bossle Caríssimi e Roberto Radünz, em A Ditadura Civil Militar e o ensino de História: o jogo Arquivo 7.0, tomam uma perspectiva bem mais específica: a análise da história recente do Brasil em um jogo de tabuleiro particular. A partir da aplicação do jogo em sala de aula, os autores discutem as percepções discentes a respeito da história recente e como o jogo colabora para construir essas percepções em conjunto com outras fontes da prática pedagógica. Um interessante exercício das possibilidades educacionais do lúdico.

Por fim, Mateus Pinho Bernardes, em Reflexões sobre o lançar de dados em sala de aula: considerações sobre o desenvolvimento de um jogo de tabuleiro moderno para o ensino de História e suas possibilidades, apresenta suas experiências com jogos em sala de aula. Depois de uma profunda análise das possibilidades oferecidas pelo tabuleiro, o texto envereda por um caminho diferente e até então inexplorado neste dossiê: a criação de um jogo para uso em sala de aula. Tentando sanar uma dificuldade em relação a um recorte da história brasileira na primeira república, o autor produziu um jogo novo que abordasse a conjuntura da época e propusesse problemas para os alunos.

Embora tenhamos aqui um conjunto diversificado de artigos, que abordam temáticas e problemas múltiplos, ainda resta um grande potencial inexplorado. Mais do que um panorama das pesquisas atuais, este dossiê pretende ser um convite aos colegas para pensarmos o lúdico e imbricarmos o jogo cada vez mais à produção historiográfica. Os jogos históricos continuarão a ser produzidos e, se o sucesso de séries como Civilization ou Assassin’s Creed for algum parâmetro, cada vez mais pessoas aprenderão mais história por meio de jogos. Cabe a nós, historiadores, decidir se queremos fazer parte desse processo.

Prof. Dr. André Pereira Leme Lopes. Professor da Universidade de Brasília, Brasil. Doutor em História pela Universidade de Brasília, Brasil. e-mail: aleme@gmx.us.

Organizador

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Manuscritos medievais da Universidade de Brasília / História, histórias / 2019

Apresentação

Era uma vez três belos códices, certamente produzidos em algum mosteiro português entre os séculos XIV ou XV, que muitos anos depois, por volta de 1925, foram adquiridos na Vila do Conde, em Portugal, pelo Dr. Jorge de Faria. Nessa época, já não eram mais “códices”. Eram folhas de pergaminho soltas, pouco mais de 200, oriundas certamente de algum mosteiro ou casa religiosa de que saíram, ou por causa da extinção das ordens em 1834, ou por causa de atos violentos que se seguiram relacionados aos movimentos que levaram à proclamação da República em Portugal, em 05 de outubro de 1910.

Por volta de 1925 estavam emprestados à Biblioteca Nacional de Lisboa, onde foram lidos e copiados por Pedro de Azevedo.

Quem nos conta essa história é Serafim da Silva Neto (1956), ilustre filólogo brasileiro, no seu livro Textos medievais e seus problemas.

Alguns anos mais tarde, o também filólogo e linguista Nelson Rossi nos informa que esses textos foram adquiridos pelo erudito professor Silva Neto que os teria trazido para o Brasil em 1950.

Em 1964 foram vendidos pela viúva do professor Serafim, a Sra. Cremilda de Carvalho e Silva, à Universidade de Brasília (UnB).

Nesse mesmo ano, um dos documentos foi levado para restauração na Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, e os outros dois seguiram para Universidade Federal da Bahia aos cuidados do Prof. Nelson Rossi.

Em 1972 os manuscritos são levados novamente à Universidade de Brasília em razão da inauguração do atual prédio da sua Biblioteca Central (BCE), onde permanecem até hoje sob os devidos cuidados que recomendam sua importância.

Infelizmente, entre os “mais de 200 fólios” mencionados por Silva Neto e os que a Universidade de Brasília dispõem hoje, faltam algumas dezenas. O recibo de compra dos documentos não especifica a quantidade de fólios adquirida, mas atualmente, restam apenas 168 fólios e meio.

Os manuscritos aos quais nos referimos são escritos em português arcaico e configuram um tesouro histórico e linguístico incomparável posto representarem, em terras brasileiras, os primeiros monumentos da Língua Portuguesa e trazerem toda a carga da cristandade lusitana que tanto influenciou a formação da nossa sociedade.

Durante essa estada no Nordeste, esses mesmos manuscritos influenciaram, diretamente, na composição de dois núcleos de pesquisa consolidados na Universidade Federal da Bahia, nas áreas de Filologia e Linguística histórica, gerando diversos estudos sobre eles e a edição de dois dos documentos. Na Universidade de Brasília também são importantes fontes históricas exploradas pelos diversos cursos que ela mantém, mas principalmente atendendo ao Programa de Estudos Medievais do Departamento de História.

A origem exata de sua produção é ainda desconhecida, mas a tese que prevalece, baseada em referências de catálogos da biblioteca medieval do Oratório de São Clemente das Penhas, em Leça da Palmeira, Portugal, é de que sejam oriundos de algum mosteiro ao norte de Portugal, nas proximidades de Braga.

Os documentos/monumentos medievais – os famosos “manuscritos medievais da UnB” – são o fragmento de oito fólios e meio do Livro das Aves, 79 fólios dos Diálogos de São Gregório e 81 fólios do Flos Sanctorum. Pensando em difundir e dar a conhecer a um público mais amplo os manuscritos medievais da UnB, os documentos se encontram agora acessíveis através do site da Biblioteca Central da universidade, no endereço http://bdce.unb.br.

Assim, o leitor deste número especial terá acesso aos textos que abordam desde os aspectos mais exteriores dos documentos até análises mais aprofundadas das características internas dos três manuscritos.

Saul António Gomes, investigador da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, parte do universo da codicologia na qual se insere o livro religioso medieval em território português para tecer considerações relativas aos três manuscritos medievais pertencentes a Universidade de Brasília. Segundo o historiador português, “os manuscritos medievais da UnB não intermedeiam um texto originariamente em latim, mas antes um texto traduzido em língua portuguesa para melhor compreensão dos leitores a que se destinavam”.

Américo Venâncio Lopes Machado Filho, pesquisador do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, afirmando serem os manuscritos medievais da UnB os documentos mais antigos escritos em língua portuguesa existentes no Brasil, discute aspectos linguísticos como comprobatórios do valor maior desses manuscritos, qual seja, a possibilidade de representarem a variação e os processos de mudança culturais ao longo da história refletidos nos aspectos da memória linguístico-literária, ainda livre das amarras normativas.

Cláudia Costa Brochado, também do Programa de Estudos Medievais da Universidade de Brasília, apresenta uma possibilidade de análise dos manuscritos medievais da UnB em sala de aula como fonte documental para compreender melhor a Idade Média e faz isso através do exemplo bem-sucedido de análise das personagens femininas, como Benedita e Pelágia do Flos Sanctorum.

Maria Aparecida Torres Morais, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, investiga a ocorrência de possessivos na língua portuguesa do séc. XIV e no português brasileiro contemporâneo considerando a distribuição do pronome seu pré-nominal na relação com outras estratégias de expressão da posse a partir do estudo do texto presente nos fólios do Flos Sanctorum. As conclusões da pesquisadora corroboram com as características inovadoras do português do Brasil.

Heloisa Salles, Rozana Naves e Eloisa Pilati, pesquisadoras do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, trazem mais uma possibilidade de análise linguística dos documentos. Contextualizando a socio-história do português brasileiro, a partir dos Diálogos de São Gregório, a investigação das orações reduzidas de infinitivo no português arcaico que apresentam, demostra que, “a despeito das propriedades inovadoras em relação ao sistema pronominal e flexional, o infinitivo flexionado se mantém produtivo nessa língua”.

Todos estes temas e debates acerca dos três manuscritos medievais da Universidade de Brasília nos levam a fazer, a exemplo de Machado Filho em seu artigo aqui apresentado, uma justa homenagem “às memórias de Rosa Virgínia Mattos e Silva e Nelson Rossi e a todos os que contribuem para a preservação e divulgação de espólios documentais e, em especial, dos Manuscritos Serafim da Silva Neto”.

Referências

ROSSI, Nelson et al. Livro das Aves. Edição crítica, introdução e glossário. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965.

SILVA NETO, Serafim. Textos medievais e seus problemas. Rio de Janeiro: MEC; Casa Rui Barbosa, 1956.

Profª. Drª. Alícia Duhá Lose. Professora da Universidade Federal da Bahia, Brasil. Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, Brasil. Pós-Doutora em História pela Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: alicia.lose@ufba.br.

Organizadora

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Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 12, n.1. 2019.

Revista Brasileira de História da Ciência (RBHC)

HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO

ARTIGO

DOCUMENTOS

Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v.12, n.2. 2019.

Revista Brasileira de História da Ciência (RBHC)

ARTIGO

HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO

RESENHA

A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) | Mariana Schlickmann

Na obra aqui resenhada, a autora dedica-se a fazer um levantamento da literatura produzida no Brasil, entre 1959 e 1987, a respeito dos estudos africanos. O foco do livro é no modo como o continente africano figura nos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros.

Schlickmann apresenta dados desde o primeiro estudo acadêmico por ela identificado e cujo foco foram os estudos africanos no Brasil, realizado em 1987 por Luís Beltrán, intitulado O Africanismo Brasileiro, até pesquisas mais recentes acerca da temática, como a tese de doutoramento de Márcia Guerra Pereira, datada de 2012, História da África: uma disciplina em construção. Leia Mais

História Ambiental e Tempo Presente / Tempo e Argumento / 2019

Em ensaio recente, Christof Mauch (2019) propõe a “esperança lenta” como caminho para construir leituras otimistas e alternativas sobre as “histórias assustadoras” do presente, tais como a mudança climática, as migrações, as violências e as extinções. Longe de negar as crises contemporâneas, o autor sustenta que precisamos de narrativas esperançosas que possam contribuir ou, pelo menos, acenar para futuros alternativos.

Acreditamos que as proximidades e possibilidades de interligação da História Ambiental e da História do Tempo Presente oferecem algumas dessas narrativas esperançosas. Elas nos contam sobre longos processos de mudança, sobre práticas não contemporâneas que permanecem no cotidiano, sobre saberes ambientais, controvérsias, atitudes e relações entre humanos e mundo natural. Elas permitem explorar a memória das relações de humanos e não humanos e a percepção das consequências que as escolhas do passado têm criado para as expectativas contemporâneas de futuro.

Foi essa visão de proximidade da História Ambiental com a História do Tempo Presente que nos motivou à construção do presente Dossiê da Revista Tempo & Argumento. A acolhida da proposta foi rápida, provocativa e instigante, o que pode ser observado nos artigos da edição.

Elenita Malta Pereira, em A construção da ética do convívio ecossustentável pelo ambientalista José Lutzenberger (1971-2002) discute a construção de uma perspectiva peculiar de relação entre humanos e mundo natural ao longo da trajetória de militância ambientalista do engenheiro agrônomo brasileiro José Lutzenberger, intelectual polêmico e de influência no debate público das questões ambientais no Brasil pós-ditadura militar.

No artigo Industrialização e crise ambiental: a representação do desastre nuclear em vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch, Alfredo Ricardo Silva Lopes e Rauer Ribeiro Rodrigues discutem os embates contemporâneos da crise ambiental e dos modelos industriais a partir de um dos maiores desastres radioativos da história, explorando, simultaneamente, possibilidades e limites das relações entre História e Literatura no tempo presente.

Gabriel Lopes e André Felipe Cândido da Silva, em O Aedes aegypti na historiografia: reflexões, controvérsias e perspectivas, buscam refletir sobre as diferentes abordagens que têm sido realizadas acerca do mosquito Aedes aegypti, as ecologias ligadas ao longo processo de coevolução do inseto e da espécie humana. O ponto de partida é a leitura de uma epidemia de dengue sem precedentes na cidade do Rio de Janeiro em 1986.

De parque a APA: uma análise do processo de recategorização de parte do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, SC, de Jackson Alexsandro Peres, discute ressignificações de uma unidade de conservação que ocupa aproximadamente um por centro do território do estado de Santa Catarina, Brasil.

Marco Armiero e Leandro Sgueglia, em Wasted Spaces, Resisting People. The politics of waste in Naples, Italy analisam mobilizações sociais e injustiças ambientais na periferia de Nápoles, pontuando a criação de novos commons, novas instituições e guarnições sociais ou comunitárias, desenhando alternativas para desastres ecológicos urbanos como o desafio da contaminação tóxica ou do lixo.

Andrés Ernesto Francel Delgado, em Historia de la arquitectura y el urbanismo en bicicleta, Ibagué, Colombia, 2015-2017, trabalha com a implementação de uma metodologia de aprendizagem de arquitetura urbana e de leitura da transformação das cidades por meio da cultura ciclista como uma nova urdidura da cidade contemporânea.

Eunice Sueli Nodari e Zephyr Frank discutem, no artigo Vinhos de altitude no Estado de Santa Catarina: a firmação de uma identidade, uma história recente da vitivinicultura no estado de Santa Catarina, discutindo os territórios que trabalham com os, assim denominados, “Vinhos de Altitude”. No artigo fica evidente que a vitivinicultura não pode ser percebida, de forma idílica, vinculada a pequenos agricultores, e sim, como uma commodity econômica e cultural, que envolve um universo de atores humanos e não humanos.

Jo Klanovicz e Maíra Kaminski da Fonseca, em Tempo Presente e História Ambiental: a contemporaneidade do desastre do Césio-137 (Goiânia, mais que 1987), discutem a presença contemporânea da temporalidade do desastre radiológico de Goiânia, Brasil, em 1987. A partir da articulação entre História do Tempo Presente e História Ambiental, o artigo estabelece continuidades e rupturas em narrativas traumáticas estabelecidas a partir do acontecimento e suas repercussões no presente.

Já Samira Perucchi Moretto e Marlon Brandt, em Das pequenas produções à agroindústria: suinocultura e transformações na paisagem rural em Chapecó, SC, analisam os desdobramentos em torno da criação dos suínos, a partir da segunda metade do século XX no oeste de Santa Catarina e suas ligações com transformações ambientais regionais.

Todas as contribuições apresentam, além dos seus respectivos temas, o desafio de relacionar História do Tempo Presente e História Ambiental do ponto de vista teórico-metodológico. A grande acolhida do dossiê, materializada pelos artigos brasileiros e de pesquisadores internacionalmente reconhecidos na área de História Ambiental, expressa o desejo de convergência e de intercâmbio de experiências e de desafios apresentados pela História do Tempo Presente.

Referência

MAUCH, Christof. Slow Hope: Rethinking Ecologies of Crisis and Fear. RCC Perspectives: Transformations in Environment and Society, 2019, no. 1.

Eunice Sueli Nodari

Jo Klanovicz

(Organizadores)


NODARI, Eunice Sueli; KLANOVICZ, Jo. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Direitos Humanos: História e Tempo Presente / Tempo e Argumento / 2019

Direitos Humanos: História e tempo presente [1]

Assinalando a recente celebração dos setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Revista Tempo & Argumento disponibiliza novo dossier onde se reúnem artigos que captam realidades históricas e da atualidade da Argentina e do Brasil, observadas pela perspetiva da problemática dos Direitos Humanos. Construídos com diferentes metodologias e ferramentas teóricas, estes artigos apontam para duas dinâmicas que possuem a sua própria historicidade: uma, a do alargamento da consciência coletiva acerca da importância da preservação daqueles direitos, verificada em comportamentos de distintos grupos sociais; outra, a do aprofundamento de uma atitude de vigilância sobre os factores que compromentem os Direitos Humanos, quer se manifestem potencialmente, quer se verifiquem em situações de facto.

Os episódios aqui tratados envolvem agentes históricos (figuras do judiciário, polícias, vítimas, ativistas) e ambientes (uns burocratizados, outros sociais, outros ainda virtuais) bastante diferenciados, onde, através de distintas posições profissionais-culturais e de práxis formais e informais, se aborda a reivindicação de direitos e a sua adjudicação. Em mais do que um artigo, o leitor é confrontado com o tratamento de questões como a memória, as reações emocionais e a criatividade na construção de soluções de problemas. No seu conjunto, os autores apontam para a demonstração de que cursos alternativos de acção existem e justificam como os mesmos alcançam legitimidade, lidando com interesses, com cristalizações no ambiente político ou com conflitos. Dois aspetos emergem destas várias composições que me parecem ser úteis a um desenvolvimento futuro da reflexão historiográfica no âmbito da problemática dos Direitos Humanos. Por um lado, a necessidade de se inquirir qual o lugar da negociação e da gestão dos interesses, constatadas nas formas de interação dos vários agentes, os quais sempre confrontam, em qualquer processo analisado, o investigador com uma multiplicidade de ideias, normas de comportamentos e motivações sobre a lei [2]. Por outro lado, a importância de explorar o que se pode chamar de incerteza institucional nos regimes analisados e de como essa condição afecta tanto recursos como capacidades, mobilizados em defesa de certas posições, acabando por determinar a distribuição do poder na política e na sociedade. Esta também pode ser uma via para compreender a complexidade do real e desconstruir a imagem simplificada e recorrente do sistema e da administração de justiça latino-americana como ineficaz, inconsequente e enfeudada a sectores políticos.

Uma forma possível de atender a estes aspectos é retomar para reflexão, como já alertou Samuel Moyn, o ponto de que os direitos humanos dependem de discursos e estruturas jurídicas (e do próprio direito internacional) e não de códigos morais e sentimentos, sob pena de não se estar a construir uma história dos Direitos Humanos, mas uma história do ativismo, da militância ou do humanitarismo. É importante que os estudos nesta temática concorram para clarificar qual(is) é(são) o(s) locus da autoridade legal, bem como quais são as leituras transportadas sobre a estrutura legal, isto é, quais são as visões legais produzidas nas construções que orientam a ação judicial, policial, militar ou nas lutas associadas à justiça transicional, ou ainda nas lutas pela conservação de modelos de justiça antitransicionais.

Este desafio afigura-se tão mais importante quanto o campo de pesquisa sobre os Direitos Humanos tem vindo a ser profusamente explorado nas várias comunidades científicas, um pouco por todo o globo, inclusive no mundo não ocidental, que lidam com normatividades e credibilidades diferenciadas desses direitos, consoante os contextos nacionais ou continentais onde estão inseridas. Na historiografia, influenciada pelos resultados de outras ciências sociais, regista-se que este campo de pesquisa conhece uma grande ebulição, numa tendência que já apresenta uma duração considerável, se atendermos a que na década de 1990 eram reduzidos os estudos sobre Direitos Humanos [3]. Ao longo dos últimos vinte anos, nos Estados Unidos da América mereceram amplo desenvolvimento aspectos como a metodologia dos estudos históricos de Direitos Humanos, a (re)invenção ou progressão dos direitos humanos na sequência do final da II Guerra Mundial e da terrífica experiência do Holocausto, da Guerra Fria e do pós-Guerra Fria. Na Europa, historicizaram-se as campanhas humanitárias associadas aos grandes conflitos bélicos ou às migrações em larga escala, discutiram-se diplomacias e políticas para os Direitos Humanos de vários Estados nacionais e de organizações internacionais, como a Organização das Nações Unidas, bem como as conexões entre as políticas de ambos, relacionando-as com o aprofundamento de conteúdos da vida democrática ou com os comportamentos de intelectuais e de forças políticas. Nesta linha, recentemente, surgiram pesquisas sobre o ínicio da propagação da cultura dos Direitos Humanos entre as oposições dos regimes ditatoriais e como tal serviu ao seu questionamento sobre a manutenção dos impérios coloniais, ou como, nos povos que aspiravam à autodeterminação e à independência, os dirigentes projetaram esses designíos além das comunidades locais e os fundaram num universalismo e na busca de direitos fundamentais reconhecidos na lei internacional.

A problemática dos Direitos Humanos tem vindo ainda a insinuar-se em produções historiográficas com objetos de estudo tradicionalmente orientados para outros problemas. Um exemplo encontra-se na própria história militar, que apesar de ocupada com estratégia e geopolítica, desenvolvimentos técnicos e científicos, lideranças militares e políticas, tem vindo a considerar a linguagem e a aplicação dos direitos humanos quando se debruça sobre tópicos como prisões e prisioneiros de guerra [4]. Também nos estudos sobre o comportamento das polícias ou dos chamados “movimentos sociais” se encontram variadíssimos contributos para o debate em torno dos direitos humanos, habitualmente percepcionados como ideia (s) que se ajusta aos imaginários dos atores, concorrendo para legitimar um tipo de moral e / ou para orientar as ações de grupos sociais. Na América Latina, têm dominado os estudos sobre as violações dos Direitos Humanos cometidas durante as ditaduras e os conflitos armados internos, ou mais recentemente sobre os processos judiciais contra os responsáveis pela perpetração dessas violações, designadamente sobre as interações de juízes, promotores e advogados.

A riqueza inesgotável deste campo de pesquisa é susceptível de gerar disputas sobre a forma de fazer uma história dos Direitos Humanos, merece, todavia, que se evitem armadilhas nesta “nova era da democracia”, para usar uma expressão do historiador e filósofo francês Marcel Gauchet, onde “se reivindicam direitos mais do que deveres, no quadro de egoísmos mais do que da universalidade, em que os direitos do homem servem hoje para tudo. Sobretudo, paradoxalmente, para negar os direitos do homem universal”, em favor de uma “concepção individualista e privatista de direitos singulares, que se presta a todos os desvios possíveis” [5].

Notas

1. Nesse texto optou-se por manter a grafia da língua nativa (Língua Portuguesa – Portugal).

2. Ezequiel A. González-Ocantos, Shifting Legal Visions. Judicial Change and Human Rights Trials in Latin America, Cambridge University Press, New YorK, 2016, pp. 27-30.

3. Samuel Moyn, “Substance, Scale, and Salience: The Recent Historiography of Human Rights” in Annual Review of Social Science, n.º 8, 2012, pp. 124-134.

4. Sybille Scheipers, Prisoners in War, Oxford: Oxford University Press, 2010; Arnold Kramer, Prisioners of War. A reference handbook, Westport: Praeger, 2008.

5. “Marcel Gauchet: “Que faire des Droits de L’Homme?”. Entretien réalisé par Valérie Toranian et Jacques de Saint Victor in Revue des Deux Mondes, 2018, pp. 17-18.

Referência

MAUCH, Christof. Slow Hope: Rethinking Ecologies of Crisis and Fear. RCC Perspectives: Transformations in Environment and Society, 2019, no. 1.

Paula Borges Santos – Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH

(Organizadora)


SANTOS, Paula Borges. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.27, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Terra e território no Brasil e América Latina: Sujeitos sociais, memória histórica e políticas públicas no tempo presente / Tempo e Argumento / 2019

Nas últimas décadas os estudos relativos à temática da história rural no Brasil e na América Latina demonstram uma trama de relações diversificadas, complexas e conflitivas acerca das experiências de ocupação de terra; das disputas pelo acesso, uso e posse da terra; das práticas e direitos de propriedade; do conjunto de resistências individuais – cotidianas e silenciadas – e coletivas; das diferentes formas de se relacionar com a terra, o território e o meio ambiente e das distintas concepções de direito1 . Neste universo conflitivo, multifacetado e desigual, nosso objetivo era receber artigos para compor este dossiê com pesquisas que abordassem a vitalidade do mundo rural no tempo presente e suas raízes históricas.

Buscamos, originalmente, privilegiar as narrativas dos próprios sujeitos, problematizando suas práticas a partir de novas fontes e metodologias, sobretudo as entrevistas orais. Além de estudos que contemplassem revisões acerca de historiografias tradicionalmente construídas sobre os sujeitos do campo, na tentativa de romper com a suposta homogeneização do campo e suas relações com o âmbito urbano. Neste ínterim, diferentes sujeitos sociais, a saber: indígenas, quilombolas, sem-terra, extrativistas, pequenos agricultores e grandes proprietários rurais disputam pela posse da terra e, no caso dos primeiros, por um local de trabalho, vida e moradia. Assim, o questionamento ao Direito, e, ainda, a compreensão dele como um meio para se alcançar a justiça e o exercício da cidadania, aliado à organização em movimentos sociais, apontam a reconfiguração desses sujeitos. Sinaliza, igualmente, a busca de novas representações sociais, a elaboração de políticas públicas e de leis específicas e os rearranjos e conflitos em torno delas.

A partir deste escopo, este dossiê busca contribuir com o debate no âmbito da história rural, em diálogo com a Antropologia, Geografia, Sociologia e o Direito a partir de uma perspectiva histórica, acerca das disputas pelo uso e posse da terra, da manutenção dos modos de vida, dos processos de resistência e pelo direito à(s) memória(s) dos diferentes grupos sociais do Brasil e da América Latina. Nesse sentido, as contribuições que recebemos e selecionamos superaram as nossas expectativas originais, somando sete artigos de autores provenientes de instituições da Argentina, Brasil, Chile e Polônia. São abordadas temáticas heterogêneas, trazendo problemáticas e aspectos transversais, que contemplam a diversidade dos sujeitos do campo na contemporaneidade – como camponeses ou produtores rurais, indígenas, famílias e imigrantes –; a questão da terra e dos territórios materiais e imateriais; o papel de setores e de poderes intermediários; a importância da memória na construção da história ambiental regional, da educação, do direito e da cultura e, ainda, o papel do Estado na elaboração e / ou na ausência de políticas públicas.

Em Echar raíces en tierra fértil. Producciones, domesticidad y memorias de familias rurales en la colonización tardía argentina (medianos de siglo XX), de Celeste De Marco (CONICET, Argentina), aborda-se o tema da colonização rural durante o governo peronista na Argentina (1946-1955) a partir da análise de casos presentes na região metropolitana sul de Buenos Aires: colônia “17 de octubre / La Capilla”, no município de Florencio Varela e na colônia “Justo José de Urquiza”, no município de La Plata (esta, capital da província de Buenos Aires). O objetivo central da pesquisa é reconstruir o papel dos sujetos sociais durante o processo de colonização agrícola, das famílias colonas principalmente italianas e japonesas, por meio da discussão das práticas produtivas e da vida doméstica familiar, com a adoção de uma perspectiva analítica centrada nas experiências de gênero. Para isso, utilizam-se fontes oficiais, jornal e principalmente entrevistas semi-estruturadas que congregam informações sobre as memórias familiares que, nas palavras de De Marco, “contribuyen a rescatar la importancia socio-productiva de figuras soterradas en el orden de las representaciones”, durante os períodos de fundação e de consolidação das colônias periurbanas desde os princípios da década de 1980.

No artigo Doblemente desaparecidos: servicio militar, pobreza y represión en la frontera patagónica durante la última dictadura argentina, baseado na pesquisa doutoral de Ayelen Mereb (UBA, Argentina), se revisita o caso de Héctor Inalef, primogênito e suporte econômico de uma família mapuche dedicada às atividades rurais na comunidade de El Bolsón, localizada na Patagônia argentina, desde a sua prisão durante o governo ditatorial no ano de 1976, até sua “aparición con vida” na cidade de Viedma, capital de Río Negro, trinta e oito anos depois, em 2014. A partir de uma perspectiva centrada na micro-história e na historia oral, se utilizam documentos, entrevistas e testemunhos particulares e familiares enquadrados nos estudos de memórias sobre passados traumáticos na Argentina e América Latina, manifestados na violência estatal de natureza política e de classe em “clave local, rural y mapuche”, diante das reivindicações familiares, étnicas e das tentativas de reparação oficial até os dias atuais.

O artigo de Alcione Nawroski (Universidade de Varsóvia), A educação na sociedade rural e o curso agrícola para rapazes brasileiros na Polônia (1918-1938), aborda a experiência de intercâmbio de três jovens na Polônia, considerando o número expressivo de agricultores entre a população polonesa no Brasil no início do século XX. O pano de fundo dessa discussão é a existência de um relativo atraso no campo, estendendo-se para o campo educacional, o qual impedia que esse grupo social alcançasse novas e melhores condições de vida e trabalho em território brasileiro. A análise de Nawroski ocupa-se basicamente de jornais poloneses, destacando que o governo brasileiro não possuía o mesmo compromisso com a educação, se comparado ao polonês.

Atual, necessário e quase em tom de denúncia, o trabalho Trajetórias diásporicas indígenas no Tempo Presente: terras e territórios Atikum, Kamba e Kinikinau em Mato Grosso (do Sul), de Giovani José da Silva (Unifap), discute o processo de invisibilização das referidas etnias. Trabalho de natureza interdisciplinar, sobretudo pelas lentes da Antropologia e do Direito, articula as trajetórias diaspóricas e os processos de territorialização ocorridos na história dos Atikum, Kamba e Kinikinau que, em pleno século XXI, ainda lutam por uma visibilidade que garanta respeito aos direitos que lhes têm sido negados sistematicamente. O artigo destaca, ainda, as diferentes percepções e concepções acerca da terra e do território.

O artigo Gamonalismo y redes de poder local en el Nordeste Antioqueño (Colombia) 1930-1953, de Diana Henao Holguin (Universidad do Chile), por sua vez, apresenta parte da pesquisa doutoral da autora, centrada no processo de denúncia e apropriação de terras baldias e nos conflitos derivados dessas ações na região de Antioquía, Colômbia, durante o período de 1930-1953. O recorte temporal coincide com a modernização liberal do Estado, a qual culminou com a centralização e o fortalecimento do Estado colombiano. Neste marco, H. Holguin estuda o caciquismo antioquiano e suas particularidades nos distritos de Cisneros e Yolombó, contrastando-0s, assim, com outros no âmbito andino, como Equador e Peru, munida de diversos documentos de natureza local-regional. A hipótese da autora – em uma zona de fronteira como a que estuda, de colonização tardia, se comparada com as áreas centrais colombianas – é que o referido sistema político “va a encarnar distintas facetas”, incluindo tanto a coação e exploração camponesa, possibilitando o avanço dos proprietários, como estratégias de intermediação com autoridades e distintas esferas de poder territorial, uso de meios legais em seu próprio benefício, construindo, assim, redes pessoais e clientelistas para canalizar votos para os partidos tradicionais.

Já o trabalho de Temis Gomes Parente (UFT) e Cícero Pereira da Silva Júnior (UFPA), intitulado De estrada líquida à jazida energética: os sentidos do rio Tocantins na memória oral dos ribeirinhos, por meio da metodologia em História Oral, reflete sobre as relações estabelecidas e experienciadas entre os ribeirinhos e o rio Tocantins, nas duas dimensões, materiais e imateriais. O elemento inovador do artigo é o estreito diálogo com a Antropologia, apropriando-se da noção de dádiva de Marcel Mauss, com o intuito de ressignificar a(s) narrativa(s) dos ribeirinhos acerca do rio e do seu entorno.

No auge das experiências participativas sobre conflitos socioambientais nos últimos anos na América Latina, Consultas comunitarias en Argentina: respuestas participativas frente a mega-proyectos, de Lucrecia Soledad Wagner (Universidad Nacional de Cuyo, Argentina), estuda as consultas comunitárias sobre projetos de mineração a céu aberto nas comunidades de Esquel e Loncopué, nas províncias patagônicas argentinas de Chubut e Neuquén respectivamente, “considerando que el término comunidad resulta el más pertinente para definir los procesos sociales que se generaron en torno a la conflictividad ambiental, en especial en Argentina”, com reconhecida horizontalidade. Mediante a análise de documentos escritos, imagens e realização de trabalho de campo, a autora examina as motivações que impulsionaram o desenvolvimento dessas consultas, o seu impacto social e a criação de uma institucionalidade ambiental, sustentando, conforme suas palavras, que foram “las comunidades locales las que recurrieron a la normativa existente para respaldar su derecho a ser parte del proceso de toma de decisiones que afectarían su lugar de vida” em substituição ao cumprimento da legislação vigente sobre conflitos ambientais por parte das autoridades executivas e legislativas do Estado, oportunizando a gestão de um espaço de participação direta.

Para finalizar, gostaríamos de agradecer as / aos autoras / es – únicos e últimos responsáveis pelas opiniões, posicionamentos ideológicos e / ou conclusões de seus artigos – por suas valiosas contribuições para o dossiê e, ao comitê editorial da revista, por sua eficiência e acompanhamento durante todo o processo de construção. Desejamos que este dossiê possa contribuir para o aprofundamento dos temas e problemas aqui tratados, assim como para o avanço do trabalho conjunto e a aproximação entre as historiografias e as disciplinas humanas e sociais de nossos países.

Boa leitura!

Notas

1. Para América Latina e outras latitudes pode ser consultado, entre outros, Serrão, J. V., Direito, B., Rodrigues, E. & Münch Miranda, S. (eds) (2014) Property Rights, Land and Territory in the European Overseas Empires. Lisboa: CEHC-IUL. Congost, R., Gelman, J. & Santos, R. (eds.) (2017) Property Rights in Land. Issues in social, economic and global history. London & New York: Routledge. Motta, M. & Piccolo, M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Posse e propriedade na Era Moderna (Portugal e Brasil), Vol. 1, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Motta, M. & Piccolo M. (Org., 2017), O Domínio de outrem. Propriedades e direitos no Brasil (Séculos XIX e XX), Vol. 2, São Luís: EDUEMA, Guimarães: Nósporcatudobem. Barcos, MF., Lanteri, S. & Marino, D. (2017) Tierra, agua y monte. Estudios sobre derechos de propiedad en América, Europa y África (siglos XIX y XX). Buenos Aires: Teseo

Rose Elke Debiasi – Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: elkedebiazi@gmail.com

Sol Lanteri – CONICET-UBA, Instituto Ravignani, Buenos Aires, Argentina. E-mail: sol_lanteri@conicet.gov.ar

DEBIASI, Rose Elke; LANTERI, Sol. Apresentação. Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.28, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Regras de bem viver para todos: a “Bibliotheca Popular de Hygiene” do Dr. Sebastião Barroso | Heloísa Helena Pimenta Rocha

Resenhar o livro Regras de Bem Viver para todos: a Bibliotheca Popular de Hygiene do Dr. Sebastião Barroso consiste em um grande desafio. Trata-se de pesquisa realizada para a escrita da Tese de Livre-Docência da Profa. Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha, apresentada à Faculdade de Educação da Unicamp, e publicado em 2017 pela editora Mercado de Letras.

Heloísa Rocha possui Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão (1985), Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1995), Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001), com estágios de Pós-Doutorado na PUC/SP (2017) e na Universidad de Buenos Aires (2008). Atualmente, é Livre-Docente na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Leia Mais

Por que os ricos não fazem greve? Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1962 | Álvaro Vieira Pinto

Álvaro Borges Vieira Pinto foi um filósofo brasileiro pouco (re) conhecido no Brasil. Nascido em Campos dos Goytacazes – RJ, no dia 11 de novembro de 1909, e falecido no dia 11 de junho de 1987, de infarto, na cidade do Rio de Janeiro, antes de seguir carreira como filósofo, catedrático da Faculdade Nacional de Filosofia e diretor do Iseb2, formou-se, em 1932, no curso de medicina da Faculdade Nacional de Medicina (RJ). Durante o exílio no Chile, decorrência do golpe militar de 1964, o filósofo produziu, a princípio como conteúdo para um curso de verão, um dos maiores sucessos editorais da educação brasileira, a saber: “Sete Lições sobre a educação de jovens e adultos (1982)3”. Nesse ínterim, dedicou-se também à leitura e “correção” dos originais da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire e à escrita de outros três livros. Após seu retorno ao Brasil, em dezembro de 1968, isolou-se, até o dia da sua morte, em seu apartamento em Copacabana, dedicando seu tempo para escrever obras (algumas ainda inéditas e desaparecidas) e fazer traduções de textos clássicos para o português – sendo a última atividade uma forma de conseguir dinheiro à manutenção de sua existência.

Isso posto, cabe apontar que a pergunta que confere título a este escrito é, na verdade, distinta do título do texto de Álvaro Vieira Pinto, apresentado no volume 4 da Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, apenas na aparência, pois, em essência, tende ao mesmo objetivo, a saber: apontar que somente os “pobres” podem fazer greve, porque somente os “pobres”, na concepção sócio-filosófica alvariana, trabalham. Ou seja, “no país capitalista, especialmente no de economia subdesenvolvida, o trabalho compete, por definição às massas assalariadas que, por seu modo de existência, são chamadas de ‘pobres’ ” (VIEIRA PINTO, 1962, p. 101). Leia Mais

Escolarização, culturas e instituições: escolas étnicas em terras brasileiras | Terciane Ângela Luchese

A organizadora da obra é professora da graduação e da pós-graduação, nos Programas de Pós-graduação em História e em Educação da Universidade de Caxias do Sul. Além disso, ela é líder do grupo de pesquisa História, Educação, Imigração e Memória (Grupheim2), no qual os integrantes têm especial interesse no campo da História da Educação e a marca da presença de diferentes grupos étnicos, seus processos de escolarização e as culturas escolares. A presente obra apresenta resultados de pesquisa tanto de integrantes do Grupheim quanto de pesquisadores convidados, estabelecendo assim uma profícua interlocução com múltiplas perspectivas acerca do tema proposto para trabalho: as escolas étnicas instituídas no Brasil, com ênfase na escolarização, culturas e instituições escolares. Os capítulos apresentados têm como marco inicial o momento de intensificação das massas imigratórias italianas no Brasil, fim do século XIX e marco final a década de 1940 quando do fechamento das últimas escolas étnicas em decorrência do acirramento da nacionalização de ensino.

A obra é composta por nove capítulos, antecedidos pelo prefácio escrito pelo reconhecido pesquisador Angelo Trento, publicado na íntegra em duas línguas: português e italiano. A apresentação ficou sob a responsabilidade da organizadora da obra Terciane Ângela Luchese. Ao final do livro encontram-se ainda as informações sobre os autores, situando o leitor sobre os contextos em que se inserem cada pesquisador. Leia Mais

La paradoja uruguaya. Intelectuales, latinoamericanismo y nación a mediados de siglo XX | Espeche Ximena

El texto de Ximena Espeche comienza ubicando al lector en el Uruguay de los primeros años de la década de 1950. En ese escenario uno de los líderes políticos de mayor relevancia, el entonces presidente Luis Batlle Berres, sostuvo que Uruguay era y había sido durante todo el siglo XX un “país de excepción”. En simultáneo, un vasto y heterogéneo coro de voces de intelectuales, conformado por ensayistas periodistas, economistas y educadores, denunciaba los límites (para algunos el fracaso) del modelo “batllista” y revisaba los cimientos de una identidad colectiva construida sobre la base de mitos o lugares comunes que ya no concitaban consenso. El fin de la relativa prosperidad económica, el estallido de conflictos sindicales reprimidos con violencia física y legal y la incursión en nuevas formas de co-participación y burocratización de los partidos Nacional y Colorado en el gobierno fueron solo algunos de los síntomas más evidentes de una crisis que tuvo múltiples dimensiones y convocó a la reflexión desde distintas filas.

Diversos, periféricos y autocríticos a ultranza, los intelectuales que Espeche estudia en profundidad -Carlos Quijano, Carlos Real de Azúa y Alberto Methol Ferré- atravesaron sin nostalgia el fin del Uruguay batllista y celebraron la caducidad de un modelo que, creían, había nacido trunco. Identificaron en aquel contexto la posibilidad de repensar el imaginario nacional, al que encontraban perniciosamente batllistizado, compartiendo la preocupación por la viabilidad del país, ya no en los términos de supervivencia nacional o temor a la anexión de alguno de los grandes países vecinos, sino en cuanto a sus posibilidades de desarrollo, modernización e inserción no dependiente en la región y en el mundo. Los tres compartieron la doble condición de ser juez y parte, testigos y formadores de opinión, a la vez que percibieron tempranamente la crisis como oportunidad. Leia Mais

Conversas que tive comigo | Nelson Mandela

Não me lembro qual foi a primeira vez que ouvi falar de Mandela. Talvez em algum filme de histórias de grandes líderes políticos que se tornaram “imortais” por seus feitos. Mandela foi muito mais que um grande líder político. O livro Conversas que tive comigo mostra com profundidade o Nelson Mandela (como é conhecido em todo mundo), Madiba, Tata, Rolihlahla alguns de seus nomes conhecido pelo povo da África. Nasceu na cidade de Transkei, África do Sul, em 18 de julho de 1918 e morreu numa quinta-feira no dia 05 de dezembro de 2013, aos 95 anos. Ele lutou contra o regime de segregação racial, o Apartheid, em seu país. O regime, como se sabe, negava aos africanos, o direito de viver livres em seu próprio território tradicional. O livro é constituído de escritos de Mandela, em sua maioria, nos quase 28 anos de sua vida que foi preso político.

A obra traz informações inéditas escritas de próprio punho. Uma delas é o fato de que Mandela, tinha o hábito de escrever o que para ele era importante em: visitas, reuniões e momentos de angústia. Relata que esses escritos eram uma forma de arquivar. Conhecíamos o líder político, o lutador incansável pelos direitos humanos, o homem que deu a volta por cima, mas sabia-se pouco sobre o Mandela escritor.

O fato é que ao perceber que os destinatários das inúmeras cartas que escrevia na prisão não respondiam, começou escrever para si, com a intenção de arquivar o cotidiano (SONTAG, 2004). Suas cartas eram escritas com cópias, que ele guardava. De 05 de agosto 1962, quando foi preso e condenado à prisão perpétua, ficou em reclusão até 1990, e escreveu, nesse período, centenas de cartas. Nela, além de questões políticas, estão demonstrados elementos de sua vida cotidiana como a preocupação com a mãe, os filhos, a esposa e os diversos companheiros de luta.

As cartas publicadas no livro não obedecem a uma cronologia. A obra está organizada em capítulos que retratam sua vida antes, durante e até liberdade; as cartas e anotações foram editadas e formam os textos dos capítulos.

Mandela foi preso pela primeira vez por desobediência às regras segregacionistas impostas pelo Estado. No livro, afirma que foi por usar um banheiro reservado exclusivamente para brancos. Em uma carta datada de 27 de dezembro de 1984 à sua esposa Winnie Mandela , afirma: “você sabe perfeitamente bem que passamos essa última parte de nossa vida na prisão exatamente por que nos opomos à ideia mesma de assentamentos separados, que nos torna estrangeiros em nosso próprio pais…” (MANDELA, p. 66.)

A obra de mais de 400 páginas se aproxima do que hoje chamaríamos de uma visão de colonial. Fala da necessidade de aprender da cultura Ocidental. Mas isso não fez com que abandonasse as línguas e a costumes tradicionais da África do Sul. Mandela era um Thembu, pertencia à casa real e sua vida pública o forçara a se afastar das suas tradições, mas nunca abandonara seus valores

“(…) Claro que não podemos viver sem a cultura ocidental, e então tive duas vias de influência cultural. Mas acho que seria injusto dizer que é uma peculiaridade minha, porque muitos dos nossos tiveram as mesmas influências… Hoje me sinto mais à vontade com o inglês, devido aos muitos anos que passei aqui e passei na prisão, por isso perdi contato com a literatura xhosa. Uma das coisas que estou ansioso para fazer quando me aposentar é poder ler a literatura que eu quiser, literatura africana (…) (MANDELA, 2010, p. 30).

Preocupado com quem governaria a África e com as mudanças que aconteceria, arriscava em seus escritos opinar qual seria o governo “ideal” para seu povo. Relata que enviou seus filhos e filhos de outros líderes para estudar fora do continente, mas defendia que um governante tinha que ser filho da África, e que ele deveria vivenciar seus costumes e cultura.

Atribui à colonização, aos erros das lideranças políticas africanas:

“Um corpo letrado de líderes tradicionais com boa formação terá toda probabilidade de aceitar o processo democrático. O complexo de inferioridade que os leva a se aferrar desesperadamente a as formas feudais de administração irá, no seu devido tempo, desaparecer”. (MANDELA, 2010, p. 35).

A democracia poderia ser construída com formação sólida das lideranças tradicionais que, assim, superariam o complexo de colonizado. (Memmi, 2007). Com isso afirma que…

“A civilização ocidental não apagou totalmente minha origem africana, e não esqueci meus dias de infância, quando nos reuníamos em torno dos mais velhos para ouvir a riqueza de sua sabedoria e experiência. Era o costume dos nossos antepassados, e na escola tradicional em que crescemos. Ainda hoje respeito os mais velhos da nossa comunidade e gosto de conversa com eles sobre os velhos tempos, quando tínhamos nosso próprio governo e vivíamos em liberdade.” (MANDELA, 2010, p. 43).

Das cartas aos cadernos de anotações buscou registrar sua indignação por não ter liberdade. Essa que não era pelo fato de estar preso, mas sim de ver seu povo restrito dentro de sua própria terra.

Ver os africanos, negros e indianos, serem obrigado a viver na pobreza, na miséria buscando trabalho nas fazendas de colonizadores dentro de seu próprio pais era o que levava a lutar, não só por sua liberdade, mas pela liberdade de todos. E culpa o colonialismo a isso. Como podemos perceber no trecho que a obra traz que e parte inédita de sua autobiografia.

“A pilhagem de terras de nativos, exploração de suas riquezas minerais e outras matérias-primas brutas, o confinamento de seu povo a áreas específicas, e a restrição de seus movimentos foram, com notáveis exceções, as pedras fundamentais do colonialismo por todo o país”. (MANDELA, 2010, p. 369).

Em suma, fala que houve aprendizados e não só momentos de dores durante sua vida na prisão. O respeito pelos outros povos e culturas diferentes, o tratar bem a quem lhe ofendia. Tristeza de não poder participar da vida de seus filhos. Ele fala da morte de primogênito Thembekile (13 de junho de 1969 na Cidade do Cabo), que quando foi preso o filho ainda era uma criança e que ele Mandela não esteve presente na cerimônia de seu casamento e nem poderia se fazer presente na da sua morte, pois o governo negara seu pedido como negou de ir a da sua mãe. Despedir dos seus entes em cerimônias que levava dias era algo de muito valor para ele, pois fazia parte de sua cultura, e essa é umas das dores mais agudas pelas quais passara. Mandela afirma que o ano de 1962 foi o pior de sua vida, pois além da perda de seu filho, de quem não pode acompanhar o crescimento, perdeu sua mãe e sua mulher havia sido presa.

A obra além de trazer esses escritos, mostra o cotidiano de um preso político que se opunha o multirracialismo e exigia uma sociedade não racializada. Em conversas com Richard Stengel, afirma: “estamos lutando por uma sociedade em que as pessoas parem de pensar em termos de cor… Não é uma questão de raça, é uma questão de ideias,” mostrando que ele advogava por uma sociedade desracializada.

As cartas e anotações mostram ao leitor o quanto Mandela foi engajado na luta contra o regime segregacionista sul africano, mesmo enfrentando momentos de muita dor. Durante todos os anos da prisão, ele sonhava com uma sociedade livre e democráti ca. Democracia que o elegeu presidente, sendo o primeiro homem negro a governar o seu país pela vontade da minoria em 1994.

Referências

MANDELA, Nelson. Conversas que tive comigo. São Paulo: Editora Rocco, 2010

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2004.

Josiel Santos – Universidade Federal do Tocantins.


MANDELA, Nelson. Conversas que tive comigo. São Paulo: Editora Rocco, 2010. Resenha de: SANTOS, Josiel. O que Tata escreveu. Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v. 20, n. 38, p. 130- 133, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960)/Tempos Históricos/2019

O presente número da Revista Tempos Históricos, o periódico científico do Programa de Pós-Graduação e do Curso de Graduação em História da Unioeste, apresenta o seguinte dossiê: O pensamento intelectual, a historiografia e o ensaísmo na produção intelectual brasileira e latino-americana (1870-1960). Leia Mais

A escrita da história da educação no Brasil: experiências e perspectivas / Revista Brasileira de História da Educação / 2019

A produção de dossiês temáticos tem sido uma prática recorrente nas últimas décadas nas publicações acadêmicas, especialmente no campo das ciências humanas e sociais. As chamadas públicas de artigos utilizadas por parte dos periódicos acadêmicos representam estratégias de mobilização de pesquisadores para pensarem e produzirem análises em torno de determinados temas. Estes, em regra, são oriundos de demandas do próprio campo acadêmico, seja para atualizar um debate que é estratégico para o funcionamento do campo, seja para atender uma demanda institucional ou para suprir lacunas teóricas ou temáticas no Estado da Arte do campo.

Considerando este elenco de razões associadas à presença dos dossiês nos periódicos acadêmicos, a publicação – pela Revista Brasileira de História da Educação (RBHE), do dossiê A escrita da história da educação no Brasil: experiências e perspectivas – justifica-se, por um lado, como demanda institucional que visa marcar a comemoração dos vinte anos da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE: 1999-2019). Por outro, investe e contribui para a atualização de uma discussão que é uma constante na área de história e, por extensão, da história da educação, ou seja: a reflexão em torno da sua escrita, a partir da problematização da historiografia da educação, entendida como a história da história da educação.

Acreditamos que é função precípua da SBHE fomentar esse debate sobre os diferentes modos de produzir conhecimento histórico-educacional, de maneira a mantermos atualizada a percepção sobre os movimentos teóricos e temáticos no interior da área de conhecimento e, assim, reconhecer tendências em curso no interior campo científico e disciplinar. Partimos da premissa que as reflexões sobre a historiografia da educação contribuem para a afirmação da identidade do campo, à medida que localizam e problematizam as obras e os autores reconhecidos como marcos da interpretação do passado educacional, considerando os tipos de fontes, as demarcações temporal e espacial, as teorias sociais e as linguagens utilizadas pela pesquisa na especialidade em diferentes contextos. Nessa chave de leitura, a análise historiográfica é regida pela compreensão, a um só tempo, textual e contextual das narrativas, considerando não somente os contextos disciplinar e científico, mas, também, a ambiência social, intelectual e política na qual as narrativas e os historiadores estavam e estão imersos.

O papel da SBHE na indução dessa reflexão sobre a historiografia da educação é perceptível à medida que analisamos os debates realizados nas dez edições dos Congressos Brasileiros de História da Educação (CBHE), organizados pela SBHE. Toda essa produção encontra-se publicada, seja na forma de livros, especialmente na Coleção Horizontes, mantida pela Comissão Editorial da SBHE, ou como Anais Congressuais que reúnem os trabalhos apresentados nos CBHEs. Nesse sentido, decidimos aproximar e somar os debates produzidos nos congressos e o potencial de disseminação de conhecimento da RBHE, a partir da publicação desse dossiê, como parte das atividades congressuais do X CBHE, realizado na cidade de Belém, entre os dias 02 e 05 de setembro de 2019. Essa ação permitiu a convergência de esforços e recursos e, sobretudo, reafirmou o compromisso da SBHE, da RBHE e dos CBHEs com o tema da historiografia da educação.

Esse dossiê reforça o papel da RBHE na publicização da pesquisa da área. O lugar ocupado pelo periódico – avaliado com os conceitos A1 e B1 nas grandes áreas de Educação e de História respectivamente, além da indexação em bases relevantes, como a SciELO – garante a visibilidade dos resultados das pesquisas e, por extensão, a circulação do conhecimento em âmbito nacional e internacional. Para além de lugar de exposição de artigos submetidos espontaneamente, o periódico assume com este dossiê, pela primeira vez organizado a partir de uma chamada pública, uma nova função, qual seja: fomentar e dirigir a produção de determinados temas e problemas históricos.

Dessa maneira, inaugura-se uma nova modalidade de publicação no periódico, com regras próprias e diferenciadas, se comparadas com os dezesseis dossiês publicados anteriormente pela revista, entre 2001 e 2018. Nessa nova modalidade não existe limite para o número de artigos publicados, uma vez que, dos mais de trinta textos submetidos à chamada publica, todos aqueles sintonizados com a temática e aprovados no mérito acadêmico foram publicados. A diversificação dos modos de publicar no periódico atende ao objetivo de qualificar a posição ocupada pela RBHE no espaço editorial acadêmico.

Sobre a posição da revista no contexto das publicações acadêmicas alguns dados são ilustrativos e pretendemos compartilhar nesse momento. Em primeiro lugar, destacamos o crescimento do número de artigos publicados anualmente e as mudanças na periodicidade da RBHE entre os anos de 2001 e 2018.

Analisando esse gráfico verificamos algumas oscilações no número de artigos publicados, mas, considerando a série que reúne todos os números da revista entre 2001 e 2018, é perceptível o crescimento sustentado, especialmente a partir de 2011. As mudanças de periodicidade são também evidências importantes desse movimento de ampliação da circulação do periódico. A RBHE foi criada como periódico semestral em 2001 e assim permaneceu até 2006, entre 2007 e 2015 a periodicidade foi quadrimestral, entre 2016 e 2017 a revista assumiu a trimestralidade, passando a publicação contínua em 2018, em sintonia com demandas dos campos editorial e científico, que exigem a aceleração do processo entre a submissão de originais, sua avaliação e publicação.

A ampliação crescente do número de artigos publicados é resultante do aperfeiçoamento técnico e gerencial do periódico, atendendo às modernas e internacionais normas para as publicações acadêmicas, assim como do amadurecimento e da consolidação da pesquisa em história da educação no país. É evidente que, sem produção qualificada na área, não há como sustentar um periódico como a RBHE. A rigor, é importante mencionar que a RBHE não é a única revista dedicada à publicação da produção em história da educação no mercado editorial acadêmico no Brasil, já que as grandes áreas da Educação e da História contam com, pelo menos, mais seis periódicos especializados no tema. Soma-se a esta produção veiculada em periódicos especializados um outro conjunto significativo de produtos de pesquisa em história da educação publicados em periódicos importantes, mas não especializados, da grande área de Educação. Acrescente-se, ainda, os periódicos internacionais vinculados ao tema. Em síntese, a amplitude desse espaço editorial é uma evidência, incontestes, da pujança da produção de pesquisas em história da educação no Brasil.

Um problema histórico do campo é a concentração da produção em determinadas instituições, estados e regiões do país. Esta não é uma questão exclusiva da história da educação, já que a concentração de recursos e, por extensão, de instituições qualificadas de pesquisa é uma constante nas diferentes áreas do conhecimento, reproduzindo as marcantes diferenças sociais e econômicas do país. Não obstante, a distribuição estadual e regional dos artigos publicados pela RBHE, entre 2001 e 2018, revela que, apesar da concentração da produção, a história da educação tornou-se um tema tratado em todas as regiões e em vinte e um dos vinte e seis estados que compõem a federação.

São Paulo e o Sudeste representam as maiores concentrações em termos estaduais e regionais. Na região Sul, Paraná e Rio Grande do Sul se equiparam, enquanto na região Nordeste os pesquisadores sediados em instituições do estado de Sergipe têm o maior número de artigos publicados na RBHE. No Centro-Oeste o Mato Grosso do Sul e no Norte o Pará são os estados de origem dos pesquisadores com maior concentração de publicações nas respectivas regiões.

Em termos institucionais, cerca de cento e quarenta instituições de pesquisa se fizeram representar por seus pesquisadores nos dezoito anos de circulação do periódico. O gráfico a seguir mostra as vinte instituições, nacionais e internacionais, que mais publicaram no periódico entre 2001 e 2018.

Outra frente de investimento importante da RBHE é a internacionalização do periódico. No âmbito do trabalho editorial destaca-se a inclusão de um Editor Associado com afiliação em instituição estrangeira, além do periódico contar com a colaboração de dez pesquisadores estrangeiros como membros do Conselho Editorial, perfazendo um total de 36% do conjunto dos conselheiros. Estes colaboradores estrangeiros estão vinculados a instituições da América do Norte, do Sul e da Europa. Sobre os artigos vale mencionar que 30 % são publicados em versão bilíngue (inglês e português), além do periódico aceitar a submissão de manuscritos em inglês e espanhol. Esse esforço de visibilidade da revista, para além das fronteiras nacionais, tem dado resultados, já que pouco mais de 20% dos artigos publicados, entre 2001 e 2018, foram submetidos, por demanda espontânea, por autores com afiliação institucional no exterior, distribuídos de acordo com o gráfico a seguir.

Fica evidente na distribuição dos artigos oriundos de pesquisadores com afiliação institucional no exterior a concentração na Península Ibérica e na América do Sul, com destaque para Argentina e Portugal. A questão da língua e da proximidade das fronteiras têm favorecido esse intercâmbio, contudo segue a necessidade de encontrar meios e estratégias capazes de ampliar a circulação internacional do periódico. A presença de pesquisadores franceses em número expressivo pode ser explicada pela ênfase na interlocução teórica da área com a cultura historiográfica francesa, especialmente em relação à chamada nova história cultural. Em relação à América do Norte percebemos nos últimos anos a ascendência de artigos procedentes do México e dos EUA, constituindo espaços de interlocução que deverão ser consolidados.

Apresentados estes dados e argumentos referentes aos papéis e às ações da SBHE e da RBHE nos planos acadêmico e editorial, passamos a apresentar o dossiê A escrita da história da educação no Brasil: experiências e perspectivas. O Dossiê está composto por treze artigos, produzindo uma cartografia extensa de temas, abordagens e fontes mobilizadas na escrita da história da educação brasileira. Foram privilegiadas pelos autores, das mais diversas regiões do Brasil, reflexões que problematizaram o campo de pesquisa e as contribuições da SBHE ao longo de seus vinte anos de existência.

Abrindo o dossiê, o artigo Historiadores da Educação Brasileira: gerações em diálogo, de Antonio Carlos Ferreira Pinheiro, que apresenta aos leitores pesquisa, realizada especialmente para os propósitos das efemérides dos vinte anos da SBHE, por meio do conceito de gerações, traçando uma ampla visada do perfil dos pesquisadores da área de diferentes tempos e espaços institucionais.

Em seguida, o artigo O “grupo de Laerte” e a escrita da história da educação (1962-1972), de Bruno Bontempi Jr, retomando as contribuições do professor Laertes Ramos de Carvalho, na organização do primeiro projeto integrado de produção de conhecimento em história da educação no Brasil, iniciado nos anos de 1950, na Universidade de São Paulo.

O artigo, Presença franciscana e supremacia jesuítica no campo da História e da História da Educação na época colonial – um diagnóstico na pesquisa historiográfica a partir da análise dos CBHE da SBHE, de Luiz Fernando Conde Sangenis e Peter Johann Mainka, permite um olhar sobre um período da história da educação brasileira, que começa a ganhar visibilidade entre os pesquisadores nos congressos realizados pela SBHE. Os autores salientam a predominância dos estudos sobre os Jesuítas e destacam a importância das pesquisas que dão visibilidade à presença da ordem Franciscana, no âmbito da história da educação brasileira.

Apresenta-se na sequência, um conjunto de artigos dedicados à história das instituições escolares trazidas por autores que nos apresentam estudos que vão desde as concepções sobre os tipos de instituições escolares: As escolas que construímos: a História de Instituições Escolares na Revista Brasileira de História da Educação, de Ademir Valdir dos Santos e Ariclê Vechia; A Contribuição dos Estudos sobre Grupos Escolares para a Historiografia da Educação Brasileira: reflexões para debate, de Rosa Fátima de Souza. Dando continuidade, dois artigos cujo olhar dos autores dirige-se para a vida cotidiana das escolas, amparados em abordagens sobre a cultura escolar e cultura material escolar: A Escrita da Arquitetura Escolar na Historiografia da Educação Brasileira (1999-2018), de Marcus Levy Bencostta; e A cultura material da escola: apontamentos a partir da história da educação, de Andre Luiz Paulilo. E, finalizando esse conjunto de artigos temos um estudo comparativo sobre as festas escolares em Portugal e no Brasil: Festejar aqui e lá: a escrita comparada das festas escolares no Brasil e em Portugal (1890-1920), de Renata Marcílio Cândido.

No artigo de Eliane Teresinha Peres, A constituição de um arquivo e a escrita da história da educação: do gesto artesão à prática científica, a autora discute o importante papel da organização dos acervos escolares, como parte da constituição da memória sobre o universo escolar e, também, como prática do exercício de formação dos pesquisadores.

Nos dois artigos que se seguem História e historiografia da Educação de Jovens e Adultos no Brasil – inteligibilidades, apagamentos, necessidades, possibilidades, de Cristiane Fernanda Xavier e Educação não escolar: Balanço da produção presente nos Congressos Brasileiros de História da Educação, de Maria Betania Barbosa Albuquerque e Jane Elisa Otomar Buecke, os autores enfatizam dois temas ainda pouco explorados no âmbito da história da educação brasileira, identificando, inclusive, as possíveis razões para essas ausências.

O penúltimo artigo do dossiê, Cartografia das produções em história da educação nos programas de pós-graduação em educação no Pará (2005-2018), de Laura Maria Silva Araújo Alves, Vitor Sousa Cunha Sousa Cunha Nery e Livia Sousa da Silva, para além de apresentar a vitalidade das pesquisas em história da educação no Pará, estado que acolheu a décima edição do Congresso Brasileiro de História da Educação, em setembro de 2019, apresenta e amplia a percepção sobre as diferentes escritas da história da educação no país.

Fechando o dossiê temos o artigo de Marisa Bittar, Vinte anos da Sociedade Brasileira de História da Educação: com os olhos no futuro. A autora recupera a história da SBHE (1999-2019) e projeta possibilidades para o futuro, apresentando para a comunidade de pesquisadores novos desafios.

Como se percebe nos textos aprovados, ainda que não constasse no escopo da chamada pública do dossiê o papel da SBHE, muitos artigos tomam como tema, como fonte ou como problema a entidade e as suas instâncias de divulgação e produção do conhecimento. Este movimento espontâneo dos pesquisadores evidencia o lugar central ocupado pela SBHE, RBHE e CBHEs, nos horizontes da produção do conhecimento em história da educação no país.

Desejamos uma boa leitura.

Carlos Eduardo Vieira – Doutor em História e Filosofia da Educação (PUCSP – 1998); Pós-Doutor nas Universidades de Cambridge (2008) e Stanford (2015). Professor e Pesquisador da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil. E-mail: cevieira9@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-6168-271X

Claudia Engler Cury – Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atuou como Tesoureira da Sociedade Brasileira de História da Educação nos biênios (2013-2015 e 2015-2017), professora associada IV do departamento de história da Universidade Federal da Paraíba. Membro efetivo dos Programas de Pós-Graduação em História e em Educação da UFPB. É editora-chefe da RBHE. E-mail: claudiaenglercury73@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0003-2540- 2949


VIEIRA, Carlos Eduardo; CURY, Claudia Engler. [A escrita da história da educação no Brasil: experiências e perspectivas]. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v. 19, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Velha direita e nova direita: Brasil e mundo / Ágora / 2019

O dossiê da presente edição da Revista Ágora intitula-se “Velha direita e nova direita: Brasil e mundo”, e tem por objetivo tratar das múltiplas temáticas em torno dos movimentos sociais, dos intelectuais, dos partidos políticos e demais organizações congêneres, que, no curso da história, estiveram apoiados no estoque de ideias, percepções da realidade, justificativas, bem como em diferentes visões de mundo localizadas à direita do espectro político. O Dossiê procurou contemplar o acolhimento de artigos que tenham como foco as diferentes crises da democracia representativa e as instabilidades sociais que acabam levando ao recrudescimento da crítica e ao aprofundamento das desconfianças sobre o sistema democrático, ceticismo este que é significativamente incrementado quando a política, produzindo impactos sobre a economia, abre espaços para propostas de cunho conservador e/ou autoritário, que redundam na ascensão de personalidades e/ou governos de corte populistas, que, através de propaganda financiada por suspeitos interesses econômicos, acaba por angariar importantes apoios nas classes médias e populares insatisfeitas e receosas com os rumos da sociedade em que vivem.

Considerando esse amplo espectro de possibilidades, o dossiê reuniu nove artigos, organizados em ordem cronológica, que procura problematizar tais possibilidades. No primeiro, Ruth Cavalcante analisa pensamento e obra de José de la Riva-Agüero, grande intelectual peruano, que viveu na passagem do século XIX para o século XX. Analisa como esse intelectual pensou a questão da inclusão dos indígenas à nacionalidade, ao mesmo tempo em que primou pela manutenção da ordem social hieráquica naquele país. O artigo conclui que Riva-Agüero teve como intento resgatar os valores da tradicionalidade hispânica, vista como uma cultura “superior”, ao passo que alimentou uma série de preconceitos e estereótipos em relação aos povos indígenas.

No segundo artigo, Diego Stanger analisa a formação e trajetória da Ação Integralista Brasileira (AIB) no estado do Espírito Santo. Nele, o autor desvela a estrutura organizacional que possibilitou o desenvolvimento do partido em solo capixaba, discorre sobre seus principais líderes, bem como expõe as principais características do movimento Integralista com a intenção de compreender motivações que levaram indivíduos dos mais diversos segmentos sociais a se vincularem à organização no Brasil e no estado.

Em seguida, no terceiro artigo, Camila Pinheiro Rizo aborda quatro visões acerca da modernização institucional brasileira. Procura problematizar acerca de pensadores de diferentes linhagens ideológicas e de que maneira procuraram tratar, em seus pensamentos, da natureza das instituições políticas nacionais, e que ao mesmo tempo procuraram apontar caminhos para a superação do atraso brasileiro. No artigo são apresentadas duas perspectivas, uma autoritária, representada por Oliveira Viana e Azevedo Amaral; e outra democrática, defendida por Sérgio Buarque de Holanda e Nestor Duarte. Ao final, a autora conclui que, mesmo com duas concepções distintas, os autores relacionam a persistência do privado acima do interesse público como o grande empecilho à modernização institucional.

O quarto texto do dossiê é de autoria de Ueber José de Oliveira e Maria Alayde Alcântara Salim, que se debruçam sobre uma marca do ensino de história encontrado no presente, mais precisamente um material paradidático escolar produzido e distribuído pelo Ministério da Educação e Cultura no ano de 1972. A partir dessa fonte, analisam o ensino de história e de educação Moral e Cívica, que esteve vigente até o ano de 1993, mas que na atual onda conservadora vivenciada no Brasil, tem sido novamente proposta por diferentes atores, incluindo o atual presidente da República, que, como é de conhecimento, lidera um governo de extrema-direita. A conclusão é a de que, apesar da renovação em relação às concepções e as práticas que marcam o ensino de história, observamos algumas permanências e mesmo retrocessos na realidade vivenciada na prática desse ensino na educação básica.

No quinto artigo, o autor Geraldo Homero do Couto Neto trata da chamada “Nova Direita” e o amplo uso dos meios de comunicação de massa para propagandear e alavancar sua visão de mundo, focando, no presente trabalho, na utilização da ferramenta You Tube. Se concentra na utilização dessa mídia e a importância que ela assume para a negação da Ditadura militar brasileira, entre os anos de 2013 e 2018, na esfera pública. Segundo o autor, o estudo possibilita refletir acerca do papel que o historiador deve tomar frente a essas novas mídias, tendo em vista o seu grande poder de alcance de público.

O sexto artigo, escrito pelo Prof. Jair Miranda Paiva, também traz um tema atual e da maior importância: o programa Escola Viva. Nele, procura tratar do referido programa como um movimento de reafirmação do conservadorismo em educação. Procura analisar, também, referido movimento como uma nova roupagem da reação às lutas progressistas e conquistas políticas das últimas décadas, e conclui que urge uma crítica necessária a suas teses, bem como a suas articulações a outros âmbitos do conservadorismo.

No sétimo artigo do dossiê, Amarildo Lemos procura refletir acerca de alguns conceitos recorrentes no atual debate político brasileiro, especialmente a partir das chamas Jornadas de Junho de 2013, momento de grande efervescência política no país, marcado também pela ascensão de setores da direita e extrema-direita. Ademais, o trabalho procura refletir acerca de determinados pressupostos filosóficos subjacentes à corrente liberal-conservadora, que, desde as “jornadas de junho de 2013”, se apresenta como a corrente doutrinária mais adequada a eliminar a corrupção e dar mais eficiência aos serviços públicos no Brasil, em detrimento da classe política e do Estado, vistos como corrupta por excelência.

Por fim, devemos destacar que o conjunto de textos reunidos neste dossiê não tem a intenção de propor conclusões definitivas acerca dos problemas contemporâneos quanto ao soerguimento das direitas em suas novas e diferentes configurações. Ao contrário disso, a finalidade é, modestamente, abrir novos flancos de pesquisas, e provocar novas abordagens.

Ueber José de Oliveira

Leandro do Carmo Quintão

Os Organizadores

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Auctoritas e potestas no Ocidente Tardo Antigo e Medieval / Ágora / 2019

O presente dossiê pretende homenagear a prof. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães Taconni, da USP que tem sido uma referência nos estudos medievais no Brasil (v. texto homenagem redigido pelo Dr. Ruy de Oliveira Andrade (UNESP) e uma espécie de mentora e esteio de nosso modesto grupo de pesquisa, o LETAMIS).

Deixemos ao querido Ruy, a missão agradável de homenagear a ‘Aninha’, como a chamamos, e passemos ao conteúdo do dossiê. Encontram-se nele artigos que começam no período final do Império Romano e se estendem pelo medievo todo. Os primeiros artigos se localizam na Antiguidade Tardia e, de certa forma, no final do Império Romano e no período das invasões germânicas.

José Mário Gonçalves, egresso do Letamis/PPGHIS, inicia esta série com um trabalho sobre o bispo Agostinho de Hipona e seu epistolário, que mostra como eram ‘cordiais’ as relações entre católicos e donatistas, apesar da retórica dos sermões, mostrando uma faceta diferente de um conflito diante de uma convivência. Usa o cotidiano como referência e apresenta uma face mais amena da disputa religiosa.

Geraldo Rosolen Junior nos traz uma interessante polêmica que analisa visões de dois clérigos sobre os invasores vândalos, que acabaram por tornar-se um adjetivo pejorativo, quando sabemos que godo se tornou símbolo de nobreza na península Ibérica. Ambos os povos saquearam Roma (godos em 410; vândalos em 455), mas o segundo é um termo pejorativo e o primeiro é de nobreza. A percepção dos dois conflita muito quando os autores percebem os invasores vândalos de forma muito estigmatizada.

Kelly Cristina da Costa Bezerra de Menezes Mamedes nos oferece uma análise das urdiduras da corte de Justiniano, um imperador oriental (reinou entre 527-565) que articulou uma reconquista do império ocidental, conseguindo certo sucesso. A questão destacada são as relações de corte, as políticas dentro do palácio imperial e não as guerras travadas. Os mecanismos de resistência do monarca diante dos riscos de golpe.

Diego Carvalho estabelece uma conexão entre as concepções de Agostinho de Hipona e sua influência nos conceitos de atividade política na Cidade de Deus sob um foco filosófico e político, através do olhar de teóricos como Hannah Arendt, Koselleck, Weber e outros. Numa ampla e bem articulada reflexão, lança questões e análises que enriquecem o tema. A influência do bispo de Hipona no medievo é de longa duração.

Passemos ao recorte cronológico que a historiografia já define como período medieval.

Abre o grupo nosso recém doutorando Jordano Viçose, que nos traz a questão da auctoritas episcopal do arcebispo de Compostela Diego Gelmirez, que deve articular sua presença de governante efetivo e exercer a justiça num contexto de conflitos urbanos e contestação de sua potestas por elementos urbanos diversos. Gelmirez é um dos responsáveis pelo brilho que Compostela adquire no medievo.

Segue o nosso egresso, hoje prof. Doutor Luciano Vianna (Universidade Federal de Pernambuco) que nos oferece um trabalho sobre história escandinava. Recortamos um trecho de seu resumo. Eis: “A Saga dos Ynglingos (c. 1225), de Snorri Sturluson (c. 1179-1241), apresenta a linhagem dos Ynglingos abordando aspectos originários, mitológicos, literários e históricos sobre os antigos povos escandinavos. O objetivo deste artigo é analisar a relação entre a recuperação da memória da linhagem ynglinga e a proposta educacional política”.

O terceiro deste grupo é um trabalho de Sara Bittencourt, que analisa o medo do feminino em construção no século XV. Aparentemente se trata de um momento, perto da era moderna, mas é o contexto que virá a gestar o ‘manual de caça às bruxas’ ou Malleus maleficarum que é um marco da misoginia e o prenúncio das queimas de ‘bruxas’ na Alemanha, Inglaterra e nas colônias norte americanas. Um tema que está no nosso cotidiano e sempre gera interesse.

O quarto artigo focado no medievo, é de Edilson Alves de Menezes Junior, que enfoca através de uma análise socioeconômica o processo dialético dos conflitos sociais do sistema feudal na França, no âmbito do período de 1180-1226. Trata-se de uma análise das relações, ora tensas, ora harmônicas, entre nobreza, clero e camponeses, numa sociedade estratificada e estruturada em três estamentos. O crescimento urbano e comercial ainda não afetou as relações sociais entre os estamentos e o feudalismo está entre o auge e o início lento de uma crise, mais visível no período da guerra dos cem anos.

A questão das relações entre a auctoritas e a potestas nas universidades medievais é o tema do artigo de Cícera Leyllyany F. L. F. Müller. Enfocando a escolástica e seus pensadores principais, a autora discorre sobre como os conflitos entre imperador e papa se introduzem nos espaços universitários, que acabam sendo palcos de polêmicas de cunho teológico-político.

O penúltimo artigo do período medieval é de autoria de uma dupla. Regilene Amaral compõe com Sergio Feldman uma análise da polêmica cristã judaica em dois focos: Feldman faz um ‘longo’ trajeto de quase mil anos, olhando as origens remotas dos debates e dos conflitos teológicos entre as duas religiões. Já Regilene Amaral foca em sua pesquisa de mestrado, olhando só e apenas para o século XIII, os Debates de Paris e, especialmente, Barcelona.

Fechando o dossiê temos um artigo da homenageada, que não sabia antes da publicação do dossiê que ela nos daria sua preciosa colaboração e receberia a homenagem. Um texto ensaístico ousado, denso e bem embasado que faz múltiplas comparações entre o império medieval e as noções de identidade política e cultural que antecedem e consolidam o império germânico gestado por Bismarck (1871). A historiografia e o nacionalismo alemães do século XIX, buscando suas ‘raízes’ no Sacro Império Romano Germânico. Um tema que tem muita transcendência e supera os limites do medievo, trazendo reflexões para nossa realidade.

Desfrutem do dossiê.

Sergio Alberto Feldman

Ludmila Noeme Santos Portela

Roni Tomazelli

Editores do dossiê e da edição da Revista Ágora

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Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade – FEENBERG (C)

FEENBERG, Andrew. Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade. Tradução de Eduardo Beira; Cristiano Cruz e Ricardo Neder. Portugal: MIT Press, 2017. Resenha de: HABOWSKI, Adilson Cristiano; CONTE, Elaine. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

A obra Entre a razão e a experiência: ensaios sobre tecnologia e modernidade, de Andrew Feenberg, traduzida para o português por Eduardo Beira, Cristiano Cruz e Ricardo Neder, apresenta inicialmente uma introdução a Andrew Feenberg e à teoria crítica da tecnologia, com o propósito de informar o leitor sobre a biografia e as produções teóricas de Feenberg. Na obra são esboçadas as principais ideias sobre o fenômeno técnico, o que Feenberg denomina de “Teoria crítica da tecnologia”, evidenciando seu vínculo com as reflexões autocríticas da tradição cultural.

Andrew Lewis Feenberg nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 1943. Seu interesse pela filosofia e literatura o levaram para a formação em Filosofia, graduando-se na Universidade John Hopkins em 1965, seguindo para a Universidade da Califórnia, em San Diego, onde obteve o título de mestre em 1967. Nos anos posteriores, passou pela Universidade de Paris, na França. Ao retornar aos Estados Unidos, Feenberg realizou o doutorado na Universidade da Califórnia, sob a orientação de Herbert Marcuse, concluindo essa etapa em 1973. Além das muitas atuações como conferencista e docente visitante em instituições de diferentes países, Feenberg trabalhou como professor na Universidade Estadual de San Diego de 1969 a 2003. Mudou-se para Vancouver, Canadá, assumindo a posição que até hoje ocupa, a de professor na Universidade Simon Fraser e a cátedra em Filosofia de Tecnologia. Leia Mais

Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – RAMEY (C)

RAMEY, J. Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2016. Resenha de: MOSQUERA, Óscar Emerson Zuñiga. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 202-207 2019.

A obra de Joshua Ramey – Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – publicada em 2016 pela editora Las Cuarenta traz uma relevante contribuição aos estudos de filosofia da educação no Brasil. O livro é para professores e pesquisadores interessados em se aprofundar tanto nos estudos espirituais como na obra de Deleuze, toda vez que as referências espirituais do “filósofo da diferença” foram tratadas como algo acidental no conjunto de suas obras. Em relação ao autor, Joshua Ramey é Doutor em Filosofia pela Villanova University, e suas pesquisas se centram na Filosofia contemporânea, incluindo tópicos como: teoria social crítica, economia política e teologia política. Além do livro que aqui apresentamos, recentemente, publicou Politics of divination: neoliberal endgame and the religion of contingency (2016), além de vários artigos sobre filósofos contemporâneos.

Sem dúvida, Ramey consegue estruturar uma leitura séria e rigorosa da obra deleuziana. Trata-se de uma abordagem heterodoxa em relação aos estudos e usos da obra de Deleuze, especialmente no Brasil, tal como se evidencia em recente coleção sobre o autor intitulada Deleuze, desconstrução e alteridade (CORREIA; HADDOCK-LOBO; SILVA, 2017) ou em obras de destacado valor para estudos deleuzianos no País vinculados à educação (GALLO, 2011), nos quais termos como espiritualidade, hermetismo e Ramey não são mencionados. Igualmente, essa leitura subversiva de Deleuze não está presente no campo dos estudos espirituais, conforme trabalhos importantes nessa temática foram revisitados em Röhr (2013). Isso posto, a leitura hermética do corpus deleuziano possibilita uma convincente interconexão entre aspectos como natureza, política, ontologia e ética. Leia Mais

El derecho educativo: miradas convergentes – GONZÁLEZ ALONSO (C)

GONZÁLEZ ALONSO, F. (Ed). El derecho educativo: miradas convergentes. Espanha: Caligrama Editorial, 2018. Resenha de: TIMM, Jordana Wruck. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

O livro intitulado El derecho educativo: miradas convergentes, editado por Fernando González Alonso, foi publicado pela Caligrama Editorial, em outubro de 2018 e é fruto das discussões feitas durante o CICNIDE 2017 (V Congreso Internacional y I Congreso Nacional de Investigación en Derecho Educativo), realizado no México. Trata-se de contribuições de representantes das RIIDES Nacionais (Rede Internacional de Investigação em Direito Educativo) de oito países, sendo eles: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Espanha, México.

O livro está dedicado a todos os que buscam a paz, a tolerância, o respeito e a convivência. Também aos que se esforçam pela promoção e defesa dos direitos, bem como a toda a RIIDE estendida por tantos países, conforme dedicatória que abre a presente obra. Além disto, o livro é composto pelo prólogo de autoria de Andrés Otilio Gómez Téllez (presidente da RIIDE e representante da Rede no México), de doze capítulos, sendo onze redigidos em Língua Espanhola e um escrito em Língua Portuguesa. Leia Mais

Filosofia do cuidado – MORTARI (C)

 

MORTARI, Luigina. Filosofia do cuidado. Tradução de Dilson Daldoce Junior. São Paulo: Paulus, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Gabriel Luís. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 196-201, 2019.

Filosofia do cuidado é o segundo título da coleção Mundo da vida, inaugurada com a obra: Edmund Husserl: pensar Deus, crer em Deus (2016), da filósofa italiana Angela Ales Bello. A obra aqui apresentada caracteriza-se, sobretudo, pela abordagem de um tema específico, já exposto no título: o cuidado. Luigina Mortari, na verdade, já dedicou outras obras a essa temática, entre elas: A prática de cuidar (La pratica dell’aver cura) (2006), Cuidar de si mesmo (Aver cura di sé) (2009), Cuidar da vida da mente (Aver cura della vita della mente) (2013) e, mais recentemente, Filosofia do cuidado (Filosofia della cura) (2015). O principal ponto da obra (agora traduzida ao português) é o enfoque ético dado pela autora à dimensão filosófica do cuidado. A dimensão ética, porém, não é colocada de chofre como algo simplesmente dado ou como um pressuposto necessário a um mínimo entendimento da obra. Uma das intenções de Mortari é justificar por que o cuidado tem uma estreita ligação com a ética e, para tanto, propõe-se a construir um caminho ao longo da obra.

A estrutura da obra ajuda a compreender três aspectos cruciais: o ponto de partida teórico, a metodologia utilizada e os resultados alcançados. Há quatro capítulos: “Razões ontológicas do cuidado”, “A essência de um bom cuidado”, “O núcleo ético do cuidado” e “O concretizar-se da essência do cuidado”. O primeiro esclarece o ponto de partida teórico: aí a autora já sinaliza à relação entre ontologia e ética, bem como à importância da abordagem fenomenológica desse tema. Nesse sentido, uma ontologia do cuidado é devidamente justificada a partir de Ser e tempo (1927), de Martin Heidegger (1889-1976), à qual se somam outros dois pensadores fundamentais à continuidade do texto: Edith Stein (1891-1942) e Emmanuel Lévinas (1906-1995). O segundo capítulo, por sua vez, dá conta da questão metodológica, justificando o uso da fenomenologia como guia da pesquisa; novamente a autora se aproxima de Heidegger e traz também algumas contribuições de Husserl. Não se trata, porém, de uma mescla entre concepções distintas do que seja a fenomenologia, mas de mostrar sua relevância como método. A correlação eminente entre os dois primeiros capítulos vem à tona no terceiro: nele, de fato, a autora mostra como se desdobra essa relação entre ontologia e ética, como a fenomenologia está presente na adequada abordagem prática do cuidado e como a dimensão do cuidado é eticamente relevante ao estar em estreita sintonia com o paradigma filosófico da busca ideal do bem e de sua concretização. O quarto capítulo, muito próximo dos resultados apresentados no terceiro, mostra algumas diretrizes fundamentais à realização cotidiana do cuidado, tendo como perspectiva o paradigma ético do bem. Lá ainda são retomadas as perspectivas iniciais às quais se somam as concretizações possíveis de uma ética do cuidado. Leia Mais

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy – ATKINSON (C)

ATKINSON, Dennis. Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy. Cham, Switzerland: Springer/Palgrave Macmillan, 2018. Resenha de: BACKENDORF, Jonas Muriel. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Art, disobedience, and ethics: the adventure of pedagogy é o mais recente livro da série Education, Psychoanalysis, and Social Transformation, organizada pela Palgrave MacMillan. De acordo com a apresentação do livro, uma das finalidades principais da série é: “to play a vital role in rethinking the entire project of the related themes of politics, democratic struggles, and critical education within the global public sphere” (p. ii). Embora não trate diretamente das idiossincrasias do cenário brasileiro e sul-americano, o livro aborda com profundidade questões de fundamental relevância para a nossa realidade presente, em especial o caráter cada vez mais explícito com que as humanidades, as artes, e o pensamento desprendido como um todo vêm sendo atacadas pelo atual governo – por meio de argumentos que vão desde a ausência de “retorno para o contribuinte” até a “militância política”1 dessas áreas de estudo, argumentos que exemplificam com transparente precisão a relevância do ataque de Atkinson aos modelos pedagógicos instrumentais, bem como da defesa de uma educação crítica e desobediente.

O autor é professor emérito na Universidade Goldsmiths, de Londres, além de ocupar o cargo de docente visitante nas universidades do Porto, de Helsinki, Gothenburg e Barcelona. Um aspecto importante da sua biografia é a experiência que tem no ensino secundário, por ter trabalhado, na Inglaterra, de 1971 a 1988. O livro de que ora me ocupo é o sexto da bibliografia do autor, sendo os outros igualmente voltados para as questões educacionais: Art in education: identity and practice; social and critical practice in art education (coautoria de Paul Dash); Regulatory practices in education: a lacanian perspective (coautoria de Tony Brown e Janice England); Teaching through contemporary art: a report on innovative practices in the classroom (coautoria de Jeff Adams, Kelly Worwood, Paul Dash, Steve Herne e Tara Page) e Art, equality and learning: pedagogies against the state. O mais próximo, em conteúdo, do atual é justamente o último, em que o autor trata, já com profundidade, de algumas das questões centrais para o presente livro, a questão da desobediência e a da postura combativa frente aos modelos fechados da pedagogia instrumental. Leia Mais

Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)

MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.

Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.

A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.

A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.

No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).

Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.

No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de  Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).

Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).

A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.

Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.

A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).

De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).

No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).

Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é  determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).

Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).

Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.

31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).

Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).

Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.

O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.

Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: mjrech7@gmail.com

Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: fe.taufer@hotmail.com Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999

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Filosofia do ensino de Filosofia: propostas metodológicas para o ensino de Filosofia – SANTOS (C)

SANTOS, Rodrigo Barboza dos. Filosofia do ensino de Filosofia: propostas metodológicas para o ensino de Filosofia. Porto Alegre: Editora Fi, 2017.Resenha de: CHAVES, Kleber Santos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

O problema no ensino de Filosofia no Ensino Médio: sua natureza, seus contornos teóricos, problemas e algumas reflexões acerca do seu ensino são alguns dos aspectos que levaram Rodrigo B. dos Santos à realização de pesquisa que culminou com a obra aqui resenhada. Santos (2017) relaciona-se com tal problema desde sua experiência como professor no Ensino Médio e foi ela que determinou sua inquietude com o ensino de Filosofia. Tal inquietação motiva sua pesquisa desde a graduação, pois Santos (2017) entende o ensino de Filosofia como um problema efetivamente filosófico, páreo a tantos discutidos na tradição filosófica, apesar de constatar que há uma omissão na reflexão desses textos e autores dentro da própria Filosofia, em virtude, dentre outras, das divergências quanto à natureza de tal problema: pedagógico, didático, filosófico?

Em busca de uma resposta e inserido na tradição filosófica da hermenêutica – como interessada na interpretação dos significados adjuntos ao entendimento e às implicações desses em um escrito –, Santos (2017) parte em busca da compreensão dos sentidos que os textos apresentam para o ensino de Filosofia em um contexto no qual se entende possível tal ensino. Dessa maneira, os textos postos em comparação demonstram que o contexto de escrita da obra permite à Filosofia ser pensada como disciplina da Educação Básica, sem a perda de sua identidade. Afinal, como parte singular do conhecimento humano, não poderia a Filosofia ser mantida distante das pessoas, portanto, não poderia estar longe da escola.

Com essa compreensão, Santos (2017) organiza seu livro em quatro capítulos, precedidos pela introdução e encerrados com as considerações finais. O autor seleciona os trabalhos de Alejandro Cerletti, Lídia Maria Rodrigo e Silvio Gallo e, por meio da análise de suas obras, discute o que é o ensino de Filosofia. Justifica que a escolha dos autores se deu em virtude de o primeiro estar consagrado como referencial obrigatório dos assuntos de ensino de Filosofia de maneira mais global e de que os dois últimos são importantes referenciais do tema no Brasil.

No primeiro capítulo, é analisada “A concepção de ensino de Filosofia para Alejandro Cerletti”. São apresentadas as ideias do argentino discutidas no livro O ensino de Filosofia como problema filosófico, resultado de sua tese de doutorado. A análise leva em consideração três categorias principais: a definição de Filosofia como problema filosófico; o entendimento do que ela seja (de sua natureza) e do que se configura seu ensino. Essas categorias são empregadas na análise das obras de Rodrigo e Gallo, nos capítulos seguintes.

Começando pela análise da obra de Rodrigo (2009), já no segundo capítulo de seu livro, o autor aponta que essa foi publicada imediatamente após o retorno da Filosofia ao currículo do Ensino Médio por força da Lei Federal n. 11.684/2008. Santos (2017) destaca a preocupação de Maria Rodrigo com o que ela classifica de “banalização da filosofia”, mas não somente, uma vez que a autora oferece caminhos à superação desse risco a que a Filosofia está submetida pelo modo como ela retorna ao currículo.

Outro destaque na obra de Maria Rodrigo, apontado por Santos (2017), consiste na sua classificação pelos estudiosos de Filosofia em níveis que vão dos clássicos da Filosofia (“filósofos originais”), passando pelos especialistas (acadêmicos e professores de Filosofia), pelos estudantes de Filosofia (que almejam se tornarem especialistas) até o aluno do Ensino Médio, que parte do zero e deseja saber algo sobre a Filosofia, sem, necessariamente, ansiar por uma especialização nessa área do conhecimento.

O terceiro capítulo é dedicado ao estudo da obra de Gallo. Segundo Santos (2017), é possível destacar os seguintes elementos acerca da discussão do ensino de Filosofia efetuada por esse autor: a necessidade de o professor ter claro para si a concepção de Filosofia com a qual se identifica e que influencia no seu modo de ensino; a importância de dar ciência aos estudantes dessa concepção, permitindo que as demais visões conceituais de Filosofia estejam presentes; a indicação do conceito como objeto caro ao processo de filosofar tanto quanto ao de ensinar a filosofar.

Já no Capítulo 4, quando se apresentam as distinções marcantes entre as obras de Gallo e Certelli, Santos (2017) reafirma a aproximação entre os autores, ao mesmo tempo que afirma ser este ponto o centro da discordância entre ambos: para Gallo, a Filosofia pode ser identificada como a “criação de conceitos”; já para Certelli, seria um “processo reflexivo de problematização”. Isso implica que o primeiro aponte o ato de conceituar como centro do filosofar, enquanto o segundo, apesar de reconhecer a importância do conceito, trata a problematização como pedra angular do ensino dessa disciplina.

Concordamos quanto ao tema central do livro de Santos (2017): o ensino de Filosofia é um problema filosófico, uma vez que não pode desconsiderar a história, os clássicos, os argumentos, os conceitos e as perspectivas desenvolvidos pelos mais diversos filósofos, já que também não se pode encerrar a disciplina nesses aspectos.

O que não se pode perder de vistas é uma constante reflexão filosófica – portanto desapressada, aprofundada e não definitiva – das práticas de Ensino de Filosofia que, certamente, devem ser observadas em todas as esferas, das institucionais com as definições legais (LDB, DCN, BNCC, dentre outras), até o cotidiano em sala de aula. Além disso, não se imagina que esse processo possa ocorrer longe dos professores e pesquisadores de Filosofia, de Ensino de Filosofia e da Filosofia da Educação.

Nas considerações finais, Santos (2017) deixa o entendimento, ainda que bastante implícito, de que apenas a modificação das práticas dos professores será capaz de tornar o Ensino de Filosofia mais filosófico, o que incorre no equívoco de reproduzir o discurso de culpabilização do docente quase como único fator dos fracassos que podem ocorrer no campo da educação.

Cabe, por fim, demarcar a importância do esforço hermenêutico na obra, tanto pela revisão conceitual e comparativa realizada por meio da análise da produção de três grandes pesquisadores contemporâneos do ensino de Filosofia, de modo a subsidiar e encaminhar muitos problemas das práticas educativas dessa disciplina, quanto – talvez de modo mais urgente pelo contexto atual da educação no Brasil – pela afirmação do papel que a Filosofia desempenha no desenvolvimento educacional dos estudantes.

Por isso, lembramos: a Filosofia só esteve fora do currículo da escola quando a controvérsia, a diversidade e o diálogo foram dela expulsos. Não sendo o saber filosófico útil (no sentido mercadológico) aos interesses imediatos dos que hegemonizam na condução do País, uma vez que a Filosofia não prescreve receitas prontas, nem aceita a repetição uníssona – mas as indaga – ameaça-se a retirada do seu parco espaço em detrimento de saberes mais pragmáticos.

Kleber Santos Chaves – Licenciado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Nossa Senhora das Vitórias (IFNSV) e o Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR). Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Maurício de Nassau (UNINASSAU, 2019). Mestrando em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Integrante do grupo de pesquisa “Currículo, Gênero e Relações Étnico-Raciais” (UESB/CNPq). Professor regente de Filosofia na rede estadual de Educação do Estado da Bahia. E-mail: kleber.ksc2@gmail.com Orcid ID: https://orcid.org/0000-0002-8005-1865

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Dicionário Paulo Freire – STRECK et al (C)

STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. (Org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: ROSA, Carolina Schenatto da; SANTOS, Débora Caroline dos. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.

Paulo Freire foi, sem dúvidas, um grande reinventor de palavras e um alargador de significados. Grande pesquisador do povo brasileiro e de suas formas de comunicação, esse sujeito, à frente de seu tempo, se apropriou das palavras atribuindo-lhes sentidos singulares e profundos, cujos estudo e reinvenção são necessários ainda hoje. No prefácio do livro Pedagogia da tolerância, Lisete Arelaro diz que “Paulo Freire tem um estilo único: é um irresistível contador de estórias e ‘causos’”. (ARELARO, 2018, p. 12). Também é um irresistível transformador de conceitos, pois escolhia com cuidado as palavras, trabalhava os sentidos, sua origem e, de forma autêntica e profundamente comprometida, conferia-lhes um significado particular.

Cleoni Fernandes, no verbete Gente/Gentificação diz que o autor foi “um inventor de sentidos produzidos com outras palavras” (2018, p. 235); foi um semeador e um cultivador de palavras com o dom de pronunciar novas realidades, como destacam os organizadores do Dicionário Paulo Freire, no início da apresentação da primeira edição. Leia Mais

Cattle in the backlands: Mato Grosso and the evolution of ranching in the Brazilian Tropics – WILCOX (RH-USP)

WILCOX, Robert W. Cattle in the backlands: Mato Grosso and the evolution of ranching in the Brazilian Tropics. Austin: University of Texas Press, 2017. Resenha De: DUTRA E SILVA, Sandro. A fronteira do gado no sertão de Mato Grosso. Revista de História (São Paulo) n.178 São Paulo  2019.

A expansão da fronteira do gado é, provavelmente, um dos temas que mais apresenta convergências históricas sobre o continente americano. Essa expansão foi uma atividade que evidenciou, por diferentes registros, o impacto da presença do colonizador no Novo Mundo (DUTRA E SILVA et al., 2015). Seja por meio da introdução de animais ou de gramíneas exóticas, a fronteira do gado tem muito a responder sobre a relação entre sociedade e natureza nas diferentes paisagens das Américas. A obra de Robert Wilcox nos mostra que esse tema é ainda vibrante, fascinante, sedutor, e suas múltiplas análises e abordagens o tornam também relevante historicamente. Ou seja, a história da fronteira do gado no Novo Mundo é um tema fértil para estudiosos dedicados às mais distintas disciplinas e áreas do conhecimento, e isso não foge da produção historiográfica, seja pela diversidade de análises, atores, práticas, representações ou pela riqueza documental, até então pouco exploradas. Tudo isso está bastante visível no competente e original trabalho de Wilcox e em seu estudo sobre a expansão do gado no antigo estado de Mato Grosso e os desafios para o desenvolvimento dessa atividade nos trópicos.

Ele analisa uma fronteira distante, porém não isolada, como era conhecida a região do Mato Grosso, situada no extremo oeste do Brasil. Arrisco essa afirmação acima, porque mesmo que os caminhos e as conexões com os grandes centros econômicos do Brasil parecessem distantes, a localização dessa região na divisa com outras nações sul-americanas a colocava numa rota de influência de importantes centros exportadores de carne bovina, como o Paraguai, Argentina e Uruguai. A forma como essa relação se estabelece no texto é admirável, não apenas pela farta documentação e dados econômicos, mas também por evidenciar o sentido das distâncias e proximidades na geopolítica sul-americana.

Diferente da tese proposta por David McCreery (2006) sobre a isolada e distante província goiana, o estudo de Wilcox explora a riqueza das relações internas e externas no comércio, produção e sociabilidade na fronteira do gado em Mato Grosso. Seu escopo temporal permitiu ao autor descrever não meramente a evolução desse sistema a partir de narrativas que privilegiassem as estruturas e a lógica, mas também inserir análises relacionadas à ecologia, sociedade, tecnologia e ao cotidiano da fronteira do gado.

O autor descreve com muita propriedade as paisagens do Mato Grosso, registrando a complexidade e a diversidade da composição ecológica. Procura, igualmente, apresentar a interação desse ambiente com aquilo que denomina de ranching system, ou “sistema de produção de gado”. Esse capricho descritivo compõe um dos pontos fortes do livro e evidencia um fenômeno historiográfico interessante – o crescimento de trabalhos históricos ambientais sobre as paisagens latino-americanas . A adesão de Wilcox à história ambiental fica claro na eficiente incorporação dos fatores geográficos e climáticos, do mesmo modo que a variedade de fitofisionomias que compunham o vasto território do antigo Mato Grosso, visualizado por ele como sendo a terra da promissão para a atividade pecuária (promissed land of ranching).

Ecossistemas como o pantanal, cerrado e campo limpo foram abordados a partir da sua diversidade ambiental e dos desafios ao colonizador. A tarefa historiográfica de lidar com a dinâmica dos dados socioeconômicos e a conexão dos dados com a diversidade das paisagens não é um exercício fácil (EVANS; DUTRA E SILVA, 2017). Em geral, os historiadores ambientais se debruçam sobre análises que contemplam um ambiente geralmente homogêneo de fitofisionomias. Nesse sentido é que ressaltamos a lucidez interpretativa de Wilcox e seu esforço em descrever esse ambiente heterogêneo sobre o qual seu objeto se distribui. A diversidade é uma caracteriza fundamental nas paisagens com as quais Wilcox está lidando em seu livro, variando desde áreas alagadiças e úmidas a zonas mais secas e ameaçadas pelo fogo na estiagem. Também compreende áreas bem mais florestadas e mesmo outras de campos limpos, dominados por gramíneas nativas. Em grande parte, são áreas onde as paisagens se modificam sazonalmente e de forma absoluta. Mas ele não se intimida com esse desafio, enfrentando-o com coragem e lucidez. Há de se ressaltar que apenas coragem não bastaria. Por essa razão é que destacamos a lucidez interpretativa no uso dos recursos teórico-metodológicos disponíveis, bem apropriados pelo autor.

Acredito ser importante reforçar que Wilcox não posiciona o seu trabalho como sendo um produto histórico-ambiental. Sua pesquisa vai além dessa fronteira historiográfica. Tampouco é uma história econômica no sentido stricto, na medida em que a expansão capitalista e os investimentos na produção e comércio do gado consideram, de igual forma, as análises culturais sobre o papel dos diferentes atores sociais, suas práticas, sentidos e as representações da cultura rancheira.

Neste livro, o leitor é convidado a conhecer importantes análises sobre o mercado internacional da carne e como o Brasil aproveitou as oportunidades abertas pelas duas grandes guerras do século XX. Nesse sentido, fontes históricas auxiliam em seu debate sobre a indústria bovina e as questões de inovação tecnológica e de infraestrutura para a logística e exportação do produto. A narrativa não privilegia os dados quantitativos da produção, contudo procura dialogar com variáreis interpretativas, que enriquecem os argumentos sobre o sistema produtivo, a saber: (i) a qualidade do sal na produção do charque; (ii) o contrabando e a concorrência dos mercados na fronteira; (iii) a expansão ferroviária, implicações e variáveis do transporte fluvial, as dependências ambientais, entre outras.

Como na maioria dos enredos de fronteira, as questões agrárias e o acesso à terra aparecem nos estudos de Wilcox sobre o ranching system em Mato Grosso. Isso nos faz lembrar as críticas à tese de Frederick J. Turner (2010) e sua visão romântica da fronteira, tão criticada, tanto nos Estados Unidos quanto na América Latina. A fronteira, atualmente, está muito mais associada às barbáries e violências no campo do que à visão da terra prometida (WORSTER, 2017). É provável, também, que este seja um dos problemas que ainda persistem no Mato Grosso e na expansão da fronteira agropecuária nessa região do Brasil. O estado, além de deter o maior rebanho bovino do país, tem ainda importantes áreas dedicadas à produção de grãos e commodities para o mercado externo. As pressões sobre as áreas florestadas na Amazônia e territórios indígenas indicam que as questões agrárias na região é ainda um tema recorrente, por isso a relevância do trabalho de Wilcox, que reforça as origens de um processo dramático que envolve conflito, barbárie e toda sorte de violência. Além de expor a fragilidade de camponeses e indígenas frente às pressões do capital.

Wilcox descreve ricamente o papel dos vaqueiros, boiadeiros (cowboys), peões (ranch hands) e tropeiros (cattle drives), apresentando uma heterogeneidade cultural sobre as diferentes tarefas na lida com o gado. O autor ousa ao dialogar com a literatura e explorar as potencialidades da narrativa ficcional para a análise histórica. Isso pode ser identificado, por exemplo, na análise feita sobre o ofício dos tropeiros, ao afirmar que “[o]ne of the most romantic scenes in the literature of ranching in the Americas is the cattle drive” (WILCOX, 2017, p. 151). Os pressupostos do autor não estão focados exclusivamente na atividade da força de trabalho em si. Não obstante, evidencia as recorrências e similaridades entre esses personagens nos sertões (ou nas backlands) do continente americano. E aqui reside, em minha opinião, uma das abordagens mais preciosas do trabalho de Wilcox, bem como sua habilidade e competência como historiador. A leitura sobre as personagens ligadas à cultura do gado no texto me trouxe à memória a obra célebre do escritor goiano Hugo Carvalho Ramos Tropas e boiadas (RAMOS, 1986). Escrito em 1917, esse clássico da literatura regional reflete a riqueza simbólica dessas personagens no Brasil Central (DUTRA E SILVA, 2017). Honestamente, confesso que me interessei em saber mais sobre esse tema e ver outras narrativas das Américas. Talvez, não seja essa uma nova empreitada do autor? Eu, definitivamente, o encorajaria.

Os dois últimos capítulos do livro, no entanto, refletem a maturidade e a habilidade acadêmica do historiador em seu hercúleo esforço interdisciplinar de relacionar história e natureza. Um conjunto de abordagens são apresentadas nesses capítulos finais e que evidenciam os desafios da expansão da fronteira nos trópicos. A narrativa esclarece muito, a partir de outra perspectiva, o que a historiografia brasileira da primeira metade do século XX costumada a conceituar como a “conquista” do hinterland. Wilcox evita o argumento da imposição ecológica imperialista (CROSBY, 2011). Todavia, apresenta uma versão convincente sobre o tema em que a incorporação de novas tecnológicas (introdução de gramíneas exóticas; o melhoramento genético de animais; o manejo da dieta de minerais e nutrientes; o controle de pragas e doenças) indicam o quão atraente e abrangente é a história da ocupação humana nos trópicos. O autor não focaliza os reflexos imediatos e os impactos desses processos no ambiente natural, entretanto, a sua narrativa suscita críticas evidentes. Nessa perspectiva, a obra de Wilcox além de relevante torna-se necessária para o momento histórico em que as questões envolvendo sociedade e natureza ultrapassam as fronteiras disciplinares do conhecimento.

Editores responsáveis pela publicação: Iris Kantor e Rafael de Bivar Marquese

Referências

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Sandro Dutra e Silva – Professor Titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Goiás. Atua nos Programas de Pós-Graduação: Recursos Naturais do Cerrado (mestrado e doutorado) e Sociedade, Tecnologia e Meio Ambiente do Centro Universitário de Anápolis. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: sandrodutr@hotmail.com.

Instrucção Primaria Municipal: “50 lições ruraes” | Manoel Serafim Gomes de Freitas

A obra que ora apresentamos destacou-se no município de Pelotas em plena década de 1920 não só pela sua circulação, mas também pela sua temática, que representou uma preocupação iminente à época: a educação rural. Seu conteúdo retrata o título que lhe foi conferido uma vez que trata de ensinar cinquenta lições aos alunos das escolas rurais. Ocupou-se, predominantemente, de orientar sobre o que foi considerado, à época, a maneira mais correta de produzir alimentos e criar animais no cunho doméstico e sobre o cuidado com as plantas, dedicando 46 lições relativas a essas questões. Desse conteúdo, a obra, que possuí 122 páginas, dispôs outras 4 lições que se relacionam ao comportamento adequado dos alunos, abordando ensinamentos sobre higiene, economia rural, organização da casa no campo e sobre o hábito ideal para um “bom menino”.

Justifica-se a importância desta obra na História da Educação devido a sua circulação junto às escolas, pois, no Relatório apresentado pelo intendente municipal, relativo ao ano de 1929, podemos conferir que houve a encomenda da impressão de 1000 exemplares junto à livraria do Globo. Conforme ali constava, “foi confiada a Livraria do Globo, desta cidade, a impressão de 1000 exemplares do livro “50 lições de Agricultura e economia rural”, trabalho organizado pelo Sr. Dr. Manoel Serafim Gomes de Freitas, destinado as escolas municipais ruraes (sic)” (RELATÓRIO DE PELOTAS, 1929, p. 134). Desse modo, podemos perceber que a “obra didactiva (sic)” foi considerada um tipo de manual amplamente difundido nas escolas haja vista a grande quantidade de cópias encomendadas para a época. Leia Mais

Le plancher de Joachim – BOUDON (RH-USP)

BOUDON, Jacques-Olivier. Le plancher de Joachim: l’histoire retrouvée d’un village français. Paris: Belin, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. A micro-história debaixo do tapete. Revista de História (São Paulo) n.178 São Paulo  2019.

“Feliz mortal, quando você me ler, eu não existirei mais”. Essa é a frase, com ares de epitáfio, que abre o novo livro de Jacques-Olivier Boudon, professor na Sorbonne e importante estudioso da história político-religiosa francesa no século XIX. A obra intitulada Le plancher de Joachim, publicada na França em 2017, é um estudo notável e digno da atenção dos historiadores brasileiros, mais pela metodologia que adota e pelas fontes inusitadas que utiliza do que pelo seu clássico objeto de estudo (a história de um vilarejo francês). O livro de Boudon, contrariando a atual tendência historiográfica das análises globais, transnacionais e conectadas, tira debaixo do tapete da historiografia o velho método analítico da micro-história e mostra que ele não perdeu a utilidade nem a capacidade de abrir novos caminhos de investigação. Aliás, não era apenas o método que se encontrava esquecido: também as fontes do autor, conquanto estas no sentido denotativo. A documentação de indiscutível originalidade com que trabalha Boudon compõe-se de frases escritas a lápis em pequenos fragmentos de madeira escondidos debaixo do assoalho do castelo de Picomtal, situado no vilarejo de Crots, no sudeste da França. A identificação da autoria foi assegurada pelo próprio redator, que cuidou de se revelar à posteridade assinando e datando seus textos gravados no madeiro: trata-se do carpinteiro do vilarejo, chamado Joachim Martin, que nos anos de 1880 e 1881 realizou reparos no assoalho do castelo. As pranchas que serviram de diário ao antigo obreiro da carpintaria foram descobertas pelos proprietários do palacete durante uma reforma executada entre os anos 1999 e 2000. Por obra do acaso, Jacques-Olivier Boudon, ao longo de uma viagem de preparação de um livro sobre o retorno de Napoleão Bonaparte a Paris depois do exílio na Ilha de Elba (1815), pernoitou no castelo de Picomtal, atualmente transformado em hospedaria, e tomou conhecimento da inopinada descoberta. Mal se concluiu um livro, outro já estava a caminho.

O acervo encontrado constitui-se de 72 textos, totalizando cerca de 4.000 palavras. Não obstante a classificação cronológica dos fragmentos seja impossível, a indicação do ano pelo próprio autor mostra que os textos foram redigidos nas ocasiões em que Joachim Martin estivera trabalhando no castelo durante os verões de 1880 e 1881. Diversos são os temas tratados pelo carpinteiro: ele fala do vilarejo, de seus habitantes e representantes políticos; do padre Joseph Lagier (pároco da igreja local) cujo comportamento lascivo, agravado pela acusação de exercício ilegal da medicina, era duramente reprovado por parte da população; dos fatos da atualidade, como um episódio de infanticídio que o perturbou profundamente; da sexualidade de alguns moradores e até mesmo das investidas indecorosas feitas pelo espevitado vigário às piedosas senhoras na penumbra do confessionário. Em suma, Joachim Martin esboça um quadro detalhado do seu pequeno universo, geográfico e mental, no intuito de legar à posteridade (pressupondo que seus escritos viriam a ser descobertos no futuro, quiçá por outro carpinteiro) uma marca indelével da sua existência.

Foi a partir desse material, cujo caráter sucinto e fragmentário deixava inevitavelmente muitas questões no ar, que Boudon assumiu o desafio de elaborar um interessante exercício de micro-história, a fim de estudar uma pequena sociedade rural dos Alpes no despontar do regime republicano francês. As lentes através das quais o autor contemplou o seu fato histórico figuram entre as mais raras e relevantes para quem lida com a história social: textos escritos diretamente por um homem do povo com plena consciência do transcorrer do tempo, a despeito da origem humilde e da parca instrução, e que almejava inscrever o seu nome na história, mesmo que nenhum ato heroico ou excepcional lhe pudesse ser imputado, de modo a perenizar a própria memória. Essa consciência histórica do carpinteiro acrescenta ao estudo um elemento de ponderação muito pertinente para a história social: como os indivíduos de outras épocas lidavam com o passar do tempo? O senso comum tende a induzir-nos à conclusão de que pessoas iletradas vivem apenas o hoje, sem nenhuma preocupação com o futuro e menos ainda com a memória que deixarão depois de suas mortes. O caso de Joachim Martin é um exemplo expressivo que desmente essa ideia e mostra que a reflexão sobre o tempo e a história também pode fazer parte das inquietudes de um simples carpinteiro, como destaca Boudon:

À certains égards, Joachim Martin est un être exceptionnel par le rapport qu’il entretient au temps. Il est à mille lieues de ces gens simples décrits comme uniquement préoccupés du lendemain, vivant au jour le jour, incapables même de se souvenir de leur date de naissance. Au contraire, Joachim a l’obsession de dater les événements de sa vie. (BOUDON, 2017, p. 145)

A proposta de Boudon de analisar a história de um vilarejo por meio de um homem comum segue, em certa medida, a trilha aberta pelo trabalho de Alain Corbin (1998), o célebre historiador das sensibilidades, no qual se conta a história de Louis-François Pinagot, um artesão desconhecido que vivia nos rincões da Normandia, cujo nome foi escolhido aleatoriamente pelo autor nos inventários dos arquivos da municipalidade para ter a sua história investigada e a sua biografia reconstituída. Apesar disso, a diferença entre os estudos de Boudon e Corbin é bastante significativa: enquanto o segundo estuda um indivíduo praticamente invisível e esquecido pelo tempo, sobre o qual não havia nenhuma informação direta, o primeiro se baseia num acervo documental razoável produzido pelo próprio personagem que examina. Também é evidente a influência dos trabalhos clássicos de Carlo Ginzburg (2006) e Giovanni Levi (2000), pioneiros na aplicação do método da micro-história. Ademais, o livro dialoga de bom grado com a corrente da “história vista de baixo” (SHARPE, 1992), ao colocar em perspectiva um processo histórico, isto é, as transformações sociais de um vilarejo francês no fim do século XIX a partir da visão de um indivíduo de nível social inferior e sem participação direta nas mudanças em curso. No que diz respeito ao processo histórico propriamente dito, segundo Boudon, o testemunho de Joachim Martin ilustra a dinâmica descrita pelo historiador Eugen Weber num estudo acerca das mutações da França rural que acompanharam a chegada da República, marcadas pelo objetivo de integrar toda a população do país no corpo mais ou menos homogêneo da nação, sobretudo por intermédio da escola laica e do serviço militar obrigatório (WEBER, 1983).

Obviamente, o acervo textual de Joachim Martin não bastava para a escrita de um livro. Como toda fonte histórica, esta também deveria ser submetida à análise crítica mediante confrontação com outros documentos que permitissem preencher as lacunas factuais, bem como detectar eventuais erros, exageros ou imprecisões. Para tanto, Boudon colocou em prática o savoir faire do historiador e prospectou os arquivos nacionais, regionais e diocesanos, assim como algumas fontes impressas entre o fim do século XIX e o início do século XX que tratavam do vilarejo de Crots. Ao término da pesquisa, o autor concluiu que muitas das afirmações de Joachim eram, de fato, corroboradas por outras fontes. Cruzando as diferentes informações coletadas, foi possível escrever uma breve história daquele vilarejo a partir de alguns núcleos temáticos sugeridos pelo carpinteiro nas mensagens gravadas nas pranchas: biografia de Joachim Martin (capítulo I); descrição de Crots e da sua população (capítulo II); história dos proprietários do castelo de Picomtal (capítulo III); considerações sobre a agricultura no vilarejo (capítulo IV); contexto político local (capítulo V); moral sexual da época (capítulo VI); percepção do tempo e relação com o passado (capítulo VII); declínio da prática religiosa (capítulo VIII); e transformações no campo e êxodo rural (capítulo IX).

Impressiona nos textos de Joachim a franqueza com que ele se exprime sobre os diferentes assuntos, movido talvez pela convicção de que não seria lido (pelo menos não em vida), e a razoável habilidade com que o faz, dado curioso cuja explicação Boudon associa à fé protestante da mãe do carpinteiro que provavelmente conservava o hábito difuso no protestantismo de ler cotidianamente a Bíblia em casa. Esta é a hipótese levantada pelo autor para explicar o apego de Joachim à escrita:

La mère de Joachim était protestante. Certes, elle a accepté qu’il soit baptisé et élevé dans la religion catholique, mais on ne peut pas imaginer que son protestantisme n’ait pas eu une influence sur son éducation. En effet, les protestants sont particulièrement attachés à l’apprentissage de la lecture et de l’écriture qui permet de rentrer en contact avec les textes bibliques. Dans les temples réformés, les murs affichent pour l’essentiel des versets de la Bible. Il est peu probable que Joachim soit jamais entré dans un temple, mais il est fort possible que sa mère lui en ait parlé (BOUDIN, 2017, p. 152).

Embora sua linguagem seja simples, direta e às vezes confusa, o mero fato de utilizar a escrita como meio de reflexão, numa época em que ler e escrever ainda eram habilidades raras no campo, revela a peculiaridade do personagem e ressalta a excepcionalidade da fonte. Num trabalho de micro-história, é fundamental que o historiador encontre a individualidade do sujeito que estuda, ou seja, que saiba determinar com clareza aquilo que faz o seu relato e a sua existência dignos de interesse. O parâmetro para julgá-lo está ligado aos traços e indícios que, a partir de um ponto de vista singular, podem ser colhidos a fim de melhor decifrar a trama complexa, plural e opaca da história social, cujo intenso dinamismo dificulta uma compreensão sistemática imediata. Essa é a ideia por trás do célebre “paradigma indiciário” de Carlo Ginzburg, entendido como um princípio metodológico fundamental para evitar as distorções de estudos excessivamente generalizantes sobre determinados fenômenos sociais (GINZBURG, 1999). O estudioso que falhe nessa consideração preliminar correrá inevitavelmente o risco da banalidade e seu estudo poderá se tornar uma compilação de obviedades ou de frivolidades históricas que pouco acrescentam à compreensão de contextos ou processos históricos mais amplos. Se, por um lado, o livro de Boudon não cai nessa armadilha, por outro, são recorrentes ao longo do texto as afirmações de caráter puramente hipotético que não podem ser atestadas em virtude do silêncio das fontes ou simplesmente de sua insuficiência material, como aquela à qual se acenou acima relativa ao vínculo de causalidade entre uma certa cultura literária de Joachim e o protestantismo professado por sua mãe, que sequer é mencionada nos escritos do carpinteiro.

Apesar de se apoiar em alguns momentos em ideias meramente especulativas e sem base empírica, o livro de Boudon é um exemplo estimulante do grande potencial criativo da micro-história, reforçado pela impecável habilidade narrativa do autor. Como visto, também impressiona o caráter fortuito e extraordinário das fontes. Se, normalmente, uma pesquisa histórica começa com a importante escolha dos arquivos por parte do estudioso, nesta obra a situação foi bastante diversa: foram as fontes que escolheram o seu historiador, ansiosas por trazer à tona a história de Joachim, escondida sob o assoalho de um castelo por mais de um século. É relevante mencionar ainda que a excepcionalidade da história atraiu a atenção do grande público para o livro, ao qual o canal televisivo France 2 dedicou uma acurada reportagem de 47 minutos, no dia 3 de fevereiro de 2019. Baseando-se na visão de mundo de um “protagonista anônimo da história” (VAINFAS, 2002), revelada por uma fonte atípica de conteúdo substancial, e explorando uma temática cara às análises micro-históricas, a obra de Boudon consegue traçar com riqueza de minúcias uma história do vilarejo de Crots num período pleno de mudanças sociais e políticas que afetavam significativamente a sociedade rural na França.

1Tradução livre: “Sob certos aspectos, Joachim Martin é um ser excepcional pela relação que mantém com o tempo. Ele está a mil léguas dessas pessoas simples descritas como preocupadas unicamente com o dia seguinte, vivendo no dia a dia, incapazes até mesmo de se lembrar de suas datas de nascimento. Ao contrário, Joachim tem uma obsessão por datar os acontecimentos de sua vida”.

Editores responsáveis pela publicação:

Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.

Referências

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Jair Santos – Ex-aluno da École Normale Supérieure de Paris, mestre em Teoria do Direito pela Universidade Paris Nanterre, mestre em História pela Universidade Paris-Sorbonne. É doutorando em História na Scuola Normale Superiore di Pisa. Contato: jair.dossantosjunior@sns.it

 

História da Educação. Santa Maria, v.23, 2019.

Editorial

  • Novos tempos se anunciam
  • Maria Helena Camara Bastos (Brasil), Dóris Bittencourt Almeida (Brasil), Chris de Azevedo Ramil (Brasil), José Edimar de Souza (Brasil), Luciane Sgarbi Santos Grazziotin (Brasil), Tatiane de Freitas Ermel (Brasil)
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Dossiê “Arquitetura escolar: diálogos entre o global, nacional e regional na história da educação”

Dossiê “Manuais disciplinares, discursos pedagógicos e formação de professores (Séculos XIX e XX)”

Artigo / Article / Artículo

Entrevista / Interview / Entrevista

Resenha / Digest / Reseña

Acervo / Archive / Colección

Documento / Document / Documento

Tradução – Translation

 

Topoi. Rio de Janeiro, v.20, n.42, 2019

Topoi. Rio de Janeiro, v.20, n.41, 2019

Topoi. Rio de Janeiro, v.20, n.40, 2019.

  • Interview with Paul Thompson Entrevista
  • Correia, Sílvia
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Entrevista com Marieta de Moraes Ferreira Entrevista
  • Aranha, Patricia; Correa, Claudio
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Discursos “ímpios e sediciosos” em Portugal no final do século XVIII Artigo
  • Nunes, Rossana
  • Resumo: EN ES PT
  • Texto: PT
  • PDF: PT
  • Monasticismo, arte e riqueza na Gália tardo-antiga Artigo
  • Figuinha, Matheus
  • Resumo: EN ES PT
  • Texto: PT
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  • As Notícias recônditas e os escritos contra o Santo Ofício português na época Moderna (1670-1821) Artigo
  • Mattos, Yllan de
  • Resumo: EN ES PT
  • Texto: PT
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  • “Vou tentar ajudar minha família escrevendo essa carta”: jogos de gênero em cartas enviadas da Alemanha para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial Artigo
  • Frotscher, Méri
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  • Resistir era preciso: O Decreto de Emancipação de 1978, os povos indígenas e a sociedade civil no Brasil Artigo
  • Bicalho, Poliene
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  • Um hipódromo suburbano: a experiência do Club de Corridas Santa Cruz (Rio de Janeiro – 1912/1918) Artigo
  • Melo, Victor Andrade de
  • Resumo: EN ES PT
  • Texto: PT
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  • O Apostolado Positivista do Brasil e o SPILTN: propostas e políticas para a questão indígena no Brasil Artigo
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  • Tedesco, Alexandra
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The Age of Agade. Inventing empire in ancient Mesopotamia – FOSTER (PR)

FOSTER Benjamin R Geschichtsbewusstsein und Identität
Benjamin R. Foster and Karen Polinger Foster— 2011 Felicia A. Holton Book Award . www.archaeological.org/

FOSTER B The age of agade Geschichtsbewusstsein und IdentitätFOSTER, B. R. The Age of Agade. Inventing empire in ancient Mesopotamia. Londres y Nueva York: Routledge, 2016. 438p. Resenha de: GARCÍA, J. Álvares. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.185-189, 2019.

Profesor de Asiriología en la Universidad de Yale, Benjamin R. Foster es un gran especialista en estudios sobre el Próximo Oriente antiguo. De entre sus líneas de investigación están la Historia, general, económica y social de Mesopotamia así como también sus estudios sobre literatura mesopotámica contando con trabajos como el galardonado Civilizations of Ancient Iraq (2010) o la obra Before the Muses (última edición de 2005), una antología de la literatura acadia ya considerada una obra clave en los estudios sobre historia intelectual del Próximo Oriente antiguo.

En el presente trabajo, encuadrado en esa línea de investigación más centrada en los estudios históricos, la intención del autor es mostrar las características políticas sociales, económicas y culturales que se desarrollaron en la región de Mesopotamia durante el periodo de Akkad y por qué motivos este periodo fue visto como un referente a lo largo de la Historia posterior del Próximo Oriente durante la antigüedad.

El primer capítulo está dedicado a la historia política de Akkad. Este periodo comienza con la llegada al trono de Kish de Sargón y sus diferentes campañas de conquista, ganándose la fama de gran rey con la que se le recordará en periodos posteriores. No obstante, su hijo y sucesor, Rimush, tendrá que hacer frente a un conjunto de revueltas tras la muerte de su padre; incluso es posible que acabara sus días asesinado. Tras esto, su hermano Manishtushu alcanzó el trono iniciando un programa de conquistas y de consolidación de las mismas. Posteriormente, su hijo Naram-Sin toma las riendas del estado y su reinado constituirá el apogeo del Imperio. Al igual que antecesores suyos tuvo que hacer frente a levantamientos, por lo que es posible que el recuerdo de la represión ejercida contra los sublevados le valiera la fama posterior de rey soberbio. Durante el reinado de Naram-Sin se llevó a cabo un amplio programa constructivo y una serie de reformas administrativas y burocráticas. En política exterior, junto a las conquistas también se desarrolla la diplomacia, con matrimonios dinásticos con reinos fronterizos. Por último, el sucesor de Naram-Sin, Sharkalisharri será el último gran rey de Akkad. Finalmente, las sublevaciones e invasiones exteriores, en un contexto de crisis económica y descontrol territorial, provocarán la caída de este proyecto político.

El autor reserva el capítulo segundo a dar las claves de la sociedad durante el periodo acadio. Seguramente sea el régimen ecológico de la zona norte de Mesopotamia la que de coherencia al territorio original acadio frente a la llanura aluvial del sur, Sumer. Es en esta zona donde se desarrolla (pero no exclusivamente) un sustrato etno-lingüístico acadio. Si en términos jurídicos debemos hablar de dos grupos de población: libres y esclavos, vemos que en términos socioeconómicos estos se diversifican en relación a las propiedades y los medios con los que cuentan. Las relaciones entre los miembros de las distintas clases sociales se rigen por redes clientelares y de patronazgo. De esta forma, la administración se organiza como una red de patrones y clientes que tienen en su cúspide al propio rey, seguido por sus familiares más allegados, administradores centrales, provinciales, cultuales, militares y todo el personal administrativo dependiente de ellos.

En el capítulo tres, el autor hace una descripción de los asentamientos acadios y de aquellos centros constatados arqueológicamente desde donde el poder acadio ejercía su autoridad tanto en Mesopotamia como en la periferia. De los diferentes asentamientos se destaca la especial importancia dada por parte de la administración imperial a la explotación económica de sus territorios circundantes así como a su papel estratégico como centros de recepción de materias primas desde la periferia, como Tell Brak, Assur o Susa. Finalmente, el autor reflexiona sobre si se puede calificar al estado acadio como Imperio, afirmando que sí si atendemos al programa de conquistas y control del territorio y a la ideología real que se desarrolla de “dominio universal”. En relación al anterior, en el capítulo cuatro se explican el conjunto de bases económicas y las actividades y trabajos desarrollados en torno a ellas. Las principales actividad económica es la agricultura y la ganadería, donde era fundamental la explotación de la región del sur mesopotámico (Sumer). En cuanto al trabajo, éste estaba basado en trabajadores dependientes a tiempo completo y trabajadores reclutados en épocas muy específicas, todos retribuidos mediante sistemas de raciones. En relación a la ganadería, destacaba la oveja por su lana, la principal materia de transformación y exportación. En lo referente al comercio y transporte, el autor destaca los cursos fluviales como vía principal de comunicación, además de ser fuente de recursos pesqueros. La última parte del capítulo está dedicada al conjunto de actividades de transformación de materias primas en alimento, destacando la molienda y la producción de cerveza.

El siguiente capítulo versa sobre el conjunto de actividades de tipo artesanal/industrial que se desarrollaron en el periodo acadio. Muchas son herederas de épocas anteriores, pero durante ésta podemos apreciar una alta estandarización producto de una mayor concentración de artesanos en talleres reales y una mayor cantidad de bienes gracias a, por un lado, una mayor importación de materias primas y, por otro, una mayor demanda por parte de las élites. Así pues, el autor comienza analizando la producción cerámica; pero destaca sobre todo los trabajos en metal, piedra y madera. alcanzándose una gran maestría técnica en ellas. También hay que destacar los textiles en lana o en piel; así como las artesanías más selectas como la ebanistería o los aceites perfumados.

En lo que respecta al capítulo seis, dedicado a la religión, el autor destaca una serie de innovaciones pese a la gran continuidad en la evolución de la religiosidad mesopotámica. Las divinidades acadias que se incorporan al panteón mesopotámico destacan por ser divinidades celestiales: Shamash, Sin, Ishtar, etc. y por participar en una mitología guerrera. De entre las mayores innovaciones está la deificación de ciertos reyes en vida, como Naram-Sin, junto a la elevación de Ishtar a lo alto del panteón nacional y la política de integración de cultos y divinidades acadias con sumerias. Si bien podemos identificar ciertos templos particulares del periodo acadio, en la mayor parte de los santuarios reina la continuidad. En estos se aprecia la vinculación entre religión y política puesto que son los reyes los que llevan a cabo ritos y realizan ofrendas suntuosas. Entre las formas de piedad colectiva siguen estando las festividades, las cuales carecen de un calendario estandarizado para todo el imperio.

En cuanto al aspecto militar, tratado en el capítulo siete, vemos como los reyes acadios recogen una serie de tradiciones anteriores, como el denominarse elegidos por Enlil para reinar sobre Mesopotamia. Pero, por otra parte, fomentaron el aspecto guerrero del rey y sus capacidades personales como aptitudes necesarias para ejercer la realeza. En lo tocante a la composición y armamento del ejército, vemos que esto no cambia demasiado respecto a periodos anteriores, exceptuando la organización del mismo que es puesto bajo la autoridad de militares profesionales.

El corto capítulo ocho está dedicado al comercio y las diferentes formas de intercambio. Como ya se ha dicho, la llanura mesopotámica carece de una serie de materias primas fundamentales que debían importarse; en época acadia lo que se aprecia es un incremento en dichas importaciones. En torno a la naturaleza de este comercio, la existencia de mercaderes privados que podían estar también al servicio de las grandes instituciones, la existencia de medios de pago estandarizados como la plata y la cebada, así como también de tasas, impuestos y precios estipulados indican que la economía real del periodo era plenamente tributaria y no exclusivamente redistributiva.

El capítulo nueve viene a tratar todo lo referente a las artes y a la producción literaria. Aquí podemos apreciar una línea transversal en el arte acadio, la inclinación por representar la ideología real basada en el militarismo, la fuerza, la heroicidad y la especial relación del rey con los dioses. La escultura, el relieve e incluso la glíptica, desarrollan estos temas y en ellas se alcanza una alta perfección técnica considerándose el periodo clásico de la escultura en Mesopotamia. En literatura sobresale la princesa y sacerdotisa Enheduanna. Esta poetisa (primera de la literatura mundial) también sirvió con su obra a la ideología real a través de sus himnos a los dioses y a los reyes. En prosa destacan las inscripciones conmemorativas, y la epistolografía, que adquieren un importante valor literario. En esta producción literaria hay que destacar el uso paralelo del acadio y el sumerio como lenguas eruditas, junto al desarrollo de la música que acompañaba la representación de las composiciones literarias. Por último, la matemática y la cartografía cuentan con una importante presencia asociada a la administración.

Una vez señalada la identidad del arte y la producción intelectual, el autor centra el capítulo diez en definir los valores humanos acadios, en otras palabras, la identidad acadia. En primer lugar a través de ciertos aspectos de la vida cotidiana como el nacimiento, la niñez y la educación, la vida familiar y la casa y la muerte y el funeral. Pero el autor también analiza los sentimientos y las emociones; de las cuales solo tenemos testimonio de las experimentadas por las élites. Aquí el autor comenta como se entendía en el periodo acadio la felicidad y la tristeza, el amor y la sexualidad y el espíritu competitivo entre los miembros de la élite que pugnaban por ascender dentro de la administración imperial.

En el capítulo once, el autor reflexiona sobre la memoria de los reyes de Akkad en periodos posteriores de la historia de Mesopotamia. Si bien algunos de ellos siguieron siendo reverenciados e incluso se mantuvo su culto funerario, otros recibieron el castigo y la deshonra. Sin embargo, en su gran mayoría las estelas de los reyes acadios permanecieron en los santuarios en donde fueron erigidas, siendo copiadas por escribas y eruditos. De hecho, el autor traza una relación entre menciones a los reyes acadios en la literatura profética posterior y los hechos contados en las estelas, por lo que dichos presagios se inspiraban en estas narraciones. Las crónicas posteriores no se olvidaron tampoco de los reyes acadios generándose incluso en torno a ellos una rica literatura épica. Por su parte, el legado acadio se aprecia en los nombres y titulatura de muchos reyes posteriores, queriendo emular la fuerza y poder de sus antecesores.

El último capítulo de la obra consiste en una reflexión sobre los estudios en torno al periodo acadio. Así pues, su presencia en la historiografía sobre el próximo oriente antiguo comienza con el descubrimiento, entre mediados y finales del siglo XIX, de textos e inscripciones que hacían referencia a los reyes acadios. A partir de aquí se sucedieron durante la primera mitad del siglo XX los hallazgos y las interpretaciones sobre quiénes eran y de donde procedían. Y fue a partir de entonces cuando se empezaron a publicar las primeras síntesis. No obstante, no fue hasta el descubrimiento de los archivos de Ebla en 1975 cuando se empezó a contar con un volumen importante de información.

De este modo, Benjamin R. Foster nos ofrece una completa y detallada síntesis del periodo acadio. Podemos ver cómo el denominado Imperio de Akkad hereda una serie de procesos históricos, sociales y económicos que se iniciaron en etapas previas, así como también un conjunto de estructuras políticas e ideológicas que recogen los reyes acadios. Sin embargo, este conjunto de características heredadas se potencian en esta etapa a todos los niveles: una más alta concepción de la realeza, una burocracia estatal más sólida, una explotación de los recursos más intensiva, un deseo de compenetración de las identidades socioculturales que componían Mesopotamia. Una aceleración de procesos que alcanza el apogeo en durante el reinado de Naram-Sin. Se generó así un conjunto de características exclusivas sin las cuales no podríamos explicar la historia posterior. De esto se dieron cuenta incluso los propios antiguos, reteniendo en su memoria a los poderosos reyes acadios.

No obstante, el profesor Foster es demasiado optimista al calificar de “Imperio” al proyecto político de los reyes acadios. Esto va más allá de un simple calificativo, puesto que el concepto histórico de “imperio” encierra unas connotaciones ideológicas y unos desarrollos políticos, sociales, económicos y culturales mucho mayores que aquellas a las que llegaron los reyes de Akkad. Sin lugar a dudas este periodo marcó la historia posterior de Mesopotamia en particular y del Próximo Oriente en general, dejando una fuerte impronta en el imaginario colectivo de la región. No obstante, aquellos que defienden la naturaleza imperial del estado acadio, se dejan llevar por las fuentes posteriores que tanto veneraron la tradición de aquellos reyes. Si estudiamos la naturaleza del periodo en su contexto, vemos un alcance limitado del “Imperio” tanto en su plano ideológico como fáctico.

En este sentido, hay que decir que el debate no cosiste en preguntarse si Akkad fue o no un imperio, un error metodológico por el cual se pretende adscribir el hecho a un concepto historiográfico convirtiendo así el concepto y no el hecho en el objeto último de nuestra investigación, perdiendo por tanto el concepto su capacidad de ser herramienta explicativa del hecho histórico. Por este motivo, en primer lugar, debemos preguntarnos, ¿qué es un imperio? Si lo estudiamos desde una perspectiva más amplia, podemos ver que, a lo largo de la historia, el denominador común de todo imperio es su ideología, por lo tanto, no podemos disociar imperio de imperialismo. En este sentido, el profesor Mario Liverani hace una interesante reflexión sobre el concepto “misión imperial” en su recentísima obra, Assiria. La preistoria dell’imperialismo, Bari: Laterza, 2017. Según este concepto, la clave para poder calificar una estructura política de imperio es la necesidad de conquistar, unificar, ordenar y gobernar el mundo, generándose unas estructuras políticas e ideológicas que se derivan de este conjunto de intenciones.

Siguiendo esta norma, no podríamos calificar de imperio al estado que crean los reyes acadios. Para empezar, los afanes de dominio universal de los que hacen gala los reyes acadios no corresponden a una ideología imperialista, sino más bien a una propaganda real propia del periodo por la que desean legitimar su gobierno a través de sus propias cualidades guerreras, heroicas y, en ciertos casos, divinas. Esto se aprecia además en que los reyes de Akkad, una vez unificada Mesopotamia, no dirigen empresas de conquista más allá, sino más bien desarrollan una serie de campañas destinadas a mantener bajo control puntos estratégicos necesarios para el abastecimiento de materias primas. Esto igualmente lo vemos en la producción artística y literaria, encaminada a servir de canal de propaganda de la realeza y no a ser la muestra de la gloria y el poder el supuesto imperio.

En su vertiente más económica, la posición de vanguardia que toma la región de Akkad frente a Sumer no se debió tanto a la política económica activa de los reyes acadios, sino que responde a una dinámica ecológica por la cual los territorios aguas arriba de los dos grandes cauces fluviales tienen ventaja sobre las tierras que hay en la llanura aluvial, cuyas aguas tienden a la salinidad y el estancamiento. Si bien no podemos negar que el dominio acadio sobre toda Mesopotamia y ejercido desde esa región del norte (económicamente más favorable) pudiera acelerar el proceso, tampoco podemos afirmar de ninguna manera que fuera una política consciente de los reyes acadios. En primer lugar, porque es un proceso ecológico que se encuadra en un marco cronológico mucho más amplio, que se inició antes de las conquistas de Sargón de Akkad y que continuará tras la caída del dominio acadio, con la excepción del periodo de gobierno de la III dinastía de Ur y sólo gracias a los ingentes esfuerzos de sus gobernantes por revertir dicho proceso.

Igualmente, en su faceta socio-cultural, no podemos adscribir a los reyes acadios el que el elemento semítico de la sociedad se anteponga al elemento sumerio. Esto tiene un proceso paralelo al ecológico del que hemos hablado anteriormente. Se trata de un proceso etnolingüístico por el cual aquellas lenguas que encuentran facilidades de traducción y reproducción en otras del entorno tienden a perpetuarse. En este sentido, el sumerio, pese a haber sido la lengua en la que se escribieron los primeros textos y constituir la base cultural de los primeros estados de Mesopotamia, no deja de ser un grupo etnolingüístico aislado, sin paralelos en otras lenguas. Por el contrario, el acadio, como lengua perteneciente al tronco semítico, encuentra fácil traducción y perpetuación en otras lenguas del entorno, como el eblaíta; por lo tanto, la fluidez de información es mucho mejor entre distintos territorios. Así pues, de forma semejante a lo que se ha comentado sobre el proceso ecológico que se desarrolla en Mesopotamia, el proceso etnolingüístico que favorecía al elemento acadio sobre el sumerio pudo ser acelerado por los reyes acadios, pero no podemos adscribirles a ellos el mérito de tal hecho puesto que continuará en periodos posteriores cuando los reyes acadios ya eran tan sólo un recuerdo y el sumerio quede relegado por completo al papel de lengua erudita.

Así pues, calificar de “Imperio” al estado unificado de Mesopotamia bajo el gobierno de la dinastía de Akkad sería algo erróneo. Pese a esto, no podemos obviar el hecho de que no se trató de un estado territorial más, puesto que se implementan muchas de las estructuras políticas y económicas previas, así como se aceleran muchos de los procesos históricos sin los cuales no podríamos entender la Historia posterior del Próximo Oriente. Por este motivo, Mario Liverani, en la obra conjunta que él mismo edita, Akkad, the first world empire: structure, ideology, traditions, Padova: Sargon, 1993; recurre al término de “red imperial”. Según este concepto, el estado acadio no habría cambiado las estructuras políticas y económicas previas, sino que se habría asentado sobre ellas controlando exclusivamente las relaciones entre las mismas, convirtiéndose así el estado central en punto de intersección de dichas estructuras.

Juan Álvarez García – Universidad Autónoma de Madrid.

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De ὅρος a limes: el concepto de frontera en el mundo antiguo y su recepción – FERNÁNDEZ; De La FUENTE (PR)

FERNÁNDEZ, M. Alviz; DE la FUENTE, D. (Eds.). De ὅρος a limes: el concepto de frontera en el mundo antiguo y su recepción. Madrid: Escolar y Mayo editores, 2017. 256p. Resenha de: De la HOZ, E. Yepes. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, p.191-194, 2019.

Cuando uno tiene la suerte de que llegue a sus manos un libro que trata la cultura antigua de tan forma tan relevante para el presente como De ὅρος a limes: el concepto de frontera en el mundo antiguo y su recepción, se siente agradecido. Quizá pudiera llevar a engaño un título, por lo demás perfectamente ajustado al contenido, que llevaría a pensar que se trata de otro trabajo académico y erudito más sobre la antigüedad. Y, en efecto, guarda el rigor y el buen hacer del trabajo universitario, pues se trata de la publicación de los resultados de un proyecto de investigación de dos años (entre 2012 y 2014), bajo el mismo título y a cargo del Dr. David Hernández de la Fuente (Universidad Complutense de Madrid); proyecto vinculado a la UNED, con la participación de otras universidades e investigadores nacionales e internacionales. El engaño no viene por esta parte, sino por la a veces tan mal interpretada labor de estas instituciones, la de sus profesionales y su vínculo con sus circunstancias. Pero un estudio monográfico del concepto de frontera en el mundo antiguo necesariamente nos lleva a cuestionarnos directamente sobre nuestro propio tiempo. No es este el lugar para discutir la distinción que podría haccerse entre presente y actualidad, simplemente diré que este libro está apegado a un presente que difícilmente puede comprenderse sin las ideas clásicas de límite o frontera en su recepción, pero huelga decir que también es un libro que tiene mucho que decir sobre una dolorosa actualidad.

De ὅρος a limes: el concepto de frontera en el mundo antiguo y su recepción confronta nuestro imaginario vinculado a lo fronterizo con el de nuestros antepasados (la primera frontera que hay que pensar), no con cualquiera, con aquellos de los que decimos que sentaron las bases del derecho, la filosofía o la poesía occidentales. Que nos confronte con ello no quiere decir que se limite a darnos noticia de la existencia de conceptos fundamentales como ὅρος, πέρας o limes, cuál era su significado y cómo evolucionaron y se transmitieron en sus diferentes usos políticos y militares, además nos enseña cuáles son los límites que entran en juego en el momento en que se reduce el ámbito de su sentido a su dimensión estrictamente material, la más sangrante, sin duda, pero no la única. Que no todas las fronteras se pueden tocar es algo de lo que tenemos experiencia diaria. Pero que todas ellas nos atraviesan de un modo u otro, definiendo nuestra manera de decir «nosotros», no es una reflexión que podamos simplemente pasar por alto. Este libro, de marcado carácter interdisciplinar y plural, señala insistentemente esos lugares limítrofes que la mayor parte del tiempo se nos escapan. Al enseñarnos cómo veían los antiguos las separaciones y los tránsitos entre diferentes mundos, nos ayuda a comprender un poco mejor los nuestros, al mismo tiempo que indica qué es lo que en nosotros ya no responde a un pensamiento clásico de lo fronterizo.

Tras unas breves palabras introductorias de los editores, Marco Alviz Fernández (UNED) y David Hernández de la Fuente, el libro comienza propiamente con la contribución de Federiza Pezzoli (Universidad Carlos III de Madrid), cuyo título, “Frontera y límite en los textos literarios griegos”, subraya el carácter filológico de una discusión a propósito de las distintas apariciones de los términos relacionados con lo limítrofe en los textos clásicos griegos desde Homero hasta Plutarco, pasando por Platón, Aristóteles, Demóstenes, Heródoto, Tucídides, etc. Un texto que, pese a su brevedad, funciona muy bien como introducción terminológica (en griego), poniendo al lector en una situación adecuada no sólo para seguir el resto del libro, también para profundizar en algunas de sus tesis. Se señala, además, el aspecto lingüístico de lo limítrofe, tan fundamental como actual.

Por su parte, el texto de David Hernández de la Fuente, “Dioniso y Hefesto: cruzando las fronteras entre el campo y la ciudad”, ya supone la primera sorpresa. A través de una interpretación de aquellos dos personajes míticos griegos nos presenta la complejidad y profundidad del imaginario griego, del que sólo podemos participar hoy en la medida en que lo traducimos a otro lenguaje. La cuestión de la representación, bajo el aspecto de una reflexión sobre del lugar de los dioses, los mitos y la religión en la cosmovisión griega, es uno de los temas fundamentales de este texto. El otro, sin duda, es la separación entre el campo y la ciudad, división sociopolítica que, en lo simbólico, quedaría reconciliada por el significado de Dioniso y Hefesto como dioses mediadores, y, en lo efectivo, por las celebraciones públicas en su honor, donde el vino (regalo de Dioniso) guarda el poder para apaciguar los conflictos sociales.

“Il «confine» tra verità e finzione: Filippo II e Alessandro Magno” de Giuseppe Squillace (Università della Calabria) es uno de los dos textos en otro idioma que se recogen en este volumen; el otro, “I blemi alle frontiere dell’Alto Egitto nella letteratura tardoantica” de Daria Gigli (Università degli Studi di Firenze). Ambos, escritos en un italiano muy accesible, evidencian el carácter internacional de este proyecto. El primero investiga las figuras de Filippo II de Macedonia y su legendario hijo, Alejandro Magno, y las intrigas (militares, políticas, religiosas) a través de las cuales estas figuras traspasaron la frontera hacia la ficción mítica. No menos legendarios, los blemios, pueblo antiguo nómada fronterizo con la zona del Alto Egipto, son los protagonistas del texto de Daria Gigli. Su historia de constantes luchas fronterizas es indisociable de la mitificación de su belicosidad por la literatura tardoantigua. En una línea parecida, Ricard Blanco López (IES Santa Eulalia, Terrassa) y su “El pueblo peonio a través de las fuentes literarias clásicas: de fronteras naturales a provincia romana”, reconstruye lo que pudo ser el itinerario histórico de este pueblo a través una lectura de las fuentes clásicas, desde la Ilíada, donde el pueblo peonio aparece como aliado del troyano, hasta los testimonios en época romana de la importancia que alguna vez tuvieron en la región norte de la actual Grecia. Estos tres textos, cada uno a su modo, son claros ejemplos de la importancia histórica de las fuentes literarias clásicas, que con las modernas técnicas filológicas e historiográficas se han revalorizado.

El estudio que presenta Marco Alviz Fernández (UNED) sobre la compleja figura del «hombre divino», “El concepto de θεῖος ἀνήρ”, concentra varios de los límites que definen nuestra época respecto de la clásica. Ya sea religiosa, antropológica, social, literaria o filosófica, cualquier pregunta por el significado del vínculo de la deidad con la humanidad se realiza necesariamente desde el lado de los que vemos a ciertos hombres como modelos de virtud. Aproximarnos a la figura del θεῖος ἀνήρ, al modo como quizá lo hacían algunos de los grandes nombres de nuestra tradición, nos obliga a tomar distancia respecto de toda una historia de interpretaciones que han precipitado el sentido de lo que hoy entendemos por «hombre divino». Que la frontera entre lo humano y lo divino no es una más entre otras se aprecia desde el momento en que pone de manifiesto ciertos límites de lo conceptual, no sólo por el lado de lo sobrehumano, también por la dificultad que entraña pensar el límite en cuanto tal. Pero es la búsqueda de la causa primera (otro nombre para la divinidad), lo que ha impulsado el pensamiento occidental. Origen inaccesible más que desde la reconstrucción a partir de unos efectos que revelarían los secretos del cosmos a un alma virtuosa, capaz de rastrear en ellos sus propios límites, y de este modo trascenderlos. Ninguna más capaz ni más divina que la de la Platón, que encontró en los números, como enseña Jorge Cano Cuenca (Universitat Autònoma de Barcelona) en su texto “La causa divina y la introducción de número y límite: el Timeo y el Filebo de Platón y los limitantes e ilimitados de Filolao de Crotona”, el fondo del límite, pues no puede haber dios, mundo u hombre sin geometría, esto es, sin razón en la composición.

Con “Nuevas perspectivas sobre el concepto de frontera en época romana”, la aportación de Aránzazu Medina González (Universidad de Granada), se abre la sección dedicada al mundo romano. A partir de una crítica sustentada en una arqueología del concepto de frontera en general, denuncia el reduccionismo que ha sufrido el romano en particular, rescatando así sus matices. No es fácil decidir cuál fue el «origen» de la frontera, si una marca en la tierra o una en el imaginario, razón por la cual un estudio así trasciende cualquier hecho histórico y nos sitúa ante la pregunta por la necesidad de los límites y la transformación de su significado. También José María Blanch Nougués (Universidad Autónoma de Madrid) y su “«Status civitatis» y la frontera en la antigua Roma” ahondan en el estudio del significado de lo fronterizo en el mundo romano antiguo. Muchas cosas les debemos a los romanos, pero de entre todas ellas se pueden destacar el derecho y la lengua. La ciudadanía romana (en sus diferentes formas) aparece como el punto de encuentro entre diversas culturas y modos de decir, donde las fronteras materiales fijas y de intenciones políticas y militares eran constantemente traspasadas por la búsqueda de un proyecto común, que lejos de ser ideal, también estuvo marcado por recelos, tensiones internas e imposiciones no sólo de carácter militar.

No hay frontera sin intercambio. No hay cultura sin frontera. Sabemos que no todas las lindes son externas, que no hay exterior indiferente al interior, y viceversa. Las distintas manifestaciones artísticas, siempre muy sensibles a la experiencia de los intercambios culturales, son algunas de las señas que definen lo más propio de un modo de comprender el mundo en constante transformación. “La frontera entre la Galia y Germania como espacio de apertura estilística y el retrato imperial durante el siglo III”, de Alejandro Cadenas González (UNED/Universität Potsdam), rastrea los orígenes de un cambio estético en el mundo romano, vinculado a un cruce de influencias con el arte galo y el germano (incluye imágenes como apoyo documental). Por su parte, “El mar, la última frontera” de David Álvarez Jiménez (Universidad Internacional de La Rioja/Grupo Barbaricum) estudia las relaciones del mundo romano con el mar, desde la desconfianza que podría producir entre sus gentes el contacto con lo indomable y misterioso de la naturaleza, peligrosidad que habría calado marino era imposible sustentar el Imperio, haciendo del Mediterráneo el centro geopolítico de la época. La contribución de Eike Faber (Universität Postdam) lleva por título “Más allá de las fronteras del imperio. Los hunos, Atila y el Imperium Romanum”, y es otro claro ejemplo de cómo lo que está más allá de los límites constituye su más más acá. Un texto sorprendente, quizás demasiado breve y en algunos puntos un tanto oscuro, especialmente en su referencia a los conceptos de Deleuze y Guattari y a su aplicación al caso concreto de la relación entre el mundo romano y el de los hunos, que pide ser profundizada y ampliada.

El trabajo de Saúl Martín Gonzáles (IES Gabriela Mistral, Arroyomolinos/Asociación Zamora Protohistórica), El saltus como limes interno: minas y rutas en la Sierra de Francia en época romana” es un ejemplo de buen hacer metodológico. Con una precisión y un conocimiento de la materia admirables, presenta a parir del caso concreto la Sierra de Francia lo que significó en términos prácticos la romanización de un territorio (también incluye imágenes).

La tercera sección estaría compuesta por los textos dedicados a algunos aspectos de la recepción de la noción clásica de frontera. Toda herencia señala insistentemente un límite, sobre todo si este es constantemente traspasado por su acogida, y llama a ser pensado. “Órdenes militares y fronteras en la España medieval” de Carlos Barquero Goñi (UNED) estudia la importancia de las órdenes militares en la responsabilidad sobre la frontera. Con las religiones del Libro aparecieron las guerras santas y nuevas perspectivas sobre la legitimidad que influyeron sin duda en la idea de lo fronterizo. Andrea Castro Soto (Universidad Complutense de Madrid) y su “Límites de la democracia y la antidemocracia en la recepción moderna de la figura de Sócrates” retoman el viejo debate a propósito de la implicación de la filosofía en la política a través de ciertas lecturas de la figura de Sócrates. Detrás de los debates sobre si Sócrates (normalmente el Sócrates platónico) es o no un demócrata está la idea (platónica, quizá socrática) de que el mejor de los hombres sólo puede serlo si es de lo mejor. Por último, “Los límites de la política: Hannah Arendt y la polis griega” de Cristina Basili (Universidad Carlos III de Madrid) presenta las tesis de esta pensadora alemana muy preocupada por lo político y lo griego, y nos enseña que los límites y posibilidades de lo humano se dicen en un lenguaje político que abre la comunidad a ser de otro modo.

Dieciséis aportaciones (252 páginas) que hacen que De ὅρος a limes: el concepto de frontera en el mundo antiguo y su recepción sea un completo estudio colectivo sobre la materia, y por ello muy recomendable tanto para los que quieran profundizar en el estudio de la frontera como para los que simplemente quieren una lectura agradable que les enseñe cómo comprendían los antiguos su mundo y cómo algunos conceptos son aun hoy de aplicación.

Ethan Yepes de la Hoz – Universidad Autónoma de Mad.

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Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX – CLARES CLARES (PR)

CLARES CLARES, M. E. Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX. Murcia: Universidad de Murcia, Servicio de Publicaciones, 2017. 474p. Resenha de: TEROL, E. Micó. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.195-197, 2019.

El Servicio de publicaciones de la Universidad de Murcia ha editado Música y noches de moda. Sociedades, cafés y salones domésticos de Murcia en el siglo XIX, trabajo imprescindible para comprender los hábitos musicales de socialización de los murcianos durante la centuria decimonónica. El mismo título, Música y noches de moda, inspirado en el lenguaje periodístico del momento, como indica la propia autora, nos sitúa en la esencia de la obra. El objetivo principal de este trabajo es estudiar la música que se generó y consumió en los salones de asociaciones culturales, casas particulares y cafés de la Murcia del siglo XIX. Estos núcleos de producción y consumo musical, extraordinariamente dinámicos, fueron también espacios idóneos para la enseñanza de la música y de la cultura en general, como ha quedado patente en el trabajo de la Dra. Clares.

El campo de investigación y ámbito de estudio de la Dra. Clares se centra en la música española de los siglos XVIII al XX, prestando especial interés a la música murciana. La prensa periódica constituye el soporte documental de mayor peso en las investigaciones de la autora -también de este estudio, como ya constató en sus trabajos La vida musical murciana en la primera mitad del siglo XIX a través de la prensa: estudio y documentario; en su Tesis Doctoral La vida musical de Murcia durante la segunda mitad del siglo XIX y en diversos artículos centrados en la música teatral y en asociacionismo murciano de los siglos XIX y XX. Un minucioso vaciado de diversas colecciones y prensa periódica murciana le ha permitido recoger noticias de interés social y cultural para poder contextualizar con detalle la actividad musical de la capital murciana del Levante Español. Este sólido conocimiento del contexto y el manejo de las fuentes hemerográficas ha permitido a la autora analizar con mayor conocimiento y profundidad la socialización musical murciana. Destaca, por otro lado, la consulta al valioso archivo del Casino de Murcia, cuya documentación ha aportado a la Dra. Clares las claves para reconstruir la trayectoria de esta importante entidad murciana, todavía existente.

La obra de la Dra. Clares muestra los usos de la música de una ciudad española de la periferia, invitándonos a reflexionar sobre el enfoque reduccionista que tenemos en torno a la música española del siglo XIX. La autora examina el papel de la música en una ciudad de provincias de extraordinario dinamismo, los espacios de sociabilización del momento (cafés, salones de asociaciones y de ámbito doméstico); los hábitos de entretenimiento de la época; los gustos y la recepción del repertorio musical; la evolución de diversos géneros musicales: ópera, zarzuela, música de salón y aporta centenares de datos e información sobre composiciones de autores murcianos. La excelente idea de reproducir ilustraciones de la moda femenina de la segunda mitad del siglo XIX, como trajes sociales, nos acerca, todavía más si cabe, al ambiente de la época.

La obra está estructurada en una Introducción y tres grandes bloques, divididos en ocho capítulos: 1) La música en las sociedades culturales y recreativas (capítulos 1-3), 2) La música en los cafés (capítulos 4-5) y 3) La música en el ámbito doméstico (capítulos 6-8). El estudio se complementa con unas Conclusiones y diecinueve Apéndices. La bibliografía, los índices de Tablas, Ilustraciones, Gráficos e índices Onomástico y Toponímico cierran este magnífico estudio prologado por María Gembero-Ustárroz, Científica Titular de la Institución Milá y Fontanals del CSIC.

Esperanza Clares desgrana entre los capítulos 1-3 la trayectoria de treinta sociedades culturales y recreativas murcianas que resultan cruciales para comprender el importante papel que desempeñaron en la difusión de nuevos repertorios musicales dentro de la sociedad burguesa de la segunda mitad del siglo XIX. La sociedad murciana acudía a estos espacios de sociabilización, como ocurría en otras capitales de provincia, en busca de esparcimiento pero también de instrucción. Particularmente relevantes resultaron en Murcia la Escuela de Canto y Declamación para la carrera artística y teatral italiana y española (1881-1892), que llegó a suplir la falta de un conservatorio local, la sociedad recreativa El Casino de Murcia, que contó con orquesta propia, y organizó variadísimas actividades, desde veladas-concierto hasta bailes de sociedad y el Círculo Industrial (1862-1878), denominado posteriormente Liceo (1878-1883), que fomentó la música teatral y en su seno nació, en 1873, la Escuela de Canto y Declamación Padilla. En su análisis, la Dra. Clares demuestra que este tipo de instituciones no solo fueron cruciales para entretejer redes de socialización y canalizar el recreo de la ciudadanía sino también para atender a la –cada vez mayor- demanda de enseñanza de la música. Por tanto, este tipo de asociaciones lúdico-culturales asumieron el rol fundamental de proporcionar educación musical a la sociedad, ante una debilitada capilla de música de la catedral, otrora encargada de cubrir este rol, ante la ausencia de un plan de estudios general y de ámbito nacional que incluyera la música entre sus materias obligatorias en las enseñanzas primarias e incluso ante la ausencia de escuelas municipales de música o un conservatorio oficial en la ciudad de Murcia. Así pues, se trata de un amplio estudio de la implicación de cada una de las asociaciones analizadas y se ofrece, por primera vez, un análisis del entramado de todas ellas en una misma ciudad.

En los capítulos dedicados a la Música en los cafés (capítulos 4-5), Esperanza Clares indaga en otro espacio para la sociabilización, particularmente de moda desde mediados del siglo XIX, y a los que acudía la sociedad murciana “de cualquier condición social” en busca de ocio y entretenimiento: los cafés. La autora ha podido reconstruir gracias a las noticias aparecidas en la prensa diaria cuáles eran las formaciones instrumentales más habituales en las veladas-concierto que ofrecían, sus intérpretes, las piezas musicales que se podían interpretar en días laborales o festivos, el horario habitual y la frecuencia en que solían ofrecerse estos conciertos. Mención especial tuvo el Café Oriental, inaugurado en agosto de 1875, que se convirtió en uno de los predilectos para los murcianos y en el que llegó a actuar en alguna ocasión coros de las compañías que actuaban en teatros de la capital. El capítulo dedicado a los cafés es, junto a la música en los salones particulares, una de las partes más enriquecedoras del libro, dado que aborda una temática realmente poco estudiada por la musicología española.

La celebración de veladas-concierto en salones de casas particulares y trastiendas de almacenes de música (capítulos 6-8) fue una actividad muy frecuente en la época. Se trata de reuniones sociales que ofrecían los anfitriones a amigos y familiares, y en las que se les obsequiaba con dulces y licores. Estas “soirées” o conciertos privados incluían música, bailes e incluso, en alguna ocasión, la representación de alguna zarzuela. La autora reconstruye cómo transcurrían estas veladas desde la primera que documenta en la prensa murciana en 1865. El repertorio que se podía oír en estas veladas incluía arreglos de números de ópera y zarzuela; piezas de salón (fantasías, variaciones, nocturnos, mazurcas y valses, entre otros) para piano y o armonio; música de cámara, música religiosa y música popular. Particularmente destacadas fueron las veladas ofrecidas en el almacén de música de Adolfo Gascón y en el domicilio del compositor Antonio López Almagro.

En definitiva Música y Noches de Moda es un documentado estudio de más de cuatrocientas páginas que nos traslada a las costumbres y formas de vida de Murcia en el siglo XIX. Una obra de enorme valor por su rigor científico y por las magníficas aportaciones que supone para el estudio de la música española decimonónica. Merece la pena disfrutar con su lectura.

Elena Micó Terol – Profesora de Secundaria.

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Género y sociedad en el Egipto romano. Una Mirada desde las cartas de mujeres – ZABALEGUI (PR)

ZABALEGUI, A. Goñi. Género y sociedad en el Egipto romano. Una Mirada desde las cartas de mujeres. Oviedo: Ediciones de la Universidad de Oviedo, 2019, 360p. Resenha de: PERALES, A. Izquierdo. Panta Rei. Revista Digital de Ciencia y Didáctica de la Historia, Murcia, p.199-201, 2019.

La doctora Goñi Zabalegui nos sumerge, a partir de las cartas de las mujeres en el Egipto romano, en la historia social de Egipto bajo el dominio del Imperio. Esta publicación es la adaptación en formato libro de la tesis doctoral de la autora, Cartas papiráceas de mujeres del Egipto Romano: género y sociedad. Esta obra se incluye dentro de la Colección Deméter vinculada al grupo de investigación Deméter. Maternidad, género y familia de la Universidad de Oviedo, cuyo objetivo es la implantación y desarrollo de los estudios de género a través de dicha colección monográfica.

Para realizar este estudio la autora parte de la obra de R. S. Bagnall y R. Cribiore, Women’s Letters from Ancient Egypt, 300 BC-AD 800 que, a principios de nuestro siglo, realizaron una recopilación de los papiros y los ostraca de las mujeres desde época ptolemaica hasta parte de la Alta Edad Media. No obstante, decide profundizar en la situación concreta de las mujeres en el Egipto romano, abarcando un periodo histórico desde el siglo I a. C. al siglo III d. C. El libro se centra en tres ámbitos de la sociedad de este periodo: las relaciones sociales, la movilidad y las actividades económicas. La premisa de su autora es que un estudio exhaustivo de las cartas de este momento puede aportar una visión sobre las relaciones de género y de poder, así como la situación en que se encontraban las mujeres en este contexto.

En el primer capítulo se analizan las cartas en papiro de mujeres y la práctica epistolar durante este periodo. La autora señala que, en general, el acceso al papiro no fue caro ni difícil, aunque en algunas zonas el acceso al mismo debió ser más caro, por lo que parece ser el motivo por el cual encontramos reutilización de papiros o el uso de ostraca. Por otro lado, mientras que durante el Egipto ptolemaico la documentación se halla principalmente en el contexto funerario, en el Egipto romano aparece en el espacio urbano. No obstante, hay pruebas de correspondencia en época ptolemaica, ya que había un sistema bastante desarrollado de correspondencia entre el monarca y los subordinados, aunque la mayor parte de las cartas en papiro proceden de época romana.

Durante el segundo capítulo se retratan las relaciones sociales a través de la correspondencia. La familia constituye entonces la unidad básica de organización social y, por otro lado, es un vehículo de construcción de identidades. Había diferentes tipos de familia (nuclear, extensa, y hermanos y/o hermanas que convivían de forma independiente o con sus parejas en una misma vivienda) que podían variar dependiendo del cambio de estatus del individuo. Además, los matrimonios consanguíneos fueron habituales hasta su desaparición en el siglo III d. C. Asimismo, se trata de un periodo con altas tasas de mortalidad, un factor que influyó a las estructuras familiares de la época, y en el caso de las mujeres hay muchas muertes vinculadas al parto.

En cuanto a la situación de la mujer, mientras que el derecho egipcio proporcionaba una mayor libertad a las mujeres, en época ptolemaica se introduce la figura del tutor legal para las féminas, que continúa hasta época romana. Aunque las mujeres siguieron gozando de cierta autonomía pese a esta figura legal, se vieron afectadas ya que, aunque no dependían del tutor para gestionar propiedades o negocios, o para presentar una demanda, sí que precisaban de su compañía en determinados momentos de procesos judiciales, y, por otro lado, su participación política se vio afectada por el derecho latino y las limitaciones que este establecía para desempeñar la mayoría de oficios públicos en la zona griega del Imperio romano. Dentro del contexto familiar, al mismo tiempo, las mujeres tenían un papel importante dentro de la vida de los hijos en la tradición greco-egipcia: las madres, incluso las abuelas, podían decidir sobre la vida de los hijos.

En cuanto a las relaciones fuera del núcleo familiar las amistades también tenían un papel importante en la sociedad grecolatina, sin embargo su concepto de amistad va más allá del actual, ya que adquieren un papel primordial dentro de la esfera pública y política.

Por otro lado se encuentran las relaciones de dependencia, los esclavos y las esclavas por ejemplo, aunque en las cartas aparecen en ocasiones difuminados con otro grupo de personas cuyo estatus no aparece definido, pero que sabemos que recibían un jornal muy pequeño, por lo que su relación de dependencia podría equipararse a la de los esclavos. En las cartas la forma de comunicación de las personas dependientes es diferente, porque se muestra la necesidad o el deseo de desempeñar correctamente la tarea que se les ha encomendado, ya que probablemente en el pasado recibieron alguna crítica por no haber desempeñado bien la función encomendada, como bien señala la autora.

Se destaca que las relaciones sociales no solo están marcadas por el poder, sino que también están influidas por la reciprocidad, algo que tuvo una gran importancia en el mundo grecorromano. La reciprocidad regulaba todas las relaciones sociales, pero también las relaciones entre las personas y los dioses.

En el tercer capítulo aborda los espacios relacionados con las cartas, desde el hogar hasta los viajes. El acceso a la vivienda en el Egipto romano era privilegiado en esta provincia, cuyo valor económico lo podemos estudiar a través de contratos (alquiler, compraventa, matrimoniales), testamentos, así como los préstamos de dinero en los que se hipoteca la casa. Por otro lado, la diferencia entre lo público y lo privado es fundamental para entender los roles de género en el mundo antiguo. El papel de la mujer en la vida pública queda muy limitado debido al derecho latino, por lo que solo realizaron participaron en algunas actividades religiosas con poco poder ejecutivo, siempre determinadas por el estatus económico de las mujeres.

Asimismo hay pruebas en las cartas de los viajes de las mujeres. Dependiendo de la situación socioeconómica de cada mujer podía viajar sola o acompañada: había mujeres que solo estaban acompañadas por otros viajeros del camino, conocidos o familiares, y esclavos o escoltas en el caso de las mujeres de un estatus social elevado.

A lo largo del cuarto capítulo se detiene a analizar el rol de las mujeres dentro de la economía a través de las cartas privadas. En de este contexto el papel de las cartas fue fundamental, ya que en ellas se produce la comunicación de gestiones administrativas, por lo que forman parte de un corpus de documentación administrativa que nos permite entender la distribución y administración de la economía durante este periodo. Durante el periodo de ocupación romana se consolida la propiedad privada, lo cual provoca una fragmentación de la misma y el aumento de las parcelas pequeñas en la chora egipcia, fruto de las herencias, lo cual determina la situación socioeconómica tanto de hombres como de mujeres.

Finalmente la autora proporciona al lector un apartado de anexos: en el primer anexo encontramos una serie de tablas descriptivas con el nombre del documento, el emisor o emisora, el destinatario o destinataria, el lugar donde se ha encontrado el documento, y la fecha en que está datado; en el segundo anexo describe y analiza brevemente cada una de las cartas que se han tenido en cuenta para la realización de su estudio; y, finalmente, en el tercer anexo la autora proporciona una serie de mapas e ilustraciones.

En definitiva, el trabajo realizado por Goñi Zabalegui es, sin lugar a dudas, fundamental, no solo para entender la historia del Egipto grecorromano, sino también para el estudio del Imperio romano, la historia de género, la historia de la economía y la historia social. Además, a través de esta obra se contribuye claramente al desarrollo y la difusión de la papirología. Su obra tiene una magnífica profundidad y diversidad cuyo alcance va más allá de un estudio de género, ya que la cantidad de datos y perspectivas que maneja la autora demuestran la calidad de su estudio. Por otro lado resultaría sumamente interesante ampliar este mismo estudio a los otros periodos que aparecen en la obra de Bagnall y Cribiore, para así culminar realizando un estudio comparativo de los cambios sociales y de la construcción del género entre el año 300 a. C. y el 800 d. C. Asimismo, también supondría un gran aporte científico una profundización en la historia emocional a través de las cartas de las mujeres: por ejemplo, tratando cómo vivían su emocionalidad y qué tipo de vínculos se generaban dentro de la familia. No obstante, el estudio de la autora ya es de por sí bastante extenso y polifacético, y es en sí mismo un gran aporte para el mundo de la investigación.

Alejandra Izquierdo Perales – Universidad Complutense de Madrid.

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Suburbanización en América Latina / Urbana / 2019

Una de las características identitarias de las áreas de expansión latinoamericanas son los procesos de urbanización intersticial, producto de un crecimiento discontinuo, que no se dio de forma pareja -ni espacial ni temporalmente- sino de manera fragmentaria, avanzando en torno a pueblos de campaña, canales, caminos rurales, rutas o trazas de FFCC, industrias, que a lo largo del tiempo contribuyeron a organizar la urbanización. En esa línea, las periferias actuales, esas áreas de “entre-ciudad”, que se extienden entre ciudades consolidades y zonas rurales resultan de múltiples acciones individuales, de excepciones a la normativa, de desplazamientos y superposiciones. En ese marco incierto, se busca aportar al conocimiento del crecimiento urbano de las ciudades, revisitando perspectivas de análisis que despliegan los estudios desde la historia, desde la geografía, los estudios sociales y los objetos que construyen, pues se trata de dar cuenta de las transformaciones materiales del territorio pero también de los actores y factores que estuvieron por detrás.

Cabe precisar que, miramos al pasado a partir de las cuestiones que nos inquietan en el presente. Así resulta casi obvio señalar, que los temas relacionados a la expansión, se reposicionan en la agenda desde fines del siglo XX, atravesados por las reconfiguraciones territoriales que resultan de los cambios estructurales. En el campo de los estudios urbanos, un creciente número de textos apuntó a caracterizar y comprender las diversas manifestaciones contemporáneas de los procesos de urbanización ( Secchi, 1999; Corboz, 1983; Gorelik, 2009; Indovina, 1990; Novick, 2015), que resuenan en la literatura sobre América Latina.

Uno de los primeros debates que es necesario rescatar remite a “las palabras y las cosas”, “palabras clave”, “le mots de la ville” que examinaron las designaciones acerca de las áreas de expansión urbana. Estas voces, cuyos significados parecen inextricablemente ligados a los problemas para cuya discusión se utilizan, remiten a los debates y a los cambios de paradigma.

En los artículos del dossier existe cierto consenso sobre la imposibilidad de hablar del “suburbio”, o de la “expansión”, en singular, pues se trata de redefiniciones plurales y permanentes. En ese sentido, se buscan figuras, definiciones, que por más amplias que sean, visibilizan ciertas cuestiones, ocultando otras. En efecto, algunas investigaciones se inscriben dentro de ese campo fértil que fuera inaugurado por las “aventuras de las palabras” (TOPALOV; COUDROY DE LILLE; et al , 2010) a través de los tiempos y las geografías y en el cual los estudios urbanos continúan indagando. (HIERNAUX y LINDÓN, 2004).

Un segundo debate a rescatar, es el de las escalas de abordaje. Los artículos presentados no escapan a una discusión historiográfica de larga data, que discurre entre “lo macro” y “lo micro”, representado en las investigaciones de los años del desarrollismo por las teorías de la dependencia, la búsqueda de explicaciones generalizables a los procesos de urbanización de América Latina, seguidas en los años ochenta por el advenimiento de la microhistoria y el influjo de las historias culturales que dieron lugar a los análisis de caso particulares, a las “historias mínimas”… De algun modo, la actualización de estos debates se lee en las visiones polarizadas entre lo local y lo global, el crecimiento de la urbanización entre lo iformal o los grandes emprendimientos inmobiliarios. En esta perspectiva, se reconocen aportes muy valiosos que resaltan la ventajas de la perspectiva histórica y situadada, que parte del propio objeto para luego proponer explicaciones que bien pueden o no encajar en los análisis macro. Si desde la historia, Revel ( 1996) y Lepetit (1988) ya habían trabajado sobre “lo que se juega en las escalas”, también en el campo de los arquitectos, se puso de manifiesto la necesidad de promover un análisis multi-escalar del territorio ( SOLÀ-MORALES, 1997)(HIDALGO; ROSAS; ESTRABUCHi , 2011). Así, las intervenciones y las diversas formas de crecimiento se analizan en sí mismas pero son puestas en relación a un soporte más amplio que permite entender sus detalles y relaciones entre las partes y la totalidad. Dichos cruces, están marcados, a su vez, por las diversas temporalidades. Como lo plantearon los estudios de la geografía histórica es interesante estudiar el surgimiento de los suburbios y las periferias, ya que –si bien de manera no lineal- pueden entenderse como construcción rudimentaria de la ciudad futura. Observar sus temporalidades, los continuos procesos de transformación, se torna imprescindible, pues lo que nació nuevo, en el curso de dos o tres generaciones se fue consolidando, atravesado por renovados dilemas.

Ahora bien, teniendo en cuenta las perspectivas de análisis que adoptan los textos escogidos, podemos reconocer tres grupos principales, un texto más amplio que tiene que ver con las palabras y los procesos; la morfología y en análisis de los los tejidos urbanos y sus actores y por último, las representaciones culturales.

El primer texto, en el marco de lo que podríamos considerar como “Palabras y Procesos”, contribuye a plantear un nivel de reflexión más general acerca de los alcances de los suburbios, los bordes y las fronteras, planteando interrogantes historiográficos acerca de los alcances de las historias y de la dispersión de las fuentes documentales. ¿Cómo construir una nueva historia que supere los estudios más generalizados sin caer en los relatos anecdóticos?, en esas “historias de barrio” jamás incluida en las revisiones académicas.

En el artículo de Alicia Novick y Graciela Favelukes : “Los bordes de la región Metropolitana”, se centran en analizar los bordes “inestables” que marcan los márgenes de la urbanización de Buenos Aires. Desde una perspectiva histórica se analizan procesos que permiten restituir algunos de los múltiples hilos que se entrecruzan y se superponen, más que se suceden- en el territorio. En cuanto a la pregunta acerca de las condiciones de posibilidad de una historia de los bordes, intentan referirse a los territorios suburbanos en sus propios términos, cambiando una óptica que mira la periferia desde el centro, en un itinerario de larga duración (donde lo “difuso” es un término clave), a lo largo del cual es posible ver la mutación de los primeros bordes en áreas consolidadas, el abandono de otros, en un proceso poco lineal.

Un segundo conjunto de textos, “Formas y planos”, apunta a contribuir a una historia de los bordes desde los análisis morfológicos. Sin dejar de lado la reflexión entorno a las palabras, el mayor desafio es cartografiar las relaciones espaciales, procesos o estructuras de un determinado territorio – a partir de la información proveniente de distintas fuentes primarias, secundarias e incluso de descripciones de la ciudad registradas en diversos textos, documentos históricos y geográficos- y producir una visión de conjunto que incluya a los artifices de esos cambios, “para acercarse a conocer con detalles el fenómeno de una realidad ausente”(HIDALGO; ROSAS; ESTRABUCHi, 2011).

En el artículo de Erika Alcantar García y Héctor Quiroz Rothe “Reflexiones sobre la historiografía del suburbio en la ciudad de México”, el foco se coloca en relación a dos temáticas: la inestabilidad de las designaciones de suburbio o suburbanización, que sólo consideran posible aplicar a sectores precisos y reducidos de la periferia residencial. Y en el análisis de cinco casos de estudio: Santa María La Ribera, Lomas de Chapultepec, La colonia Hipódromo, Jardines del Pedregal y Ciudad Satélite. A través de los mismos, el artículo ilumina la heterogeneidad morfológica y social que lejos está de referenciarse en el suburbio residencial anglosajón. Allí es posible identificar edificios residenciales de alta densidad, barrios populares con distintos grados de consolidación, pueblos conurbados y por supuesto, fraccionamientos formales para familias de altos ingresos. La investigación despliega hábilmente una complejidad de tramas, en la que se vinculan aspectos legales, prácticas de expertos, modalidades de gestión en sus diferentes escalas y estrategias inmobiliarias que están por detrás de las formas de esos enclaves.

El texto de Ana Gómez Pintus : “Formación y transformación de las áreas residenciales de baja densidad. Tejidos identitarios de la expansión del GBA. 1920-1970” analiza los procesos urbanización a partir de la lectura de su morfología. Se trata de reconocer los elementos, tales como tejidos, redes que constituyen la estructura urbana y la fueron transformando. Las formas -en un sentido amplio- son contempladas como prisma para dar cuenta de una serie de procesos y de ideas que están por detrás de la urbanización. Cómo se ordenan las cosas en el territorio o cuáles son los criterios que guían la expansión son preguntas que provienen del área de los estudios morfo-tipológicos y que permiten iluminar algunas de las aristas materiales de la expansión.

Un tercer grupo de estudios “Representaciones” cambia la perspectiva disciplinar y examina las tensiones que se generan cuando se reflexiona sobre la matererialidad de la ciudad o sus suburbios, sus proyectos, planes y sus representaciones simbólicas y construcción de imaginarios.

María Paula Albernaz , en “La Suburbanización carioca. Reflejos de la identidad construida en la configuración de Engenho Novo” propone una reflexión sobre la construcción de las identidades barriales (suburbanas) de la metrópolis de Rio de Janeiro, asumiendo –desde un enfoque estructuralista- que la dimensión espacial condiciona las dinámicas urbanas impidiendo o promoviendo acciones humanas. Desde este ángulo, se estudian los procesos de formación de nuevos sectores, seleccionando momentos claves de estructuración metropolitana. Retomando los debates sobre circulación de ideas, el análisis del Barrio Ingenio Nuevo –el primero de suburbios metropolitanos- se inscribe en la consideración de una nueva categoría de “suburbios Cariocas”, que tiene una especificidad que los diferencia de los procesos de suburbanización de sectores de altos ingresos y de los alcances, propios de la tradicional definición geográfica de los suburbios anglosajones.

En correlato, en un estudio de caso en profundidad.

Diego Roldán y Anahí Pagnoni en “Configuraciones, devenires y multiplicidades del suburbio. El barrio saladillo de Rosario, Argentina” construye su aporte en una combinación de enfoques y materiales. Desde la historia urbana: identifica planos, planes y actores –privados y públicos- dando cuenta de que en los diferentes modelos de suburbanización que atravesó Saladillo -actualmente parte de la conurbación de Rosario, Argentina- a lo largo de más de un siglo. De la villa veraniega decimonónica, pasando por el pueblo de los frigoríficos, el barrio obrero modelo y llega a los asentamientos informales del siglo XXI. Mientras que desde la historia social y cultural, fotografías, publicidades y declaraciones de las compañías urbanizadoras sirven para rastrear los discursos que acompañaron a los procesos de urbanización mencionados y que han sido capaces de organizarse en torno a figuras, imaginarios que en cada momento recuperan -o esconden- momentos de la configuración siempre inestable de Saladillo.

Los tres conjuntos de trabajos, los que se centran en problemáticas de larga duración, lo que ponen el foco en las formas así como los que dan cuenta de fragmentos y casos, al tiempo que iluminan problemáticas y situaciones indican la necesidad de ampliar la mirada. Tal vez, sumando otros países, otras ciudades, otros sectores sea posible acercarse a la particular situación de los bordes e intersticios en América Latina…Pero, probablemente, la multiplicidad de situaciones, nos muestre un panorama tan heterogéneo, tan incierto, y tan difícil de aprehender como el de los bordes e intersticios…

Referências

CORBOZ, André (2004 [1983]). El territorio como palimpsesto. En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

GORELIK, Adrián (2009). Roles de la periferia. Buenos Aires: de ciudad expansiva a ciudad archipiélago, en Peripheries: Decentering Urban Theory. International Conference, U.C. Berkeley.

HIDALGO, Germán; ROSAS, José; ESTRABUCHI, Wren (2011). La representación cartografica como producción de conocimiento. En ARQ 80, Chile.

HIERNAUX, Daniel; LINDÓN, Alicia (2004). La periferia: voz y sentido en los estudios urbanos. Papeles de Población [en linea] 2004, 10 (octubre-diciembre): Fecha de consulta: 6 de mayo de 2019. Disponible en: http: / / www.redalyc.org / articulo.oa?id=11204205

INDOVINA, Francesco (2004 [1990]). La Ciudad Difusa, En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

LEPETIT, Bernard (1988). Les villes dans la France moderne (1740-1840 ). Francia: Editor Bardet Jean-Pierre.

NOVICK, Alicia (2015). Configuraciones metropolitanas: palabras, problemas e instrumentos. Habitabilidad y Políticas de vivienda en México y América Latina. En Congreso Nacional de Vivienda. 2 Congreso Latinoamericano de Estudios Urbanos, México, 2015.

REVEL, Jaques (2015 [1996]). Juegos de escalas. (dir). Buenos Aires: UNSAM.

RIVIÈRE D’ARC, Hélène (2014). Pode-se falar, nestes anos 2000, de um modelo latino-americano de cidade ou metrópole? Ponto de vista de uma europeia. São Paulo: Cad. Metrop. v. 16, n. 31. Disponible en: http: / / dx.doi.org / 10.1590 / 2236-9996.2014-3106

SECCHI, Bernardo (2004 (1999]). Ciudad moderna, ciudad contemporánea y sus futuros. En Ramos, M.A (comp.) Lo Urbano en 20 Autores Contemporáneos. Barcelona: Ediciones UPC.

SOLÀ-MORALES, Manuel (1997). Las formas de crecimiento urbano . Barcelona: Ediciones UPC.

TOPALOV, Christian; COUDROY DE LILLE, Laurent; DEPAULE, Jean-Claude; MARIN, Brigitte (sous la direction de) (2010). L’aventure des mots de la ville a travers le temps, les langues, les sociétés. Paris: Laffont.

WILLIAMS, Raymond (2003). Palabras clave. Un vocabulario de la cultura y la sociedad. Buenos Aires: Ed. Nueva Visión.

Ana Helena Gomez Pintus


PINTUS, Ana Helena Gomez. Editorial. Urbana. Campinas, v.11, n.1, jan / abr, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História das mulheres e estudos de gênero: novas questões e abordagens | Ars Historica | 2019

Neste primeiro semestre de 2019, o Comitê Editorial da Ars Historica, revista discente do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ) vem apresentar, na sua 18ª edição, o Dossiê História das mulheres e estudos de gênero: novas questões e abordagens.

Em época de cortes e contingenciamento é preciso renovar o fôlego diariamente para conseguir dar continuidade aos trabalhos acadêmicos. Vive-se um momento de grande tensão política e um crescimento do conservadorismo, das estatísticas de violência contra as mulheres, de casos de homofobia, entre outras formas de violência física e simbólica. Fazer história social das mulheres ou história das categorias de gênero é, portanto, um exercício de engajamento diário. Leia Mais

Signum – Revista da ABREM. Londrina, v.20, n.1, 2019.

Dossiê: Estudos de Gênero e Sexualidade

Artigos

Resenhas

Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos / Revista Transversos / 2019

A Revista Transversos em sua 15a edição embarca rumo às alteridades, compreensões, identidades e sensibilidades angolanas. O dossiê Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos é resultado de uma parceria da linha de pesquisa Áfricas e Diásporas Negras do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES), do Programa de Pós-Graduação Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília e do Instituto Superior de Ciências de Educação da Huíla.

No âmbito do Projeto de cooperação entre o PPG-DSCI / UnB e o ISCED-Huíla nasceu a ideia de um dossiê dedicado a Angola, depois de longa conversa com a querida e saudosa editora da revista Transversos Marilene Rosa Nogueira da Silva. O projeto de cooperação tem por intenção consolidar as relações de parcerias acadêmicas entre Lubango e Namibe, região Sul de Angola e com isso a formação da rede de universidades brasileiras entre UFRJ, UnB e UERJ. A partir de intercâmbios de pesquisadores, professores e discentes com experiências Sul-Sul nas diferentes áreas do conhecimento, como investigações antropológicas, históricas, sociológicas, dentre outras, a relação entre aquelas universidades têm se intensificado. Um pouco dessa prática interdisciplinar pode ser vista, em alguns dos textos que se seguem neste dossiê, de professores oriundos das respectivas instituições acima citadas.

Contudo, de maneira mais concreta já algumas visitas e co-orientações de trabalhos de mestrado foram realizadas e trocas de experiências institucionais foram formalizadas com protocolos e projetamos o aprofundamento desse intercâmbio para os próximos anos. Do lado brasileiro, mais do que nunca as parcerias Sul-Sul, hoje se tornaram oportunas considerando o momento que vivemos de grande retrocesso, por forças truculentas na tentativa de banimento de nossa memória e História nas relações com o continente africano.

Em relação ao contexto angolano, o projeto de cooperação com as universidades supracitadas corresponde a um processo de partilha interdisciplinar em termos de conhecimentos no sentido de relançamento da pesquisa ao nível do sudoeste que, após a independência e no período da guerra civil conheceu um hiato bastante preocupante que introduziu alguma letargia em termos de investigação ao nível das universidades aí destacadas. Assim, partindo de uma base bastante robusta de pesquisa colonial, existe um conjunto de estudos, maioritariamente organizados pela Junta das Missões Geográficas e de Investigação Coloniais que, retomados e reorganizados pelo extinto Instituto de Investigação Científica Tropical, uma vez reanalisados do ponto de vista crítico, podem constituir o chamariz para o renascimento de estudos no sudoeste angolano e, neste particular, o ISCED-HUÍLA possui responsabilidades acrescidas como vanguarda deste processo.

Os estudos ora propostos por esta parceria sul-sul, constituem uma oportunidade singular para a releitura e crítica da produção anterior e reposicionamento de todo o processo numa lógica de valorização do Outro que se pode consubstanciar no estudo da História Local e outras dinâmicas que permitam a consolidação e harmonização dos saberes endógenos às realidades locais.

Nesse sentido, o Dossiê Angola nos apresenta vários textos de ambos lados do Atlântico cruzando os respectivos interesses sobre Angola e nas respectivas interações, passada e presente. Nesse Dossiê optamos por não delimitar uma temática, somente o objeto bem amplo: Angola. O resultado, longe do tradicional número temático, mas um conjunto de textos de estudantes, professores, de instituições diferenciadas não só de autores de Angola e Brasil, mas predominantemente abordaram aspectos tão diferenciados e de ricos olhares, com vieses particulares e gerais. Acreditamos que será um ponto de partida para estimular caminhos de pesquisas.

Nessa edição, procura-se um compromisso em estudar as particularidades do pensamento angolano por olhares transversais. Reunindo-se pesquisadores e pesquisadoras de distintas instituições e áreas de conhecimento como: Biologia, História, Literatura, Moda, Patrimônio Cultural e Relações Internacionais.

Abrimos com o artigo Em Angola o ensino bilíngue pode contribuir para a Educação e manutenção da Paz Nacional de autoria de Teresa Almeida Patatas e Joana Quintas. As autoras discutem como a escola angolana pode ser uma instrumento de socialização, formação de identidades e como a Educação Bilíngue – o português e os outros idiomas falados em Angola – podem favorecer a manutenção da Paz numa Angola pós-independência. Em A formação de professores em Angola: reflexões pós-coloniais, um estudo realizado por Joana Quintas, José Gregório Viegas Brás e Maria Neves Gonçalves, reúnem-se reflexões sobre as intersecção entre o regime colonial e o pós-colonial em Angola. Em linhas gerais, o texto instiga o leitor a reflexão de dois problemas: analisar se o novo imaginário saído da pós-independência teve repercussão na formação de professores em Angola e a discutir a formação de professores nas reformas educativas subsequente ao pós-colonialismo.

Escolhas escolares dos estudantes do Ensino Superior: perfis e diferenciação social segue a propostas de estudo na linha das Ciências da Educação em Angola. Nele, o autor Edgar Essuvi de Oliveira Jacob estuda as escolhas escolares dos / as estudantes angolanos / as que ingressaram no Ensino Superior, especificamente, a estudantes de licenciatura do 1º ano distribuídos por 4 instituições de ensino superior localizadas nas províncias da Huíla e Luanda.

Por outro lado, Ermelinda Liberato, em Reformar a reforma: percurso do Ensino Superior em Angola, discute como nos últimos anos há uma crescente crítica à estrutura do Ensino Superior em Angola. Em suma, a autora estudará o período de criação e implantação das diferentes reformas educacionais do Ensino Superior em Angola.

Na onda de uma educação tecnológica e das novas tecnologias, Bernardo Chicuma Uhongo em Implementação de um Sistema b-Learning na Escola Secundária do Nambambe – Lubango descreve a implentação do Sistema b na Escola Secundária do Nambambi em Lubango e os aportes necessárias para combater a vulnerabilidade digital na localidade.

No campo da Literatura, como fonte, essa edição apresenta artigos plurais e transversais. Deslocamentos narrativos em Uanhenga Xitu e Moisés Mbambi: um contributo à cultura, língua, história e literatura angolana de autoria de Alexandre Lucas Selombo Sukukuma traz uma densa investigação a respeito do campo da Literatura Angolana como um processo de emancipação. Seu artigo abarca um diálogo transdisciplinar dos textos Uanhenga Xitu em “Mestre Tamoda e outros contos” e Moisés Mbambi em “Cenas do Feitiço”.

Heloisa Tramontim de Oliveira e Cristine Görski Severo, em Intelectuais, lutas de resistência e línguas em Angola, estudam o papel desempenhado pelos intelectuais nas lutas angolanas contra o colonialismo português, em defesa da independência de Angola, o papel das línguas e na construção de um nacionalismo angolano, entre a segunda metade do século XIX e os anos 1970.

O escritor angolano Luandino Vieira emerge nesse dossiê por um conjunto de autores e autoras. Alexandre da Silva Santos e Keith Barbosa no artigo Os mussuques de José Luandino Vieira e a História da ocupação dos espaços urbanos traz a reflexão sobre os bairros pobres de Luanda enquanto repositório de histórias e memórias sobre cenários de mobilidades e deslocamentos na capital angolana. Enquanto, Edvaldo Aparecido Bergamo e Rogério Max Canedo Silva apresentam em Nós, os Makulusu, romance de Guerra, combate, violência e libertação na narrativa de Luandino Vieira como a obra do autor é um instrumento analítico sobre os impasses étnico-culturais e socioeconômicos gerados por um conflito bélico num país em processo de descolonização, que logo deixaria de ser domínio luso e se tornaria uma nação independente.

Anibal João Ribeiro Simões no artigo Uma revisão sistemática dos textos coloniais sobre a Província do Namibe (ex-Moçâmedes) de 1800-1920 faz um mapeamento sistemáticos dos textos coloniais sobre a antiga região de Namibe, atual Moçâmedes. A pesquisa foi realizada a partir das fontes do Banco Nacional de Dados de Portugal e do Portal das Memórias da África e Oriente.

Christian Rodrigues Fischgold, em Ruy Duarte de Carvalho e o paradoxo moderno Estado-nação angolano, parte de dois textos publicados pelo autor angolano Ruy Duarte de Carvalho a saber: “Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” ainda existe, antes que haja só o outro… (2008), e Da Angola Diversa (2009). A partir deles, o autor apresenta uma visão da problemática da representação da diversidade e propõem uma cartografia das alteridades contemporâneas inseridas nas estruturas do Estado angolano.

Na aposta de diálogo entre Angola e outros territórios, Frederico Antonio Ferreira no artigo Augustus Archer, entre o passado e o futuro das relações entre o Império do Brasil e a África Portuguesa analisa a trajetória do braso-americano Augustus Archer Silva, negociante com diversas áreas de atuação em Luanda e de como tornou-se vice-cônsul do Império do Brasil em Angola entre os anos de 1865 a 1877.

Valorizar a tradição como uma das vias para a moralização da sociedade angolana: o caso da Ombala Ekovongo de António Guebe mostra como a Ombala Ekovongo é detentora de normas seculares que, no passado, jogaram e podem continuar a jogar um papel importante nesta ingente tarefa na Angola contemporânea. Angola (não é) para principiantes: estereótipos, interpelações e aprendizados em trabalho de campo de Paulo Ricardo Muller traz a experiência de trabalho de campo em Angola. O artigo apresenta a compreensão de estereótipos através dos quais atores reconhecem e são reconhecidos nas interações pessoais no cotidiano da sociedade angolana.

Helder Pedro Alicerces Bahu em “Povoamento” da Mapunda. Encontros e desencontros num espaço iminentemente colonial apresenta os desdobramentos simbólicos do bairro da Mapunda, marcadamente habitado por madeirenses durante a grande odisseia de desenvolvimento da antiga colónia de Sá da Bandeira. Pedro Figueiredo Neto no artigo Rumo à cidade: deslocamento forçado e urbanização em Angola discute os problemas da urbanização em Angola. Seu texto propõe-se a questionar que o tipos de urbanização, em Angola, não significaram melhores condições de moradia e acesso as estruturas básicas da cidade ou o direito à cidade.

Luanda, Moscou, Pretória e Washington: os discursos presidenciais em Angola sobre as relações internacionais e o conflito com a UNITA (1975-1991) de Kelly Cristina Oliveira de Araújo entrelaça diferentes discursos presidenciais e a construção dos inimigos de Angola. O artigo estuda a instituição de que o antagonista do povo angolano não estava entre ele mesmo, mas sim nas chamadas forças imperialistas.

Santos Garcia Simão em Visão holística dos museus e arquivos de Angola: uma abordagem histórica faz um estudo a partir da museologia e da arquivística em Angola em relação à criação de um Museu em Angola, em paralelo aos arquivos, surge na década de 1936 com a criação do Museu do Dundo e do Museu de Angola, a 8 de Setembro de 1938.

Paulino Soma Adriano em Omissão da marca de plural / s / : uma realidade no Português falado em Angola analisa a omissão da função plural em sintagmas lexicais e nos determinantes no português falado em Angola. O autor apresenta, portanto, como a Língua Portuguesa, em Angola, tem especificidades comparado a norma-padrão europeia.

Em notas de pesquisa, Selma Alves Pantoja descreve em Viagem a Angola: de quando comecei a “frequentar o sul” as três viagens ao sudoeste de Angola e de como nasceu a ideia de um projeto de pesquisa, os momentos de reconhecimento do terreno, do nascimento e formação da equipe e a fase inicial da pesquisa. Enquanto, Solange Maria Luis e Carla Black em O Perfil do Formador do Professor Primário e o Desafio do Programa Educar Angola 2030 – pontuam sobre uma reflexão relativa sobre o perfil do professor formador na modalidade do primário no contexto de Huíla, em Angola.

Yuri Manuel Francisco Agostinho no artigo Marcas da ação colonial em Angola: a luz das memórias e narrativas de escritores angolanos é um exercício de análise de entrevistas com literatos publicadas em dois volumes por Michel Laban, com o objetivo de compreender o colonialismo e a situação colonial, assim como as relações raciais vigentes então no país. As plantas – usos e costumes dos povos da província da Huíla, um estudo exploratório com Securidaca longipedunculata e Uapaca kirkiana de José João Tchamba e José Camonga Luís é uma texto entre Biologia e História. A nota de pesquisa traz um ensaio na compreensão e aprofundamento dos conhecimentos sobre os costumes dos povos da província da Huíla em relação a utilização dos recursos fitológicos tanto na alimentação como na medicina.

Soraia Santos em A coleção arqueológica do ISCED-Huíla: um projeto de investigação tem como proposta identificar os sítios arqueológicos levantados na região Sul de Angola, assim como, faz um trabalho de inventários, catalogação e estudo das coleções para a criação do Museu arqueológico vinculado ao ISCED-Huíla.

Em Experimentadores Marissa Moorman em Bonga´s transatlantic examina como o álbum Angola 74 produzido por Bonga contribuiu para invenção de uma angolanidade a partir das experiências de vida nos musseques de Luanda. O artigo faz uma interrelação entre música angolana e rotas urbanas transatlânticas.

Esta 15a edição traz também dois depoimentos. A moda como objeto de estudo em Luanda de Michelle Medrado e suas anotações de pesquisa, em agosto de 2018, em Angola. O depoimento evidencia a trajetória do figurino de telenovela como um objeto que nasce na narrativa ficcional e tem organizado trocas comerciais e culturais e como isso desdobrou um processo de situações e questionamentos sobre o fluxo temático da pesquisa. Peixes no deserto de Rodrigo Pires de Campos apresenta notas preliminares referentes a registros e reflexões feitos a partir da experiência do autor em sua primeira viagem à província do Namibe, Sul de Angola e a busca de conhecer mercados, principalmente, do comércio do peixe.

Encerrando o dossiê – Reflexões sobre e de Angola – inscrevendo saberes e pensamentos – temos duas entrevistas. Carmen Lucia Tindó Secco faz um diálogo com o escritor angolano Boaventura Cardoso. Enquanto, Aida Freudenthal apresenta-nos uma prosa com o engenheiro e político Fernando Pacheco.

A Revista Transversos tem nessa edição três artigos livres. Será Mbôngi’a ñgîndu a escola das Ciências políticas no antigo Kôngo? de Patrício Batsikama que discute o Mbôngi’a ñgîndu terá sido uma Escola onde se ensinava as Ciências Políticas. Laurindo Lussimo Rufino no texto Miwene-Kongo: a Instituição Teocráticoabsolutista do Reino do Kongo, no seu primeiro século de vida que discute a Instituição Miwene-Kongo e seus aspectos políticos-religiosos na fundação do Reino do Congo.

E o trabalho de Paulo José Assumpção dos Santos, Silvio de Almeida Carvalho Filho e Celeste Azulay Kelman no artigo Desafios do Ensino de História para alunos surdos em uma escola inclusive da Baixada Fluminense. No texto, os autores fazem um diagnóstico de como ocorre a inclusão escolar de alunos surdos a partir da perspectiva de professores de História de uma escola polo localizada no município de Duque de Caxias (RJ).

Convidamos a seguir os leitores e leitoras a descortinarem as próximas páginas. Esperamos, que os artigos inquietem, provoquem e sejam compartilhados. Boa leitura!

Helder Bahu (ISCED- Huíla)

Selma Pantoja (UNB)

Gustavo Sousa (INES)

Silvio Carvalho (UFRJ / UERJ)


BAHU, Helder; PANTOJA, Selma; SOUZA, Gustavo; CARVALHO, Silvio. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n. 15, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Educação e Arte: projetos, debates e ações em perspectiva histórica | Educar em Revista | 2019

O objetivo deste dossiê é problematizar, a partir de um enfoque histórico, as relações entre os campos da arte e da educação. Enfatizamos não só a análise da arte como campo específico que envolve áreas profissionais distintas, a exemplo da literatura, artes visuais, música, artes cênicas (dança e teatro), jardinagem (ARGAN; 1992, p. 13), o cinema e as mídias interativas, mas também as concepções estéticas propostas para a educação geral, em diferentes tempos e lugares, por agentes plurais.

É preciso ter em mente, inicialmente, que a palavra arte pode significar coisas muito diferentes, devendo-se tentar evitar, como remarca Gombrich (1979, p. 4), a ideia da existência de uma arte com A maiúsculo e a polarização entre, por exemplo, arte erudita versus arte popular, ou arte de elite versus arte de massa. Leia Mais

História da saúde no Brasil | Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman

Quais questões, abordagens e conceitos mobilizam o campo da história da saúde no Brasil? Quais temas já foram abordados e quais as possibilidades de expansão nesse campo de pesquisas? O que pode ser considerada uma historiografia da saúde? Como diferenciar história da medicina, história da saúde, história das doenças e história das ciências? Esses questionamentos estão na essência da coletânea “História da Saúde no Brasil”, organizada pelos pesquisadores Luiz Teixeira, Tânia Pimenta e Gilberto Hochman, todos da Fundação Oswaldo Cruz. O livro, que reúne uma visão geral sobre os diferentes trabalhos desenvolvidos na instituição em termos de pesquisa histórica, a um só tempo materializa uma visão sobre o passado da saúde no país e uma rede de pesquisadores que têm se dedicado a temas nesse espectro nos últimos trinta anos. Compreender e discutir não somente o conteúdo do livro, mas também o projeto institucional que representa, é fundamental. Leia Mais

What Is Sexual History? | J. Weeks

In 1974, when I announced to my faculty adviser that I intended to do a dissertation on some aspect of the history of homosexuality, the decision represented an act of faith on my part. At that point, there was no “gay history,” the phrase I would have then used among my peers. The year before, I had met Jonathan Ned Katz, who, together with me and a few others in New York, founded the Gay Academic Union as an effort to bring researchers of various sorts together to explore how our skills could be used to support the gay liberation movement. Katz had already written a play, Coming Out!, whose script was drawn entirely from documents he had discovered related to the history of homosexuality in the United States. He was continuing to pursue that research, and it would culminate in the massive documentary collection, Gay American History, that he published in 1976.1 Gay American History was a groundbreaking—indeed, revolutionary—piece of work. But, to me, still in the early stages of dissertation research, documents that stretched across 350 years of history on a broad range of topics— law, culture, science, social life, and more—did not necessarily demonstrate the feasibility of writing the kind of tightly knit, focused monograph that a history department expected from a graduate student. Leia Mais

Pintura de História no Museu Paulista / Anais do Museu Paulista / 2019

O dossiê “Pintura de história no Museu Paulista”, parte das ações do Projeto Temático Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, [2] insere-se em um esforço contemporâneo para que se expandam os estudos relativos à produção artística voltada às representações do passado, tendo em vista sua inescapável relevância para a formulação de imaginários sociais. Ainda muito negligenciada em função do desdém advindo dos postulados teóricos e críticos estabelecidos pelas correntes de vanguarda do século XX, a pintura de história da segunda parte do Oitocentos e das primeiras décadas do século XX foi tornada opaca nas grandes narrativas historiográficas sobre a arte europeia. Empalideceu-se, assim a compreensão dos desdobramentos das vertentes neoclássica e romântica da primeira metade do século XIX, motivo pelo qual restam notabilizadas, no caso da pintura de história francesa, sobretudo as obras de David, Gérard, Gros, Gericault e Delacroix.

No entanto, a pintura de história produzida a partir da segunda metade do Oitocentos vem, lentamente, voltando a ser objeto de estudos alentados, bem como de políticas curatoriais em museus que têm estimulado tanto a aquisição de telas quanto a restauração de acervos antes sepultados em reservas técnicas. Disso é exemplo o notável esforço do Musée d’Orsay em reverter anos de prevalência de interesse na pintura impressionista e pós-impressionista, alheias à temática histórica, empenho esse que resultou na restauração de pinturas históricas como a gigantesca tela de Auguste Glaize denominada Les femmes gauloises: épisode de l’invasion romaine (4,24 x 6,51 m), que, concluída em 1851, permaneceu enrolada por mais de 150 anos até ser restaurada em 2016, quando voltou finalmente a ser exibida, o que não acontecia desde o Salão de 1852. O mesmo museu dedicouse à aquisição e à exibição de pinturas históricas de artistas centrais para o sistema acadêmico francês, como Alexandre Cabanel, sub-representado nas coleções institucionais, o que levou tanto à compra de sua obra Le paradis perdu (1867), em 2017, quanto à transferência da tela Thamar (1875), após um depósito de cerca de 90 anos em Nice.

A gradual reversão do pouco interesse pelas pinturas de história vem ganhando espaço mesmo em museus históricos, nos quais tais obras de arte desempenham um papel central nas narrativas visuais formuladas desde a primeira metade do século XIX. A exposição Louis-Philippe et Versailles, [3] ocorrida entre 2018 e 2019, voltou-se ao processo de conversão do símbolo maior do Antigo Regime em museu histórico em 1837, no qual a pintura de história teve papel central. A imensa Galeria das Batalhas, quase sempre preterida pelo público – e pela divulgação oficial do Palácio de Versalhes – em prol da Galeria dos Espelhos, foi um dos temas centrais dessa exposição, que abordou ainda a constituição das Salas das Cruzadas, do Consulado e do Império, da Criméia e às dedicadas à África, em que está situada a tela Prise de la Smalah d’Abd-el-Kader par le duc d’Aumale à Taguin, 16 mai 1843, de Horace Vernet (concluída em 1845), com seus monumentais 4,89 x 21,70 m. Em todas essas salas, as pinturas de história foram o instrumento decisivo para que se pudesse construir uma narrativa visual da história da França, que se estendia desde a constituição do reino merovíngio até as conquistas ultra mediterrâneas. Tal narrativa, cuja ambição maior era ressignificar o palácio e consagrá-lo à memória da formação da nação francesa, tornava-se ainda um instrumento de reconciliação política nacional sob a Monarquia de Julho, que reunira ali a quase totalidade das pinturas de grande formato encomendadas ou adquiridas por Napoleão, que passaram a habitar o palácio junto com dezenas de outras dedicadas a celebrar “todas as glórias da França”.

Essa retomada de interesse pela pintura de história na França é verificável também na obra referencial de Pierre Sérié, que manifesta sua imensa vitalidade na segunda metade do século XIX, [4] apesar da historiografia comumente conceder espaço para a emergência do impressionismo, de um circuito comercial fortemente independente das encomendas públicas e enfatizar a decadência do sistema acadêmico. Sérié demonstra como as tensões que atravessavam a produção de pintura de história na primeira metade do século XIX, devido aos embates entre o Neoclassicismo e o Romantismo, se renovam nas décadas seguintes em função dos embates gerados pelas ideias renovadoras e anticlássicas de Gustave Moreau em face da plástica rafaeliana de Cabanel ou de Bouguereau, além da progressiva emergência da pintura decorativa mural como forma de renovação das representações do passado que retira das telas imensas a primazia de suporte visual para os discursos sobre o passado. Também Zsuzsanna Tóth, abordando a produção húngara da segunda metade do século XIX, reforça essa convicção de vitalidade da pintura de história no período, em função das numerosas encomendas a pintores de história, como Bertalan Székely, Viktor Madarász e Gyula Benczúr. [5] Tal demanda por produção de obras que promovessem a consciência nacional esteve fortemente associada aos embates pela autonomia política, que acabaram por resultar na implantação da monarquia dual com os austríacos em 1867 e na consagração de Budapeste como a outra capital dos Habsburgos. O célebre Mihály Munkácsy pode ser considerado a culminância desta intensa produção de artistas húngaros, tendo sido tanto ser um píncaro da evocação nacionalista magiar, como na tela Honfoglalas (Conquista Húngara, de 1893), que adorna o Parlamento de Budapeste, como o autor (não austríaco) da pintura Apotheose der Renaissance (Apoteose da Renascença, de 1890), situada sobre a escadaria principal do Kunsthistoriches Museum, da velha capital rival, a austríaca e germânica Viena.

Micah Joseph Christensen igualmente sinaliza como a produção de pintura de história na Espanha manteve seu vigor na segunda metade do Oitocentos, [6] período em que as encomendas públicas passaram paulatinamente a competir com um mercado privado, também voltado ao consumo de obras acadêmicas. O grande ciclo de exposições ocorridas no México na passagem dos séculos XX e XXI, denominado Los pinceles de la história, foi concluído em 2003 com a mostra La fabricación del Estado, 1864-1910, em que também se evidenciou a intensa produção de pinturas de história de vertente acadêmica durante a segunda metade do século XIX, desencadeada sob o Império de Maximiliano de Habsburgo e se estendendo sob a República Restaurada e sob o Porfiriato. Tal produção, contudo, permanece ainda opaca diante das sempre lembradas representações do passado geradas pelo muralismo moderno mexicano de Rivera, Siqueiros e Orozco.

A reflexão sobre a pintura de história no Brasil tem procurado demonstrar como, apesar da mesquinhez do mecenato imperial, houve uma progressiva expansão dessa produção desde a implantação do ensino de pintura de história pela Academia Imperial de Belas Artes. As viagens de formação complementar à Europa conectaram nossos pintores aos embates e às renovações mencionadas, às práticas de apropriação e criação que presidiam a formação nas academias e à pulsação das encomendas públicas memoriais na segunda metade do século XIX na Europa, bem como à frustração do retorno e ao esforço de vários desses pintores egressos em estimular uma demanda oficial, que teria seu canto do cisne no estado de São Paulo. Trata-se, ainda, de um desafio historiográfico que colide com o desapreço do cânon crítico modernista, que considera tradicionalmente a pintura de história como uma etapa anterior da pintura efetivamente nacional, muito embora, como frisou Leticia Squeff, o debate de uma “Escola brasileira” estivesse posto claramente desde 1879 e mesmo por Gonzaga Duque em A arte brasileira, de 1888.[7]

A expansão das reflexões sobre a produção de pintura de história no Brasil sobre a segunda metade do século XIX teve certamente uma inflexão com os trabalhos de Jorge Coli, sobretudo a partir de sua tese de livre-docência sobre Victor Meirelles.[8] Nela, Coli evidenciou a necessidade de estudar-se a produção acadêmica nacional dentro de seus sistemas de referências e modelos artísticos, de modo a que fossem percebidas as práticas de apropriação e de recriação realizadas por artistas brasileiros em relação a pintores franceses e italianos, a exemplo da rede de referências que criou em torno da Batalha dos Guararapes (1879). Sua comparação entre a Primeira Missa no Brasil (1861), de Meirelles, e a Première messe en Kabylie (1854), de Horace Vernet, esta pertencente ao Museu Cantonal Belas Artes de Lausanne, marcou época, tanto por evidenciar as aproximações, imediatas, quanto pela abordagem de suas diferenças, que distinguiu e qualificou a criação de Meirelles. Tal perspectiva relacional, que pode se referir tanto a modelos europeus quanto àqueles ligados à Academia no Rio de Janeiro, reinsere a produção de pintura história em seus circuitos de formação e produção, permitindo a compreensão da historicidade de uma vertente artística condenada pela crítica modernista à condição de mera cópia e, por conseguinte, ao ostracismo memorial.

A musealização tardia da pintura de história no Brasil – país que não abrigou durante o Império um museu a que se destinassem as obras para exibição pública – torna a mesma um tema de grande interesse nos estudos sobre o período republicano. Nesse sentido, o acervo do Museu Paulista configurou-se como um conjunto de obras privilegiado para a expansão de pesquisas sobre a pintura de história no país. A instituição foi não só o destino de telas pré-existentes à sua abertura em 1895, como a célebre Independência ou Morte (1888), mas de muitas outras adquiridas pelas autoridades republicanas para a expansão da Seção de História ou ainda daquelas encomendadas para a decoração do edifício, já sob a gestão de Afonso Taunay (1917-1945), em que constituíram o projeto narrativo visual mais ambicioso de São Paulo àquele tempo.[9] A gestão Taunay jamais encomendou telas de grande formato, mas mobilizou artistas cariocas, fluminenses e estrangeiros para adornar espaços parietais que restavam vazios desde a finalização do prédio em 1890. Tal processo, análogo ao que Sérié sinaliza para a expansão da pintura decorativa na França, é, no entanto, inversa à consagração de Munkáksy em Viena, pois se lá a velha capital era o destino do artista vindo da Hungria e da emergente Budapeste, aqui eram os artistas da Academia da velha Corte, como Henrique Bernardelli e Amoedo, a colaborar com a narrativa exaltadora na pujante e ainda provinciana capital da cafeicultura sob a Primeira República.

Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses inaugurou uma série de estudos voltados a esse acervo de pinturas de história com sua abordagem da tela Fundação de São Vicente (1900), de Benedito Calixto. Atendo-se ao complexo jogo de oposições formais manejado pelo pintor, Meneses atentou para a necessidade de se compreender uma pintura histórica não apenas como forma, mas como expressão de ideia sobre o passado – nesse caso, a conciliação política que funda a experiência urbana. Tal expressão ganhará dimensão imaginária ainda mais ampla, em função de sua inserção em um contexto museal. Já Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho refletiram sobre as pinturas que representavam ruas da cidade encomendadas por Taunay para serem exibidas no Museu. A princípio apenas representações de paisagens urbanas, as autoras demonstraram como tais pinturas sofreram muitas intervenções em relação às fotografias em que os pintores se baseavam, em prol da construção de uma visualidade correta do passado da cidade e, portanto, de sua história.[10] Construções, calçamentos e transeuntes deviam ser figurados segundo um decoro pautado pelas ambições de Afonso Taunay, que imaginava a cidade mais aburguesada do que as fotografias indicavam. Esse caráter decoroso que presidia a pintura de história, normalmente destinada à celebração, à pedagogia cívica ou religiosa, foi amplamente examinado nos estudos de Claudia Valladão de Mattos sobre o Independência ou Morte, e naqueles voltados às representações de bandeirantes realizados por Maraliz Christo e Ana Claudia Brefe, em que as interferências de Taunay se fizeram mais uma vez muito presentes.[11] Detive-me também na formulação da iconografia bandeirante, por meio da abordagem de telas e esculturas adquiridas para o Museu Paulista tanto na gestão de Hermann von Ihering quanto na de Afonso Taunay, em que se deram práticas de apropriação do modelo de representação corpórea do Rei estabelecida por Hyacinthe Rigaud para o enaltecimento desses sertanistas.

Oseias Singh Junior recuperou, em metodologia pioneira, a fortuna crítica de Partida da Monção (1897) de Almeida Junior, bem como procurou compreender essa e outras pinturas do artista no trânsito de modelos franceses da década de 1880, num arco que se estende de Léon Lhermitte a Puvis de Chavannes.[12] Também levando em conta as relações entre a produção de pintura de história, a pintura de costumes e o Realismo e Naturalismo franceses presentes nas pinturas de Almeida Junior, Fernanda Pitta estudou a mesma tela, detendo-se ainda em compreender a política de aquisição de pinturas em suas conexões com o pensamento de personalidades políticas e intelectuais paulistas da época, especialmente Cesário Motta Junior.[13] Já Caleb Faria Alves atentou para a progressiva aproximação de Benedito Calixto em relação ao Museu Paulista, cujas obras passaram de ofertadas a encomendadas para o mesmo a partir dos primeiros anos do século XX, situação que lhe garantiria a condição de pintor de história, e a abertura de oportunidades para outros edifícios públicos, como a Bolsa de Santos.[14]

As questões metodológicas afeitas às abordagens de gênero também se fizeram presentes no estudo das pinturas de história do Museu, como na abordagem de Ana Paula Cavalcanti Simioni sobre o retrato da Imperatriz Leopoldina (1922), de Domenico Failutti, cuja figuração de mãe é em tudo oposta à tela Sessão do Conselho de Estado, de Georgina de Albuquerque (também de 1922), pertencente desde então ao Museu Histórico Nacional e que a representa como uma líder.[15]

Este dossiê apresenta novos estudos que, alimentados por muitas das perspectivas metodológicas aqui assinaladas, expandem o conhecimento e as formas de abordagem de telas tão conhecidas, em função de sua exaustiva reprodução, quanto pouco estudadas. Carlos Lima Junior e Pedro Nery escrevem um artigo em parceria, abordando dois momentos do Salão Nobre do Museu Paulista, célebre por acolher a tela Independência ou Morte. A mesma sala, no entanto, acolheu muitas outras pinturas, que se sucederam em duas fases opostas quanto à narrativa da história paulista e nacional, incluindo-se os sentidos da Independência. Na primeira fase, o artigo apresenta a hipótese de que as pinturas Caipira picando fumo (1893) e Amolação interrompida (1894), pertencentes ao acervo do Museu Paulista até 1905, fizeram pendant com a tela de Pedro Américo, criando uma sinergia com a representação do povo paulista que assistia ao Grito, figurado em Independência ou Morte. Na segunda fase, o artigo apresenta a inversão dessa narrativa em direção à prevalência dos personagens nacionais vinculáveis aos destinos da nação, por meio das encomendas de episódios e próceres da Independência aos pintores Oscar Pereira da Silva e Domenico Failutti.

Eduardo Polidori volta-se, em seu artigo, à já mencionada tela Fundação de São Vicente (1900), de Benedito Calixto, de modo a compreender os sentidos de sua encomenda pelas elites do litoral de São Paulo que compunham a Sociedade Comemoradora do 4º Centenário da Descoberta do Brasil. Tratava-se de uma tela que, afinal, se referia a um evento que ocorrera em 1532 e não em 1500. A tumultuada transferência definitiva para o acervo do Museu Paulista, visto que Calixto não recebera o valor acordado para a realização da pintura, e as razões que levaram à sua escolha para figurar em salas durante as gestões von Ihering e Taunay são também exploradas por Polidori, que oferece estimulantes hipóteses tanto para sua justaposição a acervos geológicos, quanto para sua associação à cartografia e retratos históricos.

Outra tela sobre origens urbanas – a Fundação de São Paulo (1907), de Oscar Pereira da Silva – foi abordada por Michelli Cristine Scapol Monteiro. Inspirada, como demonstra a autora, na pintura Primeira missa no Brasil, de Meirelles, a tela foi pintada por Pereira da Silva como uma aposta para ampliar sua inserção no círculo de artistas consagrados da florescente metrópole da cafeicultura. Representando uma conciliação entre índios e colonizadores mediada pela fé, a tela foi rejeitada, em um primeiro momento, pelo então Presidente do Estado, Jorge Tibiriçá Piratininga, comprometido com o avanço da fronteira cafeicultora no Oeste do estado, além de ser incômoda ao diretor do Museu Paulista, von Ihering, nada tolerante em relação à resistência indígena. Contrariando interpretações oficiais, Monteiro revela que a tela foi adquirida para a Pinacoteca do Estado e não para o Museu Paulista, que acabou por receber a tela por transferência apenas em 1929, apesar do pouco apreço de Afonso Taunay pela mesma e por sua temática jesuítica. A autora ainda descortina diversas formas de apropriação social da tela após sua transferência para o Museu Paulista, instituição que certamente favorecia sua compreensão como imagem legítima sobre a fundação da cidade, apta, portanto, a ser reproduzida de maneira monumentalizada, especialmente até o IV centenário de São Paulo, comemorado em 1954.

O dossiê é finalizado pelo artigo de Ana Paula Nascimento, dedicado ao conjunto de pinturas de José Wasth Rodrigues disposto no peristilo do Museu e voltado à representação daqueles que eram considerados, por Afonso Taunay, como protagonistas do processo de ocupação da América Portuguesa, o rei Dom João III, o donatário da capitania de São Vicente Martim Afonso de Souza (ambos de 1932), o cacique Tibiriçá e seu genro, o português João Ramalho (concluídos em 1934), esses últimos acompanhados de seu neto e filho. Desencadeada pelo IV centenário de São Vicente (comemorado em 1932), a encomenda dessas obras permitiu a Taunay estabelecer o início de sua narrativa histórica, que seria concluída no Salão Nobre com a tela Independência ou Morte e as pinturas encomendadas para as comemorações de 1922, objeto do primeiro artigo desse dossiê.

Esses estudos, derivados em sua totalidade de pesquisas realizadas em âmbito de mestrado e estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo, materializam um esforço institucional de convergir metodologias, aportes teóricos e grande empenho em pesquisa documental para que se compreenda a pintura de história no Museu Paulista de maneira multifacetada e atenta ao circuito curatorial de obras de arte em um museu histórico. Produção, aquisição, exibição e difusão são, portanto, eixos pelos quais é possível perceber não apenas a relação criativa das pinturas com seus modelos pictóricos, mas com a formação de artistas, as demandas nem sempre plácidas dos encomendantes, as interações com os debates historiográficos que orientam escolhas de representação, seu agenciamento em salas nas quais as semânticas dependem dos arranjos e justaposições expográficos, bem como com as fascinantes e infinitas práticas de apropriação de pinturas musealizadas, caminhos pelos quais se formaram e se ainda formam os imaginários que devemos desafiar.

Notas

  1. Historiador, Docente do Museu Paulista da Universidade de São Paulo e dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da USP. Pesquisador principal do Projeto Temático Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, financiado pela FAPESP, a quem o autor agradece o apoio.
  2. Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Processo17 / 07366-1), sob coordenação da Profa. Dra. Ana Gonçalves Magalhães (MAC / USP).
  3. Cf. Bajou (2018).
  4. Cf. Sérié (2014).
  5. Cf. Tóth (2012).
  6. Cf. Christensen (2016).
  7. Cf. Squeff (2012).
  8. Cf. Coli (1994).
  9. Cf. Meneses (1990); Chiarelli (1998); Mattos (2003); Makino (2003) e Brefe (2005).
  10. Cf. Lima; Carvalho (1993).
  11. Cf. Mattos (1999); Christo (2002) e Brefe (2005)
  12. Cf. Singh Junior (2004)
  13. Cf. Pitta (2013).
  14. Cf. Alves (2003).
  15. Cf. Simioni (2008; 2013; 2018).

Referências

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Paulo César Garcez Marins – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.


MARINS, Paulo César Garcez. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.27, p.1-11, 2019. Acessar publicação original  [DR].

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Métodos interdisciplinares de análise em acervos museológicos / Anais do Museu Paulista / 2019

A análise de acervos museológicos tem se consolidado como um âmbito de pesquisa científica em contínuo alargamento do conhecimento sobre materiais, datações, autorias e procedências, algo alcançado necessariamente por meio da aproximação e interação de diferentes profissionais, métodos e tecnologias. História, História da Arte, Arqueologia, Física, Química, bem como da Conservação e Restauro são algumas das áreas que têm configurado um campo científico efetivamente interdisciplinar, cujos resultados se desdobram para diferentes etapas do ciclo curatorial das coleções museais. Para além das fronteiras disciplinares, projetos colaborativos internacionais têm revelado as possibilidades de dar visibilidade não apenas a acervos de museus ainda pouco estudados e às informações científicas neles obtidos, mas de impulsionar a expansão do conhecimento de coleções há muito analisadas sobre as quais novas e sofisticadas tecnologias de análise podem aprofundar reflexões.3

A Universidade de São Paulo tem se integrado a tais esforços interdisciplinares e colaborativos de múltiplas maneiras, a partir da complexidade das coleções mantidas por suas unidades ou mesmo de origem externa. De forma mais sistemática, desde 2013, um grupo de docentes de diferentes unidades da USP decidiu reunir forças, aproximando as Humanidades e as Ciências Exatas, com o intuito de produzir novos conhecimentos a partir do estudo integrado de bens museais. Naquele ano fora criado o Núcleo de Apoio à Pesquisa (NAP) de Física Aplicada ao Estudo do Patrimônio Artístico e Histórico (FAEPAH), coordenado pela Profa. Márcia Rizzutto, do Instituto de Física, que congregava membros do próprio IF, da Engenharia Química (Poli), do Museu de Arte Contemporânea, do Museu Paulista, do Museu de Arqueologia e Etnologia e do Instituto de Estudos Brasileiros.

O objetivo central do núcleo consistia no emprego de métodos físicos não invasivos para analisar obras e objetos dos museus. A reflectografia de infravermento (IR), a fluorescência de raios X, a radiografia digitalizada, a fotografia de fluorescência visível com radiação ultravioleta (UV) são técnicas utilizadas que muito podem evidenciar traços escondidos em pinturas, esculturas, móveis adornados, cerâmicas; caracterizar os pigmentos presentes nas obras de arte, seu estado de conservação e revelar informações em sua superfície como as áreas retocadas de uma tela.

Numerosos resultados inovadores advindos da cooperação dos diversos campos do saber envolvidos nesse NAP foram disseminados em eventos e artigos científicos e fortaleceram o grupo para a gestação de um projeto mais amplo centrado no processo curatorial pelo qual passam os acervos museológicos desde o ingresso nas instituições até sua difusão. Intitulado Coletar, identificar, processar, difundir: o ciclo curatorial e a produção do conhecimento, o projeto tem recebido, desde fins de 2017, financiamento do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), na modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático. Tendo a Profa. Ana Gonçalves Magalhães, do MAC, como pesquisadora responsável, congrega dezenas de pesquisadores e bolsistas dos quatro museus estatutários da USP – MP, MZ, MAE e MAC -, do IF, além de docentes da UNICAMP e da UNESP.

Iniciativas semelhantes visando a integração da ciência e da tecnologia para o estudo, a conservação e a restauração de bens culturais desenvolvem-se em outros centros de ensino e pesquisa do país, com investigações promissoras na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará, no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) e na Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, para citar algumas.4 Parte desses profissionais das mais diversas especialidades é membro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência e Tecnologia do Patrimônio – Ciência, Tecnologia e Inovação (ANTECIPA), criada em 2015, que busca representá-los não só no cenário nacional, como também junto à Rede Europeia E-RIHS – European Research Infrastructure for Heritage Science.

É em face desse contexto de fortalecimento dos grupos que trabalhamos que o dossiê Métodos interdisciplinares de análise em acervos museológicos foi sugerido aos autores, com vista a se divulgarem as pesquisas recentes que se têm realizado no Museu de Arte Contemporânea e no Museu Paulista da USP, sobretudo no âmbito do Projeto Temático, bem como no Instituto Hercule Florence, frutos de diálogos com as áreas da Ciências da Natureza e suas Tecnologias.

O artigo que abre este dossiê apresenta mais uma cooperação exitosa entre Ana Gonçalves Magalhães e Márcia de Almeida Rizzutto. Parceiras acadêmicas de longa data, já desvendaram as trajetórias das telas dos artistas italianos Virgilio Guidi, Felice Casorati, Achille Funi e Mario Sironi e as pinturas e traços sob elas escondidos. Desta feita se debruçam sobre o Autorretrato, de Amedeo Modigliani, tal como os anteriores, pertencente ao acervo do Museu de Arte Contemporânea – USP, escrevendo em conjunto com Dalva Lúcia Araújo de Faria e Pedro Herzilio Ottoni Viviani de Campos. Por meio de estudos de procedência, recepção e crítica de arte, análises físico-químicas e de imageamento, jogam novas luzes sobre uma tela que é referencial para o estabelecimento de parâmetros comparativos para o estudo do conjunto da obra de Modigliani, o qual abriga pinturas cuja certificação de autoria permanece em discussão.

Márcia Rizzutto assina mais dois artigos em coautoria, contudo os acervos analisados são de tipologias e de instituições diferentes. O primeiro, redigido com Francis Melvin Lee e Thierry Thomas, tem como objeto as fotografias produzidas por Hercule Florence na década de 1830, pertencentes ao acervo do Instituto Hercule Florence. Após a atuação como segundo desenhista da expedição Langsdorff (1825-1829), o artista francês radicou-se na vila de São Carlos (hoje Campinas), região cafeicultora, e ali constituiu família. Entre suas muitas atividades, implantou a primeira tipografia da cidade e desenvolveu numerosos inventos: a fotografia, novas técnicas de impressão (autografia, poligrafia e pulvografia), papel inimitável (para papel-moeda), registro das vozes dos animais em partitura (zoofonia) e tipo-sílabas (sinais precursores da taquigrafia). A partir de análises por fluorescência de raios X, o texto avança nos conhecimentos que até então se tinham sobre os materiais e técnicas empregados nas primitivas experiências fotográficas de Florence, comprovando sua originalidade nesse campo.

O segundo foi escrito com o historiador Rogério Ricciluca Matiello Félix e centra-se na discussão dos resultados dos exames arqueométricos aplicados por ambos em peças de mobiliário do Museu Paulista, alvos de sua dissertação de mestrado, intitulada Os móveis da terra: dinâmicas sociais a partir da produção e circulação do mobiliário em São Paulo (1700-1830), defendida em 2018.5 A conjugação de metodologias de análises da Física Aplicada com metodologias de análise de cultura material, possibilitou que os dados obtidos acerca dos materiais usados em pinturas, couros e metais presentes nos móveis fossem cruzados com informações compulsadas nas fontes textuais de natureza diversa, renovando interpretações sobre a dinâmica socioeconômica da cidade de São Paulo no setecentos e inícios do século XIX.

Foi também para um documento tridimensional – o beque de proa de uma canoa – pertencente ao acervo do Museu Paulista, que uma equipe multidisciplinar voltou os olhares em 2016 e 2017. O grupo foi composto por Maria Aparecida de Menezes Borrego, do Museu Paulista, Bernardo Luis Rodrigues de Andrade, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica, ambos professores da USP, alunos de graduação em Engenharia à época – Pedro Henrique Bulla, Fillipe Rocha Esteves e Gabriel Bustani Valente -, e ainda Gregório Cardoso Tápias Ceccantini, do Laboratório de Anatomia Vegetal do Instituto de Biociências da USP, e sua orientanda de doutorado Milena de Godoy Veiga. Para a análise do beque de proa, recorreuse aos métodos da análise histórica, da fotogrametria de curto alcance e da anatomia da madeira para identificar, reconstituir digitalmente a peça e traçar sua trajetória na instituição. Para além do artigo elaborado acerca das múltiplas abordagens sobre o artefato, o trabalho conjunto favoreceu a montagem da exposição Viagens fluviais: homens e canoas na rota das monções, exibida no Museu Republicano de Itu, em que a peça náutica é protagonista.

Por fim, o dossiê se encerra com o artigo escrito pelo professor Jorge Pimentel Cintra, do Museu Paulista, e o engenheiro Rodrigo Gonçales, em que analisam as potencialidades da aplicação de laser scan 3D e aerofotogrametria por drone para museus. Como parte da tese de doutorado de Gonçales em desenvolvimento acerca dos dados LIDAR planialtimétricos, ambos realizaram a aplicação das tecnologias no edifício monumento do Museu Paulista e, a partir dos resultados obtidos, procuram ampliar os conhecimentos sobre os estudos das chamadas realidades aumentadas.

As muitas mãos que escreveram cada um dos artigos do dossiê, por si só, já revelam a pluralidade de abordagens utilizadas e as áreas das ciências envolvidas, mas, antes de tudo, evidenciam os resultados originais decorrentes da pesquisa solidária e dos diálogos fecundos entre os profissionais de diferentes formações comprometidos com a produção do conhecimento. Não há dúvida, como já constataram Ina Hegert, Márcia Rizzutto, Francis Melvin Lee, Solange Ferraz de Lima e Jéssica Curado em artigo sobre outra parceria bem-sucedida entre o Museu Paulista, o Instituto de Física e o Instituto Hercule Florence em torno do caderno de notas de Aimé-Adrien Taunay que “as Universidades têm um papel muito importante para aprofundamento e ampliação das pesquisas multidisciplinares para a preservação do patrimônio”.6

Notas

  1. Historiadora. Docente do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista e do Programa de Pósgraduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
  2. Historiador. Docente do Departamento de Acervo e Curadoria do Museu Paulista e dos Programas de Pós-Graduação em Museologia e em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
  3. É disso um efetivo exemplo o Modigliani Technical Research Study, que reúne pesquisadores de instituições europeias, estadunidenses e brasileiras, cujos resultados iniciais foram publicados em diferentes fascículos da The Burlington Magazine em 2018, entre os quais destacamos o artigo que conta com pesquisadores que integram este dossiê como autoras, as Profas. Ana Gonçalves Magalhães, Márcia Rizzutto e Pedro Herzilio Ottoni Viviani de Campos. Cf. Centeno et al. (2018).
  4. Várias iniciativas podem ser conhecidas por meio do caderno de resumos e x p a n d i d o s d a s comunicações apresentadas no 1o Encontro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência e Tecnologia do Patrimônio, realizado nos dias 27 e 28 de novembro de 2018, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, disponível em: . Acesso em: 15 out. 2019.
  5. Félix (2018).
  6. Cf. Hegert et al (2016).

Referências

CENTENO, Silvia A.; DUVERNOIS, Isabelle, BEZUR, Anikó; CAMPOS, Pedro Herzilio Ottoni Viviani; JOSENHANS, Frauke V.; LONDERO, Pablo; MAGALHÃES, Ana Gonçalves; RIZZUTTO, Márcia; SCHWARZ, Cynthia. The Modigliani Technical Research Study. Modigliani’s late portraits. The Burlington Magazine, Londres, No. 1382 – Vol. 160. mai 2018.

FÉLIX, Rogério Ricciluca Matiello. Os móveis da terra: dinâmicas sociais a partir da produção e circulação do mobiliário em São Paulo (1700-1830). Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.

HEGERT, Ina; RIZZUTTO, Márcia Almeida; LIMA, Solange Ferraz de; LEE, Francis Melvin; CURADO, Jéssica. O trabalho interdisciplinar entre o Museu Paulista e o Instituto de Física da Universidade de São Paulo no processo de documentação de obras do acervo Taunay. Anais eletrônicos do 15o Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. Florianópolis, Santa Catarina, 16 a 18 de novembro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2019.

Maria Aparecida de Menezes Borrego – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.

Paulo César Garcez Marins – Universidade de São Paulo / São Paulo, SP, Brasil.


BORREGO, Maria Aparecida de Menezes; MARINS, Paulo César Garcez. Introdução. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.27, p.1-6, 2019. Acessar publicação original  [DR].

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Manuais disciplinares, discursos pedagógicos e formação de professores (Séculos XIX e XX) / Revista História da Educação / 2019

Neste dossiê estão reunidos artigos em que os autores envidaram esforços para compreender os aspectos instituintes presentes nos diferentes discursos pedagógicos que fundamentaram a ideia de renovação educacional desde o final do Século XIX e durante o Século XX. Para tanto, tomam como fonte privilegiada diferentes manuais disciplinares que foram muito utilizados nos processos de formação de professores internacionalmente, ainda que a análise recaia particularmente naqueles em circulação no Brasil e em Portugal, o que ocorreu, destacadamente em Escolas Normais, mas, também, em cursos superiores de formação de professores. Nessa direção, os manuais disciplinares elencados como fonte nos diferentes artigos propostos para integrar o presente dossiê incluem os de História da Educação, Psicologia Educacional, Didática, Pedagogia e Metodologias e Práticas de Ensino.

Assim, pode-se perceber que parte considerável dos manuais disciplinares publicados em uma primeira fase, que se estende até meados do Século XX comportava um ideário cientificista, evolucionista e higienista que estava acompanhado do estabelecimento e da disseminação de um código moral laico eminentemente cívico, considerado fundamental para o progresso das diferentes nações e para o alcance dos fins gerais da Humanidade. Em um segundo momento, a ênfase recaiu na dimensão científica e crítica, o que se estende até os tempos atuais. Com certeza este esforço discursivo e formativo contido nos manuais disciplinares encontrou forte ressonância, mas também resistência, o que se espera deixar evidenciado com o presente dossiê.

O primeiro artigo que integra o dossiê recebeu o título “Os temas da evolução e do progresso nos discursos da Psicologia educacional e da História da Educação”. Foi redigido por Ana Laura Godinho Lima, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Este artigo realiza a análise de um conjunto de manuais de psicologia educacional e história da educação destinados à formação docente, cujo objetivo é identificar as aproximações e os distanciamentos entre essas disciplinas no que se refere à presença dos temas da evolução e do progresso. Incide sobre manuais publicados no Brasil entre 1934 e 1972 e inspira-se nos escritos de Foucault sobre a análise do discurso. Nos manuais dessas disciplinas, observou-se a recorrência da associação entre o desenvolvimento da criança e o progresso social, frequentemente descritos à luz da teoria da recapitulação. Essa teoria não foi, contudo, objeto de consenso, mas constituiu foco de controvérsia, representando um aspecto do debate entre educadores escolanovistas e católicos no período considerado.

Sob o título “A medicalização da Pedagogia: discursos médicos na construção do discurso pedagógico e nos manuais de formação de professores em Portugal (Séculos XIX-XX)”, António Carlos da Luz Correia, professor convidado do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, apresenta um ensaio, no qual procura problematizar as modalidades por meio das quais o discurso médico foi incorporado no discurso pedagógico, naturalizando-o, no período que decorre entre o final do século XIX e as três décadas iniciais do século XX, em Portugal. Do ponto de vista empírico, recorre a pesquisas realizadas previamente, individualmente ou em colaboração com outros pesquisadores. Pretende abrir pistas para discussão da Escola e do seu papel nas transformações sociais atuais, buscando desocultar as modalidades de apagamento dos fatores sociais, culturais e políticos que intervêm historicamente nos desafios da problemática educativa escolar.

Geraldo Gonçalves de Lima e Décio Gatti Júnior, vinculados, respectivamente, ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro e a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia, redigiram o artigo intitulado, “Educação, sociedade e democracia: John Dewey nos manuais de História da Educação e/ou Pedagogia (Brasil, Século XX), no qual comunicaram os resultados de investigação no âmbito da História da Educação, particularmente na temática da História Disciplinar, cujo foco recaiu sobre as ideias de John Dewey disseminadas em manuais de História da Educação, com autores estrangeiros, traduzidos e publicados no Brasil, entre 1939 e 2010, que tiveram ampla circulação em escolas normais e cursos superiores de formação de professores. As fontes incluíram bibliografia de referência e doze manuais de História da Educação. Os resultados apontam para a percepção de quatro ênfases nas abordagens sobre Dewey: herança hegeliana; marcos evolucionistas; relação indivíduo/sociedade (industrial e democrática); emergência da psicologia experimental.

No artigo intitulado “As ideias de Durkheim nos manuais de História da Educação: cientificidade e moralidade laica na vida social e na escola”, Katiene Nogueira da Silva (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) e Giseli Cristina do Vale Gatti (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba), analisam as ideias de Durkheim contidas em manuais de História da Educação, com autores estrangeiros, publicados no Brasil entre 1939 e 2010. Perceberam que alguns manuais, apesar de não terem mencionado Durkheim diretamente, abordaram ideias próximas de seu pensamento. Os demais, que foram maioria, mencionaram Durkheim em intensidades diferentes. Neles, Durkheim foi tomado simultaneamente como fonte de informações e de análises, mas, também como portador de uma perspectiva original e influente de educação, a pedagogia sociológica. Além disso, foi possível perceber a existência de críticas a seu pensamento, provenientes, sobretudo, dos autores de manuais vinculados ao campo católico.

Vivian Batista da Silva e Denice Barbara Catani, ambas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, fecham o presente dossiê, com o artigo intitulado, “Metáforas e comparações que ensinam a ensinar: a razão e a identidade da Pedagogia nos manuais para professores (1873-1909), no qual perguntam se estariam os manuais para professores mais próximos de um livro ou de um receituário? A partir desta questão, analisam cinco títulos publicados entre 1873 e 1909, a saber: o Compêndio de Pedagogia (Pontes, 1873); Pedagogia e metodologia, de C. Passalacqua (1887); Lições de Pedagogia, de V. Magalhães (1900); Compêndio de Pedagogia, de D. Vellozo (1907); Tratado de Metodologia, de F. Carvalho (1909). Buscaram conhecer como são feitas as referências à Pedagogia, sua razão e identidade. Nesses textos, ela aparece ora como ciência, ora como arte. Analisando as metáforas usadas para orientar os professores, é possível identificar imagens a partir das quais os saberes pedagógicos são definidos e apresentados como objetos de leitura para o magistério.

Esperamos que a leitura do presente dossiê oportunize tanto a percepção de uma temática importante relacionada aos esforços de formação de professores, no qual formas de pensar o pedagógico, as instituições escolares e a relação com a sociedade se destaquem, mas, também, por outro lado, assinalar a fertilidade em tomar os manuais disciplinares como fonte privilegiada para conhecer as finalidades pedagógicas que disputaram o público docente e presidiram sua formação desde o final do Século XIX, com avanço na quase totalidade do Século XX.

Denice Barbara Catani – Professora Titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: dbcat@usp.br  http://orcid.org/0000-0001-6019-8969

Décio Gatti Júnior – Professor Titular de História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Educação (História e Filosofia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com estágio de pós-doutorado concluído na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Beneficiário do Edital Pesquisador Mineiro da Fapemig. E-mail: degatti@ufu.br  http://orcid.org/0000-0002-5876-6733

 

CATANI, Denice Barbara; GATTI JÚNIOR, Décio. Apresentação. Revista História da Educação, Porto Alegre, v. 23, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História do Brasil Império / Miriam Dolhnikoff

  1. A Autora

Miriam Dolhnikoff é atualmente uma das historiadoras mais atuantes no campo das pesquisas sobre o Oitocentos, direcionando sua produção em torno de temas sobre o Brasil Império como organização institucional do Estado, representação política, entre outros aspectos da história do Brasil voltados para a política nacional e o processo de organização do Estado Nacional. Também possui análises sobre elites regionais, atuação dos partidos e o processo eleitoral no período. Professora do Departamento de História na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, graduou-se no ano de 1986 em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, concluiu o Mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1993 e no ano 2000 finalizou o Doutorado na mesma universidade e programa.

É autora de importantes obras, como: O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil, lançado em 2005; José Bonifácio, de 2012; e, em coautoria com Flávio Campos, o livro Atlas de História do Brasil, de 2002. Além desses, tem várias colaborações com artigos em coletâneas sobre o Brasil Império, como o texto Elites Regionais e a construção do Estado nacional, publicado na importante coletânea Brasil – Formação do Estado e da Nação (2003), e São Paulo na Independência, na coletânea Independência: História e Historiografia (2005), ambas organizadas por István Jancsó. Oferecendo uma formatação mais didática em História do Brasil Império (2017), Dolhnikoff mergulha mais uma vez no universo do Brasil oitocentista, buscando, através de temas conhecidos sobre o período, agregar seu olhar experiente e sua análise apurada.

  1. A Coleção História na Universidade

A obra História do Brasil Império é parte integrante da coleção História na Universidade da editora Contexto, que tem por objetivo oferecer discussões historiográficas realizadas por grandes pesquisadores em um formato didático. A coleção conta com 8 (oito) obras: História Antiga, por Norberto Luiz Guarinello; História da África, por José Rivair Macedo; História da América Latina, por Maria Lígia Prado e Gabriela Pellegrino; História do Brasil Colônia, por Laima Mesgravis; História do Brasil Contemporâneo, por Carlos Fico; História do Brasil República, por Marcos Napolitano, História Moderna, por Paulo Miceli e, por fim, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, objeto de análise desta resenha.

A proposta da coleção História na Universidade parte do princípio de trazer para a discussão do público geral momentos importantes da História, oferecendo formatação próxima dos livros didáticos, sem perder a objetividade e credibilidade das obras historiográficas. Com linguagem acessível, abrindo mão da configuração típica da produção historiográfica atual permeada por citações, referências, notas bibliográficas e/ou explicativas e por discussões teóricas, a coleção perpassa as análises, não se valendo diretamente desses expedientes. Como exemplo aqui eleito para o exercício de análise, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, adequa-se bem ao modelo proposto e de forma eficiente, debate, analisa e traz novas perspectivas para os temas eleitos pela autora para discutir o período imperial brasileiro.

  1. A obra

Em História do Brasil Império, a historiadora Miriam Dolhnikoff parte do marco cronológico da Independência em 1822, explorando, por meio de uma introdução e mais 8 (oito) capítulos, 67 anos da história imperial brasileira, elegendo, para tanto, temas caros à historiografia sobre o período. Da Independência à República, os capítulos receberam como títulos: “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”; “Uma nova nação, um novo Estado”; “Os tumultuados anos da Regência”; “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”; “Conflitos e negociação”; “O fim da escravidão”; “A Monarquia e seus vizinhos”; “Abaixo a monarquia, viva a República”. Todos os capítulos possuem subtópicos, em que são explorados aspectos mais específicos aos temas trabalhados nos capítulos, também compostos por boxes, responsáveis por analisar algum tema em destaque e/ou não aprofundado no corpo do texto.

Destaca-se em torno da estrutura dos capítulos a opção pelo não uso de referências completas ou notas americanas para citar as fontes utilizadas, o que cria certa dificuldade caso algum pesquisador profissional se interesse em localizar as fontes consultadas. Entretanto, como a coleção é voltada para um público mais abrangente que inclui estudantes do ensino básico e universitários no início da vida acadêmica, é perfeitamente compreensível a ausência das indicações das fontes, o que torna, por sua vez, a leitura mais dinâmica. Muito embora suas referências estejam ausentes, as fontes são bem exploradas e variadas: de obras literárias, jornais, correspondências íntimas e oficiais a iconografias, elas dão base para as discussões desenvolvidas na obra, assim como ensejam o cuidado e o minucioso trabalho de pesquisa da autora. O livro é completado com uma sessão intitulada “Sugestões de Leitura”, onde constam, além de algumas obras utilizadas ao longo dos capítulos, outras referências para pesquisas futuras e que comtemplam/exploram os temas abordados ao longo dos capítulos.

Para ilustrar as discussões dos capítulos, Dolhnikoff traz na introdução da obra, como abertura das discussões em torno do tema do livro, o debate sobre o contexto anterior à Independência. Discutindo antecedentes da emancipação política brasileira, a autora destaca na introdução os diversos projetos de construção do Brasil, as diferenças econômicas regionais, além da heterogeneidade social em torno da qual o projeto emancipacionista gravitava. Esse processo, segundo Dolhnikoff, não contou com uma posição consensual das elites, que estavam envoltas em suas divergências e objetivos variados. No entanto, destaca pontos em comum que convergiam em torno do projeto nacional: “a continuidade da escravidão, a preservação da economia agrárias voltada prioritariamente para a exportação, a manutenção da ordem interna, em uma sociedade profundamente hierarquizada”2. Assim, para caracterizar a transição do Brasil colônia de Portugal para nação independente, Dolhnikoff enfatiza o caráter de uma (em suas palavras) “continuidade relativa”.

A autora destaca ainda, na introdução, conceitos e definições essenciais para a análise desenvolvida ao longo dos capítulos. Em primeiro ângulo, aborda a questão do liberalismo, seus princípios e doutrinas essencialmente baseados nos modelos norte-americano e europeu. Tendo como base o liberalismo, cita a questão dos direitos civis, o princípio da representação, como foram tratados no Brasil e o que significou naquele momento um governo representativo. Fazendo uma contraposição ao conceito de democracia na contemporaneidade, Dolhnikoff enfatiza o sentido de “democracia restrita” do período, fechando, então, a introdução da obra com a questão sobre a identidade nacional, tão importante para a constituição do Estado ao longo do século XIX.

  1. Os capítulos

No primeiro capítulo, “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”, a autora inicia a argumentação buscando os antecedentes de 1808, a chegada da Família Real Portuguesa a então colônia e as medidas que principiaram o processo que culminou na Independência. Entre as medidas, enumera o fim do exclusivo comercial, tratados com a Inglaterra, a chegada de viajantes de outras nacionalidades, entre outras. Dolhnikoff mostra ainda duas razões para a permanência da Corte na América: primeiro, “o enraizamento dos interesses de membros da nobreza da burocracia reinol nas terras de além-mar”3; segundo, observa que “havia ainda as motivações de natureza política”4.

Destacando as tensões do outro lado do Atlântico, a autora traça o perfil dos embates que culminaram com a Revolução do Porto de 1820, a Reunião das Cortes em 1821 e as consequências geradas na então colônia como o questionamento sobre a autonomia do reino em terras americanas, a desobediência do Brasil a respeito das determinações das Cortes e a união de paulistas, fluminenses e mineiros em defesa de D. Pedro. No tópico “As disputas se intensificam”, há a análise do desdobramento dos acontecimentos que culminaram na ruptura como a aliança (provisória) de D. Pedro com as elites locais, a participação das elites nacionais no processo, a autonomia para os governos locais, as disputas entre José Bonifácio e Gonçalves Ledo e a recusa dos brasileiros em jurar a Constituição portuguesa.

O processo de ruptura é analisado partindo das recusas, tendo o Pará e o Maranhão como exemplos de não adesão imediata à causa independentista. A autora busca, então, as premissas do 7 de setembro, como o Manifesto de 6 de agosto de 1822, já vislumbrando a intencionalidade da emancipação de Portugal. Nesse aspecto, cabe ressaltar que Dolhnikoff explora um documento importante e ainda pouco explorado no que se refere aos acontecimentos relativos à Independência. O Manifesto de 6 de agosto de 1822 é, segundo a autora, o “primeiro registro formal da decretação da Independência do Brasil”5.

Com base na análise dos discursos, em um interessante trecho do capítulo, a autora percebe a inversão de valores feita por D. Pedro e José Bonifácio como justificativa para o fim da relação metrópole-colônia entre Brasil e Portugal. Para ambos, “o pacto colonial era apontado como um dos instrumentos de opressão e exploração, ao impor o monopólio do comércio colonial pela metrópole”6. E continua:

Curiosa inversão, essa forma de contar a história da América lusitana era assinada pelo príncipe herdeiro da Coroa portuguesa e redigida por um homem que vivera a maior parte da vida em Portugal, integrando a burocracia lusitana e dedicando todos seus esforços para salvar o Império português da decadência7.

O capítulo encerra-se com um boxe chamado “Os habitantes do novo Império”, que resumidamente se encarrega de explorar os aspectos mais gerais da sociedade imperial, em específico, uma rápida análise sobre escravos, índios e livres pobres.

O capítulo 2, “Uma nova nação, um novo Estado”, discute o processo de organização, construção, consolidação e expansão do novo Estado nacional. Aqui a autora explora os debates do período sobre a preocupação das elites provinciais sobre a possibilidade de fragmentação do território e as razões para a manutenção da unidade territorial. Uma das razões para a manutenção dessa unidade era justamente a peça fundamental da economia colonial: a escravidão. Havia um consenso dentro das elites políticas e econômicas no pós-Independência de que a manutenção da escravidão era essencial para o sucesso do projeto de nação que estava em andamento. Outra questão era sobre o modelo de Estado a ser adotado para a recém-emancipada nação. A opção pela monarquia constitucional foi o caminho mais seguro, pois “o regime prevalecente no mundo ocidental era o representativo”8 e significou o que Dolhnikoff chamou de “transição dentro da ordem”9.

No tópico “Assembleia Constituinte” são abordadas questões que gravitaram em torno do processo de organização do governo representativo como a adoção de um modelo federativo que atribuísse autonomia provincial sem desarticular as conexões e preponderância decisória do governo central. Outro tema debatido foi a questão da cidadania e da nacionalidade, além dos critérios eleitorais para a participação da vida política do Império. Cidadania, nacionalidade e a participação no sistema eleitoral eram, assim, espécies de crivos que definiam quem de fato seria considerado brasileiro. A autora traça a diferença fundamental entre cidadania e nacionalidade para evocar o peso que o uso desses termos pelos operadores das leis teve na exclusão de parcelas importantes da sociedade de direitos fundamentais.

Ao trabalhar o processo de montagem do sistema de representação política, Dolhnikoff detalha e analisa com bastante competência os entremeios da organização política do século XIX, esmiuçando o processo eleitoral e fazendo a diferenciação entre cidadania política, cidadania civil e cidadania escrava. Traça ainda a natureza dos cargos políticos e o processo de criação do Conselho de Estado.

Sobre as atribuições e medidas do parlamento, o capítulo analisa as leis criadas no contexto da organização das premissas legais do Estado, como a Lei de Responsabilidade e a lei que criava o Juizado de Paz, ambas em 1827; o Código Criminal de 1830 e a lei de 1828 que regulamentava o funcionamento das Câmaras Municipais.

O capítulo é concluído com o tópico “Oposição ao Imperador”, dando destaque aos acontecimentos que culminaram com sua abdicação ao trono, como as divergências com as elites provinciais, a questão do tráfico negreiro e a Guerra da Cisplatina, resultando em seu retorno a Portugal em abril de 1831.

Em “Os tumultuados anos da Regência”, os anos que se seguiram à abdicação de D. Pedro são caracterizados a partir da nova organização político-administrativa estabelecida pela série de governos provisórios. Ensejados pelas reformas liberais, que discutiram a autonomia provincial, estabeleceram-se na Regência a criação da Guarda Nacional e o Ato Adicional que, dentre outras coisas, estabelecia uma série de reformas na letra constitucional de 1824. No judiciário, a maior reforma foi o Código de Processo Criminal de 1832.

O período Regencial foi caracterizado também pelos levantes populares em várias províncias, para o que Dolhnikoff apresenta dois motivos principais: o monopólio português do pequeno comércio e a imposição do recrutamento forçado. A Balaiada, Cabanagem, Revolta dos Malês e Farroupilha são apresentadas em seus contextos gerais, motivações e conclusões.

Sobre as reformas legais, são colocadas em destaque a Reforma do Código de Processo Criminal de 1841 e a Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 1840.

Explorando a questão da política partidária no período, Dolhnikoff estabelece uma ótima contextualização e caracterização dos partidos do século XIX, definindo as diferenças entre as organizações partidárias surgidas naquele contexto e as formas partidárias contemporâneas. As definições e análises lançadas sobre o tema são, inclusive, sensivelmente elaboradas e pouco vistas nas obras historiográficas atuais dedicadas a esse aspecto da organização político-administrativa imperial. Sobre os partidos políticos, em especial os partidos Conservador e Liberal, Dolhnikoff define:

Os partidos do século XIX não tinham as mesmas características que os partidos contemporâneos. Embora cada um dos dois estivesse organizado em todo país, não havia coesão interna, programas claramente definidos, filiações oficialmente formalizadas, enfim, não tinha a organicidade dos partidos atuais. Em cada província, tanto o partido Liberal como o partido Conservador adquiriam feições específicas relacionadas às particularidades locais. Não havia diferença de origem social entre as pessoas que compunham cada um dos partidos10.

Conclui o capítulo com os episódios que culminaram com a maioridade de D. Pedro de Alcântara e um boxe que explora a questão da expansão cafeeira.

A vida cultural brasileira no Oitocentos é explorada no capítulo “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”, abordando a vida cultural como parte do projeto de construção do Estado através da busca de uma identidade nacional. A fonte de análise desse aspecto da vida imperial brasileira é primordialmente a literatura, a poesia e a produção historiográfica e científica. A busca por essa nacionalidade foi feita através de movimentos literários como o romantismo e o indianismo e esteve permeada pela produção literária de Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, cujo tema principal de seus escritos era a questão da escravidão.

A História como disciplina subsidiada com a criação do IHGB e o pioneirismo de Adolfo Varnhagen, a Geografia, a Etnologia e suas contribuições para a busca da identidade nacional brasileira, são temas ligeiramente investigados no capítulo. Estão presentes na análise também a questão do embate entre ciência e costumes, as práticas populares africanas, a atuação das irmandades e a renovação cultural experimentada a partir da década de 1870, com as contribuições de uma literatura menos romântica de Machado de Assis e o naturalismo-realismo de Aluísio Azevedo. Uma necessária discussão sobre a participação da imprensa na época e sua influência na opinião pública foi eleita para compor o boxe, fechando o capítulo.

“Conflitos e Negociação” discute as disputas entre grupos das elites provincial e o poder central durante o Segundo Reinado. Dolhnikoff traz a caracterização da monarquia constitucional e as especificidades do Brasil. As eleições e todo seu processo representava uma preocupação para os grupos das elites, uma vez que manter sua representação e não permitir a influência das “paixões populares” era objetivo primordial. Mais uma vez, Dolhnikoff explora as questões políticas com maestria, esmiuçando, analisando e trazendo dados para traçar perfil político do Brasil, agora na segunda metade do século XIX.

Para as elites políticas, a possibilidade da abertura à participação política das classes menos favorecidas era um temor a ser combatido, pois representava uma ameaça ao equilíbrio representado pela monarquia. Como ponto de apoio, D. Pedro II figurava como o árbitro das questões que norteavam o Legislativo por meio do poder moderador. O imperador, por sua vez, não exercia um poder centralizador ao extremo, precisando negociar as vagas para os ministérios com os partidos Liberal e Conservador.

Ao discutir cidadania e eleições, partidos e ministérios, a autora faz um passeio interessante e bem fundamentado sobre as questões que norteavam o processo eleitoral e a participação dos partidos na organização do sistema político brasileiro. Como característica do processo, vigoravam as fraudes eleitorais que geravam o clientelismo e ao mesmo tempo era alimentado por este. Dolhnikoff passa a traçar o perfil do eleitor da segunda metade do século XIX e o problema da participação social no processo, e como o judiciário e o legislativo limitavam o acesso de determinadas classes por meio da restrição do sentido do termo “cidadania”. Em meio a esse processo, desenrolava-se a alternância de poder entre os partidos, a atuação em conjunto de liberais e conservadores no Ministério da Conciliação em 1853 e o aparecimento da Liga Progressista.

Na última parte do capítulo, há uma apurada análise das leis eleitorais durante o Segundo Reinado e a interpretação de sua aplicabilidade pelos partidos, além das incompatibilidades dos projetos dos partidos diante da realidade palpável do Império. Discussão importantíssima e bem elaborada. Fechando o capítulo, há um resumido boxe sobre as revoltas no Segundo Reinado.

O capítulo 6, “O fim da escravidão”, busca as motivações que culminaram na Lei Áurea. Em primeiro plano, a influência e pressão inglesa, seus interesses e todo o processo, desde o Tratado de 1825, o Bill Aberdeen e o fim do tráfico negreiro em 1854. Prosseguindo a análise, relata os primeiros passos do movimento abolicionista e o processo de mudança de mentalidade da sociedade brasileira aliada ao processo de modernização, importantes para o fim da escravidão.

A decisão de uma libertação gradual através das leis e as discussões pró e contra o fim da escravidão contrastavam com a falha na aplicação das leis em uma sociedade cada vez mais preocupada com suas perdas econômicas. Todo esse processo levaria à radicalização do movimento abolicionista em sua luta por uma abolição imediata, a assinatura da Lei Áurea e um novo planejamento, agora em torno da mão de obra de imigrantes europeus, para a substituição dos escravos nos postos de trabalho. Os imigrantes, aliás, são o tema do boxe de encerramento do capítulo.

O penúltimo capítulo, “A monarquia e seus vizinhos”, trata da política externa brasileira como uma das estratégias de consolidação do Brasil como Estado Nacional e sua tentativa de atuação preponderante em relação aos países vizinhos da América Latina.

Os projetos nacionais incluíam as disputas por territórios e pela supremacia brasileira no continente por meio da Guerra da Cisplatina (1825-1828), a Guerra Grande (1839-1852) e a Guerra do Paraguai (1865-1870). A descrição dos fatos que narram as rivalidades entre os países envoltos nos conflitos, a visão diplomática do Brasil sobre os vizinhos e as dificuldades das guerras e suas consequências são o centro da discussão do capítulo. Para o boxe de encerramento, o tema eleito foi a política para o comércio externo.

No último capítulo, “Abaixo a monarquia, viva a República”, Dolhnikoff explora o contexto das décadas finais do século XIX, a crise da monarquia e a ascensão do modelo republicano. A autora apresenta a monarquia como um projeto da elite, símbolo de um projeto nacional benéfico até o momento em que as classes abastadas tinham seus objetivos atendidos e ganhos garantidos. Em um balanço geral da monarquia, resume:

A monarquia criou mecanismos de controle e legitimação, de modo que a sociedade profundamente hierarquizada, com formas de acesso a bens, participação, direitos e privilégios extremamente desiguais, com parte da população na condição de escravos, tivesse algum grau de coesão que permitisse sua transmudação em comunidade nacional. Assim, o regime monárquico mostrou-se eficaz como projeto da elite dirigente para preservar a ordem escravista, a desigualdade social e ao mesmo tempo, criar laços simbólicos e políticos entre os diversos setores sociais que garantissem certa estabilidade11.

A análise volta-se para os fatores que propiciaram a ampliação das ideias republicanas e o questionamento do modelo monárquico, como o crescimento do número de cidades. A urbanização crescente das décadas finais do século XIX não proporcionou uma superação da vida rural, mas trouxe em seu lastro um importante crescimento populacional e a diversificação das atividades desenvolvidas nas províncias mais importantes do Império. A diversificação profissional também proporcionou uma diversidade social que obrigava a coexistir em um mesmo espaço “escravos e livres […] negros, pardos e brancos, membros da elite, inclusive agrária, setores intermediários, livres e pobres habitavam as cidades”12.

A infraestrutura dessas cidades recebeu melhorias, em um processo de modernização do sistema de transporte e mobilidade urbana, com a chegada dos bondes na zona urbana e interligando localidades com as ferrovias; no sistema de iluminação com os lampiões a gás e eletricidade; o fornecimento de água por meio de canos e em domicílio; e a revolução do telégrafo, facilitando a comunicação entre várias cidades dentro do país e localidades no exterior.

Para Dolhnikoff, quanto mais se expandia as possibilidades oferecidas pela cidade, mais diversificava o perfil da população. Assim, como vitrine das mudanças que viam a monarquia como algo aquém da modernidade que se avizinhava, “a diversificação da população urbana, em todos os seus matizes, gerava novas visões, demandas e comportamentos em relação a questões fundamentais como a escravidão, o sistema representativo e a organização política”13.

Somava-se a essas transformações, a fundação do partido Republicano Paulista em 1873 e o descontentamento dos cafeicultores do Vale do Paraíba com a falta de políticas do governo para a expansão do produto mais importante da pauta de exportação do país. Os investimentos em outras províncias também desagradavam os cafeicultores paulistas, que consideravam São Paulo a província mais importante economicamente do Império. Conjeturou-se até em um movimento separatista de São Paulo que, no entanto, não teve tanta força. Então, uniu-se a insatisfação paulista ao movimento republicano que ganhou força a partir de 1870. O partido Liberal aderiu ao movimento no mesmo ano. Durante essa década e na seguinte, clubes republicanos e jornais ligados ao movimento multiplicaram-se. Encerrar a monarquia e instaurar uma república estava na ordem do dia. A partir de então, Miriam Dolhnikoff passa a analisar as estratégias pelas quais se pensou para instaurar a República. Uma delas, a corrente evolucionista, via no processo pacífico e gradual a melhor maneira para a mudança do sistema político, pois, a República:

Viria com o tempo, a partir de um programa reformista a ser encaminhado no Parlamento e por uma política de convencimento gradual dos vários setores sociais, que tornaria a transição pacífica porque desejada por todos. Uma transição dentro da ordem, sem convulsões sociais14.

Uma corrente minoritária, a revolucionária, via pela revolução e violência o método mais eficaz para a instauração do novo regime. Nesse clima de discussões sobre o futuro político do país, um novo elemento é agregado ao conjunto dos fatos. O exército, a partir da década de 1880, passou a buscar a concretização de seus objetivos corporativos, com militares concorrendo a cargos na Câmara dos Deputados e Senado.

Miriam Dolhnikoff faz uma eficiente e detalhada análise do conjunto de fatores que levaram os militares às esferas de poder político-administrativo e, consequentemente, a serem os responsáveis pela Proclamação da República. Com base na narrativa dos acontecimentos que culminaram no 15 de novembro de 1889, encerra o capítulo e suas análises sobre o fim do Império. Um mapa que acompanha o final do capítulo fica responsável por mostrar as mudanças nas unidades administrativas brasileiras ao longo do século XIX, obedecendo também à cronologia eleita pela autora para desenhar o quadro geral do período imperial brasileiro na qual se dedica a obra, ou seja, de 1822 a 1889.

  1. Temas em destaque

Ao fim de cada capítulo, a autora fez a opção por ilustrar subtemas relativos à discussão central por meio de boxes. Seis dos oito capítulos da obra seguem esse padrão de encerramento, exceto os capítulos 2 e 8. Boxes em geral são recursos largamente utilizados em livros didáticos e têm a função de comunicar e dar destaque a respeito de determinados aspectos paralelos ao tema central do capítulo. Dolhnikoff também elege temas transversais na utilização desse recurso, mas que auxiliam, de forma didática, a finalizar o tema proposto pelo capítulo. Os temas enquadram, por outro lado, discussões indispensáveis e recorrentes na historiografia sobre o período, como a sociedade, a economia, a imprensa, as revoltas populares, os imigrantes e o comércio exterior. Talvez tenham sido alternativas à ausência de notas de rodapé explicativas, inexistentes no texto ou por opção da autora ou pelo formato escolhido para o livro. Assim, questões que ficam em suspenso no corpo do texto principal ganham aí espaço e destaque, agregando uma discussão a mais ao tema central.

O primeiro boxe no capítulo 1 ganhou por título “Os habitantes do novo Império” e encarrega-se de discutir a formação da sociedade monárquica brasileira, dando destaque à contribuição dos escravos, homens livres pobres e indígenas. A autora traz informações sobre a função social/econômica de cada um desses estratos sociais, local de atuação/morada, ocupação e a especificação sobre como ou se as leis tratavam desses indivíduos. Ilustrado por uma iconografia de Johann Moritz Rugendas, de 1835, o boxe traz ainda perspectiva percentual desses grupos sociais no Brasil na primeira metade do século XIX.

No capítulo que explora os embates das Regências, ficou em destaque a questão da expansão cafeeira. Adiantado à discussão contida no capítulo sobre a escravidão, a autora enfatiza o crescimento da cultura do café em comparação ao plantio do açúcar e sua importância para a economia nacional. O café foi, dentre outras coisas, uma das razões para alavancar São Paulo como uma das províncias mais importantes do Império em meados do Oitocentos. A produção de café no Vale do Paraíba e em outras regiões da província ajudou a transformar não apenas São Paulo, mas o sudeste no novo eixo econômico do país. A construção de uma infraestrutura com estradas e ferrovias foi realizada quase que exclusivamente para atender a demanda dos cafezais. A questão da mecanização da lavoura e a consequente gênese de sua modernização tiveram como subsídio as necessidades dessa lavoura, em especial pelo fim do tráfico negreiro em 1850. O café não significou grandes mudanças na natureza econômica do Brasil, mas introduziu novos elementos na agricultura praticada no país.

Para ilustrar os principais fatores que contribuíram para a construção cultural do Brasil, o boxe “Imprensa e Opinião Pública” estabelece a imprensa como “uma importante forma de manifestação cultural e política ao longo da monarquia”15. Por ser um dos principais veículos de circulação de ideias, os jornais participavam ativamente dos acontecimentos, ajudando a “difundir cultura e discutir política”16. Não apenas os jornais, mas também revistas tinham o poder de formatar uma opinião pública e foram fundamentais em momentos importantes da história do país. Dolhnikoff define seus redatores a partir de suas ocupações: eram além de jornalistas, padres, romancistas, advogados.

A autora sinaliza uma informação importante: “a imprensa brasileira no século XIX teve seu conteúdo e formato vinculado às concepções políticas do liberalismo, no sentido de construir uma nova ordem que se distinguia em muitos aspectos do Antigo Regime”17. Certamente, ela se refere especificamente à imprensa atuando no pós-Independência. Os jornais ocupavam, por isso, um espaço precioso na vida da sociedade em geral. Era, dessa forma, “parte da constituição dos espaços públicos”18, formadores da opinião pública nacional.

Dito isso, Dolhnikoff parte para analisar a importância desses periódicos para os partidos políticos do período. Desse modo, enfatiza a questão da parcialidade jornalística, uma vez que cada partido possuía seus próprios periódicos, um grande contraste com a suposta imparcialidade do jornalismo na atualidade. Trazendo uma definição geral sobre o papel da imprensa, a autora enumera:

Os jornais eram meio de angariar apoios e expressar repúdios, além de fazer circular ideias e fatos políticos, atos e decisões governamentais. A função de jornais e a edição de panfletos, a publicação de artigos e a realização de debates, sob novo regime, integraram o cotidiano da nova nação.

Ilustrando o boxe com a imagem de Francisco de Paula Brito, editor do jornal O Homem de Cor, publicado em 1833, há o destaque para a imprensa voltada para as questões que norteavam a escravidão negra. Os escritores/editores negros não eram presença maciça nos periódicos que circulavam à época, mas o tema da escravidão, do preconceito e a situação dos negros no Brasil eram discutidos em jornais como O Brasileiro Pardo e O Crioulinho, que Dohnikoff define como “imprensa negra”.

A função de entretenimento da imprensa fica por conta da publicação de romances, folhetins e contos, assim como artes em forma de imagens e caricaturas que ilustraram desde um momento satírico a uma crítica política.

Para o capítulo “Conflitos e Negociação”, o boxe dedica-se a discutir as revoltas no Segundo Reinado. Aqui se desfaz a ideia de pacificidade do pós-período Regencial. O texto principal menciona como uma das principais revoltas do período a Praieira, fica a cargo do boxe evidenciar outras manifestações de bases populares que ocorreram nas províncias.

Entre elas, a revolta contra a Lei do Registro Civil, conhecida como Guerra dos Marimbondos, em Pernambuco, e Ronco da Abelha, na Paraíba, mas que atingiu também lugares como Alagoas, Sergipe e Ceará. Contra a alta dos preços de gêneros de subsistência, eclodiu ainda a revolta do Quebra-Quilos, que atingiu as províncias da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte, de outubro de 1874 a fevereiro de 1875. Essas revoltas evidenciaram as tensões entre povo e Estado e mostraram um lado não tão pacífico do reinado de D. Pedro II.

“Imigrantes para substituir escravos na cafeicultura” retoma a discussão final do capítulo sobre o fim da escravidão e introduz um resumo sobre a mão de obra de emigrantes europeus no Brasil. O fim do tráfico negreiro em 1850, a insuficiência do tráfico interprovincial, a dificuldade de contar com a mão de obra de pobres livres e a mentalidade sobre o trabalho manual exigiam outra saída para a questão do trabalho nos cafezais.

Assim, partindo do princípio de que a lógica do trabalho assalariado não era a vigente/aceitável no Brasil naquele momento, os cafeicultores do Oeste Paulista fizeram vir imigrantes de vários países europeus para trabalhar sob um sistema de contrato. Para tanto, eram oferecidos aos imigrantes como uma forma de atrativo, “50% dos lucros obtidos com a venda do café produzido por ele”19 e empréstimos para pagar despesas da viagem e demais gastos. Dolhnikoff registra o fracasso da iniciativa nas primeiras tentativas. A impossibilidade de cumprimento imediato do contrato e o tempo de espera entre o plantio e o lucro geravam prejuízos aos imigrantes, provando a ineficácia daquele empreendimento.

Na década de 1880, o financiamento da imigração pelo Estado foi a saída para o logro da iniciativa, responsável, dessa vez, pela chegada de milhares de imigrantes, em grande parte de origem italiana, para trabalhar nos cafezais do Vale do Paraíba.

No último boxe, Miriam Dolhnikoff ocupa-se da política para o comércio externo como encerramento das discussões do capítulo “A Monarquia e seus vizinhos”. Está em destaque aqui os tratados comerciais feitos entre o Brasil e Inglaterra, principal fornecedora de gêneros manufaturados, grande interlocutora diplomática e enfaticamente interessada no mercado consumidor brasileiro. A autora concentra-se na gradual mudança de postura do Brasil em relação às imposições diplomático-comerciais dos ingleses, além das desvantagens na assinatura dos acordos para o Brasil. Enfrentar a hegemonia britânica através da não renovação de tratados e o questionamento do valor das taxas de importação foi uma das maneiras do governo brasileiro sublinhar a soberania nacional. Dentre as medidas protecionistas, o boxe dá destaque à Tarifa Alves Branco, mecanismo utilizado até o final da monarquia para proteger a economia nacional.

  1. Considerações finais

História do Brasil Império é uma obra bem elaborada que cumpre com os objetivos da coleção a qual faz parte. Miriam Dolhnikoff usa de sua experiência e conhecimento para compor uma narrativa acessível e bem elaborada. Os temas que enquadram os capítulos são facilmente identificados por um público leitor leigo ou mesmo para um público mais especializado. Transitar entre os dois universos sem parecer aquém ou além para ambos os leitores pode ser considerada uma tarefa complexa, mas que é bem alcançada pela obra. Considerando que vigora na academia, e para parte considerável dos historiadores, a feitura de uma produção que na maioria dos casos é pouco acessível às mentes não especializadas em análises historiográficas, a obra de Dolhnikoff mostra exatamente o contrário. Dialogar com um público geral e não restrito significa transpor os muros, os preconceitos e as limitações do universo acadêmico. História do Brasil Império tanto pode ser adotada por um professor do ensino superior para discutir questões pontuais sobre o período com seus alunos, como pode ser um excelente auxiliar de um professor do ensino básico interessado em levantar debates para além do conteúdo dos livros didáticos.

Nesse sentido, como historiadora, Miriam Dolhnikoff cumpre uma função social importante ao tornar acessível à sociedade em geral um conhecimento que a ela pertence e que não pode ficar restrito aos muros da universidade. Mais que isso, a obra em questão ensina ultrapassando os limites da simples descrição dos fatos, ainda presente de forma tão insistente nos livros didáticos. A autora narra, analisando os acontecimentos; não se prende a cronologias, mas as utiliza nos momentos necessários e em favor da análise; mostra novos ângulos de temas já cristalizados pela historiografia tradicional, insere as fontes, enriquece o debate. Tudo isso permeado por uma linguagem fácil e bem elaborada.

Sem notas americanas, notas de rodapé explicativas, referências às fontes ou longas teorizações, Dolhnikoff permite o texto fluir, sem abrir mão da objetividade da análise. As fontes, bem escolhidas, variadas e inseridas em momentos pontuais, funcionam como aprofundamento das análises. Assim, uma obra com um viés mais didático, não abre mão das características de uma boa produção historiográfica e apresenta esse importante período da história brasileira com competência.

Notas

  1. DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. p. 09.
  2. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 16.
  3. Ibid, p. 17.
  4. Ibid., p. 28.
  5. Ibid, p. 27.
  6. Idem.
  7. Ibid, p. 33.
  8. Ibid.
  9. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 65.
  10. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 153-154.
  11. Ibid., p. 155.
  12. Ibid., p. 156.
  13. Ibid., p. 164.
  14. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 83.
  15. Ibid.
  16. Ibid.
  17. Ibid.
  18. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 130.

Edyene Moraes dos Santos – Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda UNESP-Assis. São Luís, Maranhão, Brasil. E-mail: edyene_moraes@hotmail.com.


DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SANTOS, Edyene Moraes dos. Sobre “História do Brasil Império” de Miriam Dolhnikoff: análise e considerações. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.27, p.342-357, 2019. Acessar publicação original. [IF].

Revista de Filosofia e Ensino. Rio de Janeiro, v.2, n.2, 2020 / v.1, n.1, 2019.

Revista de Filosofia e Ensino. Rio de Janeiro, v.2, n.2, 2020.

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