A Terceira margem do Gran Caribe / Revista Brasileira do Caribe / 2019

Este número da Revista Brasileira do Caribe é composto por três seções. O dossiê “A terceira margem do Gran Caribe” reúne estudos sobre as relações entre o Caribe, Sul da Europa e África. A partir de diferentes referentes disciplinares e temáticos, os textos reunidos focalizam as conexões, os trânsitos e as experiências comuns entre sujeitos e processos desses três espaços. Eles revelam que a densidade e a continuidade histórica destas relações torna possível falar de um terceiro espaço, o do movimento de ida e retorno, de compartilhamento e mútua influência, nomeado aqui de terceira margem. A segunda sessão, artigos livres, reúne artigos diversos sobre a literatura e sociedade caribenhas. Finaliza o número, a seção resenha.

Abre o dossiê “A terceira margem do Gran Caribe” o artigo Infante y Martí pensadores decoloniales de Fernando Limeres Novoa. Neste texto, tendo como ponto inicial os elos entre o Caribe a Andaluzia, são descritos e analisados as coincidências entre o pensamento de Martí e Blas Infante, pensadores revolucionários do período de transição entre o século XIX e XX. Ígor Rodríguez-Iglesias, em Procesos de la ideología lingüística del andaluz en el Caribe cubano a través de la etnografía sociolingüística crítica tece considerações sobre experiências de preconceito linguístico com o falar andaluz vivenciadas por ele durante etnografia realizada em Cuba. Esse artigos, assim, estão situados dentro das relações entre Caribe o Sul da Europa, esse espaço que Garcia de Léon ( ) chama de caribe afroandaluz.

As relações entre o Caribe a África são problematizados por Hélio Márcio Nunes Lacerda no artigo A ficção do Caribe: Tituba e a invenção do mundo colonial. O autor pergunta-se sobre o lugar das reescritas literárias de eventos e personagens históricos realizadas pela literatura caribenha contemporânea e a relação desse processo pelas disputas en torno da memória de eventos como a escravidão e a resistência.

O último artigo, Pata negra: conversaciones sobre negritud, cultura e Historia de Andalucía. Entrevista con Jesús Cosano é um diálogo entre esse autor e Javier García Fernández em que são tratados da relação entre África e Andaluzia, a partir do ativismo cultural e musical de Cosano e da presença africana no sul da Europa.

A seção artigos livres é composta, em primeiro lugar pelo artigo Periodización y praxis para el estudio de la crítica literaria en las principales publicaciones periódicas y culturales de Santiago de Cuba (1825-1895) de Ivan Gabriel Grajales Melian e Yessy Villavicencio Simón. Os autores procuram, a partir de pesquisa em publicações culturais, estabelecer as bases para a periodização e prática do estudo da crítica literária em Santiago de Cuba no século XIX. Em seguida, Luiza Helena Oliveira da Silva e José Antonio Romero Corzo em Estética do atroz, memória e acontecimento no romance Díptico da fronteira: uma caracterização semiótica do trauma dos deslocados pela violência política colombiana estudam o testemunho do trauma a partir do romance Díptico da fronteira, que narra a história de violência política que faz da fronteira colombiana-venezuelana espaço de trânsito e fuga constante. Por outro lado, Olivia Macedo Miranda de Medeiros em Roberto Fernández Retamar em cartas: (des)encantos da Revolução analisa o lugar ambíguo de Fernandez Retamar no processo de endurecimento das relações entre Estado e produtores culturais em Cuba da década de 1970. Completam a sessão, o artigo Atravessamentos de raça, gênero e nacionalidade: a diáspora estudantil de mulheres haitianas no Brasil de Camila Rodrigues Francisco. Neste artigo, são problematizados as dinâmicas de gênero, raça e nacionalidade como contexto importantes para a compreensão da trajetória da diáspora de estudantes haitianas no Brasil.

Por fim, a seção Resenha publica O que Tata escreveu: resenha do livro Conversas que tive comigo de Nelson Mandela de Josiel Santos. O autor descreve as cartas e trechos de diários de Mandela, indicando articulações entre seus pensamentos e o que chamamos de decolonialidade.

Boa leitura.

Os organizadores

Os organizadores. Editorial. Revista Brasileira do Caribe. São Luís, v. 20, n. 38, jan./jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) | Mariana Schlickmann

SCHLICKMANN Mariana (Aut), A Introdução dos Estudos Africanos no Brasil (1959 – 1987) (T), CRV (E), COSTA Rosivania de Jesus (Res), Fronteiras (Ftr), Estudos Africanos, América – Brasil, Séc. 20

Na obra aqui resenhada, a autora dedica-se a fazer um levantamento da literatura produzida no Brasil, entre 1959 e 1987, a respeito dos estudos africanos. O foco do livro é no modo como o continente africano figura nos trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros.

Schlickmann apresenta dados desde o primeiro estudo acadêmico por ela identificado e cujo foco foram os estudos africanos no Brasil, realizado em 1987 por Luís Beltrán, intitulado O Africanismo Brasileiro, até pesquisas mais recentes acerca da temática, como a tese de doutoramento de Márcia Guerra Pereira, datada de 2012, História da África: uma disciplina em construção. Leia Mais

A História Secreta da Mulher-Maravilha | Jill Lepore

Quem não conhece a Mulher-Maravilha? Não importa que geração você faça parte, a super-heroína provavelmente faz parte do imaginário de sua infância e das referências de sua vida adulta. Seja pelos quadrinhos ou filmes e séries que representam a personagem. Não foi diferente no momento em que a Mulher-Maravilha apareceu pela primeira vez nos quadrinhos. Priscilla Ferreira Cerencio revela que os quadrinhos eram a principal forma de entretenimento de crianças e jovens adultos antes da televisão, especialmente nas classes mais baixas (CERENCIO, 2011: 12). Jill Lepore escreveu um best-seller que trata especificamente da História Secreta da Mulher Maravilha. Lepore é uma historiadora norte-americana, professora de História dos Estados Unidos na Universidade de Harvard e escritora da The New Yorker, onde contribui desde 2005. Escreve principalmente sobre história, direito, literatura e políticas americanas, o que não a impediu de escrever muito bem sobre a cultura pop.

O Batman começou a espreitar as sombras em 1939. A Mulher-Maravilha aterrissou seu avião invisível em 1941. Era uma amazona, nascida em uma ilha de mulheres que viviam afastadas de homens desde a Grécia Antiga. Ela fora aos Estados Unidos para lutar pela paz, pela justiça e pelos direitos femininos. (LEPORE, 2017: 11)

Logo no início de seu livro, Lepore explicita que, diferentemente dos outros super-heróis, a Mulher-Maravilha tem muito mais do que uma identidade secreta, ela tem uma origem secreta a qual vai além da mítica que percorre as histórias em quadrinhos. Todavia, o livro em questão não mostra essa origem. Conforme a autora, o livro foi um trabalho historiográfico: o resultado de anos de pesquisa em dezenas de bibliotecas, arquivos e coleções, incluindo documentos particulares do criador da heroína, William Moulton Marston — documentos que nunca foram revelados a pessoas fora da família de Marston. Lepore traz exemplos de suas fontes: jornais e revistas, a imprensa especializada, revistas científicas, tiras, gibis, arquivos, milhares de páginas de documentos manuscritos e datilografados, fotografias e desenhos, cartas e cartões-postais, fichas criminais, anotações rabiscadas nas margens de livros, depoimentos de tribunal, prontuários médicos, memórias não publicadas, roteiros rascunhados, esboços, históricos de estudante, certidões de nascimento, documentos de adoção, registros militares, álbuns de família, álbuns de recortes, anotações para palestras, arquivos do FBI, roteiros de cinema, as minutas cuidadosamente datilografadas dos encontros de um culto sexual e minúsculos diários escritos em código secreto. Estes documentos preenchem as páginas do livro, recheando a história com detalhes sobre a vida do criador e os motivos da criação da personagem.

A Mulher-Maravilha não é apenas uma princesa amazona que usa botas fabulosas. Ela é o elo perdido numa corrente que começa com as campanhas pelo voto feminino nos anos 1910 e termina com a situação conturbada do feminismo um século mais tarde. O feminismo construiu a Mulher-Maravilha. E, depois, a Mulher-Maravilha reconstruiu o feminismo — o que nem sempre fez bem ao movimento. Super-heróis, que deveriam ser melhores do que todo mundo, são excelentes para dar porrada, mas péssimos para lutar por igualdade. (LEPORE, 2017: 14)

O livro revela o quão a história da personagem é ligada a de seu criador: ao seu passado e às mulheres que amou – foram elas que inspiraram e até mesmo ajudaram a idealizar a personagem. Além disso, Lepore ressalta seu vínculo com a utopia feminista e com a luta pelos direitos das mulheres. A obra é estruturada em três partes, as quais são divididas pelos 30 capítulos e um epílogo. A primeira parte, Veritas, trata da vida de William Moulton Marston antes da formação de sua curiosa família. Já a segunda parte, O Círculo Familiar, tange a introdução de Marston no mundo dos quadrinhos, os antecedentes que inspiraram a personagem e como se constituiu a sua grande família. E, por fim, a terceira parte, Ilha Paraíso, refere-se mais especificamente a criação da super-heroína e sua influência na vida da família Marston e, por fim, o que acontece após o falecimento de seu criador.

A obra quando assim resumida, perde em sua riqueza de detalhes. Todavia, a presente resenha se pretende curta e deve-se focar em apenas certos aspectos da obra. Neste caso, nos ateremos, especificamente, à relação da Mulher-Maravilha com o movimento sufragista e o movimento feminista, tratada em especial na primeira parte da obra. Sean Purdy chama as duas primeiras décadas do século XX de “Era Progressista”, momento em que os EUA se mostram como mais fortes que as antigas potências europeias, ou melhor, o maior poder econômico no mundo, graças a forte produção industrial e os grandes monopólios (PURDY, 2007: 173-276). As sufragistas e as feministas apareceram naquele momento como um movimento social em ascensão, ainda antes da Primeira Grande Guerra. Entretanto, foi justamente a partir deste evento que as mulheres conquistaram mais direitos e liberdades, uma vez que agora eram a maior parte da mão de obra. William Moulton Marston, criador e roteirista dos quadrinhos da Mulher-Maravilha, inspirou sua personagem especificamente nessas feministas.

Enquanto estudava em Harvard, William Moulton Marston tinha como uma grande influência o seu professor de filosofia, o Prof. George Herbert Palmer cuja falecida esposa foi sufragista. Palmer tinha como um de seus compromissos intelectuais e políticos principais a igualdade dos sexos, que segundo a autora, poderia significar uma forma de lembrar-se de sua esposa. Diante disso, é significativo que o professor que salvou a vida de Marston [2]

era também padrinho da Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino. Ademais, Zina Abreu explicita que a percepção, no século XVII, da sua ‘igualdade cristã’ levou as mulheres a se consciencializarem da sua desigualdade civil: se como cristãs tinham ‘almas iguais’, como cidadãs deveriam ser, tal como os homens, também detentoras de direitos naturais e inalienáveis (ABREU, 2002: 446), algo que explica os argumentos na citação a seguir:

O movimento sufragista nos Estados Unidos remonta a 1848, quando se deu a primeira convenção sobre os direitos das mulheres em Seneca Falls, Nova York (história que viria a ser contada na revista da Mulher-Maravilha [3]), onde as representantes adotaram uma “Declaração de Sentimentos”, escrita por Elizabeth Cady Stanton, que tinha a Declaração da Independência como modelo: “Consideramos as seguintes verdades evidentes por si mesmas: que todos os homens e todas as mulheres são criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.” Entre as exigências estava a de dar às mulheres “admissão imediata aos direitos e às prerrogativas que lhes cabem como cidadãs norte-americanas.” (LEPORE, 2017: 25)

A Liga Masculina de Harvard pelo Sufrágio Feminino foi constituída em 1910 e, em 1911, anunciou uma série de palestras. Lepore mostra que a Liga anunciou que sua próxima convidada seria a sufragista britânica Emmeline Pankhurst, a mesma que, no início do século XX, inspirou as sufragistas norte-americanas em sua entrada na militância. Pankhurst, feminista que sempre falava sobre as “correntes do patriarcado” foi impedida de palestrar em Harvard, mas acabou palestrando em um teatro muito próximo, o qual, segundo Lepore, lotou. O livro mostra que, trinta anos depois, quando Marston cria a super-heroína que luta pelos direitos femininos, tem como a sua única fraqueza a perda toda a força se um homem acorrentá-la.

Lepore mostra no decorrer do livro que muitas das histórias dos quadrinhos da Mulher-Maravilha foram inspiradas em acontecimentos reais. Em uma das primeiras revistas da super-heroína, Marston teria se inspirado na greve dos operários da indústria têxtil em Lawrence, Massachusetts, em 1912, greve em que Margaret Sanger havia se envolvido – sendo ela uma das inspirações para a personagem. Outro exemplo é uma revista em que se inspira no acontecimento de 1910, em que o sindicato dos leiteiros teria colocado preços altíssimos no leite. Este quadrinho, publicado em 1942, torna-se uma propaganda antinazista, já que nele os altos preços do leite seriam consequência de uma conspiração alemã, para deixar as crianças norte-americanas mais fracas (LEPORE, 2017: 281). Purdy aponta que nos “tempos duros” da década de 30, houve uma mudança nas dinâmicas familiares, as quais tiveram que se adaptar à pobreza, ao choque social e ao desespero, causando grande tensão no ambiente familiar. As mulheres viram seu movimento ter duas repercussões: ao mesmo tempo, perdiam seus empregos para os homens, devido ao desemprego da Grande Depressão, e mais mulheres se inseriram no mercado de trabalho para aumentar a renda familiar (PURDY, 2007: 206).

As mulheres padeceram não somente pelas condições econômicas ruins, mas também vítimas dos estereótipos sexuais ligados a seu papel social. Nas fábricas, muitas perderam trabalho para os homens, aos quais foi dada prioridade nas poucas vagas existentes. Mesmo assim, em 1939, 25% mais mulheres estavam trabalhando do que em 1930, primariamente porque tinham que contribuir com a economia familiar e também porque os empregos femininos – professoras, funcionárias de lojas e secretárias – foram menos abalados pela Depressão do que os da indústria pesada. (PURDY, 2007: 208)

A década de 30, conforme Purdy, foi um momento intenso e próspero dos movimentos sociais, dado que a maioria da população se mostrava revoltosa com as circunstâncias. O impacto da crise econômica e as novas alternativas políticas chegaram a influenciar muito a indústria cultural, como o cinema. O historiador mostra que esta indústria se focou, principalmente, no escapismo. “O mundo hollywoodiano da fantasia cultivava a crença nas possibilidades de sucesso individual, na capacidade do governo em proteger cidadãos contra o crime e numa visão da América como uma sociedade sem classes” (PURDY, 2007: 213).

Em uma linguagem clara e objetiva, acessível ao público, Lepore conseguiu trazer sua pesquisa historiográfica, dando a atenção necessária aos movimentos sufragista e feminista do século XX, mostrando o quanto a super-heroína foi inspirada por elas. Não é nem mesmo necessário ter conhecimentos prévios para melhor entendimento do assunto, no decorrer da obra a autora consegue expor muito bem como estes movimentos influenciam tanto na criação da Mulher-Maravilha quanto as repercussões para a vida das mulheres do período.

Notas

2. Com 18 anos, Willian Moulton Marston, tentou se matar com ácido cianídrico, mas foi salvo pelo seu professor de filosofia.

3. Mais especificamente na revista nº5 de junho/julho de 1943.

Referências

ABREU, Zina. Luta das Mulheres pelo Direito de Voto: movimentos sufragistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. In: Revista ArquipélagoHistória, 2ª série, VI, 2002. pp. 443-446.

BANTI, Alberto Mario. Wonderland. La cultura di massa da Walt Disney ai Pink Floyd. Roma-Bari: Laterza, 2019.

LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017.

PURDY, Sean. O Século Americano. In: KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007. pp. 173-276.

Nathália Santos Pezzi – Graduanda do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. Endereço para o currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0895456220435755


LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher-Maravilha. Tradução de Érico Assis. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017. Resenha de: PEZZI, Nathália Santos. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.146-153, 2019. Acessar publicação original [DR]

Sobre o autoritarismo brasileiro | Lilia Moritz Schwarcz

O imaginário sobre o passado brasileiro está permeado de interpretações que, sendo oriundas de um antigo projeto excludente de nação, ignoram uma série de aspectos e problemáticas que marcaram diferentes temporalidades da história do país, da colônia à república. Ideias como o “mito das três raças”, a democracia racial e o entendimento de que a escravidão brasileira teria sido mais “branda” não raro surgem quando se discute a história do Brasil. Esta visão relaciona-se diretamente com a historiografia brasileira do século XIX, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tinha como objetivo criar uma imagem de um Brasil cujo passado era harmônico, e o futuro, glorioso.

É desse ponto que parte a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, na introdução de seu livro Sobre o autoritarismo brasileiro. A obra é resultado da junção de conteúdos de outro livro da autora, Brasil: uma biografia (2014), com algumas colunas escritas por Schwarcz ao jornal Nexo. Feito a pedido da editora Companhia das Letras, Sobre o autoritarismo brasileiro tem a intenção de fornecer ao leitor um panorama geral de algumas questões que atravessam a história do Brasil e ainda se fazem presentes na atualidade. Tendo em vista as recentes disputas de ideias, a turbulência política e econômica e a crise social que o país tem vivenciado na última década, Schwarcz busca não atribuir acriticamente as raízes dos problemas atuais ao passado, mas sim propor um olhar à nossa história para lembrar que, diferentemente do que comumente se acredita, a intolerância e a violência sempre marcaram a figura do brasileiro.

Cada capítulo do livro aborda uma temática específica, evidenciando as variadas facetas do autoritarismo no Brasil. O primeiro, “Escravidão e racismo”, busca reforçar que o sistema escravista, muito mais do que uma estrutura econômica e social, “moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita” (SCHWARCZ, 2019: 27-28). Questionando a ideia de que o escravismo no país teria sido mais brando ou “menos pior”, a autora destaca os altos índices de pessoas negras traficadas dos portos africanos para o Brasil, bem como os sofrimentos pelos quais os escravizados passavam diariamente. Por outro lado, um sistema severo significou uma série de resistências: as fugas, formações de quilombos, insurreições e revoltas com diversos meios e motivações não devem ser deixadas de lado.

A abolição foi adiada até onde pôde, e foi empreendida de forma gradual e conservadora, culminando na Lei Áurea de 1888. Contudo, isso não significou uma preocupação em ressarcir ou integrar a população recém-liberta à sociedade. Ainda, a adoção de teorias científicas deterministas representaram uma tentativa de substituir uma desigualdade por outra: antes estabelecida entre escravos e senhores, agora a desigualdade era legitimada pela biologia. Em seguida, a autora realiza uma análise da questão racial na contemporaneidade. Embora hoje não sigamos mais a ideia de raças biológicas nem a falácia de que cor determina conduta moral, nossa sociedade é estruturada pela “raça social”, que opera na cultura e nas mentalidades. No Brasil, a desigualdade social tem cor, e a população negra sofre uma dupla morte: o apagamento de sua memória e o genocídio que marca os indicadores sociais.

O segundo e terceiro capítulos são dedicados, respectivamente, ao mandonismo e ao patrimonialismo. Ambos os aspectos são centrais para entender a hierarquia social do Brasil colonial, fundamentada na concentração de grandes latifúndios monocultores nas mãos de poucos homens, que consistiam na “nobreza da terra”. Era esta aristocracia que detinha os privilégios sociais, políticos e econômicos, num sistema patriarcal onde o homem era o chefe de família e a mulher possuía um papel secundário. Esta forma de organização social acabou por contribuir para a criação da imagem do senhor de terras como a pessoa que distribuía benefícios aos mais próximos e poderia, eventualmente, cobrar por seus favores, aumentando sua influência política.

Tal estrutura perdurou no período republicano. O coronelismo é sua expressão mais relevante na República Velha, e marcou as relações entre os senhores de terras, governadores e a presidência da República. Esta personalização do poder acabou, ainda, por perpetuar o sistema desigual e excludente no meio rural da atualidade: as famílias tradicionais de ruralistas são as maiores beneficiadas pelo Estado, detém a maior parte das terras e ainda possuem considerável relevância nos cenários políticos regional e nacional. Tais clãs perderam algum espaço desde as eleições de 2018, contudo, a estrutura autoritária que os beneficia é a mesma, apesar das reformas políticas empreendidas desde a redemocratização. Ademais, a figura do pater familias, “autoritário e severo diante daqueles que se rebelam; justo e ‘próximo’ para quem o segue e compartilha das suas ideias” (SCHWARCZ, 2019, p. 65) ainda exerce grande apelo no imaginário popular.

Por sua vez, o patrimonialismo é conceituado pela autora como um extrapolamento da divisão entre as esferas pública e privada, quando o Estado é usado como ferramenta para fins particulares. Consequentemente, uma série de práticas, ideias e comportamentos de clientelismo, de conchavo, e de arranjos pessoais que atropelam os limites da regra pública, torna-se cotidiana nas movimentações e negociações políticas. A ideia do Estado como uma extensão do ambiente doméstico permite, então, que o poder político seja exercido pelos detentores do poder (homens, brancos, aristocratas) para fins pessoais. E, apesar das ações levadas a cabo para combater tais práticas existirem desde a Constituição de 1934 (e principalmente com a Constituição de 1988), as práticas patrimonialistas persistem. De acordo com Schwarcz, um dos maiores exemplos disso é a chamada “bancada dos parentes” no Congresso: em 2018, dos 567 parlamentares, 138 eram oriundos de clãs políticos, um aumento de 22% em relação a 2014 (SCHWARCZ, 2019, p. 83). O próprio presidente Jair Bolsonaro bem representa esta questão, já que três de seus filhos possuem cargos políticos. Estreita relação tem o patrimonialismo com a corrupção, tema do quarto capítulo. A autora reforça que, embora possa-se dizer que a corrupção existe no Brasil desde o período colonial, erramos ao simplificar este raciocínio afirmando que as práticas corruptas da contemporaneidade são as mesmas do passado. De fato, o termo “corrupção” tem sido ressignificado múltiplas vezes, assumindo diferentes concepções conforme a alteração dos contextos políticos.

Uma questão relacionada a isso é a recorrência ao combate à corrupção no discurso político para legitimar quebras da normalidade constitucional, como foi o caso do golpe de 1964 e da ditadura militar, que, apesar de assumir a bandeira da anticorrupção, utilizou de práticas ilegais em seus projetos e negociações. De todo modo, a autora conta que, com a redemocratização, o melhor funcionamento das instituições políticas permitiu que os escândalos ganhassem mais espaço nos jornais e no debate público, como foi o caso de Fernando Collor. Essa melhora na percepção da corrupção também se vê no caso do Mensalão. Apesar de afetar diretamente o Partido dos Trabalhadores (PT), então partido que ocupava a presidência, o Mensalão foi o primeiro caso em que as políticas de fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público Federal levadas a cabo nos últimos anos surtiram um efeito visível. A autora finaliza o capítulo fazendo uma reflexão sobre a corrupção hoje, em que a Operação Lava Jato tem investigado um complexo esquema que envolvia partidos e empresas. Schwarcz pontua que, apesar da relevância do tema no debate público, o combate à corrupção não pode tornar-se uma cruzada moralista focada em indivíduos, com um discurso raso e populista de “luta contra a roubalheira” (SCHWARCZ, 2019: 121). O que é necessário é investir em planos duradouros que combatam práticas cotidianas enraizadas no comportamento da sociedade e que não joguem fora os ganhos que tivemos desde a Constituição de 1988.

Na sequência, Schwarcz se volta às especificidades do cenário das extensas desigualdades sociais brasileiras. Partindo de um panorama estatístico dos níveis de concentração de riqueza no país, a autora estabelece uma série de ramificações, que envolvem desde um não acesso a serviços básicos até a impossibilidade de se consumir bens culturais e de ser uma pessoa plenamente inserida nas participações e nos diálogos políticos previstos pelo ideal de “república democrática”. Entre os elementos da ordem social brasileira que permitem a reprodução constante de tal assimetria, figuraria, em posição proeminente, a precariedade dos serviços educacionais públicos, não estendidos à totalidade da população infanto-juvenil em condições equânimes. Embora a obrigatoriedade de oferta de ensino público tenha sido instituída já em 1824, era irrisório o número de estabelecimentos constituídos. Assim, até meados do século XIX, o letramento consistiu em uma quase exclusividade das elites brancas, responsáveis por instituir proibições à formação educacional de pessoas negras escravizadas.

Na segunda metade dos anos 1800, o ensino seguia uma prática marginalizada, ainda que convenientemente exaltado como critério de seleção da parte do povo apta para votar. Conforme explica Schwarcz, o século XX trouxe transformações conservadoras a essa problemática — se o regime de Vargas pode ser reconhecido pela ampliação e concretização de um sistema de ensino efetivamente nacional, deve ser igualmente encarado como perpetuador de uma lacuna de possibilidades de formação individual entre alunos de famílias abastadas e descendentes da classe trabalhadora. A instituição de dois programas curriculares para o ensino secundário, um voltado à transmissão de saberes técnicos e outro à preparação teórica para ingresso em universidades, favoreceu a continuidade do exclusivismo do ensino superior aos estudantes que não precisavam iniciar suas trajetórias de trabalho ainda na adolescência. Na atualidade, a baixa democratização do direito à educação apareceria expressa em altos índices de evasão escolar e represamento, ocasionando, por consequência, a continuidade do ensino universitário e dos postos de maior remuneração enquanto privilégios de elite.

Relacionada às desigualdades sociais do país, a temática das múltiplas violências é pautada em seguida, com o estabelecimento de panoramas referentes à criminalidade urbana e aos conflitos agrários empreendidos contra comunidades historicamente resistentes à ordem colonial ou nacional. Envolvido naquela estão os altos índices de assassinato (30 homicídios/100 mil hab.), de armas de fogo em circulação e de receio da população em sofrer agressões por agentes policiais (SCHWARCZ, 2019: 156, 161-162). Schwarcz salienta que, apesar da vigência do Estatuto do Desarmamento desde 2003, observa-se, a partir do ano de 2014, aumentos expressivos no número de licenças para porte de armas por civis, bem como uma intensificação de lobbies políticos favoráveis à flexibilização de restrições colocadas pelo Estatuto (SCHWARCZ, 2019: 157-159). Assim, embora as armas de fogo sejam as principais ferramentas por trás da execução de mortes violentas (79,8% delas, aproximadamente), atendem a discursos de populismo autoritário que, diante dos reclamos populares contra a insegurança nas cidades, sugerem o fortalecimento de órgãos repressivos e letais — caso das polícias militares — e a simultânea individualização das políticas de segurança (SCHWARCZ, 2019: 161-164). Em decorrência do desvio de armas obtidas legalmente, seriam as milícias — grupos paramilitares compostos por agentes de segurança do Estado e políticos locais — as formações em mais próspera expansão na conjuntura de tráfico pela guerra às drogas.

Já a segunda esfera estaria dirigida a populações indígenas e quilombolas, usurpadas de seu direito à terra previsto pela Constituição de 1988, na medida em que órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) corroboram a morosidade dos processos de reconhecimento de suas terras enquanto áreas de válida demarcação. Aos indígenas, atribui-se um longo histórico de representações e de políticas delimitadas pelos ensejos dos grupos governistas brancos. Massivamente alvejados na colonização, foram, no século XIX, tornados matéria de inspiração à produção de obras artísticas financiadas por D. Pedro II, as quais objetivavam a materialização de uma identidade nacional apaziguadora, que via no grupo uma oportunidade de valorizar as raízes brasileiras diversas sempre mantendo a máxima de exaltação das contribuições europeias. No século XX, a adição de dispositivos legais prevendo garantias de preservação de seus territórios não mostrou efeitos práticos, legando os povos à vulnerabilidade frente a interesses capitalistas de ocupação territorial e de exploração de recursos. Os quilombolas, em contraponto, não chegaram a receber propostas de proteção pelo Estado antes de 1988, enfrentando dificuldades para a legalização da posse de suas terras.

A seguir, a historiadora aprofunda suas abordagens fazendo uso de uma perspectiva analítica delimitada, a interseccionalidade, traduzida, por sua vez, no uso dos chamados “marcadores sociais da diferença” como lentes de interpretação de estatísticas e de formas específicas de violência sucedidas no país. Aqui, nota-se a adesão da autora a um horizonte plural e complexificado de investigação das realidades nacionais, que vai ao encontro das perspectivas teóricas propostas por feministas negras estadunidenses desde o final dos anos 1980. Nas obras da jurista Kimberle Crenshaw, observa-se a defesa de uma ramificação das identidades de sujeitos sociopolíticos rumo a uma superação de modelos fixos e superficiais regidos apenas por reivindicações de gênero, de sexualidade e de raça em separado. A teórica argumenta que a densidade de problemáticas coletivas e de formas de existência exige que se leve em conta todos os eixos anteriores em conjunto (CRENSHAW, 1990: 1241-1245). Schwarcz converge com tal intuito, adicionando aos panoramas numéricos de raça e gênero fornecidos fatores regionais, etários e geracionais.

Entre as questões de raça e gênero pautadas, são destacadas algumas ocorrências: em primeiro lugar, a desigual propensão à morte por parte de pessoas negras. Se jovens pretos e pardos são desproporcionalmente atingidos pela violência policial e pelo encarceramento e massa, também seus familiares sofrem dificuldades pessoais — os homens mais velhos tendem a morrer cedo, sem acessar tratamentos de saúde e diagnósticos médicos. As mulheres adultas passam pelo mesmo, estando sujeitas (em percentual superior ao das mulheres brancas) à ameaça constante dos feminicídios. Esses constituem, junto às taxas de estupro, o segundo norte descritivo da autora no capítulo em questão. Para enfocar as violências de gênero, Schwarcz recupera algumas das explicações já delineadas acerca das origens patriarcais da sociedade colonial brasileira. Dialogando com os ideais de Judith Butler, acrescenta ao pano de fundo da tradição patriarcal escravista a heteronormatividade, padrão cultural de conduta que seria responsável pela imposição de hierarquias de poder hierárquicas às relações entre indivíduos dos gêneros feminino e masculino.

Denunciam-se, então, os altos números de feminicídios (50 mil entre 2001 e 2011, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA]) e de violações sexuais (cerca de meio milhão por ano) cometidos, sendo estas últimas uma forma de violência direcionada fortemente a crianças, violadas majoritariamente por pessoas próximas, no interior de suas casas (SCHWARCZ, 2019: 198). Motivados pela misoginia arraigada ao sistema de valores heteropatriarcais, ambos os crimes aparecem em registros de violência contra mulheres lésbicas, travestis e transexuais, agredidas em situações de não aceitação de manifestações de gênero e de sexualidade dissidentes. Passando a um olhar mais global das violações contra pessoas LGBTQIA+, Schwarcz atenta para as expressivas taxas de assassinato de integrantes dessa comunidade (aproximadamente 500 ao ano), com ataques mais direcionados a sujeitos trans e travestis, e para a precariedade das condições de coleta de dados voltados a essa população, destituída do foco de políticas públicas desde janeiro de 2019 (SCHWARCZ, 2019: 207-215). Segundo atestam pesquisadores da causa trans no Brasil (BONFIM, SALLES, BAHIA, 2019: 155-164), a ausência de estatísticas consistentes acerca das violências experienciadas particularmente por LGBT+s classifica-se como uma das faces da necropolítica de Estado contra tais corpos, uma vez que inviabiliza a execução de medidas protetivas e a oferta de serviços específicos, aspectos também pautados por Lilia.

Adentrando os dois últimos capítulos da obra, a autora desenvolve um balanço acerca da crise democrática sentida a partir do golpe parlamentar de 2016. Em sua avaliação, recorre às conjunturas de nações que, tal como o Brasil, transmitiam internacionalmente a imagem de “democráticos”, mas que, em decorrência da intensificação de polarizações, adentraram uma zona cinzenta classificada sob o epíteto de “democraduras”. Sem romper completamente a ordem institucional, países como Hungria, Polônia, Estados Unidos e Brasil experienciaram a consolidação de governos sustentados pela intensificação de ódios binários e por sentimentos de aversão a identidades de grupos que, até então, vinham adquirindo direitos básicos e relativo espaço político. A partir da reivindicação de que os setores populares tradicionais (famílias brancas, pessoas de classe média, homens trabalhadores) seriam aqueles autenticamente éticos e, ao mesmo tempo, os sujeitos deixados de lado por Estados que falharam em prover empregos, segurança e infraestrutura, teria se desenrolado um recrudescimento das práticas de intolerância.

A fim de sustentar a narrativa de validação exclusiva dos setores tradicionais (e reacionários), saberes científicos, discussões acadêmicas e jornalísticas passaram a sofrer frequentes ataques visando a seu descrédito. Junto a isso, pessoas negras, LGBTQIA+, mulheres, indígenas e adeptos de religiões de matriz africana foram convertidos em alvos de campanhas que colocam como norma os pilares da doutrina cristã, dando prosseguimento, na verdade, a um histórico de aniquilação de diversidades instaurado ainda no período colonial, seja pelas violências da escravização de africanos, seja pela conversão e genocídio dos povos originários de terras brasileiras. Em face da adesão de significativos percentuais demográficos às propostas de retorno a um suposto passado idílico aos setores abastados e não minoritários, Schwartz conclui: não nos devemos contentar com garantias democráticas oficiais, mas sim apostar na construção de uma cultura de defesa de princípios de diversidade e de participação cidadã, possível de se estruturar por meio da inserção de tais valores em projetos dos ciclos básicos do sistema público de educação.

Para além do amplo espectro de discussões e de explicações históricas apresentado pela obra e sintetizado nas linhas anteriores, merecem destaque ainda alguns outros fatores que concernem ao contexto de produção e de circulação do livro. Publicado em maio de 2019, Sobre o autoritarismo… logra denunciar retrocessos e impactos desencadeados tanto pelo processo eleitoral de 2018, quanto pelos primeiros meses da gestão de Jair Bolsonaro. Mesmo sem mencionar explicitamente sua figura — em uma escolha intencional da autora, que buscou se evadir de uma escrita centrada no Presidente de modo a não recair em uma narrativa personalista (MOTA, 2019) — Schwarcz alerta para os brutais aumentos das taxas de registro de crimes de intolerância em setembro e outubro de 2018, bem como para as consequências da reorganização da agenda de promoção de direitos de minorias sob o esdrúxulo, patriarcal e heteronormativo Ministério “da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos”. Influenciada por sua formação, tece diálogos com trabalhos de nomes importantes da Antropologia, a exemplo de Manuela Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, sem deixar de lado os referenciais historiográficos por vezes ausentes em livros que se pretendem contadores do passado brasileiro hoje. Utilizando-se de uma linguagem clara, distancia-se do ideal de livro acadêmico rebuscado em sua redação. Com isso, fornece uma opção de leitura comercialmente acessível, concisa, historicamente embasada e dotada de viés crítico ao público leigo interessado em compreender mais sobre as desventuras sociopolíticas que afligem o Brasil. Essas, conforme evidenciado por Lilia Schwarcz em diversos momento, devem ser percebidas pelos leitores como uma sombra constante, vinculada à longa duração histórica e às particularidades dos arranjos conservadores das elites de cada período.

Referências

BOMFIM, Rainer; SALLES, Victória; BAHIA, Alexandre. Necropolítica Trans: o gênero, cor e raça das LGBTI que morrem no Brasil são definidos pelo racismo de Estado. Argumenta Journal Law, Jacarezinho, Brasil, n. 31, p. 153-170, jul./dez. 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, n. 6, v. 43, p. 1241-1299, jul. 1990.

LILIA Schwarcz: “A todo momento, revelamos nossa raiz autoritária”. Fronteiras do Pensamento, Salvador, 29 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

MOTA, Camila Veras. Brasileiro abandonou “máscara” de cordial e assumiu sua intolerância, diz Lilia Schwarcz. BBC, São Paulo, 01 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

ROVANI, Andressa. Sempre fomos autoritários: Lilia Schwarcz diz que crise fez aflorar ressentimentos e que PT-PSDB falhou em não atender conservadores. UOL, São Paulo, 05 jun. 2019. Acesso em: 18 out. 2020.

Bruno Stori – Estudante do 5º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Andréa Carla Doré.

Rafaela Zimkovicz – Estudante do 3º período do curso de História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná. É bolsista do grupo PET História UFPR e faz Iniciação Científica sob a orientação da Profª Drª Priscila Piazentini Vieira.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Resenha de: STORI, Bruno; ZIMKOVICZ, Rafaela. Cadernos de Clio. Curitiba, v.10, n.1, p.154-167, 2019. Acessar publicação original [DR]

Afro-Américas | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2019

Os estudos sobre as experiências e contextos históricos que envolveram os povos de ascendência africana nas Américas constituem um campo de pesquisa potente desde a primeira metade do século XX. A crescente demanda tanto na academia quanto dos movimentos sociais por pesquisas e reflexões sobre a história de homens e mulheres afrodescendentes na Era das Emancipações e após a Abolição da escravidão, ao longo de todo o continente americano, nos impulsionou a propor esse dossiê. Nada mais apropriado que a coletânea de artigos aqui reunida fosse ofertada pela Revista Eletrônica da ANPHLAC, cujo objetivo é publicar estudos sobre a história e o ensino de história das Américas.

Embora os estudos sobre a escravização dos africanos e seus descendentes no Brasil, no Caribe e nos Estados Unidos tenham concretizado uma importante área de pesquisas historiográficas desde a década de 1960, apenas recentemente observamos uma ampliação das investigações sobre o impacto da racialização da escravidão negra e as consequentes relações raciais no Pós-Abolição nas Américas, sobretudo na América Latina. Nas últimas décadas, este campo vem se definindo como estudos afro-americanos ou, ainda, estudos afro-latinoamericanos. Leia Mais

O Império e as Províncias: configurações do estado nacional brasileiro no século XIX / Outros Tempos / 2019

Caro leitor, a nova edição da Revista Outros Tempos apresenta o Dossiê O Império e as Províncias: configurações do estado nacional brasileiro no século XIX. Ao convidar estudiosos dos Oitocentos para a reflexão sobre a diversidade de questões compreendidas por essa temática, apontamos para algumas possibilidades, como: a história dos mecanismos jurídicos, fiscais e militares e sua configuração nas províncias; as expressões políticas no campo doutrinário e os embates do espaço público, como a imprensa da Corte e das províncias; as expressões literárias e artísticas, e a pluralidade de identidades políticas coletivas que engendram.

Quanto aos pontos de observação dessas questões, também propusemos olhares múltiplos: do centro político em sua percepção sobre as províncias, a visão a partir de uma província em particular, ou uma determinada articulação entre elites provinciais, sem esquecer as perspectivas comparadas e / ou de história conectada que permitam pensar a problemática no plano do continente americano e dos debates europeus coevos.

O resultado foi uma grata surpresa. Sobre as províncias, representadas por Maranhão, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul, recebemos contribuições que preservaram / ampliaram as abordagens propostas inicialmente pelo Dossiê.

Em relação ao Maranhão, as abordagens variaram entre a recuperação de trajetórias individuais (Luisa Moraes Silva Cutrim – “Massa de brasileiros transatlânticos”: a reinserção do negociante Antonio José Meirelles no Maranhão pós-independência (1825-1831)), a análise da atuação de órgãos provinciais, como o Conselho Presidial (Raissa Gabrielle Vieira Cirino – “Vigiar a ordem pública em conformidade das leis”: trabalhos do Conselho de Presidência do Maranhão nos primeiros anos do Brasil Império (1825-1829)) e de grupos políticos radicados na província (Yuri Costa – Escalas de poder: grupos políticos no Maranhão oitocentista e sua relação com a Corte do Império).

Sobre a província de Minas Gerais, as contribuições também gravitaram entre a recuperação de trajetórias (Luciano Mendes de Faria Filho e Dalvit Greiner de Paula – Do Conselho da Província à Assembleia Geral: os homens e as ideias em torno de Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850)) e a atuação de órgãos provinciais, desta feita, a Assembleia Legislativa (Kelly Eleutério Machado Oliveira – As províncias do Império: a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o regresso conservador (1835-1842)).

Outros grupos políticos também foram contemplados nesse Dossiê. Em primeiro plano, como no caso de Pernambuco (Paulo Henrique Fontes Cadena – A divisão do poder. Pedro de Araújo Lima, os irmãos Cavalcanti de Albuquerque e os Rego Barros entre Pernambuco e o Centro no Século XIX), ou em torno de temáticas que despertavam interesses e conflitos de grandes dimensões, como a questão da propriedade da terra no Rio Grande do Sul (Cristiano Luís Christillino – Mosquetes, penas e muita negociação: a aplicação da Lei de Terras na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul).

Em todos esses artigos, de modos distintos, esteve presente a articulação entre as províncias e a corte, perspectiva acrescida por uma análise dessa relação sob o ponto de vista da administração do Império (Andréa Slemian – Pelos “negócios da província”: apontamentos sobre o governo e a administração no Império do Brasil (1822-1834)).

O Dossiê conta ainda com perspectivas comparadas e conexões que contemplam outros espaços, para além do território que se conformava como o Império do Brasil. Uma “mirada transnacional” conectou interesses das províncias brasileiras e Guerra Civil nos Estados Unidos (Juliana Jardim de Oliveira e Oliveira – Interesses provinciais no Brasil nos anos da Guerra Civil norte-americana: uma mirada transnacional sobre relações entre o império e as províncias); noutra perspectiva, tomamos contato com a construção do estado nacional no México (Rodrigo Moreno Gutiérrez – Provincias, reinos, estados e imperio: El problema de la articulación territorial de la Nueva España a la República Federal Mexicana).

Além dos artigos, o Dossiê brinda o leitor com uma entrevista de Miriam Dolhnikoff a Wilma Peres Costa. Referência para as discussões que inspiraram a proposição desse Dossiê, a autora também participa dessa edição por intermédio da resenha de uma de suas recentes publicações: História do Brasil Império, Contexto, 2017, por Edyene Moraes dos Santos. Outra resenha, também articulada ao debate aqui proposto, é do livro de Marco Morel: A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito, Paco Editorial, 2017, por Bruno da Fonseca Miranda.

O Dossiê conta ainda com um estudo de caso, centrado na tensão entre liberdade de expressão / imprensa e as formas de controle e repressão na década de 1820 / 1830 (Roni César Andrade de Araújo – Um processo de jornalismo à época da Independência: Maranhão, 1829- 1832). Cabe lembrar que a imprensa caracterizou-se como elemento-chave nesse processo de construção de espaços públicos de representação política, que transparecem, invariavelmente, nas pesquisas que compõem esse Dossiê.

Apresentamos ainda quatro artigos livres, situados em espaços-tempos distintos do século XX, eventualmente conectados, como na proposta que articula Revolução Russa e imprensa anarquista no Brasil (Leandro Ribeiro Gomes – Revolução Russa no Brasil: o imaginário e cultura política da imprensa anarquista (1917)). Outras aproximações, agora entre campos de estudo, são apresentadas em artigo sobre relações inter-raciais e racismo em Luanda, a partir do diálogo entre história e literatura (Washington Santos Nascimento – O casamento do preto Marajá com a branca Arlete: relações amorosas e racismo em “Os discursos do Mestre Tamoda” de Uanhenga Xitu). A questão racial é também tema de outro artigo, centrado na trajetória do intelectual brasileiro Clóvis Moura (José Maria Vieira de Andrade – Os dilemas de um intelectual “transitivo”: Clóvis Moura e a constituição de uma rede de sociabilidade antirracista no Brasil). Por fim, apresentamos artigo centrado na relação entre organizações empresariais e trabalhadores da construção civil durante a ditadura civil-militar (Pedro Henrique Pedreira Campos – Ditadura e classes sociais no Brasil: as organizações empresariais e de trabalhadores da indústria da construção durante o regime civil-militar (1964-1988)).

Assim, chegamos ao 16º ano e a 27ª edição. Boa leitura a todos!

Marcelo Cheche Galves

Wilma Peres Costa

(ORGANIZADORES)


GALVES, Marcelo Cheche; COSTA, Wilma Peres. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 16, n. 27, 2019. Acessar publicação original [DR]

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“História Antiga pra quê?” Questões antigas para problemas contemporâneos / Outros Tempos / 2019

Caro leitor,

O mais recente número da Revista Outros Tempos traz, pela primeira vez, um dossiê sobre história da Antiguidade. “‘História Antiga pra quê?’ Questões antigas para problemas contemporâneos” lançou um desafio aos pesquisadores da área: refletir não somente sobre a importância dos estudos em História Antiga no Brasil mas, sobretudo, como as pesquisas em Antiguidade podem dialogar com questões e problemas considerados contemporâneos.

Herdeira do Classicismo europeu do século XIX e do “maniqueísmo positivista”, que vai tomar conta dos estudos sobre Antiguidade desenvolvidos no Brasil durante a Ditadura Militar, a área de História Antiga foi considerada nos meios acadêmicos brasileiros, por longo tempo, como absolutamente alheia às questões contemporâneas e, particularmente, aos problemas sociopolíticos do país. Contudo, as pesquisas em Antiguidade, há mais de 30 anos, vêm construindo uma trajetória de conexão com os problemas sociais, políticos e culturais baseados no hoje. A Antiguidade feita no Brasil nunca teve preocupações tão atuais. Ela se insere de forma comprometida e legítima em um processo de reflexão contemporâneo, costurando diálogos fundamentais entre as sociedades antigas e nós.

Com esse objetivo convidamos especialistas para pensar a “contemporaneidade” da Antiguidade e propomos alguns eixos de reflexão, como as relações, interações culturais e circulação de população, religiosidades e conflitos, papéis sociais de gênero, enfim, o leque foi o mais amplo possível. E o resultado surpreendeu-nos. Os artigos presentes neste dossiê contemplaram temáticas variadas e igualmente importantes.

María Cecilia Colombani, a partir da obra de Hesíodo, evidencia a atualidade das discussões acerca de gênero e como, a partir dos discursos, a sociedade grega construiu lugares simbólicos para demarcar o eu e o outro. Neste processo, a figura feminina passa a encarnar a alteridade, representada no texto da Colombani, pela personagem Pandora.

Uma preocupação destacou-se, que foi o lugar da História Antiga no ensino de história. Os artigos de Dominique Santos e Adriene Baron Tacla dialogaram entre si, apresentando as preocupações e problemas que surgiram com a divulgação da Base Nacional Comum Curricular e a exclusão, quase que total, dos conteúdos relacionados à História Antiga. Os autores chamam a atenção tanto para a permanência de uma visão equivocada acerca das pesquisas que são realizadas na área quanto para a necessidade que se apresentou aos antiquistas de promover um amplo debate sobre a importância do ensino de História Antiga.

No interior dos debates sobre ensino de História Antiga o dossiê oferece, também, três artigos que apresentam temas diversos, mas convergentes. José Petrúcio Junior analisa a tradicional periodização quadripartite, associada a uma “história Geral”, e toda a sua dimensão ideológica. A ela, propõe periodizações alternativas muito mais aproximadas dos estudos transculturais e pós-coloniais. José Maria Gomes de Souza Neto evidencia a preocupação com conteúdos sobre História Antiga presentes na chamada cultura de massa, prioritariamente o cinema, e como os alunos interagem com essas imagens como fontes sobre o passado. A partir desta reflexão, brinda-nos com a proposta de uma metodologia de análise, a partir do filme Êxodo, deuses e reis, de 2014. Da formação discente, passamos para a formação docente com o texto de Cyntia Simioni França. A pesquisadora apresenta-se um relato de uma experiência de formação docente com professores do Ensino Básico, de escolas públicas, na cidade de Londrina, Paraná. A mitologia grega foi utilizada como experiência para um redimensionamento do humano e da própria prática docente, questionando, a partir da leitura da Odisseia, as escolhas dos modos de vida de nossas sociedades capitalistas.

O trabalho de Alex Aparecido da Costa preocupa-se com as dimensões e camadas presentes nas relações de poder evidenciadas a partir de uma análise das cartas de Plínio, o Jovem, e Trajano acerca do governo da Bitínia. As relações de poder perpassam, também, as preocupações de Leonardo Costa Ferreira e Brian Kibuuka. Ferreira insere-se nas atuais discussões sobre História Militar e como uma batalha local, a Batalha de Mylae, ocorrida em 260 a.C. entre o Império Cartaginês e a cidade de Roma, por questões geopolíticas, transforma-se em uma guerra em larga escala. Da mesma forma, Brian Kibuuka apropria-se das preocupações contemporâneas sobre os deslocamentos populacionais fomentados por crises e guerras, para pensar o Imperialismo Assírio e o desterramento do Antigo Israel.

No campo das permanências simbólicas, Leonardo Bento de Andrade “viaja” ao México para observar a trajetória do gesto contido em uma das gravuras do “corrido”, onde a imagem do esqueleto, que golpeia com sua foice um outro caído de joelhos, já aparece na cultura material etrusca.

O dossiê ainda apresenta um estudo de caso que podemos inserir nos atualíssimos debates sobre papéis de gênero, com base na análise das imagens de dois vasos de cerâmica áticos, do VI século a.C. A partir destas imagens, Camila Alves Jourdan discute o lugar da mulher nos ritos funerários e a tentativa de controle de suas emoções pelo legislador Sólon.

Este número da revista ainda conta com três artigos livres e uma resenha. Elvis de Almeida Diana propõe-se a analisar a atuação político-cultural do periódico uruguaio La Revista Literaria que, a partir de críticas dirigidas à Igreja Católica uruguaia e ao passado monárquico espanhol, propôs uma identidade nacional voltada para uma ideia de “modernidade”. A narrativa memorialista de Nelson Werneck Sodré é objeto do trabalho de João Muniz Junior Wilton e Carlos Lima da Silva, que investigam como a partir deste discurso é possível reconstruir muito mais do que vivências. Antonio Nelorracion Gonçalves Ferreira escreve sobre as problemáticas envolvidas na questão do tempo no campo das ciências humanas na contemporaneidade e como, a partir das crises da noção moderna de tempo, várias possibilidades de reflexão são abertas ao pesquisador.

Podemos ainda encontrar nesta edição uma entrevista com André Leonardo Chevitarese, especialista em Paleocristianismo. Nesta conversa, Chevitarese conta-nos um pouco de sua trajetória profissional e reflete sobre a área de Antiga no Brasil, seus empasses e sua importância.

Desta forma, convidamos o leitor a navegar pelo novo número da Revista Outros Tempos. Boa leitura!

Ana Livia Bomfim Vieira – UEMA

(Organizadora)


VIEIRA, Ana Livia Bomfim. Apresentação. Outros Tempos, Maranhão, v. 16, n. 28, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Aedos. Porto Alegre, v. 11, n. 24, 2019.

Temporalidades dissidentes: sujeitos LGBT+ e a escrita da história |

Expediente | Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville, Debora Salvi |

Editorial | Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville, Debora Salvi |

Apresentação| Tiago Vidal Medeiros, Guilherme da Silva Cardoso |

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas – RUST (PL)

Leandro Duarte Rust é um medievalista em ascensão no Brasil. Professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) é dono de uma crescente bibliografia, iniciada com a publicação de Colunas de São Pedro: a política papal na idade média central (Annablume, 2011), seguida por A reforma papal (1050-1150): trajetórias e críticas de uma história (EdUFMT, 2013) e Mitos papais: política e imaginação na história (Vozes, 2015). Basta olhar para os títulos de suas obras para compreender porque Rust vem se consagrando como um historiador do papado.

Entretanto, seu quarto livro, Bispos guerreiros: violência e fé antes das cruzadas, recém-publicado pela editora Vozes, vai além. Seguindo a história de Cádalo, entronizado como o “antipapa” Honório II, o autor realiza uma profunda análise sobre as relações entre a violência e o sagrado na Península Itálica nos séculos X e XI. Leia Mais

Formas de governabilidade e dominação durante a Antiguidade e a Idade Média | Outras Fronteiras | 2019

A historiografia que emerge, especialmente na França, ainda que não somente no Hexágono, no período que medeia as duas grandes guerra do século passado se realizou uma crítica contundente a uma forma de escrita da história que denominava de événementielle e profundamente identificada com aquilo de François Simand qualificava de ídolo do político.

O sucesso, em particular, da proposta historiográfica formulada por Marc Bloch e Lucien Febvre e que foi continuada e aperfeiçoada por diversos e deferentes historiadores que de uma forma ou outra se vincularam o que ficou conhecida como “Escola dos Annales” lançou a história política num ostracismo senão absoluto, bastante profundo. Leia Mais

Democracia, ditadura: memória e justiça política – REZOLA; PIMENTEL (RTA)

REZOLA, Maria Inácia; PIMENTEL, Irene Flunser (Orgs). Democracia, ditadura: memória e justiça política. Lisboa: ed. Tinta da China, 2013. 520 p. Resenha de: NEVES, Hudson Campos; NUNES, Carlos Alberto Lourenço. Justiça política e memória: redemocratização na esfera lusófona. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.623-629, jan./abr., 2019.

A coletânea “Democracia, Ditadura: memória e justiça política” reúne trabalhos de pesquisadores que participaram do Colóquio Internacional “Legados do autoritarismo em Portugal em perspectiva comparada”, ocorrido na cidade portuguesa de Lisboa, em abril de 2012. O livro foi coordenado pelas pesquisadoras Irene Flunser Pimentel e Maria Inácia Rezola. As organizadoras observam a construção de uma justiça transicional ou de transição que significa “a concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar os crimes de repressão de anteriores regimes” (p. 9). As autoras avançam na questão:

As violações básicas dos direitos humanos não podem ser actos legitimados do Estado e têm de ser vistas como actos cometidos por indivíduos; quem comete este tipo de crimes deve ser perseguido criminalmente; e, finalmente, os acusados também têm direitos e merecem um julgamento justo. (p. 9-10) Está situada aí a diferença entre um julgamento no âmbito dos Direitos Humanos e do que seria um julgamento político. A importância dos Direitos Humanos tem sido reafirmada em diferentes ocasiões ao longo do século XX, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, passando pela criação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de 1953, e pela American Convention of Human Rights, de 1978. Um dos fenômenos característicos dos anos 1980 foi a criação de Comissões da Verdade, como por exemplo, na África do Sul, Chile, Argentina, bem como na Europa do leste, procurando responsabilizar os agentes da violência de Estado. Há também a criação de tribunais nacionais, regionais ou internacionais voltados para essas questões como os tribunais organizados na ex-Iugoslávia, em 1993, e em Ruanda, em 1994, bem como o Tribunal Internacional e alguns tribunais híbridos, como o de Kosovo, de 1999, o do Timor Leste, em 2000, além de Serra Leoa e Camboja, ambos de 2003.

A obra está dividida em seis partes, que abordam aspectos ligados aos processos de transição democrática em Portugal e também no Brasil. Na primeira parte, a ênfase é dada ao caso brasileiro. Intitulada de “História da democratização e amnistia no Brasil”, é composta por quatro capítulos, com abordagens de diferentes disciplinas como História, Sociologia e Direito. Maria Celina D’Araújo analisa a questão da anistia no contexto do Cone Sul do continente americano. Por sua vez, Janaína de Almeida Teles estuda o papel dos familiares dos mortos e desaparecidos ao longo da transição democrática. O questionamento sobre até que ponto a Lei de Anistia se constitui em obstáculo para a transição brasileira nos dias atuais é feito por Lauro Swensson Jr. Por fim, Gilberto Calil faz uma releitura a respeito do processo de democratização ocorrido em 1945, salientando a pressão de diferentes organizações e movimentos populares na tomada de decisão do governo Vargas em entrar na luta contra o fascismo, ao lado dos aliados, na Segunda Guerra Mundial.

Intitulada “Justiça política de transição e revolução em Portugal”, a segunda parte traz como destaque no conjunto da obra o capítulo escrito por Irene Flunser Pimentel, “A extinção da polícia política do regime ditatorial português, PIDE/DGS”. No texto, a autora descreve a forma como o Movimento das Forças Armadas (MFA), após a chamada Revolução dos Cravos, em abril de 1974, que derrubou o regime salazarista em Portugal, lidou com a Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), tanto na metrópole quanto nas colônias do ultramar. Num primeiro momento, algumas frações do MFA cogitaram reaproveitar membros da PIDE no novo governo. Havia pressões internas para que isso ocorresse, o que foi obstado pela mobilização popular. A população pressionou a Junta de Salvação Nacional instalada no poder na sequência da revolução, impedindo a aceitação de membros da PIDE na montagem da nova estrutura governamental portuguesa, além de demandar a punição dos agentes acusados de diferentes atos de violência e repressão durante a ditadura salazarista. Sobre este aspecto, também na segunda parte da obra, o capítulo escrito por Fernando Pereira Marques analisa como o novo poder estabelecido após abril de 1974 se posicionou com relação aos cidadãos que sofreram com a repressão perpetrada pelo Estado Novo e Miguel Cardina, por sua vez, analisa a Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas (AEPPA) e sua luta pelo direito à memória. Já João Madeira estuda a experiência do Tribunal Cívico Humberto Delgado em seu curto período de existência (1977-78).

Ao longo desse processo, que se desdobrou na segunda metade dos anos de 1970, houve avanços e retrocessos. Cabe destacar uma virada à esquerda, ocorrida no MFA, a partir de 11 de março de 1975. Houve uma radicalização para criminalizar a PIDE e seus integrantes. No período que se estendeu até outubro daquele ano, um grande número de processos contra os agentes da polícia política foi apontado por Irene Pimentel. Outra virada no âmbito do MFA ocorreu a partir de 25 de outubro de 1975, quando houve um afrouxamento das ações contra antigos membros da PIDE e “muitos viriam depois a ser absolvidos ou apenas condenados à prisão preventiva já cumprida, sendo libertados de imediato”. No fim das contas, a maioria sofreu condenações com “tempo de prisão já cumprido: em 1982, 98 por cento dos presos já estavam em regime de liberdade plena” (p. 122-126).

Na terceira parte, “As purgas políticas no Portugal revolucionário”, o texto de uma das organizadoras da coletânea, Maria Inácia Rezola, destaca-se pela rica base documental e por apresentar elementos que, como se faz depreender, relativizam uma visão compartilhada por uma parcela expressiva da sociedade portuguesa na qual está presente um ceticismo acerca das reais condições em que se realizaram os afastamentos e punições de membros do regime autoritário na sequência do 25 de abril de 1974. Esse tema também é alvo do capítulo escrito por Pedro Serra, que se debruça especificamente nos assim chamados saneamentos políticos ocorridos na educação. Já Pedro Marques Gomes analisa o processo que deu origem ao afastamento de jornalistas, com destaque para os conflitos internos no “Diário de Notícias”, jornal de grande circulação no país, durante o chamado “verão quente” de 1975, quando aquele órgão tinha dirigentes próximos ao Partido Comunista Português, entre os quais, José Saramago.

Rezola aponta que as chamadas purgas políticas – operacionalizadas no âmbito de um organismo oficial denominado Comissão Interministerial de Saneamento e Reclassificação (CISR) – teriam sido, no olhar de tendências críticas da opinião pública de Portugal, limitadas e temporariamente circunscritas, de forma que seus efeitos pouco teriam contribuído à aplicação da justiça aos colaboradores da ditadura. Segundo a autora, esse descontentamento localiza-se nos poucos resultados concretos apresentados pela CISR, ou seja, dos processos instaurados contra funcionários da ditatura, apenas 2% resultaram em condenações e perdas de cargos públicos. Mas cabe atentar para elementos que são trazidos à tona por Maria Inácia Rezola e que ressaltam a complexidade da matéria. Muitos juízes que haviam colaborado de forma direta ou indireta com a ditadura, tornaram-se alvos das ações da CISR. Essa situação certamente gerou um impasse, afinal, levar a ferro e a fogo as reclassificações e afastamentos levaria à paralisação de diferentes setores do Estado, sobretudo no âmbito do judiciário. Além disso, houve uma série de ações que resultaram na demissão automática de funcionários de extintas agências governamentais, o que ao todo chegou a mais de 12 mil exclusões, mas que não chegaram a ser computadas como parte do processo de saneamento. O texto ainda avança sobre questões que costumam fazer parte de processos de transição, como disputas internas e ambiguidades políticas ao longo da implementação de um regime democrático, dificultando as ações punitivas e reparatórias.

O capítulo “Os dividendos do autoritarismo colonial”, de Augusto Nascimento, abre a quarta parte da coletânea, dedicada ao “legado colonial”. O autor centra suas análises no pós-independência de São Tomé e Príncipe. Demonstra a concomitância da substituição dos símbolos nacionais portugueses por são-tomenses, sugerindo que aspectos das ações dos independentistas pareciam denotar a persistência de métodos e procedimentos do passado colonial. Por sua vez, Roselma Évora examina a transição para formação de uma sociedade independente em Cabo Verde no texto “O peso do legado autoritário na configuração do processo decisório democrático em Cabo Verde”. Segundo sua análise, o legado autoritário afetou o processo decisório do novo regime e interferiu nos níveis de desempenho institucional, fragilizando a atuação dos atores políticos no sistema democrático.

A quinta parte, “Memória da ditadura”, é a que reúne o maior número de capítulos, o que por si só demonstra o quanto este tema continua presente na primeira linha das preocupações de historiadores e historiadoras de tais processos, e ainda destaca como os testemunhos são parte fundamental da escrita de uma história de processos recentes ou mesmo que ainda não se encerraram completamente, ao menos em sociedades recentemente democratizadas. Francesca Blockeel estuda e compara as similaridades entre as ditaduras de Portugal e Espanha. A autora faz um apanhado, em paralelo, do trajeto dos dois países para tratar sobre os sistemas de repressão que ambas as ditaduras construíram e as narrativas predominantes nos dois países acerca da transição para a democracia. As formas repressivas da codificação do crime político e das normas para a punição aos opositores do Estado Novo são a temática de Guya Accornero, enquanto que Jacinto Godinho demonstra a importância da utilização de uma série documental histórica produzida no âmbito das ações da PIDE. João Paulo Nunes analisa como Portugal atual se define e caracteriza tendo em conta as memórias vigentes acerca do Estado Novo. Luciana Soutelo estuda o revisionismo histórico que passou a ter o Estado Novo Português como alvo, as novas interpretações históricas e os desdobramentos do Estado Novo na sociedade portuguesa. O estudo de Flamarion Maués focaliza o “surto” editorial de cunho político a partir do 25 de abril, quando livros que haviam sido proibidos e/ou recolhidos pela ditadura foram publicados e disponibilizados na sociedade lusa pós-ditadura. Por outro lado, o Brasil é o tema dos capítulos escritos por Roberto Vecchi e por Ettore Finazzi-Agrò. No primeiro caso, há uma importante discussão sobre o acobertamento e as dificuldades para acessar documentos relativos à guerrilha do Araguaia, enquanto o segundo trata das obras de Clarice Lispector durante a ditadura militar brasileira, sua militância e o impacto de seus textos.

Por fim, o sexto capítulo nomeado “Memória e revolução”, tem por âmbito o campo da produção cultural e as narrativas em torno de um dos processos políticos mais ricos e ainda indecifrável em grande medida na história recente de um país europeu, qual seja, a revolução portuguesa de 1974. O processo revolucionário e a transição profundamente conflitiva para uma sociedade democrática e integrada ao contexto da Comunidade Europeia ainda hoje suscitam inúmeras controvérsias. A memória social, portanto, segue sob o enquadramento de narrativas que se impuseram ao disputar a produção cultural e as imagens associadas ao novo Portugal, ainda que manejadas por setores que foram alvos da ação revolucionária por serem considerados próximos do regime salazarista. O capítulo de Paula Gomes Ribeiro trata dos padrões de funcionamento do Teatro de São Carlos, principal casa de ópera de Lisboa, no período que sucedeu o 25 de abril, demonstrando as questões relativas à implantação do que se pretendia ser uma democracia cultural, numa tentativa de facilitar o acesso a bens artísticos e culturais ao grande público, o que não deixou de gerar tensões. Por sua vez, o capítulo de Paula Borges Santos, intitulado “A Igreja Católica na transição para a democracia”, estuda o papel da Igreja Católica e suas relações com o Estado Novo e principalmente as estratégias da instituição com vistas a lidar com um passado de colaboração estrita com o regime autoritário, em meio à contestação à hierarquia. Houve uma redefinição do lugar social da Igreja Católica na sociedade portuguesa ao longo do processo de transição para a democracia, inicialmente pelos constrangimentos de justificar o colaboracionismo como o regime deposto e, posteriormente, por “reivindicar a sua participação no exercício das liberdades democráticas reclamadas e apropriadas pelo restante da sociedade” (p. 479). De sua parte, Riccardo Marchi estuda, a partir da imprensa da época, as direitas portuguesas ao longo dos anos de 1976 a 1980, particularmente a influência de tendências de extrema-direita no universo juvenil durante a construção da democracia em Portugal, quando tais posturas e agrupamentos pareciam desafiadores aos partidos e governos de centro-esquerda que então predominavam na composição política daquele país.

Hudson Campos Neves – Doutorando na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: hudsoncn.historia@gmail.

Carlos Alberto Lourenço Nunes – Doutorando na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: betonunes001@gmail.com.

Educação em Perspectiva Local – Municipal / Cadernos de História da Educação / 2019

O presente dossiê, Educação em perspectiva local / municipal, pretende apresentar discussões relativas às escritas da História da Educação, mais precisamente, àquelas relacionadas às possibilidades de se investigar “novos” espaços e “novos” sujeitos. Com a extensão desses olhares emergem resultados de investigações direcionadas a cenários, épocas e temáticas até então pouco privilegiados, vindo à tona estudos dedicados a desvelar outras faces da constituição do sistema de instrução pública nos estados brasileiros e em alguns ambientes do território europeu, para além das análises macroestruturais (postura normalmente assumida pela chamada “historiografia tradicional”). Este adensamento das pesquisas centradas em espaços “menores” decorreu da formação e consolidação de grupos de pesquisas por todo o país, assim como no exterior, devotados à investigação de aspectos significativos da organização da instrução, tomando como referência os municípios, as instituições escolares (públicas e privadas), manuais pedagógicos, métodos de ensino, a imprensa (especializada ou não), etc.

Nesta ambiência, no caso do Brasil, a motivação para as pesquisas dedicadas à ação municipal sobre as coisas da instrução, aparece como reflexo da transmissão aos estados, por parte do governo federal, da responsabilidade pela educação pública. Este processo ganha mais relevo nas investigações do período compreendido da proclamação da República, em 1889, às primeiras décadas do século XX, correspondendo a um momento de grande evidência do papel dos municípios no debate sobre a situação educacional local, que abraçaram os princípios de civilidade, modernidade e progresso e procuraram superar o atraso herdado dos tempos do Império no campo da educação. Ademais, o analfabetismo – a grande chaga nacional – nessas localidades era sentido muito claramente como um dos maiores problemas, talvez o principal entrave ao seu desenvolvimento. A vereança nas Câmaras comungava a crença de que, pela via da educação, seria possível remodelar a ordem social, política e econômica e consolidar a nascente República, viabilizando sua inserção no rol das nações democráticas e civilizadas. Os republicanos municipais viam nessas ações não só o roteiro do progresso, mas também o caminho para se eliminar ou reduzir uma das principais máculas da sociedade brasileira: 80% de analfabetos, acumulados ao longo de séculos [3].

Indispensável ao progresso do país, à consolidação do novo regime e elemento de civilização, a educação – com especial ênfase na instrução pública – foi objeto de diversas iniciativas por parte do poder público. No ideário republicano a conformação de uma nova sociedade demandava, se confundia com a formação de um novo tipo de cidadão. Pela via da educação, acreditava-se ser possível alcançar esse duplo objetivo, crucial também para manter vivos os ideais de ordem e progresso inseridos no pendão nacional.

A pretendida transformação da realidade educacional nos primeiros anos republicanos, no entanto, esbarrava nas prescrições legais, uma vez que fora mantido o princípio da descentralização, advindo do Ato Adicional de 1834, remetendo a responsabilidade pela organização e difusão do ensino público aos estados e municípios. Essas duas instâncias, portanto, nas primeiras décadas republicanas, tomam relevância no debate, na formulação e implantação de propostas efetivas de intervenção, no âmbito da instrução popular.

Em Minas Gerais, a estrutura legal – Constituição, lei de instrução e regulamento escolar – concedia às Câmaras Municipais relativa autonomia (e, igualmente, responsabilidade), podendo deliberar e estabelecer linhas de intervenção sobre a instrução primária e diversos outros assuntos [4]. Nesse contexto, a realidade municipal aparece como lócus privilegiado do esforço pela organização da instrução pública e o seu estudo adquire relevância para a história da educação.

Impasses entre centralização e descentralização marcaram o desenvolvimento educacional brasileiro ao longo dos séculos XIX e XX, pendendo ora para uma tendência, ora para outra, como num movimento pendular. O município se configura, nesse contexto, não apenas como ente político-administrativo, mas também como um território pedagógico, tendo em vista que o poder local assumiu a função de organizar e definir princípios próprios para a instrução municipal, bem como abrir escolas, contratar professores, orientar métodos, etc. O processo de organização da instrução na esfera local, em Minas Gerais, pode ser assim caracterizado:

ao se falar de educação em Minas Gerais no início da República, e talvez na maioria dos estados da Federação Brasileira, não se pode pensar num sistema único de ensino, ou num processo que atinja homogeneamente todo o território. Na realidade, o processo é heterogêneo e multifacetado. Existe a ação do Estado e existem as iniciativas complementares dos municípios. Há também omissões nas duas instâncias. Estão presentes, ainda, tentativas de se suprir as ausências de um ou outro [5].

Em Minas Gerais, logo nos primeiros anos da República, foram aprovados leis e decretos que visavam reformar o ensino público primário. O texto constitucional mineiro, diferentemente da Carta Federal, dispensava maior atenção a essa questão, estabelecendo a competência estadual para legislar e promover o desenvolvimento da instrução primária em seus domínios. Além disso, a constituição estadual estabelecia a divisão administrativa do estado em municípios e distritos e definia como objeto de livre deliberação das câmaras municipais, dentre outras coisas, a instrução primária e profissional:

Art. 75. II – A administração municipal inteiramente livre e independente em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse, será exercida em cada município por um conselho eleito pelo povo, com a denominação de Câmara Municipal. […]. IV – O orçamento municipal, que será anual e votado em época prefixada, a polícia local, a divisão distrital, a criação de empregos municipais, a instrução primária e profissional, a desapropriação por necessidade ou utilidade do município e alienação de seus bens, nos casos e pela forma determinada em lei, são objeto de livre deliberação das câmaras municipais, sem dependência de aprovação de qualquer outro poder, guardadas as restrições feitas nesta Constituição [6] [grifos nossos].

O estado se aproveitou dessa brecha constitucional e também de outros dispositivos legais, como os previstos na lei mineira de número 2, de 14 de setembro de 1891, que “Contém a organização municipal”, que permitia às câmaras municipais “operar livremente no campo da instrução pública, criando escolas, contratando professores, fiscalizando atividades, etc” [7], para transferir / dividir os custos da escolarização popular. Dessa forma, coube aos municípios boa parte dos encargos para se promover, organizar e administrar a educação pública em sua área de competência. Isso nos permite considerar que na esfera municipal se desenvolveu grande parte do esforço republicano de organização da instrução pública, sendo significativas as realizações educacionais ocorridas nesse âmbito.

Diante da ação insuficiente ou pouco efetiva do estado, o poder municipal, respaldado ou estimulado pela legislação, se manifestava de diferentes formas: aprovando leis específicas em sua jurisdição, criando escolas, contratando e remunerando os professores, distribuindo material didático, destinando verbas para o custeio das escolas municipais e, por vezes, também, reivindicando junto ao governo estadual ações complementares em benefício da instrução pública municipal.

A Lei nº 41, de 1892, primeira reforma republicana no campo da educação em Minas Gerais, reorganizou a instrução pública. Apesar de não tratar especificamente da autonomia municipal, continha prescrições neste sentido, reforçando a liberdade de ação do poder local. Por conta desse instrumento legal, cabe aqui uma ressalva importante: não se trata de descentralização educacional propriamente dita, ao menos em termos de legislação. Desde 1892, apenas um ano após as Constituintes Federal e Estadual finalizarem seus trabalhos, o governo mineiro já tinha uma lei própria regulando a instrução pública em seus domínios, não se podendo afirmar que os municípios gozassem, portanto, de plena autonomia em termos educacionais.

Contudo, verifica-se na prática e na investigação documental que existia uma lacuna, um vazio – uma omissão? – para com as mazelas e reclamos da instrução, que será preenchida pelos municípios. Diante da crescente demanda por educação, reprimida no passado e ampliada pelas promessas da República, o poder local passa a intervir nesses assuntos. Na prática, nas duas primeiras décadas republicanas em Minas Gerais, boa parte da ação educativa se realizava em nível local.

As limitações orçamentárias do governo estadual reforçavam a sua disposição em compartilhar, ou mesmo transferir as responsabilidades e os encargos da educação pública. A preocupação do governo mineiro era que a escolarização avançasse, mas com custos que não onerassem demasiadamente as disponibilidades do estado, buscando reforço nos mais diferentes setores: “oferecer escolas à população, independentemente de sua origem pública ou privada, estadual ou municipal, leiga ou religiosa [8] ”. A participação das municipalidades nos negócios da instrução se adequava perfeitamente a esses propósitos.

A ação do poder municipal nesse campo pode ser caracterizada como atuação pedagógica, o que nos levou a denominar esse tipo de ator como “município pedagógico [9] ”, possibilitado nos primeiros anos do período republicano pelas brechas do aparato legislativo e pela omissão e carência de recursos por parte do estado. Segundo Gonçalves Neto e Carvalho essa entidade permite-nos

compreender a realidade local para além de sua dimensão político-administrativa e pensá-la também como um espaço voltado para os aspectos educacionais, como um organismo também pedagógico, preocupado com a formação intelectual de seus munícipes e não apenas com as condições econômico-materiais que se sobressaem nas ações das administrações públicas [10].

Nestes termos, o município configurou-se como instância de decisão e ação – política, administrativa e educativa. O poder local tem suas prerrogativas ampliadas e passa a desempenhar função importante em diferentes esferas, inclusive no fomento da instrução pública. A criação / supressão, transferência e manutenção de escolas, contratação e pagamento dos professores, dentre outros assuntos referentes à instrução, passaram a ser de interesse e, muitas vezes, responsabilidade dos municípios. Com essas iniciativas, somadas ao debate que ocorre no interior de muitas câmaras municipais sobre o papel da educação na promoção do desenvolvimento dos municípios e da nação, sobre os princípios que deveriam nortear a ação pública voltada para a educação, entre outras, se “advoga um poder local com capacidade de tomar iniciativas políticas, discutir e editar leis, em complemento ou para além das atribuições concedidas pelos estados” [11]. Ou seja, a omissão ou insuficiência do estado de Minas Gerais, que não permitiam vislumbrar escolarização para a infância local, tornou possível ou estimulou a intervenção do poder municipal nos negócios da instrução, gerando um contexto particular de parceria entre estado e município.

No entanto, é importante ressaltar que as análises da ação educativa municipal não devem ser tomadas isoladamente dos contextos mais amplos que as cercam, mas de forma articulada com as situações de âmbito nacional e estadual. Em Minas Gerais, por exemplo, Gonçalves Neto e Carvalho observam:

entende-se que existia uma espécie de complementaridade de esforços entre estados e municípios. (…) … a responsabilidade pela educação passa, tacitamente, para o âmbito dos estados e estes, quando possível, como em Minas Gerais, repassam parte da incumbência aos municípios. E isso estimula ou permite a concretização do que estamos chamando de município pedagógico, pois este, não tendo a quem repassar a obrigação e lidando diretamente com as demandas dos cidadãos, acaba por assumir a educação e a organizá-la dentro dos seus limites [12].

Daí a importância de se estudar o processo de organização da instrução pública na dimensão local, bem como suas relações com as instâncias estaduais e nacional. Numa mudança de perspectiva, o município deve ser concebido enquanto objeto historiográfico, perspectiva sob a qual Carvalho&Carvalho salientam que “é possível articulá-lo com a política nacional / global sem se perder de vista o local [13] ”. A realidade educacional municipal das primeiras décadas republicanas possui características próprias, que podem se articular ou mesmo contradizer processos educativos mais amplos nos quais se inserem ou as circundam. Em outros termos, reconhecer a importância da iniciativa local no processo de organização da instrução pública significa também identificar os limites e os problemas que conformaram essa ação educativa e a instrução pública municipal.

Em linhas gerais, no alvorecer da República há um intenso debate sobre a questão da escolarização da sociedade, o qual era marcada por carências de diversas ordens e pelo estado de precariedade e desorganização característicos da realidade imperial, bem como da própria República nascente. Embora os municípios estivessem impregnados pelos mesmos anseios e limitações, as transformações importantes por que foram passando – inclusive no âmbito da urbanização – e a crença no poder regenerador / propulsor da educação levaram-nos à busca da superação do arcaico passado e à busca de um porvir auspicioso, que podiam ser vislumbrados pelas portas das escolas, que promoveriam a necessária formação das futuras gerações, a grande esperança da comunidade.

Por último, destacamos que o dossiê Educação em perspectiva local / municipal, corresponde a uma possibilidade interpretativa, construída a partir das pesquisas aqui reunidas – e de outras que vêm se consolidando nos últimos anos. Dito de outra forma, as considerações apresentadas podem ser tomadas como um convite a novas reflexões que, além de contribuírem para a compreensão da temática, acenam também como parte de um processo investigativo que não deve ser descontinuado. Direcionar o foco de análise para o nível local implica na percepção do papel desempenhado pelos municípios, na forma como o poder local participa do esforço republicano em prol da educação. Desse modo, acreditamos que as reflexões aqui apresentadas, sobre as ações dos municípios, podem oferecer subsídios para uma melhor compreensão da história da educação no Brasil nos primeiros anos da República – e também em períodos posteriores / anteriores – e sobre o processo de organização da instrução pública brasileira de uma forma geral. E também uma perspectiva ampliada e comparativa quando acoplada aos resultados de estudos europeus que fazem parte do dossiê.

Notas

3. O índice de alfabetização nacional em 1920, conforme o Recenseamento realizado naquele ano, era de 24,5%. Em alguns estados da federação esse número era ainda menor, indicando “a situação calamitosa da educação popular no Brasil (…) quando comparada com a de outros países. Os dados são fornecidos pelo próprio censo de 1920. Na população de 7 anos ou mais, o Brasil tinha 31% de alfabetizados, a Argentina tinha 62%, exatamente o dobro. O fosso cresce ainda mais se compararmos o país com a França ou os Estados Unidos. Na primeira, a alfabetização da população de 10 anos ou mais era de 89%, nos Estados unidos, de 94%”. Conferir CARVALHO, Carlos Henrique. República e imprensa, p. 141.

4. Conferir vários exemplos desse tipo de intervenção camarária na instrução mineira em GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de (Org.). O Município e a Educação no Brasil: Minas Gerais na primeira república, 2012; GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de. Ação Municipal e Educação na Primeira República no Brasil, 2015.

5. GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de. Impasses e desafios à organização da instrução pública nas Minas republicanas, p. 21.

6. MINAS GERAIS, 1891.

7. GONÇALVES NETO, Wenceslau. Capital e interior, p. 198.

8. GONÇALVES NETO, Wenceslau. O Município e a Educação em Minas Gerais, p. 39.

9. De acordo com Wenceslau Gonçalves Neto, em Repensando a história da educação brasileira na Primeira República, p. 14-15: “O município pedagógico, uma categoria em formação, está sendo entendida provisoriamente como uma entidade político-administrativa presente no Brasil, possibilitada na segunda metade do século XIX pela presença se uma legislação descentralizadora da gestão do ensino e a extensão da responsabilidade para com a instrução primária aos seus limites, levando à regulamentação local dessa obrigação. Também se inclui nesse conceito a apropriação que as elites fazem dessa responsabilização, tirando proveito para a concretização de objetivos particulares, relacionados à manutenção da ordem, disseminação de ideologia própria e delimitação de uma identidade municipal. Deve-se acrescentar que esse movimento é possibilitado pela difusão da crença no poder regenerador da educação e da necessidade de implantação de sistemas escolares para sua implementação”.

10. GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de. A ação Municipal nos assuntos da Educação na Primeira República brasileira, p. 12.

11. GONÇALVES NETO, Wenceslau. O Município e a Educação em Minas Gerais, p. 31.

12. GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de. A ação Municipal nos assuntos da Educação na Primeira República brasileira, p. 13.

13. CARVALHO, Luciana Beatriz de Oliveira Bar de & CARVALHO, Carlos Henrique de. O lugar da educação na modernidade luso-brasileira no fim do Século XIX e início do XX, p. 68.

Referências

CARVALHO, Carlos Henrique de. República e imprensa: as influências do positivismo na concepção de educação do professor Honório Guimarães (Uberabinha-MG, 1905–1922). Uberlândia: EDUFU, 2007.

CARVALHO, Luciana Beatriz de Oliveira Bar de & CARVALHO, Carlos Henrique de. O lugar da educação na modernidade luso-brasileira no fim do Século XIX e início do XX. Campinas: Alínea, 2012.

GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de, Impasses e desafios à organização da instrução pública nas Minas republicanas. In: O Município e a Educação no Brasil: Minas Gerais na primeira república. Campinas: Alínea, 2012, p. 9-22.

GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de. A ação Municipal nos assuntos da Educação na Primeira República brasileira: algumas considerações. In: Ação Municipal e Educação na Primeira República no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2015, p. 7-18.

GONÇALVES NETO, Wenceslau. O Município e a Educação em Minas Gerais: a implementação da instrução pública no início do período republicano. In: GONÇALVES NETO, Wenceslau & CARVALHO, Carlos Henrique de (Org.). O Município e a Educação no Brasil: Minas Gerais na primeira república. Campinas: Alínea, 2012, p. 39.

GONÇALVES NETO, Wenceslau. Repensando a história da educação brasileira na Primeira República: o município pedagógico como categoria de análise. In: LOMBARDI, José Claudinei (Org.). Navegando na História da Educação Brasileira. Campinas: Faculdade de Educação UNICAMP, 2006, p. 1-15. Disponível em: http: / / www.histedbr.fe.unicamp.br / navegando / artigos frames / artigo105.html (consulta em 21 / 05 / 2018).

GONÇALVES NETO, Wenceslau. Capital e interior: manifestações em prol da instrução pública em Ouro Preto e Uberabinha (MG) nos anos iniciais da República Brasileira. Educação em Revista, vol.26, n. 02, 2010, p. 189-208.

MINAS GERAIS. Governo do Estado. Constituição do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa de Minas Gerais, 1891.

Carlos Henrique de Carvalho – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq e do Programa Pesquisador Mineiro da FAPEMIG. E-mail: carloshcarvalho06@yahoo.com.br

Wenceslau Gonçalves Neto – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba e da Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq e do Programa Pesquisador Mineiro da FAPEMIG. E-mail: wenceslau@ufu.br


CARVALHO, Carlos Henrique de; GONÇALVES NETO, Wenceslau. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 18, n.1, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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História Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.1, 2019.

POÉTICAS FEMINISTAS NA HISTÓRIA, ARTE E LITERATURA

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

  • Luana Saturnino Tvardovskas
  • PDF

DOSSIÊ: POÉTICAS FEMINISTAS NA HISTÓRIA, ARTE E LITERATURA

ARTIGOS

DOCUMENTOS

DOSSIÊ: FOUCAULT E ANARQUIA: HISTÓRIAS DO PRESENTE

ARTIGOS

TRADUÇÃO

RESENHAS

 

Revista de Economia Política e História Econômica. São Paulo, n.41, jan. 2019.

REPHE 41 – janeiro de 2019

  • Risco, incerteza e expectativa na dinâmica dos eventos de uma economia capitalista na perspectiva de Keynes e Knight
  • André Cutrim Carvalho
  • Phelipe da Silva Rodrigues
  • David Ferreira Carvalho
  • O Racional e a Esfera da Especulação: o conceito weberiano de dominação
  • Lucas Frazão SIlva
  • Do Programa e da Análise Utilitarista do Problema da Captura e da Agência e da Solução com o Governo Representativo e seus Mecanismos Institucionais: da democracia majoritária de Bentham ao sistema proporcional de Stuart Mill
  • José Raymundo Novaes Chiappin
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  • Estado Novo (1937- 1945): a concepção de desenvolvimento, o funcionamento estatal e as políticas econômicas realizadas
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  • Crescimento Dependente: aspectos do ciclo de crescimento econômico brasileiro entre 2001 e 2011
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  • Role of skill Development in Women Empowerment in India
  • Mohd Younus Ali Khan
  • Investment Attraction, Competition and Growth: Theoretical Perspective in the Context of Africa
  • Emmanuel Tweneboah Senzu

RESENHA: RICUPERO, Rubens, A diplomacia na construção do Brasil (1750-2016). Rio de Janeiro, Versal, 2017.

O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial – VALIM (RTA)

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. Resenha de: CARNEIRO, Ana Marília. Cinematógrafos de guerra: cinema e propaganda estadunidense no Brasil durante a II Guerra Mundial. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.635-640, jan./abr., 2019.

A obra que temos em mãos trata de um tema caro às experiências bélicas do século XX: a propaganda como arma de guerra e instrumento de persuasão na formação de consenso em torno da hegemonia estadunidense na América Latina. Em contraste com a barbárie e a violência emergentes dos confrontos da II Guerra Mundial, a máquina de guerra mobilizada para conquistar mentes, corações e aliados em meio ao campo de batalha consistiu em uma das expressões mais extraordinárias e fascinantes da cultura contemporânea: o cinema.

O livro de Alexandre Busko Valim, O Triunfo da persuasão. Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial, publicado em 2017, dedica-se ao estudo da dinâmica da produção e difusão da propaganda estadunidense por meio do cinema no Brasil, alvo estratégico e privilegiado da campanha dos aliados em meio ao turbulento cenário da II Guerra Mundial. Resultado de uma pesquisa de fôlego, a obra é amparada no valioso e robusto acervo de fontes documentais referentes ao Office of the Coordinator of Inter-American Affairs – Office, consultadas no National Archives dos Estados Unidos. Ainda pouco exploradas pela literatura dedicada às relações interamericanas, as fontes — e, sem dúvida, a habilidade do autor aliada a um fecundo diálogo com a bibliografia especializada — permitiram a construção de uma narrativa potente, permeada de relatos surpreendentes e informações impactantes.

Um dos importantes diferenciais do estudo de Alexandre Valim é sua perspectiva de análise: o autor se esquiva de uma abordagem mais tradicional fundamentada na análise fílmica e pensa o cinema — e a problemática histórica — munido de uma visão mais ampla, como um fenômeno que envolve diversas dimensões. Ou seja, o cinema, como objeto de estudo, deve ser compreendido como um conjunto de práticas sociais que escapa à simples análise das fontes visuais, conduzindo o pesquisador em direção a um tratamento mais abrangente da visualidade como uma dimensão importante da vida social e dos processos sociais (MENESES, 2003, p. 11).

Para além da compreensão do cinema como mero entretenimento e obra estética, um estudo mais denso do âmbito cinematográfico exige que o investigador esteja atento à capacidade de influência, persuasão e encantamento do público através do cinema, ao uso de filmes como veículos de difusão de determinadas políticas, valores e culturas, à análise das suas condições de produção, exibição e distribuição, além da complexa rede de sociabilidades e relações de poder envolvidas na sua realização. Todas essas questões estão presentes no texto de Alexandre Valim, que situa a análise da propaganda estadunidense por meio do cinema atrelada a uma contraofensiva de guerra na qual estava em jogo, para os Estados Unidos, a conquista de parceiros econômicos e aliados políticos na América Latina.

Criado em 1940, por determinação do presidente Franklin Roosevelt, para coordenar as relações comerciais e culturais entre os Estados Unidos e os países latino-americanos, o Office representou, de maneira emblemática, o notável esforço de mobilização da nascente indústria cultural em favor da manutenção da posição hegemônica dos Estados Unidos na América Latina durante a II Guerra Mundial. Dentre os múltiplos âmbitos de atuação do Office, Valim se debruça sobre as atividades de propaganda difundidas através do cinema, um empreendimento posto em marcha pela Divisão de Cinema do Office e pela primeira unidade do Office na América Latina, a Brazilian Division.

Os atores envolvidos nessa trama não pertencem somente ao quadro de funcionários da agência governamental estadunidense; ao longo das páginas, nos deparamos com sujeitos de alta performance como Walt Disney, Nelson Rockefeller, Carmen Miranda, Orson Welles, empresários dos grandes estúdios de cinema de Hollywood, embaixadores dos Estados Unidos e agentes do Departamento de Imprensa e Propaganda do presidente Getúlio Vargas. No entanto, é fundamental recordar: a propaganda possui um alvo privilegiado; nesse caso específico, a plateia. Essa é a audiência que deve ser persuadida.

Um dos plot points da obra é justamente o capítulo intitulado O Show Precisa Continuar: o cinema da boa vizinhança adentra o país. Nesta parte do texto são retratadas as diversas dificuldades e obstáculos enfrentados pelas equipes da Brazilian Division para realizar exibições de filmes nas pequenas cidades do interior do país. As incursões consistiam em verdadeiras sagas, e envolviam o deslocamento dos projetistas e seus pesados equipamentos através de estradas precárias, muitas vezes empregando o transporte de tração animal ou mesmo em lombos de mula, além de pequenos barcos e canoas. Às dificuldades de transporte em um país com as dimensões territoriais do Brasil somavam-se a falta de energia elétrica em muitas localidades, a inutilização dos filmes e projetores devido aos danos causados durante o transporte, às elevadas temperaturas ou à alta umidade, à impossibilidade de reposição de peças eventualmente danificadas durante as exibições, como lâmpadas, cabos, válvulas, transformadores. Todas essas adversidades de logística e transporte enfrentadas pela equipe da Brazilian Division nos ajudam a vislumbrar a dimensão da importância do projeto de disseminação em larga escala da propaganda estadunidense por meio do cinema.

A linguagem visual explorada neste capítulo é evocada de maneira recorrente: a partir de um dos projetos mais ousados experimentados no Brasil, as sessões de cinema realizadas em vagões de trens ou mesmo através dos Unit Mobiles, uma parceria com empresas do ramo farmacêutico que proporcionava automóveis adaptados com telas para exibir filmes, cinejornais e desenhos animados selecionados pela Brazilian Division e, ao mesmo tempo, comercializava, para o público, medicamentos como Leite de Magnésia, Melhoral e Pílulas de Vida do Dr. Ross. As impressionantes imagens fotográficas que acompanham o livro eternizaram as sessões de cinema a céu aberto realizadas em praças públicas de cidades do interior, penitenciárias, escolas, quartéis e até mesmo hospitais psiquiátricos. As exibições — sempre gratuitas — atingiam um amplo público espectador, proveniente não apenas da elite e da classe média, mas também das classes populares, composta muitas vezes por indivíduos que nunca haviam experimentado uma sessão de cinema e que permaneciam encantados por verem pela primeira vez um bombardeio de imagens em movimento.

E se o alvorecer do século XX foi iluminado por uma nova forma de linguagem visual, imagens em movimento difundidas pelos cinematográfos em escala mundial, é necessário refletir sobre o poder desse novo suporte e artefato cultural de gerar imaginários sociais e práticas representacionais. A pesquisa de Alexandre Valim não se debruça diretamente sobre o campo de recepção das películas estadunidenses entre o público brasileiro, entretanto, revela importantes aspectos: o primeiro, a existência de um pesado investimento em propaganda e na produção cinematográfica por parte do governo dos EUA; a grande capilaridade atingida no interior do Brasil através do projeto de popularização das exibições e a larga audiência alcançada, em grande medida formada por um público analfabeto. Certamente, não se deve tomar a esfera de influência do público, provocada pelos filmes de propaganda, de maneira mecânica e em via de mão única, afinal, a consciência não é uma tela em branco, e o campo da cultura é um campo de batalha, permeado por lutas e resistências. No entanto, como afirma Stuart Hall (2003, p. 240), as operações culturais estão ligadas aos mecanismos de hegemonia cultural em jogo, e há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas. E, como adverte Alexandre Valim (2017, p. 313), embora uma avaliação precisa sobre o cinema de propaganda no Brasil seja uma tarefa extremamente difícil de ser realizada, “o imenso v.de fontes produzidas pelas agências governamentais estadunidenses atuando em território brasileiro sugerem fortemente que esse impacto foi profundo e duradouro”.

Vale ressaltar: o cinema “não é somente um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”1. O sucesso de público nas exibições e o grande alcance do projeto propagandístico era fruto de um intenso esforço por parte do pessoal da Brazilian Division, que envolvia a mobilização de uma complexa rede de contatos, negociações e acordos entre autoridades locais, políticos, militares, funcionários do DIP e mesmo entre a alta cúpula do Office, uma vez que “o intenso contato com a realidade brasileira por estadunidenses que estiveram no país fez com que, frequentemente, estes flexibilizassem diretrizes elaboradas em Washington em prol de perspectivas mais humanistas e solidárias” (VALIM, 2017, p. 312).

Se, por um lado, o autor destaca a importância de compreender a diversidade dessas relações, representações e práticas estabelecidas entre os segmentos estadunidenses e latino-americanos, por vezes contraditórias e divergentes, por outro, não hesita em ratificar o imperialismo midiático presente no programa de propaganda estadunidense para a América Latina que perpassa os vários circuitos de relações de poder, reproduzindo e atualizando antigos métodos de controle e dominação. uso do cinema como recurso de aproximação entre os Estados Unidos e o Brasil durante a II Guerra Mundial teve um impacto sem precedentes, e não serviu apenas como instrumento de convencimento e persuasão no campo político-ideológico ou no controle de um estratégico mercado fornecedor de matérias-primas. O American Way of Life difundido através da propaganda no cinema vendia também novos hábitos, estilos, modas, costumes e comportamentos que transformaram de maneira decisiva a sociedade brasileira. Através de uma linguagem simples, o livro de Alexandre Valim traz uma análise sofisticada envolvendo propaganda, cinema e guerra, uma tríade de elementos importantes para a compreensão do poder de persuasão que serve de munição à indústria cinematográfica até os dias de hoje.

Referências

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, 2003.

VALIM, Alexandre Busko. O Triunfo da persuasão: Brasil, Estados Unidos e a Política da Boa-Vizinhança durante a II Guerra Mundial. São Paulo: Ed. Alameda, 2017. 1 A associação cinema-espetáculo foi apropriada de Guy Debord, para quem o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. Cf. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1997, p. 12.

Ana Marília Carneiro – Doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG – BRASIL E-mail: anammc@gmail.com.

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.5, n. 2, 2019.

Encontros com a Filologia

Nota Editorial

Apresentação

  • Marcus Vinícius Pereira das Dores, Leonardo Lennertz Marcotulio
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Artigos – Dossiê Temático

Resenhas

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.5, Especial (2), 2019.

Número Especial 2 – Cabalgando nas ondas do Atlántico. Estudos sobre léxico galego e portugués

Nota Editorial

Artigos – Dossiê Temático

Fontes Primárias

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.5, Especial (1), 2019.

Número Especial 1 – Uma homenagem à professora Célia Lopes

Este número é uma homenagem à pesquisadora e professora Célia Regina dos Santos Lopes, por ocasião de sua promoção para Professor Titular de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nota Editorial

Artigos

Fontes Primárias

Conferência

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.5, n. 1, 2019.

Diferentes olhares sobre a mudança linguística

Nota Editorial

Apresentação

  • Karen Sampaio Braga Alonso, Priscilla Mouta Marques
  • PDF

Artigos – Dossiê Temático

Artigos – Varia

Fontes Primárias

História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos – ROVAL (RTA)

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). História oral e história das mulheres: rompendo silenciamentos. São Paulo: Letra e Voz, 2017. Resenha de: MOUSINHO, Amanda Arrais. Uma história oral narrada por vozes femininas na luta contra as hierarquias de gênero. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.630-634, jan./abr., 2019.

“História oral e história das mulheres: Rompendo silenciamentos” é um livro composto por estudos baseados nas vidas de mulheres de diferentes origens territoriais, sociais, culturais e políticas e suas relações com os homens, com o propósito de refletir sobre essas experiências femininas diante das mais diversas práticas culturais que perpassam o cotidiano. Segundo a organizadora da obra, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, essas mulheres detêm a possibilidade de se manifestar, por intermédio da história oral, contra toda forma de opressão, indiferença e esquecimento com o objetivo de publicizar e enfrentar dores na luta contra o silenciamento.

O livro tem início com uma entrevista realizada com Rachel Soihet no intuito de contar a trajetória da estudiosa de gênero e história das mulheres. Realizada por Natália de Santanna Guerellus, a entrevista descreve o percurso pessoal e profissional de Rachel e narra como o fato de as mulheres ocuparem espaços separados nas festas e comporem rodas de conversa cujos temas eram casa e filhos – enquanto homens debatiam temas como política e negócios – acabou por despertar seu interesse sobre o estudo da divisão de papéis entre homens e mulheres.

Mais adiante, a pesquisadora tenta compreender de que forma a segregação e a opressão sofridas pelas mulheres prejudicavam suas potencialidades intelectuais e profissionais, e também defende a complementariedade dos estudos de gênero e da história das mulheres. A entrevistada se denomina feminista ao buscar direitos para as mulheres de modo a constituir uma sociedade igualitária com a qual contribui em termos intelectuais, por exemplo, fazendo uso da história oral para trazer à tona temas que não foram explorados nas décadas anteriores e resgatar, através de memórias, uma história até então não registrada.

O restante do livro é dividido em três partes, sendo cada parte composta por dois capítulos. A primeira parte, “Narrativa de militância feminina: Desvelando relações hierarquizadas de gênero”, debate a relação entre gênero, feminismo e ditadura buscando compreender de que forma as relações de gênero afetam a narrativa e a trajetórias de mulheres que participaram de algum tipo de militância. No primeiro capítulo, “Viver o gênero na clandestinidade”, Joana Maria Pedro aborda a experiência de mulheres militantes que vivenciaram a clandestinidade. A autora faz uso da história oral para entrevistar mulheres que, após se conectarem às organizações políticas, tiveram que utilizar a clandestinidade como recurso para fugir da repressão no período da ditadura no Brasil. Durante as entrevistas, as memórias foram utilizadas como fonte e, por mais que algumas mulheres tenham exercido protagonismo político ao desempenhar cargos de destaque, o que chama a atenção é o fato de algumas das mulheres entrevistadas se colocarem à sombra de seus parceiros ao desqualificarem a própria militância, o que reforça a hierarquia de gênero vigente e minimiza a atuação feminina nos espaços públicos e políticos que são tidos como naturalmente masculinos. Segundo Joana Pedro, essa autodesqualificação da mulher militante reitera que a memória é gendrada e, por consequência, a forma como histórias são narradas e rememoradas também o são, o que acaba por fazer com que o reconhecimento das mulheres na condição de sujeitos históricos e protagonistas seja atravessado por relações de gênero.

No segundo capítulo, intitulado “Ditadura civil-militar e relações de gênero: Uma análise das experiências de mulheres na guerrilha urbana no eixo Brasília-Goiânia”, Eloísa Pereira Barroso e Clerismar Aparecido Longo entrevistam mulheres que militaram na organização de guerrilheiras urbanas que se apresentou como resposta à repressão ditatorial. Nesse caso, a entrevista oral visou entender a condição gendrada da mulher nesse movimento, abarcando hierarquias e estratégias de poder, bem como compreender como os discursos dos sujeitos envolvidos em projetos políticos de esquerda estão condicionados a configurações de gênero.

Já a segunda parte do livro, “Experiências desviantes: a ousadia de ser mulher em contextos autoritários”, tem início com o capítulo “O herói e a deslocada: História oral, gênero, ditadura, emoções”. Escrito por Ana Maria Veiga, o estudo explora a vida de Valdir Alves e Elaine Borges: jornalistas que exerceram a profissão durante a censura da ditadura civil-militar. A autora frisa que apesar de ambos os sujeitos terem tido formação profissional semelhante, o gênero feminino e masculino – opostos e hierarquizados – foram definitivos na construção de uma experiência divergente separada por um abismo do binarismo, de forma que Valdir ficou conhecido como herói e mito, enquanto Elaine não ganhou o mesmo título, mas sim o de “incendiária do cenário político” (2017, p. 92), que poderia prejudicar a imagem dos jornalistas por gostar de criar confusão. E é por isso que Ana Maria Veiga nomeia Elaine como “deslocada”, pelo fato de a jornalista ter se destacado em um meio profissional predominantemente masculino e fugir do suposto papel tradicional da mulher.

No segundo capítulo, “Médica, resistente e condessa: A história da militante potiguar Laly Carneiro Meignan”, a autora Maria Cláudia Badan Ribeiro narra a vida da primeira mulher potiguar a ser presa por motivos políticos devido à sua militância ir de encontro com o coronelismo, as oligarquias rurais e a ala conservadora do Rio Grande do Norte. Laly, uma mulher nordestina, médica, militante, exilada e professora consagrada no exterior, faz parte de uma resistência construída coletivamente que utilizava como instrumento principal a educação popular.

Na terceira e última parte do livro, “O privado como dimensão pública: Rompendo territórios”, as autoras exploram temas que abarcam a naturalização das funções sociais das mulheres em uma sociedade patriarcal. No primeiro capítulo, “Ser mãe ou não ser: Afinal, qual é a questão? A história oral desvendando o mito do amor materno”, Marcela Boni Evangelista entrevista dois grupos de mulheres que vivenciaram a experiência da maternidade na adversidade. Primeiramente, a autora conversou com mulheres-mães de jovens envolvidos com atos infracionais que foram privados de liberdade; e em um segundo momento, Marcela conversou com mulheres que passaram pela experiência do aborto induzido, o que evidencia a maternidade enquanto uma escolha. Em ambas as situações, a história oral serviu como instrumento para dar voz a essas mulheres a fim de problematizar a ideia do mito do amor materno, bem como a imposição da obrigatoriedade da maternidade para que a mulher alcance a plenitude. Nesses dois casos, a história oral aproxima o leitor das realidades obscurecidas pelas quais passam essas mulheres diante de uma função social a elas atrelada e que é há muito tempo naturalizada.

No capítulo final, “Romper o silenciamento: Narrativas femininas sobre violência de gênero e desvitimização”, Marta Gouveia de Oliveira Rovai e Naira de Assis Castelo Branco relatam casos de mulheres piauienses, moradoras da Parnaíba, que sofreram violência de gênero no período de 1995 a 2014. Segundo as autoras, ouvir as vítimas de violência simboliza o incentivo a uma reflexão acerca das relações entre domínio público e privado e a tentativa de desconstruir a ideia de que a violação dos direitos no espaço privado é um assunto conjugal. Entretanto, é primordial ressaltar que, apesar da violência sofrida, as mulheres não podem ser reduzidas ao papel de vítima, logo, o papel da história oral, nesse caso, é justamente o de fazer com que esses testemunhos atinjam a esfera pública a fim de criar medidas protetivas e desnaturalizar violências e hierarquias de gênero.

No decorrer dos capítulos desse livro, o que se percebe é a necessidade de assegurar às mulheres o direito de contar suas próprias experiências de modo que suas histórias não sejam reduzidas a uma narrativa terceirizada contada sob a ótica masculina. Em vista disso, a história oral funciona como instrumento metodológico ao dialogar diretamente com essas mulheres e permitir que suas experiências sejam publicizadas sem a mediação de instituições atravessadas por uma cultura permeada por práticas e discursos androcêntricos.

Amanda Arrais Mousinho Mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP – BRASIL E-mail: amandaarraism@gmail.com.

Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula – HOWKINS (RTA)

HOWKINS, Adrian. Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula. New York, NY: Oxford University Press, 2017 7. Resenha de: ANDRADE JÚNIOR, Hermes. Frozen empires. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.11, n.26, p.616-622, jan./abr., 2019.

O continente da Antártida é desconhecido pelas pessoas comuns e pela maioria da comunidade científica. Apenas uma plêiade de pesquisadores, militares, exploradores e aventureiros que agem com objetivos muito específicos conhece as microrrealidades de somente parte do continente, notadamente as áreas de exploração, de comércio, dos pontos de parada e descanso e dos estudos continuados em um lugar onde a natureza é exigente e inóspita para os seres humanos. Esses contrastes trazem muita curiosidade, pois ainda parece ser uma região pouco conquistada, mas não pouco disputada, e essa é a versão deste livro.

O livro em si é um estudo de caso de confluência da macropolítica internacional, especialmente dotada em termos geopolíticos, e com nexos explicativos de fundo ambiental, ou seja, com uso da ciência ambiental. Assume características de um discurso ambiental e geofísico com aparato científico de suporte, sempre amparado por militares estrategistas de todas as nações interessadas na disputa por seu território. O autor, Adrian Howkins, é professor e pesquisador de História na Universidade Estadual do Colorado, EUA.

Mas, por que tanto interesse na região já que é perpetuamente coberta de gelo e neve e sem habitantes nativos? A montanhosa Península Antártica que se estende para o sul em direção ao Polo Sul e que se funde com a maior e mais fria massa de gelo do planeta é, mesmo assim, a região apontada pelo autor como a que tem a história política mais contestada de qualquer parte do Continente Antártico.

O lado ocidental da península provou ser a parte mais acessível da região, como resultado das correntes oceânicas e ventos que mantêm o mar relativamente livre de gelo durante os verões e onde confluem todas as reivindicações de soberania e de sobreposição. Para o leste, onde as reivindicações da Argentina e da Grã-Bretanha, mas não do Chile, se sobrepõem, a região politicamente definida da Península Antártica se estende pelo Mar de Weddell e inclui as plataformas de gelo e gelo ao sul. Para o norte, a região da Península Antártica inclui as Ilhas Shetland do Sul, que são reivindicadas pelos três países, com as Ilhas Órcades do Sul, Ilhas Sandwich do Sul e Geórgia do Sul, que são disputadas pela Grã-Bretanha e Argentina.

É importante salientar que o autor centrou seu estudo na Península Antártica e não no todo do continente da Antártida. Isso, metodologicamente sustenta seu estudo de caso na fluência do exame das evidências, mas também deixa claro que nações (que algumas o autor também categoriza como impérios) tinham a pretensão somente na Península Antártica ou no continente como um todo, afirmando seus interesses enquanto atores de forma explícita em um ou outro território ou na extensão de continuidade de seus territórios.

Howkins sinaliza que nas décadas de 1920 e 1930, por exemplo, os britânicos usaram as “investigações de descoberta” (p.8) biológicas marinhas para produzir informações sobre as baleias que poderiam ser usadas para regular a indústria baleeira de maneira sustentável e, nas décadas intermediárias do século XX, fizeram um uso cada vez mais sistemático de levantamentos e mapeamentos para afirmar seu controle sobre as dependências das Ilhas Falkland.

Assim, desde o início do século XX, Argentina, Grã-Bretanha e Chile fizeram reivindicações de soberania sobrepostas, enquanto os Estados Unidos (a Doutrina Hughes de 1924 se recusou a reconhecer quaisquer reivindicações de soberania à Antártida e, ao mesmo tempo, reservou os direitos dos EUA a qualquer parte do continente) e a Rússia reservaram direitos para todo o continente.

A ameaça de um confronto armado entre a Grã-Bretanha, a Argentina e o Chile era uma grande preocupação para os formuladores de políticas dos EUA, já que os três países eram importantes aliados da Guerra Fria e qualquer conflito entre eles seria bom para a União Soviética. Como consequência, os Estados Unidos assumiram a liderança na promoção de vários planos para trazer uma solução pacífica para a disputa de soberania na região da Península Antártica. Ao procurar equilibrar os objetivos conflitantes de promover seus próprios interesses e promover a paz, os Estados Unidos tentaram avaliar o valor econômico do continente.

No fenômeno deste caso, o tema do meio ambiente está no centro dessas disputas pela soberania, colocando a Península Antártica como cruzamento da história das relações internacionais e da história ambiental na região. Sobre a importância de estudá-lo, estações de exploração científica, segundo Howkins, serviram de fachada e de cobertura aos argumentos para as afirmações de soberania em várias cimeiras, com episódios de confrontações militares abertas, como no Caso das Malvinas/Falklands, que foram vividos diretamente pelo cenário de disputa construído com tais precedentes históricos.

A narrativa apresentada por Adrian Howkins é muito bem escrita e amparada em vigorosas fontes documentais e testemunhais, como um digno trabalho de campo aprofundado para obter um estudo de caso consistente. Munido de fartos documentos catalogados cuidadosamente, fatos e registros históricos bem interpretados, o autor afirma que tem havido uma continuidade fundamental nos modos pelos quais as potências imperiais usaram assuntos do meio ambiente para apoiar suas reivindicações políticas na região da Península Antártica e que essas múltiplas reivindicações e afirmações de direitos que se sobrepunham tornaram a Península Antártica uma das regiões mais disputadas em qualquer lugar do planeta.

Nos jogos de poder, os britânicos, pelo lado dos colonizadores, argumentaram que a produção de conhecimento científico útil sobre a Antártica os ajudou a justificar a sua posse e do outro lado, em tentativa de emancipação, a Argentina e o Chile argumentavam que a Península Antártica pertencia a eles como resultado da proximidade geográfica, da continuidade geológica e de um senso geral de conexão. No entanto, como resultado, apesar dos vários desafios e reivindicações, o autor afirma que nunca houve uma genuína descolonização da região da Península Antártica.

Em vez disso, as afirmações britânicas de que as respectivas entidades estavam conduzindo a ciência “para o bem da humanidade” (p. 8, 21) foram reformuladas pelos termos do Tratado Antártico de 1959 e os “impérios congelados” (p. 16-22) da Antártica, assim denominados pelo autor (o tratado “congelou” (p.21) todas as reivindicações de soberania e reservas de direitos à Antártida, nem as reconhecendo nem as rejeitando), permanecem até hoje no mesmo status.

Na justaposição da aparente hostilidade do ambiente material da Península Antártica com a disputada história política da região, são levantadas uma série de questões. Por que o ambiente aparentemente sem valor e hostil da região da Península Antártica se tornou tão contestado ao longo do século XX? Que papel o ambiente desempenhou na forma como esses conflitos políticos se desenvolveram? E quais foram os resultados e implicações deste conflito? pacífica” intensificou-se no curioso caso chamado de tentativa de descolonização, uma vez que as pretensões do Chile e da Argentina foram abertamente discutidas em ambiente de Guerra Fria, cercado pela mega influência bipolar do mundo EUA-URSS, que obviamente decidiram manter seus interesses no continente antártico e não somente na Península Antártica.

Confirma-se uma história ambiental da descolonização no gelo no continente (PYNE, 2003). No panorama da obra, verificam-se grandes categorias de reinvindicação históricas e historicizantes. Em primeiro lugar, a geopolítica do conhecimento para gerar soberania a ser usada como estratégia dos colonizadores (internacionalismo científico) e, em segundo lugar, o nacionalismo ambiental dos colonizados.

Exemplificando, o interesse argentino e chileno na região desafiava não apenas a posse britânica das dependências das Ilhas Malvinas, mas também a conexão imperial entre o conhecimento ambiental e o poder político. Por um tempo, pelo menos, esse “nacionalismo ambiental” sul-americano (p. 59-82) produziu visões do ambiente antártico que diferiam significativamente do foco da Grã-Bretanha na ciência. Apesar do seu afastamento, a história do conflito entre o imperialismo britânico e o nacionalismo sul-americano na região da Península Antártica conecta-se com a história mais ampla da descolonização de meados do século XX.

Em 1º de dezembro de 1959, doze nações – incluindo Grã-Bretanha, Argentina, Chile, Estados Unidos e União Soviética – assinaram o Tratado da Antártida, que suspendeu todas as reivindicações de soberania e reservas de direitos, e criou um continente dedicado à paz e à ciência. Interpretações tradicionais consideraram o tratado como um importante ponto de virada na história antártica, encerrando em grande parte as lutas políticas do continente e implementando uma nova era do internacionalismo científico, mas também há que se considerar outros focos interpretativos, uma vez que “a ausência de estruturas administrativas formais deixou a natureza jurídica do Tratado da Antártida deliberadamente vaga” (p. 161).

Howkins aplica uma perspectiva mais ampla da história ambiental da região da Península Antártica que sugere que a Antártida continua a ser um ambiente imperial, com a ciência continuando a ser usada para legitimar o poder político. Embora a assinatura do Tratado certamente tenha marcado o declínio do nacionalismo ambiental sul-americano, ele não mudou significativamente a política imperial subjacente do continente. E, embora o Chile e a Argentina nunca tenham desistido de proclamar seus direitos territoriais à região da Península Antártica, eles começaram a aceitar a conexão entre ciência e poder político e abandonaram em grande medida o nacionalismo ambiental das décadas de 1930, 1940 e 1950. Desde a sua ratificação em 1961, o envolvimento da Argentina e do Chile se mostrou importante na defesa do Tratado da Antártida de acusações de exclusividade. Fica a lembrança de que a conexão entre ciência e soberania usada pela Grã-Bretanha para justificar suas reivindicações às dependências das Ilhas Malvinas foi criticada pelo nacionalismo ambiental que, ao invés de competir com as mesmas armas que não estariam disponíveis, procurou outras formas não científicas de usar o ambiente antártico para promover a propriedade.

Na sua explanação, o autor prova que novas descobertas eram frequentemente feitas na península, sendo nomeadas e descritas por expedições imperiais, com poucas narrativas concorrentes. Com o tempo, com a construção de estações de pesquisa britânicas e através de vários esquemas para desenvolver o ambiente antártico, as percepções da região da Península Antártica como um ambiente imperial contribuíram para moldar sua realidade material. Certamente havia limitações às afirmações britânicas de autoridade ambiental e à construção da região da Península Antártica como um ambiente imperial. As pretensões britânicas de entender, simplificar e controlar a Antártida poderiam frequentemente parecer ridículas em face da vastidão da região e de sua hostilidade à presença de seres humanos e seus mares congelados, fendas, tempestades e maremotos. Nos dias de hoje, as afirmações britânicas de autoridade ambiental mostraram-se poderosas na construção da região da Península Antártica como um ambiente imperial. Nomes de lugares britânicos continuam a ser usados; a ciência tornou-se uma atividade normativa e é difícil pensar na região sem alguma referência às expedições científicas do início do século XX.

Em sua conclusão, o autor afirma que, infelizmente, para o nacionalismo ambiental chileno e argentino, os dois países sul-americanos nunca chegaram a um acordo sobre quem detinha o quê no continente sulista. Como consequência, o desafio ao imperialismo britânico foi significativamente enfraquecido. É interessante especular o que poderia ter acontecido com a história da região da Península Antártica se o Chile e a Argentina tivessem chegado a um acordo sobre suas respectivas reivindicações; isso, no mínimo, teria dado a outros países simpáticos à sua causa anti-imperial algo a reconhecer. No entanto, os diplomatas chilenos e argentinos se viram gastando quase tanto tempo competindo entre si em reivindicações, lutando contra o imperialismo britânico.

Mais amplamente ainda, traz uma reflexão final de que o argumento para a continuidade imperial na história ambiental da região da Península Antártica poderia ser usado como modelo para pensar sobre as políticas ambientais de outras partes do mundo, especialmente em lugares diretamente influenciados pelas histórias do imperialismo europeu e da descolonização.

Afirmações da autoridade ambiental podem ser vistas como uma poderosa ferramenta política em muitas questões importantes, em muitas partes do mundo, e este livro provou isso. É leitura recomendada para todos os que querem ter contato com parte pouco conhecida do Atlântico Sul e do continente antártico, em especial no que tange aos países latino-americanos do Mercosul como o Brasil, que viveu, mesmo na neutralidade da Guerra das Malvinas em 1982, o drama de ter mais uma guerra como dilema das relações internacionais de seus vizinhos, agora parceiros estratégicos.

Referências

HOWKINS, Adrian. Frozen empires: an environmental history of the Antarctic Peninsula. New York, NY: Oxford University Press, 2017.

PYNE, Stephen J. The Ice. London: Weidenfeld & Nicolson, 2003.

Hermes Andrade Júnior – Bacharel em Relações Internacionais. Doutor (D. Sc.) pela Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ). – Pós-Doutorado na Universidade Católica Portuguesa (UC/FFCS/CEFH). Braga – PORTUGAL. E-mail:  handradejunior@gmail.com.

Estudos de história metrológica: Medidas de capacidade portuguesas – VIANA (Topoi)

VIANA, Mário. Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Universidade de Lisboa, Centro de História, 2015. 170p.p. Resenha de: TAVARES, Maria Alice da Silveira. Desenvolver a história da metrologia em Portugal: aportações para o estudo das medidas de capacidade. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.

Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas es el primer volumen de Mário Viana , profesor de la Universidad de las Azores, dedicado a esta temática. Se trata de más una etapa para el desarrollo de la história económica y de la metrología, gracias a los esfuerzos del autor en aportar nuevas contribuciones e interpretaciones, en especial, a partir de fuentes portuguesas, al mismo tiempo que evalúa la bibliografía existente. Con este estudio, Viana nos ofrece una panorámica de la metrología en Portugal, desde el siglo IX hasta el XIX, proporcionándonos una perspectiva diacrónica de análisis de amplio espectro cronológico de ocho siglos. La consolidación de esta línea de estudio resulta de la sensibilidad y experiencia por parte del autor que se fue cristalizando a lo largo de estos últimos años, entre 2007 y 2015. Prueba de esto, son los siete capítulos que componen esta obra objeto de la presente reseña. Estos son precedidos por una breve nota previa del mismo autor con la intención de dar a conocer y de aclarar la elección de este objeto de estudio, bien como sus motivaciones. Asimismo, podemos subrayar que los dos primeros estudios tienen una función pedagógica, con los objetivos de proporcionar herramientas de trabajo (fuentes, bibliografía, por ejemplo) y de introducir al lector en las problemáticas de la historia metrológica.

El primer capítulo, “A história metrológica portuguesa. Breve roteiro ideográfico”, de carácter pedagógico, tiene un doble enfoque: dar a conocer la historia metrológica portuguesa desde finales del siglo XII hasta la actualidad y hacer un punto de la situación de las investigaciones desarrolladas en este campo del conocimiento histórico, proporcionando nuevas aportaciones. Asimismo, se pretende introducir al lector en las discusiones actuales sobre esta temática, proporcionándole algunos ejes de discusión relacionados, en primer lugar, con la idea de caos asociada a las iniciativas de uniformización del sistema métrico decimal no solo en Europa, sino también en Portugal, en perjuicio de los pesos y medidas locales. La inflación del sistema métrico decimal y a continuación, las diferencias metrológicas, según las distintas regiones de Portugal, son otros parámetros objeto de atención en este estudio. A modo de colofón, el autor nos proporciona un listado bibliográfico sobre la historia de la metrología en Portugal, proporcionándonos un instrumento de trabajo y un punto de orientación para futuras investigaciones en este campo del conocimiento histórico.

Dentro de la misma temática, el segundo capítulo – “Medidas de capacidade medievais portuguesas: uma revisão” -, consiste en la publicación de los resultados presentados en el evento científico (O reino, as ilhas e o mar oceano. Estudos em homenagem a Artur Teodoro de Matos de Matos, edição de Avelino de Freitas de Meneses e João Paulo Oliveira e Costa, Lisboa – Ponta Delgada, Centro de História de Além-Mar – Universidade dos Açores, 2007, v. I, p. 59-80), celebrado en Portugal. Mário Viana nos hace el estado de la cuestión de las fuentes y de los estudios sobre las medidas de capacidad utilizadas durante la Edad Media en Portugal, mientras que, por otro lado, nos propone una reevaluación de la bibliografía existente sobre este objeto de estudio. Con este ejercicio, el autor pretende hacer una nueva reflexión sobre el sistema metrológico portugués, con el objetivo de demonstrar que se trata de un método con características propias, organizado, contradiciendo las teorías anteriores defensoras de la existencia de una métrica confusa y desordenada.

El tercer capítulo, “As medidas de capacidade nas inquirições de 1258” fue publicado anteriormente en la obra colectiva, Olhares sobre a história. Estudos oferecidos a Iria Gonçalves, Lisboa, Caleidoscópio, 2009, p. 691-702. El título nos remite directamente para el objeto de estudio – las medidas de capacidad -, observadas con base en las actas de las inquiriciones regias, fechadas de 1258, relativas a la región entre los ríos Cávado y Miño, en el Norte de Portugal. Se trata de un artículo con características peculiares, una vez que esta investigación resulta de una ósmosis entre la historia y las tecnologías, gracias a la aplicación (INQExpert) de búsqueda automatizada de texto basada en el sistema de lenguaje Java. Esta metodología posibilitó estudiar y reconstituir el sistema de medidas de capacidad tanto para sólidos, como para líquidos, en el Noroeste portugués. Este output se desarrolló en el ámbito del proyecto INQ1258, coordinado por el propio autor – Mário Viana -, que contó con financiación del Gobierno Autonómico de las Azores (Dirección Regional de Ciencia y Tecnología de las Azores, con la referencia: DRCT00276M2.1.2/I/008/2006).

Como el título nos indica – “Para a história da metrologia em Portugal: um documento de 1353 relativo a Bragança” – el presente capítulo consiste en el estudio de un documento relativo al concejo de Bragança (localizado en Nordeste de Portugal, cerca de la frontera con España), de la segunda mitad del siglo XIV (1353), que se encuentra en el Archivo Distrital de la referida ciudad. Este documento trata de un conflicto entre las gentes de Bragança y el concejo por culpa de las medidas de capacidad utilizadas para medir el vino. Este problema sirvió de punto de partida para explicar la política y la reforma de los pesos y medidas del rey D. Pedro I (1356-1367) que data de 1357-1358. Las informaciones de este texto fueron publicadas en la revista de la Universidad de las Azores: Arquipélago. História, Ponta Delgada, 14-15 (2010-2011). Por último, a modo de colofón, podemos apreciar la edición del documento.

El quinto capítulo – “Para a história da metrologia em Portugal: dois documentos de 1358-1360 relativos a Coimbra” -, es un ensayo con una estructura particular al igual que el anterior, pues Mário Viana trae nuevas contribuciones a partir de documentación referente a situaciones de conflictos. Una vez más, el autor se refiere a una contienda entre el concejo de Coimbra y el monasterio de Santa Cruz que asumió la defensa de la aldea de Ansião, término de la susodicha ciudad. Con base en los dos documentos que se encuentran editados al final del capítulo, en los anexos, el autor pretende demostrar una clara intervención gradual del poder regio en controlar las instituciones económicas locales, entre las cuales los pesos y las medidas utilizadas en los concejos y en sus términos. De este modo, se evidenció el impacto de la aplicación de la reforma metrológica otorgada en 1357-1358 por el rey D. Pedro I (1356-1367), aunque estas conclusiones fueran publicadas, igualmente, en la revista azorina, Arquipélago. História, de la Universidad de las Azores, en el año 2009, con las páginas 281-295)

A continuación, podemos encontrar el sexto texto, “A regulação metrológica em Portugal nos séculos XV e XVI” que fue publicado, de forma parcial, en otro capítulo anterior, “A metrologia nas posturas municipais dos Açores (séculos XVI-XVIII)”, en la obra colectiva: O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX. Actas do V Colóquio, Horta, Núcleo Cultural da Horta, 2011, p. 279-312. En este ensayo, el autor enfoca los mecanismos de reglamentación de los pesos y de las medidas y, por otro lado, reflexiona sobre los procesos de uniformización metrológica implementada por el poder regio a lo largo de la Edad Media, con el apoyo del poder local. En este sentido, el presente capítulo está organizado en dos ejes basilares: la implementación de la figura del funcionario regio, “almotacé-mor” en los concejos y su respectiva jurisdicción. El segundo dice respecto a la política de uniformización de pesos y medidas, a par de otras iniciativas que acompañan las tendencias de control del poder local y de desarrollo de una política fiscal.

En el último capítulo, “As medidas de capacidade nos Açores em 1868”, consiste en un estudio que fue publicado anteriormente en la obra colectiva, Aquém e além de São Jorge: memória e visão, Lisboa, Centro de História d’Aquem e d’Além-Mar, 2014, p. 143-164. Como el título indica, Mário Viana nos adentra en las medidas de capacidad utilizadas en el archipiélago de las Azores, en la segunda mitad del siglo XIX, más en concreto, en 1868, en el marco de la implementación del sistema métrico decimal en Portugal. Para lograr sus objetivos, el autor se fundamenta, en especial, en una fuente decimonónica: Mapas das medidas do novo sistema legal comparadas com as antigas dos diversos concelhos do reino e ilhas. A través de esta obra, tenemos acceso a datos metrológicos de 21 “distritos” (circunscripciones administrativas) y 439 concejos portugueses. En el caso particular de las Azores, los datos observados corresponden a los “distritos” de Angra de Heroísmo (isla Terceira), Ponta Delgada (isla de São Miguel) y Horta (isla de Faial). A partir de estas indicaciones metrológicas, el autor analiza y coteja las variaciones de las medidas de capacidad para líquidos y sólidos en el archipiélago azorino, con recurso sobre todo a la cartografía isleña. En el anexo del referido capítulo, podemos encontrar una serie de tablas esquemáticas con las medidas de capacidad (tonel, pipa, almud, “pote”, “canada”, cuartillo, medio cuartillo y cuarto cuartillo) utilizadas en el siglo XIX, en las islas de las Azores.

En suma, se trata de una obra importante para el desarrollo de la historia económica y para el estudio de la metrología en Portugal desde la Edad Media hasta la época contemporánea. Además, Mário Viana nos aporta nuevas investigaciones, sobre todo, en consonancia con el uso de las tecnologías, herramientas de trabajo indispensables en el desarrollo de investigaciones en las ciencias sociales y humanas.

Referências

Mário Viana . Estudos de história metrológica. Medidas de capacidade portuguesas. Lisboa: Universidade de Lisboa, Centro de História, 2015, 170p. [ Links ]

Maria Alice da Silveira Tavares – Investigadora da Universidade Nova de Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa – Portugal. E-mail: alice.tavares@gmail.com.

Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado – MICELI (Topoi)

MICELI, Sergio. Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed.. São Paulo: Todavia, 2018. 184p.p. Resenha de: TEDESCO, Alexandra. Do retrocesso ao sonho. Topoi v.20 n.40 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2019.

Obedecendo às escolhas teóricas da obra, não se pode acusar o leitor de contrariar o autor ao vincular a publicação do livro Sonhos da periferia (2018) a um projeto mais amplo, que perpassa a trajetória intelectual do sociólogo Sergio Miceli e que, como argumentaremos, parece, em seus termos, se constituir como mais um lance de um robusto projeto existencial, capaz de dotar de sentido heurístico as escolhas de recorte e as operações de enquadramento que organizam o livro. O ponto de vista que aqui se assume está construído a partir de um repertório conceitual afinado com o do autor, o que permite que o argumento do livro, bem como a investida que a publicação representa num campo específico – a saber, aquele da sociologia dos intelectuais e da história intelectual que tanto impulso ganhou nos estudos latino-americanos das últimas décadas a partir da circulação dos aportes de Pierre Bourdieu -, sejam cotejadas de modo simultâneo. Busca-se, com isso, apreciar o livro a partir de um procedimento análogo ao que o autor direciona a seus objetos, objetivando, desse modo, que essa resenha crítica contribua para destacar o caráter frutífero das considerações de ordem teórica e metodológica que perpassam a obra publicada pelo sociólogo e professor titular de sociologia na Universidade de São Paulo, Sergio Miceli.

O livro está dividido em três partes. Além da introdução constam um capítulo sobre as vanguardas argentinas e brasileiras sob prisma comparativo, um artigo sobre a revista Sur e, finalmente, um capítulo dedicado às trajetórias de Alfonsina Storini e Horacio Quiroga. Esta resenha acompanhará os argumentos na ordem de sua exposição, no intuito de dar prioridade às operações de enquadramento e às escolhas de recorte que parecem costurar o ordenamento dos temas, fornecendo assim os subsídios para um balanço final.

Na introdução, Miceli explicita que a escolha do recorte, a década de 1920, se justifica pelo fato de que nesse contexto coincide, em Brasil e Argentina, a emergência de vanguardas literárias imbricadas em regimes oligárquicos de fachada democrática: no caso brasileiro, a aliança que ficou conhecida como república do café com leite, sob predomínio paulista e, no caso argentino, os áureos tempos de Marcelo de Alvear. Especialmente no caso argentino, observa Miceli, os anos 1930 assistem a um processo de crise e de mudança na morfologia da inteligência, contexto que reforça o predomínio de um mercado intelectual fundamentado em relações pessoais de mecenato e legitimação endógena. Em oposição, pois, ao caso brasileiro, no qual análogo estado crítico levou a um regime de cooptação dos intelectuais (aspecto já proficuamente abordado por Miceli, diga-se de passagem, no compêndio publicado em 2001, Intelectuais à brasileira). Essa distinção entre os dois países – a predominância do mecenato privado na Argentina e o regime de engajamento nos cargos públicos no Brasil – perpassa todo o argumento do livro, e é enriquecida, no argumento de Miceli, a partir de outros traços diferenciais, a saber, o estatuto mais internacional (e internacionalizável) do idioma espanhol em relação ao português e, tangencialmente, indicativos como o diferente grau de abertura aos protagonismos femininos: a empreitada de Victoria Ocampo, por exemplo, não tem paralelo brasileiro, nem mesmo tomando em conta a contingente trajetória de Patrícia Galvão. A Sur, aliás, revista de Ocampo, já se erige, nesse momento do texto, como plataforma privilegiada de observação das tensões que Miceli se propõe a perscrutar, não pela sua muito celebrada sofisticação estética mas, ao contrário, pelo que a revista – principalmente a partir da observação da morfologia e da sociabilidade de seus membros fixos – revela da formação daquele campo intelectual. Desse modo, concentrando-se na passagem dos anos 1920 aos anos 1930, Miceli pretende capturar o momento de germinação de um interlúdio que compreende, em seus termos, o estouro da vanguarda martinfierrista e a decantação da reforma literária protagonizada por Sur. A bibliografia prolífica em torno da revista, sustenta Miceli, não incidiu de modo sistemático num aspecto constitutivo da revista, a saber, a materialidade das eleições dos índices, do projeto gráfico, do tamanho das seções, das propagandas de vultosos bens de consumo, da existência de memoriais, enfim, de toda uma sorte de pontos de observação que podem ser acionados na composição de uma análise que leva em conta aspectos como perfil de renda e de gosto dos leitores, pontos fundamentais para sustentar a aposta de Miceli de que toda disposição intelectual retém as marcas das condições nas quais se formou. A continuidade projetiva do livro é o arremedo da introdução, e dá o tom da argumentação subsequente. Em seus termos, “as vanguardas em retrocesso se transmutaram em quadros intelectuais cosmopolitas” (p. 17).

O primeiro capítulo, “A vanguarda argentina na década de 1920”, apresenta-se como resultado de um esforço que se pretende um compêndio de traços estruturais do campo literário argentino no período em questão, a partir da situação periférica que a Argentina ocupava na Republica Mundial das Letras. Esse é, aliás, o primeiro dos objetos aos quais Miceli se dedica em sua tarefa comparativa, na medida em que a relação de Brasil e Argentina com as ex- -metrópoles se apresenta distinta não apenas em grau mas, sobretudo, em efeito no campo – a escolha do título do livro já está, a essa altura, plenamente consonante com as escolhas teóricas do autor. O fato de que, na Argentina, a ausência de iniciativa pública em matéria de cultura tenha sido resiliente chama atenção como dado constitutivo da predominância do mecenato privado, que amplia sua influência conforme a literatura argentina vai reforçando seu intercâmbio internacional. Tal situação é confrontada com o contraexemplo brasileiro, no qual, destaca Miceli, além de não ser possível falar em uma relação sólida com os modernistas portugueses, a estabilidade do funcionalismo público fornecera, aos brasileiros, um estatuto precocemente profissional em relação ao país vizinho.

O caso do Brasil, funcionando enquanto ponto comparativo, ajuda a perceber, na sequência do argumento, que o funcionamento do nascente campo intelectual argentino esteve permeado por fissuras e tensões muito específicas. A questão da imigração, por exemplo, e sua incidência nas discussões sobre o idioma nacional, a partir das quais as posições intelectuais pareciam responder ao chamado de “preservar o que enxergavam como o tesouro do espanhol castiço passou a fazer as vezes de custódia das prerrogativas sociais cuja continuidade parecia em risco” (p. 28), bem como as clássicas fissuras de classe, como aquela explicitada pela sociabilidade de Boedo e Florida, compõem o argumento de Miceli. Tudo se passa como se os brasileiros se tivessem deixado contaminar menos pela vida pública do que os argentinos pelas relações que os cercavam, emoldurando um quadro em que “em ambos os países, o campo intelectual foi sendo modelado por forças sociais de elite cujas bases de sustentação material e simbólica estavam desigualmente sediadas na esfera estatal e no setor privado” (p. 37).

Após esse estudo comparado, o segundo capítulo, que retoma alguns pontos do livro de 2012, Vanguardas em retrocesso, intitula-se sugestivamente “A inteligência estrangeirada de Sur”. Se é ponto pacífico que poucas instituições culturais receberam tantos olhares acadêmicos como a revista dirigida por Victoria Ocampo, não é menos recorrente que as posições de revisão se enfrentem com uma espiral de filiações de prestígio e de recusas ideológicas. Miceli não deixa de situar sua posição, momento em que, inclusive, sua opção pela originalidade que a sociologia dos intelectuais pode aportar a temas canônicos da historiografia e da crítica literária se faz mais proeminente. Nesse sentido, apesar da vasta literatura, salienta Miceli, “posições tão antagônicas por vezes silenciam a respeito de feições sociais, políticas e intelectuais dos patronos das revistas, das quais preferem se esquivar” (p. 38). Apartado, pois, das acusações de que a Sur era um reflexo superestrutural da oligarquia agropecuária e, ao mesmo tempo, da tradição laudatória que a julga a partir de seu próprio cânone, a saber, o gosto bom e belo, Miceli pretende inserir-se na senda aberta por autores como Tulio H. Donghi e John King, a partir das quais a revista se torna objeto de análise social, não somente estético. Nesse sentido, a sociabilidade do círculo íntimo de Ocampo, suas relações familiares, seus gostos e preferências presumidas, todos esses dados ajudam a observar que, para além das adesões refletidas dos membros e do reivindicado apoliticismo da revista, opera um senso prático e um conjunto de posições que garantem a inteligibilidade social do empreendimento.

A narrativa de Miceli é pródiga em acompanhar o amadurecimento de uma tensão que levará ao descrédito da Sur frente à opinião pública nos anos que se seguem à caída de Perón, após 1955, mas que já está posta a partir dos primeiros anos da década de 1940. O efeito que os fascismos europeus causam nas revistas irmãs do empreendimento de Ocampo, a Nouvelle Revue Français e a Revista de Occidente – de Ortega y Gasset – constrangem a Sur a rever sua posição de ostentatória neutralidade. Num espaço de meses, pontua Miceli, relações sólidas da revista, como o próprio Ortega e Drieu de la Rochelle, passam a criticar a postura “ambígua” de Sur frente ao acirramento das tensões no velho continente, momento em que a “neutralidade” deixava de parecer uma opção viável. Politicamente, sugere Miceli, a revista fez o jogo das forças conservadoras enquanto, culturalmente, deu impulso inédito e vigoroso ao mercado editorial. Essa posição de hegemonia das consagrações culturais relacionava-se, para o autor, com uma opção constante na trajetória da revista, a saber, a transmutação das lutas sociais em dilemas civilizatórios, aos quais os intelectuais vinculados à Sur respondiam, a rigor, num tom abertamente espiritualista e impressionista, como se acompanha, sobretudo, a partir dos textos de Eduardo Mallea.

Sociabilidade fundamentada na antiguidade de seu prestígio, aponta Miceli, a Sur é também o espaço privilegiado de consolidação de um cânone, Jorge Luis Borges, a quem Miceli dedica as páginas mais ácidas de sua análise. O autor destaca que, em consonância com o caráter sempre arredio de Borges às críticas dos “especialistas” e à sua postura de juiz sentencioso, a crítica sempre foi imensamente generosa com o escritor. Não por acaso, nesse sentido, “a brigada de comparsas combatia ‘o exercício ilegal da crítica’, a saber, as incursões de acento sociológico, desacatos à ortodoxia dos magistrados do belo” (p. 77). A posição de Borges nas relações de seu tempo, bem como os influxos da crise internacional, são observados, no argumento de Miceli, a partir da própria prosa borgeana, atentando para uma cumplicidade de habitus que se expressa nas narrativas. Alguns efeitos de erudição, como pequenas alusões em francês, por exemplo, contribuem para evidenciar o argumento de Miceli a respeito da relação que Borges mantinha com seus discípulos, entre eles Mallea: “enquanto os artilheiros da brigada destroçam as investidas materialistas do sociologismo, o sumo sacerdote ensaia o esboço da ontologia que lastreia os artifícios literários” (p. 85). A ontologia de Sur, a metafísica de Borges: eficientes modos de negar a temporalização histórica e as análises de cunho social que sua aceitação certamente permite. Em epílogo contrastivo, lemos que esse mesmo Borges, patrono do autodidatismo cultivado dos dândis portenhos, cozinhado em caldo europeu, não encontra análogo brasileiro, o que justifica sua escolha exemplar.

O terceiro e último capítulo pode parecer, num olhar apressado, destoar do tema dos dois anteriores. “Sexo, voz e abismo”, no entanto, não apenas corrobora as teses de Miceli quanto ao hermetismo do círculo de Sur como, positivamente, ajuda a compreender essas redes da década de 1930 como um espectro constitutivo de trajetórias possíveis. Alfonsina Storini e Horácio Quiroga aparecem, em tom dramático, “prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem” (p. 97). As duas trajetórias, marcadas por tragédias pessoais e pela resistência profissional que encontraram de parte do grupo das vanguardas e, depois, da própria Sur, são analisadas no marco de uma relação tensional entre a condição biográfica marginal dos dois autores e sua ampla inserção nos projetos mais avançados da indústria cultural de então. Miceli nos apresenta duas trajetórias polivalentes, distantes do tom blasé com o qual seus contemporâneos de Sur criticavam a cultura de massa. Obra e vida de Storini e Quiroga aparecem, ao contrário, perpassadas pela indústria cultural. Assim, o melancólico Quiroga e a provocativa Alfonsina, reabilitados pelas críticas dos anos 1980 e 1990, recuperam o lugar da marginalidade morfológica que é, em termos analíticos, o contraponto necessário das posições de Sur. Para capturar essa tensão, Miceli recorre às fotografias públicas de Quiroga e Alfonsina, recurso que o permite capturar os trejeitos, a sociabilidade e a inserção de suas figuras, tão menos documentadas que as do círculo de Victoria Ocampo, cujas fotografias com grandes nomes do jet set intelectual internacional são, desde muito, célebres.

Chama a atenção, no entremeio da prosa sofisticada de Miceli, o recurso à uma estratégia analítica que, mais que uma sub-reptícia tomada de posição teórica, apresenta-se de modo sumamente honesto ao leitor: a revisão de objetos muito revisitados não é gratuita, mas obedece a um propósito que, se não pode, evidentemente, aparecer aqui como “estratégia oculta” ou mesmo como teodiceia subversiva, certamente pode ser apresentada como uma alternativa à história das ideias que, costumeiramente, é laudatória em relação à figuras simbólicas tão potentes como a Sur. A aposta na morfologia do campo, nas relações de parentesco e antiguidade do prestígio, entre outras, ajuda a pensar as distintas relações que esses intelectuais mantiveram com a indústria cultural e com as demandas de seu tempo enquanto variações de uma disputa mais robusta que envolvia não apenas um ethos, mas uma visão de mundo e, assim, uma aposta normativa sobre ele. Percebe-se, por exemplo, que a prosa sempre robusta de Miceli incide criticamente em Borges e se suaviza quando se trata de pensar o caso dos outsiders Alfonsina e Quiroga. Não compreendendo essa oscilação como uma escolha somente afetiva do autor, mas como um componente de seu argumento, tudo se passa como se a análise de cariz sociológico fosse capaz de restituir, pelo descortinamento que opera, o lugar das figuras menores, obscurecidas por uma tradição que costumava creditar o sucesso ao gênio e vice-versa, sem atentar-se para as inflexões sociais das posições ou, num extremo oposto, associando de modo irrefletido uma tomada de posição teórica a uma adesão ideológica manifesta. A sociologia aparece aqui, como antes aparecia em Bourdieu, como esporte de combate: trata-se de propor uma narrativa menos complacente com a dos sonhos estéticos da vanguarda.

Entrar em contato com o livro de Miceli é, por todo o exposto até aqui, abrir-se para um repertório criativo e inovador de análises que procuram, a partir de luz nova, observar fenômenos consagrados de história intelectual. Para além do rigor documental e da prosa erudita do sociólogo, nesse sentido, a aposta comparativa e a análise de trajetórias contribuem para alocar o livro, sem ressalvas nesse momento, num movimento de renovação que é, sintomaticamente, protagonizado por historiadores e sociólogos argentinos como Alejandro Blanco e Carlos Altamirano. Em certo momento da análise de Sur e dos vínculos societários por ela organizados, Miceli aponta que “para desconcerto dos estetas, o anúncio de pianos de cauda é tão revelador quanto a peroração patrioteira de Mallea ou os artifícios literários de Borges” (p. 14). Ilustrando a tese a partir de seu próprio texto, Miceli nos fornece uma chave de leitura interessante para a dedicatória que inaugura o livro, dirigida aos hermanos Alejandro Blanco, Adrián Gorelik, Carlos Altamirano e Jorge Myers: interlocutores de seu projeto intelectual e colaboradores da aproximação comparativa em termos latino-americanos. Desse modo, a opção pela linguagem marcadamente sociológica, o tom combativo de algumas considerações e, principalmente, essa retumbante vinculação que abre o livro, nos parecem tão reveladores quanto a análise minuciosa da documentação e o rigor analítico do autor, dimensões polifônicas que tornam o livro indispensável para qualquer um que esteja interessado, e aberto, aos temas mais candentes da história intelectual latino-americana e, ao mesmo tempo, à sua interface de colaboração disciplinar.

Referências

MICELI, Sergio . Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018, 184p. [ Links ]

Alexandra Tedesco – Doutora pela Universidade Estadual de Campinas/Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História, Programa de Pós-graduação em História, Campinas/SP – Brasil. E-mail: alexandra.tedesco@gmail.com.

A aclamação de D. João VI – o rei e o reino / Revista do IHGB / 2008

Em 2018, comemoraram-se os 200 anos da Aclamação de D. João VI ao trono do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Constituiu-se um fato inédito no processo histórico do Brasil, que, para além de seu caráter simbólico, demonstrou a diferença entre o mundo colonial que começava a ruir e uma nova feição política e econômica que o Reino tomava. Serviu ainda para reforçar a ascendência do Rio de Janeiro sobre o restante do país, assim como o peso político da parte brasileira no interior do império português. Tais questões orientaram as discussões que repensaram tal evento, por meio de um Seminário, realizado pelo IHGB e intitulado A Aclamação de D. João VI no Rio de Janeiro: o Rei e o Reino. Não só se buscou celebrar a data, por meio da discussão proposta por especialistas e por estudiosos do Brasil e de Portugal, mas se pretendeu construir uma memória do acontecimento que trouxesse novas contribuições à historiografia do processo. Investigar práticas políticas e rituais cívicos significa abrir um leque de possibilidades para se debater as relações da História com seu passado, além de vislumbrar as articulações simbólicas do poder, da sociedade e da cultura na formação do Estado Brasileiro e de suas repercussões até os dias atuais.

Por conseguinte, os artigos aqui apresentados compõem um dossiê das reflexões aprofundadas e ampliadas do Seminário. Não se constituem como uma simples comemoração, sem significado para a memória do acontecimento histórico, mas como um balanço dessa memória histórica.

O dossiê é iniciado por texto original de Arno Wehling, que propõe uma análise do horizonte de expectativas no Brasil, entre sua elevação a Reino Unido em 1815 e os acontecimentos que levaram à sua ruptura com Portugal, em 1822, demonstrando ainda o papel da Aclamação de D. João ao longo desse processo. Em seguida, Lucia Guimarães elabora um balanço crítico sobre o reinado americano de D. João VI, procurando identificar suas principais vertentes interpretativas, apontando confrontos e convergências.

Na abordagem da história renovada do político, seguem as contribuições de Lucia Bastos Pereira das Neves e de Maria de Lourdes Viana Lyra. No primeiro trabalho, política e cultura se entrelaçam para se apreender as tensões que se estabeleceram entre as duas partes do Império, desdobramentos da aclamação realizada nas terras do Reino americano. No segundo texto, a autora volta sua atenção para demonstrar o Rei, como defensor do Reino luso, e, depois, como mentor do Reino Unido luso-brasileiro por ele criado. Realça, assim, o alcance da proposta da aclamação do soberano na parte americana do Império como estratégia em defesa da própria unidade da Coroa.

Sem abandonar o viés político, mas acrescido de uma perspectiva da história cultural, cujo principal objetivo é identificar o modo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é constituída, pensada, dada a ler, nas palavras de Roger Chartier, encontramos os trabalhos de Ana Carolina Galante Delmas e de Maria Pace Chiavari. No primeiro texto, Ana Carolina volta-se para a prática do oferecimento de dedicatórias impressas em um Brasil do início dos oitocentos. Naquele momento, as dedicatórias representavam práticas de homenagem, tornando-se símbolo das relações políticas, apoiadas na hierarquia social vigente, e das trocas efetuadas em busca por poder e por influência. Demonstra ainda que a época da aclamação de um soberano, algo inédito nas Américas, foi espaço de consagração para tais homenagens. Maria Pace Chiavari propõe uma análise do papel das arquiteturas efêmeras, especialmente, aquelas projetadas pelos franceses, segundo cânones neoclássicos, como um cenário alegórico que contribuiu para colocar em evidência a cidade do Rio de Janeiro, transformada em capital do Reino. A aclamação de D. João VI foi ainda momento fundamental para essa perspectiva, quando o poder soberano soube explorar o festejo real como forma de reforçar o poder da Coroa.

As hierarquias sociais e práticas de condecorações e de mercês também se fizeram presentes por meio de dois artigos: um, de Camila Borges da Silva, sobre as ordens honoríficas e a sociedade, analisando a nobilitação de negociantes na Corte joanina que direcionavam parte de seu capital econômico com o objetivo de galgar um lugar social e de prestígio naquela sociedade de feição do Antigo Regime; o outro, de António Miguel Trigueiros, examina a criação da Real Ordem da Torre e Espada (1808-1834), que foi criada com o objetivo de ser uma Ordem Honorífica e Militar luso-Brasileira, que perdurou mesmo após o processo de independência do Brasil.

Na parte destinada às Comunicações, em que se divulgam trabalhos expostos nas sessões da CEPHAS / IHGB, a sócia emérita Cybelle de Ipanema traz uma curiosa informação sobre João Manso Pereira, personagem que viveu entre o século XVIII e XIX e que fabricou louça afamada com material da Ilha do Governador, pequeno território do município do Rio de Janeiro.

A seção Documentos apresenta a transcrição de um texto manuscrito com a biografia do médico-botânico Joaquim Monteiro Caminhoá. Tal estudo foi localizado na Coleção Claudio Ganns, guardada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sem indicação de autoria. Nesse documento, encontra-se uma análise sobre a trajetória do cientista que atuou no Império do Brasil. Ele ainda participou ativamente de diversas instituições e sociedades científicas oitocentistas, bem como publicou inúmeros artigos e livros no campo da medicina e da botânica.

Finalizando esse número, há a resenha de Marize Malta – De volta para o futuro… Outras notícias e outros modos de atualizar a Missão Artística Francesa – sobre o livro de Patricia D. Telles, O Cavaleiro Brito e o Conde da Barca: dois diplomatas portugueses e a missão francesa de 1816, publicado em Portugal em 2017. Fugindo de uma história oficial, segundo a resenhista, a autora busca personagens, entendendo-os como peças de um mosaico de relações, e documentos inéditos que trazem novo olhar não só sobre os conhecimentos de intelectuais e de cientistas europeus, mas também sobre os elementos que propiciaram a negociação para a remessa de artistas e de artífices franceses para o Rio de Janeiro.

Aproveitem!

Lucia Maria Bastos P. Neves – Diretora da Revista.


NEVES, Lucia Maria Bastos P. Carta ao leitor. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.180, n.479, p.9-11, jan./abr., 2019. Acesso apenas pelo link original [DR].

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Etnicidade e formação de identidades no mundo de Homero / Hélade / 2019

Há uma identidade étnica em Homero?

“Quem foram os gregos?” é uma pergunta irrespondível. Ainda na Antiguidade não foram poucos os que tentaram respondê-la, e a indagação continuou sendo feita nos séculos seguintes sem que uma conclusão pudesse dar fim a um tema tão longamente examinado. Entre mudanças e permanências, os séculos de história interditam qualquer traço unitário capaz de caracterizar o “ser grego”. Mais do que isso, se considerarmos apenas o mundo das póleis e se confiarmos nos cálculos apresentados por Mogens Herman Hansen [2], existiram pelo menos 1.500 cidades-Estado. De norte a sul, no continente e nas dezenas de ilhas, da Ásia Menor à Península Itálica, a variedade de contatos e particularidades regionais é outro elemento complicador para dar ao problema uma solução que não abra espaço para diversos questionamentos.

A partir do século V a.C., os gregos poderiam persistir com dificuldades para responder quem eram, mas a certeza de quem não eram parecia bem mais clara. A imagem do bárbaro se consolida com o advento da resistência aos persas e é especialmente difundida a partir da pena dos atenienses. Não se trata, certamente, de uma simples percepção das diferenças culturais, mesmo porque a cultura, abordada para além da superfície, desvela não apenas a assunção de que não somos iguais a outras pessoas e grupos, mas que essa diferença produz, é produzida e reproduzida por uma série de implicações que vão muito além da percepção de quem não somos.

A emergência das representações sociais dos bárbaros é francamente tomada como paradigma para pensar as noções de eu e outro a partir do ponto de vista dos gregos. Não sem razão, a consolidação da barbárie se dá no momento em que Atenas não apenas goza de influência política e econômica sem precedentes, abalada apenas com o início da Guerra do Peloponeso (431 a.C.). Entretanto, ainda que o século V a.C. tenha se tornado referencial para os estudos sobre a etnicidade, ele não representa o único momento em que o outro se tornou objeto de reflexão para a definição do ser grego. A documentação anterior ao Período Clássico é absolutamente rica em referências que ajudam a pensar esse problema, e a Ilíada e a Odisseia representam certamente um dos maiores (ou o maior, arrisco dizer) acervo de questões que podem ser exploradas para refletir sobre a história das alteridades nesse “mundo grego”.

Os artigos que compõem esse dossiê exploram o tema da etnicidade e / ou da formação das identidades a partir da Ilíada e da Odisseia. As escolhas particulares dão ao leitor um indicativo da amplitude do problema e da riqueza de um debate pautado por várias convergências e outras tantas divergências. Portanto, os trabalhos que compõem esse número da Hélade são marcados pela interdisciplinaridade, pela pluralidade de ideias, pela variedade de abordagens e pela diversidade teórico-metodológica. No entanto, nada disso interditou a incrível coesão construída em torno do objetivo geral que motivou a organização do volume.

Na abertura do dossiê, busco analisar os intensos debates que opõem estudiosos em torno da relação entre Homero e o ideário Pan-helênico. O artigo intitulado História e Etnicidade: Homero à vizinhança do Pan-helenismo, após uma breve exposição do conceito de etnicidade e sua particular utilização no âmbito da História da Grécia Antiga, discute algumas divergências bastante frequentes quando se busca refletir sobre o lugar que a Ilíada e a Odisseia ocuparam no marco da formação das identidades helênicas. Observo que, por um lado, os épicos podem ser entendidos como uma narrativa capaz de expressar uma noção de helenicidade, dialogando com as transformações que caracterizaram a formação do mundo Pan-helênico; por outro lado, diversos analistas, muitas vezes em evidente discordância, tendem a situá-los no limite que distingue as sociedades pré-helênicas daquelas que vieram a se formar no decurso do Período Arcaico.

No segundo artigo, intitulado Los comienzos de la identidad colectiva helênica, Emílio Crespo dedica sua atenção à Ilíada com vistas a reconhecer em seus versos, particularmente na célebre oposição entre aqueus e troianos, os primeiros indícios de uma identidade coletiva helênica. O autor parte do pressuposto de que as identidades coletivas exigem longo período de construção, e que a experiência do Período Clássico pode ser investigada como um processo de criação que remonta aos poemas homéricos. Assim, através da análise dos nomes coletivos, antropônimos, epítetos, topônimos e outros indicativos, Crespo defende que o início da construção identitária helênica é perceptível na segunda metade do século VIII a.C., época provável da composição da Ilíada, ainda que em bases culturais diferentes daquelas em que repousou o helenismo do século IV a.C..

O terceiro artigo, Em tempo de guerra e de confronto a noção do ‘outro’ na Ilíada, também se dedica a essa temática. Maria de Fátima Silva reconhece na Ilíada a referência mais antiga da oposição entre europeus e asiáticos que perdurou no Período Clássico. Para a autora, a noção de ‘outro’ na Ilíada já está assente em um conjunto de critérios que viriam a ser retomados com outro fôlego, na época clássica, para a definição de quadro equivalente. A análise das características dessas alteridades é feita através das representações da cidade de Príamo, seu povo e seus aliados. A autora demonstra que Ílion não apenas possui características geográficas, topográficas e urbanísticas peculiares, mas que estas peculiaridades são decisivas para a compreensão do comportamento dos troianos. Desta forma, os requintes orientais, as joias do palácio e o luxo da vida cotidiana são características marcadamente presentes no mundo asiático e associadas aos troianos, ainda que seja necessário analisá-las cautelosamente porque muitas delas também se fazem presente na vida dos gregos.

Obviamente, e ainda com base na Ilíada, é preciso reconhecer que o universo de referências de que Homero se utiliza para a construção de seus personagens é bastante amplo. Ainda que a maioria deles – talvez todos – faça parte de um menos grupo social, é certo que as particularidades das caracterizações permitem aprofundar as análises e reconhecer formas bastante peculiares de tratamento das diferenças étnicas. No quarto capítulo, O discurso étnico acerca dos troianos na Ilíada: um estudo de caso de Páris-Alexandre, Renata Cardoso de Sousa explora precisamente as representações do príncipe troiano que desencadeou o conflito em Tróia após raptar Helena. Através de epítetos, qualificativos a ele atribuídos, discursos enunciados, comportamento em batalha e demais símbolos diacríticos utilizados na formulação narrativa de seu ethos heroico, a autora procura identificá-lo como uma das sínteses que distinguem aqueus e troianos.

O tema do discurso etnográfico é abordado no quinto artigo, assinado por Graciela C. Zecchin de Fasano. Em Egipto, Fenicia, Creta: tres espacios-clave para el discurso etnográfico en Odisea, a autora entende que o vocábulo ethnos, a despeito da amplitude de grupos que tendia a abarcar, estabelece a necessidade de se compreender certa similaridade e convivência temporais. Partido desse pressuposto, observa-se que a Odisseia oferece uma representação particular dos territórios pelos quais seu protagonista transita, convertendo-os em um excelente instrumento de estudo e interpretação como espaços de um relato etnográfico, cuja tipologia discursiva sugere problemáticas ficcionais absolutamente originais. Nesse sentido, o tema dos olhares sobre o estrangeiro é pensado a partir de três espaços-chave, quais sejam, Egito, Fenícia e Creta. A variação das caracterizações sugere uma diversidade ímpar de olhares, envoltos pela atmosfera do exotismo, dos perigos, dos maus hábitos e mesmo de juízos de valor absolutamente estratégicos para pensar a dinâmica das alteridades e da formação das identidades.

Em seguida, Christian Werner igualmente se aproxima da questão das etnografias a partir do exame dos discursos de Menelau e de Homero no canto IV da Odisseia, que mencionam a viagem do herói ao norte da África, e da forma como Homero, de um lado, introduz a narrativa dos feácios (VI) e, de outro, Odisseu, o episódio dos lotófagos e o dos ciclopes (IX). Em Discurso etnográfico e as vozes narrativas na Odisseia, o autor explora nesse poema épico a tradição dos nostoi (“mitos de retorno”) e analisa alguns elementos e funções possíveis do discurso etnográfico, que, colocado de lado na Ilíada, embora não componha a matéria central da Odisseia, tornou-se uma de suas marcas distintivas no processo histórico da recepção do poema.

O sétimo trabalho, intitulado Os Residentes da Via Negativa: os cíclopes de Homero e os Tupinambás, se dedica a um exercício comparativo que relaciona as etnografias antigas e modernas a partir de um traço de semelhança que Ioannis Petropoulos reconhece como marca distintiva de tais discursos: o fato de se desenvolverem a partir da negação e da antítese. Nesse sentido, a monstruosidade dos Cíclopes é entendida como o símbolo de um mundo pré- -civilizado que se mostra reticente em relação aos pressupostos básicos da vida em sociedade, como o comércio, a agricultura, as instituições cívicas e práticas religiosas compartilhadas. Essas formações discursivas a respeito do “outro” pré-civilizado também são discerníveis nas etnografias do século XVI acerca dos nativos do “Novo Mundo”, particularmente os indígenas considerados “canibais” que ocupavam as regiões costeiras do Brasil da época. Petropoulos não apenas reconhece características comuns em discursos distintos, mas busca estabelecer relações e contrastes entre eles.

O episódio de Polifemo representa, no âmbito das epopeias homéricas, o epítome do estranhamento em relação aos costumes cultivados pelas aristocracias que os poetas cantavam. No artigo Viagens e etnicidade em Homero: Odisseu e o Cíclope, de Fábio de Souza Lessa, analisa esse discurso que irrompeu os limites do recitato aédico e foi inúmeras vezes recuperado ao longo da História para discorrer sobre os costumes insólitos dos estrangeiros. O estudo do relato de Odisseu no Canto IX da Odisseia, isto é, da descrição de seu contato com o Cíclope Polifemo, converte-se no fio condutor para a reflexão acerca das construções gregas sobre os nós e os outros. O autor observa que o Ciclope se constituirá em alteridade máxima frente aos helenos. Através do gigante de um único olho na fronte, os helenos revelavam, por oposição, os traços fundamentais de sua cultura.

Decerto que a distinção entre o eu e o outro é um dos fundamentos para a construção das identidades e para a consolidação das fronteiras étnicas, mas ainda que a alteridade represente, tanto por analogia quanto por contraste, um topos privilegiado de observação, é inegável que os poemas homéricos desvelam para os pesquisadores um incrível esforço de reflexão sobre o si mesmo, quiçá apresentando uma profunda dimensão instrutiva, pedagógica, assente na vigilância atenta das condutas esperadas dos membros do grupo. É precisamente essa preocupação que orienta as reflexões que María Cecilia Colombani nos apresenta no artigo Telémaco y la experiencia humana: tomar la palabra en el nombre del padre. Una lectura política del inicio de Odisea. De um ponto de vista antropológico, a autora analisa as transformações subjetivas por que passa o jovem filho de Odisseu e o processo de amadurecimento que experimenta ao longo do épico, em particular em função da ação pedagógica e orientadora de Atena. Desta forma, a formação da identidade de Telêmaco é duplamente assinalada no transcurso de suas relações com os homens e na fronteira que distingue os mortais dos deuses imortais.

O décimo artigo, intitulado O contexto funerário homérico: Aquiles e suas ações más (Kakà Érga), de Bruna Moraes da Silva, também se dedica ao problema da vigilância acerca dos próprios atos e sua relação com a formação das identidades. Nesse caso, porém, o valor paidêutico é pensado a partir dos códigos de conduta de Aquiles, partindo do pressuposto de que Homero não punha em evidência apenas as ações consideradas dignas de um aristoí, mas também exemplos a não serem seguidos, isto é, as transgressões realizadas até mesmo por personagens tidos como grandes heróis. À vista disso, a autora propõe analisar a maneira pela qual os aedos expuseram em suas obras, especialmente na Ilíada, as normas a serem seguidas pelos vivos diante dos mortos, dando destaque à análise das transgressões notáveis a partir da ruptura com as regras estabelecidas em um mesmo meio social.

É preciso agradecer os autores que puderam participar desse projeto e investiram os resultados de sua pesquisa para compor este volume. Acredito que a qualidade inequívoca dos trabalhos fará com que o dossiê seja recebido com entusiasmo por todos aqueles que estudam as controvérsias inúmeras legadas pelo aedo cego de Quios, por quem se interessa pelo tema da etnicidade e da formação das identidades e, num sentido mais amplo, por todos que reconhecem nos gregos antigos um espaço privilegiado para a reflexão de nossa história e vida em sociedade.

Notas

2. HANSEN, M. Polis – an introduction to the ancient greek city-state. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1.

Alexandre Santos de Moraes – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. Membro do Núcleo de Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade (NEREIDA / UFF) e colaborador do Laboratório de História Antiga (LHIA / UFRJ).


MORAES, Alexandre Santos de. Editorial. Hélade. Rio de Janeiro, v.,5, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Engaging with the politics of water governance | Margreet Zwarteveen, Jeltsje S. Kemerink-Seuoum e Anna Wesselink

O artigo Engaging with the politics of water governance, que pode ser traduzido em “Engajando-se com a política de governança da água”, visa aprimorar o entendimento do termo “governança da água” e consequentemente sua utilização na elaboração de políticas públicas da água – o mais básico dos direitos universais. Os autores, membros do grupo “Water Governance” do IHE Delft Institute for Water Education, acreditam que a governança da água é uma questão central para a tomada de decisões políticas. As quais deveriam levar em consideração a capacitação e a qualificação dos tomadores de decisões, além de serem baseadas no tipo de futuro social que tais escolhas implicam. Os autores contextualizam que a política hídrica prevalecente e sua governança são normalmente pautadas em análises quantitativas e valores de mercado, onde os critérios de equidade e justiça são secundarizados, favorecendo alguns usos e usuários em detrimento de outros. Não obstante, a água é relacionada ao seu custo, rendimentos e riscos por instituições dominantes e estruturas político-econômicas que não raramente, são representadas por classe, religião, gênero e etnia específicos. Neste trabalho foram identificadas três vertentes cujas análises auxiliam no polimento do significado da governança de água: (1) a distribuição física da água, (2) a distribuição de voz e a autoridade e (3) a distribuição de conhecimento e perícia. Essas vertentes não só colocam em primeiro plano questões de equidade, como evidenciam os autores, mas também tangenciam o conceito do acesso à água potável como um direito humano e universal, essencial à vida, finito e dinâmico, sobre o qual estamos interessadas em abordar nesta resenha. Leia Mais

Como se revoltar? | Patrick Boucheron

Em seu conhecido Sobre o conceito da história2, Walter Benjamin alertava para os riscos de uma percepção teleológica do tempo histórico — para ele, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’” (BENJAMIN, 1987, p. 224). Nesse sentido, o afastamento do tempo presente carrega consigo, em geral, a dificuldade progressiva de exercitar a alteridade — quanto mais nos distanciamos daquilo que nos é familiar, maior é o movimento necessário para amenizar o estranhamento. Pensar a Idade Média, assim, exige um deslocamento por vezes impossível, dado que um imaginário escolar, impreciso e tortuoso, já há tempos coloniza nossas tentativas de aproximação ao Medievo.

A partir disso, num esforço de arejar a relação do contemporâneo com o medieval, o historiador francês Patrick Boucheron3, no ensaio-conferência Como se revoltar?4, publicado em 2016 na França e lançado em 2018 no Brasil, caminha no sentido de romper com esse imaginário — se não falso, ao menos incompleto — da dinâmica social medieval. À quase-abstração necessária para se pensar a Idade Média, Boucheron opõe a universalidade da experiência da juventude, a qual é indissociável, ele diz, da experiência da revolta. Leia Mais

Raza y política en Hispanoamérica – PÉREZ VEJO; YANKELEVICH (RHYG)

PÉREZ VEJO, Tomás; YANKELEVICH, Pablo (coords.). Raza y política en Hispanoamérica. Ciudad de México: Iberoamericana, El Colegio de México y Bonilla Artiga Editores, 2018 (1ª edición 2017). 388p. Resenha de: ARRE MARFULL, Montserrat. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.41, p.199-205, 2019.

El conjunto de trabajos presentados en esta compilación realizada por Tomás Pérez Vejo y Pablo Yankelevich, que en total suman diez, incluyendo dos capítulos de los compiladores, es un apronte serio y actualizado del ya muy referido –aunque nunca agotado– tema de la construcción nacional en las diversas repúblicas americanas. El elemento novedoso en este caso es la sistemática inserción de la discusión sobre la “raza” que guía cada uno de estos trabajos, en un esfuerzo por hacer converger los idearios de identidad nacional que emergieron en América tras las independencias y las conflictivas relaciones político-sociales evidenciadas en estos espacios, a las que, con cada vez más fuerza y honestidad, definimos como racializadas .

Para los compiladores, proponer el análisis de estas dinámicas nacio- raciales en los siglos XIX y XX aparece como necesario ya que, según indican, “no es que la raza formase parte de la política, sino que era el fundamento de la política misma” (p.12). Partiendo, así, de esta premisa, los diez autores convocados ensayan y demuestran cómo es que las ideologías racialistas que se gestaron en América desde la conquista o desde el siglo XVIII ilustrado, calaron profundamente y configuraron de manera compleja las propuestas romántico-nacionalistas, liberales y cientificistas de los siglos XIX y XX –a lo menos–, hasta mediados del siglo pasado. Leia Mais

Homo Deus: Breve historia del mañana – HARARI (RHYG)

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: Breve historia del mañana. Barcelona: Editorial Debate, 2017. 496p. Resenha de: SÁNCHEZ FUENTES, Roberto. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.40, p.159-164, 2019.

Cada cierto tiempo surgen intelectuales que ponen en la discusión pública temáticas de gran relevancia para las élites políticas y empresariales, a la vez que generan cierta suspicacia en las cúspides académicas: hacen que se sientan convocadas transversalmente a debatir y reflexionar sobre el porvenir del planeta y la humanidad que lo habita. Es en este contexto que el profesor Yuval Noah Harari pasó de ser un desconocido académico de la Universidad Hebrea de Jerusalén a convertirse en una especie de oráculo o profeta del mañana. Diversos medios lo posicionan como uno de los intelectuales de moda, un rockstar de las famosas charlas TED bajo el lema “ideas que vale la pena difundir”, al punto que sus recientes libros son recomendados por el expresidente de Estados Unidos, Barack Obama, el empresario fundador de Microsoft, Bill Gates, y el informático creador de Facebook, Mark Zuckerberg.

Un tipo de gurú al que líderes mundiales, como Angela Merkel y Emmanuel Macron, desean consultar y con el cual intercambiar ideas. Hoy por hoy lleva vendidos cerca de quince millones de ejemplares de sus ensayos en todo el mundo. Los más famosos son una trilogía sobre la historia de la humanidad contada sin convencionalismos, en la que encontramos Sapiens, de animales a dioses (Editorial Debate, 2014), el que triunfó primero en Israel en 2011 y luego en todo el mundo, y se convirtió en un best seller internacional tras ser publicado en inglés el año 2014. Actualmente ha sido traducido a unos cincuenta idiomas. Este éxito vino seguido por Homo Deus, breve historia del mañana , libro abordado por la presente reseña. Y, más recientemente, 21 Lecciones para el siglo XXI (Editorial Debate, 2018), en el que reflexiona sobre el mundo actual y realiza advertencias para este siglo. Leia Mais

Discursos desde la catástrofe. Prensa, solidaridad y urgencia en Chile, 1906-2010 – ONETTO (RHYG)

ONETTO, Mauricio. Discursos desde la catástrofe. Prensa, solidaridad y urgencia en Chile, 1906-2010. Santiago: Acto Editores, 2018.p. Resenha de: MOYA ROJAS, Pablo. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.40, p.165-169, 2019.

Los terremotos y sus consecuencias en el mundo y en Chile han sido trabajados en diferentes libros y artículos como Earthquakes: science and society (1999) y “Seismicity anomalies of M 5.0 earthquakes in Chile during 1964-2015” (2018). El libro que reseñamos se suma a la bibliografía que aborda esta temática, aportando con fuentes que describen los más significativos terremotos del último siglo; pero además presenta una novedosa propuesta, que contraviene las ideas de autores como Jorge Larraín en su libro Identidad Chilena (2001) y Rolando Mellafe en su artículo “El acontecer infausto en el carácter chileno: una proposición de historia de las mentalidades” (1980), en cuanto a que el fatalismo, en este caso materializado a través de los terremotos y la solidaridad, son rasgos que identifican a todo chileno.

En este libro Onetto cuestiona esta idea que ha sido transmitida en el tiempo, planteando que lejos de existir una identidad chilena, más bien lo que se da es una identificación a causa de la repetición de un acontecimiento, en este caso lo que él denomina como “catástrofes”, ya que la identidad se forma a través de otros componentes, que para el autor del libro que reseñamos serían la materialidad derechos comunes, prácticas sociales igualitarias, o el respeto mutuo entre los conciudadanos. A partir de lo anterior, el fundamento central del libro es que se debe rechazar la idea identitaria creada a partir de las catástrofes, debido a que este discurso está dirigido en parte por los medios de comunicación, buscando una identificación positiva y de exclusividad para aquella historia y pueblo que la protagoniza. Leia Mais

Clases dominantes y desarrollo desigual. Chile entre 1830 y 2010 – FISCHER (RHYG)

FISCHER, Karin. Clases dominantes y desarrollo desigual. Chile entre 1830 y 2010. Santiago: Ediciones Alberto Hurtado, 2017. 213p. Resenha de: BUSTAMANTE OLGUÍN, Fabián. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.39, p.211-215, 2019.

Chile es probablemente uno de los países con mayor libertad económica en el mundo, con un sistema de libre mercado que ha permitido un inédito poderío de los grandes grupos económicos, sin precedentes en la historia de Chile. Es más: se podría destacar que nuestro país sería nada menos que la “Corea del Norte del capitalismo”, según señalaba un fallecido periodista, apuntando a la radicalidad de este nuevo fundamentalismo, que es el neoliberalismo.1

Sin embargo, en el nombre de la apologética “libertad de emprender actividades económicas”, estas elites han arrebatado la oportunidad de ganancia a miles de chilenos, lo que ha llevado a diversos sectores de la sociedad –a partir del 2011 con las protestas estudiantiles–, a criticar el modelo existente ante las evidentes desigualdades sociales producto de la excesiva concentración de la riqueza en un mercado pequeño como es el chileno. Leia Mais

Religiões e religiosidades no nordeste brasileiro: permanências e rupturas / Ponta de Lança/2019

A composição dos textos aqui constituídos parte dos pressupostos que as religiões e religiosidades são definidas pela transmissão e perpetuação da memória de um acontecimento fundador original através de uma “linhagem religiosa” ou “linha de crença”. Isso implica mobilizações de memórias coletivas nas quais o passado fica sendo simbolicamente como um todo imutável e situado “fora do tempo” no qual fazer memória desse passado dá sentido ao presente e ao futuro. Ao contrário da suposta continuidade da tradição religiosa, as instituições religiosas e seus respectivos agentes mascaram suas mudanças e rupturas (HERVIU-LÉGER,2005). Leia Mais

“Para que serve a História? ” / Ponta de Lança/2019

A pergunta que dá título ao dossiê – “Para que serve a História?” – resume bem o quadro geral das preocupações que marcam as reflexões epistemológicas das ciências humanas e sociais na última década. Nesse período, historiadores e cientistas sociais passaram a questionar seu ofício não apenas do ponto de vista teórico-metodológico, mas também a partir das perguntas fundamentais acerca dos pressupostos que sustentam e motivam seus discursos.

Impulsionados por uma espécie de reação ao sentimento de “crise da história”, isto é, de crise da capacidade de conferir uma explicação e um sentido coletivamente aceitos para as diferentes experiências sociais, os historiadores retomaram o questionamento sobre quais são os critérios que marcam a correção das análises científicas, quais são os valores que sustentam a investigação histórica, o que está em jogo para eles e seus pares quando escrevem e que revelam o significado mais substantivo e a destinação final do seu ofício. Leia Mais

Militantes de la izquierda latinoamericana en México, 1920-1934 | Sebastián Mir Rivera

Una multiplicidad de historias se traman de manera sugerente en el primer libro del historiador Sebastián Rivera Mir. Volumen amplio y denso, constata el trabajo minucioso de quien se apuntala como una referencia obligada en el campo de la historia social y cultural. Esta primera obra, de hecho, presenta a un autor que conjuga la obsesión por la precisión con la claridad de la exposición. Libro erudito, de exposición fluida, presenta, sin embargo, un conjunto de anudamientos que difícilmente encontraremos en otros trabajos, pues en el se condensa tanto la historia política como los vaivenes de quienes vivieron la situación del exilio, ambas dimensiones enmarcadas en el conjunto de transformaciones sociales que ocurrían en el México posrevolucionario. Estas perspectivas se encuentran cruzadas, dando como resultado un escenario donde habitan por igual el anti-imperialismo, el comunismo y variadas formas del latinoamericanismo. Leia Mais

Estudos de gênero e sexualidade | Signum – Revista da ABREM | 2019

O Dossiê Estudos de Gênero e Sexualidade da Signum – Revista da ABREM, que passamos a apresentar, vem à luz em um momento crítico da história mundial, por conta da pandemia de covid-19 e da história brasileira, devido às ameaças que a democracia vem sofrendo constantemente, pelo menos desde 2018. Tornou-se comum ouvirmos alusões à Idade Média como período nefasto no qual os costumes impunham às mulheres lugar secundário em todos os âmbitos da vida coletiva, comparando-se esses costumes aos que o grupo agora no poder pretende impor. É à essa concepção de Idade Média que se referem também aqueles que comparam o momento político atual ao que consideram como trevas políticas do autoritarismo e do governo de poucos, arbitrário e cruel.

De acordo com pesquisa realizada pela Dados – Revista de Ciências Sociais editada pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 1 a submissão de artigos científicos por mulheres caiu bruscamente no primeiro trimestre de 2020. Entre 2016 e 2019, a média de artigos escritos por mulheres era de 40%. Até maio, esse percentual caiu para 28%. A explicação para isso está, sobretudo para esse momento de isolamento social, na divisão desigual do trabalho doméstico. Por isso entendemos que esse dossiê é publicado em momento dramático e triste, porém oportuno para refletirmos sobre questões de gênero hoje, ponto do qual partimos para buscar compreender as sociedades medievais. Leia Mais

Sobre margens, diversidades e ensino na/da Idade Média | Signum – Revista da ABREM | 2019

Originalmente, os textos deste Dossiê Margens, Diversidades, Ensino foram expostos em conferências e em mesas temáticas que compuseram partes da programação do XIII Encontro Internacional de Estudos Medievais (XIII EIEM), realizado nas dependências do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (ILUFBA), em parceria com a Faculdade de História (FFCH-UFBA), entre 02 e 04 de outubro de 2019 (http://www.xiiieiem.letras.ufba.br/). Os temas do evento foram articulados nas primeiras reuniões da comissão organizadora do XIII EIEM.1 Questionávamo-nos à altura o que, por um lado, o Evento, e, por outro, a Instituição e a cidade de Salvador, como uma das mais antigas do país e sua capital por mais de dois séculos, poderiam oferecer-se mutuamente ao trazê-lo de volta à UFBA, passados quase duas décadas da realização do V EIEM, em 2003.2 A resposta não tardou a chegar.

Frutos da expansão marítima europeia, gestada ao longo do s. XV, o “achamento” do Brasil e a fundação da cidade de São Salvador da Baía de Todos os Santos, em 1549, são testemunhos do alargamento das margens geográficas – mas também políticas, religiosas, linguísticas e culturais – vivido pela sociedade medieval europeia. Idade Média que se alongava, como ensinou Jacques Le Goff, geográfica e temporalmente pelos “novos mundos”, promovendo a expansão de práticas sociais próprias da Europa medieval para outros espaços. Práticas sociais que são perceptíveis em diversos aspectos da vida da América portuguesa. Leia Mais

Outras Fronteiras. Cuiabá, v.6, n.1, 2019.

Formas de governabilidade e dominação durante a Antiguidade e a Idade Média

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

Entrevistas

Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil | Thiago Nunes Soares

RC Destaque post 2 11 Ditadura civil-militar

Lançado em 2018, pela Editora Appris, o livro Gritam os muros: pichações e ditadura civil-militar no Brasil, do historiador Thiago Nunes Soares, se propõe a apresentar as pichações produzidas nesse período como um dos instrumentos de resistência utilizados pelos militantes das esquerdas no país. Temática ainda pouco discutida dentro da militância nos anos de chumbo, as pichações surgiram como um canal de mobilização e arregimentação política, sendo uma das formas de atuação da esquerda jovem do país na luta pela democracia e direito ao voto.  A obra de Soares (2018) traz uma importante contribuição às historiografias local e nacional sobre o tema e o período.

O autor utilizou uma vasta documentação para desenvolver sua análise. Trabalhou com dossiês dos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS- PE), com periódicos, tanto da grande imprensa quanto dos veículos alternativos, além de entrevistas de história oral. Nesse sentido, as memórias foram analisadas como um mosaico para a composição da sua pesquisa, cruzando-as com outras fontes, problematizando-as e levando em consideração as suas especificidades. Assim, foi possível tecer um panorama elucidativo acerca das experiências políticas dos autores e autoras de pichações e dos embates em torno das lutas em prol das liberdades democráticas.  Dessa forma, Soares (2018) analisa vestígios produzidos de forma clandestina nos muros da cidade, de 1979 a 1985, em um momento em que os seus autores eram alvo de intensa vigilância e repressão policial. Leia Mais

Materializando a História: o Passado Humano através da Cultura Material / Revista Mosaico / 2019

PARTE I – A HISTÓRIA DO PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA MATERIALIDADE CULTURAL

A História se manifesta nas sociedades humanas, principalmente, na forma de documentos escritos, de representações imagéticas e como oralidades interpessoais ou coletivas. Como um produto da ação humana seus fatos marcam gerações posteriores, desde tempos imemoriais até o nosso contemporâneo. Nesta longa trajetória, nem sempre os suportes físicos de determinados eventos perduram, e a história se limita a traços do que foi, ou do que aconteceu. Portanto, nesse dossiê focamos no aspecto mais duradouro destes registros temporais e humanos: o material.

Para a história a materialidade é um testemunho que concretiza um fato, ou seja, a parte documental de um evento do passado que pode ficar guardado em um arquivo até ser recuperado no presente. Muitas vezes separada da história, a arqueologia por muito tempo foi vista como uma forma ilustrativa de investigação do ocorrido e que contribui à medida que propicia “novas” leituras sobre o que já se sabe, seja de uma forma confirmatória, complementar ou contraditória. Na visão tecnicista, a arqueologia também foi considerada ora como ciência auxiliar ora como provedora de um saber independente, mas que se apropria dos aspectos individuais, ou dos coletivos sociais na sua forma materializada de cultura. A arqueologia por sua vez, representa o acesso a um tempo remoto ou despercebido que não é possível por outro tipo de “documento”, tem acesso às materialidades totalmente desvinculadas das memórias vivas.

A arqueologia, possibilita, igualmente, o alcance a particularidades da alteridade humana independente do contexto temporal em que seu objeto de estudo está vinculado.

Concebemos a materialidade enquanto elemento de subjetividade humana que não se manifesta somente nas categorias resultantes das intervenções humanas, expressa por exemplo, naqueles objetos que estão inseridos em cadeias de gestos, compartilhando comportamentos técnicos advindos de tradições culturais (GENESTE, 1991; LEROI-GOURHAN, 1964). Numa perspectiva mais ampla, a materialidade também se constitui por componentes físicos não necessariamente modificados por comportamentos antrópicos, mas que estão ou estiveram em interação com os grupos sociais.

Se buscarmos uma correlação entre materialidade e cultura material, vemos que a primeira é mais ampla, compreendendo também o sentido dos elementos que não foram, pelo menos num primeiro momento, culturalmente determinados. A segunda é constituída por símbolos com potencial para agenciar o modo pelo qual grupos humanos, ao longo dos tempos organizam e avocam a própria vida social.

Os estudos de culturas materiais na arqueologia e história têm se modificado ao longo do tempo, acompanhando as mudanças de paradigmas de suas áreas. No Brasil, na década de 1980, Meneses (1983) em sua obra clássica “A cultura material no estudo das sociedades antigas” alertava sobre a importância da cultura material como fonte para a historiografia brasileira. Trazendo como exemplo os estudos clássicos de Grécia e Roma, onde demonstra primeiro a primazia da mentalidade sobre a materialidade e depois o uso meramente ilustrativo ou didático da segunda. O argumento principal da tomada de posição dos historiadores para com a cultura material era de que estas constituíam apenas uma parcela aleatória e redundante do fenômeno histórico. Porém, como destaca o autor, estes mesmos argumentos não são também suscetíveis aos documentos escritos, a principal fonte de informação dos historiadores?

Por outro lado, a cultura material era considerada mais um valor real do que representativo, e que ao contrário do texto foca-se no cotidiano social mundano, e não na excepcionalidade do seu registro.

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas animadas (uma sebe, um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida em que ele é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações, sinalizações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma cerimônia litúrgica) (MENESES, 1983, p. 112).

Sobre essa questão, trazemos também as considerações de Rede (2012) que pondera adequadamente que a suposta superioridade da cultura material e a sua não intermediação ideológica deve ser considerada à luz dos contextos em que os objetos se encontram; ressaltando os seus limites, presentes igualmente em qualquer fonte histórica.

Outro autor que também discute o distanciamento entre o estudo da cultura material e a sociedade brasileira é Funari (1992 / 1993) que ao tratar o tema da educação apresenta a materialidade como fonte de aprendizado crítico sobre as realidades sociais. Entretanto, conforme destaque do autor, o “fazer” arqueológico também sempre esteve sujeito ao seu tempo e, no Brasil às suas políticas. Como legado a arqueologia brasileira de certos períodos favoreceu muito mais o status quo dominante, do que a consciência e autorreflexão, seja dentro ou fora das instituições oficiais.

O quadro de Pedro Américo representando D. Pedro e seu séquito no momento da chamada “Proclamação da Independência”, montados em cavalos e não em mulas, como era o caso (Zanettini 1991:5), consiste num falseamento que não deveria ser escondido do grande público, mas, ao contrário, explicitado com a comparação com evidências arqueológicas relacionadas tanto ao séquito imperial como à vida do povo comum à época. Pobres, nativos e escravos, a grande maioria excluída desse passado oficial, não deveriam ser deixados de lado… (FUNARI, 1992 / 1993, p. 23).

Azevedo Neto e Souza (2010) reforçam as particularidades da cultura material, destacando sua idoneidade e pluralidade, no sentido de tratar sobre diferentes contextos sociais, alcançando não somente práticas e comportamentos de grupos dominantes, como também possibilitando dar “vozes” às minorias étnicas e demais grupos subalternos, também protagonistas da história do Brasil. Como um dos primeiros estudos situacionais, nesta perspectiva, destacam-se as pesquisas sobre os Quilombos no Brasil, iniciados na década de 1980 com Magalhães e Funari (COSTA, 2010).

Portanto, ao ocupar-se do estudo das práticas cotidianas, a arqueologia, por meio das evidências materiais, desafia os artifícios utilizados pela classe dominante para mascarar as relações de poder, na medida em que oferece aos grupos subalternos e explorados o resgate de seu passado arqueológico para estabelecer uma história da resistência em oposição a uma história da dominação (AZEVEDO NETTO; SOUZA, 2010, p. 70).

Entretanto, Lefebvre (1991) percebe a diferença tênue entre o físico e o mental, seja na forma de uma impressão mental da realidade ou na sua apreensão pela experiencia sensorial. Considera a falsa dicotomia entre o material e o seu aspecto imaterial, construída a partir da lógica ocidental, para enaltecer a superação humana da natureza. Estamos de acordo com o referido autor e ampliamos essa questão, baseando-nos em Tilley (2008) que entende que as expressões tangíveis e intangíveis embora sejam diferentes, não são antagônicas e que, numa relação dialética, se fundem numa expressão cultural mais ampla.

Sem a pretensão de apresentar um contexto temporal denso sobre os caminhos percorridos pelos estudos de cultura material em arqueologia e história ao longo do tempo, selecionamos algumas abordagens consideradas pertinentes, buscando um diálogo entre elas.

A MATERIALIDADE NA HISTÓRIA

Como uma das primeiras experiências do protagonismo material na história, temos o Materialismo Histórico elaborado por Marx e Engels já no final do século XIX. Como metodologia de análise historiográfica que vê na trajetória humana uma relação de expropriação e apropriação da materialidade por diversos segmentos sociais. Nessa perspectiva, a cultura material também se apresenta como uma consequência do fazer humano inconsciente, e que segundo Marx e Engels “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2001, p. 20).

Esta abordagem economicista com orientação materialista na história ficou adormecida até o advento da Escola de Annales na década de 1920. No entanto, nuances desse movimento extrapolam a França, onde na Alemanha, por exemplo, os estudos de cultura material, de alguma forma, se mantinham “vivos”:

Em 1919, em plena guerra civil, portanto, Lênin assina o decreto que institui a Academia de História da Cultura Material da URSS. Nesse acontecimento está inscrito o essencial dos fatos e das conotações que concernem à noção de cultura material: sua emergência tardia, sua evidente colusão com o materialismo histórico e a importância que lhe atribuem os marxistas, seu aparecimento num país socialista, suas relações privilegiadas com a história (PESEZ, 1990, p. 177).

Os Annales surgem como uma ruptura crítica e de renovação do fazer historiográfico positivista ou tradicional, que entre outras coisas, adiciona novas fontes ao fazer historiográfico, como a cultura material. Com uma abordagem interdisciplinar também busca em outras ciências, como a arqueologia, um fundamento de discussão, que mais tarde, nas últimas décadas do século XX, vai ser ampliada pela própria Nova História e Nova História Cultural ao criticar a oficialidade dos documentos e na importância dada à história “total”. No entanto, essa proposição à materialização tardou a ser efetivamente concretizada na história, resultante do forte enraizamento do pensamento ocidental, marcado pelo dualismo, material (técnica) e imaterial (ideias) (CRESWELL, 1989).

Para Bloch (2002), outro importante expoente dos Annales, a cultura material se explica por si, não precisa ser interpretada, é o fato histórico de forma nua e crua. A expressiva massa de informação não-escrita se coloca diante da observação histórica, como parte de um dado que não mais se repetirá. Porém, não totalmente inacessível, pois a pesquisa pode revelar formas de compreensão até então não conhecidas. E portanto, a cultura material como dado histórico é considerada sempre atual.

Como um elemento estrutural da história, a cultura material, se encaixa também no que Braudel (1965) chama de história das “longas durações” que junto com outros elementos “imóveis” como a própria natureza, acabam por formar verdadeiros modelos atemporais do comportamento humano. Quase em um apelo matemático, Braudel relaciona o imutável como a fisicalidade ou a estruturação da própria história, que transfere o social para o científico. Da mesma forma, a cultura material é tida como o “andar de baixo da casa”, onde no nível acima é construído o econômico.

Arqueologia e história ao trabalharem, ainda que não exclusivamente, com a história de “longa duração”, tem dentre seus objetivos, a busca da materialidade para medir o tempo não como um fim, mas como meio. Assim, a partir do pensamento ocidental, tradicional, tal medição significa o controle dos indivíduos sobre a natureza, que se concretiza na geração dos calendários que, a exemplo de regras e leis, acumulam e transferem poder; de outro, pode-se considerá-la a partir da perspectiva de agência material, considerando que as coisas, incluindo o tempo, também exercem agência sobre a natureza, assim como sobre o comportamento humano.

Esse interesse pela medição do tempo perpassa por diversos momentos da história humana, começando em tempos pretéritos com manifestações rupestres (CAMPOS, 2009) e, de forma mais detalhada Le Goff (1990) relaciona as clepsidras, ampulhetas, relógios de sol, e depois, sendo aperfeiçoados com relógios de torre, pêndulos, relógios de pulso, e cronômetros.

Outro protagonismo que a cultura material adquire para a historiografia foi com a Micro História, proposta na década de 1980. Objetivando o particular, este olhar vai utilizar diversas fontes, entre elas a cultura material, como acesso ao privado e cotidiano de segmentos não presentes na historiografia oficial. Como exemplo em sua obra Montaillou, Emmanuel Le Roy Lauderie faz o que chama “arqueologia” de uma pequena aldeia dos Pirineus, no começo do século XIV. Trabalhando questões como o corpo, infância, casamento, morte, trocas culturais, relações sociais, religião e magia através dos relatos materializados na forma de documentos da inquisição.

A Nova História Cultural, por sua vez, também vai fazer uso das fontes materiais, mas sem se prender a uma cronologia específica. Monumentos vão ser, num primeiro momento, os principais pilares desta materialidade que exerce uma grande influência sobre as memórias coletivas. Realizada desde o século XIX, a História Cultural passou por diversas fases, mas sua principal articulação foi com a antropologia. Não sendo, portanto, essencialmente um campo de prática exclusivo dos historiadores, a História Cultural, assim como a Arqueologia, atua num espaço multi e interdisciplinar.

Para Burke (2005), a cultura material sempre esteve presente na pesquisa historiográfica, entretanto sem um devido protagonismo. Trabalhos referenciais como o de Norbert Elias sobre a história do garfo (ELIAS, 1994) ou mesmo de Braudel sobre o movimento dos objetos (BRAUDEL, 1995), também possuem suas críticas. Evidentemente é, porém, após a década de 1990 que a História Cultural vai efetivamente se interessar com a materialidade enquanto fonte fidedigna da historiografia, incluindo, por exemplo, a história do próprio livro como objeto (CHARTIER, 1988). Entretanto a maioria destes estudos focalizou no uso da trilogia – alimentação, vestuário e habitação – tendo a materialidade como receptáculo desta informação.

A MATERIALIDADE NA ARQUEOLOGIA

Ao contrário da história, a cultura material para a arqueologia sempre foi a sua principal fonte de estudo, desde a sua formalização no final do século XIX. Porém, seus estudos nem sempre foram conduzidos da mesma forma, ou com os mesmos objetivos. Novamente sem o intuito de exaurir essa trajetória ou de compartimentar as abordagens, discutindo-as de forma estanque, focaremos no presente texto, em aspectos específicos no que tange a materialidade da arqueologia e os estudos em cultura material.

Gonçalves (2007) ao analisar a proximidade da antropologia e arqueologia no início do século 20, avalia o papel dos objetos etnográficos enquanto categorias etnocêntricas que também fundamentaram os paradigmas evolucionistas e difusionistas do século XIX, baseados nos grandes esquemas universais de evolução social. Os estudos de cultura material advindos desse contexto concebiam os objetos enquanto categorias passivas e indicadoras dos estágios de evolução do grupo a que pertenciam. Tais estudos, desenvolvidos no âmbito da consagrada escola “Histórico Culturalista”, possuía um caráter estritamente indutivo e ambiental determinista que reforçava a dualidade ocidental, calcada na divisão entre o cultural e o natural.

O contexto pós II Guerra Mundial contribuiu para a entrada em cena de um novo olhar arqueológico sobre a cultura material, contemporâneo aos estudos voltados ao sentido simbólico do consumismo (MILLER, 1987). Neste contexto os estudos de cultura material em arqueologia agora com um viés neo-evolucionista, procuravam na normatividade dos vestígios, não mais somente a sua ordenação, mas sua explicação. Nesta perspectiva, a cultura material era o registro estático representante de um sistema cultural dinâmico em processo de adaptação ao seu meio circundante. Com um fazer positivista, hipotético-dedutivo e nomotético, a escola “Processualista” também via a cultura material e a natureza em lados distintos, conectadas pelos diferentes subsistemas, onde o meio tinha uma influência decisiva sobre a cultura,

Uma reação a esta perspectiva se concretiza com a abordagem “Pós-Processualista” estimulada pelo movimento linguistic turn, que impactou diversas áreas do conhecimento. Os objetos, de uma condição estática, passaram a ser entendidos como categorias dinâmicas, que estão entrelaçadas (entanglement) a outros elementos inclusive não humanos; eles são resultantes de ações humanas individuais, conscientes e reflexivas. Trata-se de uma postura pós-modernista que atribuía uma teia de significados à cultura material, que deveria ser lida particularmente como um “texto”. Nessa perspectiva, a cultura material torna-se um elemento agenciado pelas subjetivações das relações sociais do passado e, também, no presente (HODDER, 2012).

Esse posicionamento frente à materialidade humana propiciou, segundo Rede (2012) um fecundo diálogo com outros autores, como Bordieu e Gidden, com a ‘Teoria da Prática’; também se aproximou da Nova História Cultural, propiciada, principalmente, pela perspectiva enfática nos discursos e nos fenômenos representacionais; importante ainda destacar a relação de proximidade da arqueologia com a história a partir dos estudos de patrimônio cultural (MENESES, 1984).

DISCUSSÕES ATUAIS SOBRE A MATERIALIDADE

Nos estudos de arqueologia na contemporaneidade o debate não se encerra no caráter intangível da cultura material, que fundamentou as densas discussões entre “cultura material” e “cultura imaterial”, todavia, têm se voltado a partir de novas ideias sobre as relações entre natureza e cultura.

Neste panorama há uma busca pela superação da influência resistente dos dualismos cartesianos, ampliada a outros tipos de oposições binárias para além do material / imaterial, como: natureza / cultura, sujeito / objeto, presente no modelo hilemórfico da lógica ocidental (GONZÁLES-RUIBAL, 2007). Segundo Andrade (2016, p. 25), tais oposições além de consequências reducionistas trazem também uma intenção ideológica. Nesse sentido, as abordagens têm-se deslocado, gradativamente, dos conceitos de cultura material para o de materialidade (INGOLD, 2007).

Nesta perspectiva, entende-se que os objetos culturais e as ações humanas em sentido amplo, assim como os elementos do mundo natural, embora considerados de naturezas distintas, estão imbricados. Os estudos nesta linha, baseados em Latour (2012) buscam “trata de recuperar lo natural em lo humano” (GONZÁLES-RUIBAL, 2007, p. 285). Nessa conexão, ainda que se considere a cultura e a natureza como campos distintos, são entendidos como equivalentes e, por isso, exigiriam dos / as especialistas atitudes simétricas. Nesse percurso, não somente as pessoas agem sobre os objetos, mas esses também atuam sobre os comportamentos dos indivíduos e da sociedade (TILLEY, 2004), numa relação denominada de “agência material”.

Sentir a pedra é sentir o seu toque nas minhas mãos. Existe uma relação reflexiva entre os dois. Eu e a pedra estamos em contato um com o outro através do meu corpo, mas esse processo não é exatamente o mesmo que tocar meu próprio corpo porque a pedra é externa ao meu corpo e não faz parte dele. Tocar na pedra é possível porque tanto o meu corpo como a pedra fazem parte do mesmo mundo. Existe nesse sentido uma relação de identidade e continuidade entre os dois. No entanto, há também assimetria e diferença a pedra não é senciente e, embora eu seja tocado pela pedra, ao tocá-la, não há a mesma relação de reversibilidade que no caso de minha mão esquerda tocar minha mão direita, uma ação que poderia ser revertido com a mão direita tocando minha mão esquerda. No entanto, podemos afirmar, como Gell (1998), que coisas, como pessoas, possuem agência porque nos afetam fisicamente, ajudam a estruturar nossa consciência (TILLEY, 2004, p. 17).

Trazemos ainda a abordagem desenvolvida a partir da década de 1980 que, dentre outras características representou um “retorno” à materialidade (virada material). Ela teve importante repercussão, principalmente na antropologia, arqueologia e história. Seguindo as perspectivas de Gell (1998), Tilley (2008), buscava-se retirar dos objetos seus valores sociais, para isso foram priorizadas as relações entre indivíduos / sociedades e objetos, assim como as trajetórias (contextos) pelo qual os objetos passaram ao longo de suas vidas. Esse campo referenciado como “biografia das coisas” tem como obra de referência “A vida social das coisas”, organizado por Arjun Appadurai (2008).

Neste panorama de busca das trajetórias dos objetos, mas seguindo outra perspectiva epistemológica, trazemos os estudos em arqueologia acerca das materialidades advindas de longa antiguidade, onde além de não contarmos com as memórias vivas, também não há possibilidade de correlação entre os objetos desses períodos e os atuais. Segundo Ramos (2016, p. 57) trata-se de materialidades cujos produtores “só nos legaram uma parte de sua humanidade: aquela que é produtora de subjetividade não necessariamente verbal, a saber, a materialidade plasmada no registro arqueológico”. Considerando os estágios diferenciados de preservação da materialidade humana ao longo do tempo, consideram-se aqui os artefatos de natureza mineral (os objetos líticos).

Segue em perspectiva os estudos em “antropologia das técnicas” que desvia do estudo dos objetos enquanto substâncias inertes no tempo e no espaço, mas considerando-os como campos epistêmicos de poder heurístico capaz de apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos. Assim como pressupõe o caráter ativo da cultura material, considerando que os fenômenos técnicos não são considerados como reflexo da cultura, mas como elementos participantes dela (FOGAÇA; BOËDA, 2006). Nessa abordagem, ancorada nos estudos de memórias (BERGSON, 2008) e de evolução tecnológica (SIMONDON, 1989; STIEGLER, 1998; BOËDA, 2013) o passado e seus objetos são considerados a partir de três níveis de memórias: viva, parcelar e esquecida. Nos dois primeiros há uma co-relação tecnológica e funcional plausível entre os objetos do passado (por exemplo, as pontas de projétil obtidas de contexto arqueológico) e aqueles advindos de grupos tradicionais dos quais dispomos de informações históricas ou antropológicas e mesmo de objetos modernos, como flechas produzidas a partir de pontas metálicas.

Todavia, há objetos onde esta conexão não é possível, neles as informações técnicas, de função e de funcionamento estão alojadas no nível da memória esquecida.

O fato de decretar o objeto morto faz com que não nos interroguemos de nenhuma forma sobre o modo de analisá-lo. Apenas alguns objetos que se dão a « ver » como as pontas de flecha ou os bifaces vão receber uma atenção particular, diferentemente da análise tipológica que leva em consideração o conjunto dos objetos. Essa situação de exclusão às expensas de uma única categoria de peças características e conhecidas em nosso mundo mostra que a análise técnica exaustiva de todo objeto não existe. Isso conduz, evidentemente, a situações paradoxais nas quais aquilo que não é reconhecido não é considerado. A exclusão pode, ainda, ir mais longe chegando à negação do caráter antrópico. […] Nosso trabalho consiste em compreender os mecanismos intrínsecos a essas mudanças os quais nos permitem entender os objetos tal como eles nos aparecem e, além disso, entender de onde eles são provenientes e qual é seu potencial de evolução. Trata-se de uma percepção do objeto através de seu potencial evolutivo (BOËDA, 2013, p. 233, 234).

Ascender às parcelas dessa memória esquecida implica num posicionamento epistemológico distinto do modelo hilemorfico e da concepção instrumental dos objetos e segue para além da perspectiva producional (tecnologia cultural, cadeia operatória LEROI-GOURHAN, 1964, TIXIER et al., 1980). Nessa perspectiva consideram-se que as tecnicidades estão constituídas no comportamento humano e, por isso, possuem uma história de movimento que acompanha a trajetória da humanidade, numa perspectiva de co-evolução (STIEGLER, 1998; BOËDA 2013), acessíveis a partir das intenções funcionais próprias de cada sistema tecnológico de produção e de funcionamento dos objetos técnicos (instrumentação e instrumentalização, RABARDEL, 1995; BOËDA, 2013).

Para finalizar, sem esgotar a questão, outra perspectiva instaurada na contemporaneidade investiga as relações da cultura (material) e da natureza baseada no conceito de “coisa” (INGOLD, 2012, p. 27); considerada não exatamente como uma fusão de elementos, mas resultado de “combinações variadas”, as quais são consideradas ativas e criativas na medida em que geram novos materiais (organismos) que serão misturados à outros, “num processo infinito de transformações”. Assim, de acordo com o referido autor, há uma preocupação em entender os elementos sem separá-los de seus ambientes, nesse sentido, organismos da natureza e da cultura estão fluídos, entrelaçados entre si e considerados partes do meio, se movimentam como entidades abertas e impulsionados pelos “fluxos de substâncias que lhe dão vida”.

[…] eu mostrarei que os caminhos ou trajetórias através dos quais a prática improvisativa se desenrola não são conexões, nem descrevem relações entre uma coisa e outra. Eles são linhas ao longo das quais as coisas são continuamente formadas. Portanto, quando eu falo de um emaranhado de coisas, é num sentido preciso e literal: não uma rede de conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento (INGOLD, 2012, p. 27).

PARTE II – CULTURA E HISTÓRIA: O PASSADO HUMANO ATRAVÉS DA SUA MATERIALIDADE

O dossiê Materializando a História: o passado humano através da cultura material aborda diversos estudos arqueológicos como artefatos do tempo. Nesta perspectiva, o presente dossiê visa fomentar discussões acerca da materialidade presente em diferentes sociedades e períodos temporais. O dossiê está dividido em três principais temáticas, a primeira trata da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade; a segunda versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas; por fim, a terceira temática está relacionada as materialidades presentes em tempos pretéritos, onde não há registro de memória viva ou de qualquer fonte documental de período histórico, cujos sentidos são acessíveis pelas tecnicidades presentes nas intenções humanas.

Os artigos da primeira temática tratam da representação imagética da cultura material, versando sobre a relação entre a materialidade e colonialidade. Assim, o artigo Recipientes atribuídos aos africanos e a seus descendentes nas obras de Debret como reveladores de colonialidades e agenciamentos de autoria de Clarissa Ulhoa, analisa os recipientes retratados em 50 obras do pintor francês, Jean Baptiste Debret, realizadas nos anos oitocentistas. Os objetos da análise foram discutidos no texto por meio do conceito de colonialidade, definido por Aníbal Quijano (2010) e de agência, por Lorand Matory (1999). A autora, ciente da influência dos discursos eurocêntricos na obra do artista, fundamentados nas lógicas ocidentais expressadas pela perspectiva cartesiana, “branca e cristã”, e ao mesmo, conhecedora do potencial da cultura material africana, Ulhoa utiliza-se dos aportes teóricos de agência para tratar da resistência dos africanos e seus descendentes manifestada nas materialidades retratadas nas telas de Debret. A materialidade analisada pela autora vem das representações dos recipientes, das vestimentas e dos próprios corpos dos negros escravizados. A autora percebe uma dicotomia na representação dos objetos, de um lado os retrata como demarcadores das colonialidades “do poder” e “do saber”, exibindo o aspecto deplorável do sistema escravista colonial e, de outro, evidencia os recipientes como materialidades ativas, marcadoras de identidade cultural, de oposição ao pensamento colonial em expansão. O artigo, por fim, tem a originalidade de se utilizar de representações oitocentistas para (re) ativar no leitor o pensamento crítico sobre a “faceta colonial da expansão capitalista e de seu projeto cultura” que se mantem ao longos dos anos (ASSIS, 2014, p. 613) e, dentre outros aspectos, atua na exclusão das heranças históricas e culturais dos povos africanos e supressão do projeto de humanidades dessas etnias. O artigo também expõe, a partir das representações, as estratégias e negociações cotidianas que permitiram a “existência física e simbólica” dos africanos e seus descendentes até os dias atuais.

O gênero como categoria de análise para pensar a continuidade das relações coloniais de poder foi o tema do artigo A garota carioca: colonialidade de gênero em imagens, redigido por Isabela Marques Fuchs. A autora baseia-se no conceito de colonialidade de gênero, proposto por Maria Lugones (2014) para refletir sobre o feminismo decolonial. Tem como objeto de estudo a representação imagética da garota carioca em um cartão-postal, considerado como materialidade histórica e cultural onde circula “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva”. Os estudos decoloniais de gênero rechaçam a imposição binária da colonialidade (humanos / não-humanos ou mulher / homem) imposta ao longo dos anos e criada para treinar e domesticar o(a) colonizado(a), se fundamentando na premissa de dominação onde, segundo a autora, “o homem domina o corpo da mulher, colocando-a em eterno estado de sujeição e obediência”. Tais estudos também se fundamentam nas articulações das categorias corpo, sexo, gênero e raça que, para além da evidência biológica, propõem a ampliação e fluidez das posições de gênero onde as “concepções múltiplas ou duais, são reconhecidas e funcionam de modo assimétrico, mas não são hierárquicas e “nem sempre se reduzem a dois pares” (GOMES, 2018). Para firmar a continuidade das relações coloniais na contemporaneidade, a autora transita entre representações imagéticas do presente (cartão postal) e do passado (obra do século XVI, de Jan van der Straet, sobre o encontro de Vespúcio com uma indígena sem roupa). O texto discute sobre a representação do corpo da indígena como de outros corpos femininos presentes em diferentes suportes físicos e disponíveis em tecnológicas diversas, como uma manifestação do poder masculino. A autora, baseando-se em Mignollo (2017, p. 4) entende que o estereótipo da garota carioca, assim como das mulheres latino americanas, está relacionado com a própria América Latina que de forma perniciosa foi “inventada, mapeada, apropriada e explorada”.

A segunda temática versa sobre a cultura material histórica de natureza edificada enquanto lugares de memória e como paisagem, assim como bem patrimonial que requer ações preservacionistas. Entendendo a cultura material na sua ampla diversidade de suporte e, considerando igualmente o seu intrínseco aspecto intangível, apresentamos o artigo de Glenda C. Bittencourt Fernandes, denominado Cultura material e arqueologia no contemporâneo: o caso da Capela Pombo em Belém / Pará / Amazônia. O texto apresenta as histórias e materialidades da Capela Pombo, datada do século XVIII e considerada como o primeiro espaço religioso de caráter privado da cidade de Belém. A Capela de propriedade da família Pombo e, atualmente da Universidade Federal do Pará, representa um “lugar de memória” (NORA, 1993) da cidade de Belém, acionada constantemente por memórias individuais e coletivas que de forma ativa e dinâmica se interconectam. E, como tal, a Capela pode ser considerada como um fenômeno que envolve tanto a ordenação de vestígios materiais, como possibilita (re)leituras, a partir da socialização dos envolvidos. A autora (participante indireta da história da Capela) ao confidenciar sua relação pessoal e familiar com o objeto, aciona sua memória (individual) para transitar entre o passado, presente e o futuro da Capela Pombo. Ao mesmo tempo, num processo dialético, o texto busca a memória coletiva, plural para ressignificar sua percepção contemporânea sobre a edificação. Assim, Capela Pombo tem sua história redigida em documentos, mas a partir da sua materialidade outras histórias têm sido construídas ao longo de sua existência, assim como a própria materialidade tem sido transformada. Baseando-se em Costa (2010, p. 12) a autora percebe que “[…] mesmo estando com suas portas fechadas e parecendo invisibilizada ela tem o poder de “suporte de Informação” que estabelece com o sujeito uma “relação sensorial”.

Ainda nessa segunda temática, o artigo intitulado As transformações na paisagem: o mercado municipal da Cidade de Goiás, redigido por Marcelo Iury, Cristiane Loriza Dantas e Fernanda F. Cruvinel de Oliveira, apresenta a dinâmica da paisagem urbana da Cidade de Goiás, com foco no Mercado Municipal, edifício histórico, localizado às margens do Rio Vermelho e tombado em 1987. Segundo os autores, ao longo dos séculos XIX e XX o Mercado e suas adjacências sofreram várias transformações em sua estrutura física advindas de processos naturais, como enchentes do rio Vermelho, intensificadas por ações antrópicas, assim como modificações intencionais referentes à ampliação e / ou reestruturação do edifício. O artigo fundamentado no conceito de paisagem (Boado, 1991) e de lugar de memória (NORA, 1993), considera o mercado e suas adjacências como lugares de referências culturais da sociedade vilaboense do passado e da atualidade. A pesquisa embora tenha sido metodologicamente amparada por diversas fontes documentais, tem na materialidade compreendida pelo contexto do Mercado a base de identificação das transformações da paisagem daquele local.

Já os autores Mary Anne V. Silva e Ruber Paulo A. Rodrigues com o artigo Arte tumular e patrimônio: o cemitério Santana como expressão de cultura material na cidade de Goiânia, discorrem sobre a materialidade do cemitério Santana, localizado em Goiânia, Goiás, inaugurado em 1940 e patrimonializado no ano de 2000. O texto se orienta na perspectiva da cultura material e patrimônio, assim como está amparado nas discussões contemporâneas sobre espaços cemiteriais. A materialidade do cemitério Santana é considerada pelos autores como categoria de amplo potencial investigativo que atua para além da sua fisicalidade; a entende como categoria ativa e conectada a diversos segmentos, nela estão presentes momentos históricos culturais e religiosos específicos da sociedade goiana e nacional, assim como a sua materialidade em sentido amplo é também responsável por agenciar os sujeitos sociais. O texto além de expor a importância do acervo arquitetônico do cemitério, expresso principalmente pela art déco, também traz à discussão as problemáticas relacionadas às limitações das ações preservacionistas e de conservação dessa edificação histórica e cultural.

O artigo A casa do grito: o poder do museu casa e da mediação cultural no processo de elaboração da memória, de autoria de Luciano Araujo Monteiro, também trata de uma edificação histórica, patrimonializada na década de 1970 e situada no Parque da Independência, em São Paulo. A Casa do Grito foi investigada, dentre outros aportes, a partir de sua materialidade o que possibilitou tratá-la, para além de sua relevância histórica, sendo também considerada como um “lugar de memória”, de cultura, de arte e que conserva uma técnica construtiva tradicional. A Casa do Grito foi implementada como espaço museológico e, segundo o autor, os trabalhos de restaurações e escavações arqueológicas permitiram identificar o uso doméstico e, ao mesmo tempo público dessa edificação em seus tempos históricos; é considerada na atualidade como um símbolo nacional, constituído por memórias sociais de caráter coletivo, as quais têm ao longo dos tempos emitido diversas significações ao local.

Para finalizar essa temática, temos o artigo Conjunto arquitetônico do Carmo do Recife: estudo da documentação do arquivo central do IPHAN, redigido por Ricardo de Aguiar Pacheco que apresenta uma reflexão crítica sobre o papel das políticas públicas e seus atrelamentos a segmentos de outra natureza, como o valor histórico e cultural presentes nas materialidades históricas tombadas pelo IPHAN. O conjunto arquitetônico é composto pela Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Convento e Igreja de Nossa Senhora do Carmo do Recife, localizados no centro histórico da capital pernambucana e tombado pelo IPHAN como bem cultural em 1938. O autor ao investigar a documentação arquivada sobre tais edificações constatou que o reconhecimento patrimonial daqueles bens foi justificado a partir dos significados culturais atribuídos a essas edificações. O artigo está embasado em reflexões atualizadas sobre as políticas públicas, assim como, na relevância das memórias sociais (coletivas), construídas ao longo do tempo para legitimar o processo de reconhecimento ou tombamento dos objetos culturais como bens patrimoniais.

Por fim, fechamos o dossiê com artigo referente à terceira temática, intitulado Diagnose tecno-funcional de amostragem lítica datada do início do Holoceno médio no Sítio arqueológico GO-JA-01: características da estrutura de lascamento em presença, redigido por Marcos Paulo M. Ramos e Sibeli A. Viana. O artigo trata de um tema emblemático para a ocupação humana sulamericana em tempos pretéritos, a saber, os registros arqueológicos de período referente ao Holoceno médio (entre cerca de 8.000 anos a 4.000 anos antes do presente). Este horizonte ocupacional está encapsulado entre ocupações mais remotas (Holoceno antigo), detentoras de esquemas producionais de ferramentas líticas bem conhecidos na literatura e ocupação mais recente (Holoceno recente) de grupos ceramistas, igualmente bem investigados pela literatura. A materialidade dos objetos do período intermediário (Holoceno médio) foi tomada pelas pesquisas anteriores à década de 2000 como “simplista”, segundo os autores do artigo isso foi decorrente principalmente da ‘ausência’ de instrumentos morfologicamente bem definidos. A partir da materialidade lítica do sítio arqueológico GO-JA-01, localizado da região sudoeste do Brasil, os autores com base em estudos em ‘antropologia das técnicas’ (BOËDA, 2013), buscaram apreender sutilezas da alteridade humana em tempos pretéritos presentes nos esquemas técnicos de produção de ferramentas daquele sítio. O artigo também apresenta com acuidade as bases teóricas e metodológicas utilizadas, o que colabora com o fortalecimento das pesquisas, tendo em vista serem reduzidas as publicações em língua portuguesa sobre a abordagem empregada.

Referências

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Sibeli A. Viana – Professora efetiva do Programa de Pós-Graduação em História e de Graduação em Arqueologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Líder do Grupo de Pesquisa em Patrimônio Cultural. Coord. do Núcleo de Arqueologia da PUC Goiás / IGPA. Vice-presidente da Comissão Povoamento Americano / UISPP E-mail: sibeli@pucgoias.edu.br


VIANA, Sibeli A.; COSTA, Diogo Menezes. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.12, n.1, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Igualitária. Belo Horizonte, v.1, n.13, 2019.

HISTÓRIA: DIÁLOGOS ENTRE POLÍTICA E CULTURA

A proposta é apresentar debates que transitam por temas relacionandos ao design contemporâneo, cinema, mestiçagem e o processo de certificação do queijo artesanal mineiro.

ARTIGOS

  • O DESIGN AUTORAL MINEIRO: sob a análise da produção dos Estúdios Iludi e Alva Design
  • RESUMO PDF
  • Marcelina das Graças de Almeida, Adriana Dornas Moura, Barbara de Jesus Lopes Martins, Stephane Dias Machado, Victor Bruno Lelis Maia Domingos
  • Liberdade, liberdade abra as asas sobre nós. O Samba-Enredo como ferramenta na produção do conhecimento histórico
  • RESUMO PDF
  • João Paulo Fogaça Dias Diniz, Roger Alves Vieira
  • A Memória da Força Expedicionária Brasileira na tela dos documentários “Senta a pua!” e “A cobra fumou”
  • RESUMO PDF
  • Roberto Márcio Ferreira, André Pedroso Becho
  • Programa Queijo Minas Artesanal: certificação, impactos e desafios na sociedade mineira contemporânea
  • RESUMO PDF
  • Paulo Agostinho de Macedo Junior, Marcelina das Graças de Almeida
  • “Mestiçagem Turbulenta”: rituais de poder na América portuguesa
  • RESUMO PDF
  • Célia Nonata da Silva, Maria Fabiana das Graças de Lima Carneiro

 

Sociedades em fronteiras: abordagens e perspectivas / Fronteiras – Revista de História / 2019

As pesquisas no que tange às fronteiras têm se ampliado de forma significativa na última década, basta uma rápida pesquisa no Catálogo de teses e dissertações da Capes para comprovar isso. O que, entretanto, é a representação de apenas um repositório possível de pesquisa e que reflete, de alguma forma, as pesquisas em curso nos Programas de Pós-Graduação no Brasil.

A ampliação dos estudos sobre fronteiras pode ser identificado como resultado de três fatores, entre outros possíveis, que tenham impactado nessa temática, quais sejam: a ampliação e interiorização dos Programas de Pós-Graduação no Brasil, o que tem estimulado estudos em / sobre regiões fronteiriças de forma muito mais acentuada; as mudanças que envolvem as Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação – TDIC, que tem possibilitado o acesso a documentos escritos, o contato entre pesquisadores da área e uma aproximação maior de pessoas e comunidades a serem investigadas; e, por fim, certamente um dos mais importantes, que é o contexto da constante ebulição das disputas no espaço fronteiriço, e que tem chamado a atenção e se mantido sob os holofotes da mídia internacional por inúmeros fatores que marcam o início do século XXI. Leia Mais

Teoria da História (v.1) Razão Histórica: os fundamentos da ciência histórica | Jörn Rüsen

RÜSEN, Jörn. Razão Histórica – Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 1ª reimpressão, 2010. Resenha de: SOUZA, Fernanda Almeida de; URBAN, Ana Claudia. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.18, p.94-98, jan./jun., 2019.

Jörn Rüsen, professor emérito da Universidade de Witten/Herdecke (Alemanha), foi professor nas Universidades de Braunschweig, Berlin, Bochum e Bielefeld. Presidiu o Instituto de Estudos avançados (KWI), de Essen, de 1997 a 2007. É autor de obras fundamentais nos campos da teoria, da metodologia e da didática da História, assim como da história dos direitos humanos e das ciências da cultura. Sua obra encontra grande eco internacional no Brasil, em Portugal, na Espanha, no Canadá, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na África do Sul. É professor e conferencista visitante em diversas universidades alemãs e internacionais, notadamente no Brasil: Brasília, Curitiba, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo.30 Sua obra mais conhecida e estudada nos últimos anos nas Universidades e Pós-Graduação no Brasil é Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica publicado em três volumes: Razão Histórica (Volume 1); Reconstrução do passado (Volume 2); História Viva (Volume 3). A análise que apresento é sobre o Volume 1: Razão Histórica, na qual aponto os parâmetros relevantes da obra por eixos temáticos, e não seguindo a ordem da narrativa do livro.31

Jörn Rüsen é um filósofo da história, assim como outros autores desse campo de estudo, se propôs a fundamentar uma Teoria da História, sendo assim, conceituar a história como ciência está presente nas suas análises. O conceito de História como Ciência é apresentado a partir do questionamento, o que é ciência? O autor apresenta que cada área científica tem suas particularidades, logo, a história também tem sua especificidade. Mas é preciso uma reflexão além do fator das especificidades, para afirmar a História como Ciência se faz necessário também, refletir sobre o caráter comum que valida as diversas áreas das ciências, que é o procedimento metódico, de acordo com Rüsen (2010, p. 99) “o pensamento histórico é científico, portanto, à medida que procede metodicamente”. O parâmetro de História Ciência ocorre então, quando o processo histórico de regulação metódica da pesquisa, leva o conhecimento genérico à plausibilidade racional e controlável da ciência.

Observamos o gráfico de ideias que norteiam as explanações do livro Razão Histórica:

Figura Matriz disciplinar de Rusen1 Ditadura civil-militar

O gráfico é apresentado no livro sob perspectiva de explanar o conceito de matriz disciplinar. Para Rüsen a Teoria da História é vista com extrema importância, evidenciando que os historiadores necessitam primeiramente estar muito bem inseridos neste universo da História Ciência, faz uma análise firme e crítica dos propósitos que devem ter a Teoria na construção da Ciência da História, no sentido da história como produto da operação científica da história acadêmica ou investigativa, ou seja, faz parte da História Ciência reflexões profundas sobre o caráter específico do historiador, que para o autor é a especificidade do trabalho de dar sentido à experiência da mudança temporal do passado.

A Teoria da História tem de apreender, pois, os fatores determinantes do conhecimento histórico que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia, identificá-los um a um e demostrar sua interdependência sistemática. E como a pesquisa e a historiografia nada tem de estático, cabe à teoria mostrar como esse processo é dinâmico. Seu objeto são os fundamentos e princípios da Ciência da História. O termo técnico para descrevê-lo é matriz disciplinar: o conjunto sistemático de fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da Ciência da História como disciplina especializada. (RÜSEN, 2010, p. 29).

A matriz disciplinar apresentada no gráfico está propondo um processo lógico-dedutivo para fundamentar a Ciência da História. O ponto de partida é o vínculo entre História enquanto ciência (História Ciência) e o trabalho do historiador (Ciência da História) que ocorre, na medida em que o historiador para dar sentido à experiência do passado com o propósito de torná-lo presente, segue regras e métodos construídos pela História Ciência. O ‘sentido’ referido na obra, tem um caráter norteador, deve ser buscado pelas carências do presente, e esse processo racional pela busca de ‘sentido’ através das carências do presente, passa pelo campo das ideias, que seriam as perspectivas orientadoras da experiência do passado. A partir dessa estrutura racional do pensar, ocorre o uso do método, para concretizar os encaminhamentos da pesquisa. Esses fatores aparecem, em princípio, em todo pensamento histórico, “no entanto, articulados na matriz disciplinar da Ciência da História, eles adquirem a especificidade que permite distinguir o pensamento histórico constituído cientificamente do pensamento histórico comum.” (RÜSEN, 2010, p. 35).

O texto expressa que para Rüsen é primordial que a pesquisa histórica ou historiográfica se inicie não como forma de se encaixar ou adaptar-se a regras teóricas somente, ou que uma pesquisa se constitua a partir de interesses puramente pessoais ou quaisquer, dessa forma se produziriam histórias ‘não válidas’, ou seja, sem conexão com as demandas de interesse da sociedade presente, sem que o conhecimento produzido tivesse significado aos seus interlocutores. A história ‘válida’ então, seria aquela na qual o historiador estabelece seu objeto cognoscível através de um olhar cuidadoso a partir do seu presente, buscando observar quais são as carências da vida prática da sociedade, e a partir das carências sinalizadas, buscar um ‘sentido’ de conexão entre o passado e o presente, esse processo fundamenta o conceito de consciência histórica, explorado por Rüsen (2010, p. 57) “como a suma das operações mentais com quais os homens interpretam sua experiência na evolução temporal do seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo.”

Rüsen evidencia com clareza que a Ciência da História deve se movimentar pela consciência histórica, e que essa através de uma narrativa inteligível, consegue chegar ao âmbito de perspectivar o futuro.

“História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a interação com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação do tempo presente. (RÜSEN, 2010, p. 74).

A valorização da consciência histórica é central na obra, bem construída e articulada por Rüsen, por exemplo, quando parte do princípio do questionamento, como surgem dos feitos a História? O autor para construir sua argumentação em favor da consciência histórica como resposta, fundamenta-se em bibliografias alemãs que responderam à pergunta em questão, ou de forma muito subjetiva ou de forma muito objetiva, os fatores de subjetividade (de Max Weber) e objetividade (do materialismo histórico) passam pela criticidade do autor, como forma de validar sua defesa por respostas históricas estruturadas a partir da matriz disciplinar.

Para Rüsen a matriz disciplinar e as conexões de orientações apresentadas nela: carências de orientação, diretrizes de interpretação, métodos; formas de apresentação, funções de orientação, é uma explicação teórica do tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido, mas essas diretrizes não devem ser interpretadas como uma série de etapas sucessivas e estanques, ao contrário, esses fatores devem ser condicionados mutualmente representando uma forma de ‘pensar a história’ dentro de um conjunto sistemático e complexo.

Fazer uso da matriz disciplinar implica no uso de valoração da narrativa, para que todos os fatores apresentados na matriz possam ser articulados. Essa reflexão está no apêndice à edição brasileira e seu objetivo maior é articular a defesa da matriz disciplinar ao referencial teórico.

O apêndice mencionado, recebeu como título: a constituição narrativa do sentido histórico, no qual Rüsen explora o tema de forma bem argumentativa, mostrando por referenciais teóricos, como a questão da história narrativa foi tratada e refletida historicamente; o tema é explorado sob perspectiva do paradigma narrativista, onde para Rüsen como não existe uma racionalidade única, mas sim diversos tipos de racionalidade, trata-se agora de desenvolver “um tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido na forma de um paradigma que resista à crítica feita à racionalidade até agora dominante no pensamento histórico moderno e que exprima em pretensões convincentes de racionalidade.” (RÜSEN, 2010, p. 169).

Para a narrativa histórica “é decisivo, por conseguinte, que sua constituição de sentido se vincule à experiência do tempo de maneira que o passado possa tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea.” (RÜSEN, 2010, p. 155).

Rüsen argumenta com propriedade sobre as questões paradoxais da Ciência História, percebe isso como extremamente necessário, e expressa que o campo teórico da história não pode ser dado como finalizado, é necessário continuar explorando e ressignificando os teóricos e bibliografias. O livro também aborda outras temáticas próprias da Teoria da História, como, conceito de verdade, partidarismo, uso das fontes, humanismo, que não foram abordados, pois optei em encaminhar a resenha dentro do conceito que julguei ser a verdadeira alma do livro: a importância da consciência histórica estabelecida e guiada a partir da matriz disciplinar na produção da ciência da história. Como se trata de uma trilogia, os temas abordados em Razão Histórica continuam sendo explorados em perspectiva teórica em Reconstrução do Passado e História Viva.

Notas

30. www.joern-ruesen.de

31. Esta resenha foi produzida para a disciplina de Teoria da História (disciplina do Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR/ 2019), o objetivo estabelecido era buscar na leitura contribuições que pudessem dialogar com o projeto de pesquisa.

Fernanda Almeida de Souza – Professora da Rede Estadual de Ensino do Paraná, graduada em História, mestranda no Mestrado Profissional em Ensino de História da UFPR. E-mail: fernanda.giles.28@hotmail.com

Ana Claudia Urban – Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Mestrado Profissional em Ensino de História e Professora de Metodologia e Prática de Docência de História. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica (LAPEDUH – UFPR). ORCID iD: https://orcid.org/0000-0001- 9957-8838. E-mail: claudiaurban@uol.com.br

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[IF]

Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.3, n.5, 2019.

Editorial

Entrevista

Artigos

Documentos

Resenhas

Reportagens

Teoria das Relações Internacionais no Brasil | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2019

Teoria, Prática

Ao longo do processo de formulação desse Dossiê, fomos inúmeras vezes convocados por uma pergunta: “mas, afinal, teoria importa?” Talvez, a você que nos lê, possa soar estranho abrirmos essa publicação interrogando por aquilo que a justifica. Ou ainda, você poderia questionar se, em um contexto de tantos ataques à ciência, em especial às ciências ditas sociais e humanas, seria profícuo problematizar a importância mesma da teorização. No entanto, de mãos dadas a pensadoras(es) como Paulo Freire e bell hooks, aderimos à relevância desse exercício que nasce mais como potência crítica do que dúvida cética. Como um e outra nos ensinam, antes das respostas, é preciso deslocar as estruturas que subscrevem nossas perguntas.

Sob esse horizonte, vale ainda pontuar que não se trata de uma pergunta banal, ainda que bastante comum. Como sabemos, para pesquisadoras(es) da área de Teoria das Relações Internacionais no Brasil, a interrogação sobre a validade de seus estudos está bastante presente, explícita ou implicitamente, em grande parte dos diálogos acadêmicos. Por isso, encaramos o engajamento produtivo com a questão “teoria importa?” enquanto tarefa imprescindível nessa introdução. Para tanto, propomos aqui uma reflexão sobre aquilo que habita as entrelinhas dessa indagação, ou seja, suas “condições de possibilidade”. Afinal, por que se faz necessário provar o valor da teoria? Quais são, e quem define, os critérios de autorização do conhecimento? Ou ainda, no limite, o que é teoria? Leia Mais

The physicist & the philosopher: Einstein, Bergson, and the debate that changed our understanding of time | Jimena Canales

El 6 de abril de 1922 tuvo momento un gran temblor que recorrió el siglo XX. El epicentro, la Sociedad francesa de Filosofía. Bergson (1859–1941), el filósofo más reconocido de la primera mitad del siglo XX, debatió con Einstein (1879–1955), la celebridad científica más grande de la historia, sobre la naturaleza del tiempo. El filósofo felicitó al científico por el éxito de su teoría pero afirmó que respecto a la naturaleza del tiempo el caso seguía abierto. El científico, cuya reciente e insólita fama era propia de la de las emergentes estrellas de cine, replicó lacónicamente que, puesto que los aspectos subjetivos del tiempo se reservaban a la psicología y los aspectos objetivos a la física, no había algo así como un tiempo de los filósofos.

Mientras que para Einstein el tiempo era medido por los relojes, para Bergson la realidad nunca se reducía a su medición. Desde el punto de vista del primero, los hombres no somos sino relojes. Desde el punto de vista del segundo, los hombres somos creadores de relojes. Para el alemán, el paso y dirección del tiempo no eran más que una ilusión de la conciencia. Para el francés, la irreversibilidad y la duración eran los aspectos esenciales del tiempo. Para el héroe de Russell, la ciencia podía zanjar definitivamente la respuesta sobre el tiempo. Para el héroe de Whitehead, aun si la ciencia pudiera desembarazarse de la filosofía esto no le traería ninguna ventaja; hay preguntas pertinentes que la ciencia no puede responder. Para el científico, los resultados de la relatividad seguirían siendo los mismos en presencia o ausencia de observadores humanos. Para el filósofo, la total ausencia de observadores humanos constituía en sí un acertijo filosófico. Einstein y Bergson, nos muestra Canales, no solo diferían en la lectura de cada uno de los términos en juego, también diferían en la manera en que deberían ser evaluadas dichas diferencias. Leia Mais

L’épistémologie historique. Histoire et méthodes | Jean-François Braunstein, Iván Moya Diez e Matteo Vagelli

Desde hace poco más de dos décadas, puede constatarse un crecimiento de la epistemología histórica; primeramente, un desarrollo de su versión anglosajona: la “nueva” historical epistemology y luego, una revitalización de su versión francesa: la “vieja” épistémologie historique. A lo largo de estos años, se han multiplicado los eventos académicos, las publicaciones, las tesis, los proyectos de investigación y los espacios de formación dedicados a este “estilo”2 en epistemología.3

Al interior de este campo plural en expansión, la importancia del libro que aquí reseñamos reside en que, aún sin proponerse como tarea principal el definir qué es la epistemología histórica, sin embargo, al brindar en cada capítulo testimonios claros, matizados y originales de este estilo de pensar y hacer en epistemología inseparable de la historia de las ciencias, por añadidura nos permite arribar a otra definición de la epistemología histórica. Así, como intentaremos mostrar a continuación, las contribuciones de las dos secciones de este libro nos llevan a entender y a valorar, de manera renovada y recurrente, la historia, los métodos y los objetos propios de la epistemología histórica, lo que esta ha sido, su devenir presente y su actualidad. Leia Mais

História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.26, n.1, 2019.

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.66, 2019.

Escravidão e Liberdade nas Américas

Janeiro – Abril

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Ynaê Lopes dos Santos (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial

Angela Maria de Castro Gomes (UNIRIO e PPHPBC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil) […]

Conselho Consultivo

Eduardo França Paiva (UFMG, Belo Horizonte, Brasil) […]

Assistente Editorial

Deivison Amaral

Secretário

Taynã Martins Ribeiro

Editoração Eletrônica/Capa

Algo+ Soluções Editoriais

Revisão

Algo+ Soluções Editoriais

Pareceristas ad hoc

Adriana Barreto (UFFRJ) […]

Publicado: 09-04-2019

Edição completa

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Editorial

Escravidão e Liberdade nas Américas

Estudos Históricos |  PDF

Artigos

Da obrigação de alimentar os escravos no Brasil colonial

Ana Carolina de Carvalho Viotti |  PDF

Compadrio, mobilidade social e redes sociais: a trajetória de uma família entre a escravidão e a liberdade (Minas Gerais, 1797-1828)

Mateus Rezende Andrade |  PDF

O Rio da Prata, a independência e a abolição: perspectivas de liberdade dos escravos no além-fronteira

Hevelly Ferreira Acruche |  PDF

Silêncios atlânticos: sujeitos e lugares praieiros no tráfico ilegal de africanos para o Sudeste brasileiro(c.1830 – c.1860)

Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira, Thiago Campos Pessoa |  PDF

DA ESCRAVIDÃO À LIBERDADE: A história de Maria da Conceição, roubada e escravizada (Nazaré, 1830-1876)

Virginia Queiroz Barreto |  PDF

“Os juízes de paz são todos uns ladrões”: autoridades públicas e o tráfico de escravos no interior da província da Bahia (c.1831 – c.1841)

Alex Andrade Costa |  PDF

Visualidade e administração do trabalho escravo nas fazendas de café e engenhos de açúcar de Brasil e Cuba, c.1840-1880

Rafael de Bivar Marquese |  PDF

Muito além do consumo de pão: condições de vida no Rio de Janeiro na década de 1870

André Boucinhas |  PDF

Hombres de color e os significados da liberdade negra: contribuições à história do pós-abolição no Uruguai (1872)

Fernanda Oliveira |  PDF

“A escravidão está condenada pela religião”: católicos e presbiterianos no contexto da abolição (Minas Gerais, 1886-1888)

Juliano Custodio Sobrinho |  PDF

“Mr. Perpetual Motion” enfrenta o Jim Crow: André Rebouças e sua passagem pelos Estados Unidos no pós-abolição

Luciana Cruz Brito |  PDF

Vicente de Souza: intersecções e confluências na trajetória de um abolicionista, republicano e socialista negro brasileiro

Ana Flávia Magalhães Pinto |  PDF

Que liberdade? Uma análise da criminalização das servidoras domésticas cariocas (1880-1930)

Natália Batista Peçanha |  PDF

Classe, raça e a história social do trabalho no Brasil (2001-2016)

Fabiane Popinigis, Paulo Cruz Terra |  PDF

O trabalho escravo contemporâneo: conceito e enfrentamento à luz do trabalho jurídico e pastoral do frei Henri Burin des Roziers

Moisés Pereira Silva |  PDF

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.67, 2019.

História das Ciências Humanas e Sociais

Maio – Agosto

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial

Angela Maria de Castro Gomes (UNIRIO e PPHPBC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil) […]

Conselho Consultivo

Eduardo França Paiva (UFMG, Belo Horizonte, Brasil) […]

Assistente Editorial

Deivison Amaral

Secretários

Bárbara Fernandes da Silva

Taynã Martins Ribeiro

Editoração Eletrônica/Capa

Algo+ Soluções Editoriais

Revisão

Algo+ Soluções Editoriais

Pareceristas ad hoc

Adélia Miglievich (UFES) […]

Publicado: 07-08-2019

Edição completa

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Editorial

Editorial

Estudos Históricos

 PDF

Colaboração Especial

Cânones e colônias: a trajetória global da sociologia

Raewyn Connell

 PDF (English)

Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu

Luiz Carlos Jackson, William Santana Santos, Max Luiz Gimenes

 PDF

Artigos

Sociologias indígenas ioruba: a Africa, o desconcerto e ontologias na sociologia contemporânea

Marcelo C Rosa

– 408

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Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa na Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA)

Frederico Ágoas, Cláudia Castelo

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Dois países, o mesmo dilema? Reflexões sobre a democracia e o racismo nos Estados Unidos e no Brasil

Gustavo Mesquita

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Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1929)

Lorenna RIbeiro Zem El-Dine

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Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do “populismo” e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais

José Szwako, Ramon Araujo

– 499

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Amar um autor: os marxistas nas universidades brasileiras e os “intérpretes do Brasil”

Lidiane Soares Rodrigues

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Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso de história da Universidade de São Paulo (1934)

Aryana Costa

 PDF

História das “ciências humanas” e a viagem científica de Wallace na Amazônia: notas sobre ausências historiográficas

Victor Rafael Limeira da Silva

 PDF (English)

 

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.68, 2019.

Futebol, História e Política

Setembro – Dezembro

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

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Pareceristas ad hoc

Alvaro Vicente Graça Truppel (Universidade Federal do Rio de Janeiro) […]

Publicado: 03-12-2019

Edição completa

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Editorial

Futebol, história e política

Estudos Históricos |  PDF

Artigos

Traduzindo as Regras do Futebol na América do Sul, 1863-1914

Matthew Brown |  PDF (English)

“Os Leões em África”: futebol e política no Império Colonial português (1954)

João Manuel Casquinha Malaia Santos |  PDF

A transferência de jogadores no sistema FIFA e a migração de brasileiros para a Europa (1920-1970)

Marcel Diego Tonini, Sérgio Settani Giglio |  PDF

Sobre eleições, festivais e resolução de problemas: futebol de várzea e redes políticas locais em Belo Horizonte (1962-1965)

Raphael Rajão Ribeiro |  PDF

Os empresários, a pátria e a bola: nacionalismo, organização empresarial e o financiamento da seleção brasileira de futebol de 1970

Luiz Guilherme Burlamaqui Soares Porto Rocha |  PDF

A Copa do Mundo da ditadura ou da resistência? Comemorações e disputas de memórias sobre a Argentina de 1978

Lívia Gonçalves Mahaglhães |  PDF

Vida e morte do Maracanã: a batalha do estádio em dois atos

Erick Silva Omena de Melo, Gabriel da Silva Vidal Cid |  PDF

Colaboração Especial

O Nordeste também joga futebol: a Copa do Mundo e a identidade regional no Nordeste brasileiro

Courtney Campbell |  PDF (English)

A história do futebol e da literatura no Brasil (1908-1938)

David Wood |  PDF (English)

Entrevistas

Entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke

Bernardo Buarque de Hollanda |  PDF

Divulgação

Teses e dissertações do Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) do CPDOC/FGV defendidas em 2019 |  PDF

Percursos narrativos em educação matemática | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2019

Necessitamos de uma linguagem para a experiência, para poder elaborar (com outros) o sentido ou a falta de sentido de nossa experiência, a sua, a minha, a de cada um, a de qualquer um. Larrosa (2015, p. 67-68)1

O que tem mobilizado os educadores matemáticos para traçar seus percursos investigativos tomando as narrativas como inspiração teórico-metodológica? Seriam as narrativas uma linguagem para conversarmos sobre a educação matemática?

Parece-nos que esse tem sido um caminho promissor, para produzirmos nossas pesquisas, colocando-nos à escuta de estudantes e professores, como forma de darmos sentido às nossas experiências com o ensino e a formação do professor que ensina matemática. Como um ato político de valorizarmos as vozes daqueles que, historicamente, têm sido silenciados. Leia Mais

Cinema Brasileiro: Olhares Históricos, Sociopolíticos e Estéticos / Expedições / 2019

O cinema brasileiro definitivamente possui uma história, malgrado as gerações já formadas culturalmente na era das mídias digitais e da internet praticamente desconhecê-la. Em termos acadêmicos, a tradição de se pesquisar nossa cinematografia remonta aos anos de 1960, com o surgimento do curso de cinema da Universidade de Brasília (UnB), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA / USP) e da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO / UFRJ), lugares privilegiados nos quais os pesquisadores submeteram-se às necessidades de maior rigor metodológico e às demandas teóricas sintonizadas ao estudos de cinema no mundo, sobretudo na Europa. De lá para cá muita coisa mudou, pois atualmente já se pode contar com inúmeros Grupos de Trabalho (GTs), revistas especializadas, Programas de Pós-Graduação, Simpósios, Conferências, Congressos, Encontros Científicos, artigos e obras dedicadas à cinematografia brasileira – seus aspectos econômicos, seus historiadores e críticos especializados, seus filmes e cineastas de destaque – espalhados em diversos locais institucionais pelo país.

Tal envergadura intelectual-acadêmica revela que, ao menos na seara universitária, os estudiosos passaram a reconhecer a importância da matéria fílmica nacional em seus respectivos ofícios, contribuindo amiúde para o desenvolvimento de um campo de pesquisa ainda em plena ascensão. Embora ainda esteja longe de alcançar certa solidez no que atine à constituição de um arcabouço teórico-metodológico mais denso, fato que não desprestigia esta promissora e envolvente área, o cinema brasileiro cada vez mais se consolida enquanto objeto importante e recheado de possibilidades exploratórias aos pesquisadores nacionais. É exatamente nesta trilha que o presente dossiê se insere e também procura dar sua contribuição, privilegiando a diversidade de temas, objetos e sujeitos históricos ligados à nossa Sétima Arte, bem como à luz de preocupações originais de cunho histórico, social, político e estético.

Os três primeiros textos que abrem o dossiê versam sobre películas do movimento cinemanovista e / ou que receberam sua influência direta. A contribuição de Cíntia Christiele Braga Dantas, intitulada “Terra em Transe (1967): A Maldição do Poder na República das Bananas”, problematiza o clássico “Terra em Transe” (1967, Glauber Rocha) no fito de identificar o modo pelo qual Glauber Rocha expressa a atualidade de uma “face amaldiçoada” dos falsos profetas e cruzadistas que referendam a liturgia do poder num processo de sacralização que preserva nosso subdesenvolvimento.

Em seguida, Alcides Freire Ramos, com “Da Literatura ao Cinema – Um Estudo de Caso: do Romance ‘Amar, Verbo Intransitivo’ ao Filme ‘Lição de Amor’”, pautado na noção de sensibilidade, promove uma reflexão acerca da adaptação do romance “Amar, Verbo Intransitivo” (1927, Mário de Andrade) para a película “Lição de Amor” (1975, Eduardo Escorel), demonstrando que a adaptação cinematográfica traz consigo uma perspectiva crítica em relação ao curso dos acontecimentos históricos dos anos de 1970, desnudando o processo por meio do qual foram constituídas as condições para a manutenção do poder ditatorial no Brasil.

Por seu turno, Hélton Santos Gomes, em “Cinema e Estado no Contexto de Produção de Xica da Silva de Carlos Diegues”, tendo o filme “Xica da Silva” (1976, Carlos Diegues) como objeto, aborda a relação existente entre Estado e cinema no fito de explicitar uma espécie de “dirigismo cultural” por parte dos governos militares brasileiros, especialmente com propósito de construção de uma identidade nacional.

O cinema experimental piauisense dos anos de 1970 e o chamado “Cinema da Boca do Lixo” em São Paulo, em 1980, também se constituem em temáticas abordadas no presente dossiê. Frederico Osanam Amorim Lima, em “Ocupar Espaços, Eu Digo, Brechas, é por Elas: David vai Guiar e a Luta Contra as Cadeias da Existência Cotidiana”, dialogando com Michel Foucault e Michel de Certeau na problematização do filme experimental piauiense “David vai Guiar” (1972, Durvalino Couto Filho), reflete sobre símbolos, signos e sinais que representavam a contestação por parte de jovens cineastas de um controle social exercido por instituições estatais e civis. Já Fábio Raddi Uchôa, com “Filmes de Carlos Reichenbach e Ozualdo Candeias no Início dos Anos 1980: Sexualidades Tangenciais”, analisando esteticamente os filmes “Amor, Palavra Prostituta” (1981, Carlos Reichenbach) e “A Freira e Tortura” (1983, Ozualdo Candeias), procura identificar uma sexualidade com dimensões humanas e sociais, em oposição à fragmentação fetichista do pornô, realizadas no bojo do cinema erótico paulista.

A temática do cinema brasileiro e seu diálogo preciso com as cidades e o espectro político é abordada nos dois artigos subsequentes. A contribuição de André Carlos Conrado Inácio da Silva, em “A Obra Cinematográfica O Azarento, Um Homem de Sorte e a Temática da Migração na Década de 1970 na Cidade de Goiânia”, tomando como objeto o filme “O Azarento” (1972, João Bennio), se dá no sentido de demonstrar como o cineasta apropria-se da cultura histórica do Estado de Goiás e da cidade de Goiânia para construir uma narrativa cômica enquanto instrumento de análise do processo migratório para a cidade.

Em seguida, Jaílson Dias Carvalho, no texto intitulado “Os Braços da Política e o Edifício Humano do Cinema: Perspectivas de um Estudo sobre a Fundação do Cine Teatro Coronel Ribeiro (1944) em Montes Claros (MG) e a Trajetória Política do Coronel Philomeno Ribeiro”, com base no conceito de representação problematiza as motivações coronelísticas por trás da fundação do Cine Teatro Coronel Ribeiro (1944) na cidade de Montes Claros (MG), demonstrando a dominação simbólica exercida por grupos sociais e políticos por meio dos melhoramentos urbanos, sobretudo efetuados no propósito neutralizar opositores e de conservar liderança política.

O cinema brasileiro contemporâneo e suas múltiplas facetas também recebem tratamento neste dossiê. André Luis Bertelli Duarte, em “O Audiovisual e as Representações dos ‘500 anos’ do Brasil: Estética, Política e Memória em Hans Staden, A Invenção do Brasil e Brava Gente Brasileira”, tendo como objeto os filmes “Hans Staden” (2000, Luis Alberto Pereira), Brava Gente Brasileira (2001, Lúcia Murat) e a minissérie “A Invenção do Brasil” (2000 Guel Arraes & Jorge Furtado), analisa a representação do passado colonial brasileiro no contexto de celebrações, críticas e debates dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, com vistas a demonstrar o modo pelo qual cinema e televisão contribuem para a construção de uma memória pública a partir dos códigos estéticos que lhes são próprios.

Em seguida, Ademir Luiz da Silva, com o texto intitulado “Legião Urbana no Cinema: Cinebiografias em Somos Tão Jovens (2013) e Faroeste Caboclo (2013)”, problematiza a transposição das narrativas acerca da banda de rock Legião Urbana para o cinema nos filmes “Somos Tão Jovens” (2013, Antonio Carlos da Fontoura) e “Faroeste Caboclo” (2013, René Sampaio), desnudando que, no primeiro, o cenário sócio-político brasiliense no anos finais da ditadura civil-militar é suavizado com vistas a estabelecer empatia com o público jovem pela exaltação da personalidade de Renato Russo, e, no segundo, ocorre o estabelecimento das origens negroides para o protagonista, um moralismo na apresentação da personagem feminina e pouca preocupação com a fidelidade aos conceitos-chave da música homônima do filme.

Ítalo Nelli Borges, em “O Paralelismo do Absurdo: 1964 – O Brasil entre Armas e Livros e seus Desserviços Históricos e Sociais”, analisa o recente e polêmico filme documentário “1964 – O Brasil entre Armas e Livros” (2019, Filipe Valerim & Lucas Ferrugem), demonstrando por meio do diálogo com uma bibliografia especializada que, na atualidade, existe um espectro antiacadêmico que deságua na confecção de uma História pública digital, em contraponto a uma invisibilidade da História acadêmica.

Finalizando o presente dossiê, assinamos dois textos que versam, respectivamente, acerca da crítica cinematográfica e da produção historiográfica. No primeiro, intitulado “Paulo Emílio, Crítico de Cinema: Clima, Suplemento Literário e Projeto Cultural”, atribuímos tratamento hermenêutico às críticas redigidas pelo crítico e historiador de cinema brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), defendendo a hipótese de que a atuação do intelectual na revista Clima e no Suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, nos anos de 1940 e 1960, respectivamente, esteve imersa num projeto cultural mais amplo, seguindo os ditames de aspirações de modernização cultural nacional encaminhado pela via paulista.

No segundo artigo, em parceria com Angra Rocha da Silva, nominado Cinema Brasileiro: Propostas para uma História” (1979), de Jean-Claude Bernardet – Reflexões acerca de sua Importância Historiográfica”, problematizamos a obra supracitada de Jean-Claude Bernardet, procurando compreender o modo pelo qual o crítico cinematográfico propôs um realinhamento dos critérios teóricos, metodológicos e temáticos para a escrita da história da cinematografia nacional.

Com efeito, os temas, os objetos e os caminhos investigativos traçados no presente dossiê visam, sobretudo, alimentar o debate acadêmico atinente ao cinema brasileiro, cuja contribuição para o entendimento de nós mesmos é tão rica, porém, ainda demasiadamente desconhecida. Sob este prisma, cada pesquisador que contribuiu neste dossiê, informado pela sua formação específica e à luz dos problemas que lhe são caros, buscou primar pelo rigor analítico e pela urdidura de enredo mais compreensível possível. Destarte, esperamos que o leitor tenha uma excelente experiência de leitura, tal como o processo de pesquisa e escrita dos textos que seguem foi para todos os colaboradores.

Julierme Morais – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia (PPGH / UFU). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio da Universidade Estadual de Goiás (PPGEC / UEG). Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC / UFU). E-mail: juliermemorais27@gmail.com


MORAIS, Julierme. Cinema brasileiro: Olhares históricos, sociopolíticos e estéticos. Expedições, Morrinhos, v.10, n.2, mail./ago., 2019. Acessar publicação original. [DR].

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Peirce’s Speculative Grammar: Logic as Semiotics – BELLUCCI (C-RF)

BELLUCCI, Francesco. Peirce’s Speculative Grammar: Logic as Semiotics. New York/ London: Routledge, 2018. Resenha de: TOPA, Alessandro R. R. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 159-202, jan./jun. 2019.

Although the designation speculative grammar does not make its appearance in Peirce’s writings before 1895,01 the plan to erect an edifice of logical studies in the spirit of the medieval trivium that would reflect the triadic structure and essential relations of a sign to itself, its object and its interpretant, is part and parcel of his semeiotic conception of logic since the Harvard Lectures of 1865.02 Inasmuch as Speculative Grammar contemplates the most fundamental property of every sign, namely, its capacity to refer to something other than itself, and thus, have meaning as a necessary prerequisite to “be fit to embody truth and falsity”,03 this first branch of Peirce’s semeiotic logic is foundational for its other two branches––Critical Logic and Speculative Rhetoric (or: methodeutic as Peirce seems to prefer to call it after 1902),––because it deals with that property of signs which is presupposed both in their capacity to refer to objects (and thus be either true or false) and to represent the logical truth of a sign as being a consequence of the truth of other signs (and thus be either validly or invalidly derived from them). Hence, because validity and truth are grounded in ‘semanticity’, Speculative Grammar, which studies “the modes of signifying, in general”,04 constitutes the Elementarlehre of Peirce’s semeiotic logic.05 With his study Speculative Grammar: Logic as Semiotics, Francesco Bellucci does not offer a vaguely systematizing recompilation of the many outstanding papers on Peircean logic and semeiotics he has published, but rather something far more coherent and substantial. He aims at providing us with “as complete an account [of speculative grammar] as possible” (p. 9). Thus, it is a monographia in the strict sense of the term that we are holding in our hands and, as it will soon become clear, a marvelous piece of scholarship. Bellucci’s reconstruction of the development of Peirce’s conception of the foundations of his semeiotic logic succeeds in accomplishing the aim it sets itself with paradigmatic erudition, impressive expository perspicuity and great care for the most minute details––“as though”, one is tempted to say, these “were intended for the eye of God”.06 It, therefore, represents one of the most important contributions to this central branch of scholarship in Peirce since PIETArINEN’s Signs of Logic, ShOrT’s Peirce’s Theory of Signs and STJErNfELT’s Natural Propositions.

As this is a book one can learn a lot from, and––if you are working on Peirce’s semeiotics––will have to learn a lot from, in what follows I shall first sketch the methodology and general structure of the work. Subsequently, I shall, en detail, focus on the main strands of Bellucci’s reconstruction, so as to illustrate the value of his work and indicate some fundamental problems he wisely––thus: legitimately–– stays away from.

The author’s methodological aim to offer of a purely “historical reconstruction” (p. 10) of Speculative Grammar that has no other aim but to “understand Peirce’s ideas, their genesis, and their development” (ibid.), could easily be regarded as revealing a lack of systematic interest. A lack of interest that philosophers, semioticians and logicians accustomed to read historical texts through the lenses of contemporary debates will see exacerbated by Bellucci’s exclusive focus on “the ‘internal’ justification of the evolution of Peirce’s ideas on signs”––contraposed to “the ‘external’ justification of these ideas themselves” (ibid.)––and by his ascetic renouncement “to evaluate them or bring them to bear on subsequent philosophical and semiotic discussions” (ibid.).

Is there a rationale for this suspensio iudicii? And, is it a skeptical suspension of judgement or rather a critical suspensio iudicii indagatoria? Firstly, it should be noted that an account of virtually any of the central aspects of Peirce’s philosophy requires the expositor to come to grips with and find her own ways through the labyrinth of unpublished manuscripts. In the case of Speculative Grammar, the philological challenge is even greater, inasmuch as semeiotics constitutes one of Peirce’s central domains of research between 1902 to 1908, while the chronological edition of the Writings of Charles S. Peirce has not proceeded further than to the year 1892. Secondly, it should be noted that the task of giving a genetic account of Speculative Grammar requires not only a thorough grasp of Peirce’s philosophical development as a whole, but also of his work in the other two branches of the semeioto-logical trivium and, in particular, of his mathematical logic in algebraic and diagrammatic form, which, as Bellucci shows, had the strongest impact on the theorydynamics within Speculative Grammar. Thirdly, the study of Peirce’s semeiotics is still catching up to Peirce, well knowing that this will require us to go beyond him at some point, especially as Peirce himself “perceived that his powers were insufficient to cope with the task” (p. 10). As Bellucci is planning to complement his account of the grammatical foundations of Peirce’s logical trivium with monographs on Critical Logic and Speculative Rhetoric (cf. p. 1), the present volume represents the first part of a project that aims at a complete reconstruction of Peirce’s semeiotic logic, in order to––so we assume––become able to contribute to it as soon as the suspensio iudicii indagatoria has identified the grounds on which it can build its verdicts.

Thus, the author’s abstinence from critical judgment, systematic contextualization and argumentative confrontation with other theory-options serves a higher purpose: the purpose of doing things in that order that promises to do them right.

Although Bellucci’s account takes the form of a comprehensive diachronic reconstruction of the problems, ramifications and solutions appearing on each developmental stage of Speculative Grammar, it is nonetheless possible to read his whole account as an analysis of the process that thrice forced Peirce to broaden his conception of the fundamental logical triad and thence undertake ‘reforms’ of Speculative Grammar.

In the Minute Logic of 1902, Peirce realizes that the trichotomy of symbols–– term, proposition, argument––is not a subdivision of the trichotomy of signs into icons, indices and symbols, but rather constitutes an independent dimension of signhood which––combined with the first trichotomy––yields a classification of signs that is no longer a taxonomy of classes of signs but rather of semeiotic parameters. Out of nine combinatorially possible classes of signs, six are recognized as semeiotically possible on the basis of unsystematized ad hoc rules (cf. p. 199). This “‘first reform’ of speculative grammar” (p. 196), consequently, generates two tasks.

Firstly, the task to broaden the fundamental logical division of term, proposition and argument in such a way that it is no longer restricted to representing parameters of symbols exclusively, but of all signs as such. Secondly, the task of identifying those rules of compossibility in accordance with which semeiotic parameters can be combined so as to yield classes of signs. Both tasks are tackled in the context of the Lowell Lectures of 1903 and its accompanying Syllabus, in which Peirce replaces the classic fundamental logical triad with the trichotomy of rheme, dicisign and suadisign and, moreover, identifies the rules of parameter-compossibility for linearly ordered trichotomies.

But in “Nomenclature and Divisions of Triadic Relations”, composed in late 1903, Peirce already moves on to the “‘second reform’ of Speculative Grammar” (p.

256) and introduces a third trichotomy of parameters in which signs are regarded in relation to their own mode of being and thus divided into signs that are possibles (qualisigns), existing events (sinsigns), or generals: types, habits or laws (legisigns).

Out of twenty-seven mathematically possible combinations, ten are shown to be semeiotically possible classes of signs.

Finally, in a draft of the “Prolegomena for an Apology of Pragmaticism”, Peirce in 1906 replaces the fundamental logical triad of rheme, dicisign and suadisign with the new triplet of Seme, Pheme and Delome. The second of these terms, i.e.

the Pheme, “embraces […] not only Propositions, but also all Interrogations and Commands, whether they be uttered in words or signalled by flags”.07 As we shall see, the introduction of this new version of the fundamental logical triad marks the moment in which––thus Bellucci will argue––Peirce’s “findings in speech act theory necessitate a new grammatical terminology” (p. 315).

This necessitation is due to the fact that, according to Bellucci, the real driving force behind the “third reform of speculative grammar” (p. 286; cf. p. 311)––which starts to emerge in the doctrine that a sign has two objects and three interpretants,–– is the insight that the proposition ought to be differentiated from the act of asserting  it, as “the act of assertion is not a pure act of signification”.08 It is, thus, the ‘semantic impurity’ or ‘pragmatic surplus’ of the act of assertion that necessitates the introduction of additional “illocutionary” and “perlocutionary trichotomies” (cf. pp.

310 ff.) that are capable of accounting for the various effects sign-action generates (cf. p. 298). Bellucci’s understanding of the nature of the third reform of Speculative Grammar thus is that of a late Peircean speech-act-theoretical turn.

As all three reforms occur between 1902 and 1905, the first half of the book (ch. 1 to 5) deals with the emergence and formation of Speculative Grammar, whereas the second part (ch. 6 to 8) analyzes the dynamics of the aforementioned reforms. Thus, whereas the two initial chapters deal with Peirce’s early semeiotic theory (1865-1873), a subsequent triplet of chapters tackles the development from 1880 to 1900, before the last three chapters analyze the progressive ‘reformatory’ broadening of Speculative Grammar into a General Semeiotic, i.e. into “a theory of all possible kinds of signs, their modes of signification, of denotation, and of information, and their whole behaviour and properties”.09 In a closing chapter, Bellucci eventually focuses on both Peirce’s metalogical justification for conceiving of logic as a theory of signs and on his methodological reasons for extending the domain of Speculative Grammar to comprise all forms of signs, including those that he refers to as “emotional and imperative signs” and are to be distinguished from “cognitional signs”10 or “logons”.11 Although Bellucci’s account doubtless offers its most fruitful systematic contributions in chapters 6 to 8, he nonetheless manages to add substantial insights to the literature in virtually every chapter. Accordingly, his study of Peirce’s earliest conception of a semeiotic logic in the Harvard and Lowell Lectures of 1865/1866 reconstructs in unprecedented detail and clarity the project of a science named “Objective Symbolistic”, bringing to the fore how the substance of most later developments is already present in these earliest semeiotic texts and thus also helps us to better understand how Peirce’s semeioto-logical inquiries are originally related to his theory of categories, if a more nuanced account of his early philosophical development is superadded (see below).

Peirce’s “Objective Symbolistic” is his first attempt to present a semeiotic logic in the tradition of Locke’s third branch of science named “σημειωτική, or the Doctrine of Signs”.12 As Bellucci’s reconstruction shows, this first attempt contains a sequence of––as I would put it––‘basal theoretical operations’ that will remain omnipresent in Peirce’s methodology. Let me only highlight the seven most important operations, and permit me to initially skip the first: there is (ii.) the definition of logic in semeiotic terms, which is presented in the context of (iii.) an analysis of the constitutive elements of the sign-relation. Moreover, we can recognize the basal operations of (iv.) a classification of signs and of (v.) a classification of symbols. Finally, there is the basal operation of (vi.) a classification of arguments, including (vii.) an account of inferential validity on the basis of (ii.)-(vi.).

Now, according to Bellucci, this methodological sequence is initially established independently of a theory of categories. Rather, it will only be when Peirce has consolidated his system of logic that he can perform “the Kantian step”13 to derive metaphysical categories from logical forms. In this sense, so Bellucci argues, the first basal operation that we need to add––and which coincides with the first step in the argumentative order of “On a New List of Categories”: derivation of categories first (§§1-14), deduction of a system of logical forms next (§15)––represents a reversal of the historical order of discovery which saw Peirce moving from conceiving all logical form to be rooted in the sign-relation to establishing his precisive gradation of categorial concepts of second intention constituting the intelligibility of sensuous manifolds in the unity of the proposition (pp. 49 ff., 71).

Bellucci’s claim that the accomplishment of the operative endeavors (ii.) to (vii.) which erect Peirce’s first semeiotic logical doctrine, “[h]istorically […] came before the problem of determining a new list of categories” (p. 50), however, is only half the truth. As the student of Peirce’s early theory of categories (1857-1865) knows, these thoroughly anti-transcendentalist essays––i.e. attempts to outline a theory of categories that aims to show that the Kantian categories can only be apprehended as concepts under the supposition of their also being structures of being, i.e. concepts that do not only have empirical validity as conditions of the possibility of experience, but are also transcendentally real as conditions of the possibility of “creation”14–– left Peirce, as he remembers, “blindly groping among a deranged system of conceptions”, so that he, “after trying to solve the puzzle in a direct speculative, a physical, a historical, and a psychological manner […], finally concluded the only way was to attack it as Kant had done from the side of formal logic”.15 The approval of the “Kantian step of transferring the conceptions of logic to metaphysics”16 thus is the result of a categoriological failure that involves a shift from an idealism-morethan- transcendental (before 1865) towards the “realistic phenomenalism of Kant”,17 which is the fruit of a close second reading of and “personal enthusiasm for Kant”.18 Peirce’s appreciation of the “Kantian step”, therefore, must mature between “Letter Draft, Peirce to Pliny Earle Chase”19 and the “Harvard Lecture I.” (February 1865), i.e. in the second half of 1864, in which he focuses on Aristotelian and Hamiltonian Logic, Boolean Algebra20 and probably discovers “Prantl, the historian of Logic”.21

Unsurprisingly, it is in the “Harvard Lecture I.”––in which the project of an Objective Symbolistic is originally exposed––that we still can see how the relational structures articulated in Peirce’s former pronominal categories I-Thou-It still guide him in conceptualizing his logical triads (before the former are then supplanted by the new terminology developing between 1865 and 1867): A symbol in general and as such has three relations. The first is its relation to the pure Idea or Logos and this (from the analogy of the grammatical terms for the pronouns I, IT, THOU) I call its relation of the first person, since it is its relation to its own essence. […] The third is its relation to its object, which I call its relation to the third person or IT.22 Now, independently of these developmental details, the basal operation in Peirce’s account of his semeiotic logic will always consist in (i.) a categorial derivation of the conception of representation or signhood (the schema of all schemata of understanding). The vexed question to what extent this derivation––that Bellucci insightfully reconstructs in line with De Tienne (1996)––is “a metaphysical or a transcendental deduction” (p. 51), however, seems to me misleading, inasmuch as it prevents bringing into view what Peirce––building on Kant (cf. pp. 51-54)––truly accomplishes in “On a New List of Categories”: a deduction of the categories “from above” (as Bellucci, p. 54, rightly sees) that moves regressively from a “highest point”,23 i.e. from the propositional unity of a sensuous manifold sealed in the conception of Being, to its categorial constituents, without requiring a Leiftaden, Transzendentale Deduktion and Schematismuskapitel, because it articulates what remained implicit in Kant’s sketchy metaphysical deduction: the common triadic structure of those complex “functions” or “acts” of the understanding which––as it is operative in both the bringing about of analytical conceptual unities and in the bringing about of the unity of a sensuous manifold24 in the threefold synthesis25––is constitutive for establishing our reference to objects in judgments qua “representations of representations”,26 as Hoeppner (2011) has shown. This common triadic structure or abstract identity of analytical and synthetical acts of the understanding consists in their (i.) necessary reference to a sameness (“reference to a ground”/predicateterm/ synthesis of reproduction), which presupposes (ii.) a necessary reference to a numerically different entity (“reference to a correlate”/subject-term/synthesis of apprehension), which in turn presupposes (iii.) a necessary reference to an act of mediation (“reference to an interpretant”/conceptus communis/synthesis of recognition) which represents the unity of sameness and difference: A representation that is to be thought of as common to several must be regarded as belonging to those that in addition to it also have something different in themselves; consequently they must antecedently be conceived in synthetic unity with other (even if only possible representations).27 For the middle period of Peirce’s development from 1880 to 1895, dominated by work on the Algebra of Logic (including the Logic of Relatives), chapter 3 provides us with a technically sophisticated account of how Peirce’s work in mathematical logic transformed his understanding of Speculative Grammar as it is––incognito––represented in the first part of the paper “On the Algebra of Logic” of 1885. Here Peirce––as a consequence of the discovery of quantification with his student O. H. Mitchell––for the first time moves to a position that attributes an essential function in reasoning to each of the three kinds of signs, inasmuch as (necessarily symbolically represented) generality, (necessarily indexically represented) reference to a universe of discourse and the (necessarily iconical) representation of the arrangement of the parts of an argument are essential components of any reasoning and thus require corresponding semeiotic functions: “We interpret symbols and we are referred to objects by indices, but the form in which symbols and indices are connected (the syntax of a formula) can only be observed in iconic signs” (p. 121), summarizes Bellucci.

This position is then refined in Peirce’s first mature attempt to produce a summa of his logic in the extensive manuscript How To Reason (1894), to which chapter 4 is devoted. Together with the Minute Logic of 1901/2 and the Syllabus and Lowell Lectures of 1903, How to Reason represents one of the most comprehensive Peircean efforts to give a systematically, i.e. philosophically grounded account of his complete logic. Again, Bellucci’s reconstructive focus on formal grammar pays off substantially, not only because these roughly 600 manuscript-pages could be tackled from a variety of developmental points of view––e.g. by considering if and how Peirce’s Evolutionary Metaphysics, worked out in the preceding years, impinges on logical conceptions, or by studying the germs of the coenoscopic conception of philosophy,––but also because Bellucci never forgets to connect the landmarks of his narrative: In How To Reason we are, on the one hand, still moving in a theoryarchitecture in which the main systematic ideas stemming from “On a New List of Categories” (1867) and “On the Algebra of Logic” (1885) are still foundational, while, on the other hand, the analyses of Speculative Grammar gain profile and start to build up a complexity that indicates the necessity to identify additional dimensions of signhood (p. 129-135). This necessity is arising, firstly, with a view on the symbolical nature of quantificational indexical signs establishing a reference to the universe of discourse, which thus leads to a refined typology of indexical signs, comprising direct-objective (attention-steerers like pronouns and pointers etc.), relative (anaphoric expressions indicating objects of discourse) and indirectselective indications acting as instructions for the selection of objects in quantifying expressions (cf. p. 139-141). Secondly, this need to classify signs in accordance with respects other than their representative character emerges in the context of the differentiation between two kinds of iconic signs operating on different levels of semeiosis: There are icons that are involved by symbols (exciting ideas or likenesses of object-properties and relations) and are labelled as “icons of first intention”;28 and there are “monstrative” “icons of second intention”29 which represent logical form in syntactical arrangements, logical constants and argumentative structures.

The specific iconicity of these “monstrative signs” is grounded in their nature as signs that can neither be indicated nor symbolized but only shown (cf. p. 142-147).

The broader systematic context, in which the aforementioned taxonomical complications emerge, is defined by the analysis of assertion (cf. p. 136-143, 150- 168), which constitutes the basic semeiotic function of an intelligence capable of learning from observation and reasoning30 and thus becomes the central subject matter of the first branch of an exact logic. This branch is now explicitly referred to as Speculative Grammar, inasmuch as “to study those properties of beliefs which belong to them as beliefs, irrespective of their stability […] will amount to what Duns Scotus called speculative grammar”.31 As this discipline “must analyse an assertion into its essential elements, independently of the language in which it may happen to be expressed”,32 the reader might desire to hear more about the linguistic aspects and backgrounds of Peirce’s analysis of the universal structures of assertion,33 especially because the respective passages from the “Short Logic”,34 or from the Minute Logic35 have not been published in the main editions of Peirce’s works. Bellucci, however, prefers to focus on the primordial semeioto-logical aspects and designs chapter 5 as a backdrop on which the reforms taking place after 1900 will unfold.

In this sense, we can see how Peirce’s earlier versions of the analysis of assertion already anticipate the pincer-movement of the Syllabus of 1903 which proceeds by establishing the mutual confirmation of coenoscopic observation (the “rhetorical evidence”36) with the a priori deduction of the semeiotic functions necessarily required to represent truth as something that “consists in the definitive compulsion of the investigating intelligence”.37 But we can also recognize that Peirce’s conception of assertion still appears to be enclosed in the representationalist horizon defined by the § 19 of Kant’s CPR (cf. p. 157). As a consequence, Peirce does not as yet realize that assertion is “more an act that we perform with a symbol than something inherent to the symbol itself”, as Bellucci aptly puts it (p. 163).

Moreover, the variety of signs emerging from the analysis of assertion as requiring three elementary semeiotic functions––namely, (i.) an iconic sign of an idea to be attributed to (ii.) an indexically denotated occasion of belief-compulsion to which (iii.) an icon must symbolically be represented to be applicable (cf. p. 157 ff.) –– emphasizes the existence of modi significandi that cut across the taxonomy and thus display the limits of a theory that cannot explain the mixed nature of signs that are both iconic and symbolical––like the copula,––or indexical and symbolical, inasmuch as a weathercock indicatively asserts while a quantifier symbolically indicates (cf. p. 166 f.). Finally, the years 1895 to 1897 see emerging an approach to the analysis of deductive reasoning that will soon supersede the algebraic methods predilected in the decennia before: logical graphs (cf. p. 168-179).

Reacting to the taxonomical difficulties sketched above, Peirce, in the Minute Logic (1901-1902), introduces a radically modified approach to the classification of signs which Bellucci reconstructs as the “‘first reform’ of speculative grammar” (p.184 ff.). This reform, however, takes place in the broader context of a quite radical architectonic revamping of Peirce’s philosophy that is for the first time systematically presented in the Minute Logic and subsequently consolidated in the Carnegie Application (1902) and in the Harvard and Lowell Lectures of 1903. The major element of this architectonic reorganization is the triadic organization of Philosophy as a positive coenoscopic science based on common experience which––in the Comtean order of principle-dependence––is preceded by Mathematics only and has Phenomenology (methodologically recasting category-theory), the new Normative Sciences (Esthetics, Ethics and Logic) and Metaphysics as its three main divisions. Bellucci does not spend too much time on elucidating how radical a break with the past Peirce’s new architectonic constitutes––and for which it would take “[m]ore than six lectures […] to set forth in the tersest manner the reasons which have convinced me that Philosophy ought to be regarded as having three principal divisions”,38 as Peirce writes in 1903,–– but he gives an informative general overview of the Minute Logic (pp. 183-188) which elucidates the teleological character Peirce now explicitly ascribes to logica utens and consequently is reflected in the normative aspects of its systematic study as a logica docens dependent on esthetic and ethical principles (cf. p. 185-188).

The closer analysis of Speculative Grammar is then premised by a highly interesting consideration of the relation of logic to semeiotics (p. 188-193, cf. also p. 353-363) in which Bellucci arrives at a modification of Max Fisch’s account of the development of Peirce’s semeiotic logic from an early logic-within-semiotic to a mature logic-as-semiotic.39 Although Bellucci can confirm that Peirce in the Minute Logic factually identifies both disciplines when he defines Logic as “the science of the general necessary laws of Signs and especially of Symbols”,40 he nonetheless emphasizes that the mature Peirce’s position is rather one better labeled as semiotics-within-logic, inasmuch as logic is primarily taken to be a science that deals with arguments and thus with symbols, although the necessary task to provide an account of all possible signs is assigned to Speculative Grammar for reasons that will become increasingly relevant in the final years of Peirce’s semeiotic inquiries from 1904-1908. Logic, thus Bellucci explains, “is identified with the theory of signs because one of its departments is identified with that theory” (p. 192), so that for the mature Peirce the ultimate reason for the identification of Logic with general semeiotics is Speculative Grammar. Consequently, the possibility of erecting a logical theory that is thoroughly anti-psychologistic, inasmuch as it sees the actualization of sign-relations in psychological processes such as human thoughts as secondary to their determinant form, is grounded in the possibility of establishing a formal theory of the essential conditions signs need to conform to in order to represent inference.

Bellucci’s magisterial account of Peirce’s Speculative Grammar in the Minute Logic carefully reconstructs the foundations of such as formal semeiotic by moving through that series of basal operations we have noted to be its methodological backbone since 1865. By moving from the categorial division of the significant character of a sign into two degrees of degeneracy (icon, index) and one genuine kind (symbol) to the division of symbols and the grammar of arguments (differentiating abduction; corollarial and theorematic deduction; crude, qualitative and quantitative induction), Bellucci, however, surveys the familiar material of Peirce’s semeiotic logic (cf. p. 193-212) with particular interest for what he refers to as “the real novelty of the Minute Logic” (p. 198). What is this novelty? It consists in the way how the two trichotomies of signs Peirce had been working with for many years are related to each other. Prior to the Minute Logic (thus from 1865 to 1901), Peirce was conceiving of the trichotomy of symbols (terms, propositions, arguments) as a subdivision of the first trichotomy which has the representative character of a sign––being either a resemblance (icons), a real relation (indices) or a habitual use (symbols)––as its ratio divisionis. With the Minute Logic, however, Peirce starts to conceive of the trichotomy of symbols no longer as subordinate to the first trichotomy, but rather as coordinate. As a consequence, Peirce’s taxonomy of signs is no longer a division of objects into exclusive classes, but rather a taxonomy of “ways of classifiying signs, i.e. as semiotic parameters by the combination of which the classes of signs are obtained” (p. 183). The classification of signs henceforth becomes an operation consisting of two major steps, where the first step aims at the identification of the essential semeiotic parameters, while the second step––on the basis of rules of semeiotic compossibility––must ascertain which combinations of parameters yield possible signs (cf. p. 198). With the six possible classes of signs that can be obtained from combining both trichotomies, we are thus finally able to taxonomically explain symbols that indicate (qua symbolic terms) or indices that assert (qua indexical propositions).

With Chapter 7, Bellucci’s account turns to the most fruitful period in the development of Speculative Grammar: the autumn months preceding the Lowell Lectures of 1903 see Peirce also working on a pamphlet designed to provide the audience with a synopsis of his most fundamental ideas concerning his philosophical architectonic in general and his graphic and normative logic in particular. It is in these manuscripts (MSS 478, 800, 539, 540) which constitute the material for A Syllabus of Certain Topics of Logic, that Speculative Grammar takes on the general form Peirce will try to perfect and expand in the final years of his life. And it is especially with a view on the fermentation of ideas in these complex manuscripts that Bellucci’s methodological focus on their compositional history pays its dividends, as nobody has ever with such care and lucidity reconstructed their most likely compositional sequence (cf. p. 215 f., 259 f.). In doing so he unearths a wealth of insights that allow us to better understand the questions Peirce is asking and the developments these give rise to.

These developments are taking place in the framework of a conception of Speculative Grammar that, by the end of 1903, has become a science the main distinctions of which––whether in the theory of relations or in the theory of signs properly speaking––are all thoroughly grounded in the phenomenological categories of Firstness, Secondness and Thirdness with their respective degenerate modes. Inasmuch as all three Normative Sciences are taken to have a physiological, a classificatory and a methodical compartment, Speculative Grammar is now defined as the “physiological [department]” of a “general theory of signs”.41 The main development this chapter reconstructs is the “second reform” of Speculative Grammar (p. 259) which will eventually lead us from a taxonomy of signs consisting of two trichotomies in “Sundry Logical Conceptions” (SLC) to one consisting of three trichotomies in the “Nomenclature and Divisions of Triadic Relations” (NDTR).

Moreover, Peirce’s analysis of the dicisign in SLC already prepares the ground for the later typology of interpretants. The first step in the direction of a triple-trichotomytaxonomy, however, results as an immediate consequence from the first reform of Speculative Grammar in the Minute Logic: If the second trichotomy of classes of signs (differentiating between terms/rhemes, propositions and arguments) is no longer construed as a subdivision of the last element of the first trichotomy (differentiating between icons, indices and symbols) of classes of signs, but rather as a coordinated set of semeiotic parameters (i.e. of properties signs can have along with other properties), then, as it is no longer necessarily the case that whatever is a symbol cannot be an icon or an index, it becomes a desideratum to introduce new terminology for the trichotomy, as this in its former shape was exclusively applying to symbols and not to all signs. Thus, Peirce in SLC introduces sumisigns, dicisigns and suadisigns as parameters referring to the explicitness of the relational complexity of a sign that are not exclusively featured in terms, propositions and arguments, but rather in all signs having either one, two or three essential parts made explicit.

Whereas this first step concerns the perfecting of the conception of the second triad as reflecting the parameters of a completely independent dimension of signhood (that, eventually, will be grounded in the relation of a sign to its proper interpretant in MS 800 and NDTR), the second step to be noticed propels us towards the discovery of a third trichotomy (which in NDTR will be grounded in the relation of the sign to its own mode of being). As Bellucci had already remarked in an earlier stage of his account, the distinction between quali-, sumi-, and legisigns has its roots in the differentiation between two different modes of generality pertaining to symbols (cf. p. 134, 219). These signs, so Peirce had clearly seen in How To Reason, are not only general formaliter, i.e. in terms of their signification, but also materialiter, i.e. in so far as they exist only as actualizations of a general type (cf. p. 134). But as Peirce now realizes in 1903, existing-as-the-replica-of-a-type is not a mode of being restricted to symbols, but pertains no less to such signs as conventional icons (i.e. hypoicons) and linguistically articulated indices (i.e. subindices). And as the formulation of the conventions for the Gamma graphs (“graphs of graphs” in which graphs are considered materialiter and do thus also need to be represented as referring to a specific occurrence of a graph and not to its legisign), the distinction between types and tokens becomes both more general and more urgent in 1903 (cf. p. 249, 259), thus motivating the systematic account of the matter in NDTR which will eventually introduce the mode of being of a sign as a third dimension of signhood with its respective trichotomy.

By November 1903, Peirce’s Speculative Grammar has thus become a science which presents a substantial portion of its results in the guise of three trichotomies of semeiotic parameters which are grounded in the sign’s relation to itself, its object and its proper interpretant. The identification of the three trichotomies, however, will yield no classification of signs as long as the rules determining the compossibility of semeiotic parameters have not been specified, inasmuch as it is only through the combination of parameters that classes of signs can be obtained. Therefore, the question arises whether these resulting classes can be validated as possible on the basis of semeiotic rules of compossibility. Chapter 7 thus closes with an account of Peirce’s methodology of identifying the possible classes of signs in NDTR (p. 264- 278). More on this below.

Peirce’s true hothouse of semeiotic insights in the Fall of 1903, however, is the analysis of the proposition, to which Bellucci refers as the “deduction of the dicisign” (p. 220). This deduction is the continuation of the analysis of assertion that we had already seen taking central stage in the Speculative Grammar of 1895-1897 and starts to now yield the most fundamental insights into the structure of the sign-relation itself. The two drafts of the deduction of the dici-sign in SLC aim to demonstrate that dici-signs––according to the newly devised terminology for the second trichotomy and on the basis of the division of signs in virtue of their relational complexity–– must necessarily be composed of two parts in order to be that kind of sign that “represents its object as if Second to itself”.42 But, in which sense is this so? Why must a proposition (as a kind of dicisign) necessarily represent its object as standing in dyadic relation to itself? Bellucci introduces us to Peirce’s intricate and much reworked demonstration in two major expository steps. Firstly, a proposition is the representation of a fact. As such, however, it needs to represent that its object is such-as-it-is-represented-to-be independently of its being represented. Thus, secondly, the central question arises, how it is possible for a proposition to represent a fact as being independent of itself.

As this necessarily requires that the object ought to be represented as having the determinateness it is represented to have, not as a consequence of the proposition (i.e. as a relation of reason expressible only symbolically with an argument), but as a consequence of its being whatever it is, i.e. as an existential relation of fact expressible only indexically in a sign that professes of itself to be true, the demonstration of the possibility of such a representation becomes the semeiotically concretized aim of the deduction of the dici-sign. In Bellucci’s reconstruction, this deduction might be broken down into three major argumentative steps. In the first step it is shown that it is possible for a dici-sign to represent a fact as being independent of a proposition by representing itself as an index of its object (p. 220-224). In the second step it is shown that a dici-sign––in order to represent itself as an index of its object––must in the first place be able to represent itself as a sign of a certain kind. In the third step (belonging to the second draft of the deduction in SLC) it is eventually shown that a dicisign, in order to be represented by its interpretant as an index of its object, must be internally structured accordingly, i.e.

consist of two parts (p. 231-232). Quod erat demonstrandum.

There is, however, an important complication occurring in the second step: as Peirce answers the second subquestion concerning the possibility of the selfdepiction of the dici-sign by introducing the interpretant of the dici-sign as that semiotic function which allows for the representation of the dici-sign as an index of its object (understood as a concrete thing, not as a state of affairs, which would force on us a picture-theory of the proposition that necessarily conceives of propositions as structured entities mirroring structured states of affairs, thus deriving their structure from states of affairs; cf. p. 223 f.), a conception of the sign-relation is emerging which is no longer compatible with the definition of a sign as a triadic relation in which the sign brings an interpretant into the same triadic relation to one and the same object to which the sign itself stands, because the interpretant of a dicisign as an index of its object does not represent (and thus does not have) the same object as the dicisign, but rather represents (and has as its object) the relation of the sign to its object. In Bellucci’s words: “[W]hile the sign represents an object, the interpretant represents the sign’s representation of the object” (p. 224 f.; emphasis added). As Peirce’s ad hoc solution of this fundamental problem, namely the introduction of the distinction of a primary and a secondary object of the dici-sign in MS 478, boils down to reduplicating the distinction between the relation of the sign to the object and the relation of the interpretant to the object, Peirce will soon be led to consider the possibility of differentiating kinds of interpretants.

As Bellucci rightly emphasizes, however, the idea of differentiating between two semeiotic functions of the interpretant is already palpable in the definition of the sign provided by the final draft of SLC. Here Peirce, after having characterized the sign-relation as a triadic relation obtaining between the representamen (as a first), its object (as a second) and its interpretant (as a third), in which the first determines the third “to assume the same triadic relation to its object in which it stands itself to the same object”,43 he adds that “besides that, it [the Third] must have a second triadic relation in which the Representamen, or rather the relation thereof to its Object, shall be its own (the Third’s) Object, and must be capable of determining a Third to this relation”.44 The task of unpacking the consequences of this fresh insight into the existence of a potential plurality of semeiotic functions of the interpretant constitutes the motor of the developments Speculative Grammar takes after the Syllabus of 1903. Now, in order to chart the contours of the still expanding territory of semeiotic inquiries to the exploration of which the eighth chapter of Bellucci’s developmental account of the years 1904 to 1908 is devoted, it might be useful to first indicate the main directions into which Peirce’s semeiotic inquiries move and, moreover, to rehearse the methodological principles of the classification of signs.

Firstly, there is a “third reform of speculative grammar” (p. 286) to be noted, which consists in the refined articulation of the internal structure of the sign-relation by introducing the distinction of dynamic and immediate object on the one hand, and the differentiation between three kinds of interpretants on the other hand.

On the backdrop of this fundamental remodelling of the sign-relation––already adumbrated in the final stages of Peirce’s work on the Syllabus of 1903––Bellucci, like ShOrT (2007) and others before, sees emerging three main taxonomical schemes; namely (i.) schemes based on six trichotomies (1904-1905), (ii.) such based on ten trichotomies (1906-1906), and (iii.) similar tenfold schemes (1908) with which, however, a different approach to establishing parameter-compossibility is taken (cf. p 286). Within this final development, so Bellucci claims (cf. p. 286), Peirce manages to arrive at a final position concerning the first of the two tasks that a complete classification of signs requires (i.e. the task of providing a complete system of semeiotic parameters by trichotomizing the categorial aspects of the signrelation), but he fails to solve the problems connected to the second (i.e. the task of determining the rules of compossibility of the semeiotic parameters, so as to be able to determine the classes of possible signs).

Bellucci introduces Peirce’s principles of sign-classification on the basis of the three-principles-reconstruction given in Burch (2011). Thus, we start out by claiming that each trichotomy produces triads consisting of three ordered elements: <1, 2, 3>.

We add, secondly, that the Triads themselves are linearly ordered : I. <1, 2, 3>, II. <1, 2, 3>, III. <1, 2, 3> etc. On this basis, a third principle of combination specifies that in order to obtain a––as one could say––mathematically or combinatorially possible class of signs, we have to form a triplet of elements {m/n/r} to which each of the three triads contributes one element, e.g. {1/1/2} or {3/3/2}. As the combinatorially possible classes of signs in a system with three triads of sign-parameters, based on three trichotomies of an elementary respect of the sign-relation––i.e. of the sign (i.) to its mode of being, (ii.) to its object, (iii.) to its interpretant––are 33 = 27, the question arises how many of these are semeiotically possible (cf. p. 265). A task, we might add, that is analogical to the one Aristotle needs to tackle after having established the four logical forms of non-modal premisses45 and the three figures of the syllogism which,46 as is well known, consists in identifying the logically valid syllogistic argument-schemes within the 192 mathematically possible ones.

Analogically, a set of rules needs to be established which allows us to distinguish the combinations which are combinatorially possible from those that are semeiotically possible. As the set of rules that Peirce gives in NDTR47 is incorrect, as it factually does not allow us to obtain the table of ten classes of signs worked out in NDTR,48 and as he will not come to a correct statement of the rules of parameter combination before 1908 (cf. p. 267), Bellucci’s statement of the rule stays in line with Burch49 and ShOrT, according to whom “nothing can determine anything of a higher category than itself”.50 Or, as Bellucci’s puts it (p. 266), who cum Short also assumes that, as each preceding trichotomy acts as the determinant of a subsequent determined trichotomy, the same relation consequently also holds of the elements of the triads: “a determinant element in a combination cannot have a lesser categorial value than the determined element” (p. 266). Accordingly, the ten classes of semeiotically possible signs are: {1/1/1} = rhematic-iconic qualisign or qualisign; {2/1/1} = rhematic-iconic sinsign; {2/2/1} = rhematic-indexical sinsign; dicent indexical sinsign = {2/2/2}; {3/1/1} = rhematic-iconic legisign; {3/2/1} = rhematic-indexical legisign; {3/2/2} dicent-indexical legisign; {3/3/1} = rhematic symbolic dicisign or rhematic symbol; {3/3/2} = dicent-symbolic legisign or dicent symbol; {3/3/3} = argumentative-symbolic legisign or argument.

On the backdrop of this reconstruction of Peirce’s ‘ten out of three’- classification, it is easy to understand the nature of the problem which arises once additional trichotomies are identified and corresponding triads of parameters are established: Will there still be a linear order in which determinant triads determine subsequent determined triads? If not, then the project of a complete classification of all possible signs seems to become impossible. Peirce held on to this project, but he neither succeeded in arriving at a satisfactory linear ordering nor in fully working out an alternative non-linear approach (cf. p. 334-348), thus leaving the task in its generality unresolved (cf. p. 286).

The distinction between two kinds of objects and three interpretants, which introduces three additional relates into the sign-relation, emerges in a letter Peirce writes to Victoria Welby in October 1904.51 The reason for introducing these new elements, however, does only start to become clearer in October 1905, when several entries in the Logic Notebook allow us to reconstruct the new ‘post-NDTR’ classification of signs, as it takes shape in manuscripts and letters of the years 1904 to 1905.52 The first thing to gain clarity in this transitory context, is the relation of the old three relates of the sign-relation to the three new ones: The object that was since 1865 referred to as the object tout court, and the relation to which grounded the triad of icon-index-symbol, is now referred to as the dynamic object.

Moreover, the interpretant that was since 1865 referred to as the interpretant tout court, and the relation to which (since 1903) grounded the triad of rheme-dicisignsuadisign, is referred to as the “Significant Interpretant”,53 “signified interpretant”54 or “representative interpretant“55 in the transitory period in which Peirce operates with six trichotomies. Thus, the new distinctions that become particularly pressing to comprehend, both in their motivation and in the outlook they encapsulate,

are those referred to with the terms (i.) ‘immediate object’, i.e. the “object as it is represented”, (ii.) ‘immediate interpretant’, i.e. the “interpretant in itself’, and (iii.) ‘dynamic interpretant’, i.e. the “interpretant as it is produced”.56 As Bellucci shows, the theoretical outlook in which Peirce takes (i.) the immediate object to play its role is that of quantification. The ratio divisionis of the relation a sign has to its immediate object, thus, is not that to another entity, but rather to a part of the dynamic object, namely to its quantity. In this sense, the relation of a sign to its dynamic object is either vague, actual, or general, i.e. particular, singular or universal. As this specification is only possible as the specification of a dicisign, “the immediate object”, thus Bellucci summarizes his analysis, “is the manner in which the dynamic object is quantitatively given (i.e., quantified) within a propositional context” (p. 293).

Building up on ShOrT’s57 “brilliant intuition” of a ‘speech-act-theoretical’ motivation guiding Peirce in his hexadic reconfiguration of the sign-relation for the sake of obtaining further trichotomies (p. 298), Bellucci, furthermore, offers a reconstruction of Peirce’s conception of (ii.) the immediate and (iii.) dynamic interpretant which sees these distinctions as originating in the Peircean insight into the necessity of distinguishing between propositional content and act of assertion. Now, as Bellucci shows with reference to NDTR (cf. p. 297 and EP 2:292 f.), Peirce in 1903 was still tending to assimilate assertion with the psychological act of judgment as he had been doing in the 1890s when both terms were sometimes even identified, inasmuch as a proposition was taken to be a semeiotic structure the purpose of which is to assert a fact (cf. p. 295 ff.). The distinction between proposition and assertion, however, is worked out immediately after having delivered the Lowell Lectures, when Peirce, in “Καινὰ στοιχεῖα” (Winter 1904), writes that “[o]ne and the same proposition may be affirmed, denied, judged, doubted, inwardly inquired into […], taught, or merely expressed, and does not thereby become a different proposition”.58 Consequently, the trichotomy that has as its subiectum divisionis the relation of the sign to the immediate interpretant has its ratio in the differentiation of the representative matter which the sign determines the interpretant to take on as being either “feeling (Interjection), Action (Imperative), Sign (Indicative)”.59 And this means that (ii.) the immediate interpretant ought to be construed as a sign’s relation to its communicative purpose (being either an interjection, an imperative or an indicative), thus producing the sign with a respective interpretant in view, while the trichotomy which has as its subiectum divisionis (iii.) the relation of the sign to the dynamic interpretant, might be construed as having its ratio in the differentiation of instrumental modes of determination of the immediate interpretant through the mode of sign-action “by Sympathy, by Compulsion, by Reason”.60 Based on this reading, thus, the triad of the dynamic interpretant gives us the modes of bringing about the intended interpretive effects specified in the triad of the immediate interpretant. Dynamic and immediate interpretant would thus relate to each other as means relate to ends, or, to put it more prudently: the distinction of types of interpretants starts to reflect a normative outlook in its ordering.

Bellucci’s interpretation, however, does not dwell too long on this classificatory scheme: As much as October 8th, 1905, is the day on which Peirce produces the first classificatory scheme based on six trichotomies that is terminologically explicit enough to be intelligible, this is also the day on which he quits the hexadic system and starts to work on classifications with decadic bases exclusively. As this move is actually nothing but a consequence of the thorough grounding of all semeiotic distinctions on the phenomenological categories and thus already formally prescribed by the approach taken in the Syllabus of 1903, one could be surprised not to see Peirce approaching the matter from a purely formal point of view earlier.

Now, according to this point of view, in any triadic subdivision there will be one first (I), two seconds (II.i and II.i) and three thirds (III.i, III.iii, III.iii), thus also two subdivisions of II.ii (i.e. II.ii.1 and II.ii.2), two subdivisions of III.ii (i.e. III.ii.1 and III.ii.2) and three subdivisions of III.iii (i.e. III.iii.1, III.iii.2, III.iii.3). This will thus give us a classificatory system with ten trichotomies of parameters, in which we will find one division according to the nature of the sign (I), one division according to the immediate (II.i) and two according to the dynamic object (II.i.1 and II.1.2), one according to the immediate (III.i), two according to the dynamic (III.ii.1 and III.ii.2) and three according to the third interpretant (referred to as ‘representative’ in 1905, but also as ‘normal‘ and ‘final’ in subsequent years): III.iii.1, III.iii.2, III.

iii.3. As Bellucci suggests (p. 307 f.), Peirce’s move to the hexadic system might be motivated by the decision to bracket the question concerning the linearity––and thus: definiteness––of the ordering of the trichotomies, in order to first determine which trichotomies must be considered, “before order can be brought in”.61 Now, on the basis of the exegetical maxim that “by reconstructing the steps by which Peirce came to his tenfold taxonomy of signs in October 1905, we are ipso facto reconstructing his speech act theory” (p. 311), Bellucci arrives at a quite coherent general picture and interpretation of the hexadic classifications Peirce produces in 1905 and 1906. The key components of this account, building up on ShOrT62 and PIETArINEN63 are two. Firstly, there is the insightful projection and localization of Peircean distinctions on the blueprint of speech act theory with its differentiation of locutionary act (i.e. the uttering of meanings embodied in the sign’s relation to the ‘representative’ or ‘final’ interpretant qua rheme, dicisign or argument), illocutionary force (i.e. the using of signs with a definite communicative intention playing out in the sign’s relation to its immediate interpretant qua interrogative, imperative, or assertoric) and perlocutionary acts (i.e. the effects of a sign materializing as its relation to the dynamic interpretant qua feeling, fact or sign).

Secondly, there is a systematically very fruitful account of the nature of the ordering of the three interpretants ensuing from the speech act theoretical reading: If we interpret the immediate and the dynamic interpretant as the Peircean demarcation between conventional and natural effects of signs (cf. esp. p. 312 f.), it becomes possible to comprehend the immediate interpretant as the conventional interpretant represented by the sign, i.e. as “the sign that a sign aims to procude”, while the dynamic interpretant is the interpretant causally determined by the sign, i.e. “the sign that it [the sign, A.T.] actually produces”, so that the normal interpretant eventually becomes the télos of semeiosis which “sufficient scientific consideration of the sign ought to produce” (p. 315).

Thus, with a view on the interpretive problems soon provoked by Peirce’s introduction of the seemingly alternative division of interpretants into the emotional, energetic, and logical in “Pragmatism” of 1907,64 Bellucci can confirm Short’s interpretation of the division of the interpretant into immediate, dynamic and final (hereafter referred to as IDF-trichotomy) as a “»modal gradation« among interpretants” (p. 327) which expresses “the essential structure of Peirce’s later semeiotic”, as ShOrT65 puts it. As this structure is “essentially purposive” (ibid.), we might say that it discloses the normative dimension of Peirce’s “Normative Semeotic”,66 whereas the division of the interpretant into emotional, energetic, and logical (hereafter referred to as EELtrichotomy), at least according to ShOrT, “places thought in a naturalistic context, where it may be seen as a development of more primitive forms of semeiosis”.67 Bellucci, however, hopes to develop a genetically more coherent and systematically nuanced approach when he suggests conceiving of both divisions of the interpretant as “the instruments by which speculative grammar came to include a pioneering speech act theory” (p. 327). Accordingly, so he argues, the modal gradation (i.e. the IDF-trichotomy) was needed “to differentiate the illocutionary, perlocutionary and locutionary levels of analysis”, while the EEL-trichotomy, “from 1905 onwards” (p.

327 f.), was designed to provide “a typology of perlocutionary effects” (p. 328).

Now, this is true only in so far as this triad factually functions as a subdivision of the dynamic interpretant in spring 1906;68 but it cannot escape attention that it also appears as the subdivision of the immediate interpretant in 1904,69 and as a subdivision according to the “Purpose of the Eventual [i.e. final, A.T.] Interpretant” in Summer 1906;70 a view that eventually seems to be confirmed in Peirce’s last classification of signs produced in 1908, where the EEL-trichotomy, i.e. the very triad of interpretants consisting in a subdivision of what might be called the ‘event-type-category’ of the interpretant (feeling, action, thought) is, again, not conceived of as a subdivision of the perlocutionary (i.e. of the non-conventionally determined effects of the sign), but rather as a subdivision “[a]ccording to the purpose of the final interpretant”, aiming either at being “[g]ratific”, or “[t]o produce action”, or “[to produce self-control”.71 As a consequence of these interpretive frictions, Bellucci’s fine interpretation of the EEL-trichotomy as the main conceptual tool used to purge the pragmatic maxim of 1878 in “Pragmatism” (cf. p. 328-330), does not cohere with his general speech-act-theoretical reconstruction of Peirce’s theory of the interpretant, as he is interpreting the EEL-trichotomy in “Pragmatism” as a subdivision of the final interpretant. Bellucci is ready to admit these incongruencies (cf. p. 328, par. 2) and, moreover, points out clearly that the EEL-trichotomy “is the most difficult to interpret”, as it “seems to be linked to neither the illocutionary, nor the perlocutionary dimension of analysis”, and Peirce “never explains what he meant with it]” (p. 344, my emphasis). – Now, this might be a bit exaggerated, as the determination of the subdivision as being performed “according to the purpose of the final interpretant”72 or “according to the Purpose of the Eventual interpretant”73 indicates that we are here dealing with a dimension of signhood that seems to be essential for a “Normative Semeotic”,74 i.e. for a theory of signs developed on the basis of two prelogical normative sciences grounding Logic in the order of principle-dependence.

Namely, firstly “ethics [which] studies the conformity of conduct to an ideal”, and secondly esthetics, being the “theory of the ideal itself”, which studies “the nature of the summum bonum” by working out a “theory of the deliberate formation of […] habits of feeling”.75 Thus, if it is true, as Peirce claims in 1902, that “[i]t is absolutely impossible that the word «Being» should bear any meaning whatever except with reference to the summum bonum”, and if “[t]his is true of any word”,76 then some conception of the summum bonum seems to be necessarily incorporated in the final interpretant of any possible sign, thus constituting the ultimate horizon in which signs can have a potential meaning for sign-producing agents that are not the creators of the world they live in. Or, in other words: the trichotomy of the final interpretant in accordance with its purpose, is a subdivision the ratio divisionis of which are “ways of life”,77 “classes of men”,78 “human lives”,79 “types of men”,80 or “Suicultural, Civicultural, and Specicultural Instincts”.81 As this categoriological “Division of Human Life into Life of Enjoyment, Life of Ambition and Life of Research”82 is patterned on Aristotle’s distinction of three βίοι or ‘designs of life’ that the Stagirite interprets as different apprehensions of the μέγιστον ἄγαθον qua εὐδαιμονία that are embodied in the praxis of those devoting their life primarily to certain esthetic ideals––pleasure, political action or contemplation, 83––we might say that the ratio divisionis of the EEL-trichotomy is a division in accordance with βίοι or grasps of the summum bonum, which, in turn, is rooted in the different modes of being of the respective esthetic ideals apprehended. There are, however, good reasons to conceive of problematizations of the kind raised here as not belonging to Speculative Grammar as such, but rather to the third branch of semeiotics which considers signs in their thirdness, i.e. in their utility for their interpretants.

Bellucci’s account of the final stage of Peirce’s efforts to produce a complete classification of signs (p. 330-348) in the years 1907-1909 confronts us with a thinker who even at the end of his life preserves the intellectual power to start from scratch in order to further deepen analyses of conceptual distinctions and systematic interconnections. In this sense, the new conceptions of collateral observation and of the continuous predicate are shown to be intimately related to the ongoing development of Peirce’s analysis of the structure of the proposition and of his conception of the immediate object (cf. p. 321-325, 331-340) as “the manner in which the sign indicates the dynamic object” (p. 336).

Moreover, Bellucci sketches how Peirce in 1908 and 1909 embarks on a methodological journey that has the potential to free him from the constraint of operating on the basis of a linear order of the trichotomies of semeiotic parameters.

This move was necessitated by the fact that even though we can know that on the basis of ten linearly ordered triads the mathematically possible combinations amount to 310 = 59.049; and even though we have some reasons to assume that the ordering relation should be derivable from the hierarchy of relations of determination obtained within the sign-relation, so that “[I.] the dynamic object determines [II.] the immediate object, which in turn [III.] determines the sign, which in turn determines [IV.] the ‘destinate’ (final) interpretant, which in turn determines [V.] the ‘effective’ (dynamic) interpretant, which in turn determines [VI.] the ‘explicit’ (immediate) interpretant” (p. 342; roman numerals added by A.T.); nonetheless, we have no proper basis to apply the two rules of parameter compossibility––namely R1: “[A] Possible [First] can determine nothing but a Possible’, and R2: “[A] Necessitant [Third] can be determined by noting but a Necessitant”,84 conjointly implying that all possible combinations of semeiotic parameters satisfy the partial ordering 0sp: “first element ≥ second element ≥ third element” (p. 285 f.)––to the decadic system of trichotomies, as long as we do not know how to position the four other trichotomies in relation to the four linearly ordered ones (cf. p. 340 ff.). Consequently, in the classifications of December 1908 that are all developed in versions of a letter to Victoria Welby, we are surprised to see Peirce approaching the business of classification by focusing exclusively on the compossibility of two trichotomies, namely on the compossibility of the elements of the trichotomies of the sign in itself and of those of the sign’s relation to the immediate object.

The reason for this puzzling approach that seems hopelessly inadequate for determining all possible classes of signs on the basis of ten trichotomies of paramaters emerge in Peirce’s last entries concerning the taxonomy of signs in the Prescott 84 SS:84, 1908; my additions in brackets.

http://dx.doi.org/10.23925/2316-5278.2019v20i1p159-202 200 Cognitio, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 159-202, jan./jun. 2019 Book 85 and the Logical Notebook 86 of October and November 1909. As Bellucci conjectures, Peirce eventually arrives at the conclusion that a linear ordering of all ten trichotomies is methodologically problematic, and thus resorts to an approach that exploits the idea of there being generalizable relations obtaining between couples and triples of trichotomies belonging to the same orders of classification (e.g. ‘immediate trichotomies’ and ‘dynamic trichotomies’ of the relation of the sign to the object and the interpretant), which thus “suggests a method of study”87 that is proceeding step-by-step without having to presuppose a linear order. I am not sure in which sense this method––barely sketched by Peirce and thus only roughly unpacked by his interpreter––“presupposes that the trichotomies are hierarchically rather than linearly ordered” (p. 348), as Bellucci claims. Of course, the “‘tree of trichotomies’” (p. 348) he seems to have in mind and which we can easily draw on the basis of Peirce’s retrospective appreciation of the “excellent notation of 1905 Oct 12”,88 gives us three levels of complexity, where seven trichotomies––of the sign’s relation to the dynamic object (II.ii.1 and II.ii.2) and the various non-immediate interpretants (III.ii.1, III.ii.2, III.iii.1, III.iii.2, III.iii.3)––are third-order divisions (i.e. subdivisions of subdivisions), two trichotomies––of the sign’s relation to the immediate object (II.1) resp. to the immediate interpretant (III.1)––are second-order divisions, and only one––the mode of being of the sign in itself (I.)––is a first-order division; but the way Peirce articulates himself on November 1st 1909 in The Logic Notebook might also be read as representing purely heuristic reflections concerning the question of which paths of inquiry ought to be considered as the most fruitful avenues across the wonderland of 59.049 mathematically possible classes of signs. The identification of such heuristic paths along which additional laws of compossibility of parameters of signs seem more likely to be discovered would not necessarily have to imply anything about the form in which the trichotomies themselves are related to each other in the universe of formal semeiotics. But these are speculations. The last entries in the Logic Notebook from November 1st, 1909 rather seem to show that Peirce’s immediate answer to the methodological problems sketched above consisted in starting anew––with a definition of a sign as an ens.89

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Notas

01 Cf. MS 595:22. EP 2:19, 1895.

02 Cf. W 1:175, 274, 304. 1865-66.

03 MS 787:10. 1896.

04 MS 595:22. EP 2:19, 1895.

05 Cf. CP 2.206, 1902.

09 MS 634:14 f., 1909.

10 MS 676:6, 1911.

11 MS 675:26, 1911.

12 LOckE, Essay, IV.21.4.

13 RLT:146, 1898.

14 Cf. W 1:44, 47-49, 85-90, 94.

15 CP 1.563, 1898.

16 RLT:146 1898.

17 CP 8.15, 1871.

18 W 1:160, 1865; cf. W 1:240-256.

19 W 1:115-117, 1864.

20 Cf. W 1:574 f.

21 Cf. W 1:360 (1866).

22 W 1:174, 1865; cf. 165, 169.

23 kANT, CPR, B 134 n.; cf. § 19.

24 Cf. kANT, CPR A 79/B 104 f.

25 Cf. kANT, CPR A98-104.

26 kANT, CPR A 68/B 93.

27 kANT, CPR B 133-134 n.

28 Cf. MS 787, 1896.

29 Cf. MS 409, 1894.

30 Cf. CP 2.227, 1897.

31 CP 3.430, 1896.

32 Ibid.

33 Cf. fErrIANI, 1987.

34 Cf. EP 2:504 n. 5.

35 Cf. MS 427:242-273, 1902.

36 Cf. CP 2.279, 2.333, 1896.

37 MS 787:19, 1896.

38 EP 2:146, 1903.

39 Cf. fISh, 1986, p. 338 ff.

40 MS 425:133, 1902. CP 2.93; emphasis added.

41 MS 478:42, 1903.

42 MS 478:0180, 1903.

43 MS 478:43 f., 1903; emphasis added.

44 bid.; emphasis added.

45 ArISTOTLE, An. Pr. I, 1-2.

46 ArISTOTLE, An. Pr. I, 4-6.

47 Cf. EP 2:290, 1903.

48 Cf. EP 2:296, 1903.

49 Cf. Burch, 2011, p. 94 f.

50 Cf. ShOrT, 2007, p. 240.

51 Cf. SS:32-35.

52 Cf. MSS 914, 939, 517, 284, and L 67 and L 107.

53 MS 339:252r, 1905.

54 SS:34, 1904.

55 MS 339:253r, 1905.

56 SS:32, 1904.

57 Cf. ShOrT, 1982, p. 293 ff.

58 EP 2:312, 1904.

59 MS 339:252r, 1905.

60 MS 339:252r, 1905.

61 MS 339:253r, 1905.

62 Cf. ShOrT, 1982 and 2007.

63 Cf. PIETArINEN, 2006.

64 Cf. EP 2:409 ff.

65 ShOrT, 1996, p. 496.

66 CP 2.111, 1902.

67 ShOrT, 1996, p. 495.

68 Cf. MS 339:275r, 1906.

69 Cf. L 463:030, 1904.

70 MS 339:285, 1906; my emphasis.

71 MS 463:0134-0145, 1908.

72 L 463, 1908.

73 MS 339:285r, 1906.

74 CP 2.111, 1902.

75 EP 2:376 f., 1906.

76 CP 2.116, 1902.

77 MS 407:1, 1893; and MS 604 (n.d.).

78 CP 1.43 f., c. 1895; and MS 14:6, 1895.

79 MS 1334:16-18, 1905.

80 EP 2:445, 1908.

81 MS 1343:34 ff., 1903.

82 MS 477:01, 1903.

83 ArISTOTLE, EN, 1095 b14-1096 a5.

85 MS 277:077, 1908.

86 MS 339:360r, 1909.

87 MS 339:360r, 1909.

88 MS 339:360r, 1909.

89 Cf. MS 339:360r f., 1909.

Alessandro R. R. Topa American University In Cairo– Egypt Otto-Friedrich-Universität Bamberg. E-mail: Germany arr.top@t-online.de

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Paisagem e memória entre Celtas e Germanos / Brathair / 2019

Paisagem e Natureza são temas que se tornaram largamente difundidos nas pesquisas em História, Arqueologia, Letras e Arte, sobretudo nos últimos vinte anos. Deixando de ser entendida apenas como um mero cenário ou “pano de fundo” para a existência humana, a paisagem passou ser entendida como construto cultural e arena central da vida social. Hoje, entendemos que paisagem é mais do que a “Natureza” ou “o mundo lá fora” em oposição à cultura e ao nosso ambiente construído. Sabemos que a paisagem é produto da interação entre seres humanos e ambientes, ou seja, é construída pela prática e experiência de comunidades e indivíduos (cf. Ingold 1993, 1996, 1998). Os atuais estudos da paisagem estão aliados ao que costumamos designar como “nova virada espacial” (cf. Bodenhamer 2010), que trazem a reflexão sobre o espaço para o centro de análise, visando compreender os processos não apenas de construção, mas igualmente de alteração da paisagem pelas formas de sociabilidade, práticas cotidianas e pela historicidade da vivência local e regional. São pesquisas que buscam, portanto, entender as articulações entre paisagens imaginadas (suas concepções, imagens e representações) e paisagens vividas (sua morfologia, ambiente construído e formas de monumentalização). É na interação dessas experiências do espaço e da paisagem que temos os usos diferenciados e processos de apropriação, que tanto nos têm interessado.

Nesse dossiê da revista Brathair, trazemos ao público brasileiro algumas dessas discussões atuais sobre os temas de paisagem e natureza aplicadas ao estudo das sociedades celtas e germânicas a partir da cultura material, dos registros históricos, assim como dos mitos e lendas dessas sociedades. Para elas, a relação entre os indivíduos e ambiente destaca-se não só como um modo de vida, uma preocupação e compreensão com a terra e o meio-ambiente em si, como largamente têm mostrado os pesquisadores de correntes ambientalistas, mas também, e sobretudo, na produção e alteração de paisagens mentais e materiais.

Aqui, esses debates estão organizados a partir de três eixos temáticos, a saber: 1) Paisagens e visões literárias; 2) Território, Etnogênese e Mitos de Origem; e 3) Construindo paisagens materiais.

No primeiro eixo, abrimos essa edição com o texto do saudoso docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ciro Flammarion Cardoso† (1942-2013), que traz uma brilhante contribuição para a percepção da relação entre paisagem e religião. Nesse artigo, o autor analisa aspectos da religião nórdica na Islândia através de livros de assentamentos (Landnamabók) em suas diferentes versões e em algumas sagas, incluindo aquela que se refere a Olaf Tryggvason (contida no Heimskringla de Snorri Sturluson), abordando a relação da paisagem com as divindades locais. Fruto de sua conferência de encerramento no V Simpósio Nacional e IV Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, ocorrido no ano de 2012, essa foi uma de suas últimas participações em eventos e agradecemos à sua família a gentileza de nos permitir a publicação desse trabalho.

Também avançando nas reflexões sobre religião e paisagem, Elva Johston, professora do University College de Dublin (UCD), analisa as relações entre paisagem, História e Literatura na obra Navigatio Sancti Brendanni Abbatis (A Viagem de São Brandão). A narrativa é um conto de viagem, abordando um percurso imaginário de uma personagem real, São Brandão, abade de Clonfert no século VI, que, de acordo com a narrativa mítica do século X teria chegado até o Paraíso Terrestre. O santo neste relato vai e volta ao mesmo ponto de partida. A autora analisa a relação da narrativa com diversos tipos de paisagem – reais, monásticas, liminares, entre outras, além de vincular esta viagem com o conceito de peregrinatio.

Seguindo em linha semelhante, mas atentando para paisagens imaginadas, Adriana Zierer, professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), analisa os espaços míticos cristãos, relacionados ao Inferno e Paraíso e à paisagem numa obra composta por um monge irlandês chamado Marcus, intitulada Visio Tnugdali, bem como a sua circulação no período medieval. A obra destaca a passagem de um cavaleiro pecador, após a sua morte aparente, inicialmente por lugares infernais, onde sofre por seus pecados e depois por espaços paradisíacos, com o objetivo de levar ao arrependimento e à salvação. Destaca ainda o papel dos monges nas construções de paisagens imaginárias acerca do Além Medieval e a figura de heróis irlandeses míticos, como Fergus e Connal, diabolizados no relato, guardando a imensa mandíbula de um monstro (Boca do Inferno).

Já do ponto de vista da Geografia Humanista Cultural aplicada à literatura contemporânea, Márcia Manir Feitosa, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), analisa sob o romance Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), de Mário Carvalho. Este, considerado uma obra-prima do autor, transporta o leitor da Contemporaneidade para paisagens da Antiguidade Clássica, na Antiga Lusitânia do século II a.C. A narrativa discute os conflitos do protagonista Lúcio com o declínio dos valores da Roma Antiga e a ascensão da cultura cristã. Aqui, a autora analisa a paisagem aliada às concepções do personagem-narrador sob a ótica dos estudos literários.

No segundo eixo, Território, Etnogênese e Mitos de Origem, Vinícius C. D. Araujo, da Universidade Federal de Montes Claros (UNIMONTES), discute o mito de origem (origo gente) dos saxônios no livro 1 da Res gestae Saxonicae escrita pelo monge Widukind de Corvey (967- 74), buscando estabelecer as origens nobres deste grupo e o seu papel na ocupação das terras com o objetivo de legitimar inicialmente os saxônios, bem como, suas conexões com a dinastia Otônida e a legitimação da da monarquia imperial germânica em períodos subsequentes.

Já Elton Medeiros, docente do Centro Universitário Sumaré (SP), analisa a origem dos saxões na obra Historia Ecclesiastica da Gentis Anglorum, de Beda. Esta obra produzida no século VIII foi retomada por Alfredo, o Grande, em fins do século IX, o qual, na sua luta por afirmação contra os escandinavos e fortalecimento do território de Wessex, buscou inspiração espiritual em mitos de origem. Inspirado nas obras de Beda e em outras, defendia que os saxões eram descendentes dos hebreus e os reis do passado germânico estavam associados a uma linhagem sagrada.

Em contraste, João Lupi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), traz uma abordagem do ponto de vista da Ciência da Religião para o estudo da mística e do misticismo na Renânia medieval. Para o autor, o idealismo germânico não apenas se fundamenta em embates contra a hierarquia eclesiástica, mas também em uma nova concepção da Divindade.

No último eixo, abordando a construção de paisagens a partir da cultura material, Maria Isabel D’Agostino Fleming e Silvana Trombetta, ambas vinculadas ao Laboratório de Arqueologia Romano-Provincial (LARP) do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP) vêm pensar o caso da Península Ibérica. Enquanto, Fleming (fundadora do LARP) faz um balanço do debate peninsular e de suas implicações para a construção do “céltico”, Trombetta empreende uma análise dos enterramentos entre celtas e celtiberos, analisando a inscrição da memória na paisagem a partir das práticas funerárias.

Para além do dossiê, essa edição conta ainda com dois artigos livres, da autoria de Maria Izabel Oliveira (UFMA) sobre o pensamento do jesuíta Antônio Vieira sobre a escravidão no Brasil e de Carlos Silva (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), acerca do substrato celta nas línguas hispânicas. Para auxiliar os pesquisadores iniciantes e experientes a edição conta com duas traduções de documentos textuais, Tiago Quintana, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta a tradução de A Vingança de Amlet, registrada por escrito no século XIII, mas fruto da tradição oral dos povos nórdicos, provável ancestral de Hamlet, de Shakespeare, enquanto Cristiano Couto, doutor em História pela UFRGS, apresenta uma parte da tradução de uma importante obra da tradição mitológica irlandesa Táin Bó Cuailnge.

Por fim, essa edição é concluída com a resenha de Elisângela Morais (PPGHIS / UFMA / CAPES) sobre o livro Viagens e Espaços Imaginários na Idade Média, organizado pela docente Vânia Fróes e outros pesquisadores, que de certa forma está associado ao tema “paisagem” na medida em que os viajantes se deslocavam por novos espaços construindo novas memórias e paisagens reais e imaginárias.

Referências

BODENHAMER, D.J. The Potential of Spatial Humanities. In: BODENHAMER, D.J.; CORRIGAN, J.; HARRIS, T.M. (eds.) The Spatial Humanities: GIS and the Future of Humanities Scholarship. Bloomington / Indianápolis: Indiana University Press, 2010, pp. 14-30.

INGOLD, T. The temporality of the landscape. World Archaeology, 25, 1993, pp. 152–74.

INGOLD, T. Culture, nature, environment: steps to an ecology of life. In: CARTLEDGE, B. (Ed.). Mind, Brain and the Environment. The Linacre Lectures 1995-6. Oxford: Oxford University Press, 1998, pp. 158–80.

Adriene Baron Tacla – Docente IH / UFF / NEREIDA. E-mail: adrienebt@yahoo.com.br

Adriana Zierer – Docente PPGHIST-UEMA Docente PPGHIS-UFMA. E-mail: adrianazierer@gmail.com


TACLA, Adriene Baron; ZIERER, Adriana. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Gênero na idade média / Brathair / 2019

A categoria Gênero, instrumento teórico que busca visibilizar, explicar e entender as diferenças atribuídas aos corpos sexuados, já tem uma história bastante concreta e profícua em meio às ciências humanas. Pelo menos desde a década de 1960, estudiosas e estudiosos das sociedades vêm lançando luz sobre os fenômenos de dominação, exclusão, marginalização, sobretudo, do que se considera como feminino. Embora, historicamente, o olhar sobre gênero tenha se iniciado a partir do viés do feminino e do feminismo, é quase consenso atualmente que essa categoria epistemológica não se limita apenas a esse âmbito da existência. Gênero, a partir da perspectiva scottiana, é uma forma primária de organização das relações de poder que se alicerça nas diferenças biológicas.

Entre os medievalistas, a categoria Gênero tem tido reverberação, no mais das vezes, positiva, no sentido de ter conquistado espaço de legitimidade nas pesquisas voltadas para as sociedades medievais. Ainda que os próprios medievais não se percebessem a partir dessa categoria, sua aplicação ao estudo da santidade, das rainhas, da literatura, das diferenças sociais, propiciam um conhecimento cada vez mais profundo e matizado da complexa cultura medieval.

Como é próprio do conhecimento cientificamente construído, bem como – necessário que se diga no contexto em que vivemos -, muito salutar, as percepções sobre Gênero não são unívocas. Isso fica patente neste dossiê da revista Brathair, que reúne artigos que adotam perspectivas variadas acerca tanto do que se pode entender por gênero, quanto em seus objetos de reflexão. Essa variedade demonstra a vasta riqueza que a categoria permite, e a indiscutível marca que os Estudos de Gênero vêm deixando na academia brasileira.

O primeiro artigo, As mulheres na Vita Sancti Aemiliani e na Legenda Beati Petri Gundisalvi: um estudo de comparação diacrônica, das professoras Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (PEM-UFRJ) e Leila Rodrigues da Silva (PEM-UFRJ), busca perscrutar o papel das personagens femininas em duas hagiografias medievais ibéricas, separadas em seu contexto de produção por cinco séculos. Ao lançar mão das propostas de Paul Veyne a respeito da análise histórica diacrônica, as autoras conferem sólida base para a reflexão, que se fortalece ainda pelo cuidadoso elencar de elementos a serem analisados, bem como por considerar os contextos específicos de composição das narrativas.

Carolina Gual da Silva (FAPESP-Unicamp) contribui com o artigo Experiência feminina e relações de poder nos romans do século XII. Aqui a pesquisadora se dedica a expor e discutir uma historiografia representativa do que tem sido, nas últimas décadas, as reflexões dedicadas aos estudos de gênero e à História das Mulheres, particularmente no que diz respeito às relações de poder. Percebendo, a partir desse levantamento, problemas sobretudo metodológicos nas obras analisadas, debruça-se então sobre alguns romans do século XII, de autoria de Chrétien de Troyes, Thomas e Béroul, na intenção de lançar um novo olhar sobre documentação literária que possibilite um alargamento de visão sobre os agires e pensares das mulheres medievais.

A Querelle des femmes e a política sexual na Idade Média, escrito pela professora Cláudia Costa Brochado (UnB), como já aponta o título, debate a relação entre a Querelle des femmes e a política sexual na Idade Média, apresentando as principais teorias sobre esta e sua vinculação à Revolução Aristotélica. A autora evidencia as mudanças, ao longo do período medieval, das percepções a respeito da condição (subalterna) das mulheres e faz uso do conceito de genealogia para dar conta da forma como se constrói, naquelas sociedades, as identidades sexuais que informam a política sexual medieval.

O dossiê conta também com a contribuição de Danielle Oliveira Mércuri (UNIFESP), no artigo Da arte de fazer-se virtuosa: regimentos de princesas (Castela, século XV). Tem como objetivo analisar as indicações de governo dirigidas à Rainha Isabel, pelos clérigos Martín de Córdoba, Íñigo de Mendoza e Hernando de Talavera. Nos textos pesquisados, a autora explicita as percepções próprias daquela sociedade quanto às mulheres, em específico as mulheres da nobreza. Em alguns casos, nos textos voltados à rainha Isabel, apontam-se as dubiedades do papel feminino em posição de poder.

As imagens e as leis: diálogos entre discursos normativos e iconográficos medievais no Decretum de Graciano, da lavra de Guilherme Antunes Júnior (PPGHCUFRJ), parte do conceito de gênero para analisar duas miniaturas contidas no Decretum de Graciano, reunião de textos normativos compilados no século XI. O autor entende que o Decretum pauta a chamada “Querela das investiduras” e suas implicações nas hierarquias eclesiais, mas dá margem, igualmente, para que outros aspectos sejam percebidos. E é o que faz, ao relacionar o código jurídico às relações de gênero nas disputas e discursos de poder.

Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa / Academia Portuguesa de História), autora do artigo Breves notas sobre Dona Beatriz da Silva e Isabel, a Católica: duas mulheres em Projectos De Santidade e de reforma da Igreja na Hispânia Quatrocentista (1424-1492), partindo da ideia de que a transcendência divina é historicamente construída, discute o percurso de vida de Beatriz da Silva, fundadora da Ordem da Imaculada Conceição. De Portugal à corte castelhana e a Toledo, Ventura demonstra como a espiritualidade da religiosa se institucionaliza no encontro com os projetos reformistas de Isabel, a Católica.

O artigo Mulher não devia ter regimento: rainhas regentes, rainhas depostas (Portugal, séc. XIV-XV), da professora Miriam Coser (UNIRIO), se dedica a investigar o discurso sobre a fraqueza feminina veiculado pelas crônicas da Casa de Avis. O foco de suas considerações são duas rainhas regentes, ambas depostas, Leonor Teles e Leonor de Aragão. A autora defende, valendo-se do conceito de queenship, que o exercício de poder das rainhas constituía uma espécie de ofício, praticado legitimamente e caracterizado por atribuições que não eram tão só protocolares.

Narrativas mitológicas e o papel da mulher na constituição da nobreza portuguesa através do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, de Neila Matias de Souza (IFMA), situa a tradição literária da crença em mulheres-serpente, para daí analisar a personagem Dama do Pé de Cabra, iniciadora da linhagem dos Haros. A autora investiga os significados sociais e políticos da narrativa que apresenta a Dama, percebendo seu papel de propiciadora de legitimidade e abundância para aquela família nobre.

Renato Rodrigues da Silva (UNIFESP), em Mulheres e poder na aristocracia da Nortúmbria Anglossaxã: ausência ou invisibilidade?, compara textos escritos e achados arqueológicos para averiguar se a ausência de personagens femininas nos textos de época reflete uma pouca participação das mulheres no poder aristocrático, ou se esta escassez é indício de uma invisibilização da participação feminina. Para tanto, o autor se fundamenta em abalizada discussão historiográfica para, então, partir para dois estudos de caso.

O último artigo do dossiê, Apontamentos sobre virilidade e inteligibilidade de gêneros na proposta de identidade cristã de Agostinho de Hipona na Primeira Idade Média, de Wendell dos Reis Veloso (CEDERJ), promove uma reflexão teórica fundamentada nas ideias, principalmente, de Judith Butler, aplicada a alguns tratados agostinianos. Dá a ver, em suas ponderações, algo que geralmente fica invisível na historiografia: as possibilidades outras de relação com as realidades, neste caso, as realidades sexuais, em especial os valores a elas atribuídos.

A edição conta ainda com dois artigos de tema livre. Ricardo Boone Wotckoski (UNIFRAN / Claretiano) discute no texto O além e a visão de mundo medieval: o inferno da Visão de Thurkill, o percurso ao inferno do camponês Thurkill, em um relato visionário composto no século XIII. Seguindo a perspectiva teórica de Bakthin, o inferno é analisado pelo articulista como um ambiente carnavalizado, uma encenação popular, na qual as categorias desfavorecidas da sociedade se regozijam com o sofrimento dos ricos, graças à possibilidade de inversão nesse espaço. Nesta concepção bakthiniana, o riso é uma resposta à dor e ao sofrimento no ambiente infernal, bem como, os papéis sociais se invertem.

O professor André de Sena (UFPE) desenvolve o tema da melancolia em A melancolia erótica no auto camoniano El-rei Seleuco. O articulista analisa este sentimento com base principalmente nas teorias do estudioso francês Jacques Ferrand, autor de Traité de l’essence et guérison de l’amour, ou De la mélancolie érotique (1610). Segundo de Sena, o príncipe melancólico em virtude do amor é um dos traços do teatro barroco e renascentista. O artigo analisa elementos da melancolia amorosa e compara o sentimento do rei Seleuco no auto camoniano com a figura de Hamlet, o qual utilizaria a melancolia “fingida” como forma de vingança.

Fechando o dossiê Gênero e a edição 2019.2 da Brathair, temos a resenha elaborada por Juliana Salgado Raffaeli (CEDERJ), O medievo ocidental a partir de conceitos como gênero, santidade e memória em diferentes abordagens teóricas e metodológicas, sobre a rica coletânea, dirigida por Andréia Frazão da Silva Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval (2018). Como deixa claro Raffaeli, evocando a variedade de temas e problemas propostos pelos autores da obra, os estudos de gênero parecem ter deixado o lugar secundário, complementar, que por anos marcaram o campo, e passam, na atualidade, a ser vistos como mais uma possibilidade de compreensão das realidades passadas e presentes.

Carolina Coelho Fortes – (PPGH / UFF). Docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense carolfortes@hotmail.com


FORTES, Carolina Coelho. Editorial. Brathair, São Luís, v.19, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Intellèctus. Rio de Janeiro, v.18, n.1, 2019.

Equipe Editorial

Apresentação

Dossiê

Artigos Livres

Intellèctus. Rio de Janeiro, v.18, n.2, 2019.

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Resenhas

A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos | Vitória Azevedo da Fonseca

A monarquia no cinema brasileiro: Metodologia e análise de filmes históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. A monarquia no cinema brasileiro: metodologia e análise de filmes históricos é um livro de autoria da historiadora brasileira Vitória Azevedo da Fonseca. Proveniente de sua dissertação de mestrado desenvolvida pela Universidade de Campinas, se propõe analisar dois filmes que tratam, sob diferentes perspectivas, o período monárquico brasileiro e o processo de independência do país. São eles: Independência ou Morte, de 1972, dirigido por Carlos Coimbra, e Carlota Joaquina, a princesa do Brasil, lançado em 1995, sob a direção de Carla Camurati.

A obra é dividida em quatro capítulos precedidos por uma apresentação assinada por Leandro Karnal, e encerrado com as considerações finais da autora e as referências. Inicialmente, Fonseca apresenta alguns métodos que devem ser levados em consideração ao propor uma análise de filmes históricos, destacando autores como Ismail Xavier, Jacques Aumont, Jean-Claude Bernadet, Marcel Martin, Marc Ferro e Marc Vernet, sem estabelecer um específico para seguir e optando pela mescla de metodologias. Seguindo a ideia proposta por Vanoye, a autora argumenta que a primeira medida a se fazer ao analisar uma película é descompô-la em partes, estabelecendo relações em seguida, para, dessa forma, compreender a estrutura narrativa construída (p. 10). Leia Mais

Intelectualidades negras e a escrita da história / Revista de Teoria da História / 2019

No momento em que vem a público o dossiê Intelectualidades negras e a escrita da história, o Brasil assiste o negacionismo passar de fenômeno social difícil de explicar – e de entender – à política de governo. Fato que não é exclusivo do Brasil. Com saliência política maior ou menor, o negacionismo tem se apresentado como um traço distintivo peculiar da ascensão da extrema direita em vários países do mundo. De fato, tornou-se plausível e legítimo negar o aquecimento global, negar que o próprio globo terrestre seja esférico ou negar a eficácia de vacinas. E se negar estes fatos ganha um certo caráter anedótico, isso se dá precisamente porque a possibilidade de questionar a positividade forte da verdade que atestam produz um deslizamento discursivo que se projeta sobre outros campos de saber onde o exercício de negar parece ainda mais legítimo. Aqui, a escrita da história vira alvo incontornável. Leia Mais

Patrimônio e Sociedade: as várias faces de um debate | Revista Historiar | 2019

Liquidação

A casa foi vendida com todas as lembranças

todos os móveis todos os pesadelos

todos os pecados cometidos ou em via de cometer

a casa foi vendida com seu bater de portas

com seu vento encanado sua vista do mundo

seus imponderáveis

por vinte, vinte contos.

Carlos Drummond de Andrade. Boi Tempo.

A casa anunciada no poema de Carlos Drummond de Andrade lido acima, foi vendida por apenas vinte contos. A preço de liquidação. No entanto, algo muito sensível chama nossa atenção: nós não conseguimos dimensionar o tamanho da construção, no entanto, a grandeza da casa parece estar numa dimensão para além da pedra e cal. Porque a casa vendida está cheia de lembranças. Está cheia de móveis, mas também de pesadelos, de pecados do presente e do futuro. A casa não está vazia, certamente, da dimensão humana que a habitou um dia. A casa, pelo que entendemos da poesia, tem um peculiar bater de portas, causa de um vento encanado, mas também abre uma vista para o mundo, sendo, por isso mesma, parte invisível do imponderável de cada dia e de cada existência, e que nesse sentido não pode ser medida apenas pelo preço vendido. Leia Mais

Teoria da História e Teoria Política / Revista de Teoria da História / 2019

O dossiê que aqui se apresenta está concentrado na relação entre Teoria da História e Teoria Política e, por conseguinte, nas diversas questões que tal relação suscita. Consideradas em suas definições mais abrangentes, história e política se determinam reciprocamente: podese dizer que toda concepção de política traz implicitamente uma determinada concepção de história e historiografia em relação a qual os acontecimentos são engendrados e reconstruídos e que, inversamente, toda concepção de história implica em um determinado posicionamento político frente ao mundo, isto é, em formas específicas de conceber o indivíduo e os modos de sua relação com outros indivíduos sob a organização de uma coletividade como o Estado. Não obstante, ao mesmo tempo que claramente inequívoca, a relação entre ambas é de tal modo complexa que o mais despretensioso olhar logo o percebe ao se defrontar com as diversas formulações que tomaram lugar ao longo da história, sejam aquelas de Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho e, adentrando-se na Modernidade, de N. Maquiavel, F. Guicciardini, G. Vico, E. Burke, G. W. F. Hegel, W. Humboldt, K. Marx e M. Bakunin, como também, chegando ao último século, as formulações de autores como H. Arendt, G. Lukács, T. Adorno e M. Foucault, dentre inúmeras outras. A esse espectro de autores é acrescida a incorporação de temas como a moral, a teoria do poder e a retórica. Com tal complexidade em mente, a Revista de Teoria da História, com o presente dossiê, pretendeu reunir contribuições originais e relevantes que tratem de parte da multiplicidade de modos em relação aos quais Teoria da História e Teoria Política se associam. Leia Mais

História em Revista. Pelotas, v.25, n.1, 2019.

História Oral

Artigos

Instrumento de Trabalho

 

Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica / Aedos / 2009

Em sua quinta edição, a Revista Aedos tem o orgulho de apresentar o dossiê “Nas fronteiras da História: diálogos e alianças interdisciplinares na pesquisa histórica”. Trata-se de três artigos, que abordam as possibilidades oferecidas ao conhecimento histórico pelos contatos com diferentes áreas, em especial, da Literatura, Antropologia e Arqueologia. Renata Dal Sasso Freitas, em seu artigo “José de Alencar e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: apontamentos sobre a concepção do romance As minas de Prata (1862-1865) e a cultura histórica brasileira nos oitocentos”, apresenta uma abordagem que analisa a relação interdisciplinar entre a História e a Literatura, na segunda metade do século XIX. Com uma proposta no mesmo sentido, o artigo “História e Antropologia: possíveis diálogos”, de Marcos Felipe Vicente, aborda as aproximações da História com as Ciências Sociais, em especial com a Antropologia, através das considerações de alguns intelectuais destes dois campos, focando a análise em suas propostas para a aproximação entre as duas disciplinas. O terceiro artigo, de Carolina Kesser Barcellos Dias, intitulado “Colonização grega e contato cultural na Magna Grécia: o testemunho dos vasos lucânicos”, aborda os registros materiais cerâmicos de uma região colonizada pelos gregos, a Lucânia. Através deste estudo apresenta traços dos movimentos de resistência da população local aos padrões helênicos que estavam sendo introduzidos. Um interessante artigo sobre as formas de re-elaboração e interpretação dos padrões culturais na produção artística, marcando também as permanências da cultura dos artistas nativos.

A seção artigos diversos conta com três colaborações. O artigo “Bizâncio, Pérsia e Ásia Central, pólos de difusão do nestorianismo” analisa o surgimento e expansão da corrente nestoriana, além da sua recepção entre diversos povos do Oriente. É destacada também a importância das trocas comerciais como meio dessa difusão. Fabrício Gomes Alves, em seu artigo “Entre a Cultura Histórica e a Cultura Historiográfica: implicações, problemas e desafios para a historiografia”, tem como foco a noção de cultura histórica, analisando a emergência da categoria, suas características e sua aplicabilidade. Por fim, o artigo de Vicente Neves da Silva Ribeiro, “Populismo radical e processo bolivariano: o conceito de populismo de Ernesto Laclau e as análises da Venezuela contemporânea” retoma a discussão acerca do conceito de populismo, pensando a sua aplicação no caso da Venezuela contemporânea. Para a próxima edição são aguardados comentários críticos sobre o artigo de Vicente Ribeiro, com o objetivo de estimular o debate acadêmico, visando uma discussão franca sobre as contribuições trazidas por este artigo.

Na seção Mesa Redonda desta edição, apresentamos o debate travado em torno do texto de Keila Auxiliadora Carvalho, doutoranda da Universidade Federal Fluminense, “Tempo de Lembrar: as memórias dos portadores de lepra sobre o isolamento compulsório”. O artigo toma como objeto a construção da memória e identidade de ex-internos do leprosário “Colônia Santa Isabel”, localizado em Minas Gerais, sendo que sua metodologia insere-se no campo de estudos da História Oral. Participaram como comentadores a Prof. Dra. Beatriz Teixeira Weber, do Departamento de História da UFSM, a Prof. Dra. Nikelen Acosta Witter, do Departamento de História da UNIFRA, e Juliane Conceição Primon Serres, doutora em História pela Unisinos. Por fim, Keila apresenta sua resposta aos apontamentos produzidos pelos especialistas convidados.

Na seção resenhas, apresentamos as sínteses construídas por Rodrigo Bragio Bonaldo, Gabriel Requia Gabbardo e Fábio Bastos Rufino. Bonaldo apresenta um trabalho inédito em português de Hans Ulrich Gumbrecht, “Production of Presence: what meaning cannot convey”, no qual o pesquisador alemão explora a historicidade das formas de produção de sentido. Gabbardo apresenta a obra “The Fall of Rome and the end of civilization”, na qual Bryan Ward-Perkins traz novas contribuições para a discussão sobre a Antiguidade Tardia e o fim do Império Romano através de suas pesquisas arqueológicas. Rufino, resenhando o livro organizado por Maria Teresa Toríbio Lemos, “América Latina: identidades em construção – das sociedades tradicionais à globalização”, justifica a pertinência da obra, na medida em que excursa sobre os seus principais temas e ressalta a conjunção de seu carácter controvertido com um tratamento heterodoxo, aberto a novas contribuições.

Finalizando nossa edição, apresentamos a entrevista com o historiador alemão radicado nos EUA, professor da Stanford Universit, Hans Ulrich Gumbrecht. Em uma conversa agradável, iniciada com temas esportivos, Juliano Antoniolli e Vitor Batalhone conversaram com Gumbrecht sobre questões acerca das ideias de verdade e de referência, e sobre as possibilidades de se aprender com a história.

Por fim, nos alegra sobremaneira continuar o excelente trabalho iniciado pelos colegas da gestão anterior, que souberam, através de muito trabalho, comprometimento e diálogo, construir uma revista séria e comprometida. Através desta edição, damos continuidade ao trabalho iniciado, consolidando esta revista como um espaço de diálogo e de divulgação do conhecimento histórico.

Boa Leitura a todos!

Conselho Editorial

Gestão 2009-2010


Conselho Editorial. Editorial. Aedos, Porto Alegre, v.2, n.5, julho-dezembro, 2009. Acessar publicação original [DR]

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Autoritarismo e personalismo no poder executivo acreano | Francisco Bento da Silva

O livro de Francisco Bento, Autoritarismo e Personalismo no Poder Executivo Acreano, 1921-1964, editora Edufac, 2012, aborda a construção histórica da sociedade acreana em bases integralmente autoritárias. Francisco Bento da Silva é formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre, com Mestrado em História pela Federal de Pernambuco, com Doutorado em História pela Federal do Paraná, sendo o presente trabalho resultado de sua pesquisa de mestrado. O livro traz evidências e apontamentos para a questão de que o Brasil conviveu muito pouco com as manifestações e práticas democráticas. O conceito de democracia nesses mais de cem anos de republicanismo não se aplica plenamente aos procedimentos e práticas políticas existentes até então.

A obra divide-se em três capítulos. No primeiro, o autor busca ressaltar o caráter autoritário da formação e o direcionamento político do Acre Federal nas suas diversas fases, que vai desde a sua anexação ao Brasil, em 1903, passando pelas várias organizações administrativas até o período pós 1920 quando ocorreu a unificação administrativa. Expõe a descentralização do poder executivo, de forma Departamental (1904-1920), a nomeação dos governadores era feita pela União (1921-1930), a introdução dos Interventores Federais entre 1930 até 1937 e por último o período em que os governadores voltam a ser nomeado pela União, esse período vai de 1937 a 1962. Leia Mais

O pensamento Nacionalista Autoritário (1920-1940) | Boris Fausto

Tendo em vista a história recente do Brasil, é possível perceber a adoção de um favoritismo às tendências nacionalistas e autoritárias, seja por meio de discursos oficiais, debates cotidianos, e/ ou nas grandes mídias. A considerável ascensão da corrente política direitistas no mundo, as (re) construções dos ideais nacionalistas e o avanço do conservadorismo, nos conduzem a questionar de que forma estes processos ocorrem. Tendo em vista este plano de fundo político-econômico, torna-se necessário (re) visitar os clássicos da histografia nacional, buscando compreender e discutir as teorias de historiadores, provendo diálogos e propondo hipóteses, o que leva a reflexões acerca atual cenário.

Neste sentindo, o presente trabalho trata-se de uma resenha da obra O Pensamento Nacional Autoritário (1920-1940), cujo o autor é Boris Fausto, que possui graduação e doutorado pela Universidade de São Paulo, atualmente é pesquisador da Universidade de São Paulo e Coordenador de Ciências Humanas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pesquisador sênior da Rockefeller Foundation e professor visitante da Brown University. A obra supracitada foi publicada em 2001 trazendo esclarecimentos e discussões de aspectos preponderantes sobre a temática, tais quais: conceito de autoritarismo, totalitarismo e suas distinções, espectro político – direita, esquerda e suas ramificações –, constituição do pensamento nacional autoritário no Brasil, acrescido da visão do autor sobre tal processo histórico, relacionando autoritarismo e racismo. Nesse sentido, a autora deste, propõe discutir as ideias da obra e propiciar reflexões destas frente ao atual contexto brasileiro. Leia Mais

História e criminalidade / Vozes Pretérito & Devir / 2019

As narrativas de crimes há muito exercem uma atração ambígua, um misto de temor e fascínio, entre leitores. Não casualmente, as histórias policiais contribuíram decisivamente, ao longo do século XIX, para a popularização da literatura e do jornalismo, da “cultura do impresso” que é, para historiadores do período como Jean-Yves Mollier, a primeira manifestação de uma cultura de massas que se aprofundaria nas décadas subsequentes, na virada para e ao longo do século XX.

O interesse literário demorou para alcançar a historiografia profissional e acadêmica. À exceção de alguns trabalhos hoje já referências praticamente obrigatórias [1], é a partir principalmente da década de 1970 que o tema começa a chamar a atenção de historiadoras e historiadores. Sob o impacto, entre outros, da história social inglesa e em especial das pesquisas de E. P. Thompson [2], e da publicação de “Vigiar e punir”, do filósofo francês Michel Foucault [3], uma história e uma historiografia do crime, em suas muitas vertentes e variações, se consolidaria nos anos seguintes.

Desde muito cedo articulando os objetos, problemas e fontes específicos do campo aos interesses e aportes teóricos mais amplos da história social, as novas pesquisas pretenderam oferecer mais que uma história das instituições jurídico-policiais ou uma simples variação da história do Direito. Assim, buscou-se fazer uma história das prisões, mas também dos prisioneiros; da polícia, mas igualmente dos policiais e do policiamento; dos discursos e instituições penais, mas em suas múltiplas e contraditórias interações com a sociedade. Enfim, fazia-se uma história do crime, mas sem descuidar de escrever a história da criminalidade e dos criminosos.

A partir dos anos de 1990 desenvolve-se o que podemos chamar de uma história cultural do crime, em grande medida um alargamento das possibilidades abertas pela historiografia de corte mais social. Ao reivindicar a noção de cultura, ou seja, a de uma história das práticas e representações, os historiadores culturais do crime pretenderam, no dizer de Dominique Kalifa, usar o “cultural como instrumento, uma entrada para fazer história social”. [4] O conceito de cultura é utilizado nas suas acepções antropológica e histórica: se as sociedades humanas são culturais, um entendimento da sua dinâmica não pode prescindir de pensá-la imersa em redes complexas de relações. Ainda que os fenômenos e construtos culturais muitas vezes pautem ou expressem escolhas e condutas individuais, eles só podem ser apreendidos e compreendidos se flagrados em seu caráter social e histórico. Trata-se, portanto, de pensar a cultura como uma teia de significados, muitas vezes conflitantes, construída pelas sociedades humanas no tempo, que significam, organizam e autorizam a vida social por meio de regras, normas, práticas e valores.

Não inteiramente inédita, portanto, por outro lado tampouco mera continuidade da história social, a história cultural do crime acrescenta a possibilidade de pensá-lo não apenas socialmente, mas a partir das representações que dele são produzidas em diferentes suportes e linguagens. Se fenômeno cultural, o crime e sua percepção podem ser apreendidos também naqueles discursos que escapam à esfera estritamente jurídica e penal. Trata-se, portanto, de pensá-lo como uma construção cultural, apreensível por discursos os mais diversos. A articulação de diferentes fontes permite, entre outras coisas, acompanhar as maneiras como figuras, nomes, imagens, lugares foram mapeados, identificados e organizados, contribuindo para a construção de um imaginário do crime e, principalmente na experiência da modernidade, de um crescente sentimento de insegurança.

A partir desses novos aportes teóricos, a historiografia mais recente tem se mostrado sensível à necessária e profícua articulação entre discursos, saberes, estratégias e instituições de poder (governos, prisões, polícia, criminologia, etc…), sem descuidar das descontinuidades entre as formulações discursivas e institucionais e sua efetiva, e não raro precária, efetivação nas experiências e práticas cotidianas. Além disso, tem se pluralizado o olhar sobre o crime, a criminalidade e o criminoso, não apenas fazendo ver as mudanças ocorridas no tempo, mas igualmente como, em uma mesma temporalidade, podem-se encontrar diferentes formas de percepção e representação daqueles fenômenos. Tal pluralidade só se tornou possível com a produção de novas fontes que permitem olhar o crime e suas representações em discursos e narrativas tão distintos como os fait divers, o romance policial e o cinema. Mas também em relatórios e estatísticas policiais, processos criminais ou cartas e diários de prisioneiros, fontes de caráter mais “oficial” que, lidas a contrapelo, permitem perceber as muitas contradições das instituições e seus agentes e, mesmo, flagrar aspectos do cotidiano dos grupos e indivíduos considerados criminosos.

Tal como em outras historiografias, também a brasileira trilhou um caminho relativamente longo e diverso até a consolidação, entre nós, de uma história e de uma historiografia do crime. Acompanhando um movimento semelhante ao de outros países da América Latina, no Brasil alguns dos primeiros trabalhos a utilizarem fontes criminais visavam descortinar aspectos do cotidiano dos trabalhadores pobres, imersos em conflitos que ultrapassavam as relações puramente econômicas. O fenômeno criminal tinha importância secundária em pesquisas onde se buscava conhecer a experiência de constituição da classe e da cultura operárias, especialmente na chamada Primeira República.[5] Hoje, já é possível falar de um campo de pesquisa enfim consolidado. Consolidação expressa em agendas compartilhadas; revisões historiográficas que destacam linhas e tendências; inúmeras publicações autorais e coletivas; trocas contínuas em eventos regionais e nacionais que reúnem historiadoras e historiadores do crime e do delito; além da inserção de brasileiras e brasileiros no circuito internacional, principalmente o latino americano.

O dossiê desse número da revista “Vozes, Pretérito e Devir”, portanto, é resultado de um percurso relativamente longo e, ao mesmo tempo, indicativo também da expansão e consolidação das pesquisas em história do crime e do delito no Brasil. O conjunto de artigos apresentados aqui, contemplam não apenas temas, problemas e fontes diversos, mas recortes teóricos e aportes conceituais que reafirmam as possibilidades abertas pelo campo. Não menos importante, ao tratarem da temática do crime, do delito e, em uma perspectiva mais ampla, da violência, em um corte mais regional, apontam para outra característica fundamental à temática: chamar a atenção às singularidades de espacialidades locais ao abordar experiências histórias que tenham o crime a violência como objetos.

No artigo que abre o dossiê, “A pobreza transformada em crime: o combate às práticas subalternas no Código de Posturas da cidade Parnaíba, Piauí (1899)”, Alexandre Wellington dos Santos Silva mostra como a implementação do Código de Posturas municipal, parte do processo de modernização urbana de Parnaíba, impactou principalmente a vida e o cotidiano das populações mais pobres da cidade. Apontadas como uma espécie de entrave ao “processo civilizatório” em curso, e do qual o novo Código era peça central, as chamadas “práticas subalternas” foram perseguidas e criminalizadas pelas elites locais, que pretendiam seu assujeitamento à nova legislação.

Munido das possibilidades teórico-metodológicas (e políticas) sugeridas pela “história social da pobreza”, o autor nos mostra, no entanto, que o intento das elites não se realizou plenamente. Antes pelo contrário, as populações pobres – “prostitutas, mendigos, vendedores ambulantes e ladrões [que] dividiam espaço com ‘trabalhadores do rio’ (…) e operários” – mesmo em constante vigilância e controle, buscaram construir estratégias, se não de resistência (tomada aqui a expressão em seu sentido mais restrito), mas de sobrevivência de suas práticas e saberes. O artigo de Alexandre Silva tem, entre outros, o mérito de nos lembrar que entre a lei e a realidade com a qual ela se choca e que pretende normatizar há, sempre, ruídos, e é principalmente a eles que a sensibilidade do historiador deve estar atenta.

Um breve excerto de sua tese de doutorado, o artigo “O médico e os monstros: a atuação de José Cândido Ferraz em meio aos conflitos políticos e aos incêndios criminosos em Teresina na década de 1940”, de Francisco Chagas O. Atanásio, nos desloca do litoral piauiense para a capital, Teresina. Somos apresentados aos conflitos políticos locais, perpassados por atos criminosos – mais especificamente, uma série de incêndios no centro e na periferia da cidade – e a ação repressiva da polícia local na procura de “bodes expiatórios” que servissem à sanha persecutória do governo, mas, igualmente, para acalmar os ânimos exaltados da chamada opinião pública.

Nesse contexto instável e conturbado, emerge a figura de Cândido Ferraz, um jovem médico descendente das elites locais e voz autorizada na oposição ao governo intervencionista de Leônidas Melo e seu chefe de Polícia, Evilásio Vilanova. Fazendo uso de farta documentação, que inclui, além da historiografia regional, romances e a imprensa periódica do período, Francisco Atanásio nos mostra como, na Teresina dos anos de 1940, a “era Vargas”, política e violência se entrelaçavam. Uma violência instrumentalizada, o que o autor também deixa claro, a partir de um corte classista: simbólica, quando se tratava de utilizá-la contra inimigos políticos pertencentes às elites. Física e repressiva, como mostram os relatos de tortura que Atanásio apresenta em seu texto, quando o “inimigo” a ser combatido pertencia às classes e grupos subalternizados.

A partir da repercussão, principalmente na imprensa do Rio Grande do Norte, da morte de Jararaca, Francisco Linhares Fonteles Neto e Antonio Robson de Oliveira Alvez tecem, em “O bandido Jararaca, ‘mais perverso que Lampião’: as narrativas jornalísticas sobre sua prisão e morte”, uma leitura sobre a circulação dos saberes e discursos acerca do criminoso no Brasil e, mais especificamente, no Nordeste dos anos de 1920. Integrante do bando de Lampião que, em maio de 1927, teve frustrada sua tentativa de atacar Mossoró, à época a maior cidade do Oeste potiguar, Jararaca caiu ferido e feito prisioneiro das autoridades locais.

Sua morte, ocorrida em junho do mesmo ano durante sua transferência para Natal, foi cercada de mistério e imersa em silêncios repletos de significados. Temia-se que um assassinato, mesmo que cometido pelas autoridades e tendo por vítima um famoso e temido cangaceiro, pudesse macular, de alguma forma, a festejada vitória dos mossoroenses na resistência a Lampião e seu bando. Ao longo do texto, e mapeando as muitas narrativas sobre os acontecimentos daquelas semanas, Fonteles e Alves exploram os muitos pontos de vista expressos pela imprensa regional: do temor inicial da população, nos dias que antecedem a investida do cangaço, aos usos das referências teóricas da criminologia lombrosiana na tentativa de, discursivamente, dar uma face e um sentido à violência criminosa de Jararaca, apresentada como expressão de uma degenerescência irredutível.

Articulando referenciais teóricas das ciências sociais, do pensamento foucaultiano e de uma história do tempo presente, o artigo “Juventude em perigo, criminalidade e cidadania negada”, de Marcondes Brito da Costa, apresenta resultados de uma pesquisa realizada durante os anos de 2009 e 2010, com grupos de jovens de comunidades periféricas de Teresina. O foco recai sobre os desdobramentos do tráfico de drogas nas trajetórias dos jovens pesquisados, na tentativa de compreender como as relações sociais são construídas em meio a um cotidiano atravessado por diferentes formas de violência – além da dos traficantes, também a da polícia. O principal mérito do artigo de Marcondes Brito é, sem perder de vista as especificidades locais, apreendidas em uma cuidadosa e sensível pesquisa de campo, dar ao problema do tráfico nas comunidades de Teresina uma dimensão que ultrapassa o território geográfico mais estrito.

O texto mostra que a “lógica” que movimenta o tráfico e recruta grupos inteiros de jovens, não pode ser explicada apenas localmente, porque inserida em teias de significados, em relações econômicas e políticas mais amplas e complexas. Igualmente, os discursos e políticas repressivas de combate ao tráfico, além dos muitos estigmas produzidos sobre a juventude que dele participa em diferentes níveis hierárquicos, não se diferem substancialmente em Teresina daqueles praticados em outras capitais e centros urbanos brasileiros. A produção de um inimigo a ser combatido e, se necessário, eliminado, fruto da “associação ideológica entre pobreza e criminalidade”, é apenas um dos resultados de uma cidadania cada vez mais precária e incompleta – “em frangalhos”, nas palavras do autor. E é de uma amarga ironia que uma das razões a explicar a escolha pelo tráfico como condição de subsistência seja, justamente, vislumbrar nele a possibilidade de exercer uma cidadania que, nas sociedades capitalistas, está cada vez mais associada à capacidade de consumo.

No artigo que encerra o dossiê – e também o único a abordar outra espacialidade que não o Nordeste –, “A ‘Operação mata-mendigos’ e o jornal Última Hora (Rio de Janeiro, 1961-1969)”, Mariana Dias Antonio analisa, a partir das páginas do jornal carioca, uma série de execuções de moradores de rua pela polícia do Rio de Janeiro no início da década de 1960. Fenômeno midiático à época dos acontecimentos, o caso acabou por se tornar assunto periférico nos anos subsequentes, não raro subordinado a narrativas que o inscreviam como parte menor de eventos considerados maiores e mais complexos. Além disso, a autora identifica uma série de lacunas e inconsistências em torno ao caso nas muitas fontes de sua pesquisa.

Um dos propósitos do artigo é, justamente, tentar responder algumas das contradições e suprir parte das lacunas encontradas. Para tanto, Mariana Dias mapeia, além do Última Hora, fonte privilegiada do trabalho, o inquérito parlamentar, os julgamentos e condenações dos agentes implicados. A ampla bibliografia sobre o assunto tampouco escapa a análise da autora, que nela destaca, como já dito, as contradições, lacunas e inconsistências para, em um esforço em que aproxima, compara e cruza as muitas narrativas produzidas sobre a operação – as reportagens da imprensa; a literatura; e os documentos oficiais, principalmente parlamentares – tentar preencher parte dos lapsos encontrados.

Fora do dossiê, outros seixs artigos completam esse volume da “Vozes, Pretérito e Devir”. Em “A freguesia da Cidade do Natal: um território eclesiástico na América Portuguesa”, Thiago do Nascimento Torres de Paula analisa o processo de criação e desenvolvimento da freguesia – territórios eclesiásticos que remontam à antiguidade – na Cidade do Natal, num período que abrangem os séculos XVII e XVIII e se estende até inícios do dezenove. O segundo artigo, “A Aids entre suas relações de estigma e solidariedade em Teresina-PI”, de Maria Zilda Bezarra Gonzaga, avança até os anos de 1980 e 1990, para analisar os muitos estigmas produzidos sobre Aids na capital piauiense, bem como as redes de solidariedade forjadas para o acolhimento e atendimento dos soropositivos.

No trabalho seguinte, “As festas cívicas em Campo Maior-PI durante a Ditadura Militar”, Caio Vinícius Silva Teixeira estuda os significados das manifestações cívicas realizadas durante o período ditatorial, onde valores como “civismo”, “patriotismo” e “nacionalismo” eram acionados como forma de legitimação da própria ditadura. Já Cristina Cunha de Araújo, em “Veredas e caminhos: Fátima e Jóckey Clube (1960-1980)”, analisa o processo de formação dos dois bairros de Teresina destacando as ações dos agentes responsáveis pela modelação do espaço urbano das duas localidades. Em sequência, o artigo de José Eduardo Oliveira Nascimento, “A escrita acadêmica sobre o diabo: o mal ao longo dos séculos”, onde o autor, a partir de uma cuidadosa revisão bibliográfica, analisa as representações do diabo e do mal na literatura ocidental ao longo dos séculos. Encerra esse volume com o artigo “O delegado militar no interior da província de São Paulo, no fim do Império”, de autoria de André Rosemberg. Nele, o autor aborda o lugar e papel social que envolvia a figura do delegado militar na província de São Paulo. Através de uma série de relatos e episódios atinentes ao fim do século XIX, o autor procura demonstrar como o delegado militar revestia-se como um mediador dos conflitos e tensões emergentes das correlações de forças instauradas por várias frentes como o próprio ramo militarizado, burocratizado, profissionalizado e ostensivo, representado pelo Corpo Policial Permanente (doravante CPP), e a hierarquia civil, cujos expoentes eram o chefe de polícia, os delegados e subdelegados; representantes do poder judiciário e das elites agrárias respaldas por sua influência local

Enfim, ficam aqui registrados os agradecimentos a todos que contribuíram direta e indiretamente para mais uma edição deste periódico, assim também como ressaltamos o convite a apreciação do mesmo pela comunidade acadêmica e o público interessado.

Boa leitura!

Notas

1. Entre outros, vale mencionar o trabalho seminal do historiador francês Louis Chevalier, “Classes laborieuses et classes dangereuses à Paris, pendant la première moitié du XIXe siècle”, publicado originalmente em 1958, pelas Éditions Plon. No Brasil, a historiografia do crime tem uma dívida com o livro pioneiro de Maria Sylvia de Carvalho Franco, “Homens livres na Ordem Escravocrata”, cuja primeira edição é de 1969.

2. HAY, Douglas; LINEBAUGH, Peter; THOMPSON, E. P. et al. Albion’s fatal tree: crime and society in eighteenth-century England. London: Allen Lane, 1975.

3. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Éditions Gallimard, 1975.

4. KALIFA, Dominique. História, crime e cultura de massa. Topoi, v. 13, n. 25, jul. / dez. 2012, p. 185-192.

5. Em meio a um conjunto de pesquisas que margeavam a história do crime, merece destaque o trabalho do historiador carioca Marcos Bretas, ainda hoje nossa principal referência e que, distintamente a seus contemporâneos de geração, trouxe o tema para o centro de suas preocupações em trabalhos como “A guerra das ruas” e “Ordem na cidade”, duas obras que deram contribuição decisiva à história do crime no Brasil.

Clóvis Gruner

Francisco C. O. Atanásio

Curitiba, julho de 2019


ATANÁSIO, Francisco C. O.; GRUNER, Clóvis. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.9, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Clio – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 37, n. 1, jan./jun. 2019.

Sobre a Revista

Apresentação

Artigos Livres

Recorde. Rio de Janeiro, v.12, n.1, 2019.

Artigos – Dossiê

Artigos

Entrevistas

1913: antes da tempestade – ILLIES (FH)

ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016. 368p. Resenha de: VIEIRA, Vinícius de Castro Lima. Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies. Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.472-477, jan./jun., 2019.

Ao texto de prazer, Roland Barthes, em 1973, propôs uma caracterização como o texto que procura ser desejado pelo leitor, que produz o deleite pelas/das palavras, que contenta pela ironia, pela erudição, pela fineza, pela cultura e pela inovação. Um texto de prazer, e esse é um detalhe crucial, não é aquele necessariamente dedicado a narrar o prazer, não é o pornográfico; o texto de prazer é aquele no qual se regozija pela forma de produção, pelo erotismo das palavras que instigam.

Para mim, não houve possibilidades – e aqui já me entrego de imediato – de ler o livro, 1913: antes da tempestade, de Florian Illies, e não lembrar das palavras de Barthes. Aliás, o prazer do texto no livro de Illies, ao menos nesta edição brasileira, começa – em um oximoro erótico – antes mesmo da leitura: já está encaminhado na belíssima capa estampada pelo quadro Rua à Noite, de Max Beckmann, que envolve o miolo composto por papel off-white de excelente qualidade e com uma agradável composição tipográfica. Por isso, não pretendo aqui fazer apenas comentários críticos sobre o trabalho de Illies, mas também escrever uma resenha que instigue a leitura do livro.

Mas atenção: não é porque o livro de Illies tenha sido um texto de prazer para este leitor, agora alocado na posição de autor, que o será, automaticamente, para outros. Pode ser que alguém sinta um completo enfado pelo livro; como também é possível que eu mesmo, num outro momento, eventualmente não o identifique mais como um texto de prazer. O prazer é individual, presente, momentâneo e efêmero. Como o sentido de um texto que só se completa nas co-criações do leitor, o prazer, por mais que o texto o procure, não está garantido. O prazer existe em função de alguém e é específico de um leitor em um certo momento; afinal, “se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer este é bom, aquele é mau (…). O texto (o mesmo acontece com a voz que canta) só me pode arrancar este juízo, nada objetivo: é isso. E mais ainda: é isso para mim!” (BARTHES, 2009, p. 137).

O livro de Illies cativa pela fina ironia, pelo bom humor, pelo nítido cuidado com as palavras e pelo vasto trabalho de pesquisa. A estrutura narrativa é descontínua, cada capítulo se refere a um mês do ano de 1913 e é subdividido em pequenas seções. Isso não impede, contudo, a percepção e o acompanhamento do transcorrer de determinadas situações, casos e conflitos ao longo do ano. Dessa forma, o livro pode ser apreciado em vários regimes de leituras, dentre os quais dois se destacam: o primeiro seria o da leitura fragmentária, mais interessada nas crônicas envolventes do cotidiano de personagens admiráveis como Rilke, Picasso, Kafka, Schiele, Freud e Schönberg; o segundo seria o da visão totalizante, que permite a percepção de uma espécie de zeitgeist do modernismo europeu no início do século XX. Evidentemente, esses regimes de leituras são mais complementares do que excludentes.

A nacionalidade alemã, a formação em história da arte e a atuação profissional como marchand de arte e jornalista cultural, são aspectos biográficos e profissionais de Illies que ajudam a compreender alguns desses encaminhamentos narrativos, como a natureza jornalística da prosa curta, direta e objetiva e, também, o decalque no destaque evidente ao mundo artístico-cultural germanófono.

Em 2000, o nome de Illies já havia reverberado bastante na intelectualidade alemã com a publicação de seu primeiro livro, Generation Golf, em que fazia uma análise de sua própria geração, nascida nos anos 1970 e modelada no transcorrer das duas décadas seguintes. Não foi por acaso, portanto, que 1913 se tornou um sucesso de crítica e de vendas logo após o seu lançamento, em 2012, na Alemanha; sendo, posteriormente, traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e português. O livro chegou ao Brasil, em 2016, numa edição publicada pela editora Estação Liberdade, com tradução de Silvia Bittencourt e sob auspícios do Ministério das Relações Exteriores alemão.

Ao final da leitura de 1913, fica uma certa impressão de que este ano foi arrebatador, repleto de eventos inaugurais que seriam emblemáticos durante um longo período. Para me ater apenas a exemplos integrantes do inventário de Illies, poderia citar: o início da operação da primeira linha de montagem nas fábricas da Ford; a inauguração dos 57 andares do edifício Woolworth, em Nova Iorque, assumindo o posto de mais alta construção do mundo naquele momento; a publicação do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, marco da literatura modernista; as primeiras audições públicas de Canções de Guerre e de Sagração da Primavera, obras-primas de Schönberg e de Stravinsky, respectivamente; o retorno de Mona Lisa ao Museu do Louvre, dois anos depois de ter sido roubada; a realização da exposição Armory Show, que consolidaria a hegemonia do modernismo nas artes; a circulação do primeiro número da revista Vanity Fair entre muitas outras coisas. Tudo isso em 1913.

Ora, se for feito um levantamento tão detalhado quanto o de Illies para outros anos do último século, talvez se chegue a impressões similares de importância, de efervescência e de singularidade. O diferencial do ano de 1913 é especialmente definido pelo que se segue, pois o desenvolvimento econômico-tecnológico, a agitação cultural e, até mesmo, um certo chacoalhar nos costumes ocorre às vésperas da Primeira Guerra Mundial. E isso se torna ainda mais peremptório na narrativa de Illies por não haver indícios no cotidiano das pessoas de apreensão, medo ou desconfiança generalizados para com o futuro.

Evidentemente, as pessoas, em 1913, não poderiam conhecer a “tempestade” que lhes aguardavam; sobretudo porque as experiências traumáticas da Primeira Guerra Mundial estavam tão recheadas de ineditismo que não seria viável nem mesmo vislumbrá-las no horizonte de expectativas. A clivagem que a grande guerra mundial operou no espaço de experiências daquela geração permite que nós, hoje, retrospectivamente, compreendamos como foi possível a formulação de certos prognósticos, como o de David Starr, presidente da Universidade de Stanford em junho de 1913: “A grande guerra europeia, uma ameaça eterna, jamais chegará. Os banqueiros não arranjarão o dinheiro para tal guerra, a indústria não a manterá, os estadistas não terão como levá-la a cabo. Não acontecerá nenhuma grande guerra” (STAR apud ILLIES, 2016, p. 177); ou mesmo o de Lênin, em março desse mesmo ano: “Uma guerra entre a Áustria e a Rússia seria muito útil para a revolução na Europa Ocidental. Todavia, é quase impossível imaginar que Francisco José e Nicolau nos façam este favor” (LÊNIN apud ILLIES, 2016, p. 89).

Essa percepção de que a grande guerra mundial não estava inserida no campo das probabilidades, em 1913, emerge no olhar microscópico lançado por Illies sobre o período. Um olhar que focaliza o cotidiano de determinados integrantes – ou daqueles que viriam sê-los, em breve – das elites culturais, políticas, intelectuais, acadêmicas e científicas do continente europeu, em especial, das “capitais do modernismo” – Viena, Paris, Berlim e Munique. Illies pouco ou nada nos diz sobre os pobres e os camponeses europeus, nem sobre o cotidiano nos trópicos ou nos continentes asiático e africano. Um historiador, por outro lado, que empregasse um olhar instrumentalizado pelo telescópio1, sobre o mesmo período, talvez pudesse afirmar, pautado em elementos – que o próprio Illies menciona – como o aumento dos gastos militares, o incremento no contingente do exército austro-húngaro ou o aumento das tensões políticas nos Balcãs, que já estaria sendo tramado um cenário de guerra. E, assim, estaríamos diante de um bom exemplo das variações interpretativas proporcionadas pelos chamados jogos de escalas (REVEL, 1998).

Porém, Florian Illies não é esse historiador, não é essa sua intenção, nem, muito menos, é esse o seu olhar. Ele prefere nos deliciar com as intimidades da vida dos outros. Prefere nos contar a ida de Hitler para a Alemanha, em maio, fugindo do recrutamento do exército austríaco; a intensa paixão do feioso Oskar Kokoschka com a belíssima Alma Mahler, que lhe promete casamento se ele pintar uma “grande obra-prima” (ILLIES, 2016, p. 138); a apreensão de Freud para o encontro com seu ex-colaborador Jung, no IV Congresso da Associação Psicanalítica; e as indecisões de Kafka, suas “gagueiras por escrito” (ILLIES, 2016, p. 191), nas cartas trocadas com sua amada Felice Bauer.

Aliás, Kafka é um dos personagens mais proeminentes da narrativa de Illies e merece aqui um comentário mais detido. Quando finalmente consegue se decidir, um dos maiores escritores do século XX, pede Felice Bauer em casamento de uma forma no mínimo sui generis. Escreve Kafka:  […] pondere Felice, diante desta incerteza é difícil pronunciar as palavras e também deve ser estranho ouvi-las. Ainda é cedo demais para dizer. Mas depois será tarde demais, não haverá mais tempo para discutir essas coisas, como você menciona na última carta. Mas não há mais tempo para hesitar demais, pelo menos é o que sinto, e por isso pergunto: dadas as condições acima, difíceis de eliminar, não quer pensar em se tornar a minha esposa? Você quer isso? […] Considere, Felice, as mudanças que se sucedem conosco em um casamento, o que cada um perderia, o que cada um ganharia. Eu perderia a minha solidão, assustadora na maioria das vezes e ganharia você, a quem amo acima de todas as pessoas. Você, porém, perderia a vida que tem agora, com a qual tem estado quase inteiramente satisfeita. Perderia Berlim, o escritório de que tanto gosta, as amigas, os pequenos prazeres, a perspectiva de se casar com um homem saudável, alegre e bom, de ganhar filhos bonitos e com saúde, algo que você, pense bem, realmente almeja. No lugar destas perdas incalculáveis, você ganharia uma pessoa doente, fraca, insociável, taciturna, triste, inflexível e quase sem esperança (KAFKA apud ILLIES, 2016, pp. 191-192).

Illies então segue, comentando ironicamente, “Quem não diria sim imediatamente? Um pedido de casamento em forma de admissão de falência” (ILLIES, 2016, p. 192).

Tudo bobagem, poderiam dizer os estudiosos presos à ortodoxia de uma história estrutural desencarnada. Mas acho que a essa altura já está bastante evidente que as miudezas, as de Illies aqui, em particular, podem municiar importantes reflexões. Se ainda não estiver, vamos a um exemplo ainda mais claro.

Um exemplo de reflexão teórico-conceitual que o livro de Illies encaminha aparece bem localizado no início do capítulo dedicado ao mês de março e diz respeito à importância em conferir uma dimensão histórica ao conceito de moderno. Como sabemos, o que é tomado, proposto e entendido como moderno, em uma determinada época, é objeto de disputa, envolvendo, em alguns casos, passado e presente, tradição e ruptura. À cada geração, ao menos desde meados do século XIX, o que é identificado como moderno é redefinido constantemente, de modo a consolidar o rompimento com parcelas de um passado e ser associado às experiências presentes. Toda essa reflexão é belamente ilustrada por Illies a partir do relato das relações do crítico de arte Julius Meier-Graefe com as vanguardas artísticas:  Sempre assistimos, espantados e admirados, a como os propagandistas mais impetuosos da vanguarda têm olhos apenas para aquela única revolução artística. Quando chega a geração seguinte, disposta a fazer a última vanguarda parecer antiquada, a perícia, o discernimento, o “olho” firme muitas vezes não funcionam mais. É o caso aqui. Meier-Grafe, que por iniciativa própria abrira os olhos dos alemães para Delacroix e Corot e Cézane e Manet e Degas e muitos outros, está sentado na casa de campo em Berlim-Nikolassee e escreve, impassível, a sentença: “Frente ao nome de Picasso, o historiador do futuro ficará paralisado e constatará: aqui se chegou ao fim”. Ponto. Inimaginável que, depois da destruição das formas do cubismo, seja possível seguir em frente. O grande autor, talvez o estilista mais ardente da crítica de arte do século, um mestre em narrar a “evolução” da arte, agora a enxerga, sobriamente, chegando ao fim. Lá, no mesmo ponto em que hoje enxergamos seu início (ILLIES, 2016, p. 87).

É preciso, ainda, fazer três comentários sugestivos e críticos sobre aspectos formais do livro, dois deles de responsabilidade do próprio autor e o outro me parece que mais específico à edição brasileira. Primeiramente, a ausência de indicações precisas das referências das fontes, ao meu olhar viciado de historiador, incomoda bastante. A lista das referências bibliográficas que segue ao final do livro é muito geral e não ajuda muito outros pesquisadores que eventualmente quiserem desenvolver ou mesmo checar algumas informações citadas por Illies. Certamente, o autor e os editores optaram por suprimir as notas de rodapé para favorecer a fluidez do texto, mas, ainda sim, poderiam ter se valido das notas de fim, com as quais obteriam efeito parecido, sem comprometer o rigor. Outra carência importante é a de um índice remissivo. Como são muitos nomes citados inúmeras vezes, esse índice, provavelmente, seria gigantesco, porém ajudaria os pesquisadores, estudantes e mesmo os curiosos com interesses mais específicos, a identificar os momentos exatos em que cada personagem é mencionado. Não posso deixar de sinalizar, por fim, os problemas de ortografia e de digitação que a edição brasileira apresenta. Para me bastar no mais grosseiro, o nome de Virginia Woolf aparece, ao menos três vezes, erroneamente grafado como “Virgina”. Detalhe que não anula a qualidade do livro, mas que precisará ser objeto de uma revisão mais cuidadosa em futuras reedições.

Estamos, portanto, diante de uma obra que tem méritos, defeitos e limitações, mas que consegue, antes de tudo, despertar o interesse do leitor pelo período e pelo desenrolar do próprio livro. Illies escolhe tão bem as palavras que nos deixa em dúvida se lemos num único fôlego para conhecer os desfechos de todas aquelas situações ou se diminuímos o ritmo para desfrutar pausadamente das imagens produzidas pela narrativa. E, ainda assim, no final, ficamos curiosos dos destinos das vidas ali narradas, desejosos de perceber de que modo a grande guerra alterou aqueles cotidianos e produziu outras sociabilidades, apreensões e “normalidades”. Por isso, seria formidável se Illies nos presenteasse com um 1915 ou um 1918. Enfim, foi ótimo para mim. Espero que para vocês também seja.

Notas

1 Quando me refiro aos olhares telescópicos e microscópicos faço alusão ao comentário de José Gonçalves Gondra sobre o trabalho de Jacques Revel. Sobre esse tema, consultar: GONDRA, 2012; REVEL, 1998.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 2009.

ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016.

GONDRA, José. Telescópios, microscópios e incertezas: Jacques Revel na história e na história da educação. In.: LOPES, Eliane; FARIA FILHO, Luciano (Org.). Pensadores sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. v. 2.

REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

Vinícius de Castro Lima Vieira – Mestre em História Política pela UERJ, Rio de Janeiro-RJ, e doutorando em História Política na mesma instituição. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES). E-mail: vinicius.vieira@folha.com.br.

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What Is Global History? – CONRAD (FH)

CONRAD, Sebastian. What Is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016. 299p. Resenha de: CALÇA, Elaine. História global: uma solução ou um retorno? Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.478-482, jan./jun., 2019.

A tentativa de construir uma história não eurocêntrica surge a partir da crise contemporânea do Estado Nacional e dos acontecimentos do final do século XX, consequentemente, surgiram diversas abordagens dentro da historiografia, como história atlântica, história transnacional e história global. Dentre estas correntes, a história global demonstra ser a alternativa menos empregada pelos historiadores brasileiros. Diante disso, esta resenha pretende apresentar o trabalho publicado pela editora da Universidade de Princeton, em 2016, do renomado teórico do campo da História Global na Alemanha, Sebastian Conrad, professor da Frei Universität Berlin e do programa de pós-graduação em História Global na mesma instituição.

A obra de Sebastian Conrad parte da necessidade de esboçar os motivos da popularidade repentina que a História Global ganhou em espectro mundial no início do século XXI dentro do meio acadêmico, em especial, no campo da História; revistas como The American Historical Review e Past & Present estão publicando estudos nessa área, e em 2006 foi fundado pela Cambridge o Journal of Global History.

O trabalho de Conrad nos apresenta uma perspectiva atual da história que, segundo nossa análise, se contrapõe diretamente tanto à tradição historiográfica do século XX, quanto à tradição dos antropólogos, filósofos e cientistas alemães do século XIX, desde Immanuel Kant até Alexander von Humboldt e Adolf Bastian. Enquanto a tradição antropológica alemã alegava que as culturas africanas não possuíam história e, portanto, eram estáticas, a História Global, segundo Conrad, consiste na saída do continente europeu e na busca da história a partir do enfoque nos sujeitos, ideias e comércio em movimento.

Em geral, o autor defende esta corrente por considerar que a tal engaja-se em quebrar a relação estabelecida entre os historiadores do final do século XIX e o Estado Nação, relação esta que é fruto da fundação da História enquanto disciplina.

Entretanto, sabe-se que a reivindicação em história de uma metodologia relacional ou comparativa é presente em outras vertentes como História Comparativa, História Cruzada, História Transnacional, História Atlântica e esta reivindicação é justamente vista como meio de desvincular a atual disciplina com as instituições estatais, as quais a história vinculava-se durante o século XIX e parte do século XX. Essas correntes também tencionam abordar o tema e o objeto de forma diferente da tradicional, dominantemente presente na historiografia. Apesar desse anseio, José d’Assunção Barros pontua que a intencionalidade de transgredir ou se desvincular com a abordagem tradicional não implica no sucesso garantido do trabalho, já que os historiadores também estão inseridos em “categorias e formas estereotipadas de pensamento que os amarram” que exercem “pressões que sobre eles” (BARROS, 2014, p. 279), ou seja, também produzimos estereótipos e pré-conceitos de nosso tempo.

Na introdução o autor apresenta as diversas formas em que a História Global se apresenta, auxiliando o leitor a se orientar dentro desse debate e a definir o termo não enquanto objeto de estudo ou metodologia específica, mas como perspectiva que enfatiza as interações ou transformações estruturadas em nível global. Dividido em introdução e 9 capítulos, este livro é um manual que sistematiza como a história global foi e é utilizada pelos historiadores, nos apresentando os problemas e apreensões que a escrita da história, dentro deste campo, pode encontrar, bem como algumas possíveis soluções.

“História em sua maior duração foi sinônimo de história nacional” (CONRAD, 2016, p. 3), afirma Conrad nas primeiras páginas da introdução, onde explicita que a abordagem da história global objetiva suprimir tal história, já que o Estado Nação tem sido tão problematizado pela historiografia desde o final do século XX. O objetivo não é escrever uma história total do planeta ou ser um sinônimo de macro-história, mas uma tentativa de ressaltar conexões globais e condições estruturais que, na verdade, sempre houve, mas em níveis de impacto diferentes. Sendo assim, tudo pode se tornar história global. Sobre esta perspectiva, o trabalho, enquanto conceito, é uma das temáticas que pode ser analisada numa perspectiva global, por exemplo, como parte da economia da escravidão, que estabeleceu relações entre Brasil, Angola e Portugal.

O capítulo II, “Historiografia Ecumênica”, apresenta ao leitor autores que teriam uma visão planetária da história, como o otomano Mustafa Ali (1541–1600) ou o historiador mongolês Tahir Muhammad (ca. 1560). Conrad (2016) afirma que esses autores teriam produzido uma História Mundial na época da hegemonia ocidental, entretanto, não obtiveram reconhecimento, pois eram considerados historiadores amadores. Ampliando o conceito de história global, segundo o autor, Heródoto e Ibn Khaldun também já teriam escrito uma história considerada planetária. Além disso, pesquisa olhares de pensadores periféricos sobre a Europa, um dos temas deste capítulo, como o exemplo do livro História da Índia Ocidental (Tarih-i Hind-i garbi), escrito em Istambul, em 1580, por um turco em anonimato, que tentava compreender a inesperada ampliação de horizonte e do dilema cosmológico apresentado pela descoberta do “Novo Mundo”.

Ademais, o autor reconhece que fazer uma história global não seria algo novo, e cita que a teoria da dependência produzida na América Latina, os estudos subalternos e de gênero, o pan-africanismo e o movimento de negritude, produzidos por autores como Frantz Fanon (1925-1961), Aimé Césaire (1913-2008) e Léopold Senghor (1906-2001), seriam o ponto de partida para ou uma tentativa de produzir uma história global.

História comparativa, transnacional, estudos pós-coloniais, concepção de múltiplas modernidades e teoria dos sistemas mundiais são abordados no capítulo III, “Disputa de Abordagens”. Estas correntes são colocadas em diálogo com a História Global pelo autor. Ele explicita a influência destas sobre os historiadores globais (por vezes sem reconhecimento), que são potencialmente usadas para escrever uma narrativa global coerente. Cada uma dessas abordagens é apresentada também com seus limites. No conjunto da produção de história comparativa, os estudos permaneceram vinculados ao conceito de diferentes “civilizações” e muitas vezes foram escritas a partir da perspectiva da cultura europeia. A concepção de múltiplas modernidades pressupõe a existência de vários modelos de modernidade, que não são construídos sobre o paradigma da ocidentalização, todavia esta metodologia acaba por negligenciar conectividades globais. Para o autor, os estudos pós-coloniais e as múltiplas modernidades são abordagens historiográficas que derivam da falta de satisfação com a teoria da modernidade, mas também possuem diversas limitações.

Essas vertentes possuem nomes diversos que, no entanto, têm mais semelhanças do que divergências, as quais geraram um debate ainda atual. O uso do método comparativo, por exemplo, acabou sendo um dos argumentos para que estas correntes se diferenciassem. Sean Purdy, em seu artigo A História Comparada e o Desafio da Transnacionalidade, apresenta que historiadores da história transnacional negam o método comparativo. O autor nos propõe uma crítica não ao conceito de transnacionalidade, mas como este é utilizado (PURDY, 2012, p. 65).

Ainda dentro desse panorama, Sebastian Conrad afirma que o marxismo, apesar de ser vulgarmente reconhecido como uma abordagem que daria ênfase aos estágios de desenvolvimento, e seu método materialista histórico, apresentaria análises das muitas interações que ocorrem em nível global ao analisar o desenvolvimento social, o qual vai ao encontro com a proposta dialética apresentada também pela história global.

Diante dos apontamentos críticos que o autor faz as outras abordagens teórico-metodológicas citadas até agora, o capítulo IV, “História Global como uma abordagem distinta”, defende que a História Global responde a urgente necessidade de se repensar a história ao propor a análise de fenômenos, processos e eventos sob o aspecto global, os quais permitem ver relações entre histórias e experiências em tempo e espaço diversos, o que não seria possível dentro da investigação tradicional da história. Os historiadores que desejarem utilizar a história global, segundo o autor, deverão não apenas fazer conexões entre os espaços, mas também revisitar as abordagens e métodos citados anteriormente para a elaboração de uma nova história.

As diferenças entre história global e história da globalização serão apresentadas ao leitor no capítulo 5, bem como as potencialidades que os historiadores possam encontrar ao utilizar tal abordagem para analisar as estruturas e as interações globais. Neste momento do texto, são apontados seis campos de pesquisa como já cristalizados na História Global, são eles: História do Oceano; dos Bens; da Migração; da Nação; História Ambiental e dos Impérios. Em relação a última área, destaca-se que a interpretação trazida pela História Global tem mudado substancialmente a área de estudos sobre Imperialismo, ao olhar para aspectos como as concepções de domesticidade, família, infância, sexualidades e masculinidades.

O autor retoma a necessidade dos historiadores repensarem o tempo e o espaço de formas alternativas nos capítulos 6 – “Espaço segundo a História Global”, como pela micro-história ou pelas interações networks; e 7 – “Tempo segundo a História Global”, com a ideia de curta e longa duração, metodologia consagrada desde a obra de Fernand Braudel (1902-1985), bem como os revestimentos (ou escalas) temporais – Zeitschichten, de Reinhart Koselleck (2000).

Em “Posicionamentos e abordagens centradas”, capítulo 8, o autor questiona se uma versão transcultural da história é acessível em todo o mundo, bem como realça a importância das ciências sociais a despeito de sua origem europeia. Tal discussão é mantida no capítulo 9, “Os conceitos da história global e a construção de mundo”, onde o autor aborda o eurocentrismo, a posicionalidade, a ascensão, a queda e o retorno ao modelo de civilizações.

No último capítulo, “História Global para quem? A Política da História Global”, se discute as diferenças entre escrever sobre globalização e a globalização enquanto uma ideologia presente na política. Esta diferenciação pode ser tênue e utilizada acriticamente, levando a equívocos em relação às desigualdades sociais que, além de econômico e estrutural, também está presente nas tradições historiográficas ocidentais, orientais e africanas, que acaba por prevalecer a historiografia eurocêntrica em detrimento das demais. Além da contribuição da hegemonia do inglês como um instrumento de disseminação do conhecimento que é produzido em um espaço delimitado, ou seja, por instituições e mídias europeias e americanas, sobre todo o mundo.

Por fim, é importante ressaltar que as versões da obra em inglês e em alemão (Globalgeschichte, publicada pela editora C.H. Beck em 2013), apesar de possuírem o mesmo título, são diferentes entre si. É importante salientar que na edição de 2016, a qual nos baseamos para esta resenha, o autor pôde revisar, acrescentar capítulos e descartar outros.

Referências

BARROS, José d’Assunção. História cruzada: considerações sobre uma nova modalidade baseada nos procedimentos relacionais. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 40, p. 277-310, 2014.

CONRAD, Sebastian. Globalgeschichte: Eine Einführung. München: C.H. Beck Verlag, 2013.

_________. What Is Global History? Princeton: Princeton University Press, 2016.

KOSELLECK, Reinhart. Zeitschichten. Studien zur Historik. Frankfurt/M.: Suhrkamp Taschenbuch Verlag 2000.

PURDY, Sean. A História Comparada e o Desafio da Transnacionalidade. Revista de História Comparada, UFRJ, Rio de Janeiro, p. 64-84, 2012.

Elaine Calça – Graduada pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Assis-SP, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História e docente bolsista de alemão do Departamento de Letras Modernas na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, Assis-SP. Bolsista de mestrado CNPq. E-Mail: elaine.calca@unesp.br.

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Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v.12, n.2 , 2019.

Dossiê Temático: “Os embates na construção do conhecimento histórico e a memória no Paraguai”

DOI: http://dx.doi.org/10.22228/rt-f.v12i2

Artigos dessa edição

Dossiê Temático

A particularidade na estética de Lukács (T), Instituto Lukács | Deribaldo Santos

“A particularidade na Estética de Lukács” de Deribaldo Santos, publicado pelo Instituto Lukács (IL), com primeira edição no ano 2017, trazendo os principais conceitos da obra de maturidade de György Lukács, elaborada de forma mais bem-acabada em a Estética 1. O autor se propõe a sistematizar as categorias lukacsiana contida na obra do filósofo, deixando-as mais acessíveis para o entendimento e direcionando-as para o público interessado no pensamento Lukács e para quem se interesse e estude estética. O estudioso da particularidade em Lukács tem publicado pela editora do IL “Estética em Lukács – A criação de um mundo para chamar de seu”, além deste, outros livros de cunho literário e na área de educação.

Em seu livro, Santos se propõe a expor os conceitos estéticos de Lukács de forma didática para seus leitores, preocupação coerente para um intelectual que tem sua formação em pedagogia e educação. Com essa preocupação do autor, temos em tela uma estrutura fluida e bem amarrada, dividida em três capítulos, tendo cada um em média quatro subcapítulos, que demonstram de forma sistemática transições entre categorias. Sendo assim, o primeiro capítulo tem o objetivo de mostrar como as categorias trabalho, cotidiano e arte tem suas materialidades efetivas na vida comum e como são formas de objetivação humana; articular o distanciamento e aproximações ente a arte e a ciência; por fim, qual é a gênese do desligamento dos reflexos estéticos na realidade. No segundo capítulo, o autor articula a centralidade da categoria da particularidade para a estética marxista, passando por uma demonstração teórico-metodológica desta, apontando para a importância de J.W. Goethe para a formulação da categoria em questão e o esclarecimento de sua peculiaridade. No terceiro e derradeiro capítulo, o autor trata da concepção de forma-conteúdo e essência-aparência, pontos cruciais para a compreensão da dialética da particularidade estética. O estudioso da particularidade em pouco mais de cem páginas coloca em tela sua proposta: demonstrar o movimento dialético interno das categorias lukacsiana, atreladas à realidade concreta.

Para Ranieri Carli, o conceito de particularidade para Lukács é elemento “imposto ao estético pela própria realidade objetiva” que “ocorre do fundamento terreno da arte: a criação de uma imagem aproximativa que traduza em destinos humanos concretos as forças sociais de época e lugar determinados” (CARLI, 2012, p. 117). Segundo esse outro estudioso, o filosofo húngaro defende que a partir da centralidade do particular a universalidade ganha caráter concreto, deixando de ser abstrato, tal qual o singular passa a ter um sentido, deixando de ser avulso. Assim, em sua Estética 1 “a situação do particular vem confirmar a não imediaticidade do reflexo estético” (CARLI, 2012, p. 117). O húngaro, para Carli, propõe-se à formulação de uma teoria estética marxista voltada para o caráter organizativo da particularidade na obra de arte, tendo como ponto de partida uma visão histórica e crítica do pensamento filosófico alemão, desde Kant, passando por Schelling, Hegel e Goethe, chegando a Marx e Engels.

Lukács até o fim de sua vida se dedicou a entender a obra de arte em relação à ciência, como essas duas formas de representação do mundo se relacionam entre si e expressam de formas diferentes a mesma realidade efetiva. Esse esforço é elaborado através das lentes teórico-metodológica marxistas. O que Santos nos mostra em seu livro é a importância da categoria de particularidade para a produção e entendimento das obras arte, assim como a importância dessa categoria para o método cientifico. O autor faz uma análise interna das obras de Lukács — Introdução a uma Estética Marxista e Estética 1 — em que se propõe mostrar a relação entre o Particular, o Singular e o Universal, levando em consideração as várias categorias que são essenciais para o movimento do particular ao universal nas obras artísticas e na ciência.

A categoria de particularidade para Santos é o que permite analisarmos a realidade concreta na sua mais complexa determinações, pois essa categoria é o ponto principal para o movimento dialético tanto da obra de arte como da ciência. Lukács, em uma das obras analisadas por esse estudioso, coloca da seguinte forma “para entender a diferença decisiva entre reflexo científico e reflexo estético, tivemos de sublinhar que o particular, que figurava no primeiro como ‘campo’ de mediação, deve se tornar no segundo o ponto central organizador” (LUKÁCS, 1978, p. 173), com isso fica claro a diferença da categoria de particular na metodologia de uma obra artística e essa categoria em relação à analise cientifica.

A categoria de reflexo estético é colocada no livro de Santos como fruto da realidade unitária, assim, a entrada para a representação da realidade a partir desse reflexo é o próprio cotidiano, onde ocorrem as objetivações superiores. Sendo na cotidianidade que ocorrem as contradições do mundo prosaico e nesta instância encontramos as características fundamentais da vinculação entre teoria e prática. O estudioso da particularidade nos mostra que Lukács coloca o cotidiano como preponderante sobre o pensamento científico e que desse solo partem as formulações de questões que serão resolvidas cientificamente. O autor nos mostra que, na visão do filósofo húngaro, a ciência e a arte entram na divisão social capitalista do trabalho, formando os vários campos das artes e da ciência modernas, e que nessa formação histórica da divisão social do trabalho isso é o que determina a divisão entre o pensar e o fazer, ou seja, somente com a consolidação da modernidade como um período histórico que detém maior complexidade de determinações há também a separação plena entre teoria e práxis.

Seguindo Lukács, Santos coloca que a existência do objeto a ser analisado cientificamente é independente da consciência do sujeito. Assim, partindo de um ponto de vista materialista dialético, que atribui cientificidade à historiografia, esta, por sua vez, tomaria a própria história como um processo real e efetivo, independente da consciência do historiador. Desse modo, a função da História como ciência seria o esforço de desantropomorfizar o objeto que está sendo pesquisado, tal como qualquer ciência modernamente estabelecida. A desantropomorfização, em termos gerais, é a retirada de características atribuídas humanamente ao objeto e que partem de um senso comum cristalizado. Com isso, o reflexo científico tem a função de representar a realidade tal como ela é em suas várias determinações inerentes, com realidade independente em relação ao conhecimento.

Em contraponto, o reflexo estético é a antropomorfização da realidade, isto é, tem a função de atribuir a ela maior gama de características humanas, deixando sua representação mais enriquecida, fazendo o movimento de articulação entre a inerência da obra de arte e a externalidade da realidade concreta. Toda a forma de reflexo — no caso, estético e cientifico —, são determinados, como demonstra o estudioso, partindo de Lukács, por um hic et nunc (aqui e agora) que já é histórico em sua gênese. O autor nos mostra que “cada reflexo, artístico ou cientifico, está carregado de ponderações materiais e temáticas impressas pelo espaço temporal de sua consumação” (SANTOS, 2017, p. 25). Com isso, demonstrando que há na interpretação de Lukács uma defesa da imanência do objeto, o qual é uma exigência insolúvel ao conhecimento científico.

Como imanência do objeto, o autor categoriza tudo aquilo que é indissociável do objeto investigado pelo cientista. Assim, à ciência, com o seu método, caberia se aproximar da realidade imanente a esse objeto, isto é, a ciência — em seu movimento interno — só é capaz de se aproximar da realidade e isso é uma forma necessária para que haja um processo de atualização constante dela mesma, determinado pelo objeto, sendo este independente da consciência do sujeito; no processo em questão, também se proporciona rastros a serem seguidos posteriormente, e esses rastros se estendem ad infinitum.

A Estética, relacionada à ciência do belo, enquanto efetividade sensorial [2] , ou seja, relativa aos cinco sentidos humanos, também tem a funcionalidade de analisar a sensação humana dentro dos vários âmbitos particulares da realidade cotidiana, o filósofo alemão G. W. F. Hegel coloca o termo estética em relação ao âmbito da arte dizendo

O nome estética decerto não é propriamente de todo adequado para este objeto, pois “estética” designa mais precisamente a ciência do sentido, da sensação [Empfinden]. Com este significado, enquanto uma nova ciência ou, ainda, enquanto algo que deveria ser uma nova disciplina filosófica, teve seu nascimento na escola de Wolff, na época em que na Alemanha as obras de arte eram consideradas em vistas das sensações que deveriam provocar, como por exemplo as sensações de agrado, de admiração, de temor, de compaixão e assim por diante (HEGEL, 2015, p. 27).

Santos irá diferenciar a arte da religião, para o autor a primeira tem como imanente o humano, assim, os seres humanos em sua atividade seriam o núcleo para a produção artística. No caso da segunda, a religião, o investigador demonstra que na concepção de Lukács ela também depende do homem para existir, porém a sua diferença com a arte e com a ciência está na sua orientação ao transcendental, ou seja, ela está para além do hic et nunc (aqui e agora). Podemos fazer a mesma relação com a ciência, que, assim como a arte tem como núcleo a atividade humana, e diferente da religião, não tem orientação ao transcendental. Desse modo a arte e a ciência tem como núcleo o mesmo objeto, o homem, e por esse mesmo núcleo ambas são desenvolvidas. Nessa concepção essas três formas de representação do mundo, arte, ciência e religião, para o filósofo húngaro dependem do sujeito para existir, ou seja, depende da pratica humana na sua forma mais aberta possível, essas representações estão totalmente atreladas, para Santos e Lukács, com a divisão social capitalista do trabalho.

A divisão social capitalista do trabalho é uma relação social que irá determinar as duas principais formas de reflexo do mundo, a arte e a ciência. Santos afirma que para Lukács essa divisão social historicamente determinada cria na representação do mundo um estreitamento. O autor defende que para Lukács os sentidos humanos, apesar de serem in natura, são desenvolvidos historicamente para atender necessidades socialmente constituídas, mas, com a divisão social do trabalho haveria um estreitamento da visão de mundo, o que direcionaria o foco para pontos isolados; isso se intensifica na sociedade moderna.

A partir da observação do fenômeno de estreitamento dos sentidos humanos, o estudioso constata que Lukács concebe o homem em duas formas: o “homem-inteiro” e o “homem-inteiramente”. O primeiro nada mais é que o homem que está vinculado diretamente ao seu cotidiano e que está inserido nele de forma inteira, pois esse sujeito é parte determinante e determinada pelas relações sociais. O segundo é o homem que tem acesso a um mundo qualitativamente distinto do próprio cotidiano, isto é, o homem que entra em contato com a obra de arte que expressa a universalidade mediante uma particularidade, esta última só pode ser humana e o contato com essa dimensão da experiência é o que proporciona ao homem não ser mais “inteiro”, mas sim estar no mundo “inteiramente”, pois ele teve acesso a uma particularidade que atinge universalidade e o coloca em contato com a natureza humana propriamente dita. Um exemplo desse processo seria a empatia, ou seja, reconhecer o sentimento do outro e se reconhecer neste.

Santos, partindo de Lukács, mostra-nos que há uma relação oposta entre as categorias de singular e universal, essa forma de interação só pode ser sanada pela categoria do particular, que faz o papel de mediação e proporciona a interação entre as duas primeiras categorias. Assim, o particular é colocado também como uma categoria que atinge o universal, dirá Lukács em Introdução a Estética Marxista: “o processo pelo qual as categorias se resolvem e se transformam uma na outra sofre alterações: tanto a singularidades quanto a universalidade aparecem sempre superadas na particularidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161).

O estudioso atesta que em Lukács todo o fenômeno originário é igual à particularidade, que é o seu ponto de mediação entre o singular e o universal. Do mesmo modo o autor colocará que para os marxistas a prioridade se encontra na realidade objetiva, em que está o movimento real, o que é fundamental à dialética materialista, e nota ainda que já no âmbito da estética a particularidade é um ponto em movimento, como dirá Lukács

A descoberta de Goethe, sobre o papel da categoria de particularidade na estética, não tem aparentemente muita importância: o movimento no qual o artista reflete a realidade objetiva culmina, fixa-se, recebe forma no particular, e não como no conhecimento cientifico, de acordo com suas finalidades concretas — no universal ou no singular. O conhecimento ligado à pratica cotidiana se fixa em qual quer ponto, a depender de suas tarefas concretas e práticas. O conhecimento cientifico ou a criação artística (bem como a recepção estética da realidade, como na experiência do belo natural) se diferenciam no curso do longo desenvolvimento da humanidade, tanto nos limites extremos como nas fases intermediarias. (LUKÁCS, 1978, p. 161)

Essa concepção de relação entre particular e universal, tem forma unitária no tema da relação entre forma e conteúdo. Para Lukács “no interior da comunidade de conteúdo e forma, são também comuns[…], as categorias de singularidade, particularidade e universalidade” (LUKÁCS, 1978, p. 161). Santos, tomando esse posicionamento de Lukács, divide em sua exposição a forma na ciência, que tem a obrigação de se afastar de um senso comum, da forma na estética, que tem sempre de estar atrelada a um conteúdo. Assim, o autor defende que o “processo técnico é fundado tendo como base o conhecimento imanente das leis naturais que independem da consciência humana” (SANTOS, 2017, p. 71), dessa forma na ciência o desenvolvimento da técnica ganha uma afirmação, sua objetividade procura aproximar-se da realidade concreta, isso é pensado pelo filósofo como reflexo da realidade. O reflexo artístico em seu desenvolvimento tem a funcionalidade de representar os distintos particulares dos seres humanos e tem como proposta capturar a essência dos novos fenômenos que se efetivam nessa realidade objetiva e sua forma tem que, de alguma maneira, evocar a experiência cotidiana, assim, o típico irá representar a verdade da forma. No reflexo cientifico o conteúdo precisa se fixar e se aprofundar na imediaticidade sensível das formas fenomênicas. A ciência em A particularidade na estética de Lukács é o aprofundamento da dialética entre necessidade e contingencia. A categoria do particular, defendida nesse livro, tem a capacidade de abraçar o mundo na sua inteireza, interna e externa.

Uma das maneiras da ciência burguesa refletir a realidade, segundo Lukács e o autor que se propõe a estudá-lo, é excluindo a importância da particularidade no método cientifico e isolando o singular de sua relação com o universal, assim, essa ciência vigente exclui o centro móvel que ordena a relação entre singular e universal. Um exemplo disso é a visão historiográfica predominante na contemporaneidade, que retira a centralidade da luta de classes do processo histórico e obscurece o proletariado como particularidade da sociedade moderna, particularidade esta que é de fundamental importância para o entendimento do processo sob o qual se ergue essa formação social, pois é por sua submissão que se garante a conservação do sistema de divisão social do trabalho já consolidado, que é o sistema capitalista.

Deribaldo dirá que “o reflexo artístico, ao criar suas refigurações da realidade, transforma o ser em si objetivo em um ser para nós de um mundo representado unicamente na individualidade da obra de arte” (SANTOS, 2017, p. 101). Desse modo o autor nos coloca que para Lukács, o par forma e conteúdo, opera no campo estético para uma distinção entre consciência e autoconsciência. O autor colocará que somente na esfera da estética a autoconsciência ganha um valor substantivo e que se expressa em dois sentidos, o primeiro é como um valor pessoal do objeto representado e depois como valor pessoal do modo de representação dessa realidade. Essas qualidades, em seu livro, são colocadas como o que despertam a autoconsciência, ela é aberta com uma retomada dos caminhos da humanidade percorridos, que aparecem por meio da rememoração, ou seja, pela “memoria”. Dirá:

Como memoria, ou seja, como “recordação” do caminho que a humanidade, as pessoas e as situações percorreram ou irão percorrer; das virtudes e vícios do mundo interno e externo dos homens que, por sua vez, dá o ponto de partida para o desdobramento dinâmico, para o seio da contraditoriedade dialética, no qual o gênero humano levantou-se ao que hoje é e ao que poderá vir a ser (SANTOS, 2017, p. 102).

A autoconsciência da humanidade encontra na arte um modo adequado e evoluído dignamente, essa autoconsciência para o autor é “o correto reflexo do real, que existe independentemente da consciência individual, a imersão do sujeito na realidade, é o pressuposto imprescindível e fundamental de toda autoconsciência da humanidade” (SANTOS, 2017, p. 104).

Deribaldo Santos abordar sinteticamente a importância da categoria da particularidade para Lukács, partindo da análise interna do livro Estética 1. Isso é feito com uma exposição bastante didática do debate teórico-metodológico, o que ilustra bem a diferença entre a elaboração artística e a análise científica da realidade. Assim, o autor demonstra que as categorias abordadas no âmbito da filosofia lukacsiana, tais como: o reflexo; cotidiano; divisão social do trabalho; o objeto como independente da consciência do sujeito; antropomorfização e desantropomorfização; hic et nunc (aqui e agora); imanência; diferenciação entre a arte e a religião; homem-inteiro e homem-inteiramente; forma e conteúdo; em suas relações umas com as outras, são de grande importância para a apreciação da especificidade da categoria de particularidade como mediadora na análise científica, promovendo, nessa esfera, a articulação entre singular e universal, e na esfera da arte servindo como força organizadora interna das obras individuais. Por fim, o estudioso traz a possibilidade de entendimento da articulação entre as três categorias de singular, particular e universal para a história da filosofia da estética.

Nota

2. Ver mais em: GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.

Referências

CARLI, Ranieri. 4. O Particular como Categoria central da Estética. In CARLI, Ranieri. A estética de György Lukács e o Triunfo do Realismo na literatura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012.

GREUEL, Marcelo da Veiga. Da “Teoria do Belo” à “Estética dos Sentidos” – Reflexões sobre Platão e Friedrich Schiller. In Anuário de Literatura 2, 1994. pp. 147-155.

HEGEL, G. W. F. I. Delimitações da Estética e Refutação de Algumas Objeções contra a Filosofia da Arte. In HEGEL, G. W. F. Curso de Estética I. Tradução de Marco Aurélio Werle. 2º ed. rev. 1. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2015.

LUKÁCS, Georg. V – O Particular como categoria central do Estético In. Introdução a Estética Marxista. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder 2º edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1978.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In Critica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. 3º edição. São Paulo: Boitempo, 2013.

SANTOS, Deribaldo. A particularidade na Estética de Lukács. 1º Edição. São Paulo: Instituto Lukács, 2017.

Edson Roberto de Oliveira Silva – Mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis – SP. Atualmente é bolsista CAPES. E-mail: edoliviera89@gmail.com


SANTOS, Deribaldo. A particularidade na estética de Lukács. São Paulo: Instituto Lukács, 2017. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. A particularidade como eixo central na estética de Lukács. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 21, p. 184-190, jan./jun., 2019.

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Temporalidades dissidentes: sujeitos LGBT+ e a escrita da história / Aedos / 2019

Quando propomos, no ano de 2018, a organização do presente dossiê temático à revista Aedos, pensávamos nos 40 anos recém completos do movimento homossexual no Brasil – hoje multiplicados seus atores políticos, conhecido como movimento LGBT+ – como potência para refletirmos sobre as experiências históricas dos sujeitos dissidentes da heteronormatividade, bem como o modo como a historiografia brasileira vem tratando destas. Porém, quanto tempo foi percorrido até que a historiografia, ainda tão afeita às “datas redondas”, reconhecesse as pessoas LGBTs+ como objetos possíveis de estudo, como atores sociais no passado e no presente? E mais, enquanto pesquisadores, em suas subjetividades investigando outras experiências.

Também no ano passado completava sua “maioridade” um dos estudos mais importantes sobre a história dos dissidentes sexuais no Brasil, o livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX, do brasilianista James Green, publicado por aqui pela primeira vez no ano 2000. O livro é um extenso estudo que aborda as relações mantidas entre homens gays e travestis e o Estado brasileiro ao longo do século XX, entre as quais as classificações e intervenções médico-legais nesses sujeitos, a criação de espaços de sociabilidades nas cidades, como praças, praias, cafés, cinemas e saunas a partir de uma apropriação estratégica do espaço público, a visibilidade deles na imprensa no período do carnaval, a emergência de formas de organização de homossexuais desde os anos 1960, e a repressão da ditadura civil-militar brasileira às sociabilidades e movimentos de homossexuais e travestis.

Como já ressaltaram outros estudiosos da temática LGBT+, Além do Carnaval foi um ponto de ruptura no estrondoso silêncio da historiografia brasileira sobre essas experiências (VERAS; PEDRO, 2014), tornando-se até hoje referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil. Por mais que o livro de Green delimitasse sua análise às cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, ele tornou-se uma referência necessária nos estudos sobre dissidência sexual no Brasil, sobretudo de pesquisas que se dedicam a estudar a construção de sociabilidades homoeróticas no espaço público. Os artigos publicados neste dossiê mostram como ainda é necessário estudar os territórios e formas de sociabilidades criadas por dissidentes sexuais, especialmente aqueles localizados fora do eixo Rio-São Paulo. É o caso, como o leitor poderá ver, no artigo de Luiz Morando ao investigar em jornais e autos judiciais o “Crime do Parque”, ocorrido no Parque Municipal, espaço de homossociabilidade na Belo Horizonte de 1946. Nesse sentido, abordando a homossexualidade masculina nas “vilas de malocas” de Porto Alegre, o estudo de Rodrigo Weimer investiga o viés moralista que existia sobre sexualidade desviante na prefeitura da capital gaúcha nos anos 1950, lhe utilizando como pretexto para expulsões da localidade.

Da mesma forma, as relações que sujeitos LGBTs+ mantém com o Estado e a sociedade civil em tempos de autoritarismo tem sido recorrentemente objeto de análise de historiadorxs. Como vivem esses indivíduos em regimes ditatoriais que buscam eliminá-los? Como resistem cotidianamente e como lidam com suas memórias traumáticas? Como o discursos e as práticas governamentais tentam conformar subjetividades LGBTs+? Essas são algumas perguntas que os textos de Janaína Langaro e Eduardo de Almeida visam explorar em suas pesquisas. Em Langaro, vemos um estudo sobre a perseguição e as demissões sob acusação de “homossexualismo” no Ministério das Relações Exteriores, presentes nas atas da Comissão de Anistia. Também pesquisando o contexto da Ditadura Civil-Militar, está a pesquisa de Almeida, ao discutir a importância do jornal Lampião da Esquina, bem como sua atuação para um nascente Movimento Guei. Pensando as experiências de três homens homossexuais deportados para campos de concentração, bem como o exercício da sexualidade nesse local, vemos o artigo de Karen Pereira, que a partir de conceitos de Michael Pollak investiga essas memórias demonstrando suas diferentes experiências e percepções.

Se hoje, como apontaram Veras e Pedro (2014), já não é mais possível duvidar de uma historiografia LGBT+ no Brasil – ainda que lhe possa resistir – este dossiê contribui também para pensarmos sobre a forma como essas histórias transviadas têm sido escritas. Não seria esta historiografia ainda muito branca e masculina? De que corpos falamos quando nos propomos a escrever uma história dissidência sexual? É possível uma historiografia queer? Os artigos nesse sentido nos convidam a pensar sobre essas questões e a construirmos uma outra história, em diálogo com outros campos e sujeitos. Na pesquisa de Hariagi Nunes, vemos uma reflexão sobre o corpo pós-pornográfico e pornoterrorista, chamando a escrita da História a repensar suas naturalizações e discursos. Analisando essa escrita que concebe uma invenção do passado, está o trabalho de Cassiano Celestino de Jesus, buscando um diálogo entre o discurso historiográfico com as possibilidades das teorias queer.

Refletindo sobre o papel da imprensa na história dessas experiências, temos a pesquisa de Paula Silveira Barbosa, trazendo uma narrativa sobre o conjunto da Imprensa Lésbica brasileira, nos vestígios de sua trajetória entre o período de 1981 e 1995. Leonardo Martinelli, por sua vez, busca uma análise da representação das homossexualidades na revista Veja em 1977, em diálogos com os estudos queer.

Convidamos o / a leitor / a a embarcar por essas narrativas, que comunicam experiências múltiplas, em sujeitos que se apresentam tal as temporalidades que lhe regem – dissidentes – trazendo nesses (des)caminhos de Clio e Eros, incentivos e mesmo provocações para o permanente repensar da disciplina. Na subversão que se torna o ato de diferir da heteronormatividade, podemos assim, conhecer melhor as experiências que compõe esse presente tão urgente que habitamos.

Referências

GREEN, James. Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, set. / dez. 2014, p. 90-109.

Guilherme da Silva Cardoso – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Tiago Vidal Medeiros – Mestrando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


CARDOSO, Guilherme da Silva; MEDEIROS, Tiago Vidal. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 24, Ago, 2019. Acessar publicação original [DR]

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A diplomacia na construção do Brasil (1750-2016) | Rubens Ricupero

O livro “A diplomacia na construção do Brasil: 1750 – 2016”, do diplomata Rubens Ricupero, publicado pela Versal Editores em 2017 contribui para a ampliação da bibliografia disponível em relação à história da diplomacia no Brasil, englobando desde 1750, período colonial no qual a diplomacia é ditada por Portugal, até o ano de 2016, no período imediatamente anterior ao impeachment de Dilma Rousseff.

Segundo o autor, baseado em suas anotações e registros quando de sua atuação como professor da disciplina de História das Relações Diplomáticas do Brasil, a obra foi concebida para ampliar fonte de estudo sobre a evolução da política externa, agregada aos demais fatores políticos e econômicos ocorridos nos períodos analisados. Segundo o autor, as obras disponíveis sobre a história do Brasil tendem a dedicar sua atenção nos eventos internos do país, com relativo menor destaque aos eventos internacionais e da política externa, “como se a história de um país constituísse um todo suficiente e fechado em si mesmo…” (pg. 21). Em tais obras, a estrutura geral seria comprometida em sua coerência interna, pois a dispersão dos temas nacionais entre os elementos internos e externos geraria certa fragilidade para o conjunto do texto. Leia Mais

Ler História. Lisboa, n.74, 2019.

Judeus portugueses na Europa e nas Caraíbas, séculos XVII-XVIII

  • José Vicente Serrão
  • Editorial[Texto integral]

Dossier: Judeus portugueses na Europa e nas Caraíbas, séculos XVII-XVIII

Outros artigos

Espelho de Clio

Em debate

Recensões

Santos Fortes: Raízes do Sagrado no Brasil | Leandro Karnal e Luiz Estevam de O. Fernandes

A proposta do livro é oferecer ao leitor características pertinentes de alguns santos canonizados institucionalmente e outros que fazem parte de uma devoção, apesar da não canonicidade institucional, apresentados em: São Jorge; São Sebastião; São Judas Tadeu; São Longuinho e Santo Expedito; Maria, Marias; São Francisco de Assis; São João, Santo Antônio; Santa Bárbara e Santos fora do altar. Estes são alguns, dentro de milhares do panteão católico, que influenciaram profundamente a nacionalidade brasileira, sejam em localidades específicas ou de um impacto majoritário na memória e vida cotidiana das pessoas devotas. Deste modo, os historiadores Leandro Karnal e Luiz Estevam destacam, fazendo um trabalho de buscar nas origens históricas da vida destes santos, o poder da entrega no simbólico e material que há nas relações religiosas do povo brasileiro com os santos católicos.

No primeiro capítulo São Jorge: salve, santo guerreiro!, é apresentado um panorama histórico da vida do santo, nascido na Capadócia, região da atual Turquia, e sido criado na região de Lida, hoje Estado de Israel. Durante a profunda perseguição do imperador Diocleciano, a última que o cristianismo sofreria, Jorge foi martirizado. No entanto, sua imagem fica atrelada a uma narrativa imaginativa, pois convencionou definir o santo como aquele que enfrentou um dragão com seu cavalo branco. Historicamente, de acordo com um dicionário da santidade realizado por especialistas em santos, é narrado que numa cidade ao norte da África havia um dragão que atacava a todos, e, por fim, restava a filha do rei para ser devorada. Sendo assim, é narrado o episódio: Leia Mais

Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política | Norberto Bobbio

Não se passou muito tempo desde quando podíamos ouvir a pergunta: “Mas ainda existe a direita?”. Após a queda dos regimes comunistas, ouve-se aflorar com a mesma malícia a pergunta inversa: “Mas ainda existe a esquerda?” (p.63)

A discussão sobre o significado de direita e esquerda é algo muito presente em nossa contemporaneidade, sobretudo para brasileiros que vivem um momento de polarização política. Contudo, esta temática pode ser observada em tempos precedentes, a fim de identificar um alinhamento político e identificar os sujeitos com uns ou outros princípios. A epígrafe, a qual abre este trabalho expressa uma dúvida quanto a continuidade da existência da direita e da esquerda em diferentes períodos históricos, além de colocar a díade direita-esquerda sobre o escrutínio que visa identificar se os dois opostos realmente “não tem mais nenhuma razão para ser utilizada”2. É diante deste quadro que a obra de Norberto Bobbio se inscreve, ratificando o compromisso com a tentativa de estabelecer uma diferenciação entre direita e esquerda. Leia Mais

História Oral / História em Revista / 2019

Apresentamos a vocês o novo número do periódico História em Revista, vinculado ao Núcleo de Documentação Histórica Profa. Beatriz Loner, da Universidade Federal de Pelotas.

No dossiê, intitulado “História Oral” constam quatro artigos e um instrumento do trabalho. No primeiro deles, ENSINO DE TEATRO NA UFRGS: REVIRANDO MEMÓRIAS EM BUSCA DA HISTÓRIA, Juliana Wolkmer discute os caminhos metodológicos relacionados a um estudo feito durante a dissertação de mestrado, no qual realizou entrevistas com egressos de cursos de arte da Universidade Federal do RS.

O segundo texto HISTÓRIA ORAL E PROFESSORES DE HISTÓRIA: UM ESTUDO DAS DIRETRIZES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS foi escrito por Suzana Ribeiro, Eliana Mendes e Elisa Brisola e constrói narrativas com professores de História a respeito das relações étnico-raciais e do ensino de história da África e cultura afro-brasileira e africana, permitindo adentrar no cotidiano escolar e das questões de racismo, tão presentes ainda na atualidade.

O terceiro artigo MELILLA-MARROCOS: (CON)JUNÇÕES FRONTEIRIÇAS. UM DEBATE TRANSDISCIPLINAR escrito por Suzanne Maria Legrady revela os caminhos de uma pesquisa em andamento, mas que já realizou 43 entrevistas em uma perspectiva multifacetada e transnacional, já que Melilla é uma cidade espanhola que faz fronteira com o país africano, Marrocos.

O quarto artigo intitulado MOVIMENTO FEMINISTA NA CIDADE DE PELOTAS-RS: A ATUAÇÃO DO GRUPO AUTÔNOMO DE MULHERES DE PELOTAS (GAMP) – (1990-2019) foi escrito pela doutoranda Elisiane Medeiros Chaves e revelou a história de um grupo de mulheres que se organizaram, a partir da década de 1980 para lutar, sobretudo, contra a violência à mulher.

No dossiê consta ainda um instrumento de trabalho, que apresenta uma entrevista feita com o cartunista Renato Vinícius Canini, falecido no ano de 2013. A entrevista foi construída no ano de 2008, na casa de Canini e foi bastante interessante ao revelar um pouco da produção de um cartunista que, dentre outras coisas, desenhou o personagem da Disney, Zé Carioca, durante alguns anos. A narrativa faz parte do acervo do Laboratório de História Oral da UFPel.

O periódico é complementado com um texto intitulado CAIS DO VALONGO: MEMÓRIA ESCRAVISTA E HERANÇA CULTURAL escrito por Vanessa de Araújo Andrade e Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva. O artigo discute, através de uma análise bibliográfica, o papel histórico e cultural do cais, em que se fixaram africanos e afrodescendentes, considerado hoje como Patrimônio Cultural da Humanidade.

Além dos artigos, o dossiê revela um encontro, de anos e de vida. Ocorre que os editores deste número se conheceram em congressos de história oral realizados no Brasil e fora dele e passaram a não só conviver, mas a trocar experiências e afetos.

Nestes anos, participaram juntos de mesas de debates, de bancas julgadoras, de jornadas de estudo, mas mais do que isso experimentaram construir reciprocidades em suas trajetórias de vida.

É por isso que o número desta revista é tão especial para todos e cada um de nós.

Esperamos que vocês aproveitem a leitura.

Lorena Almeida Gill

Robson Laverdi

Pablo Pozzi


GILL, Lorena Almeida; LAVERDI, Robson; POZZI, Pablo. [História Oral]. História em Revista. Pelotas, v.25, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Paulo Freire. Santiago, n.21, 2019.

Artículos de Investigación

Paulo Freire. Santiago, n.22, 2019.

Artículos de Investigación

Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v.12, n.1 , 2019.

Dossiê Temático: “Tempo presente, história oral e imagens”

DOI: http://dx.doi.org/10.22228/rt-f.v12i1

Artigos dessa edição

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

Mulheres: biografias e trajetórias / Aedos / 2019

A história das mulheres surge como campo historiográfico nos anos 1960 na França, denunciando a ausência tanto de personagens e temas femininos na história, bem como na sua escrita. Esse surgimento está diretamente relacionado com os movimentos feministas das décadas de 1960-70 (GONÇALVES, 2006), a chamada “segunda onda do feminismo”, e também com a “história vista de baixo”, em que personagens considerados subalternos e invisíveis passaram a ser objeto de estudos das pesquisas historiográficas. Para Margareth Rago, a valorização da presença da mulher na história também pode ser creditada ao ingresso feminino nas universidades, a partir dos anos 1970, levando com elas um conjunto de temas e problematizações próprios do universo feminino (RAGO, 1998, p. 90).

No entanto, como nos mostra Bonnie Smith (2006), mulheres já escreviam história bem antes, ainda nos séculos XVIII e XIX. Devido ao sexismo reinante, eram consideradas amadoras e suas obras não recebiam a mesma valorização e repercussão dos historiadores homens.

Não só a escrita da história, mas também a das biografias incorreu no mesmo apagamento das mulheres, durante muito tempo. Os autores canônicos da historiografia e da biografia são todos homens, dedicados a pesquisar sobre homens ilustres, aqueles considerados, por muito tempo, como os verdadeiros agentes da história.

A retomada da biografia, nos anos 1980, trouxe uma série de renovações importantes, entre elas a expansão dos sujeitos e sujeitas dignos de terem sua vida registrada (LEVILLAN, 2003; SCHMIDT, 2012). Houve também a expansão dos métodos e fontes, como a história oral, especialmente importante para os estudos biográficos. Além disso, temos que levar em conta os mais recentes desenvolvimentos na história das questões étnicas (história dos negros e negras, história da herança africana, história indígena, migrações, etc.) e das questões de gênero.

Todas essas tendências historiográficas contemporâneas trouxeram importante alargamento de fronteiras para a disciplina, e de alguma forma, os artigos que compõem esta edição transitam por essas perspectivas renovadas. Quando propusemos este dossiê, pensamos em trazer à tona pesquisas que tivessem como foco trajetórias de mulheres, e é muito gratificante perceber que nossa intenção foi transformada em realidade, por meio dos artigos que o compõem. São quinze textos, o que mostra a pujança de trabalhos que vêm sendo empreendidos sobre a temática. Maior ainda é nossa satisfação ao constatar a diversidade temática e a qualidade dessas pesquisas.

Os artigos trazem um amplo conjunto de temas e questões teóricas. Trabalham com história oral, história intelectual, história de diferentes períodos, desde idade média até a história do tempo presente. Tratam de trajetórias de mulheres que tiveram atuações muito ricas e variadas: escritoras, professoras, historiadora, cineasta, religiosas, carnavalescas, militantes que transitaram pelo feminismo, feminismo negro, militância indígena. A grande maioria delas não são (re) conhecidas pelo grande público, sequer do restrito público acadêmico, ou da comunidade das / dos historiadoras / os, não são personagens “representativos”, mas talvez, por isso mesmo, interessantíssimas. Vamos falar brevemente de cada um dos textos.

O texto de abertura do dossiê, No rastro da história das mulheres, de Marília Garcia Boldorini e Roberta Barros Meira, faz um balanço histórico, historiográfico e teórico da escrita biográfica enquanto gênero literário, apontando para a proeminência de protagonistas e autores masculinos, mesmo em pleno século XXI. Com isso, reflete sobre o espaço dado às mulheres e suas condições e aponta para a necessidade de ampliação da representatividade feminina, batalha que pode ser assumida por historiadorxs empenhadxs nessa prática de escrita. Apontando, ainda, para as questões identitárias relacionadas à biografia, incluindo a possibilidade de evidenciar “memórias clandestinas”, nos termos de Michel Pollak, o artigo aposta na escrita biográfica como lócus privilegiados para a compreensão das relações de gênero.

Na sequência, temos artigos que tratam das trajetórias de mulheres intelectuais, brasileiras e estrangeiras. O primeiro deles é A representação da mulher letrada no Brasil oitocentista: a biografia de Beatriz Brandão pelo intelectual Joaquim Norberto, em que Laura Oliveira Motta apresenta uma análise das representações do feminino no espaço letrado do Brasil do oitocentos, através do perfil biográfico da poetisa Beatriz Francisca de Assis Brandão, escrito pelo historiador da literatura Joaquim Norberto de Souza e Silva. No artigo, duas trajetórias intelectuais se cruzam para mostrar as possibilidades e os limites da participação da mulher em instituições intelectuais, destacando o papel do biógrafo no reconhecimento de contribuições femininas para a formação literária nacional, ainda que apelando para o reforço de padrões morais tradicionais.

Em Leituras em voz alta, leituras em silêncio: a produção intelectual de Elena Garro e os estudos de gênero, Mariana Adami nos brinda com uma reflexão acurada sobre a trajetória intelectual da mexicana Elena Garro. Adami procura enfatizar as diversas leituras de suas obras feitas por outros intelectuais e suas apropriações ao longo do tempo, além de evocar a importante discussão sobre uma literatura dita “feminina” e sua ingerência nos estudos históricos. O artigo é um convite para se pensar os silenciamentos impostos a produção literária de algumas mulheres.

Em Zilda Diniz Fontes (1920-1984): uma educadora para além dos muros da escola, Alline Rodrigues Bento procura traçar a trajetória de uma professora e escritora, Zilda Diniz Fontes, muito atuante em uma cidade do interior de Goiás, na segunda metade do século XX. Partindo assim de estudos biográficos a autora procura traçar a trajetória intelectual da personagem bem como relata partes de sua vida privada, ambas interconectadas como se pode perceber na leitura do artigo. Novelista, poetisa, dramaturga, mãe, esposa e professora, sua trajetória de vida merece ser (re)conhecida. Uma mulher que ousou percorrer espaços que, na época, eram (quase) exclusivos para os homens.

Karen Cristina Garbo no seu artigo intitulado Andradina de Oliveira e as ausências de uma crítica literária feminina gaúcha procura fazer o resgate da figura, que no século XIX, teve uma carreira reconhecida como escritora e jornalista. Nesse sentido Garbo destaca, no seu texto, tanto a atuação de Andradina à frente do jornal o Escrínio (1898-1910) quanto como escritora de romances, entre eles destacando O Perdão publicado em 1910. Tal como aponta Karen Garbo a autora analisada tratava de temas tabus na época, tais como o divórcio e adultério, os quais, segundo ela, podem ter sido as molas propulsoras para sua obra ter sido relegada ao esquecimento ao longo dos anos e ter contribuído para um (quase) apagamento da escritora gaúcha.

Uma trajetória feminina em construção, e (auto)reflexão narrativa, é o objeto de Lúcio Geller Júnior, no artigo Anna Savitskaia: ou, como narrar uma vida na União Soviética (1964- 1988). Sua pesquisa em História Oral busca compreender a experiência soviética da tradutora e professora emigrada Anna Savitskaia, radicada em Porto Alegre. Das memórias familiares ao discurso histórico russo produzido na / sobre a Guerra Fria, passando por reminiscências mais pessoais (seus deslocamentos, os estudos, a profissão, o casamento etc.), a depoente elabora sua identidade, contrapondo suas vivências cotidianas no socialismo e no capitalismo, na Europa oriental e no Ocidente periférico, tensionando o relato do pesquisador, num jogo de espelhos que obriga a tematização dos lugares de fala de ambos. Com habilidade, o autor descortina um mundo histórico perdido e um universo de significados em aberto.

Em Beatriz Nascimento e a invisibilidade negra na historiografia brasileira: mecanismos de anulação e silenciamento das práticas acadêmicas e intelectuais, Maria Lígia de Godoy Pinn tem como objetivo apresentar a trajetória intelectual e acadêmica da historiadora Maria Beatriz Nascimento, a partir do processo de invisibilização pelo qual passou no ambiente acadêmico, sobretudo no campo da disciplina História. Pinn insere esse apagamento no processo maior em que a intelectualidade e os espaços acadêmicos são negados às mulheres negras, em que as estruturas sociais discriminatórias definem e perpetuam o lugar das mulheres negras em posições sociais subalternas. A partir da trajetória de Nascimento, o artigo produz uma crítica importante ao eurocentrismo da história como disciplina, levando ao epistemicídio sistêmico de populações negras e indígenas, em especial as mulheres dessas etnias não-brancas.

O texto de Manoela Salvador Frederico, Para que não seja esquecida: o acervo pessoal de Eloísa Felizardo Prestes e suas memórias, a partir dos referenciais da história do tempo presente, enfoca o acervo da irmã de Luis Carlos Prestes, bem como sua militância feminista. Os documentos em seu arquivo privado apontam para um grande interesse em salvaguardar registros de sua época, principalmente sobre as questões femininas, suas lutas e a construção do que a autora chama de cultura política feminina. Ao guardar seus papéis, Eloisa construíase como militante. Seu arquivo revela as experiências vivenciadas, seu campo de atuação política e interesses, e, sendo estudado, contribui para tirar do esquecimento a rica atuação dessa feminista.

Alina dos Santos Nunes, no artigo Arte longa, vida breve: Rita Moreira, feminismo em cena trata da trajetória da cineasta, lésbica e feminista Rita Moreira, usando como fonte uma entrevista realizada com a personagem em 2019. A produção de vídeos feministas de Rita nos anos 1970 é analisada por Nunes como um espaço de articulação política. O meio audiovisual também foi importante no sentido de despertar a consciência política de vários sujeitos e sujeitas, em meio à segunda onda do feminismo. Articulando história oral e história das mulheres, o artigo contribui para trazer à tona uma história a ser escrita, ainda pouco visível, a da produção audiovisual feminina, construída na intersecção das lutas e dos conflitos vivenciados nos movimentos feministas e lésbicos.

Dois textos trabalham a temática feminina e a religiosidade. No artigo de Caio César Rodrigues, Agência e diligência discursiva na trajetória de Catarina de Siena (1347-1380), conhecemos a trajetória da penitente Catarina de Siena, que, no século XIV, construiu uma rede de apoio entre religiosos leigos da Toscana e acabou, inclusive, projetando-se como conselheira do papado. A curta biografia da personagem é investigada à luz do contexto religioso e intelectual do final do medievo, bem como em cotejo com a bibliografia especializada nas relações de gênero e na condição feminina na sociedade européia do período. Recorrendo, como fontes, às hagiografias tradicionais, o autor também apresenta uma releitura da construção discursiva da personagem, entendendo essas narrativas em função do modelo medieval de santidade feminina.

O segundo texto é Arquitetura de uma trajetória: o Templo de Minervina Carolina Corrêa, escrito a seis mãos, por Simone Rassmussen Neutzling, Gabriela Brum Rosselli e Guilherme Pinto de Almeida, apresenta a trajetória de uma mulher, Minervina Carolina Corrêa, e sua luta para edificar uma igreja católica, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, no início do século XX. Uma mulher, que sofreu, na pele, a discriminação da sociedade da época. Simone, Gabriela e Guilherme assim nos trazem uma perspectiva diferente ao darem foco, na sua explanação, para um patrimônio importante da cidade de Jaguarão e, através dele, resgatar a trajetória de Minervina.

Três artigos tratam das trajetórias de três mulheres em contextos distintos: o trabalho no mundo rural, mulheres negras no carnaval baiano e a luta indígena kaingang. O artigo Trajetória de três mulheres rurais: o trabalho como fio condutor das narrativas de vida escrito por Márcia de Fátima de Moraes já deixa claro, no próprio título do seu texto, a sua intenção, ou seja, mostrar como mulheres de uma localidade rural do Rio Grande do Sul relatam suas trajetórias. Através de um estudo de três casos específicos, Márcia de Moraes procura compreender como, no relato dessas mulheres, as memórias relacionadas ao trabalho encontram-se articuladas às questões de gênero e às de identidade feminina, através de uma perspectiva nem sempre percorrida, o viés geracional e de localidade. Um texto instigante por sua atualidade, marcada pelos indicadores de gênero na organização do trabalho rural.

Alberto Bomfim da Silva e Edson Farias, em A construção da autonomia feminina negra nas ousadias da carnavalização, analisam o papel social ocupado pelas mulheres negras no carnaval de Vitória da Conquista (BA) da segunda metade do século XX. As trajetórias de três dessas mulheres – Beta, Arcanja e Dió – ofereceram uma amostra singular desse grupo social, normalmente invisibilizado na história e pela História, mas que tiveram um relevante protagonismo. Os autores se valem das metodologias da história oral em entrevistas e da análise de fotografias relacionadas ao carnaval na cidade pesquisada. A participação feminina no carnaval carrega consigo elementos das religiosidades de matriz africana. Isso é visto pelos autores como constituinte de um quadro social de memória que ancorava componentes de uma identidade para a mulher negra contribuindo, em parte, para a construção de sua autonomia.

As mulheres indígenas são o tema do artigo de Andrea Bazzi, Mulheres Kaingang na frente de batalha: três gerações de lideranças femininas na Terra Indígena Toldo Chimbangue. Da mesma forma que a mulher negra, Bazzi argumenta que ser mulher indígena é diferente de ser mulher não indígena / branca / ocidental, no que se refere a seu apagamento e discriminação. Ou seja, é necessário considerar o lugar de marginalidade histórica em que se encontram as mulheres indígenas para entender que as relações de poder a partir do gênero não podem estar desassociadas de um recorte de classe e de etnia. O texto trata da trajetória de três mulheres kaingang, de gerações diferentes, que ocuparam / ocupam espaços de liderança dentro da comunidade Kaingang Toldo Chimbangue, em momentos políticos e históricos distintos, trazendo à tona agências que compartilham os mesmos princípios e respeito à ancestralidade, à memória e história do povo Kaingang.

O dossiê se encerra com o artigo Biografia de mulheres e Ensino de História – possibilidades metodológicas para a aprendizagem da Ditadura Civil-Militar brasileira. Seu autor, Fernando de Lima Nunes, sintetiza os resultados de seu mestrado em ensino de história, analisando o uso, em sala de aula, de biografias de mulheres mortas e desaparecidas na Ditadura Civil-Militar Brasileira. A partir de documentos e relatos, o professor-pesquisador instigou alunos de 9º ano do Ensino Fundamental e de 3º ano de Ensino Médio a comporem narrativas sobre as vidas das militantes Alceri Maria Gomes da Silva, Ísis Dias de Oliveira e Luiza Augusta Garlippe. O objetivo pedagógico das sequências didáticas era construir “empatia histórica”, segundo conceituação de Peter Lee, fazendo com que os estudantes encontrassem os diferentes pontos de vista dos agentes sociais, especialmente das mulheres desaparecidas e de suas famílias.

Nessa breve apresentação, fica evidente a diversidade e riqueza dos artigos que compõem o dossiê. Esses textos são representativos de como o tema é importante e, mais ainda, da pujança das pesquisas acadêmicas de história. Isso é motivo de grande felicidade para nós como professorxs de história e organizadorxs do dossiê.

Por outro lado, infelizmente, estamos vivendo tempos de negacionismo histórico, de desvalorização do conhecimento científico e, o pior, de cortes de bolsas para a área de ciências humanas, entendidas por quem está no poder como “não prioritária”. Como historiadorxs que não devem se furtar às questões de seu tempo – lembremos nesse sentido, sempre, de Marc Bloch! – não podemos deixar de registrar o nosso repúdio a tal (necro) política em vigor. A história das mulheres está atrelada à militância por um mundo mais justo e igualitário para todas e todos, dessa forma, este dossiê não poderia deixar de se posicionar. Que essas pesquisas inovadoras sobre mulheres tão ímpares nos inspirem nos tempos tenebrosos por que passamos. Este dossiê é uma peça na luta contra o esquecimento de suas trajetórias e também a prova de que a história e as ciências humanas devem ser prioridade, pois falam de, sobre e para nós, de nossas lutas e ações, que é o que dá sentido ao nosso mundo, às nossas identidades (quem somos), às nossas vidas.

Boa leitura! Março de 2020 – Em meio à pandemia de Covid-19

As organizadoras e o organizador.

Referências

GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2006.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. IN: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 89-98, 1998.

SCHMIDT, Benito. História e biografia. IN: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

SMITH, Bonnie. Gênero & História: homens, mulheres e a prática histórica. São Paulo: Edusc, 2006.

Elenita Malta Pereira – Doutora em História (UFRGS). Professora de História na UNICENTRO. E-mail: elenitamalta@gmail.com

Jocelito Zalla – Doutor em História (UFRJ). Professor do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: karawejczyk@gmail.com

Mônica Karawejczyk – Doutora em História (UFRGS). Pós-doutoranda (PNPD-CAPES) na PUCRS. Professora Colaboradora do PPGHistória PUCRS. E-mail: jocelito.zalla@ufrgs.br


PEREIRA, Elenita Malta; ZALLA, Jocelito; KARAWEJCZYK, Mônica. Apresentação. Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 25, Dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Profesión: Profesor en América Latina, ¿Por qué se perdió el prestigio docente y cómo recuperarlo? | G. Elaqua, D. Hincapié, E. Vegas e M. Alfonso

Profession: Being a teacher in Latin America, why was the prestige of the teaching profession in Latin America lost and how to recover it?

The book written by Elaqua et al. (2018) presents throughout eight chapters the main challenges the teaching profession is facing in Latin America. This study was conducted reviewing the characteristics, educational policies and reforms occurring in the following LatinAmerican countries: Argentina, Brazil, Chile, Colombia, Ecuador, Mexico and Peru. Neither of these countries had succeeded in attracting the most talented and skilled teachers to public educational systems, nor do they depict a desirable performance in standardised tests as PISA (Programme for International Student Assessment). Leia Mais

História e Ciências Ambientais / Mnemosine Revista / 2019

Partidas de diversas problemáticas, as abordagens historiográficas acerca de questões ambientais começaram a exercer presença na década de 1970, e logo se transformaram em um campo de pesquisa com abrangência em diversas áreas do conhecimento. No Brasil, em 2011 a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) consolidou a inclusão das Ciências Ambientais em seu contexto e, recentemente, a História Ambiental vem ganhando voz e espaço nessa discussão. Como exemplo para a expansão recente da área de ciências ambientais, podemos citar que, hoje, o Brasil conta com mais de 120 programas de pós-graduação somente na nesse campo, incluindo cursos de mestrado, mestrado profissional e doutorado. Tem crescido a importância e a expansão do segmento com o passar dos anos. Os desdobramentos do campo envolvem gestão ambiental, recursos naturais, tecnologia, ambiente e sociedade em atuações que vão desde as ciências humanas, naturais e sociais às exatas. Em nossa Universidade Federal de Campina Grande há um programa de Mestrado e Doutorado em Recursos Naturais situado na Área de Ciências Ambientais que tem progressivamente atraído mais historiadores que por lá entrelaçam seu trabalho e sua formação. Dois dos professores de nosso Programa de Pós-Graduação em História da UFCG, um geógrafo e um historiador, são, simultaneamente, professores efetivos deste Programa de Pós em Ciências Ambientais. Muitos de nossos egressos do Mestrado em História terminam por lá sua formação no Doutorado. Em Ciências Ambientais não basta tematizar a relação entre natureza e cultura, mas, o esforço e de entrelaçar métodos e contribuições de diversos saberes para a abordagem de um tema tão complexo. Foi pensando nesse movimento que elaboramos este dossiê organizado cujo tema é História e Ciências Ambientais.

Logo no primeiro artigo temos a associação entre um agrônomo e um historiador. Daniel B. P. Araújo e Veneziano G. de Souza Rego abordam o tema “História Ambiental e Impactos Antrópicos na Estação Ecológica do Pau-Brasil, Mamanguape – PB.” Na sequência Mara Karinne Lopes Veriato Barros e Patrícia Herminia Cunha Feitosa exploram “O Açude Saulo Maia e Sua Função Estratégica no Abastecimento do Agreste Paraibano nos Anos de 2017 e 2018”, textos em que se entrelaçam saberes jurídicos, historiográficos e de engenharia hídrica. Seguindo, temos os geógrafos Maria Aparecida Gomes Sousa e Sérgio Murilo Santos de Araújo que tematizam uma “Análise da Sustentabilidade do Município de Barra de São Miguel-PB a partir do Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Cariri Oriental.” Seguindo, partimos para a abordagem dos relevantes temas que envolvem gestão e saúde, no artigo “História das Ciências e o uso do Processo Oxidativo Avançado H2O2 / UV para degradação de micropulente ambiental: ivermectina nas águas destinadas ao abastecimento humano”, assinado por Andreza Costa Miranda e Paula Mikacia Umbelino Silva. Cleber Vasconcelos de Oliveira (in memorian) e Janaina Barbosa da Silva”, ambos geógrafos, abordaram “Aspectos históricos e geográficos da pesca no Brasil: contexto, cenários e perspectivas” Elisângela Silva Porto e Ângela Maria Cavalcanti Ramalho, geógrafa e socióloga, abordaram “História Ambiental Urbana e a qualidade de vida em Campina Grande sob a ótica do “residir e viver” na última década.” Finalmente, Taciana de Carvalho Coutinho, bióloga molecular e José Otávio Aguiar, historiador, produziram seus “Ensaios de História Ambiental Urbana: As Transformações na Terra Indígena de Umariaçu a partir do Crescimento do município de Tabatinga”.

José Otávio Aguiar


AGUIAR, José Otávio. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.10, n.1, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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História e memória da educação / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2019

Este volume da Revista Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino é dedicado ao tema “História e memória da educação”. Para tanto, tecemos algumas considerações a respeito das próprias noções de história e de memória. O alargamento e a aceleração da produção de estudos em ambos os campos, tem engendrado uma certa fusão e confusão entre as mesmas (SILVEIRA, 1996, p. 15).

Pierre Nora nos demarca que memória e história não são sinônimos, mas conceitos opostos. Na força de suas palavras:

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está sempre em evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais (NORA, 1993, p.1).

Autores que estudam a memória (BOSI, 1979; NORA, 1984; HALBWACHS, 1990; POLLAK, 1992; LE GOFF, 1996; KESSEL, 2016) assinalam que a rememoração individual se faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas a ação de lembrar é feita na interação com a sociedade, com grupos e instituições em que participa. É no contexto destas relações que construímos as nossas memórias.

A produção da história, por outro lado, ultrapassa o registro do depoimento, das informações contidas nas mais diversas materialidades, e se volta para a reflexão teórica e metodológica na construção do conhecimento. Para André Burguière o que confere valor ao trabalho do historiador não é a qualidade das fontes que ele conseguiu descobrir, mas a capacidade praticamente infinita de interrogá-las (1993, p. 54).

No campo da história e memória da educação podemos tratar da cultura difundida e praticada na instituição, enfocando também as práticas educacionais. Podemos igualmente pensarmos na reconstrução da memória audiovisual e documental por meio da seleção de fontes iconográficas, como fotografias, plantas arquitetônicas, filmes, entrevistas e documentação escrita. Há a possibilidade também de valorizarmos a rede de configurações socioculturais estabelecidas pelo corpo docente e discente, trabalhando-se com a memória coletiva.

Pari pasu, neste volume são apresentados 13 (treze) artigos que discorrem sobre história e memória a partir de temáticas alusivas aos acervos e fontes, a história do ensino e suas práticas pedagógicas, agentes e instituições educativas.

Aproveitamos para desejar uma boa leitura a todos e que a temática do volume inspire novos pesquisadores a realizarem investigações no campo da história da educação.

Referências

BOSI, Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T.A. Editor, 1979.

BURGUIÈRE, André. Dicionário das Ciências Históricas. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

LE GOFF, J. História e Memória. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

KESSEL, Zilda. Memória e memória coletiva. Disponível em: acesso em 28 / 04 / 2016

NORA, Pierre. Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984, v. 1.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo, (10), dez. 1993.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n.10, 1992

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Recuperar a memória, fazer história. In: Debates Regionais III: Fazer História, (des) construção e (in)certeza. João Pessoa: Almeida Gráfica e Editora Ltda / NDIHR / ANPUH,1996.

Olivia Morais de Medeiros Neta

Maria Inês Sucupira Stamatto

Genilson Ferreira da Silva

Marcia Cristina Lacerda Ribeiro


MEDEIROS NETA, Olivia Morais de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira; SILVA, Genilson Ferreira da; RIBEIRO, Marcia Cristina Lacerda. Apresentação. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.1, n.3, jan. / jun., 2019. Acessar publicação original [DR]

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A elite do atraso: da escravidão à lava jato | Jessé Souza

Jessé de Souza constrói seu livro: A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, da Editora Leya, como resposta crítica ao clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, publicado em 1936. Não obstante, analisa vários outros autores, como Roberto DaMatta, Gilberto Freyre, dentre outros, para formar sua convicção e justificar sua teoria. Leia Mais

Indicionário do contemporâneo – CÁMARA et al (A-EN)

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. Resenha de MANZONI, Filipe.  Some possible journeys for reading the Indicionário do contemporâneo. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr., 2019.

É conhecido o diagnóstico, lançado por Flora Sussekind em 2013, de uma emergência de “formas corais” na produção literária brasileira, textos marcados pela “constituição de uma espécie de câmara de ecos na qual ressoa o rumor (à primeira vista inclassificável, simultâneo) de uma multiplicidade de vozes” (SUSSEKIND, 2010). Flora nos diz ainda que nessas formas seria característica uma interrogação simultânea “tanto da hora histórica quanto do mesmo campo da literatura” (idem). Se nos for permitido o pressuposto de que a relação entre literatura e crítica não é de precedência mas de mútua contaminação, não é de impressionar que é contemporânea à emergência das “formas corais” a gestação de uma verdadeira “forma coral” da crítica, isto é, o trabalho de escrita do Indicionário do contemporâneo.

O projeto, bem como o processo de sua escrita, são deslindados na apresentação, “Um indicionário de nós”, assinado pelos quatro organizadores do volume, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Jorge Wolff e Mario Cámara: trata-se de uma coletânea de ensaios escritos e reescritos ao longo de quatro anos por múltiplos pesquisadores e críticos da América do Sul. O marco inicial desse encontro, um simpósio proposto para o X JALLA – Jornadas Andinas de Literatura Latinoamericana intitulado“Políticas literárias do contemporâneo”, parece ter sinalizado para essa zona de ressonância entre conceitos recorrentes e pontos comuns de inquietação que foram, conforme nos conta ainda a apresentação, gestados durante oito meses pelos catorze pesquisadores que assinam, coletivamente, o livro. Desse processo de mapeamento de afinidades, seis verbetes “que incidem de modo decisivo sobre o pensamento das artes e literaturas atuais” se estabilizaram como núcleos conceituais e deram corpo à versão final do volume: “Arquivo”, “Comunidade”, “Endereçamento”, “O contemporâneo”, “Pós-autonomia” e “Práticas inespecíficas”.

Dois pontos no Indicionário parecem falar a partir de umaindistinção entre as proposições teórico-críticas e a própria metodologia e construção da obra. Em primeiro lugar, desde seu título, encontramos a marca de uma profunda ambivalência: se o texto de apresentação evidencia a ambivalência do prefixo “in-” – que supõe “insubordinação, insatisfação, inquietação, independência” (CÁMARA; KLINGER; PEDROSA; WOLFF, p. 7) mas joga também com o significante “índice ao postular uma leitura-escritura indicial das linguagens e dos conceitos em cena” (idem) -, o volume como um todo parece levar essa ambivalência alguns passos além. De fato, a sobreposição de um “in-dicionário” a um “indício-nário”, ela mesma baseada na homonímia de dois radicais latinos “in-”, um de negação outro de direcionamento, poderia ser tomada como uma marca comum de todos os ensaios. Encontramos, a cada verbete, uma espécie genealogia aberta do conceito abordado, genealogia que esbarra sempre em sua própria incompletude e impossibilidade de fechamento – em um “indicionarizável”, portanto -, mas que nos leva a uma mobilização, isto é, a direcionamentos possíveis – ou indícios – que sobrevivem enquanto potência ou possibilidade.

O segundo ponto que caberia destacar é o quanto todos os tópicos propostos parecem falar não apenas dentro de seu próprio ensaio, mas também através da própria estrutura do livro. Desnecessário sublinhar, por exemplo, o quanto a discussão a respeito da “Comunidade” – em seu percurso que vai da retomada etimológica e filosófica de Roberto Espósito até a proposição de um ator político proposto enquanto “multidão”, via Antonio Negri, Michael Hardt e Paolo Virno, passando ainda, entre outros pontos relevantes, pela ontologia do “com” de Jean-Luc Nancy e pela comunidade que vem de Giorgio Agamben – está na base da própria proposição do “escrever com” que marca o Indicionário. A alternância de grupos fez com que os estilos pessoais de cada pesquisador não sejam mais do que vestígios suspeitos, não autorizados por nenhuma delimitação autoral: todos os textos (exceções feitas à apresentação, assinada pelos organizadores, e ao posfácio, assinado por Raúl Antelo) são potencialmente de todos os pesquisadores, isto é, de Antonio Andrade, Antonio Carlos Santos, Ariadne Costa, Celia Pedrosa, Diana Klinger, Florencia Garramuño, Jorge Wolff, Luciana di Leone, Mario Cámara, Paloma Vidal, Rafael Gutiérrez, Raúl Antelo, Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda.

No que toca ainda aos itinerários propostos dentro de cada ensaio, novamente a metodologia parece dizer tanto quanto a proposição teórica a respeito de um modo específico de lidar com o “Arquivo”, tema que abre o Indicionário. Parece interessar, mais do que a figura do “leitor autoritário, organizador que procure dar um sentido fixo ao conjunto” (ibidem, p. 24), uma espécie subversiva de “leitor nômade”, que circula pelos textos “estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos” (ibidem). Caberia observar que nesses trajetos alguns caminhos são mais recorrentes, dando uma impressão algo monadológica, na medida em que no interior de cada verbete parecem habitar os demais conceitos, em uma espécie de rede de associações potenciais.

É assim, por exemplo, no ensaio sobre o “Endereçamento”, em que, a partir de uma leitura da importância dos pronomes pessoais a partir da produção de Ana Cristina Cesar, encontramos uma ameaça ao estatuto autônomo da literatura (que ressoaria no verbete “pós-autonomia”), bem como a proposição do endereçamento como “problema epistemológico e ético de como ter acesso à alteridade, sem se fechar numa forma autorreferencial” (idem p. 107), o que nos levaria também ao tópico da comunidade, via Jacques Rancière e Nicolas Bourriaud.

Os percursos possíveis no Indicionário interessam, portanto, tanto quanto possam ser remontados, repensados, e reorganizados por esse “leitor nômade”, figura que abre ainda o ensaio sobre o “Contemporâneo”, a partir de uma desestabilização moderna do espaço institucional da arte, tópico que nos levará a uma leitura de diversas instalações artísticas, tomadas enquanto práticas inespecíficas (nome também do último ensaio do volume, no qual a proposição de um “campo estendido” de Rosalind Krauss se desdobra em ferramenta para a análise de diversas obras contemporâneas que ameaçam a estabilidade de um campo literário). É a partir desse tensionamento do campo literário e da representação do presente histórico que chegamos a uma potência de anacronismo em figuras como Nietzsche, Didi-Huberman ou Agamben, autores que farão do “contemporâneo” um arquivo aberto do histórico, uma zona de constante formulação, impasse e reformulação do histórico.

Caberia ainda ressaltar que, se o tom da proposta do Indicionáio parece, em diversos momentos, trazer uma noção panorâmica ou enciclopédica, em especial pela amplitude das implicações de alguns dos verbetes escolhidos, isso não se dá mediante o sacrifício da riqueza de detalhes. De fato, se nos voltarmos para as notas – somando-se as de todos os fragmentos, quase trezentas -. estas deslumbram pela riqueza de caminhos que se abrem em uma espécie de microscopia dos “indícios” que se permitem ler a partir das catorze bibliotecas que coabitam (e assinam) a obra.

Também parece resistir à planificação sob um argumento “panorâmico” a atenção dada ao que poderíamos chamar de uma das questões centrais, ou, ao menos, a mais recorrente dentro do Indicionário: os desdobramentos e reavaliações da noção de pós-autonomia. O ensaio específico, “Pós-autonomia”, faz um levantamento minucioso das diferentes acepções do polêmico conceito proposto por Josefina Ludmer em 2006, desdobrando suas múltiplas implicações em diferentes contextos que vão desde a literatura contemporânea sul americana, sua recepção crítica, as artes plásticas no presente, mas também a própria estabilização e pacificação de um conceito de “modernidade”. Encontramos ainda, juntamente com esse desdobramento das implicações críticas da questão, um levantamento de algumas das respostas polêmicas ao conceito que, em última instância, atenta contra a própria possibilidade de circunscrição de um campo que identifique um “literário” em oposição a um “não literário”, percurso que nos conduzirá por uma dupla reação: uma postura de retomada elegíaca de uma institucionalidade perdida ou ameaçada, a partir de teóricos como Antoine Compagnon ou Tzvetan Todorov; em contraposição a uma dinamização da ameaça a essa estabilidade institucional, em figuras como Jacques Rancière ou Bruno Latour.

É no centro dessa polêmica que se insere ainda o posfácio do livro, único ensaio assinado por um único autor, Raúl Antelo. O ensaio, originalmente uma conferência intitulada “Autonomia, pós-autonomia, an-autonomia” apresentada no segundo encontro do grupo de pesquisa, em 2013, aparece aqui como “Espaçotempo”, e traz um segundo mapeamento da proposição de Ludmer da pós-autonomia (após uma raiz comum ao verbete “pós-autonomia” via Kant – Adorno), detendo-se na relevância do questionamento da autonomia nas teorias da esquerda italiana da década de 70 (discussão da qual Ludmer seria herdeira). Finalmente, após uma retomada da questão do espaçotempo e da quarta dimensão, percurso que vai desde Ouspensky até as clássicas investigações benjaminianas sobre o cinema e a aura na década de 30, chegamos a uma ressonância entre Ludmer e Benjamin, ponte especialmente contemporânea, já que sobrepõe duas polêmicas longes da pacificação. A partir do temor de alguns possíveis desdobramentos políticos nefastos da aceitação da pós-autonomia (que ressoam o temor benjaminiano da apropriação fascista da potência revolucionária do cinema), Raúl Antelo propõe, em um tom cuidadoso, uma renovação do “crédito ao conceito de autonomia, mesmo que em plano reconfigurado, digamos, an-autonômico” (ibidem, p. 252). Cabe ressaltar o quanto esse final, ou mais especificamente, esse prefixo de negação “an-”. Parece ressoar ainda o “in-” que dá título ao volume, em especial porque ao mesmo tempo que aponta para o estatuto aporético da questão – ou seja “in-dicionário” -, se abre enquanto espaço de apostas – ou seja, para os “indícios”.

Cabe, finalmente, nos permitirmos uma última palavra sobre um ponto que não pode ser deixado de lado quando nos referimos a essa empreitada crítica de tantos pesquisadores. E o que nos interessa ressaltar é precisamente o quanto essa ambivalência que vem desde o título do volume nunca se furta a manter aberto o contemporâneo como um espaço de apostas mais do que do esgotamento. Encontramos, por exemplo, no ensaio sobre “o contemporâneo” uma contraposição ao escuro catastrófico que se resguarda ainda à possibilidade de uma aposta nas sobrevivências, isto é, um pouco de Didi-Huberman contrabalanceando o peso de Giorgio Agamben. Encontramos, ainda, em toda a discussão sobre o “endereçamento”, uma via de escape do fechamento do moderno em um modelo autorreferencial e intransitivo (ou novamente autonomista) a partir de uma abertura ao outro, a uma investidura ainda possível em um pensamento da comunidade, um pensamento que se funda no impróprio, na impropriedade radical, o que, novamente, parece espelhar, mais que teoricamente, metodologicamente o dispositivo crítico do Indicionário.

Referências

CÁMARA, Mário; KLINGER, Diana; PEDROSA, Celia; WOLFF, Jorge (Org.). Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. [ Links ]

GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [ Links ]

LUDMER, Josefina. “Literaturas pós-autonomas”. In: Sopro Panfleto Político cultural. Trad. Flávia Cera. Desterro: Cultura e Barbárie, 2010, p. 1-4. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n20.pdf >. Acesso em: 16 jul 2018. [ Links ]

SUSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, v. 21, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em <Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html > Acesso em 15 de março de 2019. [ Links ]

Recebido: 27 de Abril de 2019; Aceito: 31 de Agosto de 2019

Filipe Manzoni. É Doutor em literatura pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutoramento sobre poesia contemporânea brasileira na Universidade Federal Fluminense e leciona literatura brasileira na Universaidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: manzoni@poetic.com

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Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: ary.pimentel@yahoo.com.br

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Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI / Albuquerque: Revista de História / 2019

A alteridade como patologia: os discursos médicos e seus usos políticos

O dossiê Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI chega aos leitores, num momento em que vivemos uma pandemia que já causou milhares de mortes e que tem agravado, não só uma crise econômica mundial, mas também, a desigualdade social em diversos países, inclusive no Brasil. O isolamento social, medida preventiva adotada, traz consigo uma série de questões sobre a desigualdade social que, há muito, vem sendo silenciadas e negligenciadas. Ações simples, que são verbalizadas e repetidas (quase) como palavras de ordem nos diversos veículos de comunicação e redes sociais, #LaveAsMãos e #FiqueEmCasa, revelam que aspectos básicos, como a moradia e o acesso à rede de saneamento básico, ainda são um privilégio a que muitos não têm acesso. Em que pese a relevância das discussões que podem surgir desse evento e seus desdobramentos, é importante salientar sua importância para compreender melhor a sociedade em que vivemos e os debates aqui propostos.

Ao investigar histórica e historiograficamente as relações de poder que perpassam o adoecer e o curar, não se pode deixar de pensar qual é o papel social da Medicina, seja no início do século passado ou deste, com suas transformações e permanências. De outra parte, cabe também a pergunta: como o Estado lidou (e tem lidado) com as diversas demandas da área da saúde pública? Embora a comunidade médica tenha feito parte de um projeto civilizador para o Brasil – tornando patológicos comportamentos socialmente “indesejáveis” – baseado em mecanismos de normatização e disciplinarização dos indivíduos, nem sempre houve as condições necessárias para combater e debelar as epidemias. Quanto às instituições responsáveis por implementar as medidas profiláticas, o improviso foi, muitas vezes, o único recurso disponível para lidar com o despreparo das equipes auxiliares, a escassez de recursos, mas também com os “alienados”, os doentes e os mais pobres. O que não quer dizer, que a população não protestasse contra as medidas implementadas, muitas vezes, de forma impositiva e violenta, como no caso (emblemático) da Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904.

Nota-se, então, como o discurso médico e das instituições sanitárias e de saúde foi empregado em diversas ocasiões (e epidemias), pelo Estado, para justificar o controle sobre os indivíduos. Roberto Machado, ao publicar A Danação da Norma, constrói uma trajetória das políticas de saúde no Brasil e pontua que é no século XIX que o saber médico investiu sobre as cidades e as dinâmicas sociais ali presentes. O século XX representa, por sua vez, o momento em que o saber médico institucionalizado, com o aval do Estado, passa a alcançar diversos espaços sociais, dialogando com discursos provenientes de outras áreas do conhecimento, tais como a Educação, a Engenharia, a Arquitetura, o campo do Direito, por exemplo. Com isso, os discursos sobre o estar doente ganharam sentidos políticos que auxiliaram na elaboração e execução desses projetos. Também ajudaram a transformar o saber médico e consolidar sua relevância em diversos grupos sociais.

Nas primeiras décadas do século XX, por exemplo, o Estado autoritário brasileiro, alicerçado em uma política coronelística, utilizou a medicina para estabelecer uma divisão social entre os que, teoricamente, conseguiam compreender as políticas de saúde e os que não teriam condições para isso. Os elementos que sustentaram esse discurso médico-político, que culminou em projetos sanitaristas violentos, foram baseados na Antropologia Criminal de Cesare Lombroso, que auxiliou na consolidação dos discursos racistas durante a primeira metade do século. Com base em suas teorias, foi possível judicializar uma série de grupos que, não por acaso, eram formados por negros e mestiços, justificando assim, um projeto de branqueamento da população (muito mais mestiça e negra do que com traços europeus) que estava em curso desde o final do século XIX. Houve, também, uma brutal medicalização dos indivíduos fora dos padrões de normalidade pretendidos, bem como dos espaços frequentados por eles.

Com a chegada de Getúlio Vargas ao poder, as relações entre as ciências e o discurso político se estreitam, ganhando uma nova dimensão com a Marcha para o Oeste. O projeto político de “civilizar” o sertão teve como intuito a mudança cultural de diversos indivíduos, legitimado por discursos excludentes por parte do Estado. No entanto, havia outras ações previstas dentro dessa agenda política. É neste contexto que se inserem as discussões apresentadas por Diego Moraes, no artigo O discurso eugenista como instrumento político na transição das Repúblicas: a institucionalização do “Perigo Amarelo” no âmbito da Constituinte de 1934. O autor discute como, naquele momento, houve não somente a medicalização da diferença, mas também o uso do discurso médico e científico como argumento jurídico para desqualificar imigrantes asiáticos. Alcir Lenharo, em A Sacralização da Política, reforça a existência dessa mentalidade ao afirmar que medicina, engenharia e educação foram as bases do processo político varguista. Ao longo de quinze anos de um governo autoritário, foi possível trazer à luz projetos de sanitarização que funcionaram muito mais como controle do que benefício para as populações.

Nos anos 50, tendo em vista o segundo governo de Getúlio Vargas e seu projeto de modernidade para o país, houve a continuidade do discurso baseado na necessidade de uma pátria saudável para alcançar o progresso tão desejado. Para tanto, era preciso unir a nação por meio de uma sociedade com saúde, disciplinada ou medicalizada. Parte desse debate está presente no artigo O desenvolvimento das Instituições Psiquiátricas no Rio Grande do Sul até 1950 – O que sabemos pelas pesquisas historiográficas, no qual Lisiane Ribas Cruz situa o estado da arte sobre o tema naquele período. Trata-se de uma contribuição relevante, uma vez que articula esse projeto nacional e seus mecanismos, ao contexto regional.

Na década de 1960, durante o regime militar, surgiram novas discussões sobre o papel dos profissionais de saúde, sinalizando algumas mudanças. No entanto, a invisibilidade social que algumas doenças provocavam, como no caso da tuberculose ou da lepra (cujo nome fora mudado para hanseníase, na década de 1960, por causa do estigma ligado a ela) e, mais recentemente, da AIDS, indicam algumas permanências. Um exemplo disso são as discussões em torno do isolamento de soropositivos, nos anos 80; os inúmeros hospitais psiquiátricos que recolheram milhares de pessoas, mesmo que em graus menos severos, escondendo-os da sociedade. Neste grupo, também se enquadram as relações entre crime, violência e loucura, em uma sociedade violenta e que precisa lidar com sujeitos duplamente marginalizados: são infratores e loucos. Essas reflexões estão presentes no artigo Condenados da Margem: Luta Antimanicomial e o Louco Infrator em Goiás, de Éder Mendes de Paula.

Em Os povos alto-xinguanos e o modelo assistencial em saúde operacionalizado em contextos de intermedicalidade: encontros de saberes, negociações e conflitos, Reginaldo Silva de Araújo apresenta novos elementos, ampliando essa discussão, do ponto de vista temático. Ao mesmo tempo, atualiza sua temporalidade: os anos 2000. Do ponto de vista metodológico, o artigo evidencia as aproximações entre as ciências humanas e o fazer historiográfico, de modo a contribuir para o enriquecimento das reflexões propostas neste dossiê. Além das questões ligadas à posse de terras, que tem resultado em conflitos violentos e genocidas, as comunidades indígenas sofrem com a falta de médicos, recursos físicos e de equipamentos para assistência médica. Principalmente, com a falta de preparo das equipes para lidar com as especificidades culturais dessas comunidades.

Mais recentemente, também tem sido discutida a eficácia do isolamento compulsório para usuários de drogas ilícitas, mas também de pessoas cujos comportamentos são socialmente “indesejáveis” e que, por isso, também são considerados patológicos. Assim, ainda hoje, buscase homogeneizar (por meio de um mecanismo que é perpassado pelo discurso médico, jurídico, geopolítico, entre outros), uma população que é, por princípio, constituída por comunidades tão diversas em suas características, sociabilidades, sistema de crenças e práticas. Em tempos de pandemia, de divulgação em massa de informações falsas e da reiterada desvalorização do conhecimento científico, inclusive das recomendações da Organização Mundial de Saúde, corre-se o risco de pensar que a história se repete, o que, sabemos, é uma armadilha. No entanto, cabe a nós observar como esse mecanismo discursivo se manifesta hoje, e qual seu papel dentro do projeto político neste início de século. Boa leitura!

Referências

LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas: Papirus, 1986.

MACHADO, Roberto. A Danação da Norma. Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.

Carla Lisboa Porto (Centro Universitário Sagrado Coração)

Éder Mendes de Paula (Universidade Federal de Jataí)

Organizadores


PORTO, Carla Lisboa; PAULA, Éder Mendes de. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.22, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Construção, Design e arquitetura naval: o navio, o construtor, teoria e práticas | Navigator | 2019

Em primeiro lugar, não podemos deixar de agradecer, ao Conselho Editorial da revista Navigator, e em especial ao seu editor, Sérgio Oliveira, a amabilidade do convite que nos foi endereçado para organizar este dossiê, e a confiança depositada perante tal responsabilidade, que muito nos honra, assim como aos colegas e amigos, que aceitaram o desafio de colaborar neste número.

A capacidade de transpor obstáculos naturais, desde simples cursos de água e rios, aos vastos oceanos, através de diversos tipos de embarcações, é uma das conquistas mais significativas da Civilização, talvez apenas equiparável, nos nossos dias, à exploração espacial. Leia Mais

Monarquia, Império e Política Popular na Era Atlântica das Revoluções / Varia História / 2019

É sabido que em diferentes cenários de todo o mundo atlântico as classes populares se mobilizaram em defesa da monarquia durante a chamada “era das revoluções”. Sua presença foi generalizada e influente nos intensos confrontos na Europa e nas Américas, quando as bases do poder dos monarcas europeus foram contestadas por meio de guerras internas e externas. Falando coloquialmente, os monarquistas, tanto populares quanto da elite, eram os bandidos que personificavam os obstáculos sociais e ideológicos na história universal da revolução e da modernidade.

Nas últimas duas décadas, historiadores da América Latina, Europa e Estados Unidos redescobriram esse fenômeno e o reexaminaram sob as lentes da nova história política. Mais recentemente, os estudiosos começaram a criar comunidades em torno do tema do realismo popular , às vezes com base em profundas tradições historiográficas e outras vezes experimentalmente. Por profundas tradições historiográficas, refiro-me particularmente aos estudos de contra-revolução e restauração na Europa que abundam e constituem um dos pilares das histórias nacionais em lugares como a Espanha ou a França. Mais experimental na abordagem foi a conferência que co-organizei com Clément Thibaud em 2016 na Universidade de Yale sobre o tema do Realismo Popular no Mundo Atlântico Revolucionário. De fato, foi sem precedentes (que eu saiba) que estudiosos com foco na história da África, Europa e Américas se reuniram para compartilhar e debater seu trabalho, o que ilustrou a gama de opções e escolhas políticas disponíveis para setores populares no Atlântico revolucionário, como povos nativos e afrodescendentes, camponeses e artesãos. Nesse diálogo produtivo, investigamos as maneiras pelas quais conceitos como liberdade e cidadania foram centrais para o engajamento popular com as instituições monárquicas e a política durante o século XIX. [1] Os sete artigos incluídos neste dossiê evoluíram a partir de apresentações naquela conferência e ilustram as abordagens variadas, bem como os múltiplos casos, que enriquecem nossa compreensão atual do realismo popularem um quadro atlântico. O dossiê, portanto, é uma porta de entrada para o emergente campo de estudos sobre o monarquismo popular e um reflexo do potencial do tema quando explorado em uma perspectiva comparada.

Histórica e historiograficamente falando, é claro, o assunto do monarquismo não é novo. Como personagens nas histórias nacionais, e na história da revolução mais amplamente, os monarquistas das elites foram naturalmente entendidos como representantes de setores conservadores cujos interesses se alinhavam claramente com o regime sob ataque. Além disso, é inquestionável que as elites monarquistas contavam com o apoio de grupos populares, que se mobilizavam formalmente em milícias ou como guerrilheiros que agiam em prol e em nome do rei. Tanto na Europa quanto nas Américas, essa mobilização popular tem sido amplamente explicada como um produto da manipulação ou como reflexo da essência extremamente reacionária das classes populares. Em outras palavras, o realismo popular tem sido, até recentemente,Hamnett, 1978 ; Landavazo, 2001 ; Lynch, 1986 ; 2006; Restrepo, 1827 ; Tilly, 1964 ).

À medida que a história social ganhava força no século XX, os historiadores procuravam dar corpo a uma explicação desse fenômeno histórico do ponto de vista marxista, mas sempre entendendo-o como um paradoxo ( Bonilla; Spalding, 1981 ; Bonilla, 2005 ; Carrera Damas, 1972 ; Craton, 1982 ; Izard, 1979) Essa interpretação foi fundamentada na expectativa de que a ação política popular deve ser associada a seu apelo histórico à revolução. Nesse quadro estrutural, as identidades sociais populares – definidas por uma posição de marginalidade – corresponderiam e deveriam corresponder a interesses políticos revolucionários, anticoloniais ou liberais. Em alguns casos, os historiadores resolveram essa inconsistência argumentando que as alianças monarquistas expressavam uma falsa consciência, a ignorância dos setores populares ou, novamente, suas visões de mundo tradicionalistas inerentes. Ao mesmo tempo, seja a partir dos paradigmas liberais ou marxistas, os historiadores da modernidade produziram interpretações condescendentes dos monarquistas populares. Também aqui, além de ver a lealdade dos setores populares à monarquia como um problema que revelava sua irracionalidade,Domínguez, 1980 ; Hobsbawm, 1973 ; Torras, 1976 ).

Isso explica por que, na historiografia europeia, a relevância das histórias do monarquismo popular reside em sua conexão com os estudos sobre as origens do conservadorismo. Ou seja, entende-se que os monarquistas populares foram subsumidos em causas reacionárias, principalmente lideradas por elites conservadoras, apegadas a princípios retrógrados e, consequentemente, prejudiciais às causas liberais e democráticas ( Beneyto, 2001 ; Bianchi; Dupuy, 2006 ; Canal, 2005 ; Comellas , 1953 ; Herrero, 1988 ; Lousada, 1987 ; Martin, 2001 ; Menéndez y Pelayo, 1965-1967 ; Ramón Solans; Rújula López, 2017 ; Rienzo, 2004 ;Rújula López, 1998 ; Solé i Sabaté, 1993 ; Suárez Verdeguer, 1955 ; 1956 ). É também a causa da produção de análises inconsistentes da mobilização popular durante a guerra de independência hispano-americana que associavam o que eram grupos formalmente monarquistas com rebeliões anticoloniais. Isso pode ser visto, por exemplo, nas obras de René D. Arze e José L. Roca que, escrevendo no final dos anos 1980, interpretaram os grupos indígenas que defendiam a monarquia no altiplano andino como precursores da identidade nacional boliviana. Arze e Roca buscavam e viam a emancipação na política das classes dominadas e entendiam a emancipação em termos de política revolucionária ou nacionalista ( Arze, 1987 ; Roca, 1988) Essa associação sugere ainda que, quando os historiadores deram o passo de descobrir a participação popular nas guerras de independência, eles preferiram enfatizar o antagonismo de classe entre as elites e as classes mais baixas, ao mesmo tempo que ignoraram a existência de alianças verticais essenciais para o surgimento de facções monarquistas no século XIX.

Nas últimas três décadas, historiadores do mundo atlântico revisaram as histórias nacionalistas e reformularam a era revolucionária, expandindo os limites geográficos e cronológicos do paradigma palmeriano original, que se concentrava exclusivamente nas revoluções americana e francesa ( Hobsbawm, 1962 ; Klooster, 2009 ; Palmer, 1965) O campo cresceu e evoluiu em várias direções, sendo uma delas a reavaliação da participação dos setores populares nas revoluções e sua relação com a ascensão do republicanismo na Europa e nas Américas. Se a narrativa dominante durante a maior parte do século XX excluiu as classes populares das histórias da revolução, ou independência nos casos americanos, a pesquisa agora levanta questões sobre representações centradas na elite da revolução, independência e formação do Estado. Além disso, ao vincular as mudanças mais amplas resultantes dos processos revolucionários atlânticos à Revolução Haitiana, estudiosos da América Latina demonstraram especialmente que o republicanismo popular era uma opção que refletia o compromisso revolucionário dos setores populares ( Alda, 2002 ;Blanchard, 2008 ; Di Meglio, 2006 ; Guardino, 1996 ; Guarisco, 2003 ; Helg, 2004 ; Lasso, 2007 ; Soux, 2010 ; Thibaud, 2003 ; Townsend, 1998 ; Tutino, 1989 ; Walker, 1999 ).

Mas a questão do apoio popular à monarquia permaneceu inexplorada ou confinada a interpretações esquemáticas duradouras e francamente simplistas ( Earle, 2000 ; Craton, 1982 ; Van Young, 1989 , 2001 ). Nas últimas três décadas, os estudiosos desafiaram a ênfase na irracionalidade intrínseca dos monarquistas populares. Focar em interpretações inovadoras da experiência do monarquismo popular e oferecer um contraponto a esse retrato dos setores monarquistas populares na Era das Revoluções, implica ainda questionar a teleologia revolucionária ( Echeverri, 2016 ; Gutiérrez, 2007 ; Méndez, 2005 ; Saether, 2005 ;Sartorius, 2013 ).

No trabalho sobre o Atlântico Britânico e a Revolução Americana, os estudiosos recuperaram a presença leal e delinearam a interseção vibrante do império e da política na era revolucionária ( Blackstock; O’Gorman, 2014 ; Calloway, 1995 ; Chopra, 2011 ; Frey, 1991 ; Jasanoff, 2008 ; 2010 ; 2011 ; McConville, 2006 ; Nash, 2006 ; Nelson, 2014 ; Norton, 1972 ; O’Shaughnessy, 2013 ; Pybus, 2006 ; Schama, 2006) A Revolução Haitiana tornou-se o foco de muitas pesquisas, porque é um caso que une a França e sua colônia caribenha de São Domingos em uma única revolução atlântica, trazendo também para o primeiro plano questões de escravidão e raça que eram centrais para as mais amplamente definidas. dinâmica revolucionária ( Childs, 2006 ; Dubois, 2004 ; Ferrer, 2012 ; Fischer, 2004) É claro, entretanto, que a Revolução Haitiana exemplifica a impossibilidade de pensar a revolução como um processo linear. Alguns autores descobriram a importância das lealdades monarquistas e dos interesses políticos que as sustentam. Ou seja, os afrodescendentes no Caribe receberam concessões em troca de sua lealdade e, em muitos casos, identificados com estruturas sociais corporativas monárquicas que reconheciam seus interesses coletivos ( Landers, 2010 ; Ogle, 2009 ; Thornton, 1993) Da mesma forma, os estudos radicais emergentes da Espanha, França e América Latina no campo das Revoluções Ibéricas desafiam as histórias nacionalistas, enquanto o constitucionalismo passou a ocupar o primeiro plano nos estudos sobre monarquia e império, rompendo com sua definição como antagônico à revolução, liberalismo, e modernidade ( Adelman, 2010 ; Bellingeri, 2000 ; Berruezo, 1986 ; Breña, 2006 ; Chust, 1999 ; Dym, 2005 ; Echeverri, 2011 ; 2015 ; 2016 ; Guerra, 2000 ; Lorente; Portillo, 2011 ; Morelli, 1997 ; Paquette , 20132015 ; Portillo, 2006 ; Rodríguez, 1999 ; 2006 ). [2]

Esse dossiê fornece mais evidências da transformação no estudo do realismo popular na última década, por meio de sete estudos de casos que abrangem a Europa, o Atlântico britânico, o Brasil e a América espanhola. Como estudos sobre essas regiões, constituem contrapontos e acréscimos importantes a trabalhos sobre o republicanismo popular que se concentraram principalmente no Caribe. Os historiadores da área cujos trabalhos são aqui apresentados acessam o tema por meio de diferentes aspectos – ou portais – e oferecem interpretações variadas. Ainda assim, os distintos cenários, além das diferenças regionais, conceituais e temáticas, evidentemente fornecem elementos fundamentais para comparações. Em primeiro lugar, eles revelam que, embora o monarquismo popular representasse consistentemente uma opção generalizada de ação política, também era diverso e particular, vinculado a aspectos jurídicos, militares, e contextos políticos. Em segundo lugar, tomados em conjunto, os artigos sugerem que a fertilização cruzada entre a história social, cultural e política da Era das Revoluções permitiu aos historiadores da política popular reconhecer que, como uma subjetividade política, o apoio à monarquia é complexo e deve ser analisado cuidadosamente em relação a contextos históricos específicos para dar conta de sua profundidade e características conjunturais. Terceiro, os artigos apresentados aqui também questionam o entendimento de que, ao defender os regimes monárquicos, os monarquistas populares foram marginais a dinâmicas e processos mais amplos de revolução, modernização e formação do Estado na Europa, África, América do Norte e América do Sul. Em vez disso, enquadrando suas ações no contexto das profundas transformações da paisagem política atlântica,Echeverri, 2011 ; 2016 ; Kraay, 2001 ; Paquette, 2013 ; Straka, 2000 ; Schultz, 2001 ).

No primeiro estudo do dossiê que enfoca o período mais antigo, Sergio Serulnikov trata dos usos políticos da figura do monarca na mobilização política dos índios andinos antes da independência (do final do século XVIII a 1809). Para Serulnikov, as prisões conceituais e historiográficas que vinculam o monarquismo ao atraso podem ser questionadas pensando-se criticamente sobre os pressupostos por trás delas. No artigo, ele delineia os entendimentos mais comuns do monarquismo popular na teoria social para, reflexiva e diretamente, abrir uma nova maneira de abordar as relações políticas entre os índios e a coroa na América do Sul. Em vez de estudar esta questão de uma perspectiva materialista, que recorreria ao entendimento estrutural de que as posições sociais devem produzir interesses políticos específicos, sua ênfase em símbolos políticos e dinâmicas políticas mais profundas sugere que o rei era um “significante vazio”. Em vez de ver o monarquismo como um reflexo da ingenuidade dos camponeses indígenas, Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino. Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino. Serulnikov afirma que suas práticas – reconstruindo essas práticas em seu desenvolvimento contextual dentro da esfera pública – são mais significativas do que declarações formais de lealdade. Seu artigo mostra como a profunda história do engajamento dos índios com a lei (que estava ligada a questões de justiça e direitos) politizou as relações sociais no contexto colonial andino.

O caso fascinante do monarquismo quando os súditos populares se moviam através do Atlântico aparece no artigo de Ruma Chopra no dossiê, onde ela traça a origem da lealdade entre os quilombolas jamaicanos e suas mudanças em diferentes contextos geográficos ao longo do final do século XVIII. O estudo de Chopra analisa o Atlântico britânico e como a busca por liberdade legal estava ligada às estratégias políticas de pessoas que escaparam da escravidão na Jamaica. Os quilombolas da cidade de Trelawney que viviam na parte norte da ilha fizeram alianças com a coroa britânica, ganhando autonomia em troca de sua lealdade e defesa militar do poder colonial e de suas instituições econômicas. Chopra desenvolve esse caso bem conhecido seguindo esses quilombolas da Jamaica à Nova Escócia e depois à Serra Leoa.Jasanoff, 2008 ; 2010 ; 2011 ; Pybus, 2006) Depois que a comunidade quilombola viajou para fora da Jamaica, ela contrasta os interesses e a tomada de decisões dos quilombolas aos dos legalistas negros que defenderam a coroa naquela revolução. Como uma comunidade pré-existente dentro do império, os quilombolas usavam a lealdade ao rei como uma ferramenta política “elástica” para defender seus privilégios em diferentes cenários políticos. No entanto, essa história também envolve uma transformação na linguagem que os quilombolas usavam para reivindicar seus interesses. Quando sua posição como súditos imperiais mudou, eles continuaram a definir sua identidade em relação à sua lealdade. Não que os objetivos dos quilombolas tenham mudado em sua transição da Jamaica para a Nova Escócia e Serra Leoa. Foi a mudança de contexto que disponibilizou novos quadros políticos e institucionais, que deu um novo sentido às suas lutas por autonomia e inclusão. A ênfase analítica de Chopra no artigo está em como os quilombolas instrumentalizaram sua longa história de reconhecimento pela coroa e seu serviço a ela.

Ao longo da costa caribenha de Nova Granada estão duas regiões representativas – Santa Marta e Venezuela – onde indígenas, escravos e afrodescendentes foram decididos defensores da coroa espanhola durante as guerras de independência na América do Sul entre 1809 e 1823. Ambos são ricos casos de compreensão do realismo popular que Steinar Saether e Tomás Straka, respectivamente, tratam neste dossiê. Saether se concentra em uma cidade em Santa Marta onde a coroa recompensou uma autoridade indígena, o cacique Antonio Nuñez, por sua defesa dos territórios contestados sob controle monárquico por meio de ações militares heróicas. Saether interroga os dois lados desse noivado. Em primeiro lugar, ele explora a estrutura da criação de sistemas de recompensas, mostrando que ela estava inserida em uma tradição militar europeia mais profunda. Segundo, ele investiga a interpretação que o próprio cacique Nuñez – e seus seguidores – fizeram das condecorações. Como Serulnikov, Saether sugere ainda que não é possível tirar conclusões de um monarquismo sincero subjacente à ação política e militar entre monarquistas indígenas. Colocando as decorações em um contexto mais amplo de confronto entre as forças republicanas e monarquistas, ele chama esse sistema de recompensas de “uma guerra de símbolos”. Saether mostra até que ponto as decorações buscavam não apenas recompensar a lealdade, mas também garantir a lealdade futura e garantir a obediência. Sua interpretação da perspectiva dos índios é que, para eles, esta foi principalmente uma aliança estratégica. Além disso, ele diz que,

Embora focados em diferentes casos e fontes, Straka e Saether comentam sobre a pouca evidência disponível para obter uma noção exata do que o monarquismo significava para os índios ou afrodescendentes na América do Sul. De fato, Saether afirma que não é possível saber como Nuñez “realmente concebeu o título”. Straka enfrenta o problema metodológico de encontrar referências claras ao entendimento que os grupos monarquistas tinham de conceitos cruciais que evidentemente se engajaram, como coroa, igualdade ou liberdade. Como em Santa Marta, na Venezuela, estudo de caso de Straka, os atores populares reagiram contra a organização experimental entre as elites crioulas que rejeitavam o domínio espanhol. No entanto, a abordagem de Straka ao tema do realismo popular é diferente. Primeiro, em vez de discutir o contexto atlântico de lealdade e recompensas, ele situa seu estudo no contexto local. Ele aponta para o fenômeno massivo do monarquismo popular na Venezuela, um lugar que exemplifica o significado sustentado do apoio popular à monarquia durante as guerras de independência na América espanhola. Em segundo lugar, Straka, como Chopra, também lida com a questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram com o tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do monarquismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência ( também trata da questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram ao longo do tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do monarquismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência ( também trata da questão fascinante de como as lealdades das classes populares mudaram ao longo do tempo. O que Straka mostra é que uma questão importante para os historiadores do realismo popular no caso venezuelano é a continuidade entre o monarquismo e o liberalismo após a independência (Zahler, 2013 ). Outra contribuição de Straka é sua observação sobre como é preocupante ter tão pouco conhecimento do realismo popular na Venezuela, dada a falta de trabalhos sobre o assunto, apesar de sua inegável importância histórica. [3] E sua interpretação ressoa com o que Serulnikov e Saether sugerem, que os monarquistas populares tinham uma compreensão diferente da monarquia e de sua lealdade do que a institucional. Além disso, destacando a interseção entre a luta pela independência e raça – uma questão que atravessa caracteristicamente a política nas Américas – ele descobre que os objetivos por trás das rebeliões anti-republicanas na Venezuela realmente revelam uma conexão entre democracia e realismo. [4]

Simon Sarlin oferece uma estrutura analítica completa para estudar e comparar diferentes mobilizações monarquistas na Europa durante o período de restaurações monárquicas. Seu trabalho concentra-se em casos de recrutamento voluntário na França, Espanha, Portugal, Estados Papais e Nápoles entre 1815 e 1848. Seu estudo orienta nossas lentes comparativas para novos temas, metodologias e contextos geográficos. Para começar, ao nos levar ao espaço europeu, ele ilustra a existência de uma sólida tradição nos estudos do monarquismo popular, da revolução e da construção do Estado, especialmente na Espanha. Sarlin se propõe a desemaranhar os mecanismos de mobilização que eram elementos processuais ligados ao maciço apoio popular às monarquias. Para traçar os processos que caracterizam cada caso, ele estabelece quatro categorias de análise baseadas em sua perspectiva sociológica: processo de criação, modelos de referência, conexão da constituição sociológica com o compromisso e efeito na estabilidade política. Os regimes que os setores populares defenderam nesses casos são historicamente entendidos como conservadores. A questão então é como desassociar essa categoria generalizante de acordo com a multiplicidade de casos e dinâmicas. Ao contrastar seu estudo com outros que tratam de casos no Caribe e nas Américas espanholas e portuguesas, aliás, fica claro o que está em jogo quando se pensa comparativamente o realismo popular. A relação entre monarquia e sociedade – tanto a elite quanto os setores populares – não é a mesma nos contextos europeu e americano. De certa forma, a natureza dos regimes imperiais refrata a questão da lealdade com implicações distintas. No último, é claro, a revolução está ligada ao anticolonialismo, assim como o realismo. Por outro lado, como Lisly, Kraay e Straka apontam em seus artigos, as distinções raciais e de classe estruturam alianças e interesses monarquistas de maneira diferente.

A perspectiva comparativa embutida no estudo de Sarlin para o contexto europeu também está presente no artigo de Andrea Lisly, no qual ela expande o quadro analítico para o Atlântico português. Lisly reúne os casos de Portugal e do Brasil em sua obra para ilustrar os múltiplos significados do monarquismo para as classes populares naqueles dois ambientes onde, mesmo se dentro de um Atlântico português fortemente conectado, a monarquia representava coisas diferentes no final da década de 1820 e início da década de 1830. De um lado do Atlântico – o Brasil – era uma monarquia constitucional e do outro – Portugal – era uma monarquia absolutista. Ao mostrar que havia uma diferença fundamental (geralmente mal compreendida ou apagada nas fontes primárias e na historiografia) entre a defesa de Pedro I no Brasil como liberal e o realismo associado à figura de Miguel em Portugal, Lisly abraça o realismo popular em todas as suas complexidade. Como é óbvio, também do lado brasileiro a questão era ainda mais complexa na medida em que implicava a opção de defender os laços com o monarca em Portugal, Miguel, como alternativa à monarquia liberal defendida por Pedro I. Lisly enquadra a sua análise aliás, num cuidadoso paralelo com estudos anteriores do “Miguelismo”, cuja abordagem de classe enfatizava os fatores econômicos associados ao apoio popular ao rei português. Esses estudos, ela argumenta, implicavam ainda que por trás dessa participação havia processos de recrutamento forçado.

Somando-se à discussão sobre o importante elemento de múltiplas perspectivas sobre o monarquismo a partir de pontos de vista culturais contrastantes, o artigo de Hendrik Kraay analisa três episódios em que afrodescendentes manifestaram identificação monárquica no Brasil, entre 1832 e 1889. Na leitura de Kraay, os três casos ilustram como os entendimentos populares da monarquia eram radicais e não conservadores como foram, em todos os três casos, geralmente retratados. Kraay estuda as definições afro-brasileiras populares do regime imperial, e sua análise representa um importante contraponto regional aos casos estudados por Saether, Serulnikov e Chopra. Ou seja, é significativo que Kraay não encontre no Brasil as bases institucionais que explicam o realismo indígena nos Andes ou o realismo quilombola no Atlântico britânico. No entanto, as evidências sugerem que o monarquismo constituiu uma opção para os afro-brasileiros expressarem suas demandas políticas. Curiosamente, também, Kraay faz uma abordagem diferente para Serulnikov quando diz que “a compreensão popular da monarquia brasileira … vai além do pragmatismo”. Mostra, aliás, que mais do que subsumir aos interesses das elites monarquistas, no Brasil setores populares “de várias cores” se mobilizaram de forma autônoma. O estudo de Kraay acrescenta outro elemento fascinante a este dossiê: o imaginário popular sobre a monarquia que além de se expressar em rituais cívicos tinha ligações com as eleições de rainhas e reis negros nas irmandades afro-brasileiras. Essas práticas e as relações sociais que elas personificaram e recriaram também estavam ligadas ao catolicismo congolês (Kiddy, 2002 ; Thornton, 1993 ). É importante, também, que no estudo de Kraay vemos um assunto que é igualmente relevante para os outros casos apresentados por todos os autores – especialmente Sarlin – a tensão entre a mobilização autônoma dos grupos populares e o medo das elites de que eles pudessem se expandir em manifestações mais potentes. de poder popular que poderia ser incontrolável e ameaçador. Em outras palavras, o estudo de caso de Kraay enfatiza até que ponto, além de ser um objetivo implícito ou explícito dos monarquistas populares, a autonomia estava em jogo e, com o empoderamento, em muitos casos ela se tornou uma conquista.

Uma visão sintética do trabalho dos autores deste dossiê produz pelo menos quatro conclusões sobre o estado atual do debate. Em primeiro lugar, os estudos continuam a fornecer evidências irrefutáveis ​​sobre a importância da política popular, e especificamente do monarquismo popular, no mundo atlântico durante a Era das Revoluções. Mas eles mostram mais importante que não é suficiente inserir os monarquistas na narrativa da revolução ou independência; esse é apenas o primeiro passo. Na verdade, como já foi mencionado, geralmente há um espaço claro e uma representação dos monarquistas nas narrativas tradicionais que os enquadram como obstáculos anormais, pré-políticos ou reais à modernização. Abordar o “problema” do monarquismo popular requer uma abordagem que busque sua explicação como um tema histórico e, tratado desta forma, é uma lente que transforma a história da revolução e do mundo atlântico. Em segundo lugar, o ponto de partida de todos os artigos do dossiê é que a associação entre adesão à monarquia e contra-revolução – entendida como inerentemente conservadora – precisa ser questionada. Como resposta, esses estudiosos ilustram por que também é relevante reconstruir a compreensão dos monarquistas populares sobre a monarquia ao lado do estudo de seus interesses específicos. Ao mesmo tempo, eles destacam a natureza estratégica da política popular monárquica, especialmente porque ela respondeu ao conflito visível entre as elites. Em outras palavras, eles analisam o monarquismo popular em relação a oportunidades e recompensas. Terceiro, em todos os casos, os autores veem impulsos e consequências radicais – em vez de raciocínio ingênuo e retrógrado.

Em quarto e último lugar, a partir desses diferentes casos e abordagens, podemos ver que um tema tão variado é um ponto de vista particularmente criativo a partir do qual refletir não apenas sobre a especificidade da lealdade popular à monarquia, mas também sobre temas mais amplos, como política popular, revolução e contra-revolução, alianças verticais, religião, colonialismo e história atlântica. A contribuição mais rica deste dossiê é justamente colocar esses artigos lado a lado e, ao fazê-lo, ilustrar por que sob a categoria do realismo reside uma multiplicidade de fenômenos históricos. Na verdade, ao mesmo tempo que o monarquismo popular precisa ser definido para além das categorias maniqueístas, como tradicional / moderno ou liberal / conservador, ele também deve ser explorado em sua multiplicidade social. Os atores sociais que estão englobados no termopopulares são tudo menos homogêneos. As particularidades que os separam principalmente em relação às diferentes localidades, África, América e Europa, são uma dimensão dessa diversidade. O outro associado a ele – especialmente em ambientes coloniais – é a raça, que também permeia as características definidoras de interesses particulares que estão por trás do realismo popular. O dossiê está expandindo os limites do campo, explorando essas complexidades e exibindo a análise do monarquismo em várias camadas: conceitual, geográfica, social e política. Uma mudança de perspectiva que é bem-vinda e que certamente produzirá muitos estudos e percepções mais valiosos.

Notas

  1. A conferência ocorreu de 28 a 29 de outubro de 2016 na Universidade de Yale, financiada pela STARACO, Université de Nantes, Fundo Kempf do Centro MacMillan de Yale e Departamento de História de Yale. Desejo reiterar a atualidade deste dossiê como reflexo da situação de um campo em franca expansão. Prova desse dinamismo é outra conferência recente da qual participei em outubro deste ano (2018) na Universidade del País Vasco em Vitória (Espanha). Esta experiência merece um comentário porque me revelou a existência de uma comunidade profunda e coesa de estudiosos dedicados ao estudo do realismo popular no contexto europeu. As apresentações ilustraram a importância que a história do monarquismo teve e ainda tem para as tradições historiográficas nacionais da França, Espanha e Portugal. Essas histórias são baseadas em experiências que começaram com a Revolução Francesa, se expandiram para a Península Ibérica em 1808 e ganharam novos significados durante a ascensão contenciosa do liberalismo nas décadas de 1830 e 1840. Um tema indubitavelmente significativo do ponto de vista europeu pode ser transformado produtivamente e desvinculado do quadro nacionalista, uma vez que é colocado em conversação comparativa com as histórias do monarquismo popular nas Américas, como vemos neste dossiê.
  2. O capítulo de Andrea Lisly neste dossiê ilustra essa compreensão complexa das monarquias atlânticas e do liberalismo.
  3. Uma exceção é CARRERA DAMAS, 1972.
  4. Straka não se refere à história do liberalismo no império espanhol e na Venezuela, nem durante a crise monárquica (a constituição de Cádiz) nem durante o Triênio Liberal(1820-1823), mas ele olha para o período de formação republicana e pergunta por quê os setores populares monarquistas durante a guerra da independência se voltaram para o liberalismo como uma ideologia que representava seus interesses.

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ECHEVERRI, Marcela. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.35, n.67, jan. / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

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Travestis: carne, tinta e papel – VERAS (AN)

VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Editora Prismas, 2019. Resenha de: MACHADO, José Wellington de Oliveira. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. A emergência do sujeito travesti: marcas de um corpo em trânsito. Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019504 – 2019.

Com a maquiagem de Thyago Nogueira e os adereços de Helena Vieira, juntamente com os brincos de Luma Andrade e os colares brilhantes de Durval1, a Travesti não binária, que transita entre a História, a Literatura, o Jornalismo, a Arte e a Filosofia, volta a se vestir de glamour. Os recortes mudaram de canto e de tamanho, o corpo desmontou-se e refez-se, a carne, a tinta e o papel entraram, mais uma vez, em trânsito. Depois de anos montando, desmontando e remontando o corpo, ela tinha a sensação de devir cumprido.

Não tem como separar esse corpo dos corpos dos arquivos e dos corpos das interlocutoras; dos corpos da UFSC e da Universidade de Barcelona; dos corpos da TV, das revistas e dos jornais; dos corpos de Michel Foucault, de Judith Butler, de Paul Preciado e, principalmente, de Joana Maria Pedro2. Ele é resultado de todos os lugares por onde Elias passou, das pessoas que conheceu, das histórias que viveu, das dores e das alegrias que experimentou, das músicas que ouviu, dos gostos, dos cheiros e das carícias que sentiu.

Ao olhar para esse corpo de letras e de imagens enxergamos três marcas, ou capítulos, que ajudam a entender como se construiu a imagem das travestis. A primeira3 é resultado do contato com Gilmar de Carvalho, que ajudou a preservar a literatura de Amorim/Samorim, tornando possível fazer uma conexão entre os/as protagonistas dos seus livros com as personagens das revis­tas, dos palcos e da TV.

O que essa cicatriz nos mostra é a emergência do sujeito travesti entre as décadas de 1970 e 1980. Mas, antes de falar sobre essa inflexão, que causou o surgimento de novas subjetividades, precisamos falar dos encontros antropofágicos de Elias Veras, é apenas a partir do momento que ele coloca Foucault e Preciado na sua mesa (ou na sua cama), como corpos a serem comidos, que essa ideia ganha corpo. Ela nasce através dos encontros e da antropofagia (ROLNIK, 1989).

Através das lentes foucaultianas, ou das lentes de Elias lendo Foucault, aprendemos a olhar para o sujeito travesti como resultado de uma rede de ações e de discursos, como algo que emerge através de uma trama. Ao cruzar Foucault, Preciado e (S)Amorim ele localiza a emergência desses sujeitos dentro da sociedade fármaco-pornográfica. O que existiria antes seria a arte de “fazer tra­vesti”, uma atividade passageira e circunstancial. É “A Passagem do Tempo das Perucas ao Tempo dos Hormônios”.

De um lado, as histórias das personagens de (S)Amorim e de Bianca, relatos de encontros de “bichas e bonecas” que performatizavam o feminino através das Misses e das atrizes do cinema americano. São memórias das festas do Edifício Jalcy, dos concursos de beleza ou de fantasia e dos bailes de carnaval, onde as feminilidades efêmeras podiam se transformar em heterotopias. Do outro lado, temos o tempo dos hormônios e do silicone, resultado de transformações que afetaram “a intimidade, o corpo, o gênero e a sexualidade”. Todas essas mudanças são analisadas através da Revista Manchete que acompanhava as atividades anuais do carnaval, publicando as fotorrepor­tagens do “baile dos enxutos” e, posteriormente, do “Gala Gay”, mostrando o contraste entre as antigas e as “novas tecnologias corporais”.

Esse novo sujeito é resultado do cruzamento da ciência com a mídia, das novas próteses estéticas, cirúrgicas e hormonais que transformaram os corpos, que a partir da década de 1980 aparecem siliconados nas revistas, na TV, nos teatros e nas boates. É o tempo de Rogéria e dos grandes espetáculos que percorriam o Brasil e o Mundo. Ela é filha da arte, da ciência e dos meios de comunicação. Mas, também é o tempo de Rogéria e de Thina, duas travestis de Fortaleza que se construíram através das revistas e das imagens dos carnavais do Rio de Janeiro, das representações de Rogéria e de outras travestis famosas, do imaginário em torno dos teatros e das boates brasileiras e do cinema e da música norte-americana.

A segunda marca4 nasce do encontro com Roberta Close, com todos os textos e imagens que transformam ela em outra personagem paradigmática. Assim como Rogéria, ela encarna a sociedade farmacopornográfica. Estamos diante de um novo paradigma que surge a partir do momento que ela se encontra com a Playboy. O corpo transgênero agora estava nu, ela exibia a sua feminilidade numa revista masculina de projeção nacional, sem figurinos, maquiagens ou adereços, o que as pessoas queriam ver era a produção do feminino na carne. O debate agora não gira apenas em torno da “travesti de verdade”, é sobre a “mulher de verdade”.

Enquanto ela tirava a roupa, o seu corpo era coberto de significados, não se tratava apenas de um corpo individual, ela encarnava o corpo de uma época. Os gays, as transformistas e as travestis estavam nos programas de humor, de auditório ou de entrevista, faziam parte das matérias de jornais e de revistas, alimentando esse imaginário de fascínio ou estigma que ajudou a construir a identidade das travestis. Mas, não representava apenas a existência de um novo modelo de subje­tividade, o que ela mostrava era a coexistência de vários paradigmas.  De um lado, temos Roberta Close “nas capas das revistas, nas telas das tevês”, “nos jornais”, nas mentes e nas bocas do povo”. Ela era uma brecha por onde as pessoas podiam ver (bem ou mal) as “sexualidades disparatadas”.

De outro lado, temos os conservadores, eles estavam nos jornais e nas revistas, usando a ascensão das indústrias “eletrônicas, de informática e de comunicação para criar um contra-discurso. Era uma reação diante da presença das travestis nas ruas de Fortaleza, das pesquisas sobre sexualidade, dos novos medicamentos, do aumento de saunas, boates e cinemas pornôs, do fenômeno do vídeo cassete, do surgimento dos novos movimentos sociais, da expansão das mídias e da indústria pornográfica.

A terceira marca5 nasceu através do encontro com os Jornais de Fortaleza, dos enquadramentos da polícia e dos meios de comunicação. A orgia, dessa vez, aconteceu com A Vida dos homens infa­mes e A História da Sexualidade, de onde surgiu o “Dispositivo do estigma”. O que vemos é uma rede, que liga vários elementos, produzindo uma imagem das travestis nos campos de prostituição e nas organizações criminosas. Os corpos de Rogéria, de Roberta Close, de Thina, de Erdmann, de Foucault, juntamente com os corpos d’O Povo e Diário do Nordeste, movimentam o ponto de encontro, alimentando essa zona de visibilidade e dizibilidade.

Elas são classificadas, através de um pré-julgamento, como causadoras da desordem, dos escândalos, da violência e dos assassinatos. As forças policiais e a imprensa legitimaram a regu­lação e o encarceramento, os discursos médicos e religiosos criaram a imagem da “peste gay” ou do “câncer gay”. Mas, essa não é uma história apenas de luto e de agouro. Os Estados Nacionais criaram Políticas Públicas de Assistência Social, de produção e distribuição de medicamentos, transformando as travestis em portadoras de direitos. Estamos diante de duas formas de visibilidade, a primeira foi construída através do estigma, é resultado do encontro dessas vidas infames com o poder. A segundo é uma visibilidade de resistência, construída através do Movimento Nacional e Internacional de Travestis.

Esse mesmo exercício, de perceber os contra-discursos, poderia ter sido feito também no primeiro capítulo, quando as “agulhas da beleza” ganharam um status de glamour. Diante da realidade social de carência e das imagens do que seria uma “travesti (ou uma transexual) de ver­dade”, os procedimentos ilegais aparecem como a única possibilidade de beleza. Não se trata apenas da emergência de um sujeito, é do apagamento de todas as travestilidades e transexualidades que não cabem nessas fôrmas. Essa é uma das dimensões que o autor pode analisar melhor em outra ocasião, o lado cruel desse processo de subjetivação. O perigo das travestis não estava apenas na polícia, nos jornais e no dispositivo do estigma, estava no próprio conceito de “travesti de verdade”, a estigmatização não é fruto apenas das páginas policiais, é resultado dessa hierarquia entre “tra­vestis de verdade” e travestis de mentira.

Se olharmos esse dispositivo como se fosse uma receita, uma gramática ou um mapa, podemos pensar as travestis como sujeitas da vida cotidiana, que burlam essas normas e constroem táticas de resistência, como fizeram com a polícia. O sujeito, nesse caso, não é apenas o sujeito coletivo das normas, é uma pessoa, ou um grupo, que burla os códigos (CERTEAU, 2008, p. 116). Se Foucault não se resume apenas às relações de poder ou aos dispositivos de poder, como podemos falar sobre a resistência das travestis diante da emergência desse lugar de sujeito? De que maneira essas práticas que existiam, com o nome de travestismo ou com outros nomes, podem ser estudadas?

Não se trata do mesmo tipo de sujeito, ou do mesmo conceito de sujeito, parte das pesquisas sobre travestis surgiram no momento da emergência do sujeito travesti da sociedade farmacopor­nográfica, generalizando o conceito de maneira anacrônica para o passado. Precisamos ir, através da História, além da antropologia e da sociologia, sem negar a importância dessas pesquisas. Há quem diga que esse livro impossibilita a construção de uma história das transições de gênero que aconteciam de maneira permanente e duradoura antes da década de 1970. Que existiram outras travestilidades que não cabem nos conceitos que foram apresentados. Mas, ao invés de pensar através 4 de 5  dessa dualidade, eu prefiro fazer o cruzamento, a pesquisa que foi apresentada é um convite para pensar as transições de gênero em outros períodos da história. O que foi feito através desse recorte e dessa trama serve como exemplo para pensar outros recortes e outras tramas.

Não podemos exigir que ele fizesse o que não se propôs a fazer, a sua pesquisa é sobre a emer­gência do sujeito travesti na sociedade farmacopornográfica, existe uma metodologia e um recorte de tempo e de espaço, ele estar falando da segunda metade do século XX através de Fortaleza, embora, em alguns momentos, possa ampliar para o Brasil. A pesquisa parte de uma problemática e de alguns objetivos, não podemos exigir que ele escrevesse, na época, uma história sincrônica e diacrônica do conceito de travesti, que fizesse uma cartografia de outras travestilidades ou que apresentasse todas as possibilidades interseccionais. Mas, poderia ter feito pelo menos um exercício nesse sentido.

Essa é uma visão de quem olha de fora, de quem imagina que esse corpo poderia ter sido construído de outra maneira. É preciso fazer, também, o exercício contrário, tentando perceber como esse corpo se construiu e qual a sua importância para os historiadores e as historiadoras que pesquisam sobre Travestis. Essa é uma das grandes contribuições de Elias, ele conseguiu fazer corpo com a tinta e o papel, as letras transformam-se em hormônio, em silicone, em vestimentas, em bolsas, em maquiagens, em manchas de batom e de sangue.

Ao olharmos para o Grupo de Estudo que ele coordena na UFAL, para as reportagens que escreveu no Jornal O Povo e para o Simpósio Temático Clio ‘Sai do armário’: Homossexualidades e escrita da História, percebemos a existência de debates sobre a interseccionalidade e o período da Ditadura. O corpo ganha novas cores, aparece com mais ou menos maquiagem, com novas próteses, dependendo do tipo de montagem. Não estou falando apenas das novas edições, o corpo do livro e de Elias podem devir outros corpos, parindo novas travestilidades.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1: artes de fazer. 15. ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2008.

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ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.

Notas

1 Thyago Nogueira é o criador da capa; Helena Vieira é uma autora transfeminista que escreveu o prefácio da segunda edição; Luma Nogueira de Andrade é uma travesti professora da UNILAB que fez o texto da orelha do livro e Durval Muniz de Albuquerque Júnior é um historiador da UFPE que participou da banca de doutorado e escreveu o prefácio da primeira edição.

2 Orientadora de Elias Veras no Programa de Pós-Graduação em História da UFSC.

3 O Nome desse Capítulo é “Do Tempo das Perucas ao tempo dos hormônios” e está dividido em três tópicos: “Tempo das Perucas ou quando não existia o sujeito travesti”, “Entre Perucas e Hormônios, o carnaval como heterotopias de gênero” e “Tempo dos hormônios ou a invenção do sujeito travesti”.

4 O segundo capítulo foi intitulado de “O ‘Fenômeno Roberta Close’ como acontecimento farmacopornográfico” e está dividido em três tópicos: “Tempo fármaco-pornográfico: excitação e controle”, “La Close e a confusão de gênero”, “La Close e as ‘sexualidades periféricas’ no centro da cena público midiática”.

5 O terceiro capítulo foi intitulado “Dispositivo do estigma e os contra-discursos Travestis” e está dividido em três tópicos: “O dispositivo do estigma”, “O dispositivo da prostituição e da AIDS” e “contra-discursos travestis”.

José Wellington de Oliveira Machado Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: wellingtonpet@gmail.com.

Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África – PAIVA (AN)

PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017. Resenha de: MACHADO, Carolina Bezerra. A escrita da História da África: Política e Resistência  Anos 90, Por to Alegre, v. 26 – e2019501 – 2019.

Em meio a constantes desafios político-ideológicos, os estudos africanos vêm se firmando como um campo de pesquisa no cenário brasileiro, o que contribui diretamente para o desenvolvimento da escrita da História da África no país. Esse movimento favorece também o rompimento dos estereótipos ainda pertinentes que geram desconhecimento, preconceitos e deturpações acerca da historicidade africana, por anos renegada ou mesmo ocidentalizada. A mudança de perspectiva está amparada em uma historiografia que busca valorizar o africano enquanto sujeito da sua história, colocando-o em primeiro plano para refletirmos sobre os eventos no continente africano, o que não significa renegar a sua relação com o outro, mas desejar compreender os processos históricos a partir do olhar de dentro. Ressalta-se ainda que essa perspectiva traz à tona a riqueza da diversidade presente no continente, que sob o olhar colonial sempre foi visto como homogêneo.  Nesse sentido, o livro Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história da África de Felipe Paiva traz um debate fundamental para repensarmos a escrita historiográfica da África. Resultado de sua pesquisa de mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense e agora publicada pela Eduff, o livro concentra-se em um caloroso debate sobre a ideia de resistência na obra História Geral da África da Unesco. Tomado como principal fonte ao longo da sua pesquisa, o conjunto de oito volumes publicados em diferentes momentos entre a década de 1960 e 1990, de acordo com o autor, apresenta uma “polifonia conceitual”, não só pelas diferentes vozes que compõem os volumes, mas, sobretudo, pela diferença teórica que os acompanham ao abordar o termo resistência.

De acordo com Paiva, essa abordagem deveria vir acompanhada de um debate conceitual em que resistência deveria aparecer como um conceito móvel, considerando o ambiente de tensões, conflitos e disputas políticas que envolvem a história do continente. Ou seja, como conceito deve ser visto dentro de um processo passível de permanências e rupturas e retomado dentro da sua historicidade. Logo, ao escolher como referência a obra publicada no Brasil pela Unesco, deve-se considerar o contexto político-social em que cada volume foi produzido, principalmente ao darmo- -nos conta que foi um período de intensas mudanças no cenário africano a partir da independência dos países, rompendo com o jugo colonial.

Todavia, o livro também não deixa de apontar para trabalhos anteriores de intelectuais que compõem a coletânea, o objetivo é introduzir o leitor ao intenso debate historiográfico em que a HGA foi produzida. As escolhas teóricas que a acompanham já vinham sendo desenvolvidas e fundamentadas em torno de uma perspectiva que elegia o africano como o sujeito da sua história. Além disso, chama a atenção também o tratamento do autor para os autores da obra, vistos não apenas como referências historiográficas, mas como personagens históricos e testemunhas de uma época (PAIVA, 2017, p. 19). Essa posição reconhece o quanto esses intelectuais foram testemunhas de mudanças, atuando no processo de formação de suas nações e, por isso, atores diretos na legiti­mação de um movimento historiográfico que era também, se não, sobretudo, político-ideológico.

A escolha da obra não é fortuita, a sua produção fora marcada por um campo de luta política, que pretendia retomar a perspectiva africana como análise central. Para isso, a escolha dos autores da coletânea foi claramente um ato político, à medida que dois terços eram intelectuais africanos (LIMA, 2012, p. 281). Como afirma o historiador Joseph Ki-Zerbo, um dos grandes nomes e organizadores da obra, a História Geral da África vinha na contramão de uma perspectiva que negava a historicidade do continente. Desse modo, a obra não deve ser encarada apenas dentro do campo historiográfico, mas também a partir do campo político, em que o ato de resistir pode ser encarado como a força motriz da coleção. Por isso, acertadamente, Felipe Paiva retoma o termo resistência, presente entre os volumes, mas não claramente definido no conjunto da obra. A polifo­nia apareceria de imediato a partir dos diferentes usos da palavra, que, para o pesquisador, apenas ganha valor conceitual dentro de um espaço colonial e que, por outro lado, desaparece quando os conflitos são entre africanos. Até o VI volume teríamos um uso apenas vocabular da palavra, sem ser claramente definida, assim sendo apenas a partir do volume VII, quando os autores se voltam para o conceito, visto que a presença colonial passa a ser analisada em sua especificidade.

Como realçamos, a sutileza em abordar determinado conceito ao longo da HGA chama-nos a atenção para os usos políticos da obra. O debate promovido contribui para refletirmos sobre a escrita da história da África em diálogo com uma perspectiva teórica que repensa as relações colo­niais a partir dos agentes internos. É nesse limiar que as contradições e complexidades ausentes em uma análise do continente, até então presa a uma perspectiva eurocentrista, passam a ser evidentes. Dito isto, o título escolhido para o livro propõe apontar para as insubmissões africanas, a partir de suas diferentes vozes ancoradas no conceito polissêmico de resistência. Todavia, notamos que Paiva aponta para a contradição existente na HGA. Pois, embora os autores retratem os movimentos de resistência a partir de um processo homogêneo, construído em oposição ao colonialismo, a sensi­bilidade em analisar os artigos que compõem a coleção apontam para as diferenças existentes entre os intelectuais à medida que os interesses individuais, regionais, políticos, culturais, religiosos e, até mesmo, de gênero, vão aparecendo na escrita. Nesse sentido, o uso da palavra resistência deve ser problematizado, por mais que no conjunto da obra seja possível identificarmos que a palavra tenha sido forjada contra o colonizador.

Dividido entre o prefácio de Marcelo Bittencourt, seu orientador ao longo da pesquisa, que destaca o valor da obra a partir da sua contribuição teórica; uma apresentação, que aponta para os objetivos que pretende, as hipóteses que levanta, assim como o porquê de algumas de suas escolhas teórico-metodológicas e mais três capítulos com subdivisões, o livro de Felipe Paiva vem preencher uma lacuna importante para a escrita da história do continente africano, que dentro da realidade acadêmica brasileira também se traduz em resistência.

O primeiro capítulo volta-se, sobretudo, para um debate teórico e historiográfico o qual se destaca um intelectual: Joseph Ki-Zerbo. A análise pormenorizada de suas pesquisas anteriores, estas que dialogam com a escrita da obra referencial, permite acompanhar alguns dos objetivos desenvolvidos na HGA, comprometida historiograficamente com um contexto histórico de valo­rização do continente africano e de afirmação dos movimentos nacionalistas e independentistas que ganhavam força naqueles anos. Nesse ínterim, podemos notar o quanto a escrita de Ki-Zerbo se encontra sensível à perspectiva pan-africanista, traduzida para o “grau de família” que Paiva chama a atenção. A ideia de “família africana”, ou mesmo da África enquanto pátria, é observada a partir dos “intercâmbios positivos que ligariam os povos africanos nos planos biológico, tecno­lógico, cultural, religioso e sociopolítico” (PAIVA, 2017, p. 25). Tal abordagem, de acordo com o autor, merece cuidado, pois por vezes pode negar as contradições existentes entre os intelectuais que contribuíram para a obra, conforme fora apontado acima.

Por isso, ao retomar a ideia de resistência na obra durante o período que antecedeu a presença colonial, esse é visto por Felipe Paiva apenas em sentido vocabular, sem uma definição concreta. O sentido conceitual só aparece em oposição a um outro, estrangeiro, nunca em referência aos combates internos, produzindo uma falsa ideia de harmonia entre os africanos, que a análise do conjunto da própria obra é capaz de negar, como nos mostra seu livro. Desse modo, o primeiro capítulo volta-se para os interesses teóricos e políticos da obra, enfatizando uma leitura que vê a escrita historiográfica do continente dentro de uma perspectiva de tomada de consciência do africano, em um claro processo chamado de “(re)africanização da África”. Somos, nesse sentido, a partir da leitura de Felipe Paiva, direcionados aos cuidados que devemos ter ao nos aprofundarmos sobre os debates acalorados que cercam os interesses que levaram à escrita da obra.

Quanto ao segundo capítulo, a abordagem volta-se, especificamente, para o volume VII da HGA, em que para o autor o conceito de resistência passa a ser propriamente construído e apresentado junto a preocupações epistemológicas antes ausentes. Ao abordar esse momento da coletânea, Paiva ressalta a construção de uma África como personagem, que sofre um trauma e, de maneira coesa, se constrói em roupagem de resistência contra o colonizador. É a partir dessa narrativa que resistência enquanto conceito se desenvolve e dirige-se exclusivamente em oposição ao colonialismo. Temos aí a construção de uma ideia de África pautada a partir da experiência colonial, que embora retomasse a história dos africanos a partir de um novo enfoque, ainda guar­dava uma visão harmônica do continente. A presença europeia seria vista como um choque que rompeu com o passado africano.

Devemos destacar, ainda nesse capítulo, as interpretações sobre o conceito de resistência pertinentes para o historiador. Para ele, podemos apontar para duas abordagens entre os autores da HGA: a tradicionalista e a marxista. A primeira refere-se a um passado pré-colonial permeado 4 de 5  por uma suposta coesão entre o passado, anterior ao colonialismo e retratado como grandioso e estático, e o presente, interessante a partir de uma concepção nacionalista, em que as lutas anti­coloniais do século XIX estariam plenamente em diálogo com os movimentos independentistas que irromperam em meados do século XX. Assim, esses movimentos eram vistos dentro de uma tradição de valorização de uma África resistente e una, que por vezes se utilizou da concepção racial para formatar suas ideias. Há, em diálogo com essa perspectiva, grande ênfase nas autoridades tradicionais retratadas como defensoras de um modelo de vida ligado à tradição africana, posta em oposição à modernidade, interpretada como uma imposição colonial.

Por outro lado, mas com o mesmo objetivo de destacar a tradição de resistência dos africanos, a abordagem marxista é assim denominada a partir do “uso de noções e categorias advindas da historiografia marxista ou que lhe são próximas” (PAIVA, 2017, p. 94). Ou seja, não necessaria­mente esses autores se colocam como marxistas mas retratam o conceito de resistência, sobretudo, em reação ao capitalismo. Por isso, a ênfase na luta de classes, formada na esteira das relações de produção advindas com o colonialismo e impostas aos africanos.

Esses dois aportes teóricos, de acordo com Felipe Paiva, servem para repensarmos sobre um tema fundamental na ideia de resistência na África: a sua temporalidade. Ou seja, como podemos captar quando inicia o processo de resistência em África? Pois, por mais que ocorra uma continuidade entre as variadas formas de oposição africana no período colonial e as lutas independentistas, temos que considerar que elas não são um movimento homogêneo que se estruturou necessariamente para desembocar nas independências, afirmando um caráter progressivo (PAIVA, 2017, p. 114). Cabe, então, apontar para as complexidades que cercam essa relação, visto que a defesa central da pesquisa reside em considerar resistência enquanto processo, passível de permanências e rupturas.

O debate sob esse ponto de vista inicia no final do capítulo 2, a partir de uma série de análises dos autores que compõem a HGA, e levam ao capítulo 3. Voltado, sobretudo, para o VIII volume da coleção, o capítulo problematiza a ideia contida nesse volume de que a libertação nacional seria herdeira de uma tradição de resistência presente na África. Para um aprofundamento da questão, Paiva lança mão de estudos anteriores do organizador do volume, o queniano Ali Mazrui, ressal­tando as diferenças construídas pelo intelectual entre protesto, interpretado como fenômeno do Estado-nação, e resistência, vista como conceito herdeiro direto desse movimento. Desenvolve-se um grande debate teórico que tem por objetivo problematizar o modo como resistência é encarada dentro de um ambiente de valorização nacionalista com grande influência do pan-africanismo.

A partir dos debates travados e construídos com argumentações que extrapolam os objetivos iniciais do livro, pois nos levam para questões como nacionalismo, pan-africanismo, colonialismo, entre outros temas pertinentes à África, ressaltada dentro de sua complexidade, a leitura de Indômita Babel é uma importante oportunidade para conhecermos um pouco mais a História da África, sobretudo, a partir da sua escrita historiográfica, cercada de tensões e desafios. O diálogo com a História Geral da África, referência primordial para os estudos africanos, enriquece e solidifica a discussão proposta por Felipe Paiva, que continua a tecer em sua trajetória acadêmica um debate político-ideológico a partir dos intelectuais africanos Kwame Nkrumah e Gamal Abdel Nasser, tema da sua pesquisa de doutorado, que vem sendo desenvolvida desde 2015 no programa de história da Universidade Federal Fluminense.

Referências

LIMA, Mônica. A África tem uma história. Afro-Ásia, Salvador, n. 46, p. 279-288, 2012.  PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Niterói: Eduff, 2017.

Carolina Bezerra Machado – Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: lowbezerra@gmail.com.

Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

Experiências Estéticas Contemporâneas / Albuquerque: Revista de História / 2019

A revelação da experiência estética não precisa de uma formulação utópica, porque as obras de arte alcançadas não prometem a satisfação de um requisito absoluto de significado, mas nosso enriquecimento cognitivo em um sentido amplo. Trata-se de experimentar esteticamente o presente precário de nossa liberdade finita, não seu futuro ilusório. Quem quer liberdade também deve querer as decepções da experiência. Portanto, o conhecimento estético não substitui o pensamento conceitual fracassado. As virtualidades da experiência estética são as de uma crítica à experiência curta, omitida, escassa, reprimida.

– Daniel Innerarity

O dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas tem como propositura debater acerca das dimensões estéticas entre o século XIX e o século XX, especialmente a partir das expressões produzidas pelas linguagens artísticas (literatura, cinema e música) e suas respectivas performances.

Consideramos a estética como uma modalidade cognitiva legítima capaz de acessar a realidade a partir de verbos criativos como o sentir, querer e pensar, o que caracterizaria o processo compreensivo da realidade proposto por Dilthey em Vida Y Poesia (1945). A estética, como remonta Susan Buck-Morss (2012, p. 157), em sua etimologia carrega consigo a dimensão corpórea, sinestésica – trata-se da percepção pela via sensorial – não restrita somente a arte, beleza e verdade, como os modernos quiseram, mas na captação da realidade em sua natureza material e corpórea, enquanto uma forma de cognição da vida.

Assim, nesse dossiê, nós organizadores, quisemos angariar textos que trouxessem à tona o potencial político de captação compreensiva da experiência social e política da cultura, a partir de aspectos caros a estética como profundidade, aparência, forma, conteúdo e, sobretudo, as mediações elaboradas pelos efeitos teóricos e práticos da relação entre arte, cultura e sociedade. Especialmente em um contexto em que a arte e a cultura tem sido alvo de ataques políticos e a estética é apropriada pela política, o que tem proporcionado, para setores conservadores, um efeito de satisfação artística no campo político e, por conseguinte, fazendo com que a arte busque empreender a politização de suas performances para enfrentar esses efeitos autoritários.

Esse “cogito” foi bem localizado por Walter Benjamin, no século XX, acerca dessas inserções da estética entre as práticas políticas do fascismo e os anseios do comunismo diante da obra de arte e sua reprodutibilidade técnica. Talvez, a esperança de Benjamin, em tal constatação, estivesse na relação ética entre arte e política, o que configura uma tarefa árdua para a estética na contemporaneidade que, segundo Buck-Morss, consiste em

desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, e fazê-lo não evitando as novas tecnologias, mas perpassando-as. (BUCK-MORSS, 2012, p. 156).

Dessa feita, o nosso desejo se faz quase apologético acerca da estética, no sentido de que devemos pensar esteticamente e, sobretudo, investigar as produções culturais enquanto calcadas e atravessadas pela realidade, não como “elucubrações supralunares”. No que se refere a dimensão estética da arte, concordamos com os pressupostos de Jauss e a estética da recepção, apontados por Daniel Innerarity, em que a “estética acentua de maneira particular a historicidade e o caráter público da arte, ao situar em sua centralidade o sujeito que percebe e o contexto em que elas são recebidas” (INNERARITY, 2002, p. 09). Interessa-nos aqui os processos históricos de significação, de atribuição de sentido e, como a estética trata do ordenamento cognitivo das possibilidades de estranhamento das formas de perceber a vida, bem como “daquelas que já foram vivas em alguma vez, ordenando-as de novo” (LUCKÁCS apud MACHADO, 2004, p. 12). Trata-se de pensar a forma (a vida dotada de sentido ético e estético), enquanto “absoluto em relação à caótica vida cotidiana” (MACHADO, 2004, p. 19).

As experiências estéticas são um campo aberto de experimentações de liberdade e fracassos capazes de, historicamente, renovarem e produzirem diversos sentidos às nossas formas de perceber a realidade em suas múltiplas interfaces. Nesse sentido, como aponta Daniel Innerarity, na introdução de Pequena apologia de la experiência estética, de Jauss:

A obra de arte alcançada oferece, aqui e agora, possibilidades de um encontro libertador com a própria experiência. Essa experiência reflexiva transgride as convenções da ação cotidiana, mas não para negar, em princípio, seu escopo e suas limitações, mas medir-se de forma modificável com as possibilidades e limites dessa prática. (INNERARITY, 2002, p. 24)

Diante desse propósito de pensar as experiências estéticas enquanto possibilidades abertas de atribuição e transformação de sentido ao longo do tempo, o presente dossiê é formado por seis artigos de pesquisadores que, de alguma maneira, lidam com objetos estéticos em sua dimensão histórica. O primeiro bloco se destina a experimentar análises acerca da relação entre estética e literatura, lidando com proposições estéticas em obras de Paul Celan, Charles Baudelaire, Francisco Candido Xavier e Nelson Rodrigues. O segundo bloco se incumbe de investigar as relações estéticas entre a crítica, história e cinema. O terceiro bloco se encarrega de pensar a estética musical.

Em A Neve das Palavras, texto que abre o dossiê e seu respectivo primeiro bloco, Maria João Cantinho trata da vida do poeta, romeno radicado na França, Paul Celan e, por conseguinte, analisa como os protocolos e referenciais de leitura dele desenvolveram uma “simultaneidade” estética entre política e literatura que, de certa forma, reverberaram em sua poesia. Para Celan, o poema, em sua dimensão estética encarnada na linguagem, é a forma em que as possibilidades “são um caminho: encaminham-se para um destino para um lugar aberto, para um tu intocável” (CELAN, 1996, p. 34). Nessa esteira da poesia, Marcos Antonio de Menezes, em Dandy: Uma criação das Metrópoles novecentistas, se acerca de compreender como se constrói a figura do Dândi, como aquele que desnuda e experimenta a vida parisiense em seus ápices de modernidade, no século XIX, sob as letras da escrita de Charles Baudelaire.

Ainda sobre os aspectos da literatura, mas sob a égide dos processos de recepção e circulação, Ana Lorym Soares, em Circulação E Recepção Da Literatura Psicografada A Partir Da Coleção A Vida No Mundo Espiritual (1944-1968), De Chico Xavier, mapeia e interpreta dentro de uma comunidade específica de leitores qual o percurso de significação que os romances psicografados por Chico Xavier e editados pela Federação Espírita Brasileira (FEB), na coleção A vida no mundo espiritual (1944-1968), percorreram historicamente. Isso, a partir das nuances do romance, história e ficção diante de determinado público leitor.

Em O Verdadeiro Casamento Rodriguiano: Apontamentos Sobre Amor E Desejo No Romance O Casamento (1966) De Nelson Rodrigues, Lays da Cruz Capelozi empreende notas analíticas sobre o único romance escrito por Rodrigues, a fim de abordar temas como amor e desejo, a partir da inferência da moral religiosa cristã quanto ao funcionamento do matrimônio. O livro analisado pela autora foi lançado em 1966, e figurava para Nelson Rodrigues como uma defesa ao casamento, mas para os censores tratou-se de uma crítica à família burguesa. Assim, percebe-se que os processos de significações que extrapolam o desejo do autor ao longo do tempo.

O segundo bloco se restringe ao artigo O Clássico E O Moderno: Eisenstein E Orson Welles Na Pena De Paulo Emílio Sales Gomes, de Rafael Morato Zanatto, que trata como as categorias de clássico e moderno são empreendidas pelo crítico e historiador Paulo Emílio Sales Gomes acerca do fenômeno cinematográfico, especialmente a partir de sua profícua atenção às produções estéticas do cineasta russo Serguei Eisenstein e do estadunidense Orson Welles. Nesse ensejo, Zanatto aponta que Paulo Emílio forjou um método próprio, capaz de condensar no âmbito da crítica e da história um procedimento que concilia o estudo da linguagem, do estilo e da expressão social das produções cinematográficas.

O último bloco conta com o texto que encerra o dossiê, Drogas, Festivais E Rock Na Imprensa Brasileira E Portuguesa – 1970 / 1975, de Paulo Gustavo da Encarnação. O autor articula música, eventos musicais – os festivais – e as drogas para compreender como esses elementos se tornaram um fenômeno de escala mundial e, conseguintemente, atraíram a atenção das imprensas brasileira e portuguesa. Dessa maneira, analisa como os veículos de imprensa abordaram, em suas respectivas páginas, a relação entre drogas, festivais e rock no período compreendido entre 1970 a 1975. Não obstante, apresenta a dimensão social, cultural e política dos festivais roqueiros em tempos de ditaduras, tanto em terras brasileiras quanto portuguesas.

Com a publicação do dossiê Experiências Estéticas Contemporâneas, a albuquerque: revista de história cumpre, mais uma vez, a sua proposta de divulgar os trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, estabelecendo com os mesmos um diálogo de caráter interdisciplinar que configura o propósito do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da UFMS / CPAq que, inclusive, propõe em suas linhas de pesquisa reflexões sobre a estética acerca dos marcadores da diferença, identidade, etc.

Aquidauana, dezembro de 2019

Referências

BUCK-MORSS, Susan. Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter Benjamin. In: BENJAMIN, Walter; SCHÖTTKER, Detlev; BUCK-MORSS, Susan. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

CELAN, Paul. Arte poética: O Meridiano e outros textos. Lisboa: Cotovia, 1996.

DILTHEY, Wilhelm. Vida y poesia. México: Fundo de Cultura Econômica, 1945.

INNERARITY, Daniel. Introdución. In: JAUSS, Hans Robert. Pequeña apología de la experiencia estética. Barcelona: Ediciones Paidós, 2002.

MACHADO, Carlos Eduardo Jordão. As formas e a vida: Estética e ética no jovem Luckács (1910- 1918). São Paulo: Editora UNESP, 2004.

Marcos Antonio de Menezes (UFJ)

Rafael Morato Zanatto (Doutor pela Unesp-Assis)

Robson Pereira da Silva (Doutorando em História pelo PPGHI / UFU)

Organizadores


MENEZES, Marcos Antonio de; ZANATTO, Rafael Morato; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.11, n.21, 2019. Acessar publicação original [DR]

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As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910) – MATTOS (AN)

MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842- -1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 308. Resenha de: PEREIRA, Matheus Serva. Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910). Anos 90, Porto Alegre, v. 26 – e2019503 – 2019.

Entre experiencias, agencias y resistencias: complejos de interconexiones y la coalición contra el colonialismo en el norte de Mozambique (1842-1910)  Among experiences, agencies, and resistances: the interconnection complex and the coalition against colonialism in northern Mozambique (1842-1910)

O florescimento e a consolidação de uma dinâmica historiografia africanista produzida no Brasil, nos últimos quinze anos, permitiu a ampliação das temáticas, objetos e espaços pesquisados. Uma das nações africanas que mais viu crescer o interesse de estudantes e investigadores brasilei­ros foi justamente a de Moçambique. Sinais dessa vitalidade podem ser encontrados na recente premiação da tese de Gabriela Aparecida dos Santos, vencedora do Prêmio Capes de Teses 2018, que versa sobre a construção e as redes de poder do Reino de Gaza, existente no século XIX entre as atuais fronteiras da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe e Moçambique. Outros exemplos são os dos sucessivos eventos sobre a África Austral, como o Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, realizado na Unicamp em 2015, ou a II Semana da África: Encontros com Moçambique, ocorrido em 2016, na PUC-Rio, dedicado inteiramente aos estudos sobre Moçambique e sua História. Nessa ocasião, em específico, pude participar da organização  Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a col igação. . .  2 de 9  do evento ao lado das pesquisadoras Carolina Maíra Moraes e Regiane Augusto de Mattos, esta última autora do livro As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910), publicado pela editora Alameda.

Resultado de sua tese de doutorado, defendida em 2012, na Universidade de São Paulo, sob orientação da professora Leila M. G. Leite Hernandez, o livro é um importante contributo para a História da África. Na obra, as relações políticas africanas no norte de Moçambique, dos diferentes agentes sociais e políticos envolvidos nessas relações e do esforço colonial português no seu desmantelamento, são investigadas a partir da complexidade do conceito de resistência. Nesse sentido, a investigação histórica produzida por Regiane de Mattos emprega esse conceito para refletir sobre as experiências e agências africanas no contexto colonial de promoção e implementação das suas ferramentas de dominação.

A argumentação central presente em As dimensões da resistência em Angoche está no exercício de análise de diferentes grupos sociais africanos como agentes históricos, com objetivos diver­sos, trazendo uma série de questões teóricas e desafios metodológicos que vão sendo encarados na medida em que a autora investiga a existência de universos culturais distintos existentes no norte de Moçambique. Para isso, Regiane Mattos lança mão de uma ampla variedade de fontes, localizadas em coleções documentais no Brasil, em Portugal e em Moçambique. O cruzamento das fontes impressas, como os relatos dos militares e governadores gerais, com àquelas localiza­das, especialmente, no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, e no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, demonstram a preocupação da autora em conectar seus alinhamentos teóricos e metodológicos com uma História empiricamente embasada. Existe um trabalho empírico primoroso de recolhimento e de cruzamento de fontes não necessariamente inéditas, mas que são colocadas sob novos caminhos interpretativos. O desafio em trabalhar com uma base documen­tal proveniente de diferentes formatos e objetivos é encarado pela autora com o seu desbravar de textos em variadas línguas, como o português e o árabe-suaíli, salientando, sempre que possível, as múltiplas possibilidades de traduções que os portugueses produziram para os escritos existentes na língua local. Com isso, as vozes africanas que emergem dos papeis do passado são investigadas como contínuos sistemas de conversões de significados, elaborados de próprio punho, traduzidos para o vernáculo português ou existentes nas entrelinhas das palavras escritas pelos portugueses.

A ideia de rede de relações sociais, culturais, econômicas e políticas construída a partir das experiências específicas dos grupos africanos analisados no livro é traduzida pela autora a partir do uso da expressão “complexo de interconexões”. É exatamente a partir dessas interações existentes entre os sultanatos do litoral norte moçambicano, sobretudo o de Angoche, o intenso diálogo desses com sultanatos do Índico, especialmente o de Zanzibar, as chefaturas macua-imbamelas do interior e a presença crescente das forças colonizadoras portuguesas na região, que a autora utiliza para explicar a formação de uma coligação de resistência. Constituída no final do século XIX por um aglomerado plural de chefaturas africanas, que possuíam uma vasta gama de imbricadas relações, organizaram-se com o objetivo concreto de oporem-se à presença colonizadora portuguesa na região.

Ao elencar variados grupos sociais africanos para o centro da interpretação, a autora iden­tifica uma necessária análise das conjunturas sociais, culturais, políticas e econômicas específicas pelas quais foram construídas as alianças entre distintos atores políticos e militares no norte de Moçambique. Essa guinada analítica denota, por um lado, uma constante, por vezes cansativa, mas importante contextualização das formações sócio-políticas africanas. Por outro lado, demonstra   uma capacidade refinada de leitura crítica das entrelinhas de suas variadas fontes, apresentando uma não linearidade da expansão colonial de Portugal sobre o território. O que quero dizer com isso é que Regiane de Mattos consegue, ao longo de sua obra, apresentar a ação colonial como um processo histórico composto por agentes sociais que tiveram que lidar com as debilidades de seus poderes e as rápidas mudanças promovidas pelos conflitos perpetrados pelos portugueses na sua busca por uma efetivação de sua dominação.

Ao promover uma análise das ações desses sujeitos sociais a partir de suas próprias confi­gurações e contextos sociais, culturais e políticos, a noção de resistência que emerge em sua obra se desvincula do exercício de buscar uma linearidade explicativa entre as ações contrárias ao colonialismo. Nesse sentido, o diálogo estabelecido ao longo do livro com a historiografia que se debruçou sobre o sultanato de Angoche está centrada na maneira pela qual essa empregou o conceito de resistência. Chamando a atenção para o pequeno número de pesquisas existentes sobre o norte de Moçambique para o período estudado, Regiane de Mattos apresenta ao leitor um panorama sobre a bibliografia produzida a partir da década de 1970 sobre as respostas africanas nessa região à expansão colonial portuguesa. Diferentemente do posicionamento de Malyn Newit, Nacy Hafkin, René Pélissier, Aurélio Rocha e Liazzat Bonate, autores elencados por Mattos como aqueles que dedicaram especial atenção à temática de sua pesquisa, As dimensões da resistência em Angoche pretende contrapor-se à noção de que a resistência à dominação colonial perpetrada pelas chefaturas islamizadas do norte de Moçambique tiveram como principal e, por vezes, exclusivo objetivo a manutenção de privilégios obtidos com o comércio de escravizados.

Segundo Mattos, essa bibliografia trouxe importantes contributos. Porém, ao problematizar a coligação estabelecida pelos agentes africanos contra os intuitos externos europeus de controle a partir da primazia econômica do desejo de continuidade da produção baseada na escravatura, teriam estabelecido análises anacrônicas ou moralizantes. Pélissier, por exemplo, os interesses econômicos da continuação do comércio de escravos foram o principal fator unificador na região, pois seria inexistente qualquer “consciência étnica”, sobretudo entre os macuas. Numa linha semelhante, Aurélio Rocha diminui a importância da presença do Islã como forma de estabelecimento de laços que fossem para além das elites e, consequentemente, capazes de produzir redes amplas de interesses. Ao mesmo tempo, pressupõe uma correlação causal de efeito entre as razões das revol­tas do sultanato de Angoche contra os portugueses e as ações europeias contrárias ao tráfico de escravos e, com isso, a impossibilidade do uso do termo resistência. Afinal, no sentido empregado por Rocha e Nacy Hafkin, como o mesmo conceito usado para explicar as lutas nacionalistas de oposição ao sistema colonial e que denotava um sentido de libertação poderia ser empregado para compreender ações africanas “até mesmo no sentido contrário ao do nacionalismo”1?

Questionando a existência de conexões lineares entre as ações africanas, de meados do século XIX e início do século XX, contrárias ao colonialismo e as lutas nacionalistas dos anos 1960, consequentemente posicionando-se nos debates sobre o emprego da noção de resistências na histo­riografia africanista, a autora lança novas luzes aos estudos sobre o norte de Moçambique durante o contexto de rápido desmantelamento das sociedades existentes naquela região. A multiplicidade de fontes empregadas, não necessariamente inéditas, é encarada de maneira singular a partir de procedimentos teóricos e metodológicos que lançam novas luzes sobre a formação da coligação de resistência como resultado da própria constituição e fortalecimento do sultanato de Angoche ao longo do século XIX. Regiane de Mattos presenteia-nos com uma consistente defesa da vitalidade 4 de 9  do conceito de resistência para interpretar as ações africanas, sem reduzi-las às dicotomias entre aqueles que colaboraram ou combateram a presença colonial.

Mattos estabelece um diálogo privilegiado com obras clássicas da historiografia africanista especializadas na temática da resistência, como as de Terence Ranger, Allen Isaacman e Barbara Isaacman, e com outras mais recentes que a problematizam, como os questionamentos de Frederick Cooper sobre a vitalidade do conceito ou o repensar da noção de insurgência apresentado na cole­tânea organizada por Jon Abbink, Mirjam Bruijn e Klass van Walraven. Seu intuito, com isso, é o de lançar seu olhar sobre as fontes e a bibliografia especializada para realizar “uma abordagem mais matizada da resistência” (MATTOS, 2015, p. 26). Aproximando-se de uma perspectiva recorrente do uso do conceito pela historiografia brasileira que dedicou especial atenção à história da escravi­dão, do negro e do pós-abolição nas Américas e no Atlântico, resistência é compreendida no livro como “o conjunto de ações, sem elas individuais ou organizadas em nome de diferentes grupos, elitistas ou não, não necessariamente incluindo violência física, como respostas às interferências políticas, econômicas e/ou culturais impostas por agentes externos e consideradas, de alguma maneira, ilegítimas pelos indivíduos que a elas foram submetidos” (MATTOS, 2015, p. 26).

Infelizmente, a autora não aponta para a íntima vinculação existente entre a historiografia sobre o passado africano produzida no Brasil e a noção que emprega ao longo do seu livro sobre a resistência, relação vital para a sua capacidade analítica singular das dinâmicas redes entre os grupos sociais africanos do norte de Moçambique. Dada a centralidade do conceito para a obra e a trajetória da autora, teria sido importante que a Regiane de Mattos indicasse como o crescimento significativo da historiografia africanista produzida no Brasil no século XXI e o seu uso relativa­mente distinto do conceito de resistência em comparação às perspectivas africanistas desenvolvidas em cenários acadêmicos africanos ou europeus deve-se, dentre muitos fatores externos ao meio acadêmico, à proliferação das investigações de trabalhos pioneiros sobre essas temáticas no meio historiográfico brasileiro dos anos 1980 e 1990. As transformações pelas quais os trabalhos de historiadoras e historiadores passaram nesse contexto promoveram uma interpretação de classes, grupos ou indivíduos a partir de perspectivas da História Social que privilegiavam suas perspec­tivas, experiências e ações, em detrimento de análises estruturantes.  Muitos desses trabalhos foram inspirados pelas variadas perspectivas da micro-história ita­liana,2 pelas obras de E. P. Thompson,3 e por uma bibliografia norte-americana sobre as experiên­cias afro-americanas.4 O balanço historiográfico lançado em 1977 por Allen Isaacman e Barbara Isaacman, Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920, citado por Mattos como crítico ao emprego do termo resistência, estabelece paralelos que poderiam ser interessantes de serem explorados entre a virada historiográfica brasileira citada anteriormente. Ao analisar as complexas abordagens existentes no campo da História da África a respeito do tema da resistência africana ao colonialismo europeu, Allen e Barbara Issacman apontam para uma percepção sobre o conceito de resistência para analisar as ações diárias de insatisfação dos africanos durante a vigência da dominação colonial europeia, como cabível de ser influenciada justamente por pesquisas reali­zadas nos anos 1970 sobre as ações escravas nos EUA. Citando Eugene Genovese e o livro A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, livro lançado em 1974 e de grande alcance no Brasil, comparam as ações dos africanos colonizados com as dos escravizados na América:

Like the slaves in the American South, many oppressed workers covertly retaliated against the colonial economic system. Because both groups lacked any significant power, direct 5 de 9  confrontation was not often a viable strategy. Instead, the African peasants and workers expressed their hostility through tax evasion, work slowdowns, and destruction of European property. The dominant European population, as in the United States, perceived these forms of day-to-day resistance as prima facie evidence of the docility and ignorance of their subor­dinates rather than as expressions of discontent.5

No entanto, o que parece ser relevante para a crítica bibliográfica do conceito de resistência para a análise das ações africanas no passado colonial está relacionado aos processos de construção dos Estados independentes no período pós-colonial. As fundamentais críticas ao eurocentrismo elaborada nos contextos das descolonizações verteram para análises que reduziam as possibilida­des dos africanos de participarem ativamente da confecção de suas histórias a partir de zonas de identificações contextuais que fossem variantes ao longo do tempo e do espaço. Ao mesmo tempo, muitos dos grupos que assumiram para si os desafios de promoção dos Estados africanos após suas independências justificaram posturas autoritárias a partir de narrativas que usavam um suposto passado de resistência ao colonialismo como forma de corroboração das privações de liberdade contemporâneas e formas de repressões a grupos sociais questionadores dos rumos que estavam sendo tomados no período pós-colonial.6

Nesse sentido, diferentemente da historiografia brasileira, a historiografia africanista, sobre­tudo anglófona, dos anos 1990, foi marcada por uma crítica à validade do termo resistência como conceito e como categoria empírica de análise. Seu emprego em interpretações que reduziam o colonialismo a um sistema de dominação promovedor de uma sociedade binária dividida exclu­sivamente entre colonizados e colonizadores ou como limitador das motivações e possibilidades das ações africanas para com as relações de poder instituídas, renegaram-no a uma visão de sua suposta incapacidade explicativa.

Não cabe aqui produzir uma interpretação sobre o itinerário ou a genealogia do emprego do conceito de resistência. Quero apenas destacar que as leituras distintas e, porém, tangenciais, sobre o uso e a validade do conceito são, em determinados círculos acadêmicos, entendidas como um impeditivo de sua aplicabilidade. O consenso atual parece estar na necessidade de evitar análises que retratem de forma monolítica aqueles que dominaram e, principalmente, aqueles que foram dominados. Isso não quer dizer que inexiste um valor da resistência como conceito ou como fenô­meno histórico. Como conceito e como prática, analisar a ação dos “de baixo” a partir da ideia de resistência continua sendo fundamental para promover interessantes e inovadoras análises das experiências de sujeitos, aos quais lhes eram negados terem vozes durante suas vidas, ao mesmo tempo em que movimenta pautas contemporâneas de movimentos em prol de igualdades e da dignidade humana. Seguindo essa perspectiva, Regiane de Mattos privilegia a ação africana a partir de suas interfaces relacionais baseadas em laços de lealdade, parentesco, doações de terras, pelo comércio e pela religião islâmica como pontos focais de sua análise. É na totalidade dessas teias de relações que a autora constitui sua noção de complexo de interconexões. Consequentemente, aproxima-se de uma perspectiva de uma história total sobre as interações entre sociedades africanas e produções de regimes coloniais que orientam sua visão na leitura das fontes selecionadas. Como a autora recorrentemente chama atenção na sua obra, a procura por

[…] elementos de caráter nacionalista na coligação de resistência no norte de Moçambique pode ter provocado uma simplificação da análise dos fatores desencadeadores da resistência 6 de 9  e das formas de mobilização das diferentes sociedades envolvidas, ressaltando-se apenas o caráter econômico dos objetivos dessa coligação. Também pode ter influenciado um tipo de análise mais restrita, que não considera a dinâmica da resistência em seus diversos aspectos e dimensões (MATTOS, 2015, p. 30).

Ao reorientar o olhar analítico sobre a coligação da resistência, Regiane de Mattos distancia- -se das interpretações historiográficas predominantes que a compreendem por meio da primazia econômica como justificativa da configuração dessa associação para promover a oposição política e militar ao colonialismo português. A autora não deixa de lado a importância, ao longo do século XIX, do comércio de escravos para a formação e expansão do poder de Angoche. Porém, graças a sua abordagem teórico-metodológica, identifica nesse aspecto mercantil uma das muitas justifi­cativas para a união das elites locais contra o avançar colonial português e não àquela primordial. Sua leitura detalhada dos documentos, combinada com os campos bibliográficos que cita, também faz com que não seja promovida uma interpretação que entenda a resistência constituída no norte de Moçambique a presença colonial como cabível de uma avaliação moralizante que precisa ser feita sobre uma possível natureza menos nobre existente na coligação. Evitando embaraços con­temporâneos de um passado indigno de ser definido como resistente ao colonialismo, a escravidão e o comércio de escravos são entendidos como elementos constitutivos daquela sociedade que se encontravam em rápida transformação.  Como resposta à prerrogativa econômica de manutenção da escravidão e do comércio de escravos que direcionou as interpretações existentes, o que temos em As dimensões da resistência em Angoche é o estudo primoroso da complexidade das relações sociais e políticas que vão para além do desejo de manutenção, pelos membros das elites africanas, dessa forma de exploração humana. Regiane de Mattos consegue, sobretudo nos três primeiros capítulos de sua obra, quando mergulha sua análise nas relações familiares, de poder e religiosas, apontar para a diversidade de fatores que sustentaram o apoio entre as sociedades macuas do interior e suaílis do litoral.

A necessidade de compreender as dinâmicas específicas dos contextos históricos advogada por Regiane de Mattos pode ser percebida, por exemplo, no seu exame do papel da etnia e de sua incapacidade explicativa das experiências e ações dos africanos do norte de Moçambique. A cate­gorização dessas populações em grupos étnicos estanques, promovida pelo colonialismo, é pouco eficaz para compreendermos as dinâmicas interconexões que terminaram por promover respostas individuais ao colonialismo ou à organização supra étnica da coligação de resistência. A autora identifica os etnômios descritos nas fontes portuguesas como produtos da modernidade. Ou seja, como fenômenos constitutivos e constituintes do final do século XIX e início do XX precisam ser analisados a partir de uma perspectiva histórica não essencializada. Nesse sentido, a construção das características dos macuas e das sociedades suaílis tem sido percebida como a construção de realidades móveis contextuais. Por um lado, o exercício interpretativo existente em As dimensões da resistência em Angoche desconstrói historicamente o objeto étnico promovido pelo poder colonial que, desconhecendo e negando a história, apressado em classificar, nomear e hierarquizar para estabelecer a distinção e a justificativa da dominação, construiu, promoveu e engessou etiquetas étnicas. Por outro lado, de maneira semelhante ao esforço em afastar-se das noções de resistência existentes no período das independências nacionais, a obra de Mattos termina por contrapor-se à apropriação dos clichês da etnologia colonial que foram acomodados pelos Estados independentes africanos, muitas vezes como forma de justificar novas práticas de dominação. Ao historicizar as 7 de 9  etnias do norte de Moçambique, especialmente a macua, Mattos não nega a validade da categoria etnia ou dos etnômios para analisar a maneira pela qual os sujeitos sociais africanos organizavam suas vidas antes e durante a colonização. O que a autora faz é uma abordagem que privilegia uma interpretação das etnias como capaz de auxiliarmos na reflexão sobre as sociedades africanas como inter-relacionais, compostas por sobreposições e entrecruzamentos.

Ao destrinchar a impossibilidade de compreensão plena da resistência em Angoche e no norte de Moçambique como parte de planos para a perpetuação do comércio de escravos e de solidariedades étnicas, outros aspectos tornam-se relevantes para constituírem o que Regiane de Mattos chama de “dimensões da resistência”. A ideia de dimensões presente no livro aparece no sentido de variados fatores que convergiam para uma posição contrária à presença portuguesa, como as relações familiares, sobretudo as baseadas na matrilinearidade, as doações de terras que consolidavam alianças estratégicas e o Islã como aglutinador de práticas e perspectivas. A ação de resistir, portanto, deve ser entendida como uma defesa de uma autonomia política, principalmente no que tange às linhas sucessórias de poder, e, comercial, por meio do controle das trocas econô­micas contra a crescente interferência colonial portuguesa.

Unir-se contra a ameaça da perda de autonomia política e econômica estaria baseado numa leitura africana das conjunturas futuras que se desenhavam naquele presente conflituoso. Ou seja, as ações dos sujeitos e grupos sociais são compreendidas em As dimensões da resistência em Angoche dentro da complexidade do jogo de forças quando da construção do colonialismo português na região. É exatamente ao explorar o processo de edificação das relações de parentesco, da expansão do Islã na região pelas elites e pelas bases daquelas sociedades, das trocas comerciais, ou seja, de toda uma vasta gama de fios que se entrecruzavam para compor uma dinâmica social, operacionalizadas de acordo com as demandas das circunstâncias, que Regiane de Mattos consegue caminhar na contramão da historiografia sobre o norte de Moçambique para esse período histórico. O que a autora consegue evidenciar em sua obra é que a coligação de resistência foi feita com base em um passado de trocas que solidificaram relações que foram acionadas na medida em que o colonia­lismo se projetou como um sistema de dominação. Sua análise da coligação da resistência como uma luta pela preservação daquilo que se encontrava ameaçado pelos “mecanismos de exploração impostos pelo governo português, como o controle do comércio e da produção de gêneros agrícolas e de exportação, a cobrança de impostos e o trabalho compulsório” (MATTOS, 2015, p. 269), características primordiais da dominação colonial portuguesa, é solidamente percebida como base para as redes de lealdade construídas ao longo do século XIX, que culminaram na possibilidade de uma mobilização e formação coletiva contra os avanços dominadores portugueses.  No entanto, uma característica escorregadia existente no conceito de resistência, em deter­minados momentos, escapa da análise existente em As dimensões da resistência em Angoche. As imbricadas relações políticas que ocasionavam conflitos entre as chefaturas africanas, nesse caso, em específico contra a expansão do poderio do sultanato de Angoche, apontam para as diversas direções que o conceito pode trazer consigo. Como a própria autora assinala, a contenda entre a pia-mwene Mazia e o xeque da Quitangonha é emblemática dos conflitos na região. A primeira foi acusada de mandar matar o segundo, em 1875, pois este estaria lhe devendo o pagamento da venda de escravos e impedindo a realização desse comércio. Para a autora, a atitude da pia-mwene deve ser lida pelo prisma da resistência à interferência portuguesa sobre os processos sucessórios de poder e como símbolo da luta pela manutenção da autonomia política. Essa é uma interpretação 8 de 9  sustentada com maestria ao longo do livro, já que o mando do assassinato também teria ocorrido, como é argumentado de maneira sólida, porque o xeque estava buscando ampliar seu poder por meio do apoio dos portugueses. Esse apoio não é compreendido como uma força totalizante capaz de controlar na sua plenitude todas as possibilidades de ações africanas existentes naquele cenário político ou como um plano predeterminado pelo poder metropolitano português que foi sendo implementado, na medida em que a dominação europeia na região superou as resistências locais. Como é apresentado ao longo do livro, os portugueses no norte de Moçambique, pelo menos até a última quinzena do século XIX, possuíam diminuta capacidade de implantar qualquer projeto efetivo de dominação, recorrendo a arriscadas parcerias que desestabilizavam as linhas sucessórias predominantes. Isso não quer dizer que os portugueses atuassem apenas como mais uma força dentro daquele contexto político. A ação portuguesa, em prol do que veio a se constituir numa dominação colonial a partir do século XX, é compreendida e explicitada como um processo que, como tal, precisou lidar com encontros e desencontros decorrentes de uma aplicabilidade prática. No entanto, o que cabe questionar é o porquê de o conceito de resistência ser apenas empregado na relação ou entre as chefias ou populações africanas e o poder colonial português. Afinal, se a agência africana é elevada para o centro da análise, não poderíamos supor que o xeque, que viria a ser assassinado, estava usando o apoio português para resistir ao poder reinante materializado na figura da pia-mwene, que havia sido consolidado pelas relações matrilineares de parentesco entre macuas do interior e suaílis do litoral?

As dimensões da resistência em Angoche é uma obra que solidifica o trabalho de uma pes­quisadora rigorosa, com hipóteses inovadoras e que acrescenta importantes contributos para o debate sobre o conceito de resistência no contexto de dominação colonial europeia na África. Uma característica importante que deve ser salientada e que demonstra a vitalidade da obra de Regiane de Mattos se encontra nas portas que a mesma abre para pesquisas futuras. Ao criticar a bibliografia que entende a resistência do sultanato ao colonialismo como uma “resistência opres­sora” que deve ser renegada por não visar uma ideia específica de liberdade, como a existente na resistência nacionalista da segunda metade do século XX, a autora permite extrapolarmos suas interpretações para buscarmos a compreensão de como outros grupos sociais daquelas sociedades africanas, especialmente grupos excluídos ou marginalizados que não chegaram a ser analisados, como, por exemplo, os escravizados, interpretaram, experimentaram, agiram e engajaram-se no contexto de transformação das estruturas sociais do mundo que viviam, levadas a cabo pelas (in)gerências promovidas pela implementação do colonialismo português na região.

O livro é também o pontapé dado por Regiane de Mattos para o enfrentamento de hipóte­ses históricas que poderão ser estudadas em um futuro que espero não esteja muito distante. A própria autora possui um papel pioneiro e central para que esse desejo se concretize o mais rápido possível, já que, conjuntamente com o seu livro, fomos premiados com a disponibilização online do fantástico Acervo Digital Suaíli,7 um trabalho coletivo de parceria entre Brasil e Moçambique que disponibiliza fontes e bibliografias sobre a costa oriental africana. Projetos como esse tornam possível a continuidade de uma rica produção historiográfica brasileira sobre o passado africano que tomou forma nos últimos quinze anos.9 de 9

Notas  

1 ROCHA, Aurélio. O caso dos suaílis, 1850-1913. In: REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE ÁFRICA: RELAÇÃO EUROPA-ÁFRICA NO 3º QUARTEL DO SÉCULO XIX, 1., 1989, Lisboa. Anais… Lisboa: Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1989. p. 606 apud MATTOS, Regiane Augusto de. As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910). São Paulo: Alameda, 2015. p. 23.

2 Um balanço sobre a micro-história italiana pode ser encontrado em LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

3 É fundamental perceber a influência que E. P. Thompson promoveu em variados campos historiográficos ao criticar as interpretações das sociedades em categorias derivadas de modelos estanques que não levavam em consideração contextos específicos a partir das maneiras pelas quais os próprios sujeitos históricos interpretaram e agiram de acordo com suas experiências. Ver: THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In: THOMPSON, E. P. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. Ou, THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. p. 17.

4 Dentre muitas obras influenciadoras dessas perspectivas para o meio historiográfico brasileiro, ver: GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; FONER, Eric. O significado da liverdade. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8, n. 16, p. 9-36, 1988; LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhas Atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 7-46, 1983; LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

5 ISAACMAN, Allen; ISAACMAN, Barbara. Resistance and collaboration in southern and central Africa, c. 1850-1920. The International Journal of African Studies, v. 10, n. 1, p. 48, 1977.

6 Para uma reflexão sistemática sobre a história da produção historiográfica sobre a África e uma análise crítica da relação entre os movimentos nacionalistas, a construção dos Estados independentes e a produção do passado africano, ver: MILLER, Joseph C. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v. 104, n. 1, p. 1-32, fev. 1999; RANGER, Terence. Nationalist Historiography, Patriotic History and the History of the Nation: the struggle over the past in Zimbabwe. Journal of Southern African Studies, v. 30, n. 2, p. 215-234, jun. 2004.

7 O projeto pode ser acessado pelo seguinte link: http://acervodigitalsuaili.com.br.

Matheus Serva Pereira – Doutor em História e Pós-Doutorando na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: matheusservapereira@gmail.com.

La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura | Jaume Aurell

Jaume Aurell, professor de teoria da história na Universidade de Navarra, na Espanha, é um dos grandes especialistas em história e historiografia medieval catalãs, tendo lugar destacado na historiografia espanhola. Sua área de pesquisa contempla a cultura mercantil, a autobiografia medieval e a historiografia contemporânea. Além de coordenar os volumes da obra Rewriting the Middle Ages in the Twentieth Century (2005 – 2009) e de participar como editor em Medieval and Early Modern Political Theology (2017), Aurell é autor de Els mercaders catalans al Quatre-Cents (1996), La escritura de la memoria, de los positivismos a los postmodernismos (2005), Authoring the Past. Historiography, Autobiography, and Politics in Medieval Catalonia (2012) e Medieval Self-Coronations: The History and Symbolism of a Ritual (2020).

O livro La historiografía medieval. Entre la historia y la literatura, publicado em 2016 em formato físico e e-book, ainda não possui tradução para a língua portuguesa. A obra é resultado da longa trajetória de Aurell como docente e pesquisador e das discussões com colegas do meio acadêmico. As conversas com a professora norte-americana Gabrielle Spiegel teriam constituído o primeiro despertar do autor para a historiografia medieval, algo que se intensificaria com o seu interesse pela historiografia contemporânea. Nesse sentido, esta obra pode ser lida tanto por medievalistas quanto por estudiosos de teoria da história, uma vez que o autor oferece uma visão ampla sobre a trajetória da escrita da história ocidental desde a Idade Média e nos convence que a historiografia medieval, rejeitada e depreciada pelo historicismo, pode estar mais próxima da historiografia atual do que pensamos: a narrativa, já utilizada pelos medievais, é a única forma que os historiadores têm para explicar e interpretar o passado. Para Aurell, essa consciência teórica e epistemológica acerca da escrita da história teria sido uma das consequências benéficas do giro linguístico. Apoiando-se em um intenso debate bibliográfico, diversificado e atualizado, ele desperta o interesse do leitor com sua tese. Leia Mais

Guide to Byzantine Historical Writing | L. Neville

Leonora Neville2 (2004; 2012; 2016) é uma bizantinista norte-americana já conhecida por trabalhos anteriores dedicados à sociedade provincial bizantina e a dois historiadores do período intermediário: a princesa Ana Comnena (1083-1153) e seu esposo, o kaisar Nicéforo Briênio (1062-1137). Sendo um nome cada vez mais presente no campo, Neville vem realizando empreendimentos notáveis. O recente Guide to Byzantine Historical Writing é um deles e oferece uma importante contribuição por servir como um guia prático de referência à historiografia bizantina e a tudo de essencial relacionado a ela. O ponto forte da obra, preparada por Neville com o auxílio dos estudantes de pós-graduação David Harrisville, Irina Tamarkina e Charlotte Whatley, é seu grande apanhado bibliográfico multilíngue.

Segundo Neville, seu guia “[…] visa tornar as riquezas das histórias medievais escritas em grego facilmente acessíveis a todos que possam estar interessados” (NEVILLE, 2018, p. 1, tradução nossa). Embora a autora seja modesta ao dizer que seu livro “[…] não contém nenhuma informação que um bizantinista diligente não pudesse rastrear com o tempo […]” (NEVILLE, 2018, p. 1, tradução nossa), o mérito desse seu trabalho reside justamente em seu potencial de servir como um guia prático e acessível a essas fontes, especialmente quando consideramos que o Império Bizantino não costuma ser a primeira escolha daqueles que adentram as pesquisas sobre o período medieval, seja pelas especificidades necessárias para seu estudo, que são distintas daquelas para o Ocidente latino, seja por questões de outra natureza. A obra de Neville pode assim fomentar o interesse de públicos acadêmicos não tradicionais, como o brasileiro, onde esses estudos ainda são bastante escassos e periféricos, facilitando a busca por fontes primárias e proporcionando uma base bibliográfica como ponto de partida.

Embora não há de se negar que seu público seja os bizantinistas, aqueles que se faz questão de dizer, um gesto de boas-vindas aos classicistas, aos medievalistas e aos estudantes de modo geral. Com certeza, além de facilitar a pesquisa daqueles que já atuam no campo e dos que estão começando, esse livro tem o potencial de sanar a curiosidade de classicistas interessados pela produção historiográfica em língua grega após a Antiguidade e de ajudar os demais medievalistas, especialmente aqueles com pesquisas voltadas para os contatos interculturais no mediterrâneo medieval, onde é impossível ignorar a presença bizantina. debruçam sobre as fontes primárias dessa civilização, o livro também é, como Neville

O guia de fontes de Neville abarca exclusivamente textos historiográficos escritos entre 600 e 1490 d.C. Esse recorte singular pula o período inicial da periodização tradicional, uma vez que a autora prefere não disputar o chamado de Early Byzantium com o consagrado Late Antiquity, e estende a produção historiográfica bizantina para além da queda formal do império em 1453. Neville justifica que outras obras de natureza similar já abarcaram o período inicial ao lidarem com fontes tardo-antigas e que a queda de Constantinopla é somente um dos eventos que gradualmente alteraram o horizonte intelectual e cultural daquele mundo. O ponto realmente positivo desse recorte foi ter considerado autores que escreveram naquele mundo pós-bizantino, uma vez que eles testemunharam o crepúsculo final do Império Romano e a ascensão do poder otomano, um processo que a longo prazo causou profundas transformações na região. Por ironia do destino, considera-se que a historiografia medieval em língua grega acaba com o ateniense Laônico Calcondilas (c. 1430-1470), que escreveu dentro dos moldes daquele considerado o primeiro historiador grego, Heródoto de Halicarnasso (c. 484-c. 425 a.C.).

O capítulo introdutório apresenta algumas questões essenciais, como o debate em torno das terminologias história e crônica, a natureza do ofício do historiador em Bizâncio, a questão da imitação dos clássicos e da inovação, o sistema de datação presente nas fontes, a terminologia classicizante empregada pelos autores, a língua grega medieval e seus registros e as problemáticas transliterações empregadas pelos bizantinistas. Além disso, a autora trata sobre as principais publicações e séries de fontes e explica o que ela quer dizer por manuscrito, texto e edição ao longo do livro. Por fim, é oferecida uma pequena, mas importante bibliografia para aprofundamento, seguida por uma geral e mais abrangente.

Além da parte dedicada aos agradecimentos, da introdução e dos apêndices finais, o guia conta ao todo com cinquenta e dois capítulos que levam os nomes dos historiadores ou das obras cujos autores desconhecemos, de Teofilato Simocata (séc. VII) ao já mencionado Laônico Calcondilas (séc. XV). Os capítulos recebem geralmente as seguintes entradas: uma breve biografia do autor com alguma descrição de seus trabalhos historiográficos, uma menção aos manuscritos que chegaram até nós (ou a indicação de uma publicação que adentre isso), uma lista de edições modernas disponíveis, uma breve história de sua publicação, uma lista de estudos fundamentais para se ter como ponto de partida, uma lista das traduções realizadas até o momento e, por fim, uma lista bibliográfica mais vasta com temas relacionados ao autor e sua obra. Após esses capítulos, seguem-se dois apêndices: um gráfico indicando o período de tempo coberto pelas produções e outro indicando o período de vida dos autores.

Neville afirma tomar uma abordagem mais cética (embora isso não pareça diferente de dizer neutra) em relação às reconstruções das fontes e da vida dos autores. Ela demarca, assim, a primeira diferença de seu trabalho em relação ao de Warren Treadgold (2007; 2013), autor de duas obras sobre os historiadores bizantinos do período inicial e intermediário (a terceira, sobre o período tardio, está por vir) e mais recheada de suposições e hipóteses. Em nossa opinião, embora seja compreensível os motivos que podem ter levado a autora a seguir por esse caminho, uma vez que tomar parte em debates é adentrar em possíveis flutuações acadêmicas que podem prejudicar a obra como um guia de referência, datando-a a médio prazo, esse acaba sendo um ponto um tanto obscuro do livro, primeiro pela autora não mencionar essas diferentes interpretações (ela poderia tê-lo feito sem que as endossasse), privando seu leitor de algo fundamental; segundo por não ser um critério muito compreensível (ao menos da forma como colocada) para as posições que ela toma ao longo dos capítulos do livro.

Neville também demarca a diferença essencial de seu livro para os de Treadgold a partir do que está sendo enfocado: enquanto seu trabalho está preocupado com o texto, o de seu colega norte-americano está preocupado com os autores. Para a autora, como na maioria dos casos as informações que sabemos sobre os autores vem de seus próprios textos, deveríamos focar nossa análise no texto, dando pouca ênfase à biografia como determinante para entender a obra. Para Neville, abordar o texto ao invés dos indivíduos está na ordem do dia, como propuseram nas últimas décadas os teóricos pós-modernos da linguistic turn. Embora ela possa ter razão, os exemplos dados para justificar isso são no mínimo problemáticos.

A discussão se devemos confiar em Jorge, o monge e pecador (séc. IX) é pouco relevante; Neville acha que por ter se chamado pecador, uma notória prática monástica de humildade, coisa não enfatizada pela autora, esse autor estava provavelmente mentindo com o propósito de justificar o conteúdo moralizante de sua obra, pois, nesse contexto, chamar-se humilde seria um ato de orgulho. Assim, para Neville, esse não poderia ser um dado biográfico para se ter como ponto de partida, fazendo mais sentido adentrar diretamente no estudo do texto pelo texto. Ela continua com outro exemplo: ao dizer que escreveu em reclusão, João Zonaras (séc. XII) poderia estar se utilizando de um truque retórico para aparentar que escreveu sua obra longe de forças que poderiam influenciá-lo em sua escrita. Neville considera que os historiadores perderam tempo tentando encaixar esse dado em sua biografia e questiona se Zonaras estava recluso da mesma forma que Jorge era pecador. Nesse exemplo, ela aparenta estar sendo puramente especulativa e nada justifica o porquê não considerar realmente a hipótese da reclusão. Além disso, o exemplo de Jorge não é exatamente comparável ao de Zonaras se considerarmos o costume monástico. O problema aqui talvez não seja sua perspectiva teórica, mas uma má seleção de exemplos para sustentá-la.

Embora esse não seja o foco de seu guia, podemos contextualizar a produção intelectual de Neville entre autores que estão resgatando a ideia de uma romanidade bizantina, acabando assim com a separação imposta por historiadores no passado entre Roma e Bizâncio.3 Isso fica evidente quando a autora afirma que “A história bizantina é a história do Império Romano na Idade Média” (NEVILLE, 2018, p. 5, tradução nossa). Como tem sido apontado, a imposição dessa separação tem raízes muito antigas no universo intelectual e cultural ocidental, regressando a finais do século VIII e às disputas políticas e identitárias entre bizantinos e ocidentais, posteriormente reforçada pela especialização acadêmica e a invenção de termos técnicos e delimitações artificiais como Império Bizantino e Bizâncio.4 Neville se coloca nessa discussão ao apontar a necessidade de levarmos a sério a autoidentificação dos bizantinos enquanto romanos, coisa que os estudiosos a todo momento ignoraram, preferindo desenvolver explicações sobre quem eles de fato eram por trás do que diziam. “Em nenhum outro campo os historiadores rotineiramente tratam os sujeitos de sua investigação como tendo uma compreensão incorreta de quem eles eram” (NEVILLE, 2018, p. 5, tradução nossa).

Os comentários oferecidos por Neville sobre essa questão não são um aspecto superficial de seu trabalho, mas funcionam estrategicamente, pela natureza de seu livro, como um manifesto aos pesquisadores e àqueles adentrando o campo dos Estudos Bizantinos para que não ignorem esse duradouro problema. Neville alavanca algumas questões que ela acredita que precisam ser superadas para que enxerguemos definitivamente isso, como a importância exagerada dada à ascensão do cristianismo como o divisor de águas central na história da humanidade, o que teria feito com que os estudiosos entendessem que o Império Romano havia deixado de ser o verdadeiro existia na mente de seus habitantes, e os resíduos das narrativas da Renascença e do Iluminismo, que propunham uma total ruptura entre a Antiguidade e uma Idade das Trevas. Como afirma a autora, “Resistir aos efeitos posteriores desses paradigmas permite que os estudiosos levem a sério a compreensão e a autoapresentação dos cidadãos do Império Romano medieval (NEVILLE, 2018, p. 6, tradução nossa). Império Romano quando se tornou cristão, criando uma ruptura ilusória que não

Acreditamos que o bizantinista e o estudante diligentes pecarão gravemente se não tiverem esse guia ao lado de outras obras de referência já consagradas. Ademais, tendo em mente a escassez de pesquisas sobre essa civilização romana oriental, helefóna e cristã ortodoxa no Brasil, algo que se reflete também na inexistência de traduções, desde as mais básicas a trabalhos importantes publicadas nos últimos anos, consideramos que esse trabalho pode oferecer uma aproximação às fontes historiográficas bizantinas e a um grande apanhado de referências que trarão aos pesquisadores mais confiança para darem o primeiro passo na preparação de seus projetos, ajudando, portanto, a superar parte do que poderia ser uma dificuldade inicial.

Notas

2. Leonora Neville é atualmente John W. and Jeanne M. Rowe Professor of Byzantine History e Vilas Distin-guished Achievement Professor na University of Wincosin-Madison, nos Estados Unidos.

3. Cf., por exemplo, KALDELLIS, 2007, 2019 (o principal revisionista quanto a essa questão); PAGE, 2008; STOURAITIS, 2014; 2017. Diversos autores tem partido dessa perspectiva, incluindo NEVILLE, 2012. As implicâncias de se assumir uma identidade romana para os “bizantinos” e as dimensões da mesma ainda é uma questão em debate, envolven-do não somente perspectivas teóricas, mas interpretações distintas.

4. Para uma boa exposição quanto a esse problema, cf. KALDELLIS, 2019, p. 3-37.

Referências

Obra completa

KALDELLIS, A. Hellenism in Byzantium: The Transformations of Greek Identity and the Reception of the Classical Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

______. Romanland: Ethnicity and Empire in Byzantium. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2019.

TREADGOLD, W. The Early Byzantine Historians. New York: Palgrave Macmillan, 2007.

______. The Middle Byzantine Historians. New York: Palgrave Macmillan, 2013.

NEVILLE, L. Authority in Byzantine Provincial Society, 950–1100. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

______. Anna Komnene: The Life and Work of a Medieval Historian. Oxford: Oxford University Press, 2016.

______. Guide to Byzantine Historical Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

______. Heroes and Romans in Twelfth-Century Byzantium: The Material for History of Nikephoros Bryennios. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.

PAGE, G. Being Byzantine: Greek Identity Before the Ottomans. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

Artigos

STOURAITIS, I. Roman identity in Byzantium: a critical approach. Byzantinische Zeitschrift, [s.l.], v. 107, n. 1, p. 175-220, 2014.

______. Reinventing Roman Ethnicity in High and Late Medieval Byzantium. Medieval Worlds, Vienna, v. 5, p. 70-94, 2017.

Guilherme Welte Bernardo –

Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (PPGH/Unifesp), onde realiza pesquisa intitulada “Entre a integração e a barbarização: romanos e ocidentais na historiogra-fia bizantina dos séculos XI e XII” sob orientação do Prof. Dr. Fabiano Fernandes. Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos Bizantinos e Conexões Mediterrânicas (NEB) e ao Laboratório de Estudos Medievais (Leme/Unifesp). E-mail para contato: g.welte@outlook.com.


NEVILLE, L. Guide to Byzantine Historical Writing. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. Resenha de: BERNARDO, Guilherme Welte. A escrita da História numa outra Idade Média: Descobrindo a Historiografia Bizantina (600-1490). Revista Ágora. Vitória, n.30, p.210-215, 2019. Acessar publicação original [IF].

Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos | Adriana P. Campos, Kátia S. da Motta, Geisa L. Ribeiro e Karulliny S. Siqueira

Organizado por Adriana Pereira Campos, Geisa Lourenço Ribeiro, Karulliny Silverol Siqueira e Kátia Sausen da Motta, a obra “Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos”1 traz consigo um relevante debate acerca da multiplicidade de relações existentes no Brasil oitocentista. A contribuição de dez autores para a realização do livro, objetivou diversificar a história política do Império, por meio da inclusão de províncias e atores políticos variados. Assim, trazendo novo sentido ao contexto imperial. O livro é resultado de debates entre pesquisadores que participaram do III Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 2018.

Ao nos debruçarmos sobre a obra, percebemos a multiplicidade de relações políticas contidas no Brasil Império que formavam um todo na trajetória contextual.

Retirar a lupa somente dos denominados “grandes acontecimentos” e dos principais atores políticos comumente ressaltados na historiografia é também traçar uma história política diversa em estrutura e significados. Neste sentido, a obra analisada percorre entre províncias distintas e personagens políticos ressignificados, promovendo assim, diversas participações para os acontecimentos do período, para além da Corte ou dos “grandes homens”.

Em primeiro momento, a obra contempla a temática “Biografias e trajetórias políticas” expressando a história de personagens políticos do Império que transcendem a historiografia tradicional. Vale ressaltar, a necessidade de colocar em evidência novos personagens políticos, enriquecendo o debate historiográfico com a criação de novos esquemas a serem analisados. Assim, Cecília Siqueira Cordeiro traz a análise do personagem político Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, propondo um novo olhar sob as decisões políticas do liberal que é comumente recordado pela historiografia como o defensor do Brasil na causa da Independência. Rememorando, através da análise de um opúsculo, que num primeiro momento Antônio Carlos defendeu a união de Brasil e Portugal no contexto da emancipação, evidenciando uma mudança de comportamento da figura em momento posterior. Deste modo, a autora não encontra um desarranjo na trajetória política do personagem, todavia, um indivíduo alinhado a cultura política da sua época. Ademais, Cecília Cordeiro traça a trajetória historiográfica da figura deste Andrada, e a timidez de sua relevância diante de seus irmãos José Bonifácio e Martim Francisco.

A autora Adriana Pereira Campos, conduz em sua pesquisa a trajetória política de Marcelino Duarte, um padre, redator e natural da Província do Espírito Santo que foi uma das vozes exaltadas que entoaram na Corte. A análise da historiadora revela a carreira de um padre exaltado cujo pensamento político se distinguia da cultura política de sua província natal. Assim, o estudo de Campos contribui para o debate acerca do pluralismo de opiniões que circulavam nas províncias do Império e a relação que esses indivíduos possuíam com o Rio de Janeiro.

Na segunda parte da obra, intitulada “Disputas políticas e partidárias”, contemplam-se as efervescências política na Corte e nas províncias. Logo, Rafael Cupello Peixoto, debruçado sob o tema da construção da identidade nacional brasileira, investiga a Carta de Barbacena, representada no passado como símbolo da nacionalidade brasileira, ou seu valor profético acerca do resultado da conjuntura política do Primeiro Reinado.

Indicando aspectos do jogo político no entorno da Corte Palaciana de Pedro I, a análise da fonte indicou ao autor duas tendências da direita conservadora dentro dos áulicos: os tradicionalistas e os conservadores. Ademais, Peixoto expõe cada vertente e o jogo político da época.

Ampliando a escala para o Maranhão, Roni César de Araújo dedica-se ao estudo da construção da identidade brasileira naquela província, compreende, através da análise de periódicos, que o “novo espírito”2 do Brasil chegou naquela localidade em momento posterior à Corte. Neste sentido, Araújo expõe que o antilusitanismo alcançou a imprensa da província em 1825, sendo precedido pela fidelidade ao governo português. Além disso, explica as relações de conveniências expressas na região.

A terceira parte da obra abarca o “Sistema representativo e práticas políticas”, destacando a dinâmica das eleições no Império, pondo em relevância a pluralidade existente no período, no momento em que destaca a realidade do processo eleitoral em algumas províncias. Assim, Rodrigo Marzano Munari salienta a participação popular no sistema representativo em São Paulo. O autor questiona a visão de passividade da população menos abastada da sociedade imperial. Estes indivíduos, em sua perspectiva, se configuravam como atores políticos envolvidos por vontades próprias, interferindo e agindo no processo eleitoral. Ademais, Munari chama atenção para um outro olhar que a sociedade possuía acerca do sistema representativo, pois, além do voto, participavam do processo por meio de petições, queixas ou até mesmo se armando contra a vontade dos poderosos.

Ana Paula Freitas traz em sua investigação o papel da província de Minas Gerais na estruturação do Estado Nacional, considerando a importância da participação dos deputados mineiros na Reforma Eleitoral de 1855. Deste modo, a autora destaca a importância do parlamento brasileiro no sistema representativo, ressaltando a trajetória do tema até sua aprovação. Assim, analisando os resultados da reforma no ano posterior a sua aprovação, Freitas conclui que a Lei de Círculos resultou na pluralidade do parlamento e ampliou a sua representatividade.

Trazendo o debate acerca da representação no Império brasileiro, Kátia Sausen da Motta expõe de que maneira se configurava o período pré-eleitoral e as relações entre votantes e aspirantes aos cargos políticos na Província do Espírito Santo. Revelando aspectos eleitorais da época e a particularização da localidade, a autora demonstra o empenho dos candidatos e suas estratégias para garantir a vitória no pleito. Neste sentido, salienta a utilização de chapinhas nos jornais da província com o intuito de divulgar as candidaturas.

Aproximando a escala para o Nordeste, Williams Andrade de Souza constrói a sua análise através da eleição de vereadores na Câmara Municipal de Recife na primeira metade do século XIX. O autor expõe o perfil dos candidatos e votantes, suas filiações e a representatividade emanada no município. Assim, Souza apresenta o processo eleitoral para além da manutenção das elites, manifestando as peculiaridades e os desvios do processo, propondo uma complexidade de compreensão ao tema, revelando a participação de cidadãos comuns de forma ativa no movimento. Além disso, evidencia o processo da ampliação de votantes no período e a heterogeneidade presente nos pretendentes aos cargos.

A quarta parte da coletânea se intitula “Linguagens e ideias políticas”, abordando especificamente os momentos finais do Império, debatendo a linguagem da propaganda republicana na Província do Espírito Santo e as discussões acerca da escravidão na localidade, por meio da imprensa local. Deste modo, Karulliny Silverol Siqueira traça a trajetória do republicanismo no século XIX, explicando seus diversos significados, sua heterogeneidade em práticas e de recursos linguísticos. Dessa maneira, a autora traz a especificidade da província do Espírito Santo, onde o radicalismo dificilmente aflorava, trazendo o significado do republicanismo primeiramente ao municipalismo, onde os redatores de Cachoeiro de Itapemirim reclamavam a centralidade dos monarquistas na capital da localidade.

Por fim, Geisa Lourenço Ribeiro esboça a linguagem da abolição no periódico O Constitucional, pertencente ao Partido Conservador na província. A autora propõe a revisão da retórica do jornal, pois, embora o discurso de benevolência ao fim da escravidão, a trajetória linguística do O Constitucional revelaria o contrário, expondo um abolicionismo de última hora, por conveniência. Assim, o estudo da fonte indicou uma trajetória escravista no idioma da folha, e que no fim buscou trazer para o Partido Conservador o advento da emancipação. Ademais, expõe a especificidade do abolicionismo na província do Espírito Santo, permeada por uma linguagem imbuída de moderação.

Ao analisarmos a peculiaridade da pesquisa de cada autor, não encontramos uma unidade de relações no Império, entretanto, a multiplicidade de significados políticos no território brasileiro. Esse tipo de historiografia concorda com o aspecto de Max Weber na qual a análise consiste em uma História no sentido variável, onde o indivíduo possui a direção das relações sociais no momento em que configura sua relação com o outro (DIAS; MAESTRO FILHO; MORAES; 2003). Assim, consideramos o estudo das particularidades como o estudo da criticidade sobre as macroestruturas, onde as individualidades, ao se afastarem da realidade como um todo, promoverão, uma compreensão das redes existentes para a formação dessa totalidade.

Neste sentido, consideramos obra de extrema relevância para o debate da cultura política do Império brasileiro. A análise das distintas províncias e os diversos personagens políticos promovem um entendimento dos conflitos existentes para a formação da realidade do território. Essa diversidade de conexões não confunde ou empobrece a História do Brasil Império, todavia promove uma amplitude no debate enriquecendo-o e instigando a possibilidade cada vez mais abrangente de estudo.

referências CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA, Kátia Sausen da; RIBEIRO, Geisa Lourenço; SIQUEIRA, Karulliny Silverol (Org.). Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos. Vitória: Editora Milfontes, 2019.

DIAS, Devanir Vieira; MAESTRO FILHO, Antônio Del; MORAES, Lúcio Flávio R. O paradigma weberiano da ação social: um ensaio sobre a compreensão do sentido, a criação de tipos ideais e suas aplicações na Teoria Organizacional. Revista de Administração Contemporânea. v.7 n.2, p. 57-71, Abr/Jun. 2003.

LUSTOSA, Isabel. O debate sobre os direitos do cidadão na imprensa da Independência.

In.: RIBEIRO, Gladys Sabina; FERREIRA, Tânia Maria Tavares Bessone (Org.).

Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010.

Notas 1 O livro é resultado de debates entre pesquisadores que analisam o século XIX, cujo objetivo é transitar entre as esferas locais e o nacional. É também o desfecho das discussões ocorridas em outubro de 2018 durante o III Simpósio Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO), ocorrido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2 O autor elucida que o termo destacado foi estudado por Isabel Lustosa, quando esta tratava do tema na imprensa fluminense, cujo significado expressava às “expectativas sobre a nova Ordem”. Cf. LUSTOSA, 2010.

Drlely Neves Coutinho – Graduada em História pela Faculdade Saberes. Aluna Especial de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:drielynevescoutinho@gmail.com.


CAMPOS, Adriana Pereira; MOTTA, Kátia Sausen da; RIBEIRO, Geisa Lourenço; SIQUEIRA, Karulliny Silverol (Org.). Entre as províncias e a nação: os diversos significados da política no Brasil do oitocentos. Vitória: Editora Milfontes, 2019. Resenha de: COUTINHO, Drlely Neves. As províncias formam um Império: a pluralidade das relações políticas no Brasil oitocentistas. Revista Ágora. Vitória, v.31, n.1, 2019. Acessar publicação original [IF].

 

Educação e Direitos Humanos: perspectivas e desafios | Escrita da História | 2019

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), assegura os direitos fundamentais de todos os seres humanos – independentemente da etnia, das escolhas religiosas, do gênero, da classe etc. –, por meio de um corpus articulado às Constituições dos diferentes Estados nacionais. Dessa forma, o ensino e a educação eram considerados instrumentos de promoção das garantias e do respeito às liberdades afiançadas por esta Declaração. Duas décadas depois, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou a Convenção Americana de Direitos Humanos, que tinha como propósito respeitar os direitos e as liberdades dos cidadãos dos países-membros da OEA. Dentre as recomendações estabelecidas estava que os Estados membros deveriam promover a educação, a ciência e a cultura como uma forma de fundamentar a democracia e o pleno desenvolvimento social e econômico.

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 garante o direito ao ensino e à educação e assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a arte e o saber. Apesar de a educação ser um direito humano assegurado nacional e internacionalmente, ela não está protegida de ataques constantes advindos de grupos reacionários. Nos últimos anos, determinados setores sociais lançaram uma agenda conservadora com o propósito de moralizar e destruir o sistema educacional brasileiro. Com o atual governo autoritário, estes grupos aumentaram seus ataques ao ensino nacional. Leia Mais