The restless clock: a history of the centuries-long argument over what makes living things tick | Jessica Riskin

The restless clock ( Riskin, 2016 ) é a mais recente obra da historiadora das ciências Jessica Riskin, professora da Universidade de Stanford e autora também das obras Science in the age of sensibility (2002) e Mind out of matter (2007). O presente livro analisa cinco séculos de intensos debates sobre agência: a capacidade intrínseca de qualquer entidade, seja ela humana ou não humana, de agir no mundo. A autora mostra como a emergência de santos, demônios, divindades gregas e criaturas autômatas no fim da Idade Média e a visão mecanicista de mundo do realismo cartesiano no século XVII originaram um dos maiores problemas ainda sem solução no âmago da ciência moderna: o das origens da vida e do movimento das coisas.

São variados os personagens dessa longa viagem pelos meandros do debate sobre agência: relojoeiros, autômatos, médicos, filósofos, matemáticos, engenheiros, androides, biólogos, teólogos, geneticistas, robôs, só para mencionar alguns. As máquinas são personagens ativos nessa história, favorecendo com suas presenças materiais e seus movimentos, em meio a olhares de espanto, admiração e curiosidade, a emergência de uma série de análises e debates sobre as origens da inteligência, dos movimentos, da fisiologia dos seres vivos, entre outros. Questões que permeiam esses debates são: a origem dos movimentos está em uma agência externa ao mundo (regida por um designer divino, por exemplo)? A origem dos movimentos e da vida está na própria natureza (sendo o mundo composto por entidades que possuem agência)? Ou os movimentos do mundo exibem uma agência aparente, mas são regidos por aleatoriedades? Leia Mais

O esporte em tempos de exceção: práticas desportivas e ações políticas durante as ditaduras na América Latina no século XX / Cantareira / 2019

Sem abrir mão da interdisciplinaridade, o presente dossiê procura analisar os estudos sobre o esporte – e, de forma mais específica, sobre o futebol – existentes em tempos de exceção, durante as ditaduras na América Latina, no século XX. A história do esporte já superou a ideia de que seu campo de estudo pertencia, primordialmente, aos profissionais ligados exclusivamente à sua prática ou ao estudo delas, como os atletas e profissionais da educação física. O presente dossiê, nesse sentido, compreende o esforço de estimular e reunir trabalhos que trazem reflexões sobre a diversidade cultural de um fenômeno que, cada vez mais, requer diferentes campos de saberes para sua a compreensão. Antropólogos, sociólogos e posteriormente historiadores vêm, pelos menos desde a década de 1970, debruçando pesquisas sobre as práticas esportivas e suas ações culturais e políticas, bem como a maneira como essas ações se relacionam com o momento político vivido.

Revisitar o tema das relações entre esporte e os períodos ditatoriais durante o século XX, na América Latina, é, ao mesmo tempo, um desafio e um tema necessário. O Brasil, por exemplo, vivenciou durante 21 anos, um regime de exceção, marcado pela violência política e repressão às ações culturais, políticas, sociais e também esportivas, que impediam que a população se manifestasse e agisse livremente conforme seus desejos de expressão. Assim como diversos outros países da América Latina passaram por golpes e regimes que interromperam a experiência democrática e realizaram inúmeras ações autoritárias.

O cotidiano ditatorial tinha reflexos diretos nas ações esportivas e na vivência de clubes, atletas e torcedores desses países, impondo à eles uma nova realidade e a necessidade da criação de novas maneiras de expressão, manifestação e resistência para aqueles que discordavam da forma como o governo levava a cabo suas ações e eram, portanto, alvo de suas medidas repressivas. Nessas sociedades, marcadas pela ambivalência que nos fala Pierre Laborie, havia também aqueles que concordavam e apoiavam as práticas do governo, e tais indivíduos circulavam também no universo esportivo, fazendo ouvir suas propostas e pensamentos. Sejam dirigentes, técnicos, profissionais, atletas ou torcedores, muitos indivíduos compactuavam com a premissa ideológica do regime e, através do esporte, tinham sua voz ouvida.

Atualmente, a temática do esporte e a necessidade de discussão sobre o período de exceção que o Brasil e outros países latino-americanos vivenciaram ao longo do século XX estão presentes em diversos debates dentro e fora da academia; dessa maneira, se faz necessário abrir espaço nesse periódico acadêmico para que essas discussões tenham lugar de se realizar.

Os artigos que compõem este dossiê trouxeram à tona diversas temáticas e manifestações, que vão desde movimentos torcedores, como é o caso da Raça Rubro-Negra, do clube de Regatas do Flamengo, até ações mais diretas do governo, através de símbolos, como músicas e ações políticas mais diretas que visavam, grosso modo, conseguir o consenso através do esporte. Sendo assim, faz-se um convite aos leitores para uma imersão no mundo do futebol brasileiro em tempos de ditadura, possibilitando a percepção das continuidades e rupturas daquele momento do esporte para aquele que vivenciamos hoje, em tempos democráticos.

Encerrando esta edição e procurando percorrer um momento da história brasileira marcada por uma política de exceção, apresenta-se a entrevista com o ex-jogador de futebol Afonso Celso Garcia Reis, de codinome Afonsinho. Verifica-se, a partir de sua fala, que sua ação é um exemplo de que a repressão recaía sobre profissionais do esporte que se posicionavam um pouco mais à esquerda – ou que, pelo menos, não compactuavam abertamente com as práticas do regime. Afonsinho foi perseguido primeiramente pelo uso de uma barba considerada fora dos padrões da época, que, segundo ele, era apenas pretexto para cerceá-lo em função de seus posicionamentos políticos mais amplos e, posteriormente, tido como símbolo de luta quando da sua busca pelo fim do passe – instrumento que determinava a posse do jogador ao time de futebol para o qual atuava. Boa leitura!

Nathália Fernandes – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense.

Aimée Schneider – Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense.


FERNANDES, Nathália; SCHNEIDER, Aimée. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.31, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v. 9, n. 2, jul./dez. 2019.

(1-6) Sumário e apresentação

  • Carmen Rita Guimarães Marques de Lima, Paulo Henrique Goliath e Raquel Martins Melo Pinheiro Aquino de Oliveira

ARTIGOS

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

ENTREVISTA

FALE PARA O PROFESSOR

Arqueología Histórica Argentina y Latinoamericana. Buenos Aires, v.1, n.13, 2019.

Vol. 1 Núm. 13 (2019): Zooarqueología (Matilde Lanza, editora Invitada)

Editorial

Artículos

Publicado: 2019-07-01

La enseñanza de la historia. Entre viejos y nuevos paradigmas: el estudio de los movimientos sociales desde el Siglo XX como “procesos de construcción social de la realidad” – BRUNÁS; CEJAS (CA-HE)

BRUNÁS, Ana María; CEJAS, Elvira Isabel (comp.). La enseñanza de la historia. Entre viejos y nuevos paradigmas: el estudio de los movimientos sociales desde el Siglo XX como “procesos de construcción social de la realidad”. Córdoba: APEHUN/ Pueblo de la Toma-UNC, 2019. 240 páginas. Resenha de: UNREIN, Sonia. Clío & Asociados. La historia enseñada. La Plata, n.29, p.175-176, Julio-Diciembre 2019.

El libro es producto del Cuarto Simposio de la Asociación de Profesores y Profesoras de Enseñanza de la Historia de Universidades Nacionales (APEHUN) y la co-organización del Departamento de Historia y con el aval de la Facultad de Humanidades y del Centro de Prácticas y Resistencia UNCa., Entre viejos y nuevos paradigmas: el estudio de los movimientos sociales desde el Siglo XX como “procesos de construcción social de la realidad”. En dicha edición se ofrece la publicación de tres ensayos, dos narrativas y diez propuestas de enseñanzas con la finalidad de profundizar estudios, repensar concepciones y socializar nuevas apuestas historiográficas en relación a los movimientos sociales en Argentina y América Latina con el objetivo de conocer nuevas lentes para ser trabajadas en las aulas de los distintos niveles educativos.

Los ensayos que integran la primera parte de esta publicación proponen un recorrido en torno a las nuevas modalidades sociales desarrolladas en nuestro país en los últimos veinte años, el primero refiere al movimiento indígena originado a partir de la lucha por la transformación de la Educación Intercultural Bilingüe, Paula Karina Carrizo Orellana analiza el caso protagonizado por el pueblo Wichi de Misión Chaqueña contrastándolo con organizaciones sociales de otros pueblos de Salta en lucha por obtener una ley de educación intercultural que incorpore contenidos y abordajes de enseñanzas comunitarios y ancestrales desde una perspectiva regionalizada. El segundo trabajo presentado por Elvira Cejas y Ezequiel Sosa aborda los cambios y continuidades en las estructuras internas de los movimientos sociales desde los años 90´ hasta la actualidad, focalizándose en los protagonistas y sus demandas analizan los conflictos colectivos y el engranaje movilizante de los Movimientos Sociales en Argentina reconociéndose el carácter innovador en el modo de organización. El último ensayo de Eduardo José Hurtado aborda la movilidad social local de Río Cuarto, examinando su origen, los actores sociales y su relación con el poder institucional caracteriza las formas de movilización surgidas luego de la crisis del 2001 haciendo foco en cómo se pone en tensión lo instituido en torno a la movilidad política para crear nuevas formas de canalizar demandas concretas.

Desde el formato narrativo se relata la puesta en escena de dos secuencias didácticas poniendo la mirada a lo que sucede en clase con los estudiantes, David Checa “a los cien años de la Reforma Universitaria” propone indagar las significaciones que se suceden en torno a aquellas voces acalladas y libertades que han quedado pendientes en otros lugares, reflexiona cómo el acceso a una educación laica, gratuita y de calidad ha posibilitado otras oportunidades. Por otra parte, Arturo Dábalo pone bajo la lupa su experiencia personal en torno al tema “De Zapata al Zapatismo”, la aplicación de su propuesta pone en tensión el conocimiento histórico que se enseña en las aulas invitándonos a deconstruir roles y visibilizar otros modos aprender que demandan los estudiantes.

En cuanto a las propuestas de enseñanza se abocan en profundidad a la conceptualización de los Nuevos Movimientos Sociales (NMS), bajo esta perspectiva Miguel Jara, Erwin Parra y Alicia Garino plantean la relevancia de introducir en la enseñanza escolar nuevas perspectivas y conceptos, indagando los cambios y permanencias que configuran los conflictos sociales para reconocer las particularidades de las nuevas protestas que emergen en América Latina en el siglo XXI; enmarcadas en la reacción contra el neoliberalismo. Desde la metodología estudio de caso proponen una mirada histórica del movimiento de mujeres en Argentina interpretando el plano material de la protesta para visibilizar la opresión social generada por el sistema patriarcal, machista y capitalista. En este contexto, Marcelo Andelique, Lucrecia Álvarez y Mariela Coudannes caracterizan al actual movimiento social de mujeres en el marco de la cultura patriarcal, señalando a la conflictividad de género como un problema social relevante que requiere de tratamientos y abordajes metodológicos desde situaciones reales para reflexionar y poner en tensión opiniones y argumentaciones desde posicionamientos fundamentados.

También con la metodología estudio de caso, Matías Druetta, Violeta Ehdad y Rocío Sayago proponen habilitar espacios de debates en torno a la acción política de las mujeres en Argentina y América Latina en lucha por la privatización del agua en el año 2000 en Cochabamba y el conflicto piquetero en las localidades de Cutral Có y Plaza Huincul en 1997, reflejando la participación política de las mujeres desde lo vivencial En sintonía con esta metodología de abordaje, Beatriz Angelini, Susana Bertorello y Silvina Miskovski toman al movimiento social “Asamblea Río Cuarto sin agrotóxicos” como caso testigo en la región para dar cuenta de las nuevas expresiones que surgen en resistencia al modelo productivo agropecuario hegemónico extractivista, desde problemáticas ambientales en territorio proponen la investigación participativa como modo de fortalecer procesos de aprendizajes y la participación ciudadana. Verónica Huerga, María Laura Sena y Ana María Cudmani sugieren darle centralidad al caso del ex ingenio azucarero San José y así plantear un acercamiento a la situación vivida por los obreros, los propietarios y los movimientos sociales en la industria azucarera de Tucumán, a partir de instrumentos de la historia oral indagan el devenir de la movilidad social a escala regional. Otro aporte desde una mirada regional es presentado por Ana María Brunás, David Checa y Evelin Gutiérrez, acerca de los movimientos que emergen en Catamarca entre gobiernos de facto y democráticos desde una mirada “de abajo” proponen revertir el tratamiento de estas temáticas en el aula con el propósito de educar para la memoria. La última presentación referida a los NMS es formulada por Nancy Aquino, Desirée Toibero y Romina Sánchez haciendo foco en dos estudios de caso, en Bolivia y Argentina, proponen visualizar tensiones y los desafíos de estos movimientos en las democracias latinoamericanas, a partir de preguntas proponen abordar la noción de conflicto y con una diversidad de recursos apuestan a promover un pensamiento crítico y una ciudadanía activa.

Desde la enseñanza en clave comparada se presentan propuestas que problematizan la participación de las mujeres en perspectiva histórica, Mariano Campilia, Florencia Monetto y Victoria Tortosa abordan la participación de las mujeres en el Cordobazo y su centralidad actual en el movimiento Ni una menos. En esta línea Pedro Juan, Camila Lenzi y Marcelo Sotelino formulan una historización de la trayectoria del movimiento feminista en la Argentina, reconociendo el carácter masivo que asumen en el siglo XXI abordan algunos conflictos sociales que dieron forma al movimiento a lo largo de la historia problematizando aquellas representaciones sociales que fueron legitimando una sociedad desigual.

Para finalizar cabe valorar la iniciativa de brindar claves de aproximación al fenómeno de los movimientos sociales como herramientas concretas para repensar propuestas de enseñanza que favorezcan nuevos procesos de aprendizaje de la Historia, contribuyendo a formación de sujetos de derecho desde el ejercicio de una ciudadanía responsable. Estos espacios de producción e intercambio creados por APEHUN, permiten conocer, debatir y socializar distintos escenarios que surgen de la práctica… estos innovadores aportes resultan necesarios para mejorar enseñanzas y aprendizajes en los distintos niveles del sistema educativo.

Sonia Unrein – Universidad Autónoma de Entre Ríos. E-mail: soniaunrein@gmail.com

Acessar publicação original

Crítica (y reivindicación) de la universidad pública – MÍGUEZ (CA-HE)

MÍGUEZ, Eduardo. Crítica (y reivindicación) de la universidad pública. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018. 177 p. Resenha de: FERRERO, Maximiliano. Clío & Asociados. La historia enseñada. La Plata, n.29,  p. 172-174, Julio-Diciembre 2019.

A 100 años de la Reforma Universitaria, un ensayo como el publicado por el historiador Eduardo Míguez, adquiere especial relevancia para repensar los problemas del sistema universitario argentino, no sólo por el proceso de revisión crítica que demanda toda conmemoración centenaria, sino también porque el autor escribe desde un punto de vista capaz de amalgamar su trabajo como docente e investigador a su amplia experiencia en cargos de gestión y evaluación universitaria. El objetivo del texto podría resumirse en analizar los problemas estructurales que atañen a la educación superior universitaria y esbozar además algunas propuestas que aporten a la superación de los mismos. Lo cual exige elevar la mirada, más allá de la situación de cada universidad particular.

La pregunta fundamental que motiva los siete capítulos del texto es si la universidad pública argentina se encuentra en crisis. La respuesta, antes de decantarse por un sí o por un no, se tiñe con una paradoja: por un lado, si consideramos que desde 1984 la universidad pública ha experimentado un crecimiento en calidad y cantidad (aumento del presupuesto, del número de instituciones de enseñanza universitaria, de la diversidad de la oferta académica de grado y posgrado y del número de estudiantes), deberíamos orientarnos a responder que no. Por otra parte, el conjunto del sistema se ha ido rezagando en comparación a los principales países del globo, y ha dejado de ocupar el lugar de preeminencia que ostentaba en el contexto de América Latina. Por esta razón, Míguez sostiene sobre la universidad argentina que “aunque no puede decirse que esté en crisis, es una universidad para el subdesarrollo” (p. 10), donde “subdesarrollo” sugiere más una mala utilización de recursos humanos y financieros, antes que la carencia de los mismos. Este es, tal como lo declara el autor, el tema central del libro. El desafío es entonces, generar un debate que permita apartar la universidad argentina del círculo del subdesarrollo, o bien, pensar cómo devolver a la universidad pública el papel fundamental que debe tener como motor del desarrollo social y material de la Argentina.

El primer capítulo se titula “Marco Institucional. Gobierno, gestión e infraestructura de la universidad pública. Los límites de la reforma” y reflexiona sobre los mecanismos de conducción de la universidad y de su vida política interna. Para comenzar, Míguez identifica la reforma de 1918 como el momento fundacional de la universidad moderna argentina; acontecimiento que ha devenido ya en mito. “Mito” porque ella guarda “la base simbólica de nuestra estructura universitaria” (p. 29). Así, el autor deja en claro que, si bien la estructura universitaria actual no se corresponde con la que emergió de la reforma, sí guarda algunos rasgos cristalizados alrededor del gobierno tripartito, esto es, la participación de los diferentes estamentos universitarios en los órganos de gobierno. Cabe señalar que, hasta 1983, fueron escasas las etapas en que la vida institucional de las universidades se rigió por los principios de la reforma y que las instituciones derivadas de la misma fueron modificándose y adaptándose a diferentes procesos históricos, por lo cual es difícil hallar un contenido preciso en las mismas. Por otra parte, la reforma, en tanto movimiento, respondió a condiciones específicas de la universidad argentina, de ahí que su significado haya sido diferente en Córdoba, Buenos Aires, La Plata o Santa Fe.

Dos son, a nuestro entender, los aportes centrales de este primer capítulo: en primer lugar, la revisión del concepto de autonomía. Al respecto, el autor manifiesta su acuerdo con el principio según el cual las universidades necesitan un mayor grado de autonomía con relación al resto de las dependencias públicas, ya que depender de otros organismos del Estado restringiría la libertad necesaria para garantizar la pluralidad y el dinamismo que demanda una institución universitaria. No obstante, la autonomía se enmarca en las leyes y el presupuesto nacional, lo que lleva al autor a plantear el problema del equilibrio entre la libertad de las universidades y su responsabilidad ante los poderes de la sociedad civil, o como sostiene Míguez, “[E]l punto a considerar, entonces, es más bien el de los límites de la autonomía” (p. 30). Esto implica, siguiendo el razonamiento del autor, poner atención en dos aspectos: por un lado, la agenda de temas que deberían incluirse en una política general para el sector universitario y por otro, los mecanismos para la puesta en práctica de decisiones que afecten a todo el sistema universitario. Esta última cuestión adquiere particular relevancia ya que prácticamente no existen políticas centrales diseñadas para el conjunto de las universidades. De esta forma, Míguez propone como ejemplo la posibilidad de que un organismo – que deberían componer las universidades – fijara criterios generales y límites a las ofertas de carreras, a fin de evitar que instituciones cercanas repitan ofertas de carreras con limitada demanda. Finalmente, concluye respecto del concepto de autonomía que “limitar la autonomía de las universidades en temas como la oferta académica no implica avasallar su libertad, sino racionalizar y optimizar el uso de recursos públicos” (p. 31). Otro aporte central de este capítulo es el neologismo de “confedero-feudalismo” para describir la estructura política de las universidades, constituidas como federaciones de facultades en donde siempre reaparecen tensiones concernientes a las acciones centralizadas de la universidad y las que llevan a cabo las facultades.

En el siguiente capítulo, el autor esboza algunas consideraciones sobre políticas y criterios de funcionamiento de las universidades dando primordial importancia a la cuestión de la gratuidad, que identifica como “un tradición de raíces sólidas” (p. 56). Al respecto, el autor identifica que existe un amplio consenso en la sociedad argentina, y explica que por ello, toda educación universitaria pública de calidad no podrá ser garantizada sobre la base del arancelamiento. A partir de aquí, Míguez analiza otras cuestiones sobre las que no existe un consenso tan generalizado. Tal es el caso de los mecanismos de ingreso a la universidad, tema que no deja de despertar alguna polémica. El sistema universitario impone a sus ingresantes ciertas restricciones desde la exigencia de capacidades y recursos (intelectuales y materiales), por lo que el principio del ingreso irrestricto tiende a convertirse en una consigna poco realista; en la práctica, muchas veces, “encubre un sistema de selección costoso y cruel” (p. 68), luego traducido como desgranamiento. Atender a este fenómeno desde un punto de vista equitativo implicaría pues, “dar la mayor oportunidad posible para aquellos que no muestran aún las capacidades necesarias, las adquieran” (p. 67), esto es, generar instancias de aprendizaje para quienes no poseen los conocimientos y habilidades que requiere el ingreso a la universidad. Repensar y mejorar la articulación con la escuela media debería permitir que las capacidades educativas de la universidad repercutan de manera más profunda en sus contextos sociales y en la educación en general, por ejemplo, contribuyendo a la mejora de la formación de los docentes de la escuela secundaria, frecuentemente formados en institutos superiores dependientes de las provincias y disociados de las universidades.

Si bien los capítulos restantes del texto están dedicados a analizar temas diversos como el rol de las universidades privadas en el sistema universitario argentino, así como también cuestiones de programación académica (el alargamiento de las carreras), nos interesa aquí, referirnos brevemente a las palabras del autor sobre dos actividades sustantivas: la docencia y la investigación. En cuanto a la primera, Míguez sostiene que el promedio de pos graduación de los docentes universitarios sigue siendo bajo y que en los últimos quince años, no ha variado el hecho de que en la mayoría de las universidades de gestión pública, predominan ampliamente las dedicaciones simples. De hecho, el sistema universitario posee un 12,2% de su planta docente con dedicaciones exclusivas, mientras que el parámetro internacional opera con docentes full time. Estos dos rasgos se vinculan indefectiblemente con otro, característico de nuestro sistema: la estructura de cátedra. En general, los cargos con altas dedicaciones se encuentran concentrados en las jerarquías docentes más amplias, dejando poco espacio para que los auxiliares en formación puedan dedicar más tiempo a las actividades académicas. A continuación, Míguez analizará otros problemas como por ejemplo, la relación entre la docencia y el régimen de CONICET que permite que los investigadores puedan eludir la función docente. Finalmente hará algunas referencias al nivel de los salarios docentes y las cuestiones derivadas de las incompatibilidades, que establecen techos rígidos para quienes se dedican exclusivamente a la docencia.

La marca de la investigación como actividad sustantiva es “el divorcio entre la creación y la enseñanza” (p. 123). En este parágrafo, Míguez atiende especialmente a la relación entre investigación y docencia y a los impactos que, sobre dicha relación, han tenido las políticas de los últimos quince años. Al respecto, concluye que la Argentina ha ido desarrollando un sistema particular en el que la universidad va dejando de lado la investigación, al tiempo que ésta va centralizándose en una única institución, el Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Dos razones fundamentales coadyuvan a este fenómeno: la implementación de políticas que tienden a alejar a los investigadores de la docencia y el persistente déficit de docentes de tiempo completo. En esta área, la universidad posee como desafío asumir la “investigación como condición necesaria para mejorar la calidad del conjunto de la labora universitaria” (p. 131).

Maximiliano Ferrero – Universidad Nacional del Litoral.

Acessar publicação original

 

 

Formación inicial de profesores en enseñanza de la historia en Argentina y Brasil – CUESTA (CE-HE)

CUESTA, Virginia. Formación inicial de profesores en enseñanza de la historia en Argentina y Brasil. La Plata: UNLP, 2019. 223 p. Resenha de: CORNEJO, Luciana. Clío & Asociados. La historia enseñada. La Plata, n.29, p. 170-171, Julio-Diciembre 2019.

Virginia Cuesta en su libro Formación inicial de profesores en enseñanza de la historia en Argentina y Brasil, reanuda las discusiones que formaron parte de su tesis doctoral y nos ingresa al estudio de un tema poco investigado como es la formación inicial del profesorado de historia desde un punto comparativo entre ambos países. Dicho trabajo está organizado en dos partes, la primera, reúne los capítulos 1, 2 y 3, formulando una vista panorámica de la discusión sobre la enseñanza de la historia en Brasil y Argentina. La segunda, comprende los capítulos 4 y 5 donde se observa cómo toman forma las discusiones en los programas de estudio de las materias vinculadas a la enseñanza de la historia y en las miradas de los docentes formadores. En este sentido, el primer capítulo comienza con una revisión de diferentes estudios y autores, el debate sobre la conceptualización, funciones y usos de las didácticas generales, didácticas específicas y didácticas de la historia. Así, al contraponer las diferentes posturas, se vislumbra una generalidad y es que tanto la didáctica general como la didáctica de la historia se nutren y enriquecen mutualmente. Cuesta, luego de plantear la discusión teórica, retoma el termino enseñanza de la historia como sinónimo de didáctica de la historia, y analiza como es presentada de forma heterogénea en Brasil y en Argentina, ya que puede ser entendida para los académicos como parte de “un conjunto mayor compuesto por el resto de las didácticas específicas y la didáctica general, y para otros, como parte de la ciencia histórica” (p. 29). Por último, se examina el aporte de los estudios de la didáctica de la historia en Alemania y España y el papel del código disciplinar de la didáctica de la historia, estos mismos, son entendidos como grandes aportes a nuestras teorías y su análisis sirve para comprender nuestro corpus documental.

En el segundo capítulo, se presenta el estado de producción en enseñanza de la historia destinada al nivel secundario en Argentina y Brasil, siendo organizado en dos partes, la primera, recorre los años 1980 y 1990, la segunda, abarca las dos últimas décadas. En la primera parte, en Brasil, la década del 80 será entendida como un punto de quiebre en la transformación de los centros de interés ligados a la teoría y práctica historiográfica, en estos años la comunidad educativa organizó una serie de asociaciones de carácter científico que fueron ganando legitimidad a través del tiempo. Este conjunto de docentes e investigadores enfocó sus trabajos para propiciar prácticas de enseñanza que incorporen diversas características como: el tratamiento de la multitemporalidad, el énfasis de las relaciones pasado-presente, la interdisciplinariedad, los múltiples puntos de vista, la utilización de variedad de fuentes, la deconstrucción de mitos nacionales, el uso de ejes temáticos y el abandono de la periodización tradicional de corte marxista. En el caso argentino, la renovación de conocimiento académico es más visible en los años 90, además, la reforma educativa puso en agenda la evidencia de la necesidad de discutir y renovar los contenidos de la enseñanza de la historia. De esta manera, se observa en los docentes e investigadores la preocupación por el análisis de los textos sumado a una rigurosidad en la actualización historiográfica, en contraparte, se dejaron de lado los usos y mediaciones de los materiales en el aula. En la segunda parte, al analizar la producción de las últimas décadas en ambos países, se mencionan una serie de líneas de estudio. Estas son: estudios sobre narrativas y conciencia histórica, la educación patrimonial referida a la memoria e historia en los museos, la temática indígena en detrimento de las concepciones eurocéntricas, la presencia de África en la historia escolar y el uso de las nuevas tecnologías como es el caso de juegos de simulación digital.

En cuanto al tercer capítulo, la autora expone el recorrido de la formación del profesorado de historia en Argentina y Brasil, teniendo en cuenta el análisis de las propuestas y las miradas de los docentes formadores. Para esto, Cuesta trabaja una amplia bibliografía en que organiza en dos etapas, por un lado, la década del 90, por el otro, las últimas décadas. En la primera parte, en los años 90 en Brasil surgieron preocupaciones sobre la dicotomía bacharelado-licenciatura. En este caso, los especialistas creían necesario integrar a los historiadores y pedagogos en la elaboración de un proyecto común que atienda a las especificidades de la enseñanza de la historia, además, las clases de historia deberían ser un espacio de reflexión, crítica y participación, cuyo fin sea el empoderamiento de los estudiantes. Por el lado de Argentina, se observa a través de los diversos estudios expuestos, que en la formación de los profesores no se ofrecen saberes sobre la metodología de la historia, historiografía, didáctica de la historia y práctica profesional. Además, se visualiza una identificación automática entre conocer una asignatura y el saber enseñarla, entendiendo que para ser un buen docente de historia solo hace falta aprender sobre la misma. En la segunda parte, al analizar los estudios del presente, en Brasil la dicotomía bacharelado-licenciatura, permanece como tema recurrente, sumada a la idea que el profesor debe ser un buen investigador. También, una de las constantes repetidas tanto en Brasil como en Argentina, en la formación del profesorado de historia es la adopción del modelo academicista. Sin embargo, existe un real interés de los profesores en formación por demandar un conocimiento pedagógico, el acceso a información sobre el sistema educativo, una actualización disciplinaria en tanto conocimiento de metodologías y estrategias de enseñanza y el aprendizaje y utilización de nuevas tecnologías.

En el cuarto capítulo, se investiga los diferentes programas de las materias destinadas a la formación de la enseñanza de la historia. Para Argentina la autora recorta cuatro universidades ubicadas regionalmente en provincia de Buenos Aires (UNLu, UNGS, UNICEN, UNMdP) y para Brasil el recorte es más limitado siendo únicamente dos universidades (PUC-RS y UEPG). Por consiguiente, analiza los textos introductorios en los programas y observa que, en cuanto a los casos argentinos, existe una heterogeneidad sobre la concepción de la didáctica de la historia, entendida a veces como solapada a la didáctica general y otras veces ampliamente diferenciada. En tanto en los programas brasileros, se encuentran menciones sobre la necesidad de relacionar los conocimientos teóricos y prácticos con la pedagógica, pero dicha relación se resuelve en uno de los casos de forma tradicional y en el otro, en contraposición la didáctica de la historia toma gran relevancia como componente de la formación docente. Luego, esquematiza y estudia a través de una serie de cuadros comparativos cuestiones como: objetivos generales y específicos, temas trabajados en las unidades, análisis de la bibliografía específica sobre didáctica de la historia y las ciencias sociales, cantidad de títulos que componen el campo de la producción en enseñanza de la historia y las ciencias sociales. Entonces, Cuesta concluye con una serie de características que atraviesan las diferentes materias y, en definitiva, al analizar estos programas queda en evidencia que la didáctica de la historia se encuentra presente, pero “disputando territorio con otras que son consideradas más importantes” (p. 153) para la formación del profesorado de historia.

En el último capítulo, la autora cierra su libro otorgándole la palabra a los docentes universitarios dedicados a la formación inicial del profesorado de historia, para esto, lleva a cabo un cuestionario que se realizó en forma escrita, metodología que se entiende como acertada ya que en las respuestas son amplias y reflexivas. En mayor o menor medida los especialistas consultados concluyen que la didáctica de la historia se sitúa en un espacio difuso categorizada en proceso que forma parte de diálogos abiertos de disputas y tensiones, entre otras cuestiones.

En conclusión, el libro ofrece un gran aporte a un problema poco explorado: ¿cómo se comporta el campo de la didáctica de la historia en las discusiones de los investigadores, en los programas, en los puntos de vista de los docentes formadores desde un punto de vista comparativo y regional? Además, a lo largo del libro se encuentran las conexiones entre las discusiones con respecto a la enseñanza de la historia, con el fin de buscar nuevas líneas de indagación que deberán ser atendidas con mayor profundidad en un futuro.

Luciana Cornejo – Universidad Nacional de La Plata. E-mail: cornejo.95.l@hotmail.com

Acessar publicação original

Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica / Ofícios de Clio / 2019

A ascensão de movimentos e pautas conservadoras ao redor do mundo – e, de modo mais específico, intenso e preocupante, no Brasil –, impõe-nos uma série de novos desafios, tais como o enfrentamento de discursos e práticas que buscam deslegitimar os movimentos feministas. A produção e disseminação deliberadas de equívocos, por parte desses movimentos, em torno de conceitos elaborados e já estabelecidos no âmbito dos espaços acadêmicos, sob o argumento de combate a uma suposta “ideologia de gênero”, vêm causando enorme desserviço ao projeto de construção de uma sociedade mais justa e baseada na equidade de gênero. O uso dessa expressão, aliás, demostra desconhecimento sobre temas que integram uma cultura pautada no sexismo, machismo e lgbtfobia, os quais são, historicamente, objetos de sérios e profundos debates teóricos de feministas de diversos países no campo dos estudos de gênero.

As lutas feministas e a produção de saberes em torno das questões de gênero, fundamentais para a redução das diferenças que separam homens e mulheres, para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos intolerante, veem-se ameaçadas por práticas sistemáticas de dissolução de políticas públicas de gênero, pela redução de verbas para as universidades, pelos cortes de bolsas de pesquisa – especialmente para a área das ciências humanas –, pelo questionamento acerca da seriedade e validade das pesquisas, dentre outras formas de deslegitimação do conhecimento. Por isso, é salutar recordar que os avanços conquistados pelas minorias, sejam étnico / raciais, de classe ou de gênero, foram resultado de lutas travadas no passado e que, de forma alguma, estão assegurados. A história está repleta de exemplos de como tais avanços são intercalados por tentativas de retrocesso, muitas vezes alcançados parcial ou totalmente.

A reivindicação por direitos sociais está na raiz do feminismo. No campo acadêmico, sua trajetória também é marcada pela constituição de espaço e visibilidade para as pesquisas nas mais diversas áreas de investigação. Na historiografia, essa observação pode ser melhor compreendida por meio dos estudos de Bonnie Smith (2003). A autora, ao questionar sobre a construção do sujeito masculino como universal, tanto na história como no concernente ao prestígio na escrita acadêmica, tece reflexões que “[…] ajudam a explicar como passamos a exaltar o historiador homem e a menosprezar ou até mesmo suprimir a obra histórica das mulheres” (SMITH, 2003, p. 156).

Não nos compete, para esta apresentação, fazer um levantamento bibliográfico sobre os estudos históricos que versam sobre a história das mulheres, o(s) feminismo(s) e / ou o gênero. Mas é importante destacarmos algumas pesquisas que influenciaram profundamente o campo acadêmico e possuem estreitas relações com as reivindicações de pautas de movimentos sociais de sua época. Michelle Perrot, em “Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros”, de 1988, e mais tarde com “As mulheres ou os silêncios da história” (2005), abriu espaço para investigações que buscaram perceber e valorizar as trajetórias de mulheres na história. Além de inovações teóricas, metodológicas, uso de fontes históricas e levantamentos de novos problemas, as inquietações contribuíram para revisitar e questionar pesquisas já consagradas na área.

Ainda na década de 1980, momento de efervescência dos movimentos identitários, e sob influência do pensamento de Michel de Foucault, Joan Scott sistematizou o conceito de gênero como categoria analítica, definindo-o como “[…] um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e […] uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).

Na década de 1990, com a contribuição dos movimentos LGBT, os estudos de gênero tiveram novas influências. A filósofa Judith Butler apresentou uma série de questionamentos / problemas, que serviram tanto para problematizar o caráter de uma essência feminina na mulher enquanto sexo biológico, como para desenvolver, a partir daí, sua teoria da performatividade, através da qual pode demonstrar a produção generificada dos corpos. Nessa investigação, a autora interrogou se “[…] ser mulher constituiria um ‘fato natural’ ou uma performance cultural, ou seria a ‘naturalidade’ constituída mediante atos performativos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas?” (BUTLER, 2003, p. 8-9). Em outras palavras, a filósofa salientou que a relação sexo / gênero não é direta, tampouco compulsória. Sua contribuição teórica, portanto, abriu espaço para o entendimento das diversas identidades de gênero. Logo, as categorizações homem e mulher foram questionadas por contribuir para a universalização dos sujeitos.

Por outro lado, o gênero como categoria única de análise também foi questionado, sobretudo por feministas afroamericanas, as quais se percebiam excluídas desse monolítico denominado “mulher”, denunciando que este incluía somente mulheres brancas e de classe média. Dessa forma, teóricas com Kimberlé Crenshaw (2004), bell hooks (2019), Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016) dentre outras, contribuíram para a formulação da noção de interseccionalidade. Por meio dessa ampliação de ferramentas metodológicas, a análise pautada nos estudos de gênero dispõe de uma observação que busca perceber os cruzamentos junto a outras categorias de análise como raça, etnia, classe, idade, geração, sexualidade, religião, nacionalidade, dentre outras.

No Brasil, os estudos de Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro, por exemplo, já interrogavam sobre esses cruzamentos ao pensarem as relações de gênero desde a perspectiva racial. Para Gonzalez (2016, p. 410), “A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida […], não atenta para o fato da opressão racial”. Carneiro (2003) também destaca a importância de se pensar o racismo e seus impactos nas relações de gênero como eixo articulador do feminismo negro, sobretudo em sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas como são as latino-americanas, por ser esse um elemento determinante na própria hierarquia de gênero.

Parte dessas questões também integram as discussões de pesquisadoras brasileiras. Segundo Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007), tanto as reinvindicações advindas do movimento feminista como das observações da produção acadêmica, interrogaram sobre a generalização provocada mediante a percepção em torno do gênero como binário. Para essas autoras, outras questões atravessam as relações sociais e influenciam diretamente na construção e relações de gênero.

Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma ‘diferença’–dentro da diferença. Ou seja, a categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada da de ‘homem’, não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 287).

Em pesquisa mais recente, Carla Akotirene (2018, p. 14) observa que a análise interseccional deve “[…] dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado”, os quais influenciam diretamente na constituição das relações sociais. Ou seja, diante das relações sociais excludentes, essas três categorias não devem ser pensadas sozinhas, pois atuam de maneira relacional.1 A autora destaca também a importância de tomar a proposta interseccional com atenção, para que não seja feita uma soma de hierarquias, pois a interseccionalidade visa perceber como as diferentes categorias sociais se cruzam e contribuem para as configurações sociais. Ressalta, ainda, que essa reflexão não deve pautar-se apenas em perceber as exclusões, pois, nesse cruzamento, torna-se possível perceber as inclusões e pertencimentos proporcionados pelos marcadores sociais.

Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionamentos reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob forma de identidade (AKOTIRENE, 2018, p. 39).

Nesse sentido, a Revista Discente Ofícios de Clio junta-se a outros atores sociais no esforço de dar visibilidade a conhecimentos produzidos por discentes de graduação e pós-graduação, através de pesquisas de caráter teórico e prático, em torno de diversos temas relacionados com as questões de gênero e diversidade sexual, com perspectivas variadas. Diante da proposta de trazer novas contribuições para a historiografia e as áreas afins, o dossiê “Gênero, diversidades, interseccionalidades: perspectivas de análise na pesquisa histórica” reuniu artigos que buscam problematizar as questões de gênero nos mais diversos contextos históricos.

No primeiro deles, “A História das Mulheres: Uma Questão Política No Brasil”, Eduarda C. de Castro Alves, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, historiciza a inserção dos estudos sobre mulheres no âmbito acadêmico como um processo de disputa política. Para tanto, retoma os conceitos de feminismo e gênero, os quais são resultantes de diversas lutas, reivindicações e embates políticos de mulheres que extrapolaram para o debate acadêmico e pautaram novos campos de investigação histórica e, ao longo das décadas, foram transformando o fazer histórico, tornando-o mais plural e menos centrado na produção do conhecimento dos homens por eles próprios. Alves nos instiga, ainda, a pensar nos impactos dessas produções para além do universo acadêmico, com resultados que podem interferir na vida das mulheres, inclusive das subalternizadas, como é o caso daquelas em situação de prostituição.

Em “‘Reparar o Erro Através do Casamento’: Honra, Moral e Sexualidade em um Trâmite Judicial”, Alécio Gonçalves da Silva, Graduado em História pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, utiliza processos judiciais da década de 1980 como fontes históricas para realizar um estudo de caso da cidade de Cáceres, no estado do Mato Grosso. O autor observa como distintos discursos cruzam-se para controlar os corpos, a sexualidade, disciplinar as práticas cotidianas e os desejos. Nessa construção discursiva sustentada por relações de poder, Silva destaca como o patriarcalismo foi utilizado ao longo do século XX para sustentar discursos morais para a realização de uniões conjugais e serviram como forma de regular a sexualidade.

Caroline Rios Costa, em “A força da mulher argentina: resistência e luta política nas Madres de Plaza de Mayo e no grupo #NiUnaMenos”, apresenta uma significativa reflexão do protagonismo das mulheres em dois contextos diferentes na Argentina. O Madres de Plaza de Mayo ficou conhecido pela busca dos / as filhos / as desaparecidos / as durante a ditadura. As mães reunidas na praça não só questionaram sobre o paradeiro de seus / as filhos / as como promoveram importantes discussões contrárias à ditadura e outras violências sofridas pelas mulheres. Já o grupo #NiUnaMenos desenvolveu-se como forma de insatisfação e protesto contra as violências contra as mulheres, destacando-se ainda busca pela descriminalização do aborto. Com a diferença temporal de quase 40 anos, Costa destaca características de ambos os grupos e suas similaridades na reivindicação por uma sociedade mais justa e democrática.

No artigo “Processos de invisibilização das mulheres na atividade pesqueira nas legislações brasileiras entre 1846-1990”, Beatriz Lourenço Mendes, Mestranda em Direito e Justiça Social pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – FURG, Gabriel Ferreira da Silva, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, Felipe Nóbrega Ferreira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental – FURG, destacam diversos aspectos da atividade pesqueira, como os saberes tradicionais, as mudanças provocadas pelo desenvolvimento científico, a criação de legislações e órgãos responsáveis pela fiscalização e a regulamentação da mesma. Os / as autores / as identificam o silenciamento acerca da participação das mulheres nas atividades de pesca, sobretudo por parte do Estado, ressaltando que, embora elas tenham enfrentado os problemas decorrentes da invisibilização, tal fato não as impediu de participar ativamente dessa função.

Em “Mulheres do Povo e Espaço Público na Revolução Francesa: Uma Análise Através de Imagens”, Amanda de Queirós Cruz, graduanda em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, sob a perspectiva da história das mulheres, revisita a produção acerca da Revolução Francesa explorando fontes imagéticas produzidas durante o período revolucionário e, através delas, reflete acerca da participação ativa das mulheres durante a revolução. Seja por meio de protestos nas ruas ou organizações, as mulheres foram protagonistas na busca por melhores condições sociais. A autora observa que em protestos de grande público e “atravessando a fronteira para o lado que não lhes era permitido, simplesmente ao realizarem o ato físico de saírem da soleira da porta de seus lares e irem para a rua”, foram responsáveis pela movimentação da revolução.

Jaqueline Silva de Macedo, Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, utiliza a produção literária como fonte histórica para direcionar sua investigação acerca das narrativas construídas sobre a Fortuna, divindade grega e romana, em “A Fortuna no Roman de Fauvel e sua relação com a tradição literária e religiosa da Civitate Dei e da Consolatio philosophiae na Idade Média”. Buscando perceber as aproximações e distanciamentos nas narrativas empregadas, Macedo seleciona as obras Roman de Fauvel, Civitate Dei, de Agostinho e Consoloatio philosiphae de Boécio. Nessa interlocução, a autora observa como essas obras literárias contribuíram para a construção do imaginário cristão e das interpretações sobre Fortuna, e como as características da feminilidade foram reforçadas por meio de discursos pautados sobre a vontade divina.

Por fim, Miller Goulart Ferreira, Graduado em História Licenciatura pela Universidade de Brasília – UNB, através do artigo “História da homossexualidade ligada à transmissão de HIV / AIDS e abordagem na escola pelo filme Filadélfia de Jonathan Demme (1993)” procura problematizar a homofobia, sugerindo a utilização deste filme como suporte pedagógico para fomentar o debate acerca de questões relacionadas aos direitos civis e ao enfrentamento de violências contra homossexuais. Ferreira, além de indicar o uso de recursos audiovisuais na sala de aula, estabelece algumas considerações acerca do movimento gay no Brasil e Estados Unidos e da participação desses na conquista de direitos.

Nosso objetivo, nesse dossiê, foi reunir artigos que dialogassem com a pluralidade de experiências e / ou representações de gênero, feminismos, masculinidades e diversidades – enfocando relações de poder, de violência ou de resistência – em perspectiva histórica ou interdisciplinar, utilizando fontes orais, impressas, literárias, imagéticas ou audiovisuais de modo a contribuir para a promoção do debate qualificado acerca das relações de gênero, com o propósito de garantir avanços duramente conquistados e ampliar as perspectivas das mulheres na luta por uma sociedade mais equânime, menos violenta e com mais respeito às diferenças.

Uma boa leitura a todes!

Nota

1. Para Akotirene, cisheteropatriarcado é a noção conceitual que compreende a relação do patriarcado e as expectativas de gênero construídas em torno de um corpo pautado nas diferenças biológicas binárias, que, junto às imposições, diante da identidade estética de pessoas cisgêneras como desejadas, exclui as pessoas que escapam a esse padrão (AKOTIRENE, 2018).

Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte (MG): Letramento: Justificando, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S. Paulo: Boitempo, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem políticoeconômica. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania R. O. (Org.). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Funarte, 2016. p. 399-416.

HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference. In: LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. Freedom, CA: Crossing Press, 1984.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: Edusc, 2005.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul. / dez. 1995, pp. 71-99.

SMITH, Bonnie G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed. EDUSC: São Paulo, 2003.

SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da Pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 27 nº 54, 2007.p. 287.

Joelma Ferreira dos Santos – Doutoranda pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: fsantos.joelma@gmail.com

Jorge Luiz Zaluski – Doutorando pelo PPGH / UDESC – Florianópolis-SC. E-mail: jorgezaluski@hotmail.com


SANTOS, Joelma Ferreira dos; ZALUSKI, Jorge Luiz. Apresentação. Revista Discente Ofícios de Clio, Pelotas -RS, v. 4, n. 7, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Foucault e anarquia: histórias do presente / História – Questões & Debates / 2019

Foucault e a história da anarquia no presente

O filósofo Michel Foucault, em curso proferido em 1979-1980, O governo dos vivos, comentou possuir uma certa relação com a anarquia e com o anarquismo. Sua demolidora analítica do poder e suas proposições sobre a estética da existência como um “trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade” interessam aos anarquistas. Informado dessa via de mão dupla, o leitor mais apressado poderia dizer que a relação entre Foucault e a anarquia é “evidente” e até mesmo “natural”. Mas não é assim que essa relação se dá.

A relação entre Foucault e a anarquia existe em tensão, se dá no agonismo das forças. Se apresenta, assim, como um campo de batalha, mas não dado ao extermínio do outro. Ela produz diferenças, onde se quer similitudes. Este dossiê propõe um diagnóstico dessa relação e de suas diferenças a partir da exposição de uma história do presente. Para isso, convidou pesquisadores de diversas áreas que lidam nessa peleja há mais de três décadas e os que se lançaram nessa batalha mais recentemente para produzirem artigos inéditos acerca dessa relação.

Um inicial registro dessa relação pode ser encontrado no volume 5 da revista MargeM da Faculdade de Ciências da PUC-SP, de 1996, na qual aparece um conjunto de textos assinados por Edson Passetti, Wilhelm Schmid, Salvo Vaccaro e Todd May que se dedicam, de perspectivas bastante diversas, às intersecções entre o pensamento anarquista e a obra do filósofo francês. Mas, ao menos no Brasil, essas relações já apareciam nos trabalhos da historiadora Margareth Rago (Unicamp), nas pesquisas em educação de Silvio Gallo (Unicamp) e, um pouco mais adiante, nas análises de Salete Oliveira (PUC-SP). Desde então, desdobramentos dessa relação aparecem em trabalhos de mestrado e doutorado orientados por esses iniciais instauradores. Um registro mais contínuo, de quase duas décadas, pode ser encontrado nos 35 números da verve – revista autogestionária do nu-sol. Em 2015, a pesquisadora da obra do Foucault no Brasil e professora da UERJ, Heliana de Barros Conde Rodrigues, fez uma primeira sistematização dessa população em verve no artigo “anarqueologizando Foucault”, in verve, 28: 2015, 91-123.

Ao retomar essas relações nesse dossiê da revista História: Questões & Debates não se buscam continuidades, tampouco rupturas, mas marcar um registro dessa história no presente. Outras escritas para que se possa passar, para que se possa avançar, para que se possa fazer caírem os muros. São artigos de pesquisadores e militantes da anarquia que, cada a um à sua maneira, não se furtam ao campo de tensão entre a obra de Foucault e a vida anarquista.

Abre esse dossiê o ensaio de Edson Passetti, professor na PUC-SP e coordenador do nu-sol (núcleo de sociabilidade libertária), “A presença de Michel Foucault nos anarquismos”, que situa, a partir da genealogia do poder e de uma instigante leitura da obra do artista chinês Ai Weiwei, os riscos dos anarquismos serem tragados pelo ativismo da atual democracia neoliberal que convoca todos a participar e busca empoderar os vulneráveis e afirma a diferença da anarquia como militantismo, que desvia da dissidência e da convocação à participação.

Em seguida, Camila Jourdan, professora de filosofia da UERJ, no artigo “Foucault e a ruptura com a representação”, sustenta que a aproximação possível entre os anarquistas está na recusa da lógica da representação. Ao retomar a dialética serial proposta por Proudhon, afirma uma ontologia do múltiplo que se dispensa da dialética sintetista hegeliana, do conceito marxista de ideologia e do materialismo com a verdade de real. Afirma a tensão, o corpo e a imanência da ação como pontos de intersecção do pensamento de Michel Foucault com os anarquistas, afastando os dois do liberalismo e do socialismo de Estado, que são, por sua vez, colocados à lógica dualista e unidirecional da representação.

O somaterapeuta e psicólogo João da Mata apresenta, em seu ensaio “Anarquismos e Foucault”, a anarquia como uma pratica éticopolítica que encontra nas formulações de Michel Foucault elementos que sacodem-nos da anarquia contemporânea reminiscências iluministas e identitárias para a produção de um ethos ingovernável, fazendo do corpo um campo de batalha contra a autoridade e as hierarquias. O autor ainda indica na obra de Michel Onfray uma via de atualização possível da relação entre anarquismos e crítica da modernidade e com isso, sugere uma prática anarquista cotidiana que começa no corpo.

Thiago Rodrigues, internacionalista e professor na UFF, sugere um percurso sobre a noção de agonismo na obra de Foucault que teria, genealogicamente, como ponto de inflexão o curso de 1974, O poder psiquiátrico. Além de afirmar o agonismo como condição da vida em liberdade, a conexão com a anarquia se dá pela recusa do Estado como fonte de poder e as conexões, traçadas no artigo, entre a genealogia foucaultiana de inteligibilidade guerreira e a obra do instaurador da anarquia, Pierre-Joseph Proudhon, A guerra e a paz. Em resposta aos universais do poder, sugere que é preciso revirar-se agonicamente.

A historiadora Maria Clara Pivato Biajoli, no artigo “Lendo a experiência e a memória das Mujeres Libres em um diálogo com Foucault”, revira as memórias das lutadoras Mujeres Libres de uma perspectiva da genealogia da história. A autora destaca, na obra de Michel Foucault, as noções de cuidado de si, estéticas da existência e biopolítica para pensar a atuação do grupo para a libertação feminina. Sem apologias ou panegíricos, realiza a retomada de uma história menor em meios a batalhas libertárias da Revolução Espanhola (1936- 1939). Acusa ainda a própria transformação como historiadora ao lidar, libertariamente, com o referencial foucaultiano e mulheres anarquistas.

E o silêncio.

O músico, compositor e politólogo Gustavo Simões, no ensaio “john cage e a vida como arte de escrever anarquista”, apresenta a escrita musical de John Cage e as vidas libertárias como formas de escrita de si como ação direta. Uma escrita que se afasta da historiografia como erudição inútil e se afirma como história-efetiva que, à maneira dos cínicos, se faz como escândalo. Essa forma de escrita anarquista, catada em Cage e nos anarquistas, recusa o conteúdo doutrinário “para sobressair demolições-invenções em cada acontecimento da existência contra a história factual e a dialética, tão apreciadas pela História”.

O conjunto de seis artigos desse dossiê compõe um registro heterogêneo e heterodoxo fincados no presente das lutas. Não sugerem, mesmo que reunidos em proximidade, nenhuma lógica de afinidade, tampouco reclamam filiação. Nada reclamam entre os verdadeiros intérpretes dos ditos e escritos de Michel Foucault, tampouco engrossam as fileiras dos que entendem o anarquismo como doutrina ou ideologia política. São textos de práticas de liberdade, já que liberdade não é uma ideia ou um valor tanto para os anarquistas quanto na analítica do poder proposta por Foucault. A Anarquia aqui registrada é uma história do presente que das atuais reformas, conservações, inovações e restaurações se afirma pela revolta como atitude antipolítica que sabe bem que a política é tecnologia de governo moderna de si e dos outros.

O volume ainda conta com uma seção aberta bastante diversificada em seus temas, e contempla quatro artigos, uma tradução e uma resenha. No primeiro artigo, “Flávio Suplicy de Lacerda: aliado das forças armadas e combatente contra comunistas e estudantes”, os autores Névio de Campos e Eliezer Feliz de Souza discutem a relação de Flávio Suplicy de Lacerda com as representações e as práticas sociais das forças armadas brasileira, no governo civil-militar de 1964 a 1985. No segundo, “Jean Giono e a reinvenção da Odisseia na literatura francesa do pós-guerra”, a autora Lorena Lopes da Costa analisa a relação entre guerra, experiência e ficção, a partir de Naissance de l’Odyssée, uma releitura francesa da Odisseia. No terceiro, “Nos tempos da mudança. Aberturas possíveis, acordos revistados e concepções sobre consumo (1808-1821), a autora Rosângela Ferreira Leite trata das relações diplomáticas entre Portugal e Grã-Bretanha, no período já referido no título. No quarto e último artigo, “As mulheres dos governadores das colônias portuguesas na segunda metade do século XVIII e início do XIX”, o autor Magnus Roberto de Mello Pereira, investiga o papel exercido por tais mulheres nas colônias portuguesas, apontando uma mudança de mentalidade em relação à família, nas últimas décadas do século XVIII.

Temos, ainda, a tradução do artigo do classicista Ray Laurence, intitulado “Saúde e curso da vida em Herculano e Pompeia”, de autoria de Martha Helena Loeblein Becker Morales e Alexandre Cozer. Para finalizar a publicação, contamos com a resenha “Histórias que seguem atuais: sobre infâncias e juventudes”, de Chirley Beatriz de Silva Vieira e Otoniel Rodrigues Silva, ao livro Infâncias e juventudes no século XX: histórias latino-americanas, que foi organizado por Silvia Arend, Esmeralda de Moura e Susana Sosenski, e publicado em 2018.

Que seja uma boa, mas desestabilizadora leitura.

Saúde e anarquia!

Acácio Augusto – Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios – UNIFESP.


AUGUSTO, Acácio. Introdução. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.67, n.2, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval | A. C. L. F. da Silva

O MEDIEVO OCIDENTAL A PARTIR DE CONCEITOS COMO GÊNERO, SANTIDADE E MEMÓRIA E EM DIFERENTES ABORDAGENS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Introdução

Segundo informa em sua apresentação, o livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval, publicado em 2018, foi o resultado do projeto “A construção medieval da memória de santos venerados na cidade do Rio de Janeiro: uma análise a partir da categoria gênero” coordenado pela Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. Tal iniciativa privilegiou a articulação entre atividades de ensino, pesquisa e extensão, com enfoque especial na temática mendicante do século XIII, a partir das categorias gênero, santidade e memória.

Decorrente de tal proposta, a publicação é uma coletânea de resultados de pesquisas de colaborados do referido projeto e vinculados ao Programa de Estudos Medievais (PEM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), totalizando dezessete capítulos. Pelo número de materiais, a apresentação esmiuçadora de cada um dos capítulos tornaria a resenha exaustiva, sem esgotá-los. Nossa proposta é, portanto, sintetizar o tema eleito por cada autor, a documentação utilizada, a abordagem teóricometodológica explícita e/ou implícita em sua redação e suas principais conclusões.

Por fim, como nossas últimas considerações, apresentamos algumas considerações sobre outros pontos de aproximação entre os capítulos, para além dos já anunciados no título e na introdução da obra.

Dezessete abordagens sobre gênero, santidade e memória no medievo ocidental

O primeiro capítulo, escrito por Flora Gusmão Martins, “Considerações sobre o culto aos santos mártires no reino visigodo dos séculos VI e VII” apresenta uma revisão sobre o modelo de santidade martirial da Alta Idade Média, considerando especificamente seu desdobramento no contexto ibérico dos séculos VI e VII.

O texto de F. G. Martins enfatiza a relação entre mártires e heróis da antiguidade e suas possíveis correlações. São priorizados, ainda, três modelos de santidade em tal contexto: o mártir, o bispo e o asceta. Para construir sua argumentação, a autora apresenta as aproximações e os distanciamentos das conceituações realizadas por autores como Andrade, Castillo Maldonado, Souza, Vauchez, Moss, Brown, Bowersock, entre outros, sem desconsiderar as leituras contemporâneas dos eventos, como as apresentadas por Isidoro de Sevilha (século VII).

A diretora e autora do livro, Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, em seu capítulo “A Ordem Dominicana na Legenda Beati Petri Gundisalvi”, apresentou um estudo sobre o documento que trata da vida do dominicano Pedro González, também conhecido como São Telmo, que teria vivido no século XIII. Como objeto explícito da sua análise, foram destacadas às referências à Ordem Dominicana na Legenda e suas possíveis relações com a forma de patrocínio utilizada na produção do referido texto.

Ao longo de seu estudo, a autora apresenta a tradição manuscrita da Legenda Beati Petri Gundisalvi, sua transmissão, as edições existentes do documento, uma do século XVIII e outra do XXI, e a ausência de análises aprofundadas pela historiografia. Para além das hipóteses levantadas a respeito da datação e da autoria do documento, A. C. L. F. Silva argumenta que a análise sistemática das referências institucionais indica que a obra teve por objetivo enaltecer a figura de Pedro González, e não da Ordem Dominicana, o que implica que esta não estaria envolvida no patrocínio de sua redação.

Analisando a Legenda Áurea, Laís Luz de Carvalho escreve o estudo “„A comemoração das almas‟ da Legenda Áurea: solidariedade entre vivos e os mortos do purgatório”. A autora utiliza o legendário dominicano para analisar todas as referências às relações entre vivos e mortos presentes no capítulo “A Comemoração das Almas”, da Legenda Áurea, com o objetivo de entender a dinâmica de solidariedade que era incentivada pela Igreja de Roma.

A partir do método de Análise da Narrativa, foram enfatizados os pecados e as penas atribuídos aos pecadores em anedotas exemplarizantes. O estudo leva em consideração o contexto do surgimento do Purgatório e das Ordens Mendicantes, os quais perpassam as questões atreladas ao documento. Nesse sentido, L. L. Carvalho sistematiza em categorias desenvolvidas para a pesquisa todas as 16 exempla, a partir da identificação dos personagens e de onde são, das suas penas e seus pecados e dos tipos de vínculos estabelecidos entre os vivos e os mortos. A autora conclui que o Purgatório permite a crença na redenção para laicos e citadinos e que a obra tem por um dos seus objetivos incentivar a solidariedade entre vivos e mortos na comunidade cristã.

Com uma proposta metodológica que privilegia a Análise da Avaliação de Laurance Bardin, o capítulo de André Rocha de Carvalho, “A representação dos imperadores da dinastia Staufen na Vida de São Pelágio da Legenda Áurea: aplicando a Análise de Avaliação”, busca identificar as abordagens apologéticas e depreciativas sobre a representação dos imperadores da dinastia Staufen, atribuindo valores em gradações numéricas para que os discursos sejam considerados positivos ou negativos. Para a categoria de representação, o autor fez usa do conceito estabelecido por Roger Chartier.

R. Carvalho parte do pressuposto que A Vida de São Pelágio transmite uma imagem dos imperadores marcada pelos interesses do autor, da ordem dominicana e da Igreja Romana. Nesse sentido, os governantes são representados como tiranos, traidores e pecadores, com o objetivo de defender a autoridade e superioridade do poder papal frente ao poder imperial. Simultaneamente, serve de ferramenta de propaganda para a Cristandade no contexto reformador.

Retornado aos debates de santidade, mas privilegiando um recorte detido nos séculos XII e XIII, a autora Ana Paula Lopes Pereira apresentou o capítulo “Maria d‟Oignies (1213) e Clara de Assis (1253): dois exemplos de santidade laica nos Prólogos de Jacques de Vitry (1160/80-1240) e Thomas de Celano (1200-1260)”.

Em tal estudo a santidade passa a ser analisada considerando os aspectos urbanos da Idade Média Central. O texto privilegia o exame de duas hagiografias de mulheres em perspectiva comparada, buscando as semelhanças nos processos iniciais do movimento beguinal e franciscano. Em tal estudo, A. P. L Pereira busca compreender o culto e a perseguição a Maria d‟Oignies, bem como o enquadramento das beguinas, contrapondo comparativamente, com o culto e a canonização de Clara de Assis. Como ponto de confluências, os dois movimentos dos quais as hagiografias são decorrentes fazem parte das novas formas de piedade laica, do século XIII. A autora conclui que a mudança de geração entre Maria d‟Oignies e Clara de Assis e dos seus hagiógrafos demonstra o poder de enquadramento e endurecimento da Igreja Romana para o afastamento das novas formas de vida apostólica e mística.

Em uma sequência de análises sobre a santidade feminina, Andréa Reis Ferreira Torres apresenta o ensaio intitulado “Os atributos conferidos à santidade feminina em dois processos produzidos na Península Itálica no século XIII – uma comparação entre Clara de Assis e Guglielma de Milão”. Mais uma vez o comparativismo é privilegiado para traçar as aproximações e os distanciamentos entre os documentos de canonização e de processo inquisitorial, com especial ênfase nos atributos de santidade relacionados às mulheres.

Ambos os documentos, produzidos na Península Itálica do século XIII, são contemporâneos ao processo de fortalecimento papal, determinante para o endurecimento do controle e reconhecimento de santidade. A análise dos atributos de santidade realizado por A. R. F. Torres foi executada tendo como aporte teórico a categoria gênero, na interpretação sistematizada por Scott. Nesse sentido, para a autora do capítulo, a questão do gênero interferiu na construção dos modelos exemplares femininos para tal sociedade, principalmente considerando a questão da mentoria masculina ou a sua ausência nos mencionados documentos.

Pensando o aspecto social da santidade, o texto “A santidade em construção: revolvendo camadas para expor as instituições atuantes na canonização de Domingos de Gusmão (1233-1234), de Thiago de Azevedo Porto, reflete sobre a canonização de Domingos de Gusmão como um processo coletivo e complexo, em que tomam parte interesses de agentes sociais diversos, que incluíam a autoridade pontifícia. Para o autor, a santidade é uma formação post mortem, desconectada das escolhas em vida de Domingo, reconhecido como santo ainda no século XIII.

O processo de reconhecimento de santidade teria sido, portanto, resultado de uma construção coletiva, com rota não linear, com avanços e contradições, que devem ser entendidas levando em consideração processos que antecedem à canonização do dominicano. Dessa forma, torna-se possível compreender como foi organizada uma campanha para viabilizar o sucesso do processo de Domingo junto a Igreja Romana.

A santidade feminina a partir de processos inquisitoriais é abordada em um novo capítulo, intitulado “Considerações sobre as Almas Simples Aniquiladas e a condenação da beguina Marguerite Porete (1250-1310) e escrito por Danielle Mendes da Costa. Em seu texto a autora busca entender como a condenação por heresia de Marguerite Porete pode ter sido motivada pela interpretação da instituição eclesiástica de que as ideias defendidas pela beguina representavam uma ameaça ao poder da Igreja Romana.

M. Costa apresenta a produção documental de Marguerite Porete, sua temática e organização, as tentativas de silenciamento por parte da Igreja Romana, por meio dos inquisidores, e a chegada dos manuscritos até os dias de hoje. Do ponto de vista conjuntural, são apresentados o contexto pontifício do século XIII e o movimento beguinal e de espiritualidade feminina dos séculos XII e XIII. Nesse sentido, a autora conclui que a defesa de um caminho para a salvação que não estava atrelada à instituição eclesiástica foi interpretada como uma ameaça e uma concorrência e, portanto, destinada à repressão por ser considerada um desvio da ortodoxia, culminando na morte de sua propositora.

Em “A influência franciscana na cidade de Pádua: um estudo sobre a narrativa da pregação antoniana na Beati Antonii Vita Prima”, o autor Victor Mariano Camacho estabelece o estudo da pregação de Antônio de Lisboa, também conhecido como de Pádua, no contexto franciscano e urbano. O estudo privilegia os sacramentos e a influência da ordem nos contextos citadinos a partir da obra Beati Antonii Vita Prima, também conhecida como Legenda Assídua, que trata da vida do então conhecido como Fernando Martins de Bulhões.

M. Camacho apresenta brevemente os dados documentais como autoria, destinação da obra e organização textual. A ação pregadora de Antônio no ambiente urbano também é sistematizada, com especial enfoque para o décimo terceiro capítulo da hagiografia, com sua ação de modificação do espaço comunal, desde a prática da usura até a prostituição. A ação antoniana em Pádua foi interpretada pelo autor como uma reprodução da influência pastoral franciscana em alinhamento com as diretrizes centralizadoras de Igreja de Roma daquele período.

Dando sequência aos estudos franciscanos com ênfase na atuação de Antônio de Pádua/Lisboa, Jefferson Eduardo dos Santos Machado, autor do capítulo “Sacramentos da confissão no discurso franciscano do século XIII, a partir dos Sermões Antonianos”, destaca a o processo de institucionalização do movimento, com a aproximação dos Frades Menores do poder pontifício. Tal como o texto de Camacho, o aspecto sacramental é enfatizado, mas neste episódio, principalmente no que diz respeito à Reconciliação e à Confissão.

Segundo J. E. S. Machado, os Sermões Antonianos estavam organizados para serem utilizados de acordo com o calendário litúrgico, o qual não estava alinhado com o da Igreja Romana. A partir da análise dos sermões da Quaresma e a Confissão, o autor afirma que como um sacramento, a confissão tinha grande importância no discurso antoniano, sendo apontada como importante elemento para a salvação da alma. A confissão passou, portanto, a ser um elemento de vigilância para a Igreja Romana, em um contexto de fortalecimento e centralização do poder pontifício.

O século XIII também foi abordado a partir dos regastes neotestamentários, como a Epístola de Tiago, tema abordado por Gabriel Braz de Oliveira em “Uma alternativa de leitura sobre a pobreza medieval no Novo Testamento: a trajetória canônica da Epístola de Tiago”. O documento foi, portanto, retomado no âmbito do debate sobre os fundamentos da pobreza evangélica e mendicante. Mesmo no contexto de formação do cânon neotestamentário, a epístola passou por uma aceitação paulatina e marcada por diversas desconfianças das autoridades eclesiásticas, que foram contrapostas pela aceitação de outros personagens de grande influência, como Eusébio de Cesaréia, Atanásio, Jerônimo e Agostinho.

B. Oliveira dividiu sua investigação sobre o texto em partes, sendo elas: as características do documento, como as temáticas, a autoria e a datação; o conteúdo histórico hermenêutico, reunindo comentários realizados pela carta em diferentes momentos, principalmente pelos autores patrísticos, e; apresentação de uma leitura da pobreza na Epístola de Tiago, como crítica ao apreço pelo materialismo, que busca normalizar a segunda geração de cristãos.

Abordando também as leituras exegéticas realizadas no período medieval, o capítulo de “Espiritualidade e milenarismo na Expositio in Apocalypsim de Joaquim de Fiore (1135-1202)”, de autoria de Valtair Afonso Miranda, analisa os escritos de Joaquim de Fiore, a partir da ideia de que há um rompimento com a tradição agostiniana na História da Igreja, dando lugar a uma nova forma de espiritualidade. Na obra Expositio in Apocalypsim, Joaquim faz um comentário do Apocalipse de João, que foi analisada para este capítulo a partir dos aspectos da espiritualidade e do milenarismo.

Segundo, V. A. Miranda, o abade cisterciense preocupou-se em correlacionar todas os episódios do texto do apocalíptico com eventos históricos atrelados a História Eclesiástica, tanto em perspectiva linear quanto cíclica. Como monge beneditino da Ordem Cisterciense, Joaquim estava inserido nos movimentos reformadores que envolveram a sociedade ocidental dos séculos XII-XIII, e que foi apropriada pelo autor da exegese para ampliar os valores monásticos para a Cristandade. O apocalipticismo de Joaquim de Fiori, portanto, conjugou-se com o milenarismo que buscava a unidade e a transformação da ecclesia.

Analisando uma narrativa produzida em um mosteiro, Alinde Gadelha Kuhner, em “A Fundação de Santa Cruz de Coimbra de acordo com a Vita Tellamos Archidiaconi”, discute a promoção da legitimidade da fundação de Santa Cruz de Coimbra e a natureza tipológica da Vida de D. Telo. Segundo a autora, tal documento não é satisfatoriamente enquadrado como hagiografia e, por este motivo, a natureza do relato é debatida no seu estudo. De autoria conhecida, o documento foi produzido no referido mosteiro.

O questionamento de A. G. Kuhner sobre a classificação da narrativa como hagiográfica esteve baseada na importância atribuída ao protagonista por seu hagiógrafo, pela ausência de dados biográficos do hagiografado, sendo estes obliterados pelos dados referentes à fundação do mosteiro, fato que acontece em momento já avançado de sua vida. Reforçando tal argumento, a autora destaca que mesmo o relato sobra peregrinação de Telo para Terra Santa é fato menor se comparado a importância desta fundação para a narrativa. Em síntese, teria sido o papel do santo na construção do mosteiro e no reconhecimento do espaço pelo poder pontifício que o qualificou à posição de santo.

As análises de narrativas hagiográficas estão presentes também no capítulo “A construção da figura feminina na Vita Sancti Theotonii”, de autoria de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira. A partir do estudo sistemático da obra Vita Sancti Theotinii, o autor buscou entender quais escolhas discursivas foram feitas para representar a figura feminina e porque o hagiógrafo optou por tais desígnios. Em um contexto de crescente relevância da castidade, a partir da reforma dos ideais religiosos dos séculos XI e XII, a figura da mulher estava associada, em algumas narrativas, como antítese da castidade e obstáculo para a santidade.

O ensaio de J. R. S. C. Oliveira buscou analisar duas passagens da Vita Sancti Theotonii a partir da construção da imagem da mulher como agente desviante. O modelo a ser seguido era, sem dúvida, a de Teotônio, principalmente para os outros religiosos. A castidade era uma demonstração da pureza corporal transformada em base para a vida religiosa. Por sua vez, as figuras femininas foram representadas de duas formas, segundo o autor do capítulo, como ferramenta de reforço de sua santidade e como agente de desvio e fonte de vigilância para os votos.

Analisando a tradição mariana, Guilherme Antunes Junior, em “A cantiga 26 e o romeiro pecador: gênero nas imagens e nos textos nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X”, reflete sobre as implicações políticas e culturais de um milagre que recai sobre um peregrino pecador. O documento em questão foi patrocinado pelo rei Afonso X e produzido como um conjunto de quatro manuscritos, no século XIII. Em representação semelhante à apresentada por J. R. S. C Oliveira, a figura feminina também aparece como elemento de desvio e de ameaça à castidade.

Antunes Junior entende que o texto poético e as imagens contidas na Cantiga constroem discursos sobre homens e mulheres e, portanto, podem ser analisadas a partir das relações de gênero, com seus papéis sociais e relações de poder. O autor utiliza o conceito proposta por Scott para interpretar tal documentação. As conclusões do autor dizem respeito às implicações políticas, que envolvem a cantiga e as tensões entre Afonso X e o clero compostelano, e às questões de gênero, que implicam à figura da mulher má no pecado do romeiro em seu texto, mas não nas ilustrações contidas na mesma obra. Em contrapartida, também é a figura feminina de Maria que garante a salvação do personagem desviado, antagonizando, desta forma, duas representações femininas polarizadas.

As interpretações eclesiásticas sobre o tema do casamento foram analisadas por Mariane Godoy da Costa Leal Ferreira em “Uniões entre Borgonha e Leão – Castela: os casamentos de Urraca e Raimundo (1091) e de Teresa e Henrique (1096)”, considerando o contexto ibérico do final do século XI. Nesse sentido, as alianças matrimoniais entre Borgonha e Leão-Castela já estavam em prática desde o início do século XI, mas a autora tem por objetivo demonstrar que os casamentos das filhas do rei castelhano-leonês Afonso VI, Urraca e Teresa, com Raimundo e Henrique, foram vantajosos politicamente para o reino, mas acabaram por afetar o contexto peninsular na passagem do XI para o XII séculos.

G. C. L. Ferreira analisa a crônica cartulário História Compostelana, escrita em Santiago de Compostela, no século XII, com o objetivo de valorizar a vida de Diego de Gelmírez, colocando o contexto político como um elemento secundário em sua narrativa. Os casamentos de Urraca e Teresa são apenas mencionados enquanto temas do interesse eclesiástico, como adultério e o papel das viúvas. A autora afirma ainda que, do ponto de vista político, tais casamentos e seus herdeiros teriam gerado uma crise sucessória em todo o contexto peninsular, uma vez que o discurso documental culpabiliza o comportamento sexual das rainhas, com o intuito de justificar a existência de tais conflitos.

Analisando as leis suntuárias de Múrcia sobre vestimentas e adornos, Thaiana Gomes Vieira encerra a obra coletiva com o capítulo “Consumo suntuário e a sociedade Murciana dos séculos XIII e XIV”, questionando o papel dado a aparência na sociedade urbana e as necessidades de normalização apresentadas no contexto dos séculos XIII e XIV. Como pressuposto que perpassa a pesquisa, a autora defende ser possível falar em “moda” para o período, sendo as vestimentas e os adornos formas de comunicação e identificação comuns às altas camadas da sociedade. É justamente por este papel social que surge, então, a necessidade de normalização e regulamentação.

G. Vieira chama atenção para as conturbações sócio-políticas de Múrcia no século XIV, bem como a ampliação pecuária, da produção têxtil e do comércio de produtos e materiais. Nesse sentido, tais aspectos não implicaram em uma desvalorização da moda ou da ostentação nas formas de vestir, comer e habitar. As normativas murcianas indicavam o que deveria ser utilizado pelos diferentes grupos sociais, não apenas por motivações econômicas, mas para a manutenção da hierarquia social, a partir de um código de aparência.

Considerações finais

As categorias de análise anunciadas tanto no título quanto na apresentação da obra podem ser observadas individual ou combinadamente nos dezessete capítulos. Em se tratando do tema da santidade, F. G. Martins, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, tornaram o assunto um dos principais eixos de seus estudos. A partir da perspectiva de gênero, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, D. M. Costa, J. R. S. C. Oliveira e G. Antunes Junior buscaram enfatizar a categoria nas análises documentais realizadas. Por fim, o último tema explicitamente anunciado, a memória, foi trabalhado em maior ou menor medida, nos capítulos de F. G. Martins, A. C. L. F. Silva, A. R. Carvalho, A. R. Oliveira, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, T. A. Porto, V. M. Camacho, A. G. Kuhner, J. R. S. C. Oliveira, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Porém, estas podem ser consideradas apenas algumas das várias maneiras de perceber as correlações existentes entre os capítulos que compõem o livro. Do ponto de vista metodológico, o comparativismo possui grande destaque, o que pode ser justificado pela inserção e/ou status de egressos de muitos autores com o Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Os textos que utilizam implícita ou explicitamente tais aportes, seja na comparação de documentos, regiões, personagens, imagens e seus textos, diferentes interpretações de textos em novos contextos, dentre outras possibilidades, formam escritos por L. L. Carvalho, A. P. L. Pereira, A. R. F. Torres, G. B. Oliveira, V. A. Miranda, G. Antunes Junior e M. G. C. L. Ferreira.

Em uma avaliação de conjunto sobre a metodologia, as análises, em geral, foram exaustivas sobre um ou dois documentos, em contraposição a possibilidade de estudos temáticos generalistas e menos metódicos – que se utilizam, superficialmente ou não, de documentações numerosas e/ou pontuais para suas pesquisas – um dos benefícios que podem ser percebidos nas abordagens aqui apresentadas seria uma análise mais completa e complexa dos textos em conexão com os seus contextos. Tal aspecto, portanto, pode ser considerado mais um pressuposto metodológico do grupo.

O livro Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval é um produto derivado de um nítido esforço coletivo de pesquisadores medievalistas brasileiros, que contribuem para a divulgação científica das ciências humanas e dos projetos de articulação de ensino, pesquisa e extensão realizados na cidade do Rio de Janeiro.

Juliana Salgado Raffaeli – Doutora PEM-PPGHC-UFRJ/ Docente UNIRIO-CEDERJ-UAB. E-mail: julianaraffaeli@hotmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2196-922X


SILVA, A. C. L. F. da (Dir.). Construções de Gênero, Santidade e Memória no Ocidente Medieval. Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, 2018. Resenha de: RAFFAELI, Juliana Salgado. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.19, n.2, p. 272- 282, 2019. Acessar publicação original [DR]

Interperspectival Content – LUDLOW (M)

LUDLOW, P. Interperspectival Content. Oxford University Press, 2019. 272 pages. Resenha de: MARTONE, Filipe. Manuscrito, Campinas, v.42 n.3  July/Sept. 2019.

Peter Ludlow’s most recent book is a systematic defense and exploration of what he calls interperspectival contents. Such contents are a sui generis kind of content expressed in language by tense and indexical expressions. They are essentially perspectival, and they cannot be eliminated or reduced to non-perspectival contents. Moreover, the ‘inter’ in ‘interperspectival’ means they are not subjective, private things: they are shared across agents situated in different perspectives. According to Ludlow, reality is shot through with such contents, from language and thought to computation and the flow of information, and they are needed to explain a number of phenomena, including intentional action, rule-following and the passage of time. In a sense, then, Ludlow’s new book is the perfect antithesis to Cappelen & Dever (2013). He makes a comprehensive case that perspectivality is not merely philosophically interesting, but also that it runs as deep as basic physics (Ch. 8). The book is ambitious, broad-ranging and interdisciplinary, and it would be impossible to discuss all of its contents in a short review. For this reason, I concentrate on the main points of his theory (laid out in the first three chapters) and try to spell them out in a bit more detail.

Perry’s messy shopper and Lewis’ twin gods convinced almost everybody that certain beliefs and desires must involve an essentially perspectival ingredient if they are to explain human intentional action adequately. Referential content, they claimed, is not enough. Because this perspectival ingredient is expressed in language by tense and indexicals, it is usually referred to as ‘indexical content’, but Ludlow prefers to call it ‘interperspectival content’, or ‘perspectival content’ for short (p. 3). Since Perry’s and Lewis’ work, philosophers started seeing ineliminable perspectival components everywhere: in emotion, perception, consciousness, temporal reasoning, ethical agency and in normative behavior more generally. Of course, they disagree on the precise nature of this perspectival component (e.g. if it reflects a deep feature of reality or is merely a narrow psychological state), but there is widespread agreement that it must be there to explain various aspects of human activities. There is a vocal minority, though, who remains deeply unconvinced. The most notable case is that of Cappelen and Dever (2013), henceforth C&D.

C&D’s work had a huge impact, so it is a natural starting point for Ludlow. In the first chapter, he uses C&D objections as a foil to show why interperspectival contents are indispensable. His main target are the so-called Impersonal Action Rationalizations (IAR). IARs attempt to explain an agent’s behavior only in terms of non-perspectival attitudes. C&D argue that IARs are perfectly adequate explanations of behavior, even though they are perspective-free. If they are right, this would show that there is no necessary connection between perspectivality and agency, pace Perry and Lewis. To better see the point, it is useful to reproduce here two action rationalizations Ludlow discusses, one personal and the other impersonal (p. 26):

Personal Action Rationalization (explanation) 1.

  • Belief: François is about to be shot.
  • Belief: I am François.
  • Belief (Inferred): I am about to be shot.
  • Desire: That I not be shot.
  • Belief: If I duck under the table, I will not be shot.
  • Action: I duck under the table.

Impersonal Action Rationalization (explanation) 1.

  • Belief: François is about to be shot.
  • Desire: François not be shot.
  • Belief: If François ducks under the table, he will not be shot.
  • Action: François ducks under the table.

For C&D, IAR-1 is an adequate explanation of why François ducked, and therefore the supposedly essential perspectival component is dispensable. Ludlow grants that some IARs have the appearance of genuine explanations, but he claims that we have good reasons to suspect that they appear that way because there is “something enthymematic” (p. 27) about them. For instance, IAR-1 seems to work only because the premise that François believes that he himself is François is implicit. This is not a new argument, but Ludlow gives it a different spin by asking us to consider a case in which François lacks the perspectival belief that he himself is François, but still ducks. The lack of a first-personal belief seems to make his ducking completely random and unconnected to the attitudes described in the rationalization.

To me, however, the most interesting argument Ludlow offers against C&D appeals to temporal beliefs. Ludlow notes that François’ attitudes are already knee-deep in temporal perspectival contents:

The desire is not that François timeline be free of getting-shot events; it is too late to realize such a desire. You can’t get unshot. His desire is that he not get shot now. Similarly for François’ belief: His belief is that if he ducks under the table now he will not get shot now. (p. 27)

Thus, even if the first-person perspective is somehow eliminated from the rationalization, temporal perspectival contents must remain, otherwise we cannot explain why François ducks at the moment he ducks. For some reason, the role of temporal perspectival contents in action explanation has mostly slipped under philosophers’ radars, and Ludlow does a nice job of bringing it out1. In fact, because temporal contents do not involve the complexities of the first-person, they seem to make a better and more straightforward case for the indispensability of the perspectival element, as Morgan (2019) argued.

Another interesting aspect of the first chapter is the discussion of C&D’s example of the aperspectival god. C&D claim that there could be a god who does not have perspectival thoughts but who could nevertheless act upon the word just by thinking things like ‘the door is closed’, and the door is closed. This example is supposed to show that there could be intentional action without perspectivality. But, Ludlow argues, this is very implausible. Suppose the aperspectival god creates a universe containing only ten qualitatively identical doors arranged in a circle (p. 33). How can the god form a particular intention to close one of the doors in this case? Indexical-free definite descriptions cannot single out any of them, and neither can proper names, since to name something you must first be able to identify it, either perceptually or by description. Even being omniscient, there must be a perspectival way of singling out one particular door in the god’s ‘awareness space’ (e.g. ‘that door’), otherwise she would not be able to form a particular intention about it. Ludlow’s example bears some similarities to Strawson’s massive reduplication universe (1959: 20-23), and both have more or less the same moral: every act of particular identification seems to ultimately rest on demonstrative (i.e. perspectival) identification. If this is right, then the aperspectival god would not be able to form particular intentions in these cases, and hence could not act upon particular objects. Ludlow concludes that perspectival components are indispensable.

Having established why we need perspectival contents, in the second chapter Ludlow goes on to explain what they are. In particular, by focusing on tense, he argues that perspectival contents are substantial features of reality, and not merely superficial aspects of language or thought. His argument leans heavily on a methodological doctrine he calls Semantic Accountability. As he puts it, “the basic idea is that meaningful use of language carries ontological commitments” (p. 16), and “that the metalanguage of the semantics must be grounded in the world and the contents that are expressed in the metalanguage are features of the external world” (p. 38). In other terms, if we cannot purge perspectival contents from the metalanguage that gives the semantics of a certain piece of perspectival discourse, then we must treat these contents as irreducible and ineliminable features of reality. Ludlow argues that this is not only the case with tense, but also with information theory, computation and even with physics. As we can see, the doctrine of semantic accountability plays a crucial role in the whole book.

In the second chapter he also expands on the two central notions of the book, namely, perspectival position and perspectival content. In short, perspectival positions are “egocentric spaces anchored in external positions” (p. 6), where external positions are objective locations in space and time. Because we are embedded in such positions, certain things will be there or herepast or future, and so on, with respect to us. More importantly, Ludlow argues that perspectival positions are not a matter of phenomenology, i.e., of how things are experienced by the relevant agents. According to him, the same perspectival position can have different phenomenal experiences associated with them, whereas different perspectival positions can yield the same phenomenal experience (p. 7).

Now, things get more complicated with interperspectival contents. Because they are primitives for Ludlow (p. 42), it is pretty hard to define them precisely. He attempts to circumvent this difficulty by employing several metaphors. First, he asks us to think of perspectival positions in terms of panels on a storyboard. Each panel is anchored in the agents’ perspectival position and represents the world from their point of view. For example, in a situation where I say ‘I am here’ and you say ‘you are there’, there is a panel representing my utterance, your utterance and the world from my perspectival position, and a panel representing your utterance, my utterance and the world from your perspectival position. The interperspectival content, in turn, “consists of this collection of storyboard panels…and a theory of how the panels in the storyboards are related (p. 42). As I understand it, this theory describes the events occurring – my utterance and your utterance – in a way that explains what we are doing, our motivations, beliefs and emotions in that situation. This explanatory theory would be the perspectival content. Another metaphor Ludlow offers is that of a dramaturge who has all the panels before her. The dramaturge knows how to coordinate them and has a theory of what is happening (p. 42). Finally, Ludlow emphasizes that perspectival contents are shared. When I say ‘I am here’ and you say ‘you are there’, we are expressing the same perspectival content, but from different perspectival positions. That is, we are expressing the same theories from different perspectives (p. 40), and to do that we have to use a different set of expressions. The same phenomena occurs with perspectival contents expressed across different temporal positions. If I think ‘today is a fine day’, and in the next day I think ‘yesterday was a fine day’, my thought episodes have the same referential content and the same perspectival content under a different verbal clothing.

The fact that perspectival contents are shared and remain stable across perspectival positions might make them look just like referential contents, since the latter also have the same properties. But Ludlow quickly points out that this cannot be right, for referential contents cannot explain action, emotion, and so on (p. 45), as he argued in the first chapter. Thus, whatever perspectival contents are, they cannot be referential contents. In fact, in the next chapter he is going to claim that perspectival contents bear important similarities to Fregean senses, which are notoriously richer and more fine-grained than referential content.

I understand that perspectival content is a pretty difficult notion to grasp, but the fact that Ludlow’s attempts to ‘define’ them are not so obviously equivalent makes things somewhat more confusing. For instance, in various passages he seems to identify perspectival contents with theories of some sort:

the resulting local theory is your interperspectival content.” (p. 72, italics mine).

I’ve offered a proposal in which we think of interperspectival contents as local theories that we express in different ways from different perspectival positions. (p. 75, italics mine)

Earlier, though, when discussing the storyboard metaphor, he talks about perspectival contents as being the combination of the panels (i.e. perspectival positions) and a theory, and not just the theory itself (p. 42). The following passage is also a bit odd: “[a]s we saw in Chapter 1, stripping the perspectival content from these theories [i.e. action rationalizations] neuters them” (p. 71). This makes it seem that perspectival contents are something contained or invoked in theories, and not theories in themselves. Also, assuming that perspectival contents are identified with theories, it is not clear how to interpret this passage: “[p]erspectival contents, when expressed, do not supervene on the state of a single individual, but they rather supervene (at least partly) on multiple individuals in multiple perspectival positions.” (p. 44). It surely sounds weird to say that a theory supervenes on individuals in perspectival positions; supervenience does not seem to be the right sort of relation here. Although I think I understand what perspectival contents are, I confess that I still feel a bit confused about the particulars and how they are supposed to work exatcly.

In the third chapter, Ludlow sets out to explain our “cross-perspective communication abilities” (p. 57), that is, how we manage to communicate across perspectival positions. As I mentioned earlier, in order to express the same perspectival content across spatial, temporal or personal perspectival positions we need to adjust its verbal expression. But how exatcly do we do that? To answer this question, Ludlow draws from his theory of Interpreted Logical Forms (ILFs)2 and from his theory of microlanguages3. The problem ILFs set out to explain was the problem of how using different expressions at different times could count as attributing the same attitude to an agent (p. 66). The basic idea is that, in making attitude reports, we are offering a “contribution to our shared theory of the agent’s mental life” (p. 67). This theory has two components: the Modeling Component and the Expression Component. The Modeling Component is roughly the ability to model an agent’s mental life, and it is sensitive to various factors, such as our interests and goals, our common ground, our knowledge of folk psychology, and so on. The Expression Component, in turn, involves a tacit negotiation among speakers regarding which expressions to use to talk about the agent’s belief structure as modeled by the Modeling Component. Drawing from research in psychology, Ludlow calls this process of negotiating expressions entrainment (p. 68). The result of entrainment is a microlanguage built on the fly, in the context, to describe the relevant agent’s attitudes. Thus, given our models and our local microlanguages, different words sometimes express the same content, sometimes different contents, or leave the matter open (p. 68). This same general idea applies in the case of perspectival contents and how they are expressed across different perspectival positions. The ability to form microlanguages help us express local theories, constructed on the go, about perspectival information. In other terms (as I understand it), by modeling perspectival information and by building microlanguages we are able to express shared local theories so as to explain action, emotion, and so on, from different perspectives and about agents in different perspectival positions. To illustrate this point, Ludlow again uses the metaphor of the storyboard:

… we can think of the storyboards as illustrating the Modeling Component. The overarching theory of content attribution combines the perspectival information (illustrated by the multiple storyboards), coordinates its expression across the agents represented, and combines that with fine grained contents as in the Larson and Ludlow ILF theory (…) The resulting local theory is your interperspectival content. (p. 72)

What I have discussed so far covers, I think, the main body of Ludlow’s theory of perspectival contents. These chapters are dense and complicated, and some points would benefit from a lengthier exposition. For example, ILFs and microlanguages are very important to the overall theory, and it would help if they were explained in a bit more detail. This also happens later in the book, when he uses his theory of the dynamic lexicon to account for the passage of time. I suspect that readers who are not familiar with Ludlow’s earlier work might fail to fully appreciate his point.

In the fourth chapter, Ludlow considers alternative accounts of perspectival contents: token reflexive theories, Lewis’ de se, Kaplan’s theory of indexicals and demonstratives, and use theories. He argues that all of them try to purge perspectival contents from the semantics, but sooner or later they reappear with a vengeance. According to him, such sanitized semantics (especially token-reflexive theories) fail to do the very thing they were supposed to do, i.e., explain action, emotion, temporal reasoning, etc., and they often end up surreptitiously reintroducing perspectival contents in the metalanguage. His objections to Perry’s reflexive-referential theory, in particular, are very compelling. He ends with an interesting discussion of rule-following and normative behavior in general, which provides the perfect hook for the next chapter, where he applies his theory to computation and information theory. In short, he argues in that chapter that perspectival contents are necessary to understand the very notion of information, and that “all information flow, whether natural or the product of human intentions, ultimately bottoms out in perspectival contents.” (p. 134).

In the sixth chapter, Ludlow argues for what he calls A-series and B-series compatibilism. This is the thesis that we can combine the immutable ordering of events in time (the B-series) with the tensed series of events (the A-series) without generating puzzles. Again, he draws on his earlier work on the dynamic lexicon (Ludlow 2014) and relates it to his theory of perspectival contents to explain how that is possible. He claims that both the B-series and the A-series are needed to account for the passage of time, and perspectival contents and the dynamic lexicon play an essential role in his explanation. Also, he notes that one can endorse his view of the A-series without being a presentist. A detailed argument for this latter claim, however, is found in the appendix. The remaining chapters deal with further metaphysical issues and argue that perspectival contents cannot be eliminated even from science, both in its practice and in its theories.

In sum, Ludlow’s book puts forward provocative claims and an interesting and novel theory of perspectivality. The amount of ground covered in such a relatively short book is admirable. Even if it is not all that clear that Ludlow’s theory can explain everything it is meant to explain – after all, its ambitions are far from humble -, his arguments, objections and examples are vivid and persuasive, and they cannot be ignored by philosophers working on these issues. Philosophically inclined computer scientists, information theorists and physicists might also find the book an interesting read.

References

CAPPELEN, H., AND DEVER, J., 2013. The Inessential Indexical. Oxford: Oxford University Press. [ Links ]

LARSON, R., AND LUDLOW, P., 1993. “Interpreted Logical Forms.” Synthese 95, 305-56. [ Links ]

LUDLOW, P., 2014. Living Words: Meaning Underdetermination and the Dynamic Lexicon. Oxford: Oxford University Press . [ Links ]

LUDLOW, P., 2000. “Interpreted Logical Forms, Belief Attribution, and the Dynamic Lexicon.” In. K.M. Jaszczolt (ed.), Pragmatics of Propositional Attitude Reports. Elsevier Science, Ltd. [ Links ]

MORGAN, D. 2019. “Temporal indexicals are essential”. Analysis 79 (3):452-461. [ Links ]

STRAWSON, O. 1959. Individuals: An essay in Descriptive Metaphysics. 7th Edition, New York, Routledge. [ Links ]

Notas

1An exception is Morgan (2019).

2Cf. Larson & Ludlow (1993) and Ludlow (2000).

3Cf. Ludlow (2014).

Filipe Martone – University of Campinas Department of Philosophy Campinas, SP Brazil. E-mail: filipemartone@gmail.com

Acessar publicação original

Arqueologia: crítica e humanista – DÍAZ-ANDREU (CL)

DÍAZ-ANDREU, Margarita. Arqueologia: crítica e humanista. São Paulo: Fonte Editorial, 2019. Resenha de: BÉLO, Tais Pagoto. Cadernos do LEPAARQ– Textos de Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, v. XVI, n. 32, jul./dez., 2019.

A obra “Arqueologia: crítica e humanista” tem como autora a prestigiada professora Margarita Díaz-Andreu, pes- quisadora do ICREA, catedrática de Arqueologia da Universidade de Barcelona, além de ter sido professora da Universidade de Durham (1996 – 2011), com várias obras publicadas por editoras conceituadas, como Oxford U. P. e Cambridge U. P. O livro em questão foi elaborado como fruto de sua estadia no Brasil, durante o ano de 2013, com apoio da FAPESP, a convite de Pedro P. A. Funari, professor titular da Unicamp, o qual já almejava sua vinda desde 1999. O livro é resultado das aulas dadas aos alunos da Unicamp, os quais, de forma empolgada e dedicada, decidiram traduzi-las.

A publicação se inicia com um texto introdutório elaborado pelo Prof. Funari, intitulado “Uma Arqueologia crítica e Humanista,” no qual descreve os arcabouços acadêmicos para o surgimento do Laboratório de Arqueologia Pública Paulo Duarte, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O professor comenta que o surgimento da própria Universidade foi resultado de um movimento contra um regime de força, acolhendo cientistas notáveis que foram perseguidos, motivo pelo qual a instituição acabou se destacando, por ser voltada à sociedade e à diversidade. Esse fato refletiu em sua Arqueologia, a qual amparou Paulo Duarte (1899 – 1984), arqueólogo libertário, que teve como objetivo a popularização do conhecimento e abriu as portas para Niède Guidon.

Em sequência, a Apresentação do livro foi delineada por Cláudio U. Carlan, Professor Doutor da Universidade Fe- deral de Alfenas (UNIFAL), com um texto chamado “Arqueologia ontem e hoje”. Nele, comenta sobre a importância que a autora teve em criticar, de forma veemente, os bastidores político-ideológicos do início da disciplina arqueológica, durante o Imperialismo e o Colonialismo europeu.

Continuando a leitura, no Prefácio, de Lúcio M. Ferreira, Professor Doutor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), que tem como título “As diferentes vozes da História da Arqueologia”, comenta-se uma diversidade de temas que a obra abarca, desde etnicidade até nacionalismo, imperialismo, colonialismo, gênero e turismo. Houve uma preocupação em comentar o ponto de vista da autora, o qual é catalogado em três razões de importância: a desnaturalização de categorias arqueológicas; a disciplina gestou o eu e o outro, sem considerar valores consubstanciais nas análises; e as primeiras ideias levam a se pensar as práticas do presente e o redirecionamento do futuro.

A obra possui seis capítulos e inicia com a “História da Arqueologia: cinco perspectivas diferentes”, que foi basea- do no “The Oxford Companion of Archaeology”, evidenciando cinco vozes que sobressaltam eixos comuns das relações da História, da Arqueologia e do mundo contemporâneo. A leitura das vozes demonstra uma resistência através de críticas à dis- ciplina. A primeira voz argumenta contra as Arqueologias Americana e Britânica, as quais se fecham e apenas homenageiam seus próprios estudiosos, com o uso de um olhar nacionalista, imperialista e colonialista. A segunda voz critica a tentativa da existência da história silenciada, ou seja, aquela que acredita apenas no protagonismo da Europa e da América do Norte, mas que foi ampliada pela institucionalização de museus, sociedades científicas, legislação e até pelo patrimônio turístico. A terceira voz aborda o nacionalismo, o qual a autora menciona que foi crucial à origem da disciplina, permitindo sua institucio nalização e profissionalização do saber. A quarta voz diz respeito ao Imperialismo, que levou à busca de monumentos antigos e civilizações para além da Europa e América do Norte. A quinta voz demonstra os usos ideológicos da Arqueologia de forma positiva e negativa e como a política se beneficiou disso.

No segundo capítulo, intitulado “Gênero e arqueologia: uma nova síntese”, Díaz-Andreu, ao criticar a pequena di- mensão desse tipo de estudo na Espanha, também acaba abordando “gênero” e “sexo”, evidenciando um olhar multidimensio- nal e diversificado, além de deixar claro que a identidade social é determinada cultural e historicamente. Além disso, a autora faz um aparato cronológico em relação ao “gênero”, da psicanálise, passando pela Antropologia, até chegar na Arqueologia, com os trabalhos revolucionários de Gero & Spector (1983) e de Conkey e Spector (1984). Critica a lentidão da Arqueologia em adotar o conceito de “gênero”, comparada à Antropologia, e culpa a demora do Pós-Processualismo em se impor, uma vez que, para ela, “gênero” é Pós-Processual. Diferencia a Arqueologia de Gênero da Arqueologia Feminista, em que, em seu ponto de vista, a primeira trata de todos os gêneros, enquanto a segunda é centrada nas mulheres. Seguindo as críticas da década de 1980, comenta que a amostragem masculina na Arqueologia sempre apareceu de forma mais positiva, além de que, quando as mulheres eram incluídas, eram mencionadas de modo secundário. Critica a interpretação binária do uso do espaço, que pode trazer efeitos às relações de gênero; recrimina a explicação pré-concebida ou pré-fixada para sepultamentos, como se existissem objetos que seriam “certos” para homens e outros para mulheres. Além disso, menciona o ponto de vista da Arque- ologia tradicional, do século XIX, com suposições evolucionistas, que demonstrava que a hierarquia de gênero é algo natural do ser humano. Contudo, para a professora, a Arqueologia de Gênero contribui de forma profunda para o enriquecimento do estudo da própria Arqueologia, de maneira a propor um novo viés.

A estudiosa inicia o terceiro capítulo, nomeado “Gênero e Antiguidade: propostas da tradição anglo-americana”, comentando sobre José R. Mélida, catedrático de Arqueologia, da Universidade de Madrid, e seu texto sobre “As mulheres da Antiguidade no banheiro” (1894). Ela o utiliza para evidenciar que as categorias de homem e mulher são interpretadas de maneira diferente de acordo com o tempo, com atributos provindos do meio social, da localização geográfica e da identidade étnica. A autora teve como intuito demonstrar a contribuição dos estudos de gênero à Antiguidade, debruçou-se em autores(as) de origem inglesa, incluiu a interdisciplinaridade e, além de tratar da cultura material, também apresenta dados das fontes tex- tuais. Ao citar S. Dixon, salienta que os textos antigos foram escritos por homens, com mulheres invisíveis ou minimizadas, e que, além desse fato, a maioria dessas fontes trata a mulher como o “outro”. Critica a não inserção de Classistas em obras gerais sobre gênero e coloca um senso cronológico ao estudo, iniciando com a famosa obra de S. Pomeroy (1975) e com os estudos sobre as mulheres em campo, desenvolvidos por L. Allason-Jones (1989), marcando a década de 1970 como o período em que o termo “gênero” apareceu na Antropologia, e na década seguinte, o mesmo termo apareceu na Arqueologia Pré-His- tórica, através do artigo de Conkey e Spector (1982), além do uso do termo “sexo” por M. Wyke (1997) e M. Skinner (2005). Em 1990, com o crescente interesse acerca do “gênero” na Antiguidade, L. Zamati (1994) acaba criticando a Arqueologia Clássica por não ter entusiasmo sobre o assunto, e Revell (2010) denuncia que todos os estudiosos deveriam refletir a respeito do “gênero”, a fim de não ser tratado como uma subdisciplina. Cita S. Spencer-Wood e P. Allison (2011) denunciando o an- drocentrismo atual, o que faz com que o estudo da mulher na Antiguidade seja deveras importante. Pontua que a questão do gênero na Antiguidade precisou de termos específicos para práticas sexuais diversas à interpretação de Pompeia e Herculano, por exemplo, além de casos de hermafroditas, bissexuais, eunucos e outras diversidades. Por fim, evidencia alguns estudos de caso para demonstrar as dificuldades e diferentes pontos de vista dos estudos de gênero na Antiguidade, correlatando o assunto com identidades étnicas e status.

O quarto capítulo sai das questões de gênero e abre o assunto a respeito de “Identidade étnica e Arqueologia”, iniciando-se com o debate do começo do século XX acerca de “povos” e “nações,” termos substituídos por “culturas arqueo- lógicas”. Para a autora, a etnicidade está ligada à autoimagem de uma pessoa ou à imagem produzida por outros, resultantes da identificação com um ou mais grupos, considerando a identidade como algo multidimensional, já que cada indivíduo é associado a vários grupos que poderiam ser classificados dentro da definição de etnicidade. Compreende que cada indivíduo é ativo em relação às suas identidades étnicas e às negociações diárias, fazendo com que uma ou várias delas se manifestem, sendo que as etnias possuem fluxo contínuo e podem desaparecer. Discute o termo “comunidades,” o qual foi introduzido na última década para fazer referência ao coletivo social que divide um espaço geográfico, e define grupos como indivíduos que se mantêm unidos por viverem juntos na mesma povoação e através de práticas de afiliação, apontando que nem toda identi- dade de um grupo está presa pelos laços étnicos. A estudiosa não deixa de expor a origem dessa discussão, que se iniciou na virada do século XIX para o XX, dentro do Histórico-Culturalismo, protagonizada por G. Kossina com o uso do termo “cul- tura”, momento na Arqueologia em que as mudanças na cultura material eram vistas como resultado de invasões ou substitui- ções de grupos étnicos, além de haver uma obsessão pela busca da origem dos povos. Denuncia o Processualismo, com seus métodos de análise de registros e formação de sítios, método hipotético-dedutivo e por ter uma visão fixa do comportamento humano. Entretanto, salienta que, na Antropologia dos anos 1970, F. Barth propôs que a identidade não fosse objetificada, deixando de lado a cultura material, porém, mais tarde, Cohen (1978) considera a fluidez da etnicidade como elemento signi- ficativo das relações sociais. Nenhum deles chegou à conclusão de que a identidade étnica é multidimensional e que múltiplas identificações étnicas coexistem na mesma pessoa, além de que o termo “identidade étnica” não era aplicável para sociedades pré-capitalistas por autores como Eriksen (1993). Dentre essas classificações, Díaz-Andreu demonstra as tentativas dentro do senso de divisão nacionalista de como classificar o “outro.” Finaliza seu artigo citando os trabalhos de I. Hodder (1982), ao evidenciar como a cultura material pode ser ativa na criação de relações sociais, enfatizando seus significados, e como a inte- ração cultural depende de estratégias e intenções dos grupos. Conclui citando obras e autores significantes nessa área, assim como Shennan (1989) e Jones (1997).

O quinto capítulo, às luzes das questões do turismo e da ética, é resultado da organização de um número da Inter- national Journal of Historical Archaeology, feito pela professora espanhola sobre uma sessão que ocorreu no Theoretical Ar- chaeology Group (TAG), na Universidade de Durham, em 2009, o qual teve o intuito de discutir questões teóricas referentes ao turismo arqueológico e incluiu temas como: a mudança do papel da arqueologia turística cultural, memória, monumentos, museus e éticas, assuntos que despertaram considerações sobre a administração do patrimônio, turismo arqueológico, cons- trução de identidades, transformação de sítios e museus em mercadorias, conservação, autenticidade, turismo de massa, patrimônio como atividade estatal institucionalizada, identidades regionais e locais e o uso da arqueologia como vetor para a descolonização do discurso histórico. Inicia o texto pelo turismo arqueológico e como ele deve ser transformado por arqueó- logos com o intuito de ser utilizado como uma economia de mercado e, assim, consumido (commodification). Entretanto, essa atividade levantou pontos éticos que levaram a casos tensos, os quais deram origem a órgãos como o CRM (Cultural Resource Management) e a acordos como a Carta de Veneza. Consequentemente, isso deu origem a publicações, durante a década de 1970, relacionadas ao modo como os vestígios poderiam ser mais bem percebidos e tratados, assim como restos mortais e comunidades vivas e suas relações com o passado. São comentados alguns atos que muitas vezes envolveram a devolução de bens culturais apropriados antes por museus internacionais, abrangendo também o tráfico ilícito de objetos. Esses problemas levaram a UNESCO, em 1970, a aprovar a “Convenção sobre os Instrumentos de Proibição e Prevenção da Importação”. Já o ano de 1980 é colocado como o início dos debates acerca das responsabilidades éticas na Sociedade de Arqueologia Ame- ricana e no Congresso Mundial de Arqueologia, surgindo os códigos de ética em 1990. A autora menciona que o turismo foi fundamental para o patrimônio cultural, delineando que seu início se deu mais facilmente em países com monumentalidades e que, na América Latina, somente ocorreu depois do apoio ao indigenismo. Atualmente, os arqueólogos estão muito ativos no turismo como promotores, tendo iniciativas comunitárias, assim como o advento de museus locais, obtendo uma legisla- ção própria e sofrendo consequências econômicas pela globalização. Além disso, contam com órgãos supranacionais, como a UNESCO, que cuidam do patrimônio comum da humanidade. Dessa forma, demonstra que, por mais que a Arqueologia já tenha servido para sustentar o passado das “nações”, hoje ela legitima a existência de grupos presentes.

A estudiosa finaliza a obra apresentando outro capítulo sobre o turismo, denominado “Turismo e Arqueologia: um olhar histórico para uma relação silenciada”, no qual é descrita toda a desenvoltura histórica e mercantilista dessa área. Ela o inicia salientando que o turismo arqueológico começou através do nacionalismo do século XIX, do surgimento dos museus, do interesse por monumentos históricos e remanescentes do passado, além de ter sido um movimento aristocrático, mas que deixou de ser com o aparecimento da classe média. Discute a base que une o Turismo e a Arqueologia e como a relação entre os dois temas mudou ao longo do tempo, levando, consequentemente, a uma transformação mercantilista. Explica que durante o século XIX foram as exposições universais que popularizaram o passado da nação. Menciona, ainda, que os meios de trans- porte, tanto aqueles a vapor quanto os automotivos, facilitaram o turismo arqueológico, adicionando o transporte aéreo para o surgimento do turismo em massa, o que aumentou também o risco ao patrimônio, além do risco aos negócios da Arqueologia. A implicação do teor da obra destina-se a qualquer estudioso da Arqueologia, uma vez que essa é uma leitura densa e dinâmica, a qual não hesita em repreender os vários parâmetros que a disciplina já seguiu e as vaidades que ainda enclaustram o mundo dos embates acadêmicos, revelando uma resistência crítica que eclode em um novo olhar, que finaliza no esforço co- munitário. Passado, presente, memória, grupos, nações, povos são colocados como uma multiplicidade de ideias que a autora

explicita e faz o leitor clamar por um uso mais holístico de uma área tão criativa, lucrativa e ao mesmo tempo tão polêmica. A exclusividade dessa leitura se faz pela ousada manifestação da autora em evidenciar de forma contundente aspec-

tos da Arqueologia que a tornaram cúmplice de políticas nacionais e que, de outro modo, ainda perpetuam um preconceito acadêmico baseado em um passado imperialista. Nesse contexto, a estudiosa expõe, por suas informações, novos vieses da Arqueologia, uma vez que essa área se mostra liberta das amarras políticas e ideológicas do passado para também servir como poder para grupos minoritários atuais.

Tais Pagoto Bélo – institucio-a Pós-doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP), Brasil. Apoio financeiro da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Brasil.

Acessar publicação oficial

[MLPDB]

IV Seminário de pesquisa em História da Arte / Ícone/ 2019

A pesquisa na área de Humanidades – mesmo quando se aproxima do texto mais livre, literário ou poético – sempre há de exigir de quem se dedica a ela o rigor teórico e metodológico. Não se trata de encontrar uma receita ou uma fórmula mágica de aplicação que nos conduzam por veredas seguras e certeiras; o importante, antes de tudo, é a construção de um percurso próprio e desacomodado, ainda que seja, como sugere o poeta Francis Ponge, no estilo vaique-vai, “muito pouco a cada dia”. [1]

O presente dossiê, desdobramento do IV Seminário de Pesquisa em História da Arte, retoma algo desses horizontes possíveis. O evento, realizado pela Comissão de Graduação do Bacharelado em História da Arte da UFRGS, em setembro de 2017, no Goethe Institut, em Porto Alegre, contou com pôsteres virtuais de estudantes de graduação, comunicações de alunos e alunas que recém haviam se formado no curso e conferências de três professoras que então se aposentavam: Blanca Brites, Elida Tessler e Mônica Zielinsky. De modo generoso e alvissareiro, tanto os mais jovens quanto as decanas compartilharam diferentes aspectos de suas trajetórias e seus trabalhos.

Para compor esta edição, convidamos os egressos e as egressas a produzirem textos que não exatamente resumissem seus Trabalhos de Conclusão de Curso, mas que dessem conta dos processos de composição dessas pesquisas: os bastidores, as costuras, os alinhavos feitos pelo avesso. Em uma série de artigos inéditos, na primeira pessoa do singular, Carolina Grippa, Caroline Hädrich, Charlene Cabral, Diego Groisman, Diego Hasse, Gabriela Carvalho da Luz, Paulo Heidrich e Valdriana Corrêa rememoram como se desenvolveu a tarefa – tantas vezes árdua e desgastante, mas também sensível e reveladora – de abrir seus próprios caminhos na escrita da História da Arte.

Esperamos que esses depoimentos, raros e bastante singulares, possam servir de estímulo a quem começa a se aventurar por essas trilhas, nem que seja vai-que-vai, um pouco a cada dia.

Nota

1. PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 27.

Eduardo Veras


VERAS, Eduardo. Sobre o dossiê. Ícone, Porto Alegre, v. 4, n. 4, jul., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Volta ao mundo em 13 escolas: sinais do futuro no presente | André Gravatá

Volta ao mundo em 13 escolas é um projeto do coletivo Educ-Ação que vai mostrar o sonho de Eduardo Shimahara (Shima), juntamente com André Gravatá, Camila Piza e Carla Mayumi, em compreender a educação contemporânea ao redor do mundo. Ao todo, foram visitadas 13 escolas distribuídas por nove países sendo eles por sua vez em Cinco continentes diferentes.

A ideia surge com Shima, que se pergunta se é possível existir um método de ensino além do conhecido tradicional. Essa ideia é incorporada por seus amigos que se juntam nessa empreitada de visitar várias escolas espalhadas pelo mundo a fim de compreender o método educacional vigente. Para isso o critério utilizado para seleção das escolas foi a diversidade. Passam cinco dias em cada escola para entender seu funcionamento e ações sejam de professores, estudantes ou até mesmo dos pais. Leia Mais

Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo – Entre harmonia e contradição | Patricia Villen

A obra, “Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo”, autoria de Patricia Villen, publicada em 2013, encontra-se organizada em duas partes. A primeira: O mundo que o colonialismo português criou, contendo os três primeiros capítulos e a segunda: O mundo que o anticolonialismo de Cabral começou a construir, contendo os dois últimos, que se somam cinco capítulos de um estudo da colonização portuguesa. A autora procura mostrar a colonização a partir da perspectiva dos colonizados, abordando o tema na contramão da visão dominante, mostrando a independência dos países africanos como uma conquista que foi muito além do militar. A abordagem adotada nesta obra consiste em evidenciar que, para além do confronto militar, as lutas independentistas no continente africano se assentaram numa outra perspectiva ontológica proporcionando uma outra maneira de se relacionar que não fosse através das guerras de conquista.

No capítulo 1, intitulado “A estrutura de opressão racial na colônia de exploração: O modelo Português”, a autora discute o sentido da colonização e a condição servil dos colonizados, barreiras raciais do império e a questão racial na antologia colonial portuguesa. Segunda Patrícia, a ideia de “ocupar com povoamento”, ou seja, de constituir no território descoberto uma sociedade parecida com a europeia, caracterizou a colonização das regiões temperadas da América do Norte: “o que os colonos dessa categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhe ofereça garantias que no continente de origem já não são mais dadas”. Leia Mais

Índios e Espaços: visibilidade e protagonismo históricos / Revista Espacialidades / 2019

Cada vez mais articulados, os povos indígenas nas Américas têm conquistado espaço e atuado nas mais diversas áreas. Grupos antes negligenciados, agora ocupam lugares de destaque nos meios políticos, artísticos, acadêmicos, religiosos e todos os mais que permeiam a sociedade. Se hoje o número de trabalhos acadêmicos que buscam explicitar os protagonismos e agências indígenas aumentaram é porque houve uma renovação teórico-metodológica contra a perspectiva na qual, por muito tempo, estes povos apareciam na história nacional de maneira alegórica, datada e estereotipada, pouco condizente com sua realidade e com os processos históricos pelos quais passaram desde o momento do contato.

Impossível não destacar a aproximação entre a Antropologia e a História para o enriquecimento das produções acadêmicas sobre estas populações e para o adensamento teórico das discussões desenvolvidas nas Universidades, que não se limitam ao meio acadêmico. O diálogo com outras disciplinas, como a Geografia, gerou pesquisas sobre os elementos culturais característicos de povos específicos sendo determinantes para migrações e estabelecimento de assentamento, bem como o diálogo com a História do Direito possibilitou compreender as bases legais para o trabalho (escravo ou livre) dos índios desde o período colonial.

Perceber integrantes destes povos ocupando espaços na sociedade que antes lhes eram negados ou aos quais eram desestimulados a ocupar, como as Universidades, o Congresso Nacional, ou mesmo o cotidiano de centros urbanos, nos faz perceber a importância de relatá-los historicamente como o são: agentes de suas próprias histórias. Expor artigos sobre as articulações políticas destes povos em momentos cruciais de nossa história nacional, sobre a importância de seus elementos culturais em sua organização social, sobre sua constante busca por direitos enquanto povos diferenciados, traz à luz a atuação constante e imprescindível desta população nos processos históricos nos quais estão inseridos.

Neste sentido, o dossiê Índios e Espaços: visibilidade e protagonismo históricos reúne artigos que mostram, de diversas formas, como os povos indígenas atuam e atuaram nestes diferentes espaços e como suas agências são imprescindíveis na escolha de seus elementos culturais diacríticos, formação de seus grupos e na luta por seus direitos, além de trazer artigos que contemplam discussões conceituais que vêm sendo travadas no universo acadêmico nos últimos anos.

Exemplo disso é a discussão sobre os conceitos de território e territorialidades nos estudos sobre os processos de transformação do meio em que os povos indígenas coloniais habitavam e como estes tiveram que lidar com estas transformações, como mostra Marcos Felipe Vicente, doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, no artigo de abertura deste dossiê, intitulado “Transformação dos espaços indígenas coloniais: algumas reflexões conceituais”.

Da mesma forma que os conceitos estão sendo revistos, a historiografia de partes específicas do país também está sendo revisitada, como a região sul de Minas Gerais, que teve grande importância no período colonial pelas minas auríferas que abrigava. Gustavo Uchôas Guimarães, professor de História na rede pública de Minas Gerais, no artigo “O trabalho de visibilização dos indígenas nos estudos sobre Minas Gerais: o caso sul-mineiro de Virgínia e seus arredores” propõe uma revisão histórica do que vem sendo produzido sobre esta região, mais especificamente sobre a Serra da Mantiqueira e o rio Verde.

O terceiro artigo desta edição traz um debate historiográfico sobre as contribuições e limitações do Estruturalismo enquanto vertente explicativa de análise dos povos indígenas, a partir de respostas às críticas tecidas por Claude LéviStrauss, publicadas no periódico L’Homme, em 2001. O artigo “Críticas ao Estruturalismo na virada do século: o debate nas páginas de ‘L’Homme’ e ‘The Americas’ (2001-2003)”, escrito por Caio Rodrigues Schechner, mestrando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, traz este debate tão caro ao campo da História e das Ciências Sociais.

Em “À luz da ‘civilização’: representações indígenas nas narrativas dos viajantes (MT, séc. XIX-XX)”, Carlos Alexandre Barros Trubiliano, Professor Adjunto de História da Universidade Federal de Rondônia – UNIR, utiliza a análise de discurso nos relatos de viajantes para perceber como o Estado de Mato Grosso e seus habitantes eram representados nestes relatos. Também utilizando crônicas, relatos e cartas de viajantes e conquistadores, Bruno Oliveira Castelo Branco, doutorando em História Moderna pela Universidade Federal Fluminense – UFF, investiga a etapa inicial de colonização do Paraguai, analisando a problemática das categorias de trabalho atribuídas aos povos Guarani, em “‘Paraíso de Maomé’, terra de escravos: as categorias de trabalho indígena Guarani na etapa inicial da conquista. Paraguai e Rio da Prata (1541-1556)”.

Assuntos também importantes nas produções acadêmicas sobre os povos indígenas são as questões de migrações e mobilidades espaciais. “Xukuru-Kariri: mobilidades espaciais indígenas em Alagoas na segunda metade do século XX”, escrito por Adauto Santos da Rocha, mestrando em História pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, e Edson Silva, Professor Titular de História na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, buscam evidenciar as mobilidades dos Xucuru-Kariri que residem em Palmeira dos Índios-Alagoas, para trabalhos sazonais, discutindo os percursos entre as cidades nas quais os trabalhos são realizados e as aldeias Xukuru-Kariri, durante a segunda metade do século XX.

Partindo da região Nordeste para o Norte do Brasil, no sétimo artigo do dossiê, de Daniel Belik, Doutor em Antropologia Social pela Universidade de St. Andrews-Escócia, procurou compreender as experiências espaciais dos indígenas na Amazônia ao percorrer caminhos pela floresta e como a relação deste bioma com povos externos a ele ocorre de forma distinta em “Caminhos Indígenas: Espaços de movimentação pela Amazônia”.

“Migrações Terena para a periferia de Campo Grande (MS): a manutenção de relações tradicionais de parentesco em contextos urbanos”, escrito por Luiz Felipe Barros Lima da Silva, mestrando em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, e Victor Ferri Mauro, Docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, também abordam a temática dos deslocamentos. Além de analisarem os deslocamentos espaciais de um pequeno grupo Terena, os autores investigam a manutenção de redes de parentesco e compadrio.

Vinícius Alves de Mendonça, graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, analisa as pinturas corporais dos indígenas Jiripankó enquanto elemento representativo da memória e da identidade étnica deste povo, no artigo “História e grafismos: estudos sobre a pintura corporal entre os indígenas Jiripankó”. Assim como os Jiripankó tem em suas pinturas corporais um elemento representativo da memória, os Kaingang acionaram elementos identitários culturais na luta pela demarcação de suas terras. A paisagem, juntamente com outras atividades culturais, apresenta-se como lugares de memória que foram fundamentais para a consecução da demarcação da Terra Indígena Toldo Pinhal-SC, exposta no artigo “Places of memory and cultural re-signification in the indigenous land Toldo Pinhal, Brazil” escrito por Jesssica Alberti Giaretta, graduada em História pela Universidade Federal da Fronteira do Sul – UFFS, e Jaisson Teixeira Lino, Professor Adjunto na mesma instituição e Doutor pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro(UTAD) de Portugal.

Por fim, o último artigo desse dossiê, intitulado “Um quase eterno reencontro: Ailton Krenak e a Assembleia Nacional Constituinte (1987)” e escrito por Rômulo Rossy Leal Carvalho, graduando em História pela Universidade Federal do Piauí – UFPI, e Rafael Ricarte da Silva, Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Neste artigo, os autores analisam as participações dos indígenas nos processos da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), especialmente, a atuação de Ailton Krenak, da comunidade Krenak.

Na sessão “Entrevista” do presente volume, contamos com a colaboração da Professora Doutora Patrícia Maria de Melo Sampaio, pesquisadora premiada da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, que durante toda sua vida acadêmica se debruçou no estudo das desigualdades, buscando compreender o universo do trabalho dos povos indígenas, africanos e as fronteiras existentes entre estas populações.

Fechando este volume, contamos com a contribuição do Doutor Francisco Cancela, Professor Efetivo da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, na sessão “Corpo documental”. “Leis municipais ou posturas da câmara e concelhos desta Vila de Porto Alegre: Notas para o estudo sobre política e administração nas vilas de índios”, apresenta as posturas municipais da câmara de uma vila de índio da antiga capitania de Porto Seguro chamada São José de Porto Alegre, lançando notas para futuras pesquisas sobre política e administração das Vilas de índios.

Desta forma, o presente volume da Revista Espacialidades busca corroborar com os estudos que versam sobre os múltiplos aspectos da experiência indígena e sua atuação nos mais diversos espaços. Através de artigos que abordam aspectos teóricos e metodológicos da produção acadêmica sobre estes povos, que trabalham suas migrações e / ou deslocamentos espaciais, bem como elementos culturais distintivos e sua atuação na política e na luta por seus direitos, busca-se contribuir de maneira proveitosa com esta temática tão importante e necessária.

O Editor Chefe e a Equipe Editorial da Revista Espacialidades desejam a todos uma excelente leitura!

Clara Maria da Silva (UFRN) – Editora de texto (normatização)

Douglas André Gonçalves Cavalheiro (UFRN) – Editor

Edcarlos da Silva Araújo (UFRN) – Gerenciador do site

Lígio José de Oliveira Maia (UFRN) – Editor Chefe

Ristephany Kelly da Silva Leite (UFRN) – Editora Gestora

Rodrigo de Morais Guerra (UFRN) – Secretário de Comunicação e Mídias Sociais

Thiago Venicius de Sousa Costa (UFRN) – Vice Editor Gestor

Victor André Costa da Silva (UFRN) – Secretário Geral


MAIA, Lígio José de Oliveira et al. Apresentação. Revista Espacialidades. Natal, v.15, n. 02, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

A aventura – AGAMBEN (SO)

AGAMBEN, Giorgio. A aventura. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. Resenha de: PROVINCIATTO, Luís Gabriel. Sofia, Vitória, v.8, n.2, p.232-236, jul./dez., 2019.

A tradução das obras de Giorgio Agamben (1942) para o idioma português é significativa para o avanço dos estudos acerca do pensamento desse filósofo contemporâneo que se põe a discutir temas de filosofia, religião, política, direito, economia, cultura. A diversidade temática, característica que perpassa as obras de Agamben, implica possíveis diferentes matizes através das quais se pode aproximar e abordar suas obras: elas não são um domínio exclusivo da filosofia, sendo discutidas também pelas ciências sociais e pelos braços que delas derivam, pela ciência da religião e pela teologia, pela ciência política e pelo direito. Isso é possível porque o conteúdo trazido por Agamben está vinculado à interpretação dos problemas contemporâneos, que, por sua vez, exigem distintas abordagens para que sejam compreendidos em sua integralidade. A aventura ( L’avventura ), obra originalmente publicada na Itália em 2015, não foge a essa caracterização geral.

Trazendo como tema central a aventura, a obra está organizada em cinco capítulos, seguidos de um posfácio, próprio da tradução brasileira, assinado por Davi Pessoa. Aventurar-se : esse é o título do posfácio, que, de acordo com nossa perspectiva, deveria ser a primeira parte da obra a ser lida por dois motivos. Primeiro, ele situa o leitor quanto à arqueologia, método muito caro a Agamben e utilizado pelo autor em uma perspectiva particular. A adequada compreensão da metodologia de investigação implica uma leitura menos propensa a equívocos interpretativos e, além disso, mostra que o método arqueológico não é utilizado na investigação do passado pelo passado, pois para o filósofo importa fazer confluir passado e presente. Conforme indica Pessoa, é preciso “saber viver o embate entre presente e passado para desativar as amarras do chronos , produzindo uma transformação por dentro da temporalidade linear através do uso errático do anacronismo” (PESSOA, 2018, p. 70). Segundo, o posfácio mostra que A aventura não é uma obra sobre um tema aleatório: justifica-se a realização de uma arqueologia da aventura no contexto das investigações de Agamben já publicadas. Esse é outro mérito do posfácio: trazer, mesmo que brevemente, outras obras de Agamben para mostrar a relevância de uma abordagem sobre o tema da aventura. Aí são citadas Signatura rerum: sobre o método (Boitempo, 2019), Ideia da prosa  (Autêntica, 2012) e Infância e história: destruição da experiência e origem da história (Ed. UFMG, 2012). O posfácio ainda faz notar que ao tema da aventura está implícito o da história e o da linguagem, logo, o do surgimento do homem enquanto ser falante e histórico. Ao tema da aventura, então, está vinculado o da antropogênese, que, por sua vez, interessa a cada humano particularmente, pois diz respeito à sua condição de vivente. O posfácio, assim, traz e faz uma adequada introdução à obra no contexto que lhe é próprio.

Demônio : esse é o título do primeiro capítulo. Conforme indica a nota de tradução, o termo original utilizado por Agamben é demone , que, em italiano, guarda uma relação com o termo grego daímon . Note-se, então: a relação aqui pretendida é com a tradição grega e com o significado de daímon , que denota o caráter divino (transcendente) de um chamamento, tal qual acontece com Sócrates, por exemplo. Mantendo essa relação com um aspecto divino/transcendente, Agamben inicia sua obra fazendo menção às Saturnais de Macróbio e para o fato de que nelas se narra um banquete onde uma das personagens atribui aos egípcios a crença de que o nascimento de cada homem é presidido por quatro divindades: Daimon (Demônio), Tyche (Sorte), Eros (Amor) e Ananche (Necessidade). Cada homem, em vida, deve pagar o seu tributo a cada uma dessas divindades e “o modo como cada um se mantém em relação com essas potências define a sua ética” (AGAMBEN, 2018, p. 12). É a essas divindades que Goethe, em Palavras originárias ( Urworte ) (1817), tenta pagar seu débito, acrescentando-lhes uma quinta: Elpis (Esperança). A leitura aí realizada por Agamben mostra que Goethe paga seu tributo somente a uma divindade, Daimon . O poeta tem consciência de sua fuga frente à responsabilidade de pagar tributo a cada uma das divindades e, por isso, acrescenta uma quinta, Elpis , que, de acordo com Agamben, nada mais é do que um disfarce de Daimon . Assim, Goethe mantém-se fiel a uma única divindade e espera dela a salvação. O capítulo se conclui com uma citação a um aforismo de Hipócrates no qual se encontram cinco palavras-chave: vida ( bios ), arte ( techne ), ocasião ( kairos ), experiência ( peira ) e juízo ( krisis ). De acordo com Agamben, essas cinco palavras guardam uma “secreta correspondência” com as divindades de Macróbio e Goethe. Aí está em “jogo a breve aventura da vida humana” (AGAMBEN, 2018, p. 23).

Aventure (em francês): esse é o título do segundo capítulo. Aqui Agamben recorre à literatura trovadoresca para falar da aventura, o que torna A aventura próxima de uma das primeiras publicações de Agamben, Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental (Ed. UFMG, 2007). Tal proximidade se nota, sobretudo, pela lida com obras de poetas trovadores, revelando, assim, sua importância para o pensamento de Agamben como um todo. É nesse capítulo que se inicia propriamente uma arqueologia da aventura. Trata-se, porém, não de uma arqueologia cronológica, mas kairológica, pois o que interessa ao autor é ir em direção à origem da palavra na condição de evento. Para tanto, importa compreender duas identificações realizadas ao longo do capítulo. A primeira é entre cavaleiro e poeta: a procura daquele por aventura é a mesma deste. O poeta, assim, narra-se no poema. Dessa maneira, não é possível pensar a aventura sem pensar na implicação de um “eu”. Não se trata, porém, de tomar a aventura como um objeto contraposto ao sujeito: não há antecedência de um ou outro aqui, tampouco a identificação do “eu” com um “sujeito”. A partir dessa primeira identificação, Agamben afirma: “a aventura é para o cavaleiro [logo, para o poeta] tanto encontro com o mundo quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto” (AGAMBEN, 2018, p. 29). A segunda identificação é entre evento e narração: o que se escreve é a narrativa, mas esta coincide com a aventura histórica, de tal modo que “aventura e palavra, vida e linguagem se confundem” (AGAMBEN, 2018, p. 32).

É com o exemplo de um poema de Maria de França que Agamben prossegue a arqueologia kairológica da aventura. O que aí surge em palavra é aventura e, ao mesmo tempo, verdade: verdade não no sentido apofântico da lógica, isto é, como coincidência entre evento e narrativa, mas verdade como advir. Assim, “aventura e verdade são indiscerníveis, porque a verdade advém e a aventura não é senão o advir da verdade” (AGAMBEN, 2018, p. 34). Outro exemplo por ele utilizado é o da identificação da aventura com uma mulher, Frau Âventiure : aqui a intenção de Agamben é fazer notar que a aventura não é algo que preexiste à história narrada. A aventura é a narrativa e está viva nela e através dela, sendo, por isso, o próprio evento da palavra. Se há uma identificação notável entre evento e narrativa, então a aventura não pode ser somente um termo poetológico, mas deve também possuir um significado ontológico: “se o ser é a dimensão que se abre para os homens no evento antropogênico da linguagem, se o ser é sempre algo que ‘se diz’, então a aventura tem certamente a ver com uma determinada experiência do ser” (AGAMBEN, 2018, p. 38). O final do segundo capítulo aponta para uma interlocução com o filósofo alemão Martin Heidegger que será levada a cabo no quarto capítulo.

O terceiro capítulo — Eros — inicia-se com uma advertência: antes de tentar definir essa experiência do ser, deve-se “limpar o terreno das concepções modernas da aventura, que correm o risco de obstruir o acesso ao significado originário do termo” (AGAMBEN, 2018, p. 39). Essa advertência servirá de guia para os apontamentos críticos que Agamben irá fazer a respeito da concepção de aventura de Hegel, Georg Simmel e Oskar Becker, tidas por ele como concepções modernas, nas quais se encontra “a ideia de que ela [a aventura] seja algo estranho — e, portanto, excêntrico e extravagante — com relação à vida ordinária” (AGAMBEN, 2018, p. 41). O capítulo se encerra com uma crítica a Dante Alighieri: para este autor do medievo a vida do homem não é algo como uma aventura. Isso, de acordo com Agamben, significa uma traição consciente do sentido próprio do termo no período medieval, ou seja, ao não utilizar a aventura para narrar as experiências vividas pelos cavaleiros, Dante está afirmando que a vida não é tal qual a aventura. É a isso que Agamben se contrapõe, mostrando, assim, que a sua concepção é mais próxima dos poemas dos trovadores, onde há identificação de vida e aventura, do que dos modernos, onde a aventura é algo excêntrico.

O quarto capítulo — Evento — é onde Agamben apresenta a sua ideia do que seja aventura. Deve-se notar aqui a importância do segundo capítulo para que o quarto seja bem compreendido: estando mais próxima da concepção de aventura das trovas medievais, a ideia de aventura agambeniana não se identifica com elas, porém. Os apontamentos críticos do terceiro capítulo servem de baliza para a posição assumida por Agamben: nem medieval, nem moderna, mas em diálogo com ambas. Para compreender a sua posição é preciso estar atento a dois pontos característicos desse capítulo. Primeiro: a aventura sempre se dirige a um quem , que, por sua vez, não preexiste à aventura como um sujeito. Para Agamben, a aventura é o que se subjetiviza. Disso decorre a afirmação de que “eu”, “tu”, “aqui” e “agora” são categorias de locução e não categorias lexicais, isto é, são categorias que não podem assumir/possuir uma definição prévia definitiva. O evento, assim, é sempre evento de linguagem e a aventura se torna indissociável da palavra que a anuncia. Há, de fato, uma proximidade entre evento, aventura e linguagem. Por isso, a aventura/evento não exige uma decisão/escolha, logo, nela não há um problema de liberdade. É só assim que o vivente pode se apropriar do evento, ou melhor, ser apropriado por ele. Essa é uma tese que Agamben busca em Heidegger, seu principal interlocutor nesse momento da obra: o homem não possui a linguagem, mas a linguagem o possui. O homem serve-lhe de morada. A interlocução com Heidegger é o segundo ponto característico desse capítulo. Afirmando a ocorrência simultânea de apropriação de ser e homem que acontece no evento/aventura, Agamben coloca em questão o tornar-se humano do homem vivente: “o vivente se torna humano no instante e na medida em que o ser lhe advém” (AGAMBEN, 2018, p. 57). O evento/aventura é antropogênico e ontogênico, pois nele coincide o tornar-se falante do homem com o advento do ser à palavra e da palavra ao ser. Há aí uma analogia entre aventura e Ereignis , termo chave do pensamento tardio de Heidegger. Agamben, na verdade, chega a sugerir que a tradução mais adequada de Ereignis é aventura, deflagrando, com isso, seu aspecto ontológico.

A aventura tem a ver, então, com um vivente tornar-se humano, isto é, falante, o que guarda relação direta com duas obras de Agamben, a saber, O aberto: o homem e o animal (Civilização Brasileira, 2017), na qual o que está em jogo é como o homem se diferencia do animal, e Ideia da prosa (Autêntica, 2012), na qual o tema central é a linguagem e a sua indissociabilidade do pensamento. Descobre-se, desse modo, o que está em causa em A aventura : o evento antropogênico, que, em si, “não tem história e é, como tal, inapreensível” (AGAMBEN, 2018, p. 60). Esse é o principal resultado da arqueologia kairológica: como não pode ser definido definitivamente, o evento antropogênico (e ontogênico) é sem história .

Elpis : esse é o título do quinto capítulo. Aqui o autor volta a falar do significado de Demônio e, com isso, regressa ao ponto inicial da obra, fechando-a tal qual um círculo. Já não fala mais de Goethe, mas o exemplo lá utilizado pode ser aqui percebido nas entrelinhas. Por isso, interessa entender a importância do manter-se fiel ao demônio: “o demônio é a nova criatura que as nossas obras e a nossa forma de vida colocam no lugar do indivíduo que acreditávamos ser segundo nossos documentos de identidade” (AGAMBEN, 2018, p. 62). Daí a importância de Goethe: a vida poética é aquela que se encontra como tal e, com isso, rompe com uma pseudo-identidade. “Isso significa que ao demônio pertence constitutivamente o momento da despedida — que, no momento em que o encontramos, devemos nos separar de nós mesmos” (AGAMBEN, 2018, p. 62). No limite, o exemplo inicial de Goethe orienta toda a reflexão de Agamben. O demônio não é um deus, mas semideus, isto é, sempre possibilidade, potência, e nunca atualidade do divino. A potência que regenera, ou seja, liga-rompendo, é Eros , amor, à qual está ligada a esperança, Elpis , trazida por Goethe como a quinta divindade, mas que, na verdade, se mostra como uma outra face do Demônio .

Desse modo, em A aventura, o que está em causa para Agamben não é a mera arqueologia de um termo, abordando-o desde uma perspectiva que faz implicar filosofia e literatura. Ao realizar uma arqueologia da aventura, Agamben traz à tona uma nuance específica do evento antropogênico e ontogênico do tornar-se humano: o fato dele ser sem história . Desde nossa perspectiva, esse é o ponto culminante do texto e, justamente por isso, tem-se, a partir dele, uma chave de leitura muito interessante fornecida pelo próprio Agamben contra concepções historicistas que se acercam de sua obra. Por fim, recomenda-se a leitura de A aventura , pois somente assim o leitor ficará a par da complexidade e da qualidade da discussão aí trazida por Agamben.

Luís Gabriel Provinciatto – Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Brasil. E-mail: lgprovinciatto@hotmail.com

Acessar publicação original

[DR]

 

Gênero, Democracia e Direitos Humanos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2019

O presente dossiê Gênero, Democracia e Direitos Humanos, edição Número 33 da Fronteiras: Revista Catarinense de História, foi construído a partir dos debates realizados no XVII Encontro Estadual de História, realizado entre os dias 21 e 24 de agosto de 2018, na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE), em Joinville, Santa Catarina. As problemáticas colocadas nesse encontro nortearam a reflexão acerca dos desafios e possibilidade envolvendo as pesquisas e práticas relacionadas as questões de gênero articuladas à democracia e aos direitos humanos.

Estamos vivenciando, no Brasil, movimentos ultraconservadores que desqualificam e demonizam o feminismo e o gênero, palavras tidas como proibidas, e que tem brutalizado corações e mentes. Ambas, se tem gerado discussões acaloradas, é porque estão no âmbito do político. Projetos inconstitucionais, que aviltam a democracia e os direitos humanos, são apresentados com intuito de eliminar o gênero como categoria de análise nas relações sociais e culturais, bem com destruir políticas públicas arduamente conquistadas e caras a emancipação dos sujeitos históricos. Neste sentido, este dossiê visa refletir e aprofundar pesquisas e debates que abordem o gênero, com enfoque nos direitos humanos, cidadania, emancipação, liberdade, educação, feminismos, preconceitos e violências, promovendo o conhecimento para mudanças de práticas discriminatórias, reconhecendo as mulheres de diferentes gerações, raça, etnia, gênero, orientação sexual como sujeitos de direitos.

O Dossiê é formado sete artigos e duas resenhas. O primeiro artigo, intitulado A televisão como campo de memória e representação social: Documento Especial: Televisão Verdade (1989 – 1995) de Lucas Braga Rangel Villela, procura problematizar as disputas pela memória e de representação a respeito da realidade brasileira após Ditadura Civil-militar. O autor discute, através programa telejornalístico “Documento Especial: Televisão Verdade” da emissora de televisão Rede Manchete, o papel da televisão como instrumento de representação social e de construção de memória coletiva no Brasil no período da redemocratização.

No artigo Mulherio na Constituinte (1985-1987), Cintia Lima Crescêncio e Renata Cavazzana da Silva analisam como o jornal Mulherio (1981-1988) pautou em suas páginas a campanha do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres no período de debates sobre a Constituinte, especificamente nos anos entre 1985-1987. O jornal procurou atuar na tentativa de garantir os direitos e a cidadania das mulheres em meio as disputas políticas e das limitações dos movimentos sociais com o Estado.

O artigo intitulado A luta pela expansão da democracia em Pernambuco nos anos de 1930: o movimento feminista como protagonista, escrito por Emelly Sueny Fekete Facundes e Alcileide Cabral do Nascimento, analisa a atuação da Federação Pernambucana pelo Progresso Feminino (FPPF) na luta pela expansão dos ideais democráticos de igualdade civil, direito ao trabalho e a educação para mulheres na década de 1930. Através de periódicos recifenses que circulavam na época e de relatórios de atividades da FPPF enviado à sua matriz, no Rio de Janeiro, as autoras procuram compreender a importância do movimento feminista na conquista de direitos sociais e na luta pela consolidação da democracia no Brasil.

Em Saúde sexual e saúde reprodutiva no cárcere: uma discussão necessária para garantia de direitos das mulheres privadas de liberdade, Camila Azevedo dos Reis e Luciana Patrícia Zucco, a partir de uma perspectiva interseccional, abordam o acesso à saúde sexual e reprodutiva das mulheres em privação de liberdade no Presídio Feminino de Florianópolis, a partir dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Procurando dar destaque às narrativas das mulheres e profissionais da Instituição o trabalho evidencia como as mulheres presas são tratadas, as violações aos seus direitos e as lutas por condições dignas que atendam as especificidades destas sujeitas.

Já Neide Cardoso de Moura, no artigo intitulado Da educação do campo ao PNLD / campo: do anúncio educacional a denúncia social, apresenta os resultados relativos à pesquisa realizada no ano de 2016, intitulada “Análise das imagens de livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático para a educação do campo, na perspectiva de gênero”. O artigo procura reconhecer os avanços relativos à educação no campo sem deixar de ressaltar os desafios que ainda se colocam para as políticas e os programas educacionais que orientam os rumos da educação brasileira.

No artigo Debates e disputas sobre a legalização do aborto no Brasil: a laicidade na corda bamba, Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva e Luciana Patrícia Zucco analisam o processo de legalização do aborto no Brasil a partir da categoria laicidade, com dados coletados na audiência pública do Supremo Tribunal Federal acerca da ADPF442. As autoras partem da discussão sobre aborto e laicidade, analisam os argumentos da audiência pública já citada e discutem as possibilidades da categoria de laicidade para o avanço dos debates sobre a descriminalização do aborto no Brasil.

Por fim, tratando de memórias sobre a primeira fase de escolarização, o artigo Ensino Primário e infância, de Elaine Prochnow Pires, versa sobre memórias de ginasianas do Alto Vale do Itajaí – Santa Catarina, acerca de seu percurso escolar no ensino primário nos tempos dos exames de admissão ao ginásio. Através de entrevistas, a autora evidencia práticas da vida escolar num tempo em que aos alunos e as alunas era aplicada uma prova para prosseguirem seus estudos ginasiais, seleção obrigatória entre os anos de 1931 a 1971. São narrativas que trazem elementos para análise, destacando-se a frequência dos elementos de sentido e a forma como isso reverberou nas narrativas orais e escrita dos sujeitos da pesquisa.

Na Seção Resenha dois trabalhos compõem esta edição. O primeiro é de Isadora Muniz Vieira apresentando o livro do historiador François Hartog, Crer em História, lançado em 2017 no Brasil pela Editora Autêntica. E o segundo trabalho é de Diego José Baccin, tratando do livro Tierras, leyes, história: estudios sobre “La gran obra de la propiedad”, da pesquisadora Rosa Congost. Este livro foi publicado em 2007, pela editora Crítica, em Barcelona, e se encontra em língua espanhola, ainda sem tradução para o português.

No momento em que se fecha este Dossiê, é orquestrado por parte de quem governa o Brasil um acintoso movimento de destruição das conquistas que levaram décadas para se concretizarem, como vários direitos das mulheres, das populações indígenas, quilombolas, populações LGBTI+; bem como a retiradas de direitos trabalhistas e previdenciários. Além desses infortúnios, que recaem sobre as populações mais pobres, violentando-as e negando sua cidadania, os ataques ao ensino público com o contingenciamento de verbas para seu funcionamento são crimes contra o direito dos jovens de terem um futuro menos árduo. A educação pública é direito constitucional garantida na Constituição Cidadã, como o é o direito das crianças e jovens de aprender a refletir e a posicionar-se como sujeito neste mundo e suas relações, reflexões que advém das disciplinas das Ciências Humanas, tão vilipendiadas atualmente. A destruição da pesquisa evidencia retrocessos nunca vistos; a destruição do ambiente é criminosa, dentre outros ataques à democracia, são fatores que contribuem para eliminar o Brasil dentre os países confiáveis para investimentos. Lastimável. As violências contra as mulheres, especialmente as negras, indígenas e pobres, tem-se se exacerbado como práticas de abusos e feminicídios – a liberação do porte de armas trará mais tragédias, e as mulheres são, e serão, as principais vítimas. Não desistiremos das lutas de salvar vidas que importam.

Marlene de Fáveri

Fernanda Arno

Organizadoras do Dossiê Gênero, Democracia e Direitos Humanos


FÁVERI, Marlene de; ARNO, Fernanda. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.33, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Estudos africanos: problemas de pesquisa e perspectiva de análise | Historiae | 2019

O campo dos Estudos Africanos se consolidou a partir de uma perspectiva abertamente interdisciplinar e que, por isso mesmo, objetiva a análise dos mundos sociais que compõem o vasto continente africano em um viés plural e criativo. Este dossiê filia-se a este diapasão e o faz duplamente: i) para pensar, problematizar e interpretar as diversas camadas de significados que são partilhados quando se foca a “África” enquanto problema de pesquisa e ii) para propor e discutir suas diferentes possibilidades hermenêuticas enquanto fenômeno aberto.

Afinal, como ficará evidente nas páginas a seguir, os fenômenos sociais africanos – como quaisquer outros, aliás – possuem como característica fulcral uma historicidade radical e uma multi-escalaridade temporal que faz com que tempos, memórias (orais ou escritas) e experiências sociais se intercalem em âmbitos diversos e à partir de suportes factuais distintos. Assim sendo, não é difícil perceber a interconexão entre demografia, história social, crítica literária e história política em um mesmo dossiê. Sabemos todos – e lá já vai tempo! – que o humano, como experiência viva e como desafio hermenêutico, não é redutível à demarcação (política) de campos do saber historiográfico. Pensar a África como problema histórico é, necessariamente, abrir-se para uma dimensão em que conhecimentos transitam por patamares outros, diferentes dos quais a ciência histórica (ainda resilientemente eurocêntrica) foi construída. Problematizar a historicidade das experiências e saberes oriundos ou vivenciados na ou sobre a África é, por certo, um convite para a originalidade do enfoque interpretativo e para um cuidado mais denodado com a documentação e seu trato. Leia Mais

Quadrinhos & cultura visual: modos de ver e ler histórias | ArtCultura | 2019

Este dossiê pretende apresentar novos olhares sobre as pesquisas em torno de cultura visual e HQs. Longe de pensá-las como meros reflexos da sociedade, os artigos aqui reunidos elaboram análises a partir de aspectos concernentes à linguagem das HQs (quadros, balões etc.), bem como examinam os seus impactos na construção do olhar ao longo do tempo. Sendo este um campo passível de exploração por pesquisadores das humanidades, espera-se que essas colaborações contribuam para estabelecer as HQs como um modo de expressão fundamental para o estudo da cultural visual dos séculos XIX e XX.

O trabalho de abertura de Arthur Valle (UFRRJ) procura delinear conexões entre duas modalidades de História: a História em Quadrinhos e a História da Arte. Com base nas HQs centradas no universo da produção artística, o autor analisa procedimentos e caminhos adotados por quadrinistas que, por vezes, assemelham-se àqueles percorridos por historiadores da arte. Tal relação é enfrentada sem medos por Valle, que sugere a seguinte provocação: em que medida a abordagem de historiadores da arte como John Berger e Aby Warburg não se aproximaria dos tipos de narrativa visual que associamos mais diretamente às HQs? Leia Mais

Entorno, sociedad y cultura en Educación Infantil: Fundamentos, propuestas y aplicaciones – BONILLA MARTOS; GUASCH MARÍ

BONILLA MARTOS, A. L.; GUASCH MARÍ, Y. (coords.). Entorno, sociedad y cultura en Educación Infantil: Fundamentos, propuestas y aplicaciones. Madrid: Pirámide, 2018. Resenha de JIMÉNEZ, Miguel Angel Pallarés. Íber – Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia, n.95, p.85-89, jul., 2019.

Para la elaboración de esta obra, Antonio Luis Bonilla y Yolanda Guasch han dirigido un equipo de autores que son, en su mayoría y como ellos, profesores del Departamento de Didáctica de las Ciencias Sociales de la Universidad de Granada. A ambos coordinadores les une su labor investigadora y difusora del patrimonio como recurso didáctico; a todos, su variada y complementaria formación disciplinar, lo que aporta nuevos enfoques y amplios matices a la manera de abordar ese tema tan relevante. Se pretende en todo momento sumar ideas y recursos en el proceso de enseñanza y aprendizaje del entorno social y cultural, siguiendo una metodología activa, con un tratamiento de las nuevas tecnologías que se ha preferido transversal.

Conscientes de que el entorno social y cultural constituye un pilar básico en el desarrollo de la persona, y de que los primeros años escolares son fundamentales para trabajar las relaciones de los niños y niñas con su ámbito más cercano, los valores que en él les son transmitidos y el patrimonio que atesora, la obra que reseñamos se ha conformado en una estructura pedagógica de tres bloques, perfectamente ensamblados y relacionados con las competencias que el alumnado debe adquirir: una fundamentación teórica; el entorno social y cultural, y su aplicación en el aula; y, por último, recursos en educación infantil. En todos hallamos un marco teórico reflexivo que casa con un corpus de material educativo, pleno de recursos que amplían la información, y una propuesta de actividades prácticas que buscan la innovación y mejorar la labor docente; todo esto, en un contexto social y cultural como el de hoy, cada vez más complejo, cambiante y plural.

En el primer bloque, se establece un marco desde el que conceptualizar la infancia, la educación infantil y su currículo, y donde se estudia la contribución de las ciencias sociales y su importancia; también se trata la escolarización, los espacios público y privado, y se orienta para introducir la perspectiva de género en los primeros años escolares; por último, se repasan los diferentes tipos de prácticas profesionales de los alumnos y alumnas de Magisterio, animando a las prácticas curriculares en instituciones no formales, muy enriquecedoras para adquirir competencias históricas y patrimoniales útiles en la futura labor docente de los maestros y maestras.

Ya en busca de la pertinente aplicación en el aula, se consideran los entornos socioculturales de referencia en educación infantil: los tradicionales de la familia (y sus diferentes tipos) y la escuela, y la importancia de la colaboración entre ambas; el espacio y el tiempo, conceptos fundamentales en las ciencias sociales; la educación patrimonial en infantil; el concepto de entorno social y cultural, con la actividad humana como agente socializador en dicho entorno; y la necesidad de educar para la paz, en busca de sentar las bases de una ciudadanía responsable y tolerante en el futuro. Finalmente, en el tercer bloque, se proponen recursos motivadores en educación infantil, algunos de ellos no exentos de novedad: el aprendizaje basado en proyectos, la arquitectura en los primeros años escolares y los cuentos como herramienta para trabajar el patrimonio; el cine y su didáctica, y el patrimonio arqueológico como recurso. Queda así articulado un libro de ciencias sociales esmeradamente didáctico, que ha nacido con vocación de ser una referencia útil tanto para los docentes de educación infantil como para el estudiantado de Magisterio en esta especialidad.

Miguel Ángel Pallarés Jiménez – E-mail: miguelap@unizar.es

Acessar publicação original

[IF]

 

Resistências africanas: novos problemas e debates / Anos 90 / 2019

A história da resistência africana tem também a sua história. Seus primórdios remontam à tendência anticolonial a partir da segunda metade do século XX e que marca não apenas os textos ficcionais sob a forma de contos, novelas e romances de uma primeira geração de escritores africanos, mas também a historiografia sobre a África do período colonial.

Até então, uma literatura colonial havia abordado as resistências como movimentos retrógrados, refratários à modernização. Ela considerou as várias rebeliões e insurgências como “revoltas bárbaras”, irracionais e amorfas. Na perspectiva dos colonizadores europeus, as resistências eram um atavismo, uma simples manifestação da “tradição” em prol da reprodução das estruturas arcaicas, da preservação dos direitos consuetudinários, da defesa dos privilégios de uma elite local etc.

Nos arquivos coloniais, encontram-se evidências de diversas manifestações e movimentos anticoloniais em África, com destaque para aquelas que ocorreram nas áreas de forte presença muçulmana. Para ficar num exemplo, a Revolta Mahdista ou Mahdiyya no Sudão (1881-1899), uma das maiores experiências históricas de contestação ao domínio estrangeiro. Em reação à ingerência econômica e política da Inglaterra e da França e que atingiam o vice-reinado do Egito quedival e do Império otomano, a Mahdiyya – liderada por Muhammad Ahmad – foi uma forma de resistência paradigmática e com desdobramentos nas relações de poder na África setentrional e na África Oriental durante o imperialismo colonial.

Também na África ocidental, os movimentos de resistência pululam, sobretudo em áreas islamizadas. Tais movimentos foram considerados de caráter “primário” por uma historiografia da primeira metade do século XX. A partir da década de 1950, temos as primeiras análises de relatos produzidos oralmente e de fontes escritas em árabe, que se revelam verdadeiros “campos de batalhas” narrativos, na acepção de Edward Said, na sua conhecida obra Cultura e Imperialismo.

Uma primeira historiografia crítica ao colonialismo favoreceu a identificação de processos de negociação entre os poderes coloniais e as elites africanas. Houve também novas interpretações das resistências africanas. Em Dacar, Ibadan e Dar es Salaam, para ficar em três exemplos, a nova historiografia africana fez das resistências africanas uma ferramenta importante para a análise das relações de poder nos quadros do colonialismo.

Os trabalhos de Allen Isaacman, Jan Vansina, Terence Osborn Ranger e de outros historiadores contribuíram para uma ideia de conjunto sobre as resistências africanas. Houve também propostas para uma tipologia das resistências africanas e mesmo para uma cronologia, como aquelas do historiador queniano Ali Al’amin Mazrui e do historiador ganense Albert Adu Boahen.

Acontece que a lógica binária do modelo “dominação e resistência” para a história da África colonial acabou por limitar a análise de certas formas concretas de exercício do poder. Para Frederick Cooper, o emprego do conceito de “resistência” na historiografia africana foi “menos sutil, menos dialético, menos reflexivo” do que a ideia de agência dos estudos subalternos.1 É verdade que o modelo “dominação e resistência”, que marcou a historiografia sobre a África colonial nas décadas de 1960 e 70, foi por vezes redutor, pois quem não resistia, colaborava e quem não colaborava, resistia.

Ao mesmo tempo, livros como Things Fall Apart (1958), de Chinua Achebe, e Les Damnés de la Terre (1961), de Frantz Fanon, apresentam o colonialismo como um sistema que provocava uma “esquizofrenia social” e que redundava numa série de contradições, numa aporia. Tal processo desagregador, na perspectiva fanoniana, seria superado pela via revolucionária, que provocaria a necessária ruptura com o colonialismo, ensejando as independências africanas.

No entanto, aquilo que justificou ideologicamente certos movimentos de libertação, revelou- -se frágil e anacrônico quando foi transposto como ferramenta de análise dos processos africanos de um passado recente. Pode-se dizer que houve na historiografia pós-colonial uma inflação das resistências anticoloniais e dos movimentos protonacionalistas. Desde o início do processo de independência dos países africanos, uma escrita da história nacionalista projetou no passado africano pré-colonial a ideia de nação. Fazer a genealogia das modernas nações africanas foi a missão de uma historiografia que, não sem ironia, defendeu a perspectiva africana, a história “autenticamente” africana.

Apesar da importância da busca pela autenticidade africana em termos epistemológicos, novas abordagens no campo da história têm suscitado uma revisão da historiografia daquela primeira geração de historiadores africanos e de africanistas. Além dos estudos subalternos e dos estudos pós-coloniais, as próprias experiências políticas de um passado recente, especialmente de ditaduras militares, de guerra civil ou de regimes de partido único, concorrem para repensar as resistências africanas, inclusive contra um neocolonialismo. Destacam-se, por exemplo, as contribuições de Klaas van Walraven, Jon Abbink, Gregory Maddox e Frederick Cooper sobre o conceito de resistência na história da África. Cabe ainda ressaltar uma “feminização” da resistência africana por uma historiografia atenta às questões de gênero e cujos trabalhos de Nina Emma Mba, Catherine Coquery-Vidrovitch, Cora Ann Presley, Luise White, Tabitha Kanogo e Norma Krieger são alguns exemplos.

A reflexão e o debate sobre as resistências africanas trouxeram à baila novas questões sobre a África diante à colonização e mesmo diante à globalização. Os estudos sobre as resistências africanas reunidos nesse dossiê propõem novas abordagens, novos casos e algumas revisões necessárias, inclusive um rigor teórico e metodológico à luz das contribuições historiográficas recentes, além de outras de áreas afins como a antropologia e a sociologia da África contemporânea.

O artigo intitulado O conceito da resistência na África colonial: recompondo um paradigma, de Felipe Paiva, abre o presente dossiê. Trata-se de uma revisão crítica de um paradigma da historiografia sobre a África colonial pelo autor de Indômita Babel. 2Muçulmanos africanos e a escravidão negra no Mundo Atlântico: interpretações, significados e resistências (séculos XVI e XVII) é o segundo artigo do dossiê. De autoria de Thiago Henrique Mota, o artigo aborda algumas resistências na África ocidental a partir da conexão entre escravidão e religião islâmica. O terceiro artigo também destaca a relação entre religião (muçulmana) e resistência. Sua autora, Regiane Augusto de Mattos, aborda as formas de trabalho no norte de Moçambique entre o final do século XIX e início do século XX como elementos fundamentais para a análise das resistências. Diferente é o foco do artigo de Hector Guerra Hernandez sobre as formas de resistências cotidianas durante o colonialismo tardio no sul de Moçambique. O autor analisa diferentes ações individuais e coletivas diante do recrutamento dos trabalhadores forçados durante o colonialismo português.

No quinto artigo do dossiê, Mahfouz Ag Adnane propõe uma análise da resistência nos territórios saarianos do Kel Tamacheque diante da ofensiva colonial francesa (1881-1919). Destaca-se a leitura crítica das fontes para propor uma nova abordagem ao debate historiográfico.

O último artigo do dossiê tem uma componente biográfica. Ângela Fileno da Silva apresenta as dissenções entre os brasileiros que se encontravam em Lagos entre as décadas de 1880 e 1890. A autora analisa conflitos e acomodações diante da presença britânica, destacando aspectos relevantes para a compreensão dos limites das ações individuais e coletivas, das constantes renegociações e dos seus desdobramentos na vida daqueles brasileiros.

A entrevista com Suresh Kumar, do Departamento de Estudos Africanos da Universidade de Délhi, enfatiza a importância do Departamento de Estudos Africanos da citada universidade, criado em 1948, no imediato pós-independência indiana, com a perspectiva de se propor uma aproximação com os espaços africanos em processos de conflitos anticoloniais e de se pensar em pautas internacionais reivindicatórias das novas nações que emergiam. Encerra o dossiê a sessão com as seguintes resenhas: A Escrita da História da África: Política e Resistência, de Carolina Bezerra Machado, Entre experiências, agências e resistências: complexos de interconexões e a coligação contra o colonialismo no norte de Moçambique (1842-1910), de Matheus Serva Pereira, e Sonhos em Tempos de Guerra, de Daniel De Lucca.

Boa leitura!

Notas

1. COOPER, Frederick. Conflict and connection: rethinking colonial African History. The American Historical Review, v. 99, n. 5, p. 1516-1545, 1994

2. PAIVA, Felipe. Indômita Babel: resistência, colonialismo e a escrita da história na África. Rio de Janeiro: Eduff, 2017.

Patrícia Teixeira Santos – Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil Sílvio.

Marcus de Souza Correa – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC, Brasil.


SANTOS, Patrícia Teixeira; CORREA, Marcus de Souza. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Crítica textual: volume 1 | Marlene C. Gomes Mendes e Silvana dos Santos Ambrosili

Crítica textual: volume 1, disponível, em formato pdf, no endereço eletrônico https://bit.ly/34csVGe, foi escrito pelas professoras Marlene C. Gomes Mendes, coordenadora e docente, e Silvana dos Santos Ambrosoli, tutora a distância, para os alunos que cumprem a disciplina Crítica Textual, ministrada no quinto semestre do curso de Licenciatura de Letras a distância da Universidade Federal Fluminense. Trata-se de material que acompanha as dez aulas que compõem a disciplina e vem estruturado, por isso mesmo, em dez pontos.

A consulta ao material é aberta na Internet, agilizando sua utilização por todos os potenciais interessados, em busca de noções elementares sobre a ciência da curadoria de um texto, mas principalmente de confiabilidade, dado o enquadramento institucional da obra em tela. O Consórcio CEDERJ – Centro de Educação a Distância do Estado do Rio de Janeiro, projeto de graduação a distância da fundação CECIERJ – Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro, reúne universidades e instituições de ensino superior públicas, como a Universidade Federal Fluminense, com o objetivo de levar educação superior pública, gratuita e de qualidade para todo o Estado do Rio de Janeiro, por meio de cursos na modalidade EaD (Educação a Distância). A fundação e o consórcio são as instituições responsáveis pela publicação do referido material didático. Leia Mais

Amazônica. Belém, v.11, n. 2, 2019.

Editorial

  • Editorial
  • Diogo Menezes Costa, Érica Quinaglia Silva
  • PDF
  • Editorial English
  • Diogo Menezes Costa, Érica Quinaglia Silva
  • PDF

Dossiê

Artigos Originais

Tradução

  • Os contextos culturais das diferenças étnicas, de Thomas Hylland Eriksen
  • Diego Pérez Ojeda del Arco
  • PDF

Ensaios Fotográficos

Resenhas de Livros ou Teses

Resumos de Teses e Dissertações

Cadernos da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v.3, n.2 jul./dez. 2019.

Editorial

Apresentação

Resenha

Entrevista

A história deve ser dividida em pedaços | Jacques Le Goff

Atualmente vivemos uma época que o papel da História tem sido questionado socialmente, principalmente como disciplina escolar. Ao ensinarmos o papel da História para a sociedade buscamos apresentar marcos cronológico para facilitar a aprendizagem didática de alunos e outros leigos, sendo um dos principais desafios para os historiadores à formulação desses cortes temporais. Partindo desses questionamentos e os efeitos da mundialização na sociedade, foi produzida a obra A história deve ser dividida em pedaços? escrita por Le Goff, publicada em 2014 pela Editora du Seuil e, no Brasil, em 2015 pela Editora UNESP.

Le Goff foi um dos principais representantes da terceira geração dos Annales e especialista no período Medieval. Seus escritos buscaram construir outra visão da Idade Média a partir da perspectiva de uma antropologia histórica do ocidente europeu. Em A história deve ser dividida em pedaços? o autor realizou sua última defesa sobre a importância da época Medieval e constrói uma argumentação em favor do conceito Longa Idade Média. Leia Mais

Escravidão e comércio de escravos através da história / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2019

A escravidão é uma das instituições mais antigas da humanidade. Ao contrário do que se possa pensar, a escravização começou muito cedo de tal forma que a propriedade de uma pessoa sobre outra é anterior à propriedade privada da terra. Em diferentes locais e épocas, houve povos que comerciaram cativos, escravizaram vizinhos e até gente do seu próprio meio, mas não conheceram a propriedade privada da terra. Inúmeros povos vivendo em sistemas muito próximos ao chamado comunismo primitivo, traziam em suas culturas o costume de apropriar-se dos corpos de prisioneiros para uso e abuso da comunidade ou de algum indivíduo.

São inúmeras as possibilidades de usufruir do corpo escravizado: imolar, devorar, usar, punir, e colocar para trabalhar ou para exercer atividades consideradas indignas ou arriscadas. Existem quase infinitos exemplos em todos os continentes em diferentes épocas. As sociedades costumam sair da escravidão, mas, em algum ponto do passado, todas passam ou passaram por ela. Há quem distinga sociedades com escravos de sociedades escravistas. Umas possuíam escravos apenas. Outras tinham todo o ritmo da economia e da vida social ditados pela escravidão. Há, todavia, quem ache essa distinção irrelevante, pois é uma questão basicamente de escala, de fronteira imprecisa. Mas, uma coisa é certa, a escravidão marcou profundamente a experiência humana desde a Antiguidade mais remota.

Além de antiga, a escravidão é uma das instituições mais resilientes que conhecemos, como bem demonstram os relatórios online da Anti-Slavery Society, sediada em Londres, talvez a ONG humanitária em atividade há mais tempo no mundo. Já se falou que seria superada por motivos religiosos, e no entanto, é comum escravizar-se gente do mesmo credo. Já se falou que a ética secular a superaria, e no entanto, a guerra e as necessidades do vencedor sempre falaram mais alto. Já se falou que o capitalismo era incompatível com a escravidão, e no entanto na periferia das engrenagens dos grandes mercados, ela retorna e enraíza-se sob diferentes disfarces. E convém lembrar, que, mesmo nos centros mais avançados ela pode ser empregada sob diferentes justificativas, algumas muito apropriadas ao mundo moderno. Na contemporaneidade, multidões de trabalhadores vivem em condições análogas à escravidão em países onde os direitos civis mais básicos são conquistas centenárias. Pessoas desprotegidas ainda são traficadas como mercadorias.

Escravidão, stricto sensu, todavia, significa que uma pessoa, ou um grupo, possui o direito de propriedade, de uso e abuso sobre o corpo de uma outra pessoa, e não apenas sobre os produtos do trabalho. E não é uso temporário, mas ininterrupto. Sendo o corpo uma propriedade, havendo comércio, a pessoa pode ser trocada como qualquer outra mercadoria, repassada, herdada. O comércio de gente escravizada vem de tempos imemoriais, mas como tema da História ainda incomoda. Quem vendeu, quem comprou, quantos foram vendidos e comprados, de onde e para onde e quais os resultados disso, são problemas históricos que tocam em questões éticas e políticas profundas. O estudo do comércio de gente africana para as Américas é uma parte dessa temática quase tão ampla quanto a história humana.

A partir de meados do século XX houve um intenso desenvolvimento de pesquisas a respeito desse assunto. Os estudos sobre o impacto do comércio atlântico de gente escravizada nas várias margens do Atlântico, sobre os cativos e seus descendentes, desdobraram-se em um campo de reflexão teórica e metodológica consolidado tanto nas Américas, como na África e na Europa. As demandas sociais em torno das experiências da escravidão e pós-Abolição demonstram a vitalidade do tema na contemporaneidade. Todavia, ainda há muito o que se fazer. Só para exemplificar, no caso de Pernambuco, a historiografia sobre o tema ainda é tímida, apesar do quarto lugar entre os pontos nas Américas que mais receberam cativos da África. A historiografia sobre o Nordeste, portanto, ainda é carente de trabalhos que tratem, não apenas da demografia do tráfico, mas também do fiscalismo, tributação, consumo, comércio, monopólios, contratos e negociantes. Isso, tanto de forma genérica, como específica, no que corresponde à mercancia de gente.

Esse dossiê pretende somar à historiografia que problematiza essas questões, acolhendo pesquisas sobre escravizados e escravizadores imersos na dinâmicas do comércio de cativos. Numa perspectiva abrangente cronológica e geograficamente, tentamos aqui motivar pesquisas primárias e / ou análises comparativas e ampliar abordagens sobre o comércio de pessoas escravizadas em diferentes contextos e circunstâncias, fomentando assim a discussão. Há muito o que se estudar sobre os processos que permitem relacionar os pontos de origem dos cativos e os locais da exploração dos seus corpos e trabalho, submetendo pessoas a condições degradantes de vida e supressão das liberdades, desde épocas remotas até à contemporaneidade. Os trabalhos que compõem o elenco do dossiê abordaram o assunto entre os séculos em que o Brasil foi uma conquista portuguesa até os estertores da escravidão legal no Brasil do segundo reinado.

O texto de Gustavo Acioli e Leonardo Marques intitulado “O outro lado da moeda: estimativas e impactos do ouro do Brasil no tráfico transatlântico de escravos (Costa da Mina, c. 1700-1750)”, retoma um tema já tratado pela historiografia do comércio atlântico, mas que ainda apresenta muitas lacunas, uma vez que quantificar o volume de ouro saído da América portuguesa, em direção à África Ocidental para a troca por cativos sempre apresentou-se como uma empreitada difícil. Ao longo da argumentação os autores chegam a conclusão que 2 / 3 dos cativos comprados na costa africana foi através do ouro retirado das minas no Brasil e que, de forma indireta, a conquista portuguesa contribuiu para o incremento das trocas globais e a hegemonia do sistema capitalista mundial, o que não teria acontecido se não fosse a via africana a conectar os elos que formavam esse conjunto.

Já o trabalho de Maximiliano Menz “Uma comunidade em movimento: os traficantes de escravos de Lisboa e seus agentes no Atlântico , c. 1740-1771”, desenvolve um estudo sobre os principais traficantes atuantes em Lisboa entre 1740 e 1771. Trata-se de um ramo português de investimentos no tráfico de Angola. Com levantamento circunstanciado de fontes primárias, o texto narra a participação de mercadores e o exercício mercantil de homens de negócio portugueses que transitaram entre o Reino e a conquista Angola, aproveitando as conjunturas vantajosas para o comércio de cativos. Apresenta variados negociantes, alguns reconhecidos como os mais ricos no sistema, demonstrando com suas práticas e estratégias que os negócios atlânticos vão além de esquemas “triangulares” e “ bipolares”.

Por sua vez, o artigo de Alexandre Bittencourt trata da complexa rede estabelecida entre as regiões exportadoras e importadoras de pessoas escravizadas, África, América portuguesa e Europa. Em “A travessia de escravos dos sertões de Angola para os sertões de Pernambuco (1750-1810)”, desenvolve o entendimento de que pessoas colocadas em lugares chave e exercendo funções variadas se tornaram essenciais para viabilização do comércio de escravos. Dentre as personagens tratadas sobressaem-se as que residiam em Pernambuco e atuaram através da Companhia de Comércio Pernambuco e Paraíba. Delineia um processo que conecta de sertão a sertão, tendo o Atlântico como intermediário, concluindo-se quando as pessoas escravizadas alcançavam o seu destino fossem nas minas ou nas fazendas de gado dos rincões Setecentistas.

Com o texto de Janaína Bezerra mergulhamos no universo dos homens de cor atuantes principalmente nos centros urbanos. O trabalho “Luís Cardoso: de Escravo a Homem de Negócio da Praça do Recife (XVII e XVIII)”, seguiu a trajetória de vida de um homem pardo, forro, filho de um senhor branco com sua escrava, que chegou a alcançar a distinção como homem de negócio de grosso trato na Praça de Pernambuco. Participou de instituições sociais frequentadas pela elite branca, demonstrando quão fluidos foram os padrões de inserção e as negociações para impedimentos ou não, nas conquistas portuguesas do Antigo Regime.

Arthur Danillo Castelo Branco de Souza lida com o comércio interprovincial e intraprovincial de cativos na segunda metade do oitocentos. Analisa anúncios de compra e venda de cativos nos jornais e a atuação de alguns negociantes e daí busca entender esse complexo processo que permitiu repor a mão de obra escrava em Pernambuco. Tal como no tráfico atlântico, o comércio interprovincial de cativos também se fez em boa parte à margem da legalidade. Os escravizados, por sua vez, aproveitaram-se da demanda pela mão de obra para, sempre que possível, tentarem trocar de senhor à procura de um cativeiro menos brutal.

George F. Cabral de Souza trabalha com documentos recolhidos em diversos acervos, tanto no Brasil como em Portugal, que lhe permitem apresentar dados substanciais sobre 38 negociantes que operavam no Recife, aproximadamente entre 1660 e 1760, os quais estavam envolvidos no comércio de africanos escravizados. O foco central do texto são quinze negociantes listados em um relatório sobre as embarcações negreiras da praça do Recife, em 1758. Atendendo pedido do governo central, o governador da capitania produziu aquele documento sob o pretexto de apurar a possível superlotação das embarcações.

O texto analisa as trajetórias e inserção desses personagens na sociedade pernambucana, os quais diversificavam seus negócios e teciam redes de forma a permanecerem no topo da hierarquia social. O texto de Gian Carlo de Melo Silva tem por base uma densa pesquisa no Rol de Confessos, uma fonte rica em dados populacionais que não costuma ser utilizada em estudos sobre escravidão no Nordeste. Partindo de uma descrição crítica daquele acervo documental, o trabalho analisa os dados obtidos sobre a escravidão em Alagoas, com especial atenção para a freguesia de Santa Luzia do Norte, cujo território engloba tanto uma área mais urbana como uma região ocupada por engenhos de cana. O foco central do trabalho são as complexas relações entre os arranjos familiares no Brasil colonial, a escravidão e as mestiçagens.

É com muita satisfação, portanto, que apresentamos este dossiê, na certeza da relevância do seu tema e na qualidade dos trabalhos aqui publicados que esperamos que sirvam de base para outras pesquisas e debates futuros.

Suely C. Cordeiro de Almeida – Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, integra o corpo docente da Graduação e Pós-Graduação do Curso de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e da Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: suealmeida.ufrpe@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0001-8267-4719

Marcus J. M. de Carvalho – Doutor em Historia pela University of Illinois at Urbana-Champaign. Atualmente é professor titular de História nos programas de graduação e pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: marcus.carvalho.ufpe@hotmail.com ORCID: https: / / orcid.org / 0000-0003-1912-2879

Organizadores


ALMEIDA, Suely C. Cordeiro de; CARVALHO, Marcus J. M. de. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.37, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Biografias e Trajetórias: vidas por escrito / Escritas do Tempo / 2020

Escritas biográficas e trajetórias: desafios no campo historiográfico

A biografia deixou de ser um pária no campo do conhecimento histórico acadêmico. Depois de vários anos de desdém pelo gênero, por parte das correntes dominantes da historiografia científica, hoje assistimos a uma proliferação de livros, artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de cursos de graduação na área de História que se voltam para a análise ou a construção de biografias. Obviamente, essa popularização de estudos biográficos aponta para importantes desafios e questionamentos que exigem nossa atenção: o que constitui uma biografia histórica? Que problemas teóricos, metodológicos, historiográficos e éticos as pesquisas biográficas ajudam (ou não) a resolver? Em quais âmbitos a investigação biográfica dá sinais de saturação e quais demandam mais investimentos?

De modo geral, verificamos que os principais caminhos trilhados pelos estudos biográficos, levados a cabo por profissionais de História, são a construção de biografias de personagens considerados representativos de um determinado grupo ou processo; a pesquisa sobre indivíduos que, ao contrário de representar, põem em xeque — por sua singularidade — a coerência e a homogeneidade de coletivos e movimentos; a análise de biografias sobre determinadas pessoas que verifica como essas foram construídas e disputadas nas memórias coletivas mais ou menos institucionalizadas.

Também é notável a capacidade da biografia de cruzar fronteiras, tanto as geográficas (quando se leva em conta os deslocamentos físicos e mentais dos personagens estudados) como as cronológicas (já que a duração das vidas não se limita a marcos temporais consagrados) e disciplinares. Sobre esse último ponto, a noção de espaço biográfico, de Leonor Arfuch (2010), aponta para uma multiplicidade de formas canônicas, inovadoras e novas dentro de tais manifestações, dando conta de biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas e de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, registros artísticos e midiáticos, entre outras formas e suportes.

Os textos que compõem esse dossiê exemplificam as potencialidades da biografia, constituindo-se em uma excelente amostra do que vem sendo produzido no Brasil e no exterior nessa área. Iniciamos com um texto teórico, A biografia à prova da identidade narrativa, de François Dosse — um dos maiores especialistas no gênero na atualidade — traduzido por André Furtado e Emmanuel Wambergue. Nele, o autor tece uma excelente discussão em torno da percepção que o biógrafo precisa ter na redação de uma biografia. Para Dosse, só é possível chegar ao biografado acessando suas identidades plurais, levando em conta um mosaico de tramas, sentidos, temporalidades e ações. Os organizadores desse dossiê e a Escritas do Tempo agradecem por sua contribuição. Seguimos por artigos que examinam, a partir de referenciais e fontes diversas, vidas e memórias de professoras, desportistas, cangaceiros, intelectuais, médicos, operários, cantoras e mães de santo que viveram em espaços e períodos diversos.

Em Narrativas em três tempos: biografias em Octávio Tarquínio de Souza, Raimundo Magalhães Júnior e Ruy Castro, Manoel Messias Alves de Oliveira e Wilton C. L. Silva analisam parte da produção literária de três importantes biógrafos brasileiros, de períodos distintos, apresentando as características estruturais de suas obras e discutindo as relações entre literatura e História dentro do gênero biográfico.

Nas fronteiras entre o espaço biográfico e a literatura, o artigo de Flávio Weinstein Teixeira, De começos e anexações: primeiras apropriações de Álvaro Lins em Portugal, busca reconstituir as relações e as formas pelas quais se dá a recepção da obra de Álvaro Lins no campo intelectual e literário em Portugal, tendo como base de pesquisa a imprensa periódica desse país.

Assim como o campo literário, a trajetória de intelectuais também é uma seara bastante frutífera para a análise de obras e personagens. O discurso anisiano à luz de Pierre Bourdieu, de Karen Fernanda da Silva Bortoloti, submete as propostas de reforma educacional de Anísio Teixeira, defensor de um projeto de educação integral e para todos, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo e capital cultural, identificando as estratégias discursivas que buscavam consolidar o campo educacional e legitimar a relevância do capital cultural para a reconstrução do país em um momento de grandes mudanças estruturais.

Assim como o projeto educacional reflete uma identidade sobre o país que somos ou gostaríamos de ser, os personagens icônicos da cultura popular também têm sua memória ligada aos desejos e às expectativas coletivas. Os artigos de Marcos Edilson Araújo Clemente, Lampião e o cangaço: trajetórias de vida, histórias como flagelo (1920–1938) e de Nathan Pereira Barbosa, Raça, Futebol e Identidade Nacional: disputas e atualizações da memória em torno das narrativas biográficas de Pelé, situam-se nessa confluência. No primeiro, Virgulino Ferreira da Silva, o notório cangaceiro Lampião, é identificado como uma representação das tensões e das contradições encontradas nos sertões do Nordeste do Brasil, em meio às formas de consolidação do poder político e econômico republicanos nas primeiras décadas do século XX. No segundo, apresenta-se um balanço de diferentes narrativas sobre Edson Arantes do Nascimento, o mítico jogador de futebol, cuja trajetória apresenta-se como base para determinados projetos de nação e de identidade nacional nas biografias analisadas.

A reflexão sobre projetos políticos, processos de exclusão e autoritarismo confluem-se nos dois artigos seguintes: Victor Klemperer: uma testemunha ocular, de Juliana Aparecida Lavezo, e “Que fizeram com meu pai?”: sindicalismo e ditadura no Amazonas, de César Augusto Bubolz Queirós. Juliana Lavezo utiliza-se da escrita autobiográfica de Victor Klemperer, professor universitário judeu-alemão, enquanto literatura testemunhal de uma vítima de nazismo, para problematizar tal relato e seu lugar na contemporaneidade, enquanto César Queirós busca dar visibilidade aos processos de resistência e repressão vivenciados na ditadura civil-militar brasileira (1964–1985) a partir da trajetória de Antogildo Pascoal Viana — presidente do Sindicato dos Estivadores no período da deflagração do golpe —, que foi uma das primeiras vítimas do aparato repressivo que se instaurava.

Utilizando-se das possibilidades analíticas da História Oral, Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta, com Considerações acerca das vivências de uma professora nordestina, dão visibilidade à experiência de vida de uma educadora que, distante do padrão das “grandes personagens históricas”, pertence às margens. Em seu relato, coloca sua vivência enquanto autoexpressão de uma identidade construída a partir de uma vida feminina e de suas formas de existência e resistências em território maranhense.

A História Oral também é o referencial teórico que fundamenta os artigos de Bruno Barros dos Santos e Rogério de Carvalho Veras, Maria Bonita de Tocantinópolis: história de vida de uma mãe-de-santo do norte tocantinense e de Daniel Lopes Saraiva, “Cá entre nós”: trajetória e memória de Wanda Sá. Bruno Santos e Rogério Veras adentram o campo do sagrado ao analisarem a vida de Rosário, mãe-de-santo da tenda São Jorge Guerreiro, mais conhecida como Maria Bonita da cidade de Tocantinópolis. O texto mescla um conjunto de narrativas míticas sobre caboclos, encantados e pombas giras na construção de sua identidade pessoal. Daniel Saraiva utiliza-se da trajetória artística da cantora Wanda de Sá, que integrou a geração que frequentava os primeiros shows do então embrionário movimento bossa novista, e que, em sua carreira e suas gravações, nas continuidades e nas rupturas, permite entender algumas dinâmicas da vida cultural brasileira.

Por sua vez, Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, com Entre biografias e trajetórias de pesquisa(dores): memória operária e reflexões de um historiador nativo, faz um exercício de ego-história, refletindo, enquanto “historiador nativo”, sobre uma experiência de pesquisa relativa à memória operária. O artigo pontua desafios, inseguranças e aprendizados acumulados, ao mesmo tempo em que estimula o debate sobre novas formas narrativas na historiografia e as interrelações entre sujeito e objeto de pesquisa.

Por fim, Fernanda Dayara Salamon e Alfredo dos Santos Oliva, em A construção da subjetividade de C.G. Jung em “Memórias, sonhos, reflexões” (1957), colaboram com uma reflexão sobre a escrita autorreferenciada, a partir da autobiografia do psicanalista suíço, em que discorreu sobre sua vida, sua obra, seus sentimentos e suas experiências, enquanto campo privilegiado para discutir os processos de subjetivação na escrita de si, entendida como uma auto-organização afetiva e emocional.

Convidamos as leitoras e os leitores a percorrerem essas reflexões que, certamente, irão satisfazer aqueles e aquelas que buscam formas inovadoras de pensar a História.

Referência

LEONOR, Arfuch. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.

Geovanni Gomes Cabral – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE. Editor da Revista Escritas do Tempo.

Benito Bisso Schmidt – Docente do Departamento de História (desde 1994) e do Programa de Pós-Graduação em História (desde 2003) da UFRGS. Doutor em História pela UNICAMP.

Wilton Carlos Lima da Silva – Docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de Assis. Doutor em História pela UNESP/ASSIS.


CABRAL, Geovanni Gomes; SCHMIDT, Benito Bisso; SILVA, Wilton Carlos Lima da. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.4, 2020.  Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11 n. 22, 2019.

Dossiê: Visões e discursos sobre o “estar doente”: os papéis sociais estabelecidos pelas instituições de saúde, no século XX e início do XXI 

Expediente 

Editorial 

Dossiê

Artigos

Resenhas

  1. A revolução dos costumes em tempos de censuraa Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade | Marcela dos Santos Alves | 252-255 |  
  2. História e Teoria Queer | Cássio Rodrigues da Silveira | 256-259 | |

 

Memória em Rede. Pelotas, v.11, n.21, 2019.

Viver o Patrimônio

Editorial

Dossiê

Artigos

Ensaios Visuais

Resenhas

Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944) – ROSENBERG (A)

ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p. Resenha de: BERTONHA, João Fabio. Resenha de: Antíteses, Londrina, v.12, n. 24, p. 677-685, jul-dez. 2019.

Alfred Rosenberg (1893-1945) foi um nazista proeminente, mas é uma figura relativamente desconhecida para o grande público atualmente, ao contrário de outros, como Goebbels, Himmler ou Göring. Rosenberg, afinal, não comandou diretamente as operações de extermínio que marcaram o Terceiro Reich, não liderou Exércitos e nem conduziu ações espetaculares de propaganda. Ele teve, contudo, muita influência – ainda que ela tenha declinado com o tempo – no regime nazista. Hitler o nomeou para inúmeras posições de poder e seus escritos o levaram a condição de ideólogo chefe do nazismo. Ele era o grande doutrinador a quem todos prestavam atenção, mesmo quando não entendiam o que ele propunha ou consideravam, no íntimo, que suas ideias eram sem sentido.

Dois livros recentes, publicados em português, nos permitem ter uma primeira aproximação ao pensamento e às ações políticas desse homem. O primeiro, de Robert Wittman e David Kinney é, em essência, uma grande reportagem sobre o destino dos papéis de Rosenberg desde 1945 até a sua recuperação e disponibilização ao público, em 2013. Os autores combinam, no decorrer dessa reportagem em forma de livro, as trajetórias pessoais de Rosenberg e de Robert Kempner, o advogado que recuperou os diários (e outros papéis) na Alemanha e os trouxe para os Estados Unidos. O vai e vem dos papéis dentro dos Estados Unidos e os vários personagens que os possuíram ou tiveram interesse neles formam uma narrativa que prende o leitor, especialmente do historiador que está sempre a caça de fontes e documentos inéditos.

O segundo é mais denso e informativo, pois se trata justamente desses diários. Publicados com uma excelente análise crítica escrita pelos historiadores Juergen Matthaus e Frank Bajohr, eles nos trazem, em centenas de páginas, a possibilidade de olhar para dentro da mente e dos pensamentos de Alfred Rosenberg.

Obviamente, diários, como qualquer outra fonte, devem ser vistos com os cuidados metodológicos devidos. Nem sempre eles são confiáveis para datas e acontecimentos específicos e seu caráter de “monumento pessoal” os fazem documentos a serem lidos com especial cuidado. Ali, afinal, está o coração pulsando da memória de uma pessoa, aquilo que ela queria deixar registrado, com maior ou menor sinceridade, para o futuro. Todas as discussões teóricas sobre a “escrita de si”, sobre as diferenças entre memória e história e correlatas são especialmente necessárias aqui.

Aliás, como bem indicado pelos organizadores na introdução, o problema da redação de diários adquire um significado próprio quando se trata do Terceiro Reich. Normalmente, as pessoas escrevem diários para permitir uma reflexão sobre a própria vida, para facilitar a tomada de decisões ou a elaboração de ideias ou, ainda, para deixar um registro próprio dos acontecimentos vividos.

Na Alemanha nazista, contudo, a própria ideologia do movimento tornava esse exercício diarista inútil e até perigoso. Perigoso, pois deixar provas materiais de pensamento autônomo ou de divergência frente ao regime podia significar simplesmente a produção de provas que seriam usadas pelos inimigos.

E inútil, pois os nazistas se orgulhavam de serem homens de ação, sem tempo ou necessidade de reflexão crítica, adeptos do irracionalismo, numa perspectiva anti-intelectual. Obedecer aos líderes e agir era muito mais valorizado do que pensar e refletir, pelo que escrever num caderno todos os dias não servia para nada.

Além disso, os nazistas eram, em geral, pessoas de convicções ideológicas sólidas. Não no sentido de terem ponderado cuidadosamente sobre o que defendiam e se convencido da sua realidade, mas no de terem alguns eixos de pensamento muito claros, os quais davam sentido à vida e aos atos do dia a dia.

Sem dúvida sobre quais caminhos tomar, a autorreflexão realmente se tornava inútil. Por esse motivo, os principais líderes nazistas não deixaram diários. Hitler não o fez – sendo falsos os seus famosos diários descobertos em 1983 – e muito menos Himmler, Göring ou Heydrich. O que temos, no máximo, são agendas de trabalho ou coleções de cartas enviadas ou recebidas, a maioria burocráticas ou sem maior valor. Os únicos que o fizeram foram justamente os intelectuais do nazismo, ou seja, Goebbels e Rosenberg.

Em parte, o fizeram justamente por isso. Fazia parte das tarefas de ambos dar uma roupagem analítica e descritiva para o que acontecia no Estado nazista, seja formulando princípios e justificativas ideológicas seja elaborando diretrizes de propaganda para o dia a dia. Isso os obrigava a ter uma atividade intelectual mais densa – como será melhor desenvolvido abaixo – o que pode os ter estimulado a ser diaristas. O que eles produziram, contudo, foram essencialmente páginas de ataques aos inimigos, de autocomiseração com os fracassos e de registro de supostos feitos e realizações para futura referência. Como um todo, o nazismo não é bem apreendido na leitura dessas anotações e muito menos em termos ideológicos.

Na verdade, como parece ser a praxe para a maior parte dos intelectuais orgânicos da direita – e, especialmente, da extrema-direita – Rosenberg não era especialmente brilhante, compensando a pouca densidade da sua obra com um empenho contínuo, numa produção quase diária de textos, especialmente palestras. artigos de jornal, memorandos e relatórios. Sua obra prima, O Mito do Século XX, publicado em 1930, teria sido, aparentemente, ridicularizado até pela própria liderança nazista, que ou não o entendia ou o considerava um amontoado de bobagens. Hitler e o NSDAP souberam reconhecer, contudo, que ele servia perfeitamente como manual doutrinário e sua leitura se tornou obrigatória no Terceiro Reich, atrás apenas do Mein Kampf de Hitler como “livro sagrado” do nazismo.

Dessa forma, o papel central de Rosenberg foi o de tomar emprestado escritos de pensadores do passado, como Gobineau e Chamberlain, para formar uma ideologia simples e facilmente compreensível, centrada numa visão conspiratória da História, na superioridade racial e no antissemitismo. Sua importância, na verdade, reside justamente nas suas falhas como pensador. Como bem indicado tanto tempo atrás por Marilena Chauí para o caso do integralismo, a simplicidade e pobreza teórica e empírica, longe de serem um problema, faziam dele um ideólogo perfeito, chamando para a ação e não para a reflexão. Escrevendo sem parar em jornais, revistas e também publicando livros, ele era mais o divulgador e o mobilizador do que um pensador e um cientista, apesar de se considerar um.

Em 1934, Hitler oficializou essa sua posição, nomeando-o como o ideólogo oficial do regime. Mesmo levando-se em conta os limites de Rosenberg e dos seus papéis e a própria fragilidade teórica do nazismo, muita informação útil pode ser retirada dos seus diários; vários aspectos da política e da ideologia do III Reich se tornam evidentes nos mesmos, sendo passíveis de rediscussão a partir de um novo olhar. Mesmo quando seu conhecimento ou entendimento do que acontecia era limitado ou quando sua própria posição o impedia de ver o todo, o que emerge dos diários pode ser útil para repensar a ideologia e a política da Alemanha na época de Hitler.

Rosenberg foi importante, por exemplo, na elaboração da ideia de que havia uma conspiração judaica mundial por trás da revolução comunista na União Soviética. Nessa perspectiva, os eslavos eram uma raça inferior, a ser escravizada pelos alemães, e a URSS era um projeto judeu para liderá-los contra a raça superior. Isso justificou a guerra devastadora dos nazistas contra os soviéticos a partir de 1941 e Rosenberg, até por isso, recebeu cargos importantes no sistema de ocupação no Báltico, na Rússia Branca e na Ucrânia.

É difícil acreditar que Rosenberg tenha sido o criador dessa ideia, bastante comum nos círculos antissemitas e de extrema-direita nos anos 1920. E não apenas na Alemanha. Em Buenos Aires, por exemplo, já em 1917 essa proposta era ventilada e jornais da elite argentina escreviam que os operários em protesto estavam sendo instigados pelos judeus e que os bolcheviques eram conspiradores judeus disfarçados. É razoável admitir, contudo, que Rosenberg colaborou para implantar essa ideia nos ouvidos certos, da pessoa que, no futuro, tomaria as decisões do Holocausto: Adolf Hitler.

Ele também teve um papel importante na questão religiosa, sendo conhecida a sua postura anticristã. Ele considerava as práticas e símbolos cristãos como puro charlatanismo e a doutrina cristã como incompatível com a verdadeira alma alemã. No seu livro O Mito do século XX, isso é evidente. Segundo Rosenberg, os judeus, através de Paulo, haviam corrompido a mensagem original de Jesus e divulgado uma falsa doutrina de submissão, amor e igualdade. Tal doutrina seria incompatível com a superioridade racial alemã e o nazismo devia criar uma nova religião, adequada aos novos valores.

Essa postura o isolou frente a outros representantes da extrema-direita europeia – muitos dos quais tinham raízes no reacionarismo católico, por exemplo – e também dentro do nazismo. Afinal, havia nazistas que consideravam perfeitamente possível conciliar a mensagem cristã com a nazista e outros, provavelmente em maior número, que não acreditavam ser uma boa ideia se indispor com a tradição cristã da população alemã, preferindo o compromisso e a acomodação.

Em Rosenberg, e nos seus escritos, também fica evidente um dos aspectos mais cruciais no funcionamento do Estado nazista, ou seja, os conflitos entre Partido e Estado e entre as várias instituições e grupos dentro do regime. Suas críticas contínuas a Goebbels, a Himmler e a outros são representativas da selva competitiva que era a Alemanha nazista.

Nesses conflitos, ele ganhou e perdeu, conforme as circunstâncias e os equilíbrios do poder. No comando da Einsatzstab Rosenberg, ele saqueou bibliotecas, arquivos e coleções privadas em toda a Europa, especialmente judias. Nesse processo, estava em competição com a SS, que também roubava livros para sua biblioteca sobre os inimigos do Reich. Ele foi muito bem-sucedido e, no seu Instituto de Pesquisa sobre a Questão Judaica, fundado em Frankfurt, ele acumulou um imenso acervo sobre o judaísmo na Europa. Também saqueou arte de propriedade dos judeus por toda a Europa, em competição com Göring, com Goebbels e outros. Mais adiante, ficou responsável até mesmo pelo saque de mobiliário dos judeus. Nessa atividade, foi mais vencedor do que perdedor.

Já na administração do Leste ocupado, a competição com outras agências e grupos se tornou ainda mais brutal e, nesse caso, Rosenberg perdeu. Ele recebeu o encargo de organizar o novo território ocupado, mas sua influência se diluiu, especialmente frente à SS. Ele imaginava o espaço entre Berlim e Moscou como um de dominação, no qual, após o extermínio dos judeus e dos comunistas, haveria alguma negociação com os nacionalismos ucraniano, báltico e outros para a criação de uma frente anti-russa. Já Hitler, Göring e a SS queriam uma dominação mais completa e absoluta, de escravidão e, posteriormente, de substituição demográfica.

Também nas relações exteriores Rosenberg, que tinha sido um ator importante na formatação da política externa do NSDAP, perdeu influência no decorrer do tempo, especialmente para Ribbentrop. Ele também disputou com Goebbels o controle da arte e da literatura alemãs e, nesse caso, houve quase um empate, pois, mesmo perdendo poder, ele continuou um ator importante, comandando vários escritórios e agências culturais dentro da Alemanha.

Todas essas idas e vindas são identificáveis nos diários, especialmente nas suas contínuas críticas aos que o superavam, como Goebbels e Göring. Ao mesmo tempo, ele buscava e registrava cada possível aprovação de Hitler às suas ações, o que refletia tanto a sua submissão psicológica a ele como o reconhecimento que, na luta pelo poder na Alemanha nazista, o favor de Hitler era o elemento chave.

Nos seus papéis, ele vencia as batalhas que estava a perder na realidade e tinha esperanças de reverter a situação. Em linhas gerais, contudo, fica evidente como, com o passar do tempo, ele estava numa posição cada vez mais fraca na estrutura de poder nazista.

Talvez tenha sido um problema, no caso de Rosenberg, o fato de ele ser, apesar de medíocre, um intelectual. A liderança nazista preferia a ação, a política e desprezava a cultura, a não ser aquela dirigida à propaganda e à formação de consensos. Mesmo sendo um intelectual orgânico, no sentido de um homem ligado ao partido e ao Estado nazistas, o ser intelectual demandava um mínimo de refinamento teórico e a liderança nazista normalmente desprezava isso frente ao imperativo da ação, como já indicado acima.

Em qualquer projeto ideológico, na verdade, a escala de convencimento ideológico dos que aderem vai do totalmente pragmático (aquele que não leva a sério aquele conjunto de ideias, mas que as defende por interesses outros, materiais ou emocionais) até o totalmente idealista, ou seja, que acredita piamente em tudo o manifestado. Quase sempre, esses dois extremos não existem e a combinação entre ambos é o padrão geral, com contínuas oscilações conforme o tempo, o espaço, os grupos sociais, a individualidade etc.

No caso dos intelectuais orgânicos, o mesmo acontece, mas a sua própria função – estabelecer, refinar e proclamar uma ideologia que sustenta um dado modelo político ou econômico – demanda que seu pragmatismo seja controlado. Afinal, se o que sustenta a sua posição é o fato de ele ser o defensor de um conjunto de ideais, ele não pode simplesmente ignorar o que é dito e escrito, especialmente por si próprio. Assim, nem Himmler ou o próprio Hitler podiam simplesmente ignorar o que a ideologia nazista proclamava abertamente, mas sua margem de manobra era maior do que a de pessoas como Rosenberg.

A sensação que fica na leitura dos diários, na verdade, é que Rosenberg efetivamente acreditava na ideologia nazista. Como já indicado acima, como acontecia com a maioria dos nazistas, seus conceitos políticos não eram fixos e havia muito oportunismo e negociação na sua prática, como não podia deixar de ser frente a uma conjuntura sempre em mutação e o fato de ele ser um político além de um ideólogo. Mesmo assim, a sensação que fica da leitura dos diários é que seus princípios ideológicos eram mais sólidos do que em outros líderes nazistas.

Em resumo, Rosenberg compartilhou da flexibilidade entre teoria e prática (ou oportunismo) que o regime nazista sempre manifestou. No seu caso, contudo, essa flexibilidade era menor ou demandava, no mínimo, mais articulação teórica, até interna, pois ele parecia realmente acreditar naquilo que dizia e escrevia.

Ele era muito mais inflexível frente a seus princípios ideológicos básicos do que outros líderes nazistas, tanto que seus diários indicam seus malabarismos internos para lidar com a aproximação do Terceiro Reich com a Igreja Católica ou com a União Soviética. Isso, provavelmente, enfraqueceu a sua posição na luta pelo poder na Alemanha nazista, ao mesmo tempo em que delimitava e reforçava o seu espaço e as suas prerrogativas, já que ele era o guardião dos ideais.

Outro ponto interessante que a biografia e os diários de Rosenberg ressaltam é a problemática de ele ser um indivíduo no limite do aceitável para a ideologia nazista. Ele era etnicamente alemão, mas havia dúvidas e questionamentos a respeito da pureza das suas origens germânicas, até porque ele tinha uma sobrenome comumente associado aos judeus e tinha nascido no Báltico. Para piorar, ele, fluente em russo, falava alemão com um sotaque carregado, o que também dava margem a questionamentos e dúvidas: um pertencente ao “nós”, mas na fronteira entre o “nós” e “eles”.

Ao observarmos a história do nazismo, nota-se que, entre os maiores defensores da doutrina, estavam muitos que não se enquadravam perfeitamente no modelo ariano por suas características físicas. Himmler era franzino, Goebbels era muito moreno e manco, Göring era viciado em drogas, Heydrich era considerado, apesar de não ser verdade, meio judeu e o próprio Hitler não era um nórdico puro. A justificativa era que, apesar dessas características, eles ainda estavam dentro do padrão ariano aceitável, mas o fato óbvio era que o poder determinava, em boa medida, como a ideologia era aplicada nos casos reais. Ou alguém teria a coragem de afirmar que Hitler não deveria liderar por não ser um nórdico no modelo viking? Mesmo assim, essa falta de conexão com a doutrina era visível e isso poderia, conforme a conjuntura mudasse, ser utilizado contra os inimigos.

Do mesmo modo, é impressionante a presença de não-alemães no comando nazista. O próprio Hitler era austríaco, Rudolf Hess havia nascido no Egito e Rosenberg e vários outros eram refugiados do Báltico. Mesmo sendo aceitos como alemães, o fato é que eles estavam no limite: não haviam crescido na Alemanha, muitos falavam alemão com sotaque e suas origens, muitas vezes, podiam ser questionadas. Para os nesse meio-termo, a fidelidade ao regime e à ideologia podia ser ainda mais fundamental, até como forma de compensar uma origem questionável. A maciça presença, em termos proporcionais, de austríacos na máquina nazista talvez seja um reflexo não apenas da força da extrema direita na Áustria e no sul da Alemanha nos anos 1920 e 1930, como também um esforço deles para serem aceitos como plenamente alemães depois do Anschluss.

Essa problemática dos “na fronteira”, evidentemente, vai além do nazismo. Nos Estados Unidos, por exemplo, alguns italianos emigrados do Mezzogiorno se tornaram profundamente racistas para afirmarem uma identidade branca que era questionada por muitos anglo-saxões. Isso para não mencionar, evidentemente, o tradicional papel das classes médias no capitalismo, sempre sob o risco de proletarização e, até por isso, seus cães de guarda mais fiéis. Talvez a biografia de Rosenberg pudesse ser útil como foco para estudos desse tipo de perfil, cuja utilidade para o regime nazista ainda não foi explorada a contento.

Em resumo, os diários de Rosenberg são, dentro dos seus limites, uma fonte útil para o entendimento não apenas dele e de sua personalidade, mas também do regime em si. Isso não apenas no tocante à ideologia – o antissemitismo, o racismo, a perspectiva anticristã, o anticomunismo e as articulações entre esses elementos – como também na prática, na conversão desses princípios ideológicos em políticas e ações. Ideias, afinal, não existem fora do mundo real e mesmo as registradas em papeis privados estão conectadas ao mundo material, de interesses, disputas, negociações e acomodações. Rosenberg pode ter suas especificidades enquanto intelectual, mas ele pertencia a um grupo, a uma sociedade e a um regime e é estudando essa relação que sua vida, e seus diários, adquirem significado histórico.

Referências

ROSENBERG, Alfred. Os diários de Alfred Rosenberg (1934-1944). São Paulo: Planeta, 2017. 660 p.

WITTMAN, Robert; KINNEY, David. O diário do diabo: os segredos de Alfred Rosenberg, o maior intelectual do nazismo. Rio de Janeiro: Record, 2017, 460 p.

João Fabio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá JAMES, Cyril. The Black Jacobins: Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution, New York: Vintage Books, 1989.

A mídia e os estratos do tempo / Revista Brasileira de História da Mídia / 2019

O XII Encontro Nacional de História da Mídia – Alcar 2019 reuniu pesquisadores do Brasil e do exterior na Universidade Federal do Rio Grande do Norte com o objetivo de discutir a mídia e os estratos do tempo. Foram três dias de intensos debates e trocas. Uma parte das contribuições do evento foi reunida para esta edição da Revista Brasileira de História da Mídia – RBHM, no dossiê temático A mídia e os estratos do tempo.

A conferência de abertura foi ministrada por Roger Chartier, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, professor do Collège de France, em Paris, e um dos mais importantes representantes da Escola dos Annales na contemporaneidade. O texto resultante da conferência, com o título Entre memória e esquecimento: as temporalidades da história, dos media e das experiências, integra o dossiê. Durante o evento, Chartier concedeu longa entrevista à professora Karina Janz Woitowicz, editora da RBHM. A conversa, que contempla questões relacionadas ao encontro, mas também abrange a obra do autor de modo mais amplo, é um dos destaques desta edição. Leia Mais

Aedos. Porto Alegre, v. 11, n. 25,2019.

Mulheres: biografias e trajetórias | Sumário | Expediente | Expediente | Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville | | 2-3 |

Editorial | Priscila Cristina Nascimento Lopez de Scoville, Debora Salvi, Bruno Grigoletti Laitano, Juliana Carolina da Silva |

Apresentação | Elenita Malta Pereira, Jocelito Zalla, Mônica Karawejczyk |

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

Comunicações | Ângela Pereira Oliveira Balladares |

Revista de Economia Política e História Econômica. São Paulo, n.42, jul. 2019.

REPHE 42 – julho de 2019

  • O Capitalismo Regido Pelas Finanças e a Grande Recessão
  • Caio V. F. Vilella
  • Desafios Éticos Contemporâneos das economias de mercado
  • Alexandre Lyra Martins
  • O Processo de Concorrência Capitalista em Marx
  • João Daniel Poli
  • Luciano Costa Souza
  • O Banco de Compensações Internacionais (BIS) e a unificação monetária europeia
  • Maria de Fátima Silva do Carmo Previdelli
  • Fernando Roberto Freitas Almeida
  • Luiz Eduardo Simões de Souza
  • Integração Regional na América Latina: debatendo os fundamentos sócio históricos da dependência estrutural e da unidade latino-americana
  • Mariana Davi Ferreira
  • Alexandre César Cunha Leite
  • Jaime Cesar Coelho
  • A inserção Externa da Argentina: uma análise a partir do comércio intra-industrial com Brasil, Estados Unidos e China
  • Virginia Laura Fernandez
  • Marcelo Luiz Curado
  • Bases Históricas do Desenvolvimento Mexicano (1876 – 1940)
  • Eduardo Gonzales Silva
  • Ivan Colangelo Salomão
  • A Crise Asiática de 1997 e a Imunidade Taiwanesa: um estudo sobre a estruturação do setor externo de Taiwan
  • Ben Lian Deng
  • O comércio de abastecimento de carnes verdes para o Rio de Janeiro no início do século XIX: uma via para a acumulação mercantil
  • Pedro Henrique Pedreira Campos
  • A trajetória da economia capixaba entre 1985 e 2009
  • Heldo Siqueira da Silva Junior
  • Gustavo Rocha Bulgareli Ferreira
  • A Inserção Feminina no Mercado de Trabalho sob o Contexto Capitalista nas Regiões Metropolitanas do Brasil do Período 2003 – 2014
  • Alana Paula de Araújo Aires
  • André Cutrim Carvalho
  • O Brasil e a necessidade de um New Deal
  • Cássio Silva Moreira
  • GALA, Paulo. Complexidade econômica: uma nova perspectiva para entender a antiga questão da riqueza das nações. Rio de Janeiro: Contraponto; Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2017.

Foreign Policy Analysis: A toolbox | Jean-Frédéric Morin e Jonathan Paquin

En 1962 durante la Guerra Fría, la Unión Soviética instaló misiles nucleares en Cuba. Los Estados Unidos dirigido, por John Kennedy, respondió con un bloqueo a la isla cubana. Unos dirán que el bloqueo dependió del carácter de Kennedy. Otros afirmarán que la reacción dependió de la interpretación del presidente de los Estados Unidos ante la instalación de los misiles en Cuba. Posiblemente, otras explicaciones mostrarán que la Unión Soviética intentaba defenderse en un sistema anárquico. Como Jean-Frédéric Morin y Jonathan Paquin lo señalan en su libro, este acontecimiento puede desenterrar múltiples formas de interpretar o explicar este hecho histórico desde el Análisis de Política Exterior.

El Análisis de Política Exterior es un subcampo de estudio de las Relaciones Internacionales. Los actores estudiados son los Estados, gobiernos, ciudades, federaciones, regiones y demás actores que desarrollan su propia política exterior. Se preocupa en explicar o entender la transición de los factores internos a los externos. Observa aspectos que influyen en las decisiones o motivos que llevan a que actores actúen (o no), reaccionen (o no) o se comporten de determinada forma en la arena internacional. Por eso, los estudiosos/as de la política exterior han desarrollado varias herramientas multidisciplinares para explicar o entender estos procesos. Es justamente lo que Jean-Frédéric Morin y Jonathan Paquin ofrecen con su libro “Foreign Policy Analysis: A toolbox”. Leia Mais

Política Exterior Brasileña: oportunidades y obstáculos para el Paraguay | D. A. Brun

O Brasil e o Paraguai possuem grandes assimetrias. Em termos demográficos, toda a população paraguaia, estimada em torno de 7 milhões de habitantes, equivale à metade da população do estado do Paraná, com o qual o país faz fronteira. Em termos econômicos, os números do comércio praticado em Cidade do Leste (produtos de reexportação, que ingressam majoritariamente na forma de descaminho no Brasil), representaram 12% do PIB do Paraguai e a 0,2% do PIB do Brasil em 2016 (OBEI, 2018).

A Usina Hidrelétrica de Itaipu foi um divisor de águas nas relações bilaterais e, para a história política recente do Paraguai, se pode falar em antes e depois da Binacional (ROLON, 2011). Para o Brasil, Itaipu é uma das empresas estatais importantes, mas que não tem poder para influenciar o resultado da política nacional, por exemplo. Neste sentido, o tema não foi pauta das campanhas presidenciais no Brasil em 2018, algo impensável no contexto paraguaio. Leia Mais

Igualitária. Belo Horizonte, v.2, n.14, 2019.

HISTÓRIA: DEMANDAS SOCIAIS E DIVERSIDADE DE PODERES

ARTIGOS

  • Um olhar histórico sobre o homem e líder político que pretendia modernizar e democratizar o Brasil
  • RESUMO PDF
  • Jorge Arantes
  • Saberes e Práticas Desenvolvidas pelos Conselheiros e Conselheiras tutelares em Belo Horizonte – MG
  • RESUMO PDF
  • Sther Mendes Cunha
  • “Crianças Perdidas”: vulnerabilidade social e as cidades no Brasil
  • RESUMO PDF
  • Gabriela Corrêa Frossard
  • Empoderamento Local e Pobreza:duas faces da mesma moeda
  • RESUMO PDF
  • Adriana Ferreira Furtado, Armindo dos Santos de Sousa Teodósio
  • O Brasil no Tratado de Versalhes, 1919: A participação do Brasil no Tratado de Versalhes e a repercussão no Jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro)
  • RESUMO PDF
  • Thiago Reis Oliveira da Cruz Reis, Renata Garcia Campos Duarte

 

A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro | Carolina Dellamore, Gabriel Amato, Natália Batista

RC Destaque post 2 11 Memórias do regime militar

O livro A ditadura aconteceu aqui – a História Oral e as memórias do regime militar brasileiro (2017) é uma coletânea de artigos organizada por Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natália Batista. Os organizadores são pesquisadores com doutorados vinculados ao Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Minas Gerais (PPGH-UFMG) e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade (FAFICH-UFMG), coordenados pelos professores Rodrigo Patto Sá Motta e Miriam Hermeto. O grupo se concentra em pesquisas que têm como mote a história do estado de Minas Gerais, do tempo presente e do regime civil-militar brasileiro.

A obra foi lançada no XII Encontro Regional Sudeste de História Oral, ocorrido na UFMG entre 26 a 28 de setembro de 2017. Alguns conferencistas convidados para o evento escreveram capítulos, sendo a maioria dos pesquisadores que publicaram suas reflexões no livro ligados à instituições universitárias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro que encontram representação na seção sudeste da Associação Brasileira de História Oral (ABHO). A História Oral aparece em sua face múltipla: praticada a partir de inflexões teóricas e metodológicas diversas e tendo como eixo de preocupação a relação entre a memória social e a História. Leia Mais

Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais – SARAIVA (HO)

SARAIVA. Daniel Lopes. Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais. São Paulo: Letra e Voz, 2018. 200p. Resenha de: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Pereira de. “Operária da música brasileira”: Nara Leão e uma memória musical do Brasil. História Oral, v. 22, n. 2, p. 283-286, jul./dez. 2019.

Aqueles que cruzassem os corredores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) da Guanabara, em meados dos anos 1970, poderiam ter a sorte de avistar, mesmo que de relance, uma das maiores intérpretes da música brasileira. Para alguns, somente uma estudante de Psicologia que transitava pelo campus. Com os holofotes afastados, em um movimento próprio e consciente, Nara Leão sentava na sala de aula determinada a aprender o máximo possível. Essa sede por conhecimento vinha desde as reuniões de artistas em seu apartamento, na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo objeto de dedicação durante toda sua carreira e presente nas narrativas realizadas sobre ela. A musa da Bossa Nova, que circulou por inúmeros estilos, era uma profunda conhecedora da música brasileira, reconhecida por seus pares como de refinado gosto musical. Não à toa, foi responsável por lançar diversos artistas, além de dialogar com grandes movimentos musicais do país, como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália, e fazer parte da invenção e institucionalização da MPB.

A figura de Nara Leão perpassa por diversos momentos da música brasileira. Os choques e afastamentos da artista com os holofotes, a aproximação com jovens e talentosos músicos, o enobrecimento de movimentos marginalizados, são alguns dos inúmeros pontos que resultam de seu constante trânsito. De forma inquieta, inteligente e perspicaz, a trajetória de Nara se encontra com a de outros artistas brasileiros contemporâneos a ela, como Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Zé Keti, Roberto Carlos, Fagner, entre tantos outros, que a destacam nas suas próprias trajetórias.

A efervescente vida de Nara Leão é o ponto de partida da pesquisa de Daniel Lopes Saraiva, no livro “Nara Leão: trajetória, engajamento e movimentos musicais”, publicado pela editora Letra e Voz, em 2018. Preocupado em dar densidade histórica para uma trajetória marcada por inúmeros trânsitos, o autor dialoga com as produções musicais da artista, passando por documentos oficiais do governo ditatorial brasileiro e entrevistas com colegas de trabalho, amigos e familiares. Assim, a trama tece diálogos entre uma sociedade que se transformava em diversas esferas e os trajetos da intérprete, sem perder de vista o desenvolvimento da música popular brasileira. Tendo como objetivo central compreender a figura de Nara Leão em perspectiva histórica, o livro se concentra no desenvolvimento da carreira da artista, através de reflexões sobre sua vida e obra, enquanto possibilidade para compreender um período complexo do país.

A obra é dividida em três capítulos. No primeiro, o autor procura, de forma audaciosa, traçar uma pequena biografia da artista, trazendo relatos de sujeitos que estiveram ao seu redor, principalmente entre sua infância e o início de carreira, sem perder de vista o contexto musical brasileiro. Já o segundo, se debruça nos seus diferentes engajamentos, como a aproximação com o Centro Popular de Cultura (CPC) e o teatro, e as vicissitudes enquanto mulher inserida nesses espaços. O terceiro, traz os 23 LPs gravados por Nara, além de uma discussão sobre a sua relação com diversos movimentos musicais, a busca por canções com temas caros à artista, e sua importância frente à indústria cultural nos anos 1970 e 1980.

O manancial de fontes de que o autor lança mão é ponto de destaque. Impressos, como Folha de São Paulo, Diário do Comércio, O Globo e O Pasquim; LPs, todos os de Nara Leão, entre 1964 e 1989, além de outros que marcaram a trajetória da intérprete. Filmes, como “Esse Mundo é Meu”, de Sérgio Ricardo, e “Quando o Carnaval Chegar”, de Cacá Diegues. Documentos de arquivos, como os da Força Aérea Brasileira (FAB), da Polícia Federal (PF), do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Além disso, 25 entrevistas, em sua maioria realizada pelo autor, com pessoas que circundavam a vida pessoal e profissional de Nara Leão, como Roberto Menescal, Cacá Diegues e Fagner. Elas são operacionalizadas em diálogo, buscando tatear os fragmentos do passado de Nara e da música brasileira.

Por conta disso, a escrita se destaca no tocante à memória. Daniel Saraiva transcorre pelas fontes para propor uma trama interessante, que nos convida a problematizar diferentes versões sobre a trajetória de Nara Leão. Construindo memórias sobre a intérprete, os entrevistados elaboram narrativas que se chocam em alguns momentos, denotando ruídos entre as várias verdades acionadas. A memória, conforme Jacy Alves de Seixas, é uma reelaboração do passado, em que ela é ativada visando um controle daquilo que já não existe mais (Seixas, 2001). A latência dessa lembrança é evidenciada nos depoimentos destacados na obra. Para os entrevistados, lembrar Nara Leão é lembrar-se de si mesmo, em uma compreensão afetiva de suas experiências.

As memórias evocadas pelos rastros de Nara Leão são intensamente perseguidas pelo autor, em diálogo constante com a construção de narrativas sobre a própria MPB. Com um passado fragmentado, suas dimensões nunca serão apreendidas em sua plenitude, sendo visões sobre ele. Entre as representações construídas por diferentes sujeitos e fontes, a narrativa opera como mediadora entre configurações de mundo, conforme Paul Ricoeur (2008). A “invenção da tradição” da MPB, segundo Paulo César de Araújo, perpassa um processo de construção narrativa daquilo que estaria inserido na sigla, assim como do que estaria alijado (Araújo, 2002). Diversos artistas foram relegados ao ostracismo, seja pelo mercado fonográfico seja pela construção narrativa da MPB que não os contempla. Do outro lado, encontra-se Nara Leão, que sobrevive a diferentes crises da sigla, seja pelo seu gosto musical refinado, por sua origem social de classe média, ou talvez pela proximidade com os altos escalões das gravadoras.

O autor indaga sobre a construção de uma memória oficial sobre Nara Leão, analisando de que forma ela se conforma nas diferentes narrativas. Ao longo da obra, vimos a preocupação em não perder de vista de onde e com quem a intérprete falava, deixando evidente que Nara estava em contato e dialogava com uma pequena parcela da população brasileira, composta pela elite econômica e uma classe média intelectualizada. Esse ponto é retomado em diversas passagens, principalmente quando aproximada com a institucionalização da MPB, em que o papel social engajado da artista é evidenciado. A carga política e estética que a sigla carrega também pode ser percebida na sua trajetória, se destacando ao cantar as mazelas do povo, mesmo não fazendo parte dessa camada social, e nem dialogando com ela.  As memórias construídas sobre a artista exaltam sua personalidade transgressora e engajada, e constroem uma Nara multifacetada. As negociações e disputas em torno dessa memória nos colocam a par de circuitos afetivos, que tecem narrativas sobre a artista. Entendê-las enquanto uma construção revela seu caráter instável, transitório e múltiplo. Assim como a própria Nara Leão.

Referências

ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memórias em terras de História: Problemáticas Atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (Org.) Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 37-58.

Carlos Eduardo Pereira de Oliveira – Doutorando em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com área de concentração em História do Tempo Presente. Possui graduação e mestrado em História pela mesma instituição. Vinculado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS-UDESC), tem experiência no campo dos estudos sobre canção, consumo e meios de comunicação.

 

A critical overview of biological function – GARSON (Ph)

GARSON, J. A critical overview of biological functions. Dordrecht: Springer, 2016.Resenha de: LAZZERI Felipe. Funções biológicas em chave etiológico-selecionista. Philósophos, Goiânia, v. 24, n. 2, p.205-222, jul./dez., 2019.

O conceito de função, na acepção teleológica do termo (não função no sentido matemático), conota processos e ob-jetos dirigidos a finalidades ou propósitos. Em razão de ele ser utilizado para descrever vários traços em ciências bioló-gicas – tais que traços anatômicos, histológicos e compor-tamentais dos organismos –, frequentemente as funções, nesses casos, têm sido chamadas de funções biológicas. Os contornos do conceito de função biológica (isto é, os crité-rios sob os quais ele se aplica), os compromissos ontológicos envolvidos em seu uso e suas conexões inferenciais com o núcleo teórico das ciências da vida, entretanto, não são cla-ros, e por vezes isso resulta em usos discrepantes entre si. Daí, conjugado-se com a importância do conceito, suscita-rem uma série de debates em filosofia da biologia, que já se estendem a várias décadas (a partir inicialmente de traba-lhos como os de AYALA, 1970; CANFIELD, 1964; NAGEL, 1961; WIMSATT, 1972; WRIGHT, 1973; e, ain-da antes, no contexto das ciências do comportamento e da cibernética, trabalhos como os de BRAITHWAITE, 1953; e ROSENBLUETH et al., 1943, para mencionar apenas al-guns). Esses debates são objeto de ampla revisão e balanço examinativo no livro de Garson A Critical Overview of Biolo-gical Functions (Springer, 2016, vii + 113pp), que aprofunda e atualiza uma revisão que o autor havia desenvolvido de forma mais compacta em um verbete há alguns anos (GARSON, 2008).

Já dispomos de alguns trabalhos que revisam ampla-mente a literatura metateórica sobre funções biológicas (como, por exemplo, NISSEN, 1997). Mas a revisão ofere-cida no livro de Garson (2016) é talvez a mais abrangente e atual de que dispomos hoje a respeito do assunto. Nesta re-senha, procuramos destacar as linhas gerais do percurso metodológico do livro, bem como a abordagem das funções nele sugerida por Garson, que ele denomina ‘teoria dos e-feitos selecionados generalizada’ (generalized selected effects theory), uma tentativa de aprimorar a teoria etiológico-selecionista das funções, articulada notoriamente por Wri-ght (1973), Millikan (1984) e Neander (1991). Além disso, levantamos algumas breves ponderações a alguns pontos do livro, inclusive à abordagem específica sugerida por Garson, embora sem objetar a plausibilidade dela em si.

O livro começa (cap. 1) com um levantamento de desi deratos – adotados por Garson em capítulos subsequentes – para uma teoria das funções. Garson destaca três: (a) coe-rência com o contraste que as atribuições de funções cono-tam em relação a acidentes; (b) dar sentido ao caráter explicativo que as atribuições de funções costumam ter; e (c) coerência com o dito caráter “normativo” do conceito de função. O desiderato (a) refere-se ao fato de que não con-tamos como funções de um traço acontecimentos mera-mente acidentais que envolvem ou provocam. No exemplo clássico usado para ilustrar isso, atribuímos ao coração a função de irrigar o sangue no corpo, mas não produzir cer-tos sons, ainda que isso seja algo que o coração também produz. Para tomarmos um exemplo talvez mais intuitivo, quando uma suçuarana (Puma concolor) sai para caçar, dize-mos que seu comportamento tem como uma função obter alimento (para si ou para sua prole). Essa atribuição de fun-ção contrasta com certas coisas que o animal faz de modo incidental, tais que, possivelmente, espantar uma preza ao movimentar a relva, projetar reflexo em uma poça, acabar esmagando uma formiga ao correr, etc.

O desiderato (b), por sua vez, sugere que uma boa teo-ria das funções biológicas deve harmonizar-se, de algum modo, ao fato de que muitas das atribuições de funções são dadas em resposta a perguntas sobre por que um dado traço existe ou existiu. Assim, por exemplo, diante da curiosidade sobre o porquê das diferentes vocalizações das suçuaranas (miados, sons ásperos e outros), podemos explicá-las por re-ferência a suas respectivas funções em dados contextos, co-mo as funções de atrair companheiros à distância, intimidar rivais e assim por diante (cf. ALLEN et al., 2016). Garson (2016) deixa claro que o desiderato (b) deixa em aberto se o caráter explicativo que as atribuições de funções costumam possuir se trata de explicação em sentido causal ou não: “[H]á outras maneiras de satisfazer a esse aspecto das fun-ções sem entender explicação em sentido causal” (p. 5).

O desiderato (c), por fim, diz respeito ao fato de que o conceito em pauta se aplica mesmo em casos em que o tra-ço não desempenha sua função, seja momentaneamente, se-ja de modo mais estável no tempo. Mesmo que o animal vá caçar e não seja bem-sucedido em obter alimento, ou emita vocalizações associadas à atração de companheiros, mas a-cabe não atraindo nenhum, seu comportamento não deixa de ter tido essas respectivas funções. Como Garson pontua, o termo “normativo”, usado para designar essa característi-ca do conceito de função, não quer dizer que o traço deva desempenhar suas funções, em um sentido moral, mas ape-nas que “[É] logicamente possível que um caso particular de um traço tenha uma função que não possa [talvez tempora-riamente], de fato, realizar” (p. 5).

Ainda no capítulo 1 do livro, Garson explica que, ao seu ver, indiferentemente de se as teorias das funções sobre as quais se debruça são propostas como (i) análises concei-tuais, (ii) definições teóricas ou (iii) explanações conceituais à la Carnap (1962), o que importa é que, para se mostrar plausíveis, estejam em consonância com o uso real do con-ceito em biologia e nela se mostrem úteis. Desse modo, se-gundo o autor, a abordagem pode-se mostrar plausível apenas se capturar critérios subjacentes ao(s) modo(s) como o conceito vem sendo empregado em contextos das teoriza-ções em biologia. Propostas em termos de análise conceitu-al, a exemplo daquela de Wright (1973), (i) prezam pela consonância com nuanças semânticas comuns do conceito, em seus usos típicos; inclusive, se for o caso, científicos. Propostas em termos de definição teórica, como aquela de Millikan (1984; 1989), (ii) colocam-se, conforme interpreta Garson, no mesmo pé que a teorização científica, e tendem a mitigar a relevância da consideração das nuanças básicas do conceito envolvidas em seu uso comum, reputando-as com bastante chance de ser enganadoras. O empreendi-mento de definição teórica, explica Garson, compreende sua tarefa como sendo análoga à busca por definições tais que a de calor como energia cinética média de partículas, sal como substância formada por moléculas de cloreto de sódio, e assim por diante. Por sua vez, explanações (explica-tions) conceituais, no sentido carnapiano, (iii) veem-se como propostas de substituição de um termo vago (com contor-nos imprecisos e que, embora com casos paradigmáticos de aplicação, deixam dúvida sobre sua aplicabilidade a muitas situações) por um termo com critérios precisos. O empre-endimento em termos de (iii) é feito sob um crivo funda-mentalmente pragmático (preocupado com a aplicabilidade eficiente e que mostre resultados úteis), e sem uma preten-são realista de que haja algo como um “tipo natural” (natu-ral kind) a ser capturado por uma definição das funções biológicas. Apesar das diferenças entre (i)-(iii), todas devem ser avaliadas, segundo Garson, conforme consigam “refletir a ciência bem, e devem resultar em teorias que os cientistas possam achar úteis” (p. 10); e esse “refletir bem a ciência” envolve “ser razoavelmente limitadas (constrained) pelo uso biológico real” (p. 1).

A nosso ver, porém, ao fazer tal asserção, Garson (2016) deixa passar despercebido que o conceito em pauta tem uma carga semântica trazida a contextos científicos a partir, pelo menos em parte, de contextos ordinários. Os desidera-tos (a)-(c) que Garson aponta como condições para uma te-oria satisfatória das funções remetem a nuanças do conceito em seus usos ordinários, e não originados na biologia con-temporânea. O fato, por exemplo, de que atribuímos fun-ções a comportamentos, mas não a aspectos e efeitos acidentais neles envolvidos (como exemplificado anterior-mente), é revelado pela análise do uso comum do conceito (cf. LAZZERI, 2013b; 2014b; WRIGHT, 1973). Portanto, a nosso ver, embora Garson (2016) não se comprometa expli-citamente com características específicas de (i) – os empre-endimentos em termos de análise conceitual –, antes, ao contrário, procurando-se manter neutro entre (i)-(iii), ele na verdade implicitamente admite algum compromisso, mes-mo que parcial, com (i).

Além disso, ainda a esse respeito, a nosso ver, a compa-tibilidade da adoção dos desideratos (a)-(c) para avaliar teo-rias das funções e, ao mesmo tempo, do imperativo de condizência com usos reais do conceito em biologia, é algo problemático. Pois pode, naturalmente, haver incompatibi-lidade entre um uso em âmbito científico, por parte de um ou mais biólogos, e os desideratos (a)-(c). Ou seja, um bió-logo pode assumir, de forma implícita ou explícita, com-promissos com uma interpretação das funções que passem amplamente por cima de nuanças básicas do conceito (por exemplo, se AMUDSON & LAUDER, 1994, estiverem certos). Diante de um tal conflito, é preciso um critério que o resolva, mas Garson (2016) não o oferece.

Pode, a princípio, haver fortes razões para se fazer uma alteração em nuanças básicas do conceito. Por exemplo, se (a), (b) ou (c) não se mostrassem (ao contrário do que algu-mas abordagens sugerem) compatíveis com a síntese mo-derna em biologia, teríamos talvez boas razões para readaptar as correspondentes nuanças, senão para rejeitar seu uso em biologia. Entretanto, às vezes pode também o-correr simples erro de categoria (no sentido de RYLE, 1949), sem qualquer pretensão de se propor uma revisão em nuanças básicas do conceito. Isto é, pode-se incorrer em um uso incoerente com (a)-(c) que não passaria despercebi-do ao se constatar essas nuanças básicas. O ponto, aqui, é que há certa tensão, aparentemente não resolvida por Gar-son, entre abraçar os desideratos (a)-(c) como pedra de to-que para se avaliar as teorias das funções e também adotar a perspectiva de que uma teoria das funções só pode revelar-se plausível caso condiga com “seu uso real” em biologia.

Nos cinco capítulos seguintes (caps. 2-6), Garson passa a descrever as características de um amplo leque de teorias da função formuladas até então, bem como suas qualidades e críticas enfrentadas, com base em parte nos desideratos (a)-(c). As duas teorias em maior evidência nos debates nas últimas décadas (cf., por exemplo, CAPONI, 2012; CHEDIAK, 2018; NUNES-NETO & EL-HANI, 2009) são tratadas nos capítulos 3 e 5: nomeadamente, o capítulo 3 é dedicado à teoria etiológica-selecionista (ou dos efeitos sele-cionados), em suas formulações por Wright (1973), Milli-kan (1984), Neander (1991) e outros; e o capítulo 5 é dedicado à teoria das funções como papeis causais (teoria sistêmica), desenvolvida por Cummins (1975). As outras teorias tratadas no livro são: um conjunto de abordagens anteriores aos debates mais recentes na literatura em filoso-fia da biologia (cap. 2), incluindo aquelas de Rosenblueth et al. (1943) e Braithwaite (1953); a teoria das funções em termos de incremento na aptidão biológica (cap. 4), devida a Canfield (1964) e reformulada por Bigelow e Pargetter (1987), Walsh (1996) e outros; e, ainda, visões alternativas recentes (cap. 6), incluindo a teoria etiológica fraca de Bul-ler (1998), versões da concepção organizacional (como a de SCHLOSSER, 1998) e a teoria modal de Nanay (2010). Ademais, cabe mencionar que Garson dedica uma seção do capítulo 5 a perspectivas pluralistas sobre as funções.

Não é nosso propósito, nesta resenha, reapresentar to-das essas teorias e o exame crítico delas por Garson. Gosta-ríamos, entretanto, de destacar a concepção defendida pelo autor, a teoria generalizada dos efeitos selecionados (que o autor já havia articulado previamente em trabalhos como GARSON, 2011). Para defendê-la, a estratégia básica do au-tor é mostrar que, com exceção desse tipo de teoria, os de-mais tipos não conseguem resolver problemas que, em última instância, resumem-se a uma ou mais falhas quanto aos desideratos (a)-(c) – estratégia essa já adotada pioneira-mente por Wright (1973), em relação a abordagens de sua época, embora não de forma tão sistemática quanto Garson (2016). A vantagem da formulação específica do autor, em relação a versões anteriores de teoria etiológico-selecionista, é, segundo ele, ser menos restritiva, sem comprometer a sa-tisfação dos desideratos (a)-(c): “O principal argumento em favor para essa teoria dos efeitos selecionados generalizada é que ela satisfaz os mesmos desideratos que a visão conven-cional dos efeitos selecionados, mas sem aparentes restri-ções arbitrárias” (p. 59).

Grosso modo, conforme as formulações de Millikan (1984; 1989) e Neander (1991) – “a visão convencional” e tiológico-selecionista –, um traço T (por exemplo, uma vo-calização da suçuarana) possui a função de realizar F (por exemplo, intimidar rivais) se F é algo para o qual foi sele-cionado, em um sentido darwiniano de seleção. Ou seja, T possuir F quer dizer que realizar F é uma propriedade de T em virtude da etiologia de T, que envolve: (1) processos de variação entre itens de uma população de ancestrais de T (algumas vocalizações de ancestrais de suçuaranas eram ás-peras, outras vocalizações não); (2) sucesso diferencial de al-guns desses itens em relação aos outros, por possuírem uma ou mais características c¹,…, cn, requeridas no ambiente em que interagem (certas vocalizações ásperas resultavam em intimidação de rivais, e outras não); e (3) retenção das vari-antes bem-sucedidas por meio de mecanismos de cópia e replicação (os organismos bem-sucedidos em intimidar ri-vais tenderam a sobreviver mais e a se reproduzirem, propa-gando mutações gênicas responsáveis pelo referido fenótipo). Na formulação de Millikan (1984; 1989), em es-pecífico, propõe-se ainda que certos traços D possuem fun-ções derivadas G a partir de traços que possuem funções em virtude de história de seleção, sem que D mesmo tenha sido diretamente selecionados por realizarem G. A ideia é que D (por exemplo, uma pigmentação inédita em camaleões) tem uma função G (camuflagem) se há um T (mecanismos de troca da pigmentação do camaleão), oriundo de história de seleção, que realiza G (camuflagem) por meio da produção de D (cf. também [LAZZERI, 2013a; 2014a]).

A formulação que Garson (2016, cap. 3, §3.4) sugere como alternativa tem como ponto de partida o núcleo geral da teoria etiológico-selecionista, comum às formulações de Millikan e Neander; e propõe uma alteração no entendi-mento dos processos de seleção envolvidos nas etiologias dos traços funcionais. Segundo Garson, seria demasiado restritivo exigir que, nesses processos, haja sempre retenção por meio de mecanismos de cópia e reprodução. Ou seja, o autor problematiza o requisito (3) supramencionado, refe-rente às condições para haver uma etiologia selecionista re-levante.

Garson, ao problematizar (3), tem sobretudo em vista acomodar a aprendizagem (ou condicionamento) operante como um tipo de processo de seleção que confere funções a comportamentos no âmbito ontogenético. Millikan (1984; 2004) tem um interesse explícito em acomodar o referido tipo de aprendizagem como um processo de seleção e, as-sim, abranger os comportamentos operantes como traços funcionais em termos de sua teoria etiológico-selecionsta. Porém, Garson (2016) considera que na aprendizagem ope-rante não há exatamente retenção por meio de cópia e re-produção. A retenção, na aprendizagem operante, dá-se por meio de mecanismos sinápticos, e não há cópia e geração de sinapses novas, mas, sim, alteração em suas configurações, conforme resultem ou não em reforçamento: “Não há ne-nhum sentido em que uma dada sinapse se reproduza. An-tes, elas meramente persistem melhor ou pior do que outras” (p. 58). Daí o autor sugerir, no lugar da “formula-ção bastante liberal da seleção dada por Millikan”, que “[A] função de um traço consiste na atividade que levou ao seu reforçamento diferencial ou à sua reprodução diferencial em uma população biológica” (p. 58). A seleção natural envolve retenção por meio de mecanismos (nomeadamente, genéti-cos) de cópia e reprodução, mas na seleção em processos de aprendizagem operante a retenção é apenas persistência di-ferencial de comportamentos por meio de alterações nas configurações sinápticas.

A proposta de Garson, embora ele não o note, ou pelo menos não o mencione no livro, pode ser entendida como estando em certa consonância com vários autores em psico-logia comportamental, como Skinner (1953; 1976/1974; 1981), Rachlin (1976) e Baum (2005), além de com a epis-temologia evolutiva de Popper (2010/1973), que desde há tempo tomam a aprendizagem operante como um processo análogo à seleção natural. Inclusive, esses autores não traba-lham com a analogia entre aprendizagem operante e seleção natural em termos de retensão por meio de mecanismos de cópia e reprodução, mas, justamente, em termos de persis-tência diferencial de comportamentos. Autores como Baum (2001) e Godfrey-Smith (2001) já chamavam a atenção para o fato de que a retenção, em tal aprendizagem, não envolve cópia e reprodução; e que, desse modo, o “algoritmo sele-cionista” – para utilizarmos aqui um linguajar de Dennett (1995) – seria demasiado restritivo caso nele estabeleça-se esse parâmetro específico da seleção na filogênese (cf. [QUEIROZ & LAZZERI]). Portanto, a novidade de Garson (2016) a esse respeito é, a nosso ver, propor uma compreen-são menos restritiva do algoritmo de seleção para a “versão convencional” da teoria etiológico-selecionista, assim corri-gindo-a. (Uma conjugação semelhante de uma compreensão menos restritiva do algoritmo com a teoria etiológico-selecionista figura-se, embora apenas implicitamente e não de forma sistemática e pormenorizada como faz Garson, em [LAZZERI, 2013a; 2014a], em linha com o chamado mode-lo de seleção por consequências de SKINNER, 1981. É o portuno também registrar o estudo de RINGER, 1976, que também concatena a perspectiva skinneriana com a teoria etiológico-selecionista, especificamente em sua formulação pioneira por WRIGHT, 1973.)

Para finalizar, consideramos que o livro em pauta reúne um rico arsenal de respostas a críticas feitas à teoria etioló-gico-selecionista. Apenas para ilustrar, uma das críticas su-gere que tal teoria não condiz com o fato de que por vezes se atribui funções em biologia sem que se lance mão de qualquer referência a histórias de seleção, testando-se hipó-teses referentes a características dos traços no ambiente pre-sente (cf., por exemplo, AMUDSON & LAUDER, 1994). Garson (2016, p.50) menciona o caso de Prudic et al. (2015), que, procurando determinar a função das manchas semelhantes a olhos espalhadas nas asas de algumas espécies de borboletas, observaram que essas manchas ajudam as borboletas a evitar ataques por predadores a órgãos vitais. Para determinar a função desse traço de algumas borbole-tas, não lançaram mão de nenhuma hipótese sobre a histó-ria evolutiva das manchas, mas apenas o papel causal desempenhado por elas no ambiente presente desses ani-mais. Como Garson (2016, pp. 6-7, pp. 49-50) aponta, po-de-se mostrar que a veracidade desse tipo de atribuição funcional envolve, ainda que de modo implícito, compro-missos ontológicos com etiologias selecionistas subjacentes, responsáveis pelo caráter funcional do traço. A inteligibili-dade de características tais como o contraste com acidentes e seu caráter “normativo” não parece fazer sentido sem se ter esses compromissos.

Em suma, o livro de Garson (2016) é bastante meritó-rio, sob vários aspectos. Um deles é percorrer não apenas um grande espectro de abordagens, mas também de versões diferentes delas, quando o caso, e também de críticas que foram articuladas a cada uma delas. Fá-lo tipicamente de maneira opinada, tomando posicionamentos nesses emba-tes teóricos, mas sem comprometer a qualidade expositiva. Garson defende uma versão da teoria etiológico-selecionista das funções, que abrange processos de seleção além da sele-ção natural de maneira mais adequada do que formulações como as de Millikan e Neander. Segundo o autor, há pro-cessos de seleção que envolvem retenção sem ser em termos de cópia e reprodução. A retenção, em alguns desses pro-cessos, como é o caso da aprendizagem operante, deve ser pensada simplesmente como persistência diferencial. Essa ideia já estava no ar previamente, mas Garson tem o mérito de fazê-lo de modo explícito e sistemático, aliado a uma de-fesa minuciosa da abordagem.

Ao adotar os desideratos (a)-(c) para avaliar as outras te-orias das funções e defender a sua, Garson parece suben-tender uma adoção, pelo menos parcial, do chamado projeto de análise conceitual das funções, ainda que declare neutralidade a respeito. Ademais, há no livro certa tensão entre a adoção desses desideratos e sua colocação de que uma boa teoria das funções tem necessariamente de har-monizar-se com os usos reais do conceito em biologia; posto que aqueles podem conflitar com estes, e Garson não pare-ce oferecer uma solução ao problema. Apesar disso, o livro, a nosso ver, mostra-se uma revisão e um balanço crítico muito valiosos da literatura filosófica sobre funções biológi-cas.

Referências

ALLEN, M. L., WANG, Y., & WILMERS, C. C. (2016). Exploring the adaptive significance of five types of puma (Puma concolor) vocalizations. Canadian Field-Naturalist, vol. 130, 289-294.

AMUDSON, R., & LAUDER, G. V. (1994). Function without purpose: The uses of causal role function in evolu-tionary biology. Biology and Philosophy, vol. 9, 443-469.

AYALA, F. J. (1970). Teleological explanations in evolu-tionary biology. Philosophy of Science, vol. 37, 1-15.

BAUM, W. M. (2001). Two stumbling blocks to a general account of selection: Replication and information. Behav-ioral and Brain Sciences, vol. 24, p.528.

____. (2005). Understanding behaviorism: Behavior, culture, and evolution (2nd ed.). Malden, MA: Blackwell.  BIGELOW, J., & PARGETTER, R. (1987). Functions. Journal of Philosophy, vol. 84, 181-196.

BRAITHWAITE, R. B. (1953). Scientific explanation. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

BULLER, D. J. (1998). Etiological theories of function: A geographical survey. Biology and Philosophy, vol. 13, 505-527.

CANFIELD, J. (1964). Teleological explanations in biol-ogy. British Journal for the Philosophy of Science, vol. 14, 285-295.

CAPONI, G. (2012). Função e desenho na biologia contemporânea. São Paulo: Associação Filosófica Scientiae Studia/Editora 34.

CARNAP, R. (1962). Logical foundations of probability (2nd ed.). Chicago, IL: University of Chicago Press.

CHEDIAK, K. (2018). Funções e explicações funcionais em biologia. In P. C. Abrantes (Ed.), Filosofia da biologia (2a ed.) (pp. 103-121). Seropédica, RJ: PPGFIL-UFFRJ.

CUMMINS, R. (1975). Functional analysis. Journal of Philosophy, vol. 72, 741-765.

DENNETT, D. C. (1995). Darwins’ dangerous idea. New York: Simon and Schuster.

GARSON, J. (2008). Function and teleology. In S. Sarkar & A. Plutynski (Eds.), A companion to the philosophy of biology (pp. 525-549). Malden, MA: Blackwell.

____. (2011). Selected effects and causal role functions in the brain: The case for an etiological approach to neuro-science. Biology and Philosophy, vol. 26, 547-565.

____. (2016). A critical overview of biological functions. Dordrecht: Springer

GODFREY-SMITH, p.(2001). The role of information and replication in selection processes. Behavioral and Brain Sciences, vol. 24, p.538.

LAZZERI, F. (2013a). Observações sobre o behaviorismo teleológico: Parte 2. Acta Comportamentalia, vol. 21, 391-408.  ____. (2013b). Um estudo sobre definições de comportamento. Revista Brasileira de Análise do Comportamen-to, vol. 9, 47-65.

____. (2014a). Relações entre comportamentos, funções etiológicas e categorias psicológicas. In M. Carvalho & V. Figueiredo (Eds.), Filosofia contemporânea: Vol. 9 (pp.145-156). São Paulo: ANPOF.

____. (2014b). On defining behavior: Some notes. Behavior and Philosophy, vol. 41, 65-82.  QUEIROZ, G. C. de, & LAZZERI, F. (No prelo). O mo-delo de seleção pelas consequências como elo integrati-vo entre o biológico e o cultural.

MILLIKAN, R. G. (1984). Language, thought, and oth-er biological categories. Cambridge, MA: MIT Press.

____. (1989). In defense of proper functions. Philosophy of Science, vol. 56, 288-302.

____. (2004). Varieties of meaning. Cambridge, MA: MIT Press.  NAGEL, E. (1961). The structure of science. New York: Harcourt, Brace & World.  NANAY, B. (2010). A modal theory of function. Journal of Philosophy, vol. 107, 412-431.

NEANDER, K. (1991). The teleological notion of ‘func-tion’. Australasian Journal of Philosophy, vol. 69, 454-468.  NISSEN, L. A. (1997). Teleological language in the life sciences. Lanham, MD: Rowman & Littlefield.

NUNES-NETO, n. F., & EL-HANI, C. N. (2009). O que é função? Debates na filosofia da biologia contemporânea. Scientiae Studia, vol. 7, 353-401.  POPPER, K. R. (2010/1973). Epistemologia evolutiva. In D. Miller (Ed.), Popper: Textos escolhidos (pp.77-85). Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. Puc-Rio.

PRUDIC, K. L., STOEHR, A. M., WASIK, B. R., & MONTEIRO, A. (2015). Eyespots deflect predatorattack increasing fitness and promoting the evolution of pheno-typic plasticity. Proceedings of the Royal Society B, vol. 282, 20141531.  RACHLIN, H. (1976). Behavior and learning. San Fran-cisco, CA: Freeman.

RINGEN, J. D. (1976). Explanation, teleology, and oper-ant behaviorism: A study of the experimental analysis of purposive behavior. Philosophy of Science, vol. 43, 223-256.

ROSENBLUETH, A., WIENER, n., & BIGELOW, J. (1943). Behavior, purpose and teleology. Philosophy of Science, vol. 10, 18-24.  RYLE, G. (1949). The concept of mind. London: Hutchinson.

SCHLOSSER, G. (1998). Self-reproduction and function-ality: A systems-theoretical approach to teleological ex-planation. Synthese, vol. 116, 303-54.  SKINNER, B. F. (1953). Science and human behavior. New York: Macmillan.

____. (1976/1974). About behaviorism. New York: Vin-tage Books.  ____. (1981). Selection by consequences. Science, vol. 213, 501-504.

WALSH, D. M. (1996). Fitness and function. British Journal for the Philosophy of Science, vol. 47, 553-572.  WIMSATT, W. C. (1972). Teleology and the logical structure of function statements. Studies in History and Philosophy of Science, vol. 3, 1-80.

WRIGHT, L. (1973). Functions. Philosophical Review, vol. 82, 139-168.

Felipe Lazzeri – Professor Adjunto na Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: filipelazzeri@ufg.br

Acessar publicação original

Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.3, n.6, 2019.

Editorial

Entrevista

Artigos

Colaborações especiais

Documentos

Reportagens

Ensino de História: fundamentos e métodos – BITTENCOURT (REH)

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 5ed. São Paulo: Cortez, 2018. BUENO, Dioury de Andrade; URBAN, Ana Claudia. Resenha de: . Revista de Educação Histórica, Curitiba, n. 19, p.83-87, jul./dez., 2019.

Mestre e Doutora em História Social (1993) pela USP, Circe M. F. Bittencourt é professora de pós-graduação na Faculdade de Educação da mesma instituição onde pesquisa a respeito da preservação de documentos da história escolar e compõe a organização do Centro de Memória da Educação da FE/USP. No mais, suas pesquisas se relacionam com o ensino e aprendizagem de História e com a trajetória do livro didático no Brasil. O livro “Ensino de História: fundamentos e métodos” faz parte da Coleção Docência em Formação a qual busca contribuir para a formação inicial e contínua dos professores. Em sua 5ª edição de 2018, Bittencourt busca trazer reflexões em relação ao ensino de História, dividindo sua obra em três partes: a 1ª Parte consiste em um debate sobre a própria ideia de disciplina bem como sua trajetória ao longo do tempo dentro da educação;a 2ª Parte aborda de maneira teórica e metodológica as ciências que respaldam a História escolar, partindo de uma conceitualização sobre a historiografia e as diferentes vertentes relacionadas com o ensino e a aprendizagem de História;a 3ª Parte expõe os dilemas com os materiais didáticos como mediadores na relação entre ensino e aprendizagem, trazendo discussões sobre os materiais considerados tradicionais e os ditos inovadores, respaldados pela produção historiográfica e teorias de aprendizagem. Cada capítulo traz sugestões de atividades que, segundo a autora, tem o intuito de estimular os professores à maiores debates em sala de aula ou em sua formação continuada.

O questionamento “O que é disciplina escolar?” abre o primeiro capítulo da obra, apresentando uma discussão sobre diferentes pontos de vista em relação ao que consiste uma disciplina escolar, seja uma “Transposição didática”, assim denominada por Yves Chevallard como uma adaptação do conteúdo da academia para transmitir ao aluno ou como uma ciência própria ancorada na em sua própria epistemologia. Assume-se então que a disciplina escolar é uma produção coletiva das instituições de ensino e com isso, o método não deve ser a única preocupação, entrando em discussão também o que se ensina e o que se deixa de ensinar. Nessa esteira, o ensino de História entra em discussão com seus conteúdos e metodologias, sendo apontadas pesquisas que retratam, a partir da década de 1980, um caráter ideológico da disciplina em questão, como também contradições das histórias e problemas epistemológicos. Nesse ponto, Circe Bittencourt apresenta um breve percurso da disciplina nas escolas brasileiras, com suas características e influências a partir do contexto social, político e econômicos que passamos. Primeiramente, entre o século XIX e XXI, o ensino de História foi marcado pelo patriotismo e civismo exacerbado, a fim de querer garantir uma homogeneização da cultura com um predomínio de uma visão eurocêntrica. Após o final da década de 1930 com a criação do Ministério da Educação, houve maior centralização nas tomadas de decisões e os conteúdos escolares de maneira geral, começaram a passar por normas mais rígidas. Nesse sentido, houve uma consolidação do enaltecimento dos “heróis nacionais” e a memorização no processo de aprendizagem começou a tomar cena ao passo em que testes eram utilizados como medidores de sucesso escolar: “Aprender era memorizar.” (BITTENCOURT, 2018, p. 52)

A mecânica da memorização começa a ceder ao passo em que resistências a essa metodologia começam a surgir, dando abertura para os Estudos Sociais e os “métodos ativos” com o intuito de integrar o aluno na sociedade, e com isso, ter como ponto de partida o aluno. Entretanto, dava-se maior importância à técnica do que ao conteúdo, exigindo do professor uma neutralidade no ato de ensinar, tomando como referência disciplinas exatas, como a Matemática. Posteriormente, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1996 pelo MEC, o ensino foi destinado para a grande massa populacional e com isso exigiu-se adaptação dos conteúdos escolares. Com influência de outros países, o Brasil busca atender camadas sociais antes não favorecidas pela educação ao passo que a elaboração dos PCNs foi seguida pelo debate de uma base nacional, a atual BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Bittencourt ressalta a influência das avaliações em larga escala na elaboração desses currículos enfatizando as grandes influências políticas/econômicas que pressionaram essas mudanças.

Como então, selecionar o que estará presente nas discussões em sala de aula? Esse é o questionamento que abre a 2ª parte do livro, a partir do qual Bittencourt faz breves reflexões a respeito das tendências historiográficas presentes no cotidiano escolar. Primeiramente a ideia de História como narrativa, foi influenciada ferrenhamente pelo positivismo o que trouxe a ideia de um passado cristalizado. Após essa onda, os conteúdos começam a fundamentar-se em questões sociais e não apenas econômicas, o que, paralelamente, foi acompanhada de um movimento que defendia a História social, que abarcava discussões em relação à macro e micro cultura. De acordo com Bittencourt (2018) após essas tendências a História do tempo presente entra em voga. A autora aprofunda-se um pouco mais na discussão dos conteúdos escolares baseados no cotidiano e na história local.

Ancorando-se nos pressupostos psicológicos que norteiam a educação, Bittencourt resgata brevemente as concepções e os confrontos entre Piaget e Vygotsky ao passo em que evidencia suas influências para o ensino de História. Posteriormente, apresenta as concepções de tempo e espaço e sua construção no intelecto humano, noções consideradas indissociáveis nessa perspectiva. A autora retoma a defesa de Piaget no que tange a necessidade de uma maturação biológica para a compreensão do tempo, o que já havia causado uma “postergação” no ensino de História antigamente.

Como esses conceitos (tempo/espaço) são pilares no ensino de História, Bittencourt (2018, p. 174) afirma que:

Um dos objetivos básicos da História é compreender o tempo vivido de outras épocas e converter o passado em “nosso tempo”. A História propõe-se reconstruir os tempos distantes da experiência do presente e assim transformá-los em tempos familiares para nós.

Com isso é posto a importância do espaço em consonância com as ações humanas o que leva Bittencourt a discursar sobre a metodologia do estudo do meio como uma possibilidade a ser seguida em sala de aula a fim de se afastar do método tradicional extremo de ensino e trilhar práticas interdisciplinares para enriquecer as aulas de História. Marc Bloch, Fernand Braudel e Le Roy Ladurie são alguns pesquisadores citados que utilizam do meio ambiente para suas pesquisas e trabalhos pertinentes ao ensino de Históriae que contribuem para a interdisciplinaridade e compõe um grupo de pensadores que trabalham na vertente de práticas de ensino de História ambiental.

O patrimônio cultural entra em voga na medida em que o estudo do meio passa a ser compreendido como uma metodologia rica para ser trabalhada em sala de aula. A ideia de se utilizar dos bens culturais, seja material ou imaterial, passa por debates acerca de qual memória está sendo lembrada e qual tem sido esquecida. De acordo com Bittencourt há um compromisso educacional das escolas perante o patrimônio cultural num sentido de preocupação com os bens locais que são referência de identidades múltiplas para os alunos.

A 3ª e última parte da obra aborda as concepções e usos dos materiais didáticos, especialmente nas aulas de História. Os livros acabam sendo o objeto de discussão num primeiro momento onde é entendido como um material didático mais evidente nas escolas e que demanda dos professores um posicionamento político em suas escolhas. Se, é apoiando-se nos livros que professores e alunos muitas vezes percorrem um ano letivo, acaba sendo ele determinante para a formação do indivíduo ao final de seus estudos. Com isso, Bittencourt deixa claro o livro como um objeto cultural e político, o qual também sofre influências do mercado corporativo no que toca a produção e venda em massa desses materiais para as redes de ensino.

Uma proposta de análise dos livros didáticos é mencionada, o qual divide o método em três partes: uma análise da forma que o livro é apresentado; uma análise do conteúdo histórico escolar que evidencia as correntes historiográficas e demanda uma explicação sucinta dos fatos históricos; uma análise dos conteúdos pedagógicos onde, a partir das atividades propostas, evidencia-se as concepções de aprendizagem e os objetivos propostos para os alunos naquele livro. Como ponto de partido, o livro é posto como um veículo que carrega ideologias e difunde saberes de maneira branda. Como grande ponto de apoio de professores e alunos em sala de aula, o uso dos manuais deve ser cauteloso.

A última discussão do livro é referente ao uso de documentos, escritos e não escritos, como fontes históricas para os debates em sala de aula. Bittencourt submetidos pelos professores e posteriormente pelos estudantes, a fim de habilitar os alunos para verbalização e escrita de suas concepções dos materiais apresentados. No mais, a utilização de materiais não escritos também devem estimular senso crítico no aluno, seja a partir de uma visita em museu, a apresentação de fotografias e produções cinematográficas ou músicas devem estar articulados com o ensino de História na mesma medida em que o planejamento de um professor esteja aberto para as análises dos estudantes em relação a esses materiais.

Dioury de Andrade Bueno – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Administração pelo Centro Universitário OPET e licenciado em Pedagogia pela UFPR. Professor na Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal de Curitiba e Fazenda Rio Grande.  E-mail: diouryab@hotmail.com

Ana Claudia Urban – Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal do Paraná – Setor de Educação. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, do Mestrado Profissional em Ensino de História e Professora de Metodologia e Prática de Docência de História. E-mail: claudiaurban@uol.com.br

Acessar publicação original

[IF]

História, patrimônio cultural e práticas educativas / Fronteiras – Revista de História / 2019

Abordar o Patrimônio Histórico Cultural em suas múltiplas dimensões: educar pelo patrimônio, com o patrimônio, práticas educativas, uso público do patrimônio, concepções interdisciplinares são algumas das reflexões contidas nesse dossiê. O qual teve como intuito aglutinar estudos e pesquisas sobre as interfaces entre História, Patrimônio Cultural e as práticas educativas na História ensinada.

São dimensões analíticas e metodológicas que apresentam o complexo enredo de narrar, lembrar, esquecer, difundir, preservar, questionar historicamente os percursos do Patrimônio. Perpassando espaços educativos, caminhando pelas praças, trilhando ruas, sensibilizando pelas edificações, permitindo que as memórias e histórias possam se tornar fontes históricas para / no ensino da História. São reflexões críticas que tem diferentes basilares epistemológicos para dialogar sobre a natureza documental, imagética, estética, formativo, educativo do patrimônio histórico cultural. E que, possibilitam projetar meios / motivação / concepções que para a Educação para o Patrimônio. Leia Mais

Deslocamentos populacionais, migrações de crise e refugiados | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2019

O início do século XXI pode ser marcado de diversas formas. Podemos elencar: as guerras ao terror, e suas graves consequências; a popularização da internet, e todas suas decorrências; a consolidação da China como ameaça à hegemonia das grandes potências ocidentais sobre o mundo, e seus impasses. Qualquer uma delas, ou outras que não inserimos aqui, não pode ser enxergada apenas como uma virada de página de um século para outro. Da mesma forma ocorre com as migrações internacionais, com suas variadas formas, estratégias, repercussões e impactos. As atualizações que esses movimentos populacionais estão sujeitos são marcadas, também, pelas assimilações que obtiveram a partir daquelas novidades que mencionamos.

Sem dúvida, os movimentos migratórios internacionais se avolumaram, isso em função, também, do aumento de guerras e catástrofes ambientais, principalmente nos países mais pobres. Consideramos que isso tenha ocorrido como consequência de uma somatória de elementos que aqui é difícil de ser resumida. Além dos conflitos e das tragédias, ocorridos por motivações internas ou externas a cada país, as formas como os vizinhos reagiram ou não, os posicionamentos políticos das nações mais desenvolvidas, as rotas que foram abertas ou consolidadas, as estratégias de sobrevivência e de administração dos recursos para chegar a um destino são apenas alguns dos pontos a constar nas observações. Há outros, diretamente ligados aos países em que escolhem, ou não, para sua reconstrução. E, neste ponto, reside aquilo que Michel Foucher denominou por obsessão pelas fronteiras, que pode ser entendida como uma expressão de endurecimento de práticas de controle por parte dos estados nacionais envolvidos. Mas, também, como uma atualização da governamentalidade ensinada por Michel Foucault, que se expressa, por exemplo, na seleção de ‘bons imigrantes’, que ocorre há muitos anos. Leia Mais

A critical introduction to the epistemology of memory – SENOR (C-RF)

SENOR, Thomas. A critical introduction to the epistemology of memory. New York: Bloomsbury Academic, 2019. 192 p. Resenha de: RIBS, Glaupy Fontana; LIED, Úrsula Maria Coelho. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, v. 20, n. 2, p. 456-460, jul./dez. 2019.

Thomas Senor atualmente e professor na Universidade de Arkansas (EUA) e e especialista em Epistemologia e Filosofia da Religiao. Suas linhas de pesquisa em Epistemologia concernem a epistemologia da memoria e teoria da justificacao. Em marco de 2019, Senor publicou A critical introduction to the epistemology of memory, um livro cujo objetivo e analisar quando as crencas oriundas da memoria estao justificadas.

Senor inicia o livro apontando que as teorias da justificacao epistemica se preocupam apenas com o que e necessario para que um sujeito esteja justificado em crer, sem considerar as diferencas entre formar uma crenca e manter uma crenca. A titulo de exemplo ele menciona a teoria evidencialista, segundo a qual um sujeito esta justificado em crer apenas quando tem evidencias para isso. Ela e uma teoria bastante consistente para a justificacao da formacao de crencas; contudo, nao tem a mesma capacidade apelativa sobre a justificacao da manutencao de crencas. Isto indica que a justificacao para passar a crer nao e identica a justificacao para continuar a crer, e Senor destaca que seu livro e focado na epistemologia das crencas previamente formadas.

O autor reconhece que ha um importante debate em Filosofia da Memoria sobre o que e memoria e quando que, de fato, um sujeito lembra, mas ressalta que o objetivo do seu livro e abordar a epistemologia das crencas entendidas como mantidas e evocadas, sem discutir o que caracteriza a manutencao e a evocacao. Assim, faz uma breve distincao entre metafisica da memoria e epistemologia da memoria.

Ha dois tipos de crencas de memoria. A crenca relembrada e aquela crenca formada anteriormente e evocada no momento presente. O outro tipo e a crenca formada a partir de informacoes mantidas pela memoria. As crencas de memoria consideradas no livro sao as crencas relembradas, formadas previamente pelo sujeito.

Uma tese crucial do livro e que uma crenca pode ser justificada em termos de (1) garantia, (2) racionalidade ou (3) responsabilidade (blamelessness). Assim, ter justificacao significa cumprir qualquer um destes requisitos. (1) Para uma crenca ter garantia, entretanto, e necessario que ela satisfaca o criterio de Gettier. Isto e, nao basta que uma crenca seja verdadeira e justificada para que haja conhecimento, ela precisa ter uma boa base objetiva, uma base que geralmente conduz a verdade.

(2) Seguindo Locke, Senor entende que um sujeito tem racionalidade epistemica quando a sua crenca e proporcional as evidencias das quais ele dispoe. Mas e possivel ter crencas racionais que nao sejam garantidas, como e o caso do sujeito que cre na previsao do tempo feita a partir das folhas de cha porque cresceu em uma comunidade defensora deste metodo. Como o sujeito nao esta atento a correspondencia ou nao das previsoes anteriores, confia em sua comunidade e partilha com ela este metodo; as evidencias que ele tem sao favoraveis a formar a crenca de que a previsao funcione. Ha racionalidade epistemica, mas nao ha garantia porque a base da crenca e um metodo nao confiavel. E por fim, (3) como o sujeito nao controla as crencas que forma, deve ser responsavel e buscar evidencias para justifica-las. Crer sem poder ser culpabilizado e cumprir os deveres epistemicos na formacao da crenca. Em relacao a memoria, a ideia de responsabilidade traz a questao de se ha justificacao quando o sujeito nao lembra das evidencias da crenca ou se ele tem o dever de procurar estas evidencias.

A primeira teoria epistemica da memoria analisada por Senor e o conservacionismo. O principal argumento deste tipo de teoria e que o sujeito so pode alterar suas crencas se surgirem boas razoes para isso. Ou seja, as crencas devem ser mantidas e serao contestadas ou mudadas apenas se aparecerem razoes suficientes para tal. Sao entao apresentados dois modelos conservacionistas, da teoria de Harman e da teoria de McGrath.

A teoria proposta por Harman, apresentada no segundo capitulo, esta baseada na ideia de que a memoria humana e limitada, de modo que a justificacao prima facie, ou seja, a justificacao inicial, se da simplesmente porque o sujeito acreditou anteriormente em determinada crenca. Harman aposta no Principio da Solapacao Positiva (Principle of Positive Undermining), segundo o qual o sujeito deve parar de crer que P sempre que acreditar que as suas razoes para crer que P nao sejam boas. Portanto, o sujeito esta justificado a manter a crenca evocada, a menos que aparecam evidencias contrarias a ela. Em sua analise, Senor apresenta tres objecoes a esta teoria: ele argumenta que a memoria nao e limitada; que a memoria nao evita acumular informacoes desnecessarias; e que e preferivel para o sujeito que ele saiba o caminho justificacional de suas crencas.

Como dito anteriormente, a ideia principal do conservacionismo e que se o sujeito forma uma crenca, ele esta prima facie justificado em manter esta crenca.

Uma diferenca inicial entre os conservacionismos de Harman e de McGrath, exibido no terceiro capitulo, e que o primeiro entende justificacao como garantia, enquanto o segundo entende como racionalidade ou responsabilidade em crer. A teoria de McGrath surge como uma alternativa para escapar dos problemas postos ao evidencialismo e ao preservacionismo, teorias apresentadas em capitulos posteriores.

Senor analisa as respostas de McGrath a tres objecoes ao conservacionismo: o problema da parcialidade, o problema da conversao e o epistemic boost problem, e acrescenta, ainda, o problema da paridade.

Senor termina por avaliar que o conservacionismo nao e uma teoria plausivel nem da garantia, nem da racionalidade, nem da responsabilidade. Ela nunca teve pretensao de ser uma teoria da garantia. Quanto a responsabilidade, ela poderia ser uma boa teoria a esse respeito caso nao houvesse condicoes sincronicas problematicas. O conservadorismo seria uma teoria razoavel da racionalidade, mas Senor questiona por que o mero fato de que alguem tem uma crenca deveria, ele mesmo, ser justificacao para essa crenca.

O autor comeca entao a avaliar o evidencialismo, teoria na qual uma crenca e justificada somente se o sujeito esta de posse de boa evidencia, pois a forca da justificacao e proporcional a forca da evidencia. No caso das crencas da memoria, o evidencialismo mantem que uma crenca mnemica e justificada em um tempo t se e somente se ela se enquadra na evidencia que o sujeito possui em t. Alem disso, o evidencialismo e uma teoria sincronica, pois o sujeito somente possui justificacao da crenca da memoria se ele ainda possui as crencas ou lembra-se das experiencias que fornecem a justificacao para essa crenca da memoria. No entanto, no caso das crencas da memoria, o evidencialismo enfrenta um grave problema, o assim chamado Problema da Evidencia Esquecida. Este retrata o caso onde o sujeito formou uma crenca (e no momento de formacao da crenca ele possuia evidencia para essa crenca), mas no momento presente ele somente recorda-se da crenca e esqueceu a evidencia que a suportava. Outro problema do evidencialismo e que, sendo este uma teoria internalista, mesmo em um cenario cetico extremo (tal como o do Genio Maligno) as crencas que estao fundamentadas em boa evidencia ainda seriam justificadas, mesmo que fossem falsas.

O diagnostico do autor e que o evidencialismo e uma boa teoria da crenca racional, mas nao da responsabilidade de crer, pois uma pessoa pode dar o seu melhor e ainda assim nao acreditar de acordo com as evidencias que possui (por faltar-lhe capacidade intelectual para avaliar a evidencia). O evidencialismo nao e uma boa teoria da garantia da crenca mnemica porque a posicao evidencialista nao afirma que E ser boa razao para crer que P torna mais objetivamente provavel que P seja verdadeiro, ou seja, a teoria nao leva em direcao a verdade.

No quinto capitulo, Senor comeca a avaliar o fundacionismo, teoria que afirma que existem dois tipos de crenca: crencas basicas e crencas nao basicas. As primeiras sao justificadas por serem advindas de fontes basicas de conhecimento, tais como a percepcao, e as ultimas retiram sua justificacao de outras crencas. O fundacionismo sobre as crencas da memoria mantem que, assim como crencas da introspeccao ou da percepcao sao justificadas prima facie, as crencas da memoria tambem sao basicas e justificadas prima facie, ou seja, a memoria e uma fonte de justificacao. O fundacionismo apresentado por Senor e o de Pollock e Cruz, no qual uma pessoa esta justificada em crer em uma crenca da memoria em virtude do estado de recordacao que vem junto com essa crenca, sendo que esse estado de recordacao e que fornece justificacao prima facie para S crer que P.

Sao colocadas, entao, cinco objecoes contra o fundacionismo: a objecao de que algumas crencas mnemicas nao possuem estados fenomenais de recordacao para justifica-las, a objecao sobre a relacao de base, a objecao de circularidade, a objecao do problema das crencas armazenadas e a objecao de que a teoria e sincronica. Quanto a avaliacao da teoria, Senor diz que o evidencialismo nao e uma boa teoria da garantia porque ela somente requer um estado de recordacao para que a crenca esteja justificada, mas um mero estado de recordacao nao garante a verdade da recordacao nem da crenca dela derivada. O fundacionismo e, entretanto, uma boa teoria da racionalidade, pois requer o estado fenomenologico de recordacao para fornecer justificacao prima facie; como nao temos razoes que apontem que a memoria e amplamente nao confiavel, essa crenca nao esta minada. Sobre a responsabilidade do agente doxastico, tomando a teoria de uma perspectiva diacronica, o sujeito pode possuir culpa, pois a historia da crenca pode ter sido distorcida, mas o sujeito esqueceu da distorcao e ainda acredita, podendo ser culpabilizado. Senor conclui esse capitulo com o veredicto de que as teorias conservadoras, evidencialistas e fundacionistas sao todas teorias sincronicas que ignoram a relevancia epistemica da historia da crenca e a evidencia para a crenca atraves do tempo.

No sexto capitulo, Senor apresenta entao a teoria que ele defende, o preservacionismo, teoria na qual o status justificatorio de uma crenca mnemica e, pelo menos em parte, determinado pelo status da crenca quando ela inicialmente foi formada. Assim, no caso do Problema da Evidencia Esquecida, o sujeito ainda vai estar justificado em manter a crenca da memoria, e a explicacao dessa justificacao vem da justificacao original que a crenca tinha quando ela foi formada, pois se nenhum suporte vir a ser adicionado a crenca, e se nada que mine a crenca for adicionado, ela continua possuindo seu status original. O preservacionismo esta comprometido com a tese de que simplesmente crer ou lembrar nao fornece justificacao; a memoria nao gera justificacao, somente preserva, assim, a crenca nao pode ser, no momento da recordacao, mais justificada do que era originalmente.

Um processo e epistemicamente gerativo se e somente se pode conferir justificacao original (justificacao recem-adquirida derivada de fontes gerais) prima facie. O problema para o preservacionista e que, se na memoria houvesse somente crencas, ela nao seria epistemicamente gerativa, mas na verdade ela contem tambem memorias de experiencias perceptuais a partir das quais podemos formar crencas, e a justificacao para essas crencas e derivada da memoria. Alem disso, e mais gravemente, existem casos em que a memoria gera justificacao original para uma crenca que antes nao era justificada. Mas isso nao e um problema, sustenta o autor, porque o preservacionismo nao tem nada a dizer sobre o status epistemico de uma crenca que e gerada a partir da memoria ou de uma crenca que era previamente nao justificada e que se torna justificada em virtude de uma percepcao recordada.

A tese preservacionista apenas requer que uma crenca nao tenha um boost epistemico somente por ser mantida na memoria. Senor sustenta que se a memoria fosse epistemicamente gerativa no sentido de que produz justificacao prima facie simplesmente por sustentar uma crenca ao longo do tempo, entao nesse caso o preservacionismo seria falso.

Mas o preservacionismo e mais a assercao da inabilidade da memoria de fornecer justificacao do que uma teoria que exemplifique as condicoes nas quais o sujeito esta justificado. A teoria da justificacao que normalmente o acompanha e o confiabilismo. O confiabilismo e uma teoria externalista da justificacao da memoria, e Senor salienta que, segundo essa teoria, dizer que uma crenca e justificada implica que ela e provavelmente verdadeira.

O confiabilismo diz que a crenca mnemica de S que P e justificada prima facie se e somente se ela era justificada quando foi originalmente formada (ou em algum ponto anterior ao presente) e tem sido mantida por um (ou mais) processo(s) cognitivo confiavel(is). A memoria de crencas (nao geradas pela memoria) e um processo dependente de outras crencas, e nesse sentido, ela sera confiavel se o sujeito guarda crencas verdadeiras e resgata crencas verdadeiras da memoria. Ja nos casos em que a memoria gera crencas a partir da experiencia, as crencas produzidas serao justificadas somente se a memoria e confiavel da seguinte forma: quando o sujeito tenta recordar uma experiencia, ou seja, quando ele chama uma imagem a mente e, entao, forma uma crenca a partir dela (e essa imagem deve ser acurada, o que quer dizer que ela veio da memoria e nao da imaginacao).

Senor afirma que as virtudes do confiabilismo residem na capacidade da teoria de responder ao Problema da Evidencia Esquecida e de negar que uma crenca ganhe suporte justificativo simplesmente por estar na memoria. Ja os problemas da teoria residem no Problema da Generalidade, que diz que nao ha nenhum modo de individualizar processos cognitivos que nao seja arbitrario, e na New Demon World Objection (proposta originalmente por Lehrer e Cohen em 1983, mas cuja formulacao canonica se encontra em Cohen, 1984), que ataca a capacidade do confiabilismo de explicar a justificacao de crencas.

No entanto, o autor avalia que o confiabilismo nao e uma boa teoria da responsabilidade epistemica, pois o sujeito nao tem escolha sobre qual processo usa para formar suas crencas. Tambem nao e uma boa teoria da racionalidade, pois mesmo de posse de evidencias, o processo que forma a crenca pode nao ser confiavel. Mas o confiabilismo e uma boa teoria da garantia epistemica, pois um processo e confiavel se produz mais crencas verdadeiras, e uma crenca garantida e aquela que na maioria das circunstancias sera verdadeira.

Senor conclui o livro dizendo que nao ha uma boa teoria da crenca mnemica justificada, o que ha sao tres teorias que respondem a cada uma das instancias da justificacao, a saber, a garantia, a racionalidade e a responsabilidade. A conclusao do autor e que o preservacionismo e o confiabilismo sao, tomados em conjunto, a teoria mais satisfatoria da garantia epistemica das crencas. Ja a racionalidade epistemica e melhor explicada em termos evidencialistas. A responsabilidade, por sua vez, nao e bem explicada por nenhuma teoria, de onde ele cogita que ela pode ser uma teoria nao redutivel, e portanto, nao poderia ser explicada em termos de nenhuma outra teoria.

Referências

COHEN, Stewart. Justification and truth. Philosophical Studies, v. 46, n. 3, p. 279- 295, 1984.

LEHRER, Keith; COHEN, Stewart. Justification, truth, and coherence. Synthese, v. 55, n. 2, p. 191-207, 1983.

Glaupy Fontana Ribas – Universidade Federal de Santa Maria – UFSM – Brasil. E-mail: fontanagy@hotmail.com

Úrsula Maria Coelho Lied – Universidade Federal de Santa Maria – UFSM – Brasil. E-mail: ursulamclied@gmail.com

Acessar publicação original

130 Anos de República no Brasil: entre avanços e retrocessos / Locus – Revista de História / 2019

Estamos encerrando a segunda década do século XXI, um século que, em seu início, parecia marcar uma nova fase na História do Brasil. O crescimento econômico, a diminuição da miséria, o papel externo do país e tantas outras coisas, nos levou a um otimismo que agora percebemos equivocado. Parecia que finalmente o Brasil teria se encontrado consigo mesmo, deixado de ser um desterrado em sua própria terra, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda. Quase vinte anos depois, nossa realidade se mostra bem diferente do que projetávamos no início do século. Uma crise econômica que não é superada, uma alternativa autoritária e reacionária que chega ao poder pela via democrática, crise e instabilidade políticas constantes, retorno dos militares ao governo e à arena política, ameaças explícitas à democracia, graves e amplos retrocessos sociais, culturais e educacionais.

Nesse cenário, pode parecer difícil fazer um balanço historiográfico sem cair no mais profundo pessimismo. No entanto, ao ler os artigos deste dossiê, o sentimento é exatamente outro. Os artigos demonstram a qualidade da produção historiográfica brasileira atual. Estamos produzindo muito e bem! Temos uma produção ampla e de qualidade, que reflete sobre o passado e contribui de forma efetiva para o desenvolvimento científico, educacional e cultural do país. Talvez por isso, para alguns setores autoritários seja necessário calar nossa voz e impedir nosso trabalho.

Lembrando Marc Bloch, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”, diante dos movimentos de negação e deturpação do passado em voga nos dias de hoje, nada mais atual. Porém o historiador francês continua dizendo que “talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente”. Nossas referências, nossos problemas e nossos projetos estão aqui no nosso tempo, com todos os seus problemas e desafios. É a partir deles que nossos olhos se voltam para o passado, é partir deste presente que formulamos nossos questionamentos.

No decorrer dessa experiência republicana de 130 anos, a historiografia brasileira produziu importantes obras de análise e reflexão sobre esse sistema político. Especialmente a partir da segunda metade do século XX, algumas coleções começaram a ser elaboradas para dar conta de como tem sido traçada essa trajetória. Nos anos 1960, Leôncio Basbaum publicou a História Sincera da República (Alfa-Ômega, entre 1962 e 1968) em quatro volumes que percorreram um caminho desde antes do final do Império até o enrijecimento do regime militar [1]. Brasil em Perspectiva (Difusão Europeia) organizado por Carlos Guilherme Mota e publicado em 1968 traz sete de seus doze artigos sobre o período republicano até 1964 [2]. Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro produziram 21 volumes da coleção História da República Brasileira (Civilização Brasileira, 1975-1979) expandindo um pouco mais o recorte temporal [3]. Entre 1975 e 1984 Boris Fausto foi o responsável por organizar a parte republicana da História Geral da Civilização Brasileira (Bertrand Brasil, 1982), o Tomo III tem quatro volumes, dos quais dois abordam a Primeira República e dois o período entre 1930 e 1964 [4] . Essas quatro pioneiras coleções marcaram profundamente a produção historiográfica no Brasil. Cada uma a seu modo e com suas particularidades, foram inserções de fôlego de autores dedicados a vasculhar arquivos republicanos apresentando uma especialidade, eram contemporâneos de boa parte da República brasileira.

Mais recentemente, pelo menos outras duas coleções merecem destaque pela riqueza de conteúdo em elaborações abrangentes do período republicano com aspecto distinto daquelas pioneiras. Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves Delgado organizaram O Brasil Republicano (Civilização Brasileira, 2003), uma coleção composta de cinco volumes e com textos de importantes pesquisadores e pesquisadoras especialistas nos mais diversos aspectos da República [5]. A coletânea fixou-se como importante referência de estudos sobre o tema e, não por menos, chegou a sua décima edição em 2018, atualizando análises que se estendem até o golpe de 2016.

A outra coleção é especialmente nova, publicada em função da efeméride de 2019 por Lilia Schwarcz e Heloísa Starling. O Dicionário da República (Companhia das Letras, 2019) contém 51 textos de diversos pesquisadores que promovem um resgate crítico desde raízes na antiguidade, passando por diferentes matrizes do republicanismo até seus grandes princípios integradores, bem como refletindo sobre movimentos republicanos, Constituições e temas bastante atuais como gênero, globalização, religião e mundo digital [6]. Mesmo publicada há muito pouco tempo, é notório o potencial de repercussão da obra. E, pensando nisso, Heloísa Starling é uma das entrevistadas nesta edição da revista Locus.

Entre os periódicos destacamos dois dossiês publicados em anos de efemérides da República no Brasil: Quando dos 100 anos, em 1989, a revista Estudos Históricos publicou o dossiê “República”, reunindo artigos de pesquisadores renomados de universidades do Rio de Janeiro [7]. Em 2009, nos 120 anos, a Revista Brasileira de História dedicou um número sobre as “Repúblicas”, com a contribuição de pesquisadores de diversas universidades do país [8]. Ambos os números abriram espaço para a produção historiográfica sobre a instauração do regime republicano no Brasil e seus desdobramentos.

As clássicas coleções da segunda metade do século XX e as mais recentes coletâneas de textos do século XXI, bem como os dossiês e os inúmeros trabalhos de pesquisa produzidos em programas de pós-graduação espalhados pelo Brasil, demonstram a riqueza crítica de analistas da nossa história republicana. De uma forma geral, esses 130 anos foram segmentados em cinco diferentes fases: a Primeira República, a Era Vargas, a Terceira República, a Ditadura Civil-Militar e a Nova República.

Em 15 de novembro de 1889, Deodoro da Fonseca consumou o golpe que já vinha sendo tramado há tempos contra a monarquia brasileira. Programado para acontecer alguns dias mais tarde, os militares anteciparam a ação que acabaria com o poder de Dom Pedro II e da família real no governo do Brasil. Chegava ao fim o primeiro regime político do Brasil independente, após 67 anos de governo dos Bragança.

A República chegou em 1889 como sistema de governo no Brasil para ficar. Como o último grande país do continente americano a se tornar republicano, é bem verdade que a construção dessa experiência não se deu de forma pacífica ou consensual. Nesses 130 anos de República que se completam em 2019, o Brasil viveu entre experiências democráticas e autoritárias que segmentaram a nossa história republicana.

A outrora chamada “República Velha” ainda é a experiência republicana mais longeva do país (1889-1930). Nesses quase 41 anos de duração, o Brasil conviveu com uma frágil democracia marcada pela disputa entre as oligarquias regionais, pelas fraudes eleitorais e pelo arbítrio marcante do estado de sítio. Nesse contexto, as oligarquias rurais se valeram da República para assegurar seus interesses e a manutenção de um status quo dominante. Apesar de contar com uma Constituição democrática, a grande maioria da população estava excluída dos direitos políticos, bem como os trabalhadores muito afastados de direitos trabalhistas. Iniciada por um golpe, a “República Velha” acabou em decorrência de outro, em 1930, que promoveria a ascensão de Getúlio Vargas. Essa experiência republicana pioneira no Brasil já foi e continua sendo amplamente estudada. Muitos de seus aspectos foram revisados e atualizados, como a maneira de a tratar, por exemplo, preferencialmente referida como “Primeira República”. Fundamental para a história brasileira, esse período guarda muitas explicações para o funcionamento da República brasileira que ainda carecem de investigação. Muito embora seja o mais distante momento republicano do regime atual, é, contudo, o momento fundante que estabelece raízes que se espalhariam pelo restante dos anos.

Na década de 1930, por sua vez, a Primeira República liberal e oligárquica recebeu críticas do novo regime e alcunhas pejorativas. A Era Vargas (1930-1945) flertou abertamente com o autoritarismo em voga do entreguerras e, em que pese um pequeno período com pretensões democráticas (1934-1937), o que resultou dessa fase foi a primeira ditadura institucionalizada do Brasil republicano. Entre 1937 e 1945, o país esteve sob os mandos ditatoriais de Getúlio Vargas, no qual se verificou a consolidação de importantes direitos trabalhistas e o desenvolvimento industrial na economia, mas foi também um momento de severa repressão e violência política. Até a metade do século XX, a República no Brasil já havia passado por notórias mudanças, todavia um elemento demonstrou-se recorrente, o golpe. Vargas o promoveu por duas vezes, sendo, na segunda oportunidade, em 1937, para edificar o seu Estado Novo ditatorial.

A primeira experiência democrática efetivamente mais ampla do país ocorreria a partir de 1945. Mulheres já haviam assegurado seus direitos políticos, trabalhadores consolidado importantes conquistas, eleições e campanhas passaram a considerar o elemento povo como participante da arena política, a economia se dinamizou e diversificou, a industrialização e a urbanização abriram novas perspectivas, a cultura ganhou amplitude de consumo e movimentou um país que respirava novos ares de um mundo pós-Segunda Guerra Mundial. A República democrática que durou até 1964, contudo, foi contemporânea de uma disputa ideológica internacional entre capitalismo e socialismo na Guerra Fria e foi vítima dela. A ascensão de movimentos sociais e da contracultura, as revoltas e revoluções no mundo e a paranoia da constante disputa ideológica acabaram envolvendo o Brasil profundamente na Guerra Fria e colocando um fim nessa que, até então, era a fase democrática mais ampla da história brasileira. Um novo golpe, mais uma vez com o pressuposto de salvar o Brasil do comunismo, tal como fizera Vargas em 1937, retirou o Presidente João Goulart de seu posto e instaurou no país a mais longeva fase ditatorial da República.

Entre 1964 e 1985, o Brasil foi governado por militares que se revezaram no poder. O novo regime aumentou gradualmente a violência de sua repressão por meio dos temidos Atos Institucionais (AI’s) que retiravam direitos e institucionalizavam a violência do Estado por meio da censura, por exemplo. Ainda que tenha havido um período de grande crescimento econômico do país, o “Milagre Econômico” (1968-1973), não se pode esquecer ou negar que esses 21 anos foram demasiadamente pesados, com inúmeras prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. No século XXI, por sinal, houve um esforço significativo em se investigar os crimes do Estado brasileiro durante o regime militar, dentre outras coisas, com a criação da Comissão Nacional da Verdade. Para além disso, são diversas as pesquisas de profissionais que revelam, a cada dia, mais e mais dados assustadores sobre o período. No entanto, ainda assim, a República brasileira não soube lidar com seus erros históricos, tampouco os reparar de alguma forma. Diferentemente dos vizinhos sul-americanos, o Brasil não puniu agentes do Estado que praticaram crimes que não remetem apenas à República, mas crimes contra a humanidade. Em função disso, o que se nota ainda são apropriações do passado para satisfação de determinados grupos políticos, negando fatos e a história.

A República brasileira democrática, ampla, plural e cidadã ainda é muito recente, começou a ser edificada em 1985. E, por isso, apresenta muitas falhas em seu percurso. Desde a Constituição de 1988, o Brasil teve que lidar com uma descontrolada inflação que motivou trocas na moeda nacional até a estabilização do Real, foram cinco Presidentes eleitos pelo voto popular dos quais dois deles sofreram processos de impeachment e escândalos de corrupção, por exemplo. A Nova República, como costuma ser tratada na historiografia, de fato é nova em muitos sentidos e chega a 2019 após um acúmulo de alternâncias entre democracia e autoritarismo, deixando latente que a tradição republicana brasileira mantém raízes autoritárias fincadas ainda na Primeira República e das quais nunca conseguiu se libertar.

Nesse sentido, o dossiê sobre esses 130 anos de República no Brasil contempla todos esses marcos tradicionais do regime no país. Da Primeira República à atualidade, os textos apresentados exploram diversos aspectos que contribuem para a compreensão de como se moldou e como se molda nossa vida republicana.

Abrindo o dossiê, Cláudia Viscardi e Vitor Figueiredo revisitam as eleições na Primeira República para analisar a participação popular nos pleitos presidenciais. Apresentando uma nova abordagem na historiografia a respeito do assunto, os autores buscam elucidar o motivo pelo qual os cidadãos abdicavam de participar do processo eleitoral, já que o voto não era obrigatório. Logo, colocava-se um desafio a mais aos candidatos, que precisavam atrair seus eleitores ao pleito e, nem sempre, isso era feito sob coação.

Surama Pinto e Tatiana Castro abordam o Poder Judiciário na Primeira República analisando uma série de habeas corpus protocolados no Supremo Tribunal Federal na década de 1920 relativizando a supervalorização do órgão máximo do Judiciário no exercício da cidadania no país. O artigo questiona a produção historiográfica brasileira oriunda da década de 1980 que concebia um importante papel do STF na construção da democracia brasileira e na ampliação da cidadania.

Andrea Maia e Luciene Carris problematizam as leituras sobre a Revolução Russa de 1917 nas revistas brasileiras. A partir de representações em imagens e textos que circulavam na capital do Brasil, a ascensão ao poder dos bolcheviques foi dotada de diferentes interpretações. Diante disso, as autoras procuram responder questões que avaliam como esse notável evento do século XX repercutiu no país.

Karla Carloni avalia como ambientes de danças sociais no Rio de Janeiro da década de 1920 se transformaram em espaços de transgressão feminina, considerando que as mulheres se apropriaram do jazz para o desenvolvimento de um novo léxico corporal questionador de padrões.

E, encerrando o quadro interpretativo da Primeira República, Maria Izilda Matos e Oswaldo Truzzi rastreiam a presença dos imigrantes portugueses no interior de São Paulo num período republicano que abarca o final do século XIX e o início do século XX. Particularmente, dedicam-se às experiências do setor comercial, averiguando a atividade de caixeiros e padeiros no mundo do trabalho da época.

Em seguida, os anos 1930 são explorados, inicialmente, a partir de uma análise transnacional desenvolvida por Toni Ariño que promove uma aproximação entre os fascismos brasileiro e espanhol. Trata-se de uma análise comparativa pioneira entre integralistas brasileiros e falangistas espanhóis no período entreguerras. Muito especificamente, o texto de Ariño se destaca ainda pelo estudo de gênero que avalia a atuação feminina nos movimentos fascistas dos dois países.

Aprofundando nas questões fascistas brasileiras, Pedro Tanagino investiga o pensamento de Miguel Reale, um dos três principais líderes da Ação Integralista Brasileira (AIB). A partir de suas obras e de documentos do integralismo, Tanagino perscruta a crítica ao federalismo oligárquico da Primeira República e a construção de um projeto autoritário na produção intelectual do autor.

Fábio Koifman, especialista na temática de controle da entrada de imigrantes no Brasil durante a Era Vargas, investiga os eventos ocorridos no vapor Cuyabá revelando as condições de viagem dos estrangeiros da terceira classe que imigravam para o Brasil, em 1937.

No contexto do período democrático entre 1945 e 1964, Laurindo Pereira discute a atuação do parlamentar mineiro Oscar Dias Corrêa analisando sua trajetória política e seu arraigado udenismo. Combatente incansável de Juscelino Kubitscheck, Corrêa foi voz ativa da União Democrática Brasileira (UDN) no discurso contra a corrupção.

Ainda acerca da corrupção, Michelle Macedo problematiza o importante papel da imprensa brasileira nas denúncias de casos de corrupção nas instituições públicas. Diante disso, a autora avalia os interesses políticos, econômicos e ideológicos relacionados aos problemas enfrentados pelos indígenas no regime militar. Por sinal, tal regime político incentivou amplamente a prática de delações e de denúncia de indivíduos. Temática que é explorada por Janaína Cordeiro para compreender como cidadãos passaram a recorrer ao Estado e suas instituições para delatar outras pessoas e quais as suas motivações.

No pesado contexto da ditadura, Wallace Guedes se vale da comparação de obras cinematográficas para discutir comportamentos políticos em regimes autoritários. Assim, as sociedades brasileira e polonesa da década de 1980 são aproximadas e distanciadas em uma análise transnacional do cinema político. Ao passo que Charles Monteiro analisa o ensaio fotográfico de Pedro Vasquez, publicado em 1976, que criticava as estruturas de poder e de dominação do corpo na sociedade de consumo.

Analisando um período mais recente da República no Brasil, o artigo de Gilberto Vasconcellos aprofunda na teoria política de Darcy Ribeiro para compreender a estruturação social em paralelo com a dinâmica política do país. Enquanto Pedro Fagundes aborda as disputas de narrativa a respeito da Lei da Anistia (1979) na Nova República. Uma análise urgente e necessária para se compreender como a sociedade brasileira lida com as marcas e os traumas da Ditadura Militar. E, por fim, Francisco Carlos da Silva examina o conceito de novilíngua, de Victor Klemperer, nos grupos de Ultradireita no Brasil recente. Abordando movimentos sociais, partidos e atores políticos de extrema-direita, o autor analisa os discursos de ódio, a apropriação do passado e a recusa da democracia representativa e das instituições republicanas. Uma análise atual sobre os rumos mais recentes da Nova República.

Além dos artigos que integram o dossiê, a presente edição também conta com duas resenhas vinculadas aos 130 anos de República no Brasil. O texto de Heitor Loureiro analisa a obra de Rubens Ricupero que aborda uma longa construção da diplomacia no Brasil (1750-2016) e, por sua vez, Rafael Rezende comenta sobre o livro de Ariel Goldstein a respeito do fenômeno Bolsonaro e dos perigos para a democracia brasileira.

Encerrando a edição, apresentamos uma instigante entrevista com Heloísa Starling, coautora de Brasil: uma biografia (Companhia das Letras, 2016) e Dicionário da República (Companhia das Letras, 2019). Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Starling conta sobre sua formação profissional em tempos autoritários, reflete sobre as expectativas de historiadores no passado e no presente, o Brasil republicano e o processo produtivo de grandes obras historiográficas.

Por fim, a edição se encerra com uma entrevista especial com todos os coordenadores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que, em 2019, completa 15 anos de existência.

Em seu conjunto, os textos reunidos nesta coletânea nos ajudam a questionar a democracia e a participação popular; o Poder Judiciário; as ideologias políticas à esquerda (o comunismo) e à direita (o fascismo e o udenismo); a relação entre corrupção, imprensa e ditadura; o cotidiano, o cinema e os intelectuais na ditadura; a Lei da Anistia e, por fim, a linguagem utilizada pela ultradireita no Brasil atual. Entre autoritarismos e democracia, devemos nos perguntar que sociedade temos após 130 anos de regime republicano no Brasil? Qual os caminhos percorremos para chegar até aqui? Essas e outras questões devem e precisam ser colocadas aos historiadores de hoje.

Notas

1. BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República. 4 volumes. São Paulo: Alfa-Ômega, 1968.

2. MOTA, Carlos G. Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Difusão Europeia, 1968.

3. SILVA, Hélio & CARNEIRO, Maria Cecília Ribas. História da República Brasileira. 21 volumes. São Paulo: Civilização Brasileira, 1975-1979.

4. FAUSTO, Bóris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, 4 volumes. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1982.

5. FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucília de A. N. O Brasil Republicano. 5 volumes. São Paulo: Civilização Brasileira, 2003.

6. SCHWARCZ, Lilia M. & STARLING, Heloísa M. Dicionário da República: 51 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

7. ESTUDOS HISTÓRICOS. Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, junho-dezembro de 1989.

8. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. São Paulo, v. 29, n. 58, dezembro de 2009.

Antonio Gasparetto Júnior – Professor substituto no Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG – campus Juiz de Fora) e Professor Formador na Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós- doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), com estágio de doutoramento na Université Paris IV – Sorbonne. Autor de Atmósfera de Plomo (Tirant lo Blanch, 2019), História Constitucional Brasileira (Multifoco, 2017) e Direitos Sociais em Perspectiva (Fino Traço, 2014). Desenvolve pesquisas na área de História do Brasil Republicano, com ênfase nos seguintes temas: História do Direito, Democracia e Cultura Política, Autoritarismo, Direitos e Administração Pública. Conquistou o segundo lugar no Premio de Investigación Doctoral en Historia del Derecho en América Latina (Valência / ESP, 2019). E-mail: antonio.gasparetto@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-7844-0055

Wagner Teixeira – Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Possui graduação e mestrado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp / Franca) e doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem artigos e capítulos de livros publicados sobre educação no período republicano. Desenvolve pesquisas na área de História do Brasil Republicano, com ênfase nos seguintes temas: Educação e Política, Esquerdas, Movimentos Sociais, Democracia e Cultura Política. Desenvolve projetos de extensão universitária nas áreas de Cinema e Ensino de História. Foi presidente da ANPUH / MG na gestão 2014-2016. E-mail: wsthistoria@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-5087-672X


GASPARETTO JÚNIOR, Antonio; TEIXEIRA, Wagner. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.25, n.2, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Pólis, urbs e cidades no Mediterrâneo Antigo / Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade / 2019

[Pólis, urbs e cidades no Mediterrâneo Antigo]. Nearco – Revista Eletrônica de Antiguidade, Rio de Janeiro, v.11, n.2, 2019. Acessar dossiê [DR]

Mulheres, Gênero, Sertanidades  | SÆCULUM – Revista de História | 2019

Pretendemos, com este breve balanço apresentado na forma de ensaio, dar conta de apresentar um campo que começa a se consolidar, agregando pesquisas e trabalhos acadêmicos em torno da temática gênero e sertões. Mapeado inicialmente por esforços isolados e pontuais, o campo passa pela formação de uma rede que começa a atuar em conjunto, ganhando aos poucos espaço e reconhecimento, abrindo territórios intelectuais próprios. Entre competências científicas e afetos, as trocas e os compartilhamentos estão na base dessa proposta de pensar sertanidades com perspectivas outras, que buscam ir além da leitura e interpretação dos clássicos e da visibilidade dos “cabra-machos” e coronéis. Os sertões que aparecem são narrados na ótica das mulheres, das práticas sociais invisíveis, dos sujeitos antes considerados impossíveis, deslocados, seja nos termos de existências e vivências socialmente localizadas, mas, mais ainda, na visibilidade de suas histórias, trajetórias e memórias.

Se buscarmos nos embrenhar nos sertões da teoria, iremos perceber a necessidade da aproximação com outras noções que demarquem uma ausência ou um afastamento de uma historiografia preponderante, de mainstream, protagonizada por universidades localizadas em eixos historicamente privilegiados, como as regiões sudeste e sul do Brasil. Leia Mais

A casa e o homem | José Lins do Rego

Expoente da literatura regionalista, o escritor paraibano José Lins do Rego (1901-57) é muito lembrado por seus romances, sobretudo por aqueles que integram o chamado Ciclo da Cana-de-Açúcar, no qual há uma obra prima inquestionável que é Fogo Morto (1943). Porém parte importante de sua obra – e parte muito menos conhecida – é aquela que reúne textos escritos para a imprensa, discursos, ensaios, e que não foram publicados pela José Olympio – editora oficial do autor – e nem incluídos nas Obras Completas. É o caso de A casa e o homem, obra publicada pela editora da Organização Simões, do Rio, em 1954.

O primeiro texto da coletânea é o pequeno ensaio que lhe dá o nome e que saíra antes, em agosto de 1952, com o nome “L’homme et le paysage”, na prestigiosa revista L’Architecture d’aujourd’hui. Foi o texto publicado nesta revista – traduzido ao português por Ana Teresa Jardim Reynaud – que apareceu, em 1987 (ano do centenário de nascimento de Le Corbusier), na obra coletiva organizada por Alberto Xavier chamada Arquitetura moderna brasileira: depoimento de uma geração, que é um balanço do pensamento crítico a respeito de parte da arquitetura brasileira. Haverá algumas diferenças significativas entre a tradução e o original do autor, que parece desnecessário destacar. Leia Mais

Biselli Katchborian Arquitetos | Francesco Perrotta-Bosch

“O arquiteto que se proponha acertar o passo com a tecnologia sabe agora que terá a seu lado uma companheira rápida e que, a fim de manter o ritmo, pode ser que ele tenha de seguir os futuristas e deixar de lado toda sua carga cultural, inclusive a indumentária profissional pela qual ele é reconhecido como arquiteto”.
Reyner Banham

Eles encontram coerência na correlação entre a nave espacial Mars Pathfinder e a cúpula que Brunelleschi projetou para a Catedral de Santa Maria del Fiore. O avião britânico Supermarine Spitfire é associado às caravelas Santa Maria, Pinta e Nina. De algum modo, a dupla conserva o espanto do ser do século 19 que testemunhou a invenção da lâmpada elétrica e do homem do século 20 que viu a força das reações nucleares. A admiração pelo funcionamento das máquinas revela-se quando uma parede é metaforicamente descrita como uma fuselagem, e as engrenagens de um motor subsidiam o vocabulário da operação de um aeroporto. A chave para a compreensão da obra arquitetônica de Mario Biselli e Artur Katchborian está no que os fascina. Leia Mais

Salvador e os descaminhos do plano diretor de desenvolvimento urbano. Construindo novas possibilidades | Hortênsia Gomes, Ordep Serra e Débora Nunes

Aprovado em 2016, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU de Salvador (1) é, conforme estabelece a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade (2), o dispositivo legal e de planejamento urbano que balizará o ordenamento e a produção do espaço urbano soteropolitano pelos próximos anos. Este plano é parte do Plano Salvador 500, plano estratégico que buscaria “materializar uma visão transformadora do futuro da cidade até o horizonte de 2049, quando a cidade completará 500 anos de sua fundação” (3). Fez parte desse processo também a revisão da Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo do Município de Salvador – Louos (4), ou seja, esse plano estratégico englobou a revisão de dois fundamentais instrumentos de política urbana para o desenvolvimento urbano da cidade.

Dada a importância do Pddu e das questões que o atravessam, é fundamental que nos debrucemos sobre ele para entendermos o que está em jogo, não apenas em sua redação final, mas também com relação às disputas travadas no processo de sua elaboração, às conquistas, aos impasses e aos potenciais prejuízos à coletividade. A isto se propõe o livro Salvador e os descaminhos do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano: construindo novas possibilidades, organizado por Hortênsia Gomes Pinho, Ordep Serra e Débora Nunes e publicado pela Edufba. Os organizadores são importantes figuras no debate acerca da questão urbana na cidade. Hortênsia Pinho é Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público da Bahia, Ordep Serra é cientista social e professor da pós-graduação em Antropologia da UFBA e Débora Nunes é arquiteta e urbanista, professora do curso de Urbanismo da Uneb. Leia Mais

Ideias para adiar o fim do mundo | Ailton Krenak

Deus criou o homem à sua imagem,
à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.
Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra”.
Gênesis, 1:27-28

No dia 14 de julho de 2019, quase final da manhã, um pequeno grupo se prepara para se despedir da pousada tornada Casa do Sesc em Paraty durante a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip (1). As pessoas se encontram no estacionamento, com os porta-malas dos três veículos abertos sendo abarrotados de malas, livros e quitutes da cidade. Em um dos automóveis, Laura Vinci e José Miguel Wisnik; no outro, Abilio Guerra, Silvana Romano, Marcelo Ferraz e Isa Grinspun Ferraz. Na van, o líder indígena Ailton Krenak, acompanhado de esposa e casal de filhos, mais os anfitriões, um casal com aparência estrangeira, com respectivo filho. A conversa começa como despedida formal de convivas de abrigo e café da manhã, mas se desdobra na última e inesperada conferência do índio na Flip, uma apresentação para poucos, os afortunados presentes.

Ailton Krenak carrega na alcunha o nome de seu povo, que habita a região do Vale do Rio Doce, território que foi encolhendo ao longo do tempo na velocidade inversa e proporcional a do processo de ampliação da atividade mineradora. “Encolhimento” é um eufemismo para substantivos mais adequados à situação: “roubo”, “expropriação” ou “sequestro”, considerando que para os povos nativos da terra brasilis os elementos da natureza são gentes de seu convívio. De forma mais direta, “latrocínio”, crime hediondo quando se mata para roubar. Como se trata de um coletivo, estamos diante do “genocídio” de povos nativos para se apropriar de suas terras. Leia Mais

Clio – Revista de Pesquisa Histórica. Recife, v. 37, n. 2, jul./dez. 2019

Dossiê: Escravidão e comércio de escravos através da história.

Sobre a Revista

Apresentação

Dossiê

Artigos Livres

Resenhas

Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP – GOULART (FH)

GOULART, Rafaela Sales. Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP. São Paulo: Editora Alameda, 2018. 268p. Resenha de: FABRI, Aline. Folia de Reis em Florínea: manifestação popular, memória e patrimônio. Faces da História, Assis, v.6, n.1, p.483-489, jan./jun., 2019.

A partir da década de 1970, devido à efervescência da Nova História Cultural e da Micro-História, surgiram críticas à história das grandes narrações e do tratamento global à cultura. Os sujeitos presentes em todos os espaços, inclusive os marginalizados, passam a ser investigados e vistos por estas vertentes de pesquisa como contribuintes importantes à compreensão acerca da cultura e de diversos aspectos que estão envoltos a ela.

Dentro deste novo modo operante de se investigar a cultura e a história vem o livro Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP, de autoria de Rafaela Sales Goulart, historiadora formada pela UENP (Universidade do Norte do Paraná), com especialização em História e Humanidades pela UEM (Universidade Estadual de Maringá), e mestrado em História pela UNESP (Universidade Estadual Paulista) câmpus de Assis.

O livro em questão é resultado da dissertação de mestrado da autora e foi publicado em 2018 pela editora Alameda/São Paulo. Possui 268 páginas, contendo introdução, três capítulos e conclusão. O prefácio foi feito pela orientadora de Goulart, a historiadora Fabiana Lopes da Cunha, que sucintamente escreve sobre o tema.

Sua estrutura está pautada em referencial teórico e historiográfico, com citações de pensadores relacionados ao assunto investigado. Alguns deles serão expostos mais adiante. Também usa fontes orais, colhidas de forma técnica, fotografias, além de trechos de músicas e declamações religiosas. Foram obtidos 21 relatos orais do grupo de foliões e 4 entrevistas com demais membros da cidade, como o pároco, por exemplo. Portanto, os documentos foram diversos: envolveram registros produzidos a partir dos foliões, documentos públicos da prefeitura e outros. Goulart fez uso de ideias de alguns autores que tratam de métodos de pesquisa em relação à história oral e à memória, como, por exemplo: Michael Pollak, Jacques Le Goff, Eduardo Romeiro de Oliveira e Verena Alberti.

No que diz respeito às narrativas orais e sua relação com a memória, Goulart apoiou-se em importantes autores. No entanto, ela poderia ter recorrido às indicações de Portelli (1996) quanto a esses métodos no trato e no cuidado para com os documentos. Isso teria reforçado ainda mais sua desenvoltura frente às fontes analisadas no presente trabalho. O autor nos ajuda a pensar que, ao fazer uso da história oral e das memórias, é preciso saber que elas “não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias” (PORTELLI, 1996, p. 71). O cuidado para com as fontes orais e com as memórias é sempre imprescindível, e o aporte em Portelli (1996) seria uma sugestão para o incremento na construção de pesquisas nesse campo de estudos.

O assunto central da obra gira em torno da Festa de Reis, na cidade de Florínea/SP, que acontece há sessenta anos, e que teve reconfigurações de destaque, em 1993, e nos vinte anos seguintes, até 2013. O recorte temporal citado se destaca pela transferência da festa da zona rural para a área urbana. E, também, pela aquisição, com apoio da prefeitura, de um local fixo para a realização da festa bem como da criação da Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea. Nos capítulos iniciais, a autora deixou o leitor a par, de forma descritiva e por meio de memórias, das principais características que constituem a Folia de Reis na cidade de Florínea. Em seguida, nos capítulos finais, ela trouxe à tona reflexões gerais acerca da consciência social construída sobre a Folia de Reis, da identidade formada pelos membros desse ritual e da Folia de Reis de Florínea vista como patrimônio imaterial.

No Capítulo 1, “A cidade da Folia de Reis: um giro pelas memórias e histórias de Florínea (SP)”, o foco é a história da cidade de Florínea construída por meio de relatos orais de moradores foliões da Companhia de Reis e por documentos da Prefeitura. Nesse processo, tem-se a identificação de proximidade da história de fundação da cidade com a história da constituição das duas Companhias de Reis ali formadas ao longo do tempo. Enquanto no Capítulo 2, A Folia de Reis de Florínea (SP) ritual, símbolos e significados, a autora retrata as a organização e as características específicas do festejo, trazendo detalhes sobre as diferentes funções dos membros das Companhias, explicações sobre os símbolos do festejo, da movimentação das Bandeiras e conteúdo das canções e versos entoados.

Valendo-se dos estudos de Jacques Le Goff e de Verena Alberti no que diz respeito a questões metodológicas, Goulart traz para a análise o papel do historiador frente aos documentos encontrados. Ela expõe, pautada nesses autores, que diante de documentos escritos, fotografias ou relatos orais, é preciso uma conduta de desmonte do que se tem em mãos para se conseguir analisar as suas condições de produção. Com essa postura, Goulart analisou as fontes ao longo de sua pesquisa de forma consciente e crítica, demonstrando sempre a preocupação com o explícito, mas além disso, com o implícito, no que tange à imagem que a comunidade de Florínea e os foliões têm de si mesmos ao longo da trajetória histórica das Companhias de Reis, suas vivências e realizações.

As reflexões sobre o assunto prosseguiram no Capítulo 3, Sentidos da Folia de Reis de Florínea (SP): memória, identidade e patrimônio (1993-2013). Neste capítulo, há uma análise sobre a possível formação de uma consciência social acerca da ideia de patrimônio em torno das mudanças ocorridas na festa. E, ainda, os sentidos dos rituais, aprendizagens sociais e estratégias de sustentação da memória coletiva tomadas pelos sujeitos envolvidos na condução do festejo.

A autora apoia-se nas ideias de Paulo Freire para discorrer uma análise sobre consciência social, crítica e histórica no tocante ao festejo estudado.

Goulart, dando continuidade às suas reflexões, analisa a transferência da festa para o Parque de Tradições, na cidade. Também discute os sentidos da criação da Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea por foliões, em 2013, indicando que se trata de ações da comunidade florinense para com a continuidade da Folia de Reis. A partir destes dois atos, Goulart constrói sua análise acerca da possibilidade de existência de uma consciência coletiva dentre esses sujeitos, pois essas mudanças representam ações que aparentemente parecem ir nessa direção. A autora traz dados acerca dessa possível construção de consciência sobre o papel da Folia dentre os participantes do festejo. Verificamos isso em sua fala, por exemplo, sobre a Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea quando ela afirma que tal entidade “[…] é recente e ainda depende de avanços no processo de consciência social dentro e fora do grupo, o que incide nas limitações das políticas culturais da cidade de Florínea.” (GOULART, 2018, p. 241).

Ao trabalhar com a questão da identidade do grupo pesquisado, Goulart se apoia nos estudos de Eric Hobsbawn e de Joseane P. M. Brandão. Ela discorre sobre a construção da identidade do grupo e usa de ideias desse primeiro autor para se referir à ideia de coesão social. Para isso reflete sobre o exemplo de figuras como o festeiro e o mestre que representam peso histórico de tradição forte: as bandeiras chegam a ser reconhecidas pelo nome de seus festeiros ou de seus mestres, e não pelo nome do fundador. No entanto ainda há uma reafirmação do nome daquele que seria o primeiro festeiro e fundador da festa (Sebastião Alves de Oliveira), o que reforça o peso de tradição da festa. Tais pontos de tradição, segunda ela, podem contribuir para a coesão social do grupo e de sua identidade.

Fazendo uso da citação de Joseane P. M. Brandão Goulart faz mais apontamentos sobre a formação da identidade do grupo: “[…] as identidades são sociais e os indivíduos se projetam nelas, ao mesmo tempo em que internalizam seus significados e valores, contribuindo assim para alinhar sentimentos subjetivos com as posições dos indivíduos na estrutura social” (BRANDÃO apud GOULART, 2018, p. 221). A Folia de Reis seria parte da identidade social de Florínea, tendo em vista que exerce representatividade dos sujeitos da cidade, que se veem como parte constituinte do festejo. Para o grupo, os rituais dessa festa popular possuem símbolos que lhes são significativos e dotados de valor e sentidos.

Quanto à ideia de patrimônio, Goulart a desenvolve tendo em vista sua imbricação com a formação da consciência e da identidade do grupo. Ela afirma que a Folia de Reis de Florínea é entendida como um patrimônio da cidade, porque representa uma identidade coletiva e suscita tentativas de conscientização do grupo sobre a […] a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhe oferece. (FREIRE apud GOULART, 2018, p. 237).

continuidade do festejo. Cita, inclusive, a decretação da lei municipal de 2010 que coloca o dia 6 de janeiro (Dia de Santos Reis) como feriado municipal. O que seria mais uma tentativa de conscientização sobre o caráter de patrimônio da Folia de Reis de Florínea.

A autora discorre também sobre educação patrimonial e aprendizagens sociais. Para isso, recorre as ideias de Carlos R. Brandão e Sônia R. Florêncio. Ela cita a formulação da Coordenação de Educação Patrimonial (CEDUC) sobre o termo “Educação Patrimonial”, fazendo uso das palavras de Sônia R. Florêncio:  […] todos os processos educativos formais e não formais que tem como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera, ainda, que os processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais, onde convivem diversas noções de Patrimônio Cultural. (FLORÊNCIO; et al, 2014, p. 19 apud GOULART, 2018, p. 237-238).

O ato de ensinar o outro sujeito a fazer declamações, danças ou demais aspectos da Folia de Reis faz parte de um processo de aprendizagem em Florínea, demonstra Goulart. A rigor, ela discorre sobre o assunto pautada em Carlos R. Brandão relatando que as comunidades detentoras dos patrimônios fazem fluir o saber, o ensinar e o aprender. E com o tempo transformam-se em representações sociais.

Conhecer o trabalho de Goulart com as fontes orais nos remete à categoria de “memória coletiva” desenvolvida por Halbwachs (1990). Embora ela não o tenha usado em sua pesquisa, esse sociólogo, que tem raízes no pensamento de Durkheim, nos traz conceitos, procedimentos e entendimento quanto ao trabalho com memórias. Ele nos alerta que o convívio social é determinante sobre a formação da memória. A lembrança de um indivíduo tem relação com lembranças coletivas dos grupos em que ele esteve ou está inserido. As memórias dos sujeitos da Folia de Reis de Florínea, transcritas por Goulart no livro, podem assim ser classificadas como coletivas. Elas têm pontos em comum, se entrecruzam, pertencem a grupos sociais presentes num mesmo espaço, que no caso é a cidade de Florínea e a área rural da região. Entretanto, a memória individual não pode ser ignorada. Ela é uma das lembranças que compõem a memória coletiva. O indivíduo exerce papéis tanto na memória individual, como na memória coletiva.

[…] a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. (HALBWACHS, 1990, p. 51).

Ainda nessa perspectiva de análise sobre o caráter da memória, sua validade e uso, Goulart se baseia nas ideias de Bosi (1994) e afirma que “[…] memória é trabalho (BOSI, 1994) e de que lembranças são constructos sociais” (GOULART, 2018, p. 181). Ela nos leva a perceber que o mundo do trabalho está envolto à memória dos indivíduos e faz parte da construção de lembranças a serem contadas. Podemos recorrer à obra de Bosi (1994) para trazer mais alguns pontos sobre essa reflexão realizada por Goulart.

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 1994, p. 55).

Dessa forma, o historiador, ao trabalhar com fontes orais e memórias, precisa investigar as condições contextuais do grupo social onde os sujeitos depoentes estão inseridos e conjecturas atuais de interesse sobre o passado. Em Florínea, a maior parte dos depoimentos orais colhidos por Goulart são de indivíduos que hoje vivem no meio urbano. Ao se direcionarem as memórias sobre o passado, as atividades da Bandeira de Reis exercem um certo saudosismo por outra época: a vida no campo. Esse ponto merece ser tratado com cuidado, à luz de reflexões de estudiosos sobre os métodos de estudos sobre a memória.

Em relação aos sentidos da Folia para os envolvidos, Goulart criou reflexões que alcançam a ideia de identidade, consciência social e patrimônio. O grupo se vê nas práticas e símbolos do ritual e sente necessidade de dar continuidade ao festejo, o que contribui para lhe qualificar como patrimônio cultural imaterial.

Na conclusão do livro, a autora delineia um balanço final da pesquisa, com apontamentos voltados para a importância das construções sociais e da formação de consciência sobre um patrimônio cultural que, no caso das Companhias de Reis da cidade de Florínea, estão em formação.

Portanto, nesse estudo sobre a Folia de Reis em Florínea-SP emergem reflexões sobre identidade e memória, além de ser um trabalho que nos aproxima das análises referentes a fontes orais. O livro pode ser recomendado para estudantes que se interessem por assuntos envolvendo a problemática da memória e das identidades, que se inscrevem no campo da cultura popular e que se expressam nos festejos que envolvem religiosidade e fé que podem ser recuperados nos discursos memorialistas e fontes correlatas.

Referências

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

GOULART, Rafaela Sales. Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP. São Paulo: Alameda, 2018.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os fatos. Tempo, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, vol. l, n. 2, p. 59-72, 1996.

Aline Fabri – Licenciada em História, Unesp – Assis, São Paulo (SP). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis, SP. Professora do Ensino Médio – Etec – Centro Paula Souza. E-mail: alinefabri1@yahoo.com.br.

Acessar publicação original

[IF]

História e Pós-Modernidade – BARROS (FH)

BARROS, José D’ Assunção. História e Pós-Modernidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Ana Carolina. História e pós-modernidade: uma polêmica na historiografia. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.547-552, jul./dez., 2919.

Perante as polêmicas na historiografia sobre uma história pós-moderna, as quais trazem à tona os debates sobre a aproximação da história com a ficção e com seu significado polissêmico, o embasamento argumentativo deve encaminhar aspectos teóricos e não de senso comum. Sendo assim, é necessário pontuar, de forma teórica e crítica, o conceito de pós-modernidade e o que isso representa na historiografia.

O livro História e Pós-Modernidade, escrito pelo autor José D’ Assunção Barros, possui o objetivo de pontuar questões que permeiam a discussão da pós-modernidade na história, compondo uma estruturação explicativa e básica sobre o tema. O autor procura expor referências e indicações de leituras, mas os seus capítulos são curtos, o que torna o livro uma introdução com possíveis caminhos de leituras, isso se deve à intencionalidade de Barros em escrever algo mais próximo de um manual, em pequenos capítulos, para aqueles que não têm conhecimento sobre o tema.

O livro contém treze capítulos que estão elencados na seguinte ordem: “Pós-Modernidade: referências iniciais”, “Pós-Modernismo: o conceito e algumas análises clássicas”, “A análise de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo”, “Historiografia e Pós-Modernismo: a polêmica de Ankersmit”, “A crise da história total e a fragmentação da história”, “Narrativa e cognição histórica: interações e conflitos”, “Hayden White: a História como gênero literário”, “Resistências à redução da história ao discurso”, “Paul Ricoeur: tempo e narrativa”, “A Pós- Modernidade e os novos modos de escrita historiográfica”, “Traços do Pós-Modernismo: alguma síntese”, “Quem são os pós- modernos”, “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”. Os capítulos são escritos de forma acessível, para aqueles que queiram tirar dúvidas ou ter uma visão geral do tema.

A proposta de Barros foi de elaborar uma escrita que dialogasse com o contexto histórico e a promoção de discussões historiográficas, trazendo uma análise da pós-modernidade, sob a ótica de vários autores como Jameson e Ankersmit.

Barros começa seu livro com a discussão acerca do conceito de pós-modernidade, por tratar-se de uma definição conceitual que impõe consigo ambiguidades. Às vezes, pós-modernidade e pós-modernismo são usados como sinônimos, causando confusão. É no capítulo “Pós-Modernismo: o conceito e algumas análises clássicas” que as diferenças conceituais são apresentadas. Segundo Barros, a pós-modernidade significa um período específico da História Contemporânea, enquanto o pós-modernismo representa um campo da esfera cultural (BARROS, 2018, p. 11). Seguindo o conceito, a linha de pensamento da pós-modernidade é questionar a concepção de verdade clássica, a ideia de progresso ou de uma possível emancipação universal, como se a história tivesse um objetivo para ser atingido, o conceito de razão, a questão da identidade e objetividade, além das críticas contra as grandes narrativas.

A pós-modernidade surge da mudança histórica no Ocidente, quando o capitalismo se implanta na sociedade, na qual encontramos um mundo do consumismo e da indústria cultural. Por meio de uma análise marxista sobre a cultura e a história no pós-modernismo, Barros trabalha em seu capítulo “A análise de Fredric Jameson sobre o pós-modernismo”, com a posição de Jameson sobre a pós-modernidade, apontando para o poder imensurável que a mídia passa a conter. Tudo é comercializado, tanto produtos materiais quanto imateriais e com a historiografia não poderia ser diferente, pois ela transformou-se em um produto. Por conta do consumismo houve o crescimento de livros no mercado. Os historiadores passaram a escrever obras literárias ao estilo do romance histórico, para que seus livros chegassem à maior parte da população, além dos historiadores, visando à ampliação do lucro. O problema é que não fica nítido se nesses livros a obra é uma ficção para entretenimento literário ou se contém alguma metodologia científica (BARROS, 2018, p. 21-22). Segundo Jameson:  na cultura pós-moderna, a própria cultura se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como processo (JAMESON, 1997, p. 14).

Da esfera cultural para a historiografia, Barros utiliza o artigo Historiografia e pós-modernismo, escrito por Frank Ankersmit, a fim de iniciar as discussões sobre a historiografia no capítulo “Historiografia e Pós-Modernismo: a polêmica de Ankersmit”. O artigo de Ankersmit trabalha a historiografia pós-moderna, mostrando uma quebra de paradigma, com a crítica de que a “crise das metanarrativas seria o traço principal da Condição Pós-Moderna” (BARROS, 2018, p. 27).

Por meio da historiografia pós-modernista, encontrada principalmente na história das mentalidades, é realizada uma ruptura com a tradição essencialista, no pensamento pós-moderno. O objetivo não é mais a integração, uma totalidade ou uma história universal. Para Ankersmit as principais diferenças entre uma história moderna e pós-modernista são:  Para o modernista, dentro de sua noção científica de mundo, dentro da visão de história que inicialmente todos aceitamos, evidências são essencialmente evidência de que algo aconteceu no passado. O historiador modernista seguia uma linha de raciocínio que parte de suas fontes e evidências até a descoberta de uma realidade histórica escondida por trás destas fontes. De outra forma, sob o olhar pós-modernista, as evidências não apontam para o passado; mas sim para interpretações do passado; pois é para tanto que de fato usamos essas evidências (ANKERSMIT, 2001, p. 124).

Portanto, não apontar para os padrões essencialistas no passado é, antes de tudo, a essência da pós-modernidade. Nesta fase da historiografia, parece que o significado adquiriu mais importância que a reconstrução, sendo o objetivo dos historiadores desvendar o significado do acontecimento no passado, para poder informar gerações atuais e posteriores. A historiografia pós-moderna é enquadrada em um paradigma historiográfico, em uma alternativa ao positivismo, historicismo, entre outros inúmeros existentes. Barros chama a atenção para a indagação que Ankersmit transmite “o nosso insight sobre o passado e a nossa relação com ele serão, no futuro, de natureza metafórica, e não real” (ANKERSMIT apud BARROS, 2018, p. 33), ou seja, é o momento de colocar em primeiro plano o pensar sobre o passado e em segundo lugar investigá-lo.

Para a corrente historiográfica pós-modernista “a História seria essencialmente construção e representação, com pouca ou nenhuma ligação em relação a uma realidade externa” (BARROS, 2018, p. 77). Desta afirmação surgem diversos posicionamentos. Existem aqueles que veem a história com ceticismo ou como uma possível alternativa de misturar história e ficção ou aqueles que relacionam a construção da história com práticas disciplinares e com um sistema de poder.

A História (ou as histórias) torna-se aqui profundamente subjetivada no que se refere a suas destinações. E, mais ainda, ao escrever uma história dirigida para um público específico, o historiador pode pensar isto socialmente – direcionando-a a grupos que cultivem identidades específicas, como a negritude, o feminismo, o ecologismo, o movimento gay, as identidades religiosas ou simplesmente pensar a destinação do seu trabalho em termos de públicos consumidores, pois o mercado editorial contemporâneo até mesmo o estimula a isto (BARROS, 2018, p. 78).

Aqui voltamos para a questão da superprodução historiográfica: por um lado existem obras que misturam história e ficção. Os historiadores escrevem romances históricos e apresentam uma narrativa sem problematização ou sem uma metodologia científica. Por outro lado, encontramos algo importante, como as histórias que foram deixadas de lado. Podemos aqui direcionar a história para um público, como a história das mulheres, a cultura africana, as diversas religiões excluídas; encontramos uma variedade de histórias que antes não seriam escritas e aceitas no meio acadêmico. Encontramos na historiografia um diálogo com a sociedade. Se antes os paradigmas historiográficos ou os grupos acadêmicos não aceitavam determinado tema, como os pesquisados na micro-história ou dos pós-modernistas, com o tempo esses aspectos importantes foram modificados.

Os historiadores dificilmente se assumem pós-modernistas, por conta das polêmicas e atritos na historiografia. O que implicaria ser um historiador pós-moderno? Seguindo um modelo de apresentação, Barros utiliza as definições de Ciro Flamarion Cardoso, no capítulo “Traços do Pós-Modernismo: alguma síntese”, para pontuar as cinco características principais de um historiador pós-moderno: “(1) a desvalorização da Presença em favor da Representação; (2) a crítica da origem; (3) a rejeição da unidade em favor da pluralidade; (4) a crítica da transcendência das normas, em favor da sua imanência; (5) uma análise centrada na alteridade constitutiva” (BARROS, 2019, p. 81-82). No entanto, são apenas tentativas de atribuir características, pois a rotulação de historiadores e suas pesquisas são difíceis.

Por fim, Barros apresenta muitos questionamentos interessantes. Um deles é a seguinte pergunta, no capítulo “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”: “Será a historiografia pós-moderna um produto das crises historiográficas, ou uma resposta a estas mesmas crises?” (BARROS, 2018, p. 99).

Em primeiro lugar, vivemos em uma época com alternativas para o historiador optar ao escrever história, conceitos e paradigmas. Como a história é devir, é natural que comecem a surgir novos paradigmas e questionamentos das concepções de história existentes. A crise acontece com frequência, é a partir dela que repensamos a própria forma de escrever e se essa ou aquela corrente historiográfica precisa ser modificada. Neste caso, podemos expor dois fatores: os “endógenos, que são aqueles que foram produzidos pelo próprio sistema em causa; e há os fatores exógenos, que são aqueles que intervieram de fora” (BARROS, 2018, p. 99).

Se analisarmos a historiografia do início do século XIX, por exemplo, nota-se que, com seu próprio desenvolvimento, surge a superconsciência histórica, o historiador contemporâneo começa a elaborar a sua própria consciência histórica, a qual condiz com a historicidade e relatividade da história que são frutos, desde as mudanças “dos desenvolvimentos da hermenêutica historicista à crescente tomada de consciência gerada pela própria prática historiográfica, ao se confrontar com níveis vários de subjetividade” (BARROS, 2018, p. 100). Este processo é algo que ocorreu no âmbito interno da história como campo de disciplina, pois o historiador entra em contato com “a natureza relativa e histórica daquilo que servirá de base material para a produção do conhecimento histórico: a fonte” (BARROS, 2018, p. 100).

As discussões em relação ao tratamento dos documentos foram debatidas já com os primeiros historicistas. O texto historiográfico não era mais visto com neutralidade ou como um documento oficial detentor de verdades inquestionáveis. As críticas documentais mostraram que um texto sempre carrega a subjetividade e o contexto da época de sua escrita. Com o tempo, o texto escrito pelo historiador passou a ser analisado da mesma forma, considerando a subjetividade. Já no século XX, o historiador contemporâneo constatou a necessidade de lançar críticas e refletir sobre a própria historiografia.

As obras com as discussões sobre a historiografia surgiram em 1970, como por exemplo, A Operação Historiográfica de Michel de Certeau, Como se escreve a História de Paul Veyne, A Meta História de Hayden White, entre outras, a partir de obras como estas “foi se desenvolvendo no historiador contemporâneo, enfim, aquilo que poderemos categorizar como uma superconsciência histórica” (BARROS, 2018, p. 101).

No entanto, o fator “endógeno” é um produto do próprio “sistema em causa”, ou seja, é a superconsciência histórica. Por se tratar de um processo interno da história, ela é produto e causa. Por conter a superconsciência, o historiador vê-se obrigado a repensar a historiografia que escreve promovendo uma transformação na historiografia. Já o fator “exógeno” é o conjunto de acontecimentos externos que afetam a história, como a reflexão vinda da linguística que trouxe questionamentos sobre os limites da narrativa histórica. Com esta reflexão surgiu a centralização das “práticas e representações de um setor da chamada historiografia pós-moderna que, no limite, passou a reduzir a Historiografia apenas ao Discurso” (BARROS, 2018, p. 102).

São inúmeras as crises na historiografia, como aponta Barros no capítulo “Conclusões: a história pós-moderna e o contexto das crises historiográficas”, sendo que uma delas é marcada pela afirmação de Fukuyama, em 1989, sobre o “fim da história”, que usou como argumento a queda do socialismo como um sinal de que a “história tinha chegado ao fim”, por atingir o capitalismo (BARROS, 2018, p. 102). Essa afirmação, de que a “a história tinha chegado ao fim”, recebeu mais críticas do que elogios, pois foi na realidade um efeito político e midiático e não um posicionamento pautado em argumentos históricos fundamentados e verossímeis. Por outro lado, a crise da cientificidade de 1980 proporcionou um questionamento da História Serial e gerou uma crise para os herdeiros da corrente historiográfica dos Annales. Para concluir, Barros afirma que:  as crises na história – das de baixo impacto às de alto impacto, das fugazes às de longa duração, das que trazem decadência às que permitem crescimento, das que perturbam às que autorregulam, das que são geradas por dentro às que vêm de fora – podem ser pensadas, em um plano mais alto, como partes importantes desta complexa história da historiografia. Os rumos da história pós-moderna, se assim podemos chamar a um certo setor da historiografia contemporânea, e também os futuros desenvolvimentos de uma série de outras propostas que não se adequem propriamente ao conceito de “pós-modernismo historiográfico”, ainda estão por se definir no interior desta mesma complexidade (BARROS, 2018, p. 104).

Portanto, estamos diante de um livro que contém vantagens e desvantagens. A vantagem é que os capítulos trazem uma leitura, que flui com explicações simples e objetivas. Outro ponto positivo é que Barros cita e indica várias obras para leitura sobre o tema. A desvantagem é que o livro se aproxima de um manual com capítulos curtos. Seria interessante se estes fossem densos, pois é um tema pouco trabalhado, mas acredito que o objetivo de Barros tenha sido o de apontar um panorama geral. Além de tudo, o livro compõe uma leitura dinâmica e agradável, com uma linguagem objetiva e didática, fato que impulsiona a leitura até o fim do livro, prendendo a atenção aos argumentos e indicações que Barros coloca em sua narrativa.

Referências

ANKERSMIT, Franklin Rudolf. Historiografia e Pós-Modernismo. Topoi, Rio de Janeiro, p. 113-135, mar. 2001.

BARROS, José D’ Assunção. História e Pós-Modernidade. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2018.

JAMESON, Fredic. Pós-Modernismo: a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997.

Ana Carolina Oliveira – Mestranda na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. E-mail para contato: nacarolinaoliveira1234@gmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

Utopia e repressão: 1968 no Brasil – NUNES et al (FH)

NUNES, Paulo Giovani Antonio; PETIT, Pere; LOHN, Reinaldo Lindolfo (org.). Utopia e repressão: 1968 no Brasil. Salvador: Sagga, 2018. 355p. Resenha de: VENTURINI, Luan Gabriel Silveira. Um país de vários rostos, várias culturas e várias lutas: o ano de 1968 no Brasil. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.553-558, jul./dez., 2019.

Nesta coletânea, os professores Paulo Giovani A. Nunes, do Departamento de História da Pós-Graduação em História da UFPB, Pere Petit, associado da UFPA, e Reinaldo L. Lohn, do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UDESC, organizam quatorze textos – divididos em capítulos – sobre o período da Ditadura militar brasileira em várias localidades do país, dando vida, assim, ao livro “Utopia e Repressão: 1968 no Brasil”, publicado no ano de 2018. Estes capítulos seguem, de certa forma, uma ordem de organização de acordo com a temática, nos quais grande parte dos textos tem como foco o tema entre memória e movimento estudantil universitário e secundarista, passando pela memória social e pela imprensa da época. Desse modo, vemos que as ações do Regime não se concentraram apenas nos grandes centros, pois movimentaram outros segmentos da sociedade na luta pelas liberdades, como estudantes secundaristas, indígenas, comunidades extrativistas, etc.

Torna-se necessário, portanto, destacar as motivações dos organizadores com a publicação da coletânea aqui apresentada. O intuito desses autores é mostrar, particularmente, os acontecimentos do ano de 1968 no Brasil ditatorial; momento de muitas agitações, manifestações, embates, perseguições e da imposição escancarada da repressão e censura, por meio do AI-5. Além disso, querem expor a enorme diversidade de atores sociais e também espacial, ou seja, apresentar que o Regime militar brasileiro e as suas determinações e consequências motivaram mais do que os principais políticos, artistas, estudantes, jornalistas e intelectuais das principais cidades brasileiras (Rio de Janeiro e São Paulo). Os capítulos irão revelar um país mais plural, afirmando a diversidade durante esse período da História.

No primeiro capítulo, “Papagaio que está trocando as penas não fala: autoritarismo e disputas políticas no Amazonas no contexto do golpe de 1964”, César Augusto B. Queirós analisa as disputas políticas no Estado do Amazonas, no contexto do golpe de 1964. O autor salienta a cassação do mandato do governador Plínio Ramos Coelho (PTB) e a consequente posse de Arthur César Ferreira Reis, político indicado à Assembleia Legislativa do Estado pelas Forças Armadas e pelo presidente Castelo Branco.

A coletânea segue para o próximo texto, permanecendo ainda na região Norte, só que agora o foco não são mais os políticos e, sim, os povos indígenas. Em “Os involuntários da pátria: povos indígenas e Segurança Nacional na Amazônia Ocidental (1964-1985)”, Maria Ariádina C. Almeida e Teresa A. Cruz destacam a situação dos povos indígenas no Estado do Acre, durante um momento em que se acentuavam as ações de controle e violência contra eles por parte de alguns órgãos do Governo Federal. Segundo elas, isso ocorria graças à doutrina de Segurança Nacional e ao objetivo de incentivar a integração tanto socioeconômica quanto cultural da Amazônia ao centro-sul do país. Elas não deixam de salientar a resistência desses povos e também a dos seringueiros na defesa dos seus territórios.

Já em “Memórias de luta: eventos estudantis contra a ditadura na ‘Fortaleza 68’”, há um deslocamento da região Norte para o Nordeste, além da mudança de objeto. O autor Edmilson A. Maia Jr. apresenta a memória sobre a organização do movimento estudantil e conta a trajetória dele em Fortaleza, desde a retomada das instâncias dos interventores, a partir de 1966, até o ápice deste movimento na capital cearense, que foi a Passeata dos Vinte Mil. O autor utiliza-se principalmente de fontes orais.

No próximo capítulo, o objeto de análise continua sendo o movimento estudantil, além do estudo acerca da imprensa na cidade de Florianópolis, ou seja, agora desloca-se para a região Sul. Em “1968 entre utopias e realidades. Imprensa e protesto estudantil: o caso de Florianópolis”, Reinaldo L. Lohn e Silvia Maria F. Arend analisam a complexidade entre imprensa e movimento estudantil com as mudanças sociais ocorridas naquele momento em diferentes cidades brasileiras, principalmente Florianópolis. Eles buscam demonstrar que a temática da juventude e da inovação social implicava tanto nos projetos de quem ia às ruas combater a Ditadura quanto também nutriam os empolgados com o crescimento econômico que estava transformando as cidades de porte médio no Brasil.

Novamente ocorre um deslocamento de cenário, agora para a região Sudeste, porém, o movimento estudantil e a imprensa continuam sendo os objetos de análise em “A UNE na mira da VEJA desde 1968”. A autora Maria R. do Valle ressalta as lutas deste movimento estudantil em São Paulo, a partir de 1968, não só contra a repressão política, mas também contra a narrativa elaborada pela grande imprensa – especialmente a VEJA – que estigmatizava os personagens e as tomadas de decisões do movimento, produzindo assim uma memória pejorativa em relação aos ativistas.

O movimento estudantil continua como objeto de estudos no trabalho de Paulo Giovani A. Nunes, que analisa a luta armada na região Nordeste. Assim como no trabalho de Edmilson A. Maia Jr., em “O ano de 1968 no Estado da Paraíba: militância estudantil e opção pela ‘luta armada’: trajetórias, história e memória”, vemos a trajetória e as memórias de alguns militantes de esquerda, vinculados ao movimento estudantil no Estado da Paraíba. Além disso, alguns estudantes optaram por participar da luta armada no Estado e, segundo o autor, faziam parte do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário).

A questão da memória estudantil continua como foco no trabalho “O poder jovem: memória estudantil e resistência política na obra de Arthur Poerner”, no qual Rodrigo Czajka e Thiago B. Castro observam a influência do livro O poder jovem, que trata da memória social elaborada acerca dos fenômenos sociais que definiram aquela geração (década de 1960). Segundo os autores, o livro ainda é considerado uma referência para o movimento estudantil.

Após alguns trabalhos sobre movimento e memória estudantil, há uma mudança no objeto de estudo no capítulo “Anticomunismo, evangelização e conscientização: igreja e trabalhadores rurais em Pernambuco (1968-1978)”, no qual Samuel C. de Maupeou estuda a atuação da Igreja Católica no meio rural do estado nordestino, especialmente na zona canavieira, mostrando que apesar do viés social, atuava nessa área com um caráter anticomunista. O autor ainda ressalta que apesar do movimento religioso ter defendido o Golpe de 1964, ele foi abalado após a tomada do poder pelos militares; e, com isso, houve a sua reorganização e uma nova articulação.

Seguindo nesse viés de análise da Igreja no contexto do Regime militar, em “Dominicanos, 1968”, Américo Freire discorre sobre a atuação dos religiosos da Ordem dos dominicanos na luta contra a Ditadura militar e como se tornaram alvos dos militares a partir dos contatos de frades com Carlos Marighella. Segundo o autor, as razões para o envolvimento deles na luta contra o Regime vão além das questões políticas.

No texto “O 68 no Rio Grande do Sul”, Enrique S. Padrós analisa a atuação do movimento estudantil secundarista na cidade de Porto Alegre e como as aproximações e os engajamentos com a luta armada estiveram interligados com aspectos da vida cultural, particularmente o teatro.

E no capítulo “1968, memória e esquecimento: como recordar a Bahia?” Lucileide C. Cardoso analisa, especialmente, as memórias acerca do movimento estudantil secundarista e universitário, que iniciaram suas lutas em 1966, mas chegaram ao auge das mobilizações em 1968, além de diferentes interpretações sobre fatos ocorridos no estado nordestino.

Em “Partidos e Eleições no Pará nos tempos da Ditadura Militar”, Pere Petit – assim como César Augusto B. Queirós na análise sobre o Estado do Amazonas – ressalta o desfecho do Golpe de 1964 no Pará e a consequente perseguição aos opositores “comunistas”, seguida pela cassação do mandato do atual governador Aurélio do Carmo. O autor também apresenta os resultados eleitorais de 1965 e a disputa pelo controle do partido ARENA entre duas principais lideranças golpistas no Estado, Jarbas Passarinho e Alacid Nunes.

No trabalho “Do uso das tecnologias e dos dispositivos de poder: ditadura militar e empresários na Amazônia”, em que Regina Beatriz G. Neto e Vitale J. Neto apresentam o processo de colonização e violência imposto no Mato Grosso como padrão de desenvolvimento econômico. Para isso, analisaram as alianças entre as elites econômicas e órgãos do governo federal e estadual, que ignoraram a territorialidade dos povos indígenas e dos extrativistas. Trata-se também de mais um trabalho sobre a região Amazônica no livro.

No último texto da coletânea, “Considerações sobre a ditadura civil-militar no sul de Mato Grosso (1964-1968)”, Suzana Arakaki analisa a atuação dos membros da Ademat (Ação Democrática de Mato Grosso) e também do Comando de Caça aos Comunistas no combate a esses “subversivos”, além do papel da imprensa da região antes e durante a Ditadura.

Como vimos, o intuito desta coletânea é apresentar aos leitores as diversas realidades brasileiras que compuseram o período de Ditadura militar, bem como a luta e resistência desses “novos” segmentos. Além disso, ela nos mostra possiblidades e objetos de pesquisa, que ainda são pouco explorados pela historiografia sobre o tema, como o uso das memórias na reconstituição da história dos movimentos estudantis, o papel das alianças entre grandes proprietários de terras e os órgãos do governo federal, a utilização de obras contemporâneas do período como forma de recuperar a memória social daquela geração etc. Assim sendo, trata-se de uma obra que traz importantíssimas contribuições e novos problemas de pesquisa.

Os organizadores cumpriram com o que se propuseram ao apresentar um Brasil plural durante a Ditadura militar, por meio da exibição de diversos cenários – tanto urbano quanto rural – e atores sociais do nosso território nacional. Desse modo, passaram por todas as regiões do país, isto é, mostrando que o Regime militar fez-se presente em cada região e não só nos principais centros. No entanto, o modo como organizaram e distribuíram esses temas no decorrer dos capítulos não valorizou a coletânea, uma vez que, aparentemente, o livro segue uma ordem de apresentação, mas em certos momentos é interrompida, ficando, assim, dispersas as regiões e assuntos que tinham relação um com o outro. Por exemplo, os dois primeiros capítulos tratam de temáticas da região Norte, sendo que o primeiro discorre sobre as questões políticas no Estado do Amazonas, antes e após o Golpe de 1964. A região Norte retorna ao livro no antepenúltimo capítulo, no qual Pere Petit também ressalta as questões políticas no Estado do Pará durante o processo do Golpe de 1964, ou seja, trata-se da mesma região e tema, que poderiam estar próximas na organização do livro.

Todavia, observamos ao longo dos capítulos a atenção dada ao tema da memória e, consequentemente, ao uso da fonte oral como recurso para se chegar a ela. No trabalho de Edmilson A. Maia Jr., por exemplo, a História Oral é utilizada como metodologia de pesquisa e constituição de fontes, permitindo “o registro de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ e, dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do passado” (ALBERTI, 2008, p. 155). Assim, a História Oral permite o estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram as suas experiências, como vemos na narrativa de Maia Jr. sobre a trajetória de embates e resistência do movimento estudantil de Fortaleza. A combinação da história com a experiência relatada significa entender como pessoas e grupos experimentaram o passado, tornando possível questionar interpretações generalizantes de certos acontecimentos (ALBERTI, 2008).

Portanto, a História Oral é muito útil para a História da Memória, pois, segundo Alberti (2008), apesar das críticas no início – afirmando que as fontes orais diziam respeito às “distorções” da memória –, hoje em dia, os historiadores consideram a análise dessas “distorções” como a melhor forma de levar a compreensão dos valores coletivos e das ações de um grupo, como o caso dos movimentos estudantis.

Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nação, são importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um todo (ALBERTI, 2008, p. 167).

Por fim, como nos sustenta René Rémond (2003), não há muitas realidades da nossa sociedade que o político não está presente, e isso vale para as memórias também. Admitindo-se, então, essa dimensão política no funcionamento da memória – já que seu caráter instituinte se realiza no campo conflituoso das escolhas, dos valores, dos significados –, os historiadores da memória tratam, segundo Meneses (2009), de examinar na contemporaneidade aspectos da memória politicamente marcados. Desse modo, a coletânea aborda constantemente temas relacionados à memória da Ditadura militar brasileira, especificamente a memória estudantil, que querem trazer um significado, transformando-se em elemento simbólico (MENESES, 2009), ou seja, a Ditadura em si é carregada de significados, formando uma memória coletiva a respeito dela; e as lutas e resistências destes segmentos também carregam significados próprios, formando também uma memória coletiva. Estas memórias coletivas convergem entre si e ajudam a formar a história da Ditadura militar brasileira.

Referências

ALBERTI, Verena. Fontes orais – Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 155-202.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. In: AZEVEDO, Cecília et. alli, (org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009. p. 445-463.

NUNES, Paulo Giovani Antonio; PETIT, Pere; LOHN, Reinaldo Lindolfo (org.). Utopia e repressão: 1968 no Brasil. Salvador: Sagga, 2018. 355p.

RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René (org). Por uma história política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 441-454.

Luan Gabriel Silveira – Graduado em História pela UFMS/CPTL, Três Lagoas, estado do Mato Grosso do Sul (MS), Brasil. Professor substituto da Educação Básica. E-mail: luan_silveira10@hotmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012) – GARRIDO (FH)

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p. Resenha de: SILVA, Jonatan Gomes dos Santos. A representação do negro nos materiais didáticos. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.11-27, jul./dez., 2019.

O Brasil possui o maior programa de distribuição de livros didáticos do mundo. Só em 2017 foram gastos 1.295.910.769,73 de reais em 125.570.649 livros. Tais cifras ajudam a entender a importância dos livros didáticos no ensino do país, sendo uma das bases para a configuração dos currículos escolares e do planejamento de aulas. O processo de avaliação e distribuição desses livros é complexo, devendo ser feito com diálogo entre o Estado, as editoras, a academia e as demandas sociais.

O livro Escravo, africano, negro e afrodescendente, de Mírian Cristina de Moura Garrido, analisa essa relação na produção dos livros didáticos cujo conteúdo tem grande impacto na formação da identidade dos alunos. Para isso, propõe em seus três capítulos a análise das representações dos negros nos principais livros didáticos de história distribuídos nas escolas brasileiras entre os anos de 1997 a 2012, tendo como foco o tema pós-abolição. A autora não analisa apenas o seu conteúdo, mas também as etapas a serem cumpridas até a sua distribuição nas escolas, colocando em pauta a indústria de materiais didáticos e sua relação com o Estado, seu principal cliente. O livro foi publicado em 2017 pela editora Alameda, sendo fruto da dissertação de mestrado em História da autora, realizado na UNESP (campus de Assis) entre os anos de 2008 e 2011. Doutorou-se pela mesma instituição em 2017, também realizou estágio de pesquisa na University of Pittsburgh (Estados Unidos) e pesquisa de campo em Maputo (Moçambique). Atualmente, Garrido é pós-doutoranda em História pela Universidade Federal de São Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre as memórias da independência moçambicana.

No primeiro capítulo “O livro didático: contexto”, Garrido contextualiza os livros didáticos brasileiros a partir dos aspectos econômicos, editoriais e historiográficos, traçando um panorama do que sua obra discute. Para analisar essa relação entre representação e o complexo processo de criação do livro didático, a autora utiliza o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este é o responsável por avaliar e disponibilizar os livros didáticos das escolas brasileiras. A partir de seus editais de convocação, em geral lançados dois anos antes da circulação do livro na escola, é possível estabelecer todas as exigências a serem cumpridas pelas editoras e obras didáticas que desejam negociar com o Estado, as condutas dos livros didáticos e suas editoras, bem como os critérios de análise estabelecidos. Na última etapa do edital PNLD aparece o Guia de Livros, Garrido também o usa como fonte, pois ele fornece auxílio ao professor na escolha do livro didático, expondo os princípios e critérios de avaliação das obras didáticas e as resenhas dos livros aprovados.

O PNLD na obra de Garrido também é fundamental para seleção dos livros utilizados como fonte, uma vez que formula seus critérios:  a aprovação dos autores na versão 2008 do Programa Nacional do Livro Didático destinado ao Ensino Médio; a presença deles no mercado de didáticos antes do início das avaliações governamentais para o segundo ciclo do ensino fundamental, portanto, 1997 (PNLD 1999); e a representatividade desses autores entre docentes. Traçado esse perfil, três nomes emergiram: Gilberto Cotrim, Antonio Pedro e Mario Schmidt. (2017, p. 12)  A formação profissional desses autores diverge. Cotrim tem uma ampla e diversificada formação: graduação em História, Direito, Filosofia, e mestrado em Educação, Arte e História da Cultura. Também foi presidente da Associação Brasileira de Autores de Livro Educativo (ABRALE). Antonio Pedro tem uma carreira mais ligada à universidade, possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) em conjunto com a Columbia University. Schmidt, estranhamente, não tem formação comprovada, mas alega ter graduação em História na Alemanha Oriental, bem como ter iniciado os cursos de Engenharia e Filosofia sem completá-los, e ainda assim é uma grande referência no mercado de didáticos.

A autora articula o PNLD com a lei 10.639/03. Esta é fundamental para a representação do negro nos livros didáticos enquanto sujeito histórico, porque expõe a conquista de uma das mais antigas demandas do movimento negro contemporâneo: a incorporação de conteúdos sobre História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional nos currículos escolares. Não é uma simples incorporação de conteúdo, o que “está em pauta é o repensar de atitudes e valores, de ressignificação do ensino enquanto instrumento de valorização da identidade.” (GARRIDO, 2017, p. 175)  No segundo capítulo, “Livros do Ensino Médio aprovados no PNLEM: Cotrim; Schmidt; Pedro”, Garrido analisa os livros das duas gerações (1997 e 2008) dos autores selecionados. O método utilizado é a análise do conteúdo, portanto, a autora primeiro realiza a “desmontagem dos textos, fragmentando o corpo do texto para obter unidades lógicas; em seguida, essas unidades serão confrontadas com outros referenciais bibliográficos” (GARRIDO, 2017, p. 79), objetivando a emergência de novos significados. A desmontagem do texto inicial resulta em um segundo texto, um metatexto capaz de pluralizar a captação de significados do texto original. Assim, é possível ampliar as interpretações de leituras possíveis e evitar uma leitura superficial.

Os referenciais bibliográficos que Garrido utiliza para confrontar as fontes dialogam com uma revisão historiográfica que ocorre a partir da década de 1980, e que ainda perdura, propondo uma nova interpretação sobre o sujeito histórico. De forma geral, pensando na questão da representação do negro, pode-se dizer que essa historiografia emergente recusava “a predominância de um enfoque socioeconômico e estrutural passando a privilegiar abordagens que ressaltavam variáveis políticas e culturais, para um melhor entendimento das relações sociais construídas entre dominantes e dominados.” (GOMES, 2004, p. 159).

Portanto, as reflexões de Sidney Chalhuob (1990) e Walter Fraga Filho (2004) se destacam na obra de Garrido. Eles sustentam que o negro, escravizado ou livre, como agente ativo socialmente, é partícipe das transformações sociais mesmo com as limitações que lhe são impostas. Ocorre, pois, a sua valorização enquanto sujeito histórico, diferente da ideia de passividade e anulação pelo dominador que era propagada por modelos, marxistas ou não, que privilegiam os aspectos estruturais, resultando na coisificação do negro. Para isso, são empregados métodos e fontes que aproximam o historiador ao cotidiano da população negra – como as memórias, os processos criminais, testamentos –, documentos que de alguma forma dão voz à ela ou nos relatam sua participação na sociedade. Dessa forma, apesar das limitações sociais, é possível apreender as redes familiares e de solidariedade construídas por esse segmento social, os meios criados para a sua participação no mercado de trabalho, as negociações entre negros e ex-senhores. Além disso, como os autores trabalham com regiões diferentes, Rio de Janeiro e Bahia respectivamente, o diálogo entre eles possibilita contestar generalizações. Essa mudança teórico-metodológica, portanto, nos permite apreender o afro-brasileiro de forma dinâmica, participando ativamente da sociedade através de diversas formas de resistência.

A partir da análise do discurso focando na representação dos negros no pós-abolição, a autora se debruça sobre os livros didáticos de 1997 e de 2008 dos autores escolhidos, constatando que nas poucas páginas dedicadas, os conteúdos sobre o tema não estavam de acordo com a produção historiográfica em voga, isto é, não valorizavam o negro como sujeito histórico, tornando invisível sua participação na sociedade.

Nos livros didáticos da segunda geração (2008), Garrido considera que ocorreram melhorias, contudo foram poucas. Schmidt e Cotrim, no que tange à seção dedicada ao pós-abolição, fizeram mudanças pontuais nos textos da década de 1990, tentando se adequar aos requisitos do edital do PNLD 2008. Mas toda a argumentação da primeira geração continua intacta. O texto de Antônio Pedro é ainda mais preocupante, pois a única alteração no texto de 2008 é o acréscimo de uma palavra.

A parte reservada às imagens e às atividades foi aprimorada, com destaque para Cotrim, que elaborou atividades para resgatar o conhecimento prévio dos alunos, não se limitando aos exercícios de memorização. Apesar das diferenças entre os conteúdos dos livros serem sutis, a autora destaca que Cotrim põe em xeque a liberdade dos negros, mas sem levar em conta, entre ex-escravizados, a plural significação desse conceito. Para entender essa condição para os egressos da escravidão, Garrido entra em concordância com Chaulhoub (1990) que defende que ser livre poderia significar autonomia de movimento e a constituição de relações afetivas. Com o texto de Walter Filho (2004) é possível sair do Sudeste e pensar essa relação na Bahia, onde a liberdade pode ser analisada pela forma como a interferência senhorial não foi tolerada, ela também aparece nas intensas negociações para manter e ampliar direitos que foram conquistados no período da escravidão.

Em seus livros, Schmidt, conhecido por sua posição marxista ortodoxa, busca evidenciar conflito entre os grupos sociais, porém trabalha com uma leitura que privilegia aspectos estruturais, não conseguindo “expressar percepções que singularizem o processo como estratégias e táticas de sobrevivência além da morte, do suicídio ou fuga, nem admitir outras formas de resistências que ocorram no cotidiano.” (GARRIDO, 2017, p. 103).

Sem dúvidas, Antonio Pedro foi o autor que mais recebeu críticas, pois praticamente não ocorreram mudanças em suas obras. Assim, além de conter generalizações, reedita a tese da anomia de Florestan Fernandes ao não considerar o negro como sujeito histórico quando argumenta sobre a marginalização, reforçando o mito do negro “indisciplinado e ocioso”, o que é totalmente nocivo à representação do afro-brasileiro.

Garrido dedica o terceiro capítulo, “História, Educação e Identidade: por um ensino aprendizagem possível”, à reflexão sobre as perspectivas e possibilidades para uma educação que não negligencie o debate sobre o racismo e a discriminação. A autora constata que a questão da valorização do afro-brasileiro está presente tanto na historiografia atual, quanto na base da Lei da 10.639/03 e nos editais de convocação do PLND, contudo os livros didáticos ainda não se atualizaram. Para compreender essa nociva permanência, Garrido primeiro problematiza as lacunas do PNLD e conclui que, por mais que os seus editais tenham se aprimorado com o passar dos anos, a falta de um critério de desqualificação referente a não incorporação de conteúdos atualizados gera uma brecha, permitindo a aprovação de livros desatualizados.

Em seguida, a autora reflete sobre o uso e a produção dos livros paradidáticos. Este gênero emerge entre as décadas de 1970 e 1980, quando ocorre uma expansão do saber acadêmico acompanhada de uma renovação do livro didático devido às novas propostas curriculares.

Num primeiro momento, o paradidático tinha como principal consumidor alunos da rede privada de ensino e alunos de graduação, mas com a criação do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) em 1997, a clientela tem se reconfigurado, pois livros de diversos gêneros literários, entre eles o paradidático, passam a ser comprados e distribuídos nas bibliotecas de escolas públicas. Através dessa ação, o programa tem como principal objetivo incentivar a formação do hábito de leitura nos alunos da rede pública, modificando a histórica restrição à cultura letrada, propiciando “melhores possibilidades de acesso a essa cultura aos estudantes de escolas públicas do país” (GARRIDO, 2017, p. 161). O PNBE tem uma estrutura de funcionamento similar ao PNLD, inicialmente são lançados os editais de convocação, em seguida os livros são avaliados e selecionados por professores universitários, professores do ensino básico e profissionais de múltiplas experiências.

A obra de Garrido constata que os livros paradidáticos após 2003, se ocupam em explicar a África e suas relações com o Brasil e a herança dos afro-brasileiros, contemplando as exigências da lei 10.639/03. Vale ressaltar que os livros paradidáticos envoltos na temática “história e cultura africana e afro-brasileira” foram vencedores do Prêmio Jabuti na categoria didáticos e paradidáticos nos anos de 2007, 2009 e 2010, o que torna explícita a qualidade do conteúdo do segmento paradidático.

O que chama a atenção de Garrido é o fato de as editoras produzirem livros didáticos carentes de incorporação de conteúdos sobre o tema “África e afrodescendentes”, ao mesmo tempo em que têm em seus catálogos livros paradidáticos suprindo essas carências. Isso pode ser explicado como uma estratégia “na qual as editoras lucram com as compras governamentais duas vezes, no PNLD e no PNBE” (GARRIDO, 2017, p. 165). Para a autora, essa estratégia escancara a lógica da relação entre editoras e Estado, ou seja, enquanto estas buscam deliberadamente o lucro, as políticas públicas devem fundamentar a educação que pretendem efetivar através dos recursos disponíveis. Outro obstáculo, pois, para a valorização da população negra.

Portanto, a obra de Mírian Garrido traz importantes contribuições para a reflexão da representação do negro nos principais livros didáticos do país. Ao questionar o que vem sendo ensinado nas instituições de ensino sobre o pós-abolição, a autora aponta que a incorporação de conteúdos que valorizem o negro enquanto sujeito histórico reflete na construção da identidade negra. Também é importante que as políticas públicas se atentem à necessidade de promover dentro das escolas uma constante discussão da relevância e legitimidade de uma educação que não negligencie nenhuma das identidades.

Nenhum dos livros didáticos analisados pela autora renovou os conteúdos já consagrados, não se atendo a atual historiografia sobre o pós-abolição, tampouco sobre a demanda social da Lei 10.639/03. O ex-escravo continuou fadado à marginalização por sua passividade ou submissão. Essa postura conservadora pode ser entendida como uma opção dos autores e editoras. Apesar disso, ainda ocorreram melhoras significativas no material do produto didático e em certos “setores” dos livros: exercícios, textos complementares e no tratamento com imagens.

Pouco pode ser considerado de negativo na obra de Garrido. O conceito de memória, que é importante na discussão da autora, poderia ser mais desenvolvido, mas sabendo que o livro é fruto de sua dissertação de mestrado, espaço limitado e de prazo curto que tende a priorizar certos aspectos, essa carência torna-se compreensível. Além disso, não compromete a reflexão sobre a importância da representação valorativa do afrodescendente nos livros didáticos.

Referências

CHALHOUB, Sidiney. Visões de Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhada da liberdade: Histórias e trajetórias de escravos e libertos na Bahia, 1870-1910. 2004. 363 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017. 203p.

GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 34, p. 157-186, jul./dez. 2004.

Jonathan Gomes dos Santos – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNESP, Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: jonatangs@live.com.

Acessar publicação original

[IF]

Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história – IEGELSKI (AHSS)

IEGELSKI Francini Memórias do regime militar
Francine Iegelski/Divulgação UFF

IEGELSKI F Astronomia das constelações humanas Memórias do regime militarIEGELSKI, Francine. Astronomia das constelações humanas. Reflexões sobre Claude Lévi-Strauss e a história. São Paulo: Humanitas, 2016, 422 p. Resenha de: BRANDI, Felipe. Annales.  Annales. Histoire, sciences sociales, v.2, p.450-452 2019. Acessar publicação original.

En 1949, Claude Lévi-Strauss publiait, dans un numéro de la Revue de métaphysique et de morale consacré aux « Problèmes de l’histoire », l’article « Histoire et ethnologie », devenu dix ans plus tard la célèbre introduction d’Anthropologie structurale 1. Les deux disciplines qui donnent son titre à l’article y sont montrées comme un Janus bifrons : deux sciences soeurs, solidaires, mais investies de missions opposées. Alors que l’histoire s’en tiendrait au domaine du particulier et à l’étude des expressions conscientes de la vie sociale, l’ethnologie paraît atteindre un degré plus élevé d’abstraction àmême d’explorer les « possibilités inconscientes » et d’opérer le passage à l’universel. Les historiens ont vite compris que leur discipline se trouvait menacée d’être reléguée aux tâches subalternes d’une science de second rang : la collecte consciencieuse des matériaux empiriques dont il reviendrait à d’autres d’opérer la synthèse. Méfiants, ils sentaient que l’anthropologue n’avait insisté sur la complémentarité des deux disciplines que pour mieux les hiérarchiser. Conquérante et forte de ses attraits, la jeune ethnologiemontrait qu’elle s’apprêtait à détrôner son aînée. Depuis lors, le thèmede l’histoire dans la pensée de Lévi-Strauss a suscité l’un des grands débats qui, en France et ailleurs, ont marqué les sciences de l’homme du second XXe siècle – un débat que nous aurions tort d’imaginer dépassé. Le livre de l’historienne brésilienne Francine Iegelski en témoigne. Issu d’une thèse de doctorat soutenue à l’université de São Paulo en 2012, le volume, préfacé par François Hartog et enrichi d’une présentation de Sara Albieri, fraye son chemin au milieu d’une vaste littérature par l’originalité d’une démarche qui allie histoire des idées et réflexion théorique, afin de montrer que les questions posées par Lévi-Strauss à l’histoire peuvent encore nous guider parmi les interrogations actuelles de l’historiographie.

L’ouvrage d’Iegelski présente un triple intérêt. Tout d’abord, il se centre sur les écrits de Lévi-Strauss et montre que celui-ci a enrichi l’histoire, suivant lemêmemouvement par lequel il en a fait une espèce de contrepoint à son projet d’anthropologie sociale. Ensuite, ce travail se lance dans une histoire intellectuelle qui retrace les débats et les controverses ayant jalonné la réception historienne des idées de Lévi-Strauss, depuis l’article de Fernand Braudel sur la longue durée jusqu’aux écrits d’Hartog. Enfin, il change à nouveau de peau et s’engage dans une réflexion, plus théorique, sur les « expériences du temps ». Ce livre est en effet celui d’une historienne de métier, dont le but est de réfléchir sur l’histoire.

On lit avec profit les chapitres qui déclinent les significations diverses dont l’histoire apparaît investie au sein de l’oeuvre de Lévi-Strauss : elle désigne tantôt les expériences vécues des sociétés (le « champ événementiel », si l’on veut), tantôt l’attitude subjective que les différentes sociétés adoptent face au devenir, tantôt un savoir constitué au sein des sociétésmodernes, que ce soit sous la forme de l’histoire qu’écrivent les historiens ou d’un grand récit aux mains des philosophes et des idéologues. Des thèmes bien connus sont utilement revisités : les rapports entre histoire et ethnologie, le problème des discontinuités culturelles, celui de la contingence irréductible de l’événement et, finalement, la mise à nu des rapports entre mythe et histoire. Le mérite essentiel de cette traversée repose sur la gerbe d’informations moissonnées et sur un effort de décryptage d’autant plus estimable que la matière est spécialement compliquée. Au fil de ce parcours, le thème de l’histoire se diffracte au sein des écrits de Lévi-Strauss, tout en restant une constante.

Si l’analyse de l’oeuvre occupe la plus grande part du livre, l’originalité de l’initiative d’Iegelski est de ne pas s’y arrêter. L’autrice couronne son étude par l’histoire du retentissement des idées de Lévi-Strauss chez les historiens, au fil d’un récit truffé d’aperçus nouveaux. Elle propose une lecture intéressante du discours de Lévi-Strauss à l’occasion de la 5e Conférence Marc Bloch, que les Annales publient en 1983 sous le titre « Histoire et ethnologie », comme un écho à son article de 1949 qui ne fait qu’accuser l’écart entre leur conjoncture polémique respective. Cette dernière contribution de Lévi-Strauss dans les Annales atteste que le rapport entre les deux disciplines s’était radicalement transforméentre-temps ; en témoigne aussi, dans le même numéro, un autre article, cette fois signé Hartog, sur l’anthropologie de l’histoire où apparaît pour la première fois, sous une forme encore embryonnaire, la notion de « régimes d’historicité 2 ».

Un quart de siècle après que Braudel a proposé la longue durée comme une réponse à l’avancée de l’anthropologie structurale, Hartog lit Marshall Sahlins et envisage qu’un nouvel échange entre historiens et anthropologues soit désormais placé au niveau de l’événement, et non des « structures », mettant ainsi à l’épreuve l’idéequelerefusduchangement serait l’attitude prédominante des sociétés traditionnelles, supposées « froides », face à l’histoire. La rencontre de ces deux articles de Lévi-Strauss et d’Hartog est explorée par l’autrice comme une coïncidence pleine de sens, qui marque le moment où une conjoncture intellectuelle s’achève afin qu’une autre commence. En amont, l’étude des sociétés dépourvues d’écriture (donc sans archives ni histoire) s’opposait aux recherches consacrées aux sociétés engagées dans le devenir ; en aval, la manière dont les sociétés conçoivent leur inscription dans l’histoire devient un champ problématique commun, partagé par les spécialistes des deux disciplines.

D’une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, l’ouvrage se transmue ainsi en une histoire intellectuelle de la réception historienne de ses écrits, avant de se convertir en un essai sur la genèse de la réflexion sur les « expériences du temps » dans le travail d’Hartog. Les pages finales sont particulièrement novatrices, dédiées à l’influence des écrits de Lévi-Strauss sur le tournant réflexif de l’historiographie des années 1980 et sur l’avènement de cet outil d’investigation historique du temps qu’est la notion de « régimes d’historicité ». L’enjeu touche ici à l’actualité qu’acquiert au sein du travail d’Hartog la réflexion de Lévi-Strauss sur l’histoire. Après avoir remis en question l’idéal de progrès, Lévi-Strauss fut aussi l’un des savants à avoir reconnu les signes avant-coureurs d’un bouleversement des rapports au temps qui allait toucher les sociétés modernes en cette fin de siècle.

En 1993, Lévi-Strauss revient sur le binôme sociétés froides/sociétés chaudes qu’il avait autrefois proposé et signale que les « états » auxquels correspondent ces deux catégories ne sont pas figés, mais eux-mêmes soumis au devenir historique.

Il constate alors une double évolution, symétriquement opposée, qui atteint autant les sociétés traditionnelles (froides) que les sociétés modernes (chaudes) lors du dernier quart du XXe siècle : les premières, s’insurgeant contre le pouvoir des anciens colonisateurs, s’engagent dans l’histoire et « se réchauffent », tandis que les secondes suivent un mouvement inverse de « refroidissement », né de leur effort pour neutraliser les effets du temps et résister au devenir. Signe d’une perte de confiance dans l’avenir provoquée par les expériences traumatiques du XXe siècle (guerres, explosion démographique, ravages de la civilisation industrielle), ce processus de refroidissement au sein des sociétés chaudes recoupe, selon l’autrice, ce qu’Hartog appelle le basculement du « régime moderne d’historicité » vers le « présentisme ». Visiblement, les deux diagnostics convergent et se recouvrent. Pour Iegelski, ce refroidissement dont parle Lévi-Strauss est une expression de la fermeture du futur et de la montée d’un présent omniprésent qui caractérisent le moment « présentiste ». Dans sa préface, Hartog accepte volontiers ce rapprochement, mais se demande si l’on ne peut voir dans le présentisme un « hyper-réchauffement », où l’accélération est telle que le devenir se consume aussitôt, jusqu’à ne laisser de place qu’à un présent perpétuel.

De nouvelles perspectives de recherche s’ouvrent ainsi aux spécialistes de l’historiographie. Elles témoignent de la fécondité des réflexions actuelles sur la conscience historique des sociétés et leur rapport au temps 3. Dans une étude sur l’histoire chez Lévi-Strauss, on peut certes regretter que l’autrice effleure seulement le thème des théories diffusionnistes, lequel recèle une piste importante pour comprendre comment les analyses des mythes chez l’anthropologue se situent face à un débat relatif aux processus d’acculturation précolombiens ainsi qu’aux guerres et aux migrations qui ont tantôt rapproché, tantôt séparé les hautes civilisations et les cultures de la forêt et de la savane. On eût aimé qu’Iegelski posât le problème des organisations dualistes en tant que traces de l’histoire perdue d’un ancien syncrétisme, des contacts et d’un vieux fonds culturel commun d’où seraient dérivées les cultures des hautes et des basses terres. L’obscurité enveloppant le passé américain a représenté, sans conteste, un redoutable obstacle qui n’a pas été sans déterminer très tôt les positions adoptées parLévi-Strauss à l’égard de l’histoire. Ces remarques n’enlèvent pourtant rien à la portée d’une étude qui se lance dans une lecture résolument historienne de la pensée vivante de Lévi-Strauss, en convoquant ses différentes réflexions sur l’histoire, en vue de mieux s’armer pour répondre aux défis historiographiques qui sont aujourd’hui les nôtres.

Felipe Brandi. E-mail: brandifelipe@yahoo.com AHSS, 74-2, 10.1017/ahss.2020.20.

Notas

1- Claude LÉVI-STRAUSS, « Histoire et ethnologie », in Anthropologie structurale, Paris, Plon, [1949] 1958, p. 3-33.

2 – Id., « Histoire et ethnologie », et François HARTOG, «Marshall Sahlins et l’anthropologie de l’histoire », Annales ESC, 38-6, 1983, respectivement p. 1217-1231 et p. 1256-1263 ; François HARTOG, Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Éd. du Seuil, 2003.

3 -Dossier « L’anthropologie face au temps », Annales HSS, 65-4, 2010, p. 873-996.

História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa / Vozes Pretérito & Devir / 2019

Ao elaborarmos a proposta deste dossiê sobre História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa tivemos a intenção de fomentar a reflexão em torno de estudos recentes relacionados ao campo da história militar fossem eles voltados para a análise de eventos bélicos, os chamados temas tradicionais da história militar, e seus desdobramentos sociais, fossem eles voltados para a atuação de grupos, instituições e eventos militares em tempos de paz. O leitor da presente edição da revista Vozes, Pretério & Devir se deparará, portanto, com um conjunto de trabalhos que se debruça com maior empenho sobre a preparação da sociedade para a guerra, o papel das forças armadas na organização cotidiana da sociedade brasileira, a construção de mitologias e legitimidades em torno da atuação política de militares, o papel normatizador da instituição sobre a população, como também a problematização da escrita existente sobre essas temáticas. A multiplicidade de enfoques oferece ao leitor o afastamento em relação aos campos de batalha, o que permite perceber estes enquanto apenas um dos palcos de atuação dos militares e de seus projetos para a sociedade. Os artigos arrolados apresentam contextos e relações sociais diversos, pondo em suspeição imagens simplistas e heroicizantes. Trata-se da efetivação do dever estruturante da História enquanto ciência: questionar as certezas herdadas do passado.

É interessante perceber que todos os trabalhos apresentados se alicerçam em episódios transcorridos no Brasil, tradicionalmente rotulado enquanto um país pacífico e que não se envolveu em guerras de forma significante. Na contracorrente deste lugar comum, o dossiê mostra o amadurecimento da História Militar em nosso país, fomentado a partir da década de 1990, devido ao distanciamento do período ditatorial (1964-1985) e à expansão das pós-graduações nas universidades brasileiras. Ressalte-se que no regime militar o espaço acadêmico não teve interesse (ou liberdade) em discutir as Forças Armadas e os poucos estudos voltaram-se para a pesquisa do envolvimento militar na política, desconsiderando outras análises sobre a instituição (CASTRO; IZECKSOHN; KRAAY, 2004, p. 13). A profissionalização dos arquivos militares, com o ingresso nesses espaços de historiadores e arquivistas de formação, a progressiva abertura de acervos produzidos ou relacionados ao meio castrense, bem como a crescente profissionalização dos pesquisadores através dos cursos de pós-graduação proporcionaram o crescimento dos estudos nesta área (FIGUEIREDO, 2015, p.12-14).

O estudo dos militares e sua relação com aspectos da vida social como a política, a cultura e a sociedade, em suas várias temporalidades, é fundamental para a compreensão da trajetória histórica dos povos, especialmente na América Latina, onde os militares ou se apresentam historicamente como força democrática, de acordo com tese de Nelson Werneck Sodré (CUNHA, 2010, p. 07-17), ou como força conservadora e até reacionária. Sendo assim, o uso de novos temas, fontes e abordagens na produção da História Militar articulada à expansão dessa área de estudo no universo acadêmico vem contribuindo de forma relevante para a interpretação do papel dos militares nos movimentos históricos, tanto em seus avanços quanto em seus retrocessos, assim como a influência sofridas por eles do mundo social.

Dessa forma, levando em consideração a relevância do tema na atualidade e a necessidade de se compreender as relações que se estabeleceram ao longo do processo histórico entre Militares, política e sociedade, a Revista de História da Universidade Estadual do Piauí torna público o dossiê História Militar, Historiografia e Caminhos de Pesquisa, composto por oito artigos.

Os dois artigos que abrem o dossiê afastam-se do teatro de guerra, mas apresentam outras formas de encenar o poder, qual seja a construção de legitimidades. Ronaldo Zatta e Ismael Antônio Vannini abordam as comemorações e a ritualização nacionalista durante o período ditatorial civil-militar. Ao dirigirem sua atenção para o município paranaense de Francisco Beltrão em 1980 nos propiciam compreender como as autoridades locais buscaram alinhar-se aos símbolos e à pedagogia militarista apresentada em celebrações do sete de setembro. Os esforços em cumprir determinações militares terminaram por adequar associações civis e estudantes em nível escolar à disciplina determinada pelos presidentes-generais.

Bárbara Tikami de Lima, por sua vez, investe em balanço da História Militar e a da Arte. Para tanto, explora as trajetórias dos pintores das obras que imortalizaram a participação do exército e marinha do Brasil na guerra do Paraguai. Telas como Batalha do Avahy e Batalha Naval do Riachuelo são frequentemente evocadas na liturgia militar, enquanto símbolos do denodo e sacrifício realizados em nome da pátria. O argumento da autora aposta na indissociação entre a experiências dos artistas e a dos militares na elaboração da imagética iconográfica.

Os dois artigos seguintes examinam a importância que as guerras civis tiveram no país. Gustavo Figueira Andrade explora a associação entre duas experiências diferentes. A Vozes Pretérito & Devir Ano VI, Vol. X Nº I (2019) Apresentação ISSN: 2317-1979 6 primeira é a da guerra civil em si, neste caso a transcorrida entre 1893 e 1895 no Rio Grande do Sul. A segunda é a da mobilização de efetivos ao longo do país e seu deslocamento para frentes muito diversas das que originalmente serviam os soldados. Valendo-se das memórias de um praça cearense recém-chegado ao território sulista, Andrade nos oferece tanto a análise sobre as condições de vida de um soldado na jovem república brasileira quanto a perspectiva de estranhamento de um oriundo de parte muito diversa da mesma. Vivência castrense e civil se misturam, apontando as limitações da homogeneização do treinamento militar.

Determinado a recapitular o desenvolvimento do tenentismo, Amílcar Guidolim Vitor passa em revista as ações que deram origem a esta categoria. A alternância entre a narrativa e a análise da repercussão das manifestações de jovens oficiais em jornais da época aponta para o sofisma que é afirmar que no Brasil os combates militares estiveram ausentes. De fato, nas mobilizações dos “tenentes” foram recorrentes as marchas forçadas e o confronto com outras unidades do exército ou de polícias militares estaduais. A guerra brasileira teve uma manifestação endêmica e interna.

O artigo de Johny Santana de Araújo foca na ação do exército enquanto transformador dos cidadãos brasileiros, um objetivo praticado com particular recorrência na primeira república. Ao verificar a implantação do 25º batalhão de caçadores em Teresina, o professor nos apresenta o quanto a promoção de atividades de entretenimento e de sociabilidade foram utilizadas para oferecer uma imagem positiva do exército e, por conseguinte do Estado brasileiro. No Piauí, estado no qual as Forças Armadas e o poder central tinham presença pouco expressiva, fazia-se necessário não apenas atuar, mas também ganhar corações e mentes da população. Para tanto, lançava-se mão do soft power como meio de adesão.

Mas o que será de um exército sem um inimigo? Wilson de Oliveira Neto nos mostra que a definição de um antagonista não era óbvia, obrigando a uma pedagogia política para apontar aos cidadãos quem eram os opositores da pátria. No caso da II Guerra Mundial a imprensa, articulada com a propaganda estado-unidense foi fundamental para transformar os alemães, outrora aliados, no inimigo nazista que deveria ser combatido. Novamente, coloca-se em jogo a legitimidade das ações militares e sua relevância política no cotidiano.

Lucas Mateus Vieira de Godoy Stringuetti, por sua vez, discute como carreiras militares se desdobraram em carreiras políticas, valendo-se para tanto das biografias elogiosas ao brigadeiro Eduardo Gomes. Tendo as biografias surgido no embalo das discussões para apontar o candidato da UDN à presidência da república em 1945, eram menos estudos desinteressados do que peças de propaganda. Nesse sentido, tratavam não apenas de relatar as proezas militares do brigadeiro, mas construir a figura de um líder nacional.

Fechando o dossiê, Marcelo Cardoso examina as escritas acadêmica e institucional produzidas sobre a Polícia Militar Brasileira e Piauiense entre os anos de 1975 e 2010. O autor analisa os distanciamentos e aproximações existentes entre essas narrativas levando em consideração o lugar social de produção e os procedimentos metodológicos utilizados. A partir desse debate, Cardoso apresenta através de seu percurso acadêmico uma proposta para a história acadêmica da Polícia Militar no Piauí.

Além do material do dossiê o leitor conta com a seção de Artigos Livres, que totaliza seis trabalhos autorais. O primeiro deles realiza uma transição entre o militarismo do dossiê e as demais contribuições, ao explorar a utilização de corsários pelo movimento revolucionário e emancipador de Buenos Aires no início do século XIX. Eduardo Sartoretto analisa a participação de marinheiros e oficiais que vendiam seus serviços a favor da revolução, mas também visando a própria sobrevivência. Valendo-se de um diálogo sólido com a historiografia internacional, percebe como a definição da soberania da nação nascente foi atravessada por questões internacionais que se evidenciavam na ação corsária.

Erick Matheus Bezerra Mendonça Rodrigues retorna ao século XVI para averiguar o quanto a obtenção de informações e sua transformação em conhecimento era fundamental para a monarquia hispânica manter sua dominação sobre territórios ultramarinos. Conhecer para conquistar era uma prática recorrente no mundo moderno e os espanhóis fomentaram o conhecimento científico pautados pelo uso imediato que poderiam lhe dar.

Rodrigo de Morais Guerra também se ocupa de analisar a ação sobre o espaço, mas seu esforço se desenvolve no sentido de uma reflexão teórica em torno de como diferentes historiadores pensaram esta categoria. Procurando distanciar-se de uma perspectiva na qual o espaço seria tão somente o palco da ação humana o autor enfrenta o desafio de contrastar nomes díspares como Koselleck, Foucault e Benedict Anderson, entre outros.

As políticas públicas são objeto em dois artigos distintos. Werbeth Serejo Belo se ocupa do sistema de proteção social em Portugal, no início do século XX. Joseanne Zingleara Soares Marinho tem por recortes o Piauí entre 1930 e 1945, estudando a saúde maternoinfantil. Em ambos os casos há uma preocupação com grupos muitas vezes excluídos da história, embora as categorias de análise sejam diferentes: o trabalho e a divisão social para o primeiro, o gênero para a segunda.

Finalmente, Elaine Ignácio e Erasmo Marcio Falcão nos oferecem um trabalho sobre educação patrimonial, o que permite a sempre salutar aproximação com a antropologia. Seu alvo é a importância das práticas culturais populares, incluindo as elaborações que fazem da sua memória social e consequentemente do seu pertencimento ao espaço social.

Para encerrar o volume, a resenha de Pedro Pio Fontineles Filho sobre a coletânea Nordeste do Brasil na II Guerra Mundial, retoma em alguma medida a História Militar proposta no dossiê, da mesma maneira que nos permite revisitar e repensar a experiência brasileira no conflito. Ao dedicar-se a uma fração do Brasil, o livro nos convida a conhecer histórias que foram por muito tempo ofuscadas pela narrativa centralista do centro-sul. O que o leitor encontra no presente volume, seja em artigos articulados pelo dossiê temático, seja em contribuições livres, é a necessidade de concatenarmos múltiplos pontos de vista para a compreensão dos fenômenos sociais do presente e do passado, sempre complexos e desafiadores.

Com votos de uma boa leitura,

Referências

CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vítor; KRAAY. Da história militar à “nova” história militar. In: Nova história militar brasileira. Rio de janeiro: Editora FGV, 2004. p. 11-42.

CUNHA, Paulo Ribeiro. Um clássico mais que contemporâneo. Prefácio. In: SODRÉ, Nelson Werneck. História militar do Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2010. p. 7-17.

RODRIGUES, Fernando da Silva; FERRAZ, Francisco; PINTO, Surama Conde Sá (orgs.). Introdução. In: História militar: novos caminhos e novas abordagens. Jundiaí / SP: Paco Editorial, 2015. p. 11-17.

Adriano Comissoli – Professor Doutor. (Docente Permanente do PPGH / UFSM)

Clarice Helena Santiago Lira – Mestra (Professora da UESPI / Doutoranda do PPGH / UFSM)


COMISSOLI, Adriano; LIRA, Clarice Helena Santiago. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.10, n.1, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão | Adriana Stemy

Da mesma forma que Caetano Veloso, em “Alegria, Alegria” passa a impressão de andar na rua registrando os acontecimentos de sua época como os “crimes de guerra”, as “cardinales bonitas” e as “caras de presidente”, Adrianna Setemy busca analisar os aspectos históricos que possam ter criado o cenário efervescente da década de 1960 no que diz respeito às mudanças de comportamento e a forma como as revistas se defrontaram com o problema da censura, em uma clara necessidade de compreender o tempo presente. Ao andar na rua, ler os jornais e conversar com pessoas, a autora reconhece que o Brasil se vê ameaçado novamente pela censura às artes e à liberdade de expressão. Os ataques ao Museu de Arte Moderna (MAM) por terem permitido a interação de uma criança com a performance de um homem nu e os projetos de lei apoiados no Programa Escola Sem Partido que buscam impor um fim à liberdade de cátedra com motivos de evitar uma “doutrinação ideológica” por parte dos professores sugere uma volta à censura, desta vez não pelas mãos de um regime militar, mas sim um estado que se pressupõe democrático.

A obra Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão parte da análise de como as revistas Manchete (Rio de Janeiro, 1952-2000) e Realidade (São Paulo, 1966-1976), de grande circulação durante os anos iniciais da ditadura militar, construíram uma revolução nos costumes da época, bem como a forma com que discutiram temas sobre comportamento e relacionamento que eram até então tabus morais. Seu recorte é o período entre 1964, início do regime militar brasileiro, e 1968, ano de promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) que representou o fim das liberdades individuais no país.

O livro, publicado em 2019 pela Editora Letra e Voz, contém três capítulos: o primeiro capítulo traz um panorama sobre a indústria editorial no Brasil na década de 1960, enquanto o segundo capítulo busca explicar a trajetória de ambas revistas e o terceiro passa a analisar sua produção.

Com pós-graduação – Pós-doutorado (2015), doutorado (2013) e mestrado (2008) – em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e graduada pela Universidade de Brasília (2005), a carreira acadêmica de Adrianna Cristina Lopes Setemy se pautou no estudo de temas relativos à censura e propaganda do Estado brasileiro no século XX, passando por temas como Direitos Humanos, memória social e violência política. O livro analisado faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida durante o mestrado em que a autora visa compreender a censura nos periódicos entre 1964 e 1985, durante o regime militar.

A principal tese do livro é a de que mesmo o período ditatorial tendo sido um momento crítico da história política do Brasil, os anos 1960 foram responsáveis por uma revolução nos costumes. As revistas são mais do que veículos de comunicação ou reprodutores do pensamento de determinados grupos, mas revelam transformações sociais, bem como se colocam como agentes sociais das transformações. Setemy busca dar fim à ideia de que a sociedade foi vítima do Estado opressor e construir uma interpretação relacional entre Estado e sociedade, em que predomina, em certos momentos, mecanismos de negociação.

As revistas Manchete e Realidade revelaram-se rico material para compreender as representações, discussões e disputas dessa década de efervescência, tanto no que tange ao momento cultural quanto à indústria editorial. Ambas as revistas, salvo características particulares, se dedicaram à abordagem de temas comportamentais e de interesse geral que, muitas vezes, desagradaram o regime militar. A revista semanal Manchete, da Editora Bloch, entrou no mercado e se destacou por seu aspecto visual e pela preocupação com a produção e diagramação de imagens, voltada para um público de classe média urbana. Já a revista mensal Realidade, da Editora Abril, tinha como alvo um público de classe média urbana mais intelectualizado, preocupado com a profundidade com que os assuntos eram tratados. O sucesso de ambas as revistas, principalmente da revista Realidade, foi grande, mas durou pouco tempo, característica que a autora analisa frente a problemas internos referentes aos conselhos editoriais de cada empresa, mas também devido as rápidas mudanças no mercado editorial que buscava atender um público cada vez mais diversificado e que, portanto, escolheu por difundir um número maior de revistas especializadas em detrimento das de interesses gerais.

Ao analisar o conteúdo das revistas, Setemy divide sua análise em três eixos temáticos: a nova realidade feminina, as transformações da juventude e o conflito de gerações e os problemas educacionais. Os eixos temáticos apresentam o questionamento dos papéis sociais tradicionais e um abrandamento do formalismo que envolvia tanto a vida pública quando a vida privada no que diz respeito à sexualidade, ao papel dos gêneros, a relação entre pais e filhos etc. A organização social da década de 1960 se mostrava mais fluida, privilegiando o indivíduo no espaço público e dissolvendo funções tradicionais pautadas em velhas normas e instituições que antes limitavam a atuação na sociedade.

Para Setemy, a análise das revistas Manchete e Realidade permitiu demonstrar que a sociedade, ao longo da segunda metade do século XX, foi adotando formas reguladoras mais brandas e que permitiam uma maior liberdade individual que, entretanto, não significou o fim dos princípios morais. Além disso, é possível perceber que os problemas antes restritos a esfera particular da sociedade se tornou assunto das páginas das revistas e vendidos comercialmente. Ainda que as revistas tratassem de temas que antes eram tabus e relegados ao mundo das relações privadas, contribuíram para a manutenção da estrutura vigente com matérias conservadoras que, algumas vezes, apontavam qualidades do regime militar como a manutenção da ordem e a necessidade de regras rígidas para a manutenção da segurança nacional.

A pesquisa de Setemy consegue demonstrar a dialética presente na relação entre produção e consumo que resultou no desenvolvimento de uma cultura de massa no Brasil. Se por um lado, o regime incentivou o desenvolvimento da indústria editorial, seu aparato repressivo, apresentado pelo Ato Institucional nº 5, interferiu no diálogo entre cultura e sociedade. A dialética também se apresenta no estudo das matérias publicadas pelas revistas Manchete e Realidade no que se refere à mudança de costume e liberdades individuais, pois mesmo que as regras morais não se apresentassem com tanta rigidez e a discussão acerca de assuntos privados estivesse presente nas matérias, as estruturas de longa duração se mantinham presentes na sociedade, prova disso é o fato de que as matérias nem sempre aprovavam as novidades, principalmente na questão da sexualidade e das drogas.

A autora escolhe terminar sua análise com o decreto do Ato Institucional nº 5 porque acredita que o fim das liberdades individuais colocou um fim na liberdade de imprensa, abrindo margem para uma possibilidade de análise pós-AI-5 de como essas revistas, em especial a Manchete que se mantém ativa até os anos 2000, lidaram com a forte censura e se não conseguiram manter sua essência revolucionária de forma sutil, além da possibilidade de análise das revistas de grande circulação em relação com as de menor alcance no que tange a apresentação e discussão de temas tabus.

Setemy, ao olhar para o passado em um momento de ebulição cultural e censura política, permite questionar o presente. Embora não vivamos em um regime ditatorial, as estruturas morais que se apresentavam na década de 1960 continuam se manifestando no século XXI e buscando vias democráticas de censura. A autora cita a contundente crítica ao Museu de Arte Moderna e a posterior censura da exposição “História da Sexualidade” no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mas podemos listar tantas outras ações governamentais que indicam a censura por parte do Estado, como a decisão judicial de remover do catálogo da plataforma de streaming Netflix o filme A primeira tentação de Cristo, especial de natal do grupo de humor Porta dos Fundos em que Jesus é retratado como homossexual. Tal ação demonstra que, não muito diferente da época ditatorial, a sociedade brasileira em pleno século XXI, apesar de parecer liberal, ainda mantém velhos tabus. Embora a democracia esteja consolidada, a censura permanece como um instrumento do conservadorismo e tem buscado, cada vez mais, atacar a educação e a cultura, como a ação de retirada dos pôsteres de filmes nacionais dos prédios da Ancine, a diminuição de verbas federais para a cultura e os projetos do Escola Sem Partido que têm se disseminado entre as regiões brasileiras. Essas ações sutis demonstram que o Estado está disposto a retaliar qualquer conduta que seja considerada oposta aos ideais conservadores do governo.

Marcela dos Santos Alves – Mestranda em História na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Câmpus de Assis. E-mail: marceladossantosalves@gmail.com


SETEMY, Adriana. Entre a revolução dos costumes e a ditadura militar: as cores e as dores de um país em convulsão. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: ALVES, Marcela dos Santos. A revolução dos costumes em tempos de censura: a Ditadura Militar e os periódicos Manchete e Realidade. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 252-255, jul./dez., 2019.

Acessar publicação original [DR]

História e Teoria Queer | Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes

O Livro História e teoria queer, organizado pelos historiadores Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes e publicado pela editora Devires em 2017, de 391 páginas, é uma obra que reúne, adotando critérios bem simplificados e simplificadores, textos de duas naturezas. Na primeira parte, denominada Teoria queer e historiografia: contribuições e debates, é apresentado em termos gerais um panorama da produção historiográfica referente às temáticas dos sujeitos inseridos nas complexas identidades tlbqg+, tais como corpo, gênero, heteronormatividade, normalização, e ainda suas articulações com questões raciais em processos de interpelação. Na segunda parte, de nome As potencialidades dos estudos queer: corpo, performances e representações, são trazidos alguns estudos mais específicos referentes a alguma dessas individualidades ou grupos.

A primeira parte da obra começa com o texto de Miguel Rodrigues de Souza Neto, Rotas desviantes no oco do mundo: desejo e performatividade no Brasil contemporâneo. O autor inicia a reflexão lembrando a vinda ao Brasil, em novembro de 2017, da filósofa estadunidense Judith Butler para participar de um seminário organizado pelo Sesc Pompeia, intitulado “Os fins da democracia”, e toda a comoção social causada, naquela ocasião. Vale lembrar que ela é acusada de ser uma das fundadoras do que se convencionou denominar, no Brasil e em outras partes do mundo, de “Ideologia de gênero”. Aí está uma das marcas que o leitor encontrará em boa parte dos escritos na obra: a relação entre a discussão teórica e algumas questões contemporâneas que eclodem socialmente. Ao longo do texto o autor nos apresenta um histórico do desenvolvimento dos estudos relacionados à sexualidade e ao gênero, a partir de disciplinas e lugares específicos, em áreas como a antropologia e a sociologia, até serem encampados pelos estudos históricos. Também nos é apresentado um certo histórico da produção dos discursos a respeito dos sujeitos desviados daquilo que é denominado de heteronormatividade, que parte de uma aproximação simplificadora entre sexo biológico e performatividade de gênero, e que, portanto, tende a normalizar os sujeitos de maneira binária. Tais discursos seguem certo percurso: começam a ser produzidos sobre os sujeitos, sobretudo por parte do universo religioso e jurista, e com uma percepção pejorativa, e em algum momento passa a ser produzida também por esses sujeitos, na medida em que são inseridos no discurso por meio de estudos que lhes conferem protagonismo.

O segundo texto, Normatizar para normalizar: uma análise queer dos regimes de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade, Bruno Brulon afirma que “a teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamento”. Nesse sentido sua reflexão faz caminho parecido à anterior, na medida em que apresenta o que denomina regime jurídico-religioso, um regime médico, um regime psicológico e um regime epistemológico como sistemas explicativos que, hegemonicamente, marginalizaram e silenciaram. Daí a necessidade, segundo o próprio Bruno, de historicizar o queer, e de queerizar a história, na medida em que isso permita oferecer espaço e fornecer voz a sujeitos até então totalmente subalternizados.

Na sequência, em Cisgeneridade e historiografia: um debate necessário, Fábio Henrique Lopes segue a mesma linha de reflexão, valendo-se de autores como Michel Foucault e Judith Butler. Ele inicia apresentando um elemento interessante, que é o próprio domínio do gênero masculino da delimitação do que deve ser estudado ao longo da consolidação da disciplina histórica. A partir daí, mostra a relevância dos estudos feministas para a ocupação de espaço por mulheres no campo das ciências humanas, passando pela denominada História das Mulheres. Por último, a incorporação da abordagem de gênero pela própria história. O autor lembra ainda como foi fundamental a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual na possibilidade de ampliação de atribuição de sentidos e nomeações de histórias, experiências, comportamentos, corporalidades, identidades e subjetividades.

Na sequência, como o texto Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Uma reflexão feminista sobre corpos negros e tecnologias da visualidade, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro reuniu as reflexões sobre teoria feminista e prática política às quais já dava andamento para a escrita a um evento impactante: o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes. Novamente a obra conecta teoria e realidade social. Mas a estratégia central da autora no trabalho do texto é a utilização de fontes iconográficas, lançando mão de fotografias de amas- de leite com crianças brancas no colo, no Brasil do século XIX, e contrastando com a imagem da vereadora Marielle, com o slogan “Marielle presente”. As relações dos lugares reservados aos corpos ao longo do tempo, a presença ou não do racismo e as suas configurações, tudo isso recebe abordagem a partir de tais documentos e, evidentemente, de aparato teórico.

Em Outras histórias de Clio: escrita da história e homossexualidades no Brasil, Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro refletem sobre a invisibilidade das figuras homossexuais na historiografia brasileira. Voltam a frisar como até a década de 1970, no Brasil, os registros sobre experiências homossexuais foram produzidos predominantemente pelos campos médico e policial, sendo raras as ocasiões nas quais o próprio sujeito produzia algum discurso sobre si. Lembram, a partir daí, a relevância da História das Mulheres, dos estudos de gênero, da figura de Foucault, como marcos para algumas alterações nesse sentido e, por fim, apresentam algumas produções no Brasil que resultam dessa mudança de perspectiva.

Fechando a primeira parte com Estudos queer na historiografia brasileira (2008-2016), Benedito Inácio Ribeiro Júnior realiza um inventário sobre tais estudos na historiografia recente e aponta a história como a área das ciências humanas que mais tempo demorou para inserir tais reflexões entre suas preocupações. Ele denomina a história, de maneira sarcástica, de “Tia velha”. A partir daí aponta para a relevância da interdisciplinaridade para que avanços ocorressem no sentido de abarcar outros sujeitos na historiografia, e por fim apresenta os ganhos por parte da própria disciplina histórica com a inclusão de certas temáticas.

A segunda parte do livro tem abordagens que visam romper com certa tendência contemporânea de identificação entre sexo e gênero, tendendo, portanto, a normalizar as subjetividades de maneira binária. Em Corpos migrantes: a presença da primeira geração de travestis brasileiras em paris, Marina Duarte procura analisar, como ela própria afirma, corpos que atravessam duas fronteiras fortemente estabelecidas: a do estado-nação e das relações de gênero. Para tanto a autora retorna à cidade de Paris antes da chegada das travestis, e procura compreendê-las também antes da ida a Paris. Quando as estuda lá, analisa inclusive como trafegam pelos espaços e, portanto, como elas o influenciam e são por ele influenciadas.

Na sequência, em Experiências trans: amizades, corpos e outros trânsitos, Rafael França Gonçalves dos Santos analisa, a partir de Michel Foucault, como a categoria da amizade poderia auxiliar na compreensão das sociabilidades homossexuais, sobretudo na formação de suas subjetividades e identidades ao longo da existência, já que a própria intervenção do corpo realizada por alguns deles necessita de identificação, apoio, laços estabelecidos. O autor insere na reflexão o conceito de rede, caro às formas de sociabilidade contemporâneas, assim como a questão da migração.

Em As “genis” representadas nas páginas do Lampião da Esquina, Débora de Souza Bueno Mosqueira realiza um estudo da importância das páginas desse periódico que circulou entre 1978 e 1981 para a construção de espaços de circulação de temas relativos à homossexualidade, integração dos gays em movimentos que defendessem seus direitos e denúncias relativas às violências cometidas contra homossexuais. A autora lembra, inclusive, de como mulheres foram incluídas na equipe do jornal a partir da pressão dos próprios leitores, em um processo dinâmico, e de como a mulher negra, brasileira e da periferia encontrou espaço em algumas de suas páginas.

Em Corpo anacrônico (sucedido por uma alegoria queer para as musas), Antonio de Lion lembra, parafraseando Carlos Alberto Vesentini, a dificuldade de um historiador ou historiadora para falar das lutas de agentes de um tempo que não é o seu. A partir daí, por meio de uma avaliação de como os estudos foram se desenvolvendo a partir, sobretudo, da interdisciplinaridade, desemboca na afirmação de que a contribuição dos estudos queer consiste justamente na capacidade que eles têm de promover uma ampliação dos olhares aos corpos que importam, para que, em algum momento, se possa compreender que todos os corpos importam.

Na sequência Kauan Amora Nunes, em O que Queer tem a ver com as calças: uma análise histórica do conflito entre críticas marxista e queer, nos apresenta uma relação, em geral no mínimo intranquila, entre estudos marxistas de um lado, que em geral entenderam que questões referentes a etnia ou gênero seriam menores se comparadas à questão da luta de classes, e a bibliografia queer do outro, que evidentemente critica a percepção marxista por lhe reduzir o nível de importância. O autor lembra, no caso brasileiro, da controversa relação entre o próprio PT, com orientações iniciais do marxismo, e a questão da homossexualidade.

Em “Vai malandra…seu corpo é instrumento [contra] violento”: Figurações da marginalidade no filme “A Rainha Diaba” (1973), Robson Pereira da Silva busca compreender em que medida a arte da década de 1970 pôde responder, com figurações de corpos marginais, às lesões efetuadas pelo Estado autoritário configurado na ditadura militar no Brasil, que vigorou entre 1964 e 1985. A partir disso o autor trabalha com possibilidade de ler, nas obras de arte, uma possível contraviolência praticada por uma diversidade de figuras da classe artística nacional.

Fechando a obra Aguinaldo Rodrigues Gomes e Peterson José de Oliveira, em Erosão das masculinidades e dos discursos marginais no app Grindr, buscam compreender a configuração das identidades e subjetividades de sujeitos que interagem nas redes sociais. A chamada heteronormatividade dominante se aplica, evidentemente, nos espaços virtuais, e a análise dos autores se realiza na busca de compreender até que ponto, em um aplicativo mais específico para um público homossexual, os sujeitos conseguem romper com tais parâmetros de visão de si e dos outros e até que ponto permanecem enredados na teia de representações hegemônicas.

A obra, a meu ver, pela multiplicidade de referenciais teóricos e de abordagens metodológicas sobre uma diversidade de temas pertinentes, é objeto valioso para aqueles que se dedicam a objetos teóricos que estejam nas fronteiras do que é tratado no livro, assim como para aqueles que, no mínimo, queiram ampliar sua compreensão sobre a complexa formação das subjetividades nas sociedades contemporâneas.

Cássio Rodrigues da Silveira – Possui graduação em Filosofia, mestrado em História e doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente leciona Filosofia no Instituto Irmã Teresa Valsé Pantellini, da Rede Salesiana de Escolas.


SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (Org.). História e Teoria Queer. Salvador: Devires, 2018. Resenha de: SILVEIRA, Cássio Rodrigues da. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 256-259, jul./dez., 2019.

Acessar publicação original [DR]

Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa – EAKIN (FH)

EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa identidade narrativa. São Paulo: Letra e Voz, 2019. Resenha de: MOREIRA, Igor Lemos. Pensar a autobiografia entre história, identidade e narrativa. Faces da História, Assis, v.6, n.2, p.566-572, jul./dez., 2019.

As discussões a respeito das relações entre identidades e narrativas são recorrentes nas Ciências Humanas e Sociais. Desde a virada linguística no século XX, os estudos em diferentes áreas do conhecimento como a história, a crítica literária, a psicanálise e a antropologia têm procurado compreender estruturas, práticas e processos que envolvem o ato narrativo, destacando constantemente sua relação com a formação de identidades/identificações e representações. Publicada em 2019, a obra Vivendo autobiograficamente: A construção de nossa identidade narrativa, do pesquisador estadunidense Paul John Eakin, contribui para o aperfeiçoamento das discussões sobre identidades e narrativas em áreas de estudos como práticas biográficas, cultura escrita e narrações contemporâneas.

Paul John Eakin é graduado em História e Literatura pela Universidade de Harvard, onde também cursou seu mestrado e doutorado. Especialista na área de autobiografias, é professor emérito da Indiana University, onde ocupou a cadeira Ruth N. Halls de Inglês. A obra, publicada originalmente pela Cornell University, foi lançada no Brasil pela editora Letra e Voz, sendo a primeira tradução para português de um trabalho do autor. O livro está estruturado com uma introdução e quatro capítulos, apresentando os seguintes eixos centrais: os processos de narrativa sobre si; a consciência autobiográfica; a construção identitária por meio das narrativas; e autobiográfica, memória e rememoração.

O primeiro capítulo, “Falando sobre nós mesmos: as regras do jogo”, parte das discussões sobre as narrativas de “si” na contemporaneidade, ao analisar articulações analisando articulações entre autobiografias e mídias (com destaque a programas televisivos como Oprah). Partindo de vasta revisão bibliográfica e passando por autores como Oliver Sacks, Eakin discute e identifica alguns processos envolvidos nas narrativas autorreferênciais construtivas de cada indivíduo. Entre os temas que gravitam este capítulo estão: os efeitos/elaborações de acontecimentos atuantes na constituição das subjetividades; as “regras” que constituem o ato narrativo e a identidade narrativa, que para o autor é algo característico de todo sujeito; a ideia de efeito de verdade, permitindo ao(a) leitor(a) observar um breve panorama da densidade de discussões que perpassam o debate sobre autobiografias. Neste capítulo, a discussão realizada destaca que “[…] quando se trata de nossas identidades, a narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas sim de maneira profunda, parte constituinte do eu.” (EAKIN, 2019, p. 18, grifo do autor)  A respeito desta discussão é interessante apontar que, na perspectiva do autor, a construção autobiográfica é um processo que lida com diferentes dimensões temporais de passados e experiências vividas, para além de ser um ato sempre do “tempo presente”, ou seja, do momento de elaboração da narrativa. Essa construção no presente é o que manifesta, ou representa, as identidades dos sujeitos que a constituem a partir de suas vivências, memórias, lembranças e projeções de futuro. Dentro desta chave é possível aproximar os atos narrativos da elaboração de acontecimentos (narração de fatos) que rompem com as temporalidades, sendo uma questão em comum entre o autor e as discussões de François Dosse (2013). Para o historiador francês, a elaboração de um acontecimento é sempre uma produção atual, do momento de comunicação, que articula uma forma de significação acerca da experiência, sem a qual o evento não existiria.

Eakin (2019) aproxima-se dessa leitura ao considerar que esses processos, muitas vezes, levam a incluir experiências coletivas, que nem sempre são frutos de vivências pessoais. Para exemplificar, o autor destaca o 11 de setembro de 2001, uma vez que inaugurou a possibilidade de ter civis como personagens do acontecimento, o que atesta “o desejo de pessoas comuns enxergarem por si mesmas o que aconteceu naquele dia” (EAKIN, 2019, p. 20). Ao analisar esse evento, Dosse (2013) observa o papel das mídias que fabricaram instantaneamente o acontecimento, ao mesmo tempo que o historicizavam. Nesse caso, Dosse e Eakin concordam que um acontecimento testemunhado, direta ou indiretamente, é fundamental na elaboração das identificações, relação possível através das narrativas que permitem ao sujeito inserir-se em contextos que não necessariamente tenha vivido ou experienciado diretamente.

Outro elemento central no capítulo, e que perpassa o restante da obra, é a noção de identidade narrativa e sua relação com a construção de histórias de vida e trajetórias. Para o autor, a identidade, elaborada a partir de identificações, é fruto de construções narrativas entendidas “[…] de um modo inescapável e profundo, elas são o que somos, pelo menos enquanto atores posicionados dentro do sistema de identidade narrativa que estrutura nossos arranjos sociais atuais.” (EAKIN, 2019, p. 10, grifo do autor). Nesta interpretação, a identidade narrativa envolve a estruturação de uma forma de construção autobiográfica que molda o sujeito, reestruturando o passado em uma perspectiva linear e progressiva dos fatos.

A perspectiva do autor enquadra-se no fato de a identidade narrativa ser acumuladora de mais elementos com o passar dos anos, resultado de uma construção da história dos sujeitos, constantemente resignificada. Esse processo estrutura uma narração intencionalmente progressiva sobre a trajetória do sujeito, sempre promovida pelo individualismo. Eakin (2019) destaca que as falhas na memória, vistas como esquecimentos, impactam diretamente na constituição dos relatos autobiográficos, fragilizando a construção dessa identidade narrativa. Essa relação pode ser vista dentro da noção de ipseidade de Paul Ricouer (1991), na qual os sujeitos moldam constantemente o passado de acordo com aquilo que os jogos entre memória e esquecimento permitem e não apenas o que a experiência vivida ou apreendida possibilita relatar1.

No capítulo seguinte, intitulado “Consciência autobiográfica: corpo, cérebro, eu e narrativa”, o autor analisa produções literárias e autobiográficas nas últimas décadas, discutindo como tem se elaborado diferentes formas de identidade narrativa no tempo. Partindo da compreensão de que tais obras são consumidas constantemente, na medida em que existe um desejo das sociedades contemporâneas pela identificação com um outro e pelo consumo de memórias, o autor propõe entender o lugar da ficção e da história no ato de “relatar a si mesmo”. Ao afirmar que “[…] a memória e a imaginação conspiram para reconstruir a verdade do passado” (EAKIN, 2019, p. 76), Eakin destaca que as memórias são perpassadas constantemente pela tensão entre ficção, verossimilhança e “verdade”.

Nos estudos historiográficos sobre autobiografias2 é importante, muito mais que a verdade dos fatos narrados, compreender os diferentes modos como indivíduos pensaram e sentiram os fatos de suas vidas. Enquanto o historiador e/ou biógrafo finda um compromisso com os fatos ocorridos ao narrar uma trajetória, o autobiógrafo tem sua lealdade associada ao “eu”/sujeito construído. Deste modo, a autobiografia apresenta-se como espaço de tensões e o historiador e/ou pesquisador dedicado ao seu estudo necessita de atenção redobrada para observar que a principal relação não se dá na verossimilhança, mas sim com o efeito da linguagem que representa um sujeito, que almeja determinado fim. Um elemento central para compreender esse efeito de linguagem é a noção de corpo, pois não somente é o espaço em que o “euhabita, como também é o que permite o indivíduo sentir e experienciar a vida.

Nesse sentido, é possível perceber que o principal argumento do autor centra-se na ideia de que a autobiografia está necessariamente associada à espetaculização dos indivíduos, ou seja, seu local é não apenas o presente, mas também o seu destinatário, “o outro”. Artiéres (1998), ao debater os processos de arquivamento do eu nas sociedades contemporâneas por meio das práticas de guarda e constituição de acervos pessoais, problematiza essa questão de maneira semelhante a Eakin. Ambos os autores, ao discutirem os processos autobiográficos, tencionam as relações temporais para além apenas de destacar o ato de escrita no presente ou sua intencionalidade futura. Dentro dessa perspectiva, construir uma autobiografia é elaborar uma narrativa sobre si e sobre um tempo não linear, apesar de sua sistematização geralmente ser, como forma de orientação e constituição das identidades.

O terceiro capítulo, “Trabalho identitário: pessoas fabricando histórias”, inicia uma segunda parte do livro no qual o autor procura construir breves relatos de estudos de caso. É possível perceber que Eakin divide seus estudos de caso em torno de dois grupos principais de documentações: (1) Obras autobiográficas e literárias de grande recepção, publicadas na idade moderna e na contemporaneidade; (2) Relatos de vidas cotidianas e de pessoas “ordinárias”. Para o primeiro caso de estudo, o autor retoma relatos autobiográficos desde o século XVIII e XIX, como os depoimentos recolhidos por Henry Mayhew (1881-1841), para debater as diferentes operações e processos que envolvem as autobiografias nos séculos XX e XXI.

Tomando o final da Idade Moderna francesa como ponto de partida, o autor historiciza a emergência das práticas de relatar a si mesmo e das autobiografias. Para Eakin (2019), apesar de os relatos escritos serem predominantemente ligados às elites, ainda assim é possível mapear a construção de narrativas autobiográficas através de leituras a contrapelo, como fez Mayhew. Embrenhando-se pelo que pode ser considerado um exercício de busca pela compreensão dos estratos de tempo (KOSELLECK, 2014), apesar de essa dessa relação não ser mencionada, Paul Eakin afirma que esse processo foi intensificado com a emergência dos meios digitais, criando sociedades cada vez mais narradoras de si. Redes sociais, a exemplo do Facebook e o MySpace foram fundamentais para lançar a centelha que favorece a alteração da identidade, uma vez que propiciam a mudança não somente de construções narrativas, mas também cria-se a necessidade constante do on-line, o que causa profunda sensação de aceleração do tempo e a consequente efemeridade da elaboração de uma identidade narrativa.

Nesse capítulo, o segundo conjunto de fontes utilizadas são os relatos do cotidiano de sujeitos considerados, pelo autor, como “comuns” ou “ordinários”. Diferentemente de uma análise exclusiva sobre como o cotidiano é narrado por esses sujeitos a partir dos livros autobiográficos, Eakin (2019, p. 114) afirma que seu interesse é compreender que a “atividade de construir eus e histórias de vida consiste ainda em mais uma prática cotidiana”, perspectiva elaborada através dos estudos de Michel de Certeau.

Michel de Certeau (2009) entende que o cotidiano é constantemente elaborado por meio de dinâmicas entre estruturas socioculturais e práticas individuais e (re)inventivas. Eakin analisa de que modo as práticas de relatar o cotidiano são elaboradas, dimensionando o consumo destas narrativas. Uma das ocorrências analisadas, e talvez o mais intrigante dos estudos de caso, é o do próprio pai do pesquisador, no qual, para além de pensar nos impactos da figura paterna na construção da identidade narrativa, discute de que maneira ele o influenciou a se interessar por autobiografias. Partindo dessa relação, o autor discute suas próprias narrativas autobiográficas, interrogando-se sobre a maneira como “modelos” de histórias e os relacionamentos interpessoais influenciam na constituição de identidades.

A discussão sobre o pai do autor prossegue no capítulo seguinte da obra, quando Eakin passa a realizar um relato autobiográfico. Em “Vivendo autobiograficamente”, capítulo que dá nome à obra, o autor mergulha em uma escrita autobiográfica sobre si e sua identidade narrativa. Se até essa altura do livro houve a discussão dos aspectos teóricos e metodológicos, bem como a realização de estudos de caso e a historicização de algumas práticas, o último capítulo apresenta o autor problematizando seu exercício cotidiano. Em sua leitura é possível perceber uma provocação intencional a quem “[…] se propõe a usar esse material como fonte para uma análise social deve perguntar […] de onde é que provem o entendimento de um indivíduo acerca do eu e da história de vida” (EAKIN, 2019, p. 130). Nesse sentido, para analisar autobiografias, Eakin diz que a experiência é fundamental para compreender suas práticas.

O autor utiliza a sua trajetória para refletir sobre o perfil adaptativo da história, dependendo sempre do narrador/elaborador, seu contexto e sua intencionalidade. Através dessa perspectiva, Eakin (2019, p. 158) defende que “[…] o discurso autobiográfico tem um papel decisivo no regime de responsabilização social que rege nossas vidas, e, nesse sentido, pode-se dizer que nossas identidades são socialmente construídas e reguladas”. Dentro dessa constatação é perceptível a centralidade do eu e de suas intenções, em que se pode considerar a narrativa como instrumento de legitimação de poder e de um determinado status ou lugar social no qual seu comunicante se insere. Essa questão pode ser interpretada através de outras perspectivas contemporâneas das ciências humanas que não citadas por Eakin, como, por exemplo, os conceitos de lócus de enunciação (GLISSANT, 2011). Nessa articulação, não apenas o passado mobilizado no presente da narração, mas também a categoria e diferentes noções de futuro são aspectos centrais.

É particularmente interessante observar que, ao chegar ao último capítulo da obra, o(a) leitor(a) tenha sido conduzido a perceber a forma de organização dos temas intensamente problematizados. Partindo inicialmente de uma discussão teórica sobre as questões autobiográficas, o autor procurou definir seus conceitos norteadores, abordando também suas historicidades, para aplicá-los em estudos de caso e, por fim, produzir sua própria identidade narrativa. Tal estratégia cria um espaço para que o(a) leitor(a) mobilize as discussões do próprio teórico, percebendo os processos apontados e também sua tese principal: a de que é impossível fugir da narrativa, pois a elaboração de identidades é um processo de construção de histórias no presente a partir de suas relações com o tempo.

Referências

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 21, p. 9-34, jan./jun. 1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006. p. 183-191.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. São Paulo: EdUNESP, 2013.

GLISSANT, Édouard. Teorias. In: GLISSANT, Édouard (Org.). Poética da relação. Portugal: Porto Editora, 2011. p. 127-170.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-RJ, 2014.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

Notas

1 Essa discussão encontra-se no texto de Pierre Bourdieu (2006) sobre a “Ilusão Biográfica”, conceito mobilizado pelo sociólogo para alertar aos pesquisadores na área de biografias e trajetórias, assim como os biógrafos, a respeito dos perigos da linearidade e das construções teleológicas da narrativa de vida de sujeitos. Em função da proximidade com os indivíduos biografados, e o processo de pesquisa que permite ao biógrafo conhecer na maioria dos casos o desfecho de sua obra antes mesmo de iniciar sua narrativa, Bourdieu reafirma a necessidade de problematização das trajetórias, compreendendo os processos, percursos e enfrentamentos que marcam a vida dos indivíduos.

Igor Lemos Moreira –  Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Bolsista PROMOP/UDESC, estado de Santa Catarina (SC), Brasil. Mestre e Graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: igorlemoreira@gmail.com.

Acessar publicação original

[IF]

Complexidade econômica: uma nova perspectiva para entender a antiga questão da riqueza das nações | Paulo Gala

Em “Complexidade econômica”, Paulo Gala aborda a complexidade e sofisticação produtiva como elementos propulsores do desenvolvimento econômico. Lança sobre tal configuração os olhares do estruturalismo econômico, presente nos chamados “clássicos do desenvolvimento econômico”.

Dessa forma, o autor busca entender a complexidade econômica como uma estrutura necessária para o desenvolvimento dos países. Em outros termos, conforme conceito demonstrado por Gala, a relação entre a ubiquidade e diversificação produtiva são necessárias para que se alimente um movimento autônomo de aumento da renda e bem-estar das massas. Leia Mais

Ler História. Lisboa, n.75, 2019.

Projetos constitucionais fracassados

Portugal e Brasil, século XX

  • José Vicente Serrão
  • Editorial[Texto integral]

Dossier: Projetos constitucionais fracassados, Portugal e Brasil, século XX

Outros artigos

Espelho de Clio

Recensões

Olhar sobre a história das Áfricas: religião, educação e sociedade | Thiago Henrique Sampaio e Patrícia Teixeira Santos

A obra Olhar sobre a História das Áfricas: religião, educação e sociedade aqui resenhada é resultado de reflexões desenvolvidas pelo grupo internacional de pesquisa Fontes e Pesquisas sobre as missões Cristãs na África, arquivos e acervos, cuja coordenação no Brasil se dá pelas Professoras Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) e Lucia Helena Oliveira Silva (UNESP) e na parte internacional, pela Professora Elvira Cunha Azevedo Mea (CITCEM Universidade do Porto).

A coletânea foi publicada em 2019 pela Editora Prismas e organizada por Thiago Henrique Sampaio (UNESP), Patrícia Teixeira Santos (UNIFESP) e Lucia Helena Oliveira Silva (UNESP), agregando 17 artigos agrupados em duas partes: a primeira intitulada Missões e missionários no continente africano, a qual trata da história das missões dentro do continente africano e a segunda Patrimônio, Acervos e Religiosidade: práticas e representações das missões, que aborda as possibilidades de pesquisas com acervos, documentos, patrimônios e instituições missionárias. Leia Mais

Política e Administração no Brasil Colonial / Mnemosine Revista / 2019

O dossiê que ora a Revista Mnemosine apresenta tem como temática a Política e administração no Reino e Brasil colonial tem como propósito apresentar um conjunto de estudos voltados para uma temática tão antiga quanto atual. Tomando como fio condutor a política e administração no período moderno, pretende-se contemplar uma variedade de trabalhos com recortes geográficos e temporais distintos, apresentando perspectivas e análises com ênfase nos séculos XVIIXVIII. Desta feita, o dossiê reúne estudos que pretendem iluminar debates e reflexões acerca da administração reinol e colonial de forma plural, expressando assim a multiplicidade dos estudos, sem jamais pretender esgotar as possibilidades de análises.

Cabe ressaltar que todos os artigos são de jovens doutores e doutorandos oriundos de universidades do Nordeste, região que nos últimos 20 anos recebeu investimentos maciços na educação, refletindo-se na abertura e melhoramento de cursos de pós-graduação na área de História. Apesar de alguns terem feito o doutorado ou estarem cursando o programa de doutoramento em universidades sudestinas, como USP, UFRJ e UFF, percebe-se a maturidade construída ainda na graduação, por meio de laboratórios e grupos de pesquisas das universidades do nordeste.

E é sobre as chamadas Capitanias do Norte do Estado do Brasil que o dossiê se concentra, apesar de um artigo que compõem a coletânea ser sobre o reino de Portugal. Muito tem crescido a produção local de temas que interessam não somente à região das Capitanias do Norte, mas de fato aos estudiosos do império ultramarino português. A jurisdição é um termo tão naturalizado que muitas vezes, ao ser utilizado, o receptor logo se remete a um pedaço de terra, algo material ou, em outras palavras, a uma coisa ou bem tangível por meio de poderes delegados. O dossiê, entretanto, pretende inovar ao pensar em jurisdição como um termo mais amplo. A pluralidade das questões relativas à política e administração se expressa também quando o recorte está centrado no governo das capitanias ou das câmaras, tema que acabou por ser foco das pesquisas incluídas no dossiê, sem se favorecer, entretanto, a predominância de uma única visão.

Assim, o dossiê é composto por sete artigos escritos por 3 doutores e 4 doutorandos. Inicia-se com uma sofisticada análise sobre a cerimônia de preito e menagem, sobretudo aquelas prestadas pelos capitães-mores das Capitanias do Norte do Estado do Brasil, e as implicações deste ritual na arquitetura político-jurisdicional de subordinação das circunscrições administrativas. Escrito por Marcos Arthur Viana da Fonseca, doutorando na UERJ, o ensaio Faço preito e homenagem a Sua Majestade e a Vossa Senhoria em suas mãos”: a cerimônia de preito e menagem e as jurisdições nas Capitanias do Norte (1654-1700) é uma primorosa análise da cerimônia, por meio de uma erudição das fontes e bibliografia. Os dois artigos seguintes também abordam a política e administração das Capitanias do Norte. O artigo do professor Thiago Alves Dias, da Universidade de Pernambuco, intitulado O mito das capitanias anexas: aspectos da política colonial e da administração das conquistas no norte do Estado do Brasil, séc. XVII e XVIII traz uma provocante reflexão sobre o termo anexas, tão controverso para as capitanias vizinhas a Pernambuco. Baseando-se em aspectos econômicos, o autor procura mostrar que o fim da subordinação política com a desanexação ocorrida em fins do século XVIII, para os casos da Paraíba e Ceará, e início do XIX para o Rio Grande, não alteraram o controle econômico exercido pela capitania de Pernambuco. O terceiro artigo, Capitães-mores em movimento: perfil e trajetória dos governantes das capitanias do Rio Grande e Ceará (1656 – 1754), escrito pelo doutorando da UERJ Leonardo Paiva de Oliveira, faz um estudo comparativo das trajetórias dos governantes coloniais, tendo como foco os candidatos ao posto de capitão-mor das capitanias do Ceará e do Rio Grande e mostra interessantes semelhanças e peculiaridades de cada capitania. O quarto trabalho, Ouvidores, capitães-mores e governadores no esquadrinhamento do território colonial (Sertões do Norte, século XVIII), do professor da UERN, Leonardo Cândido Rolim, desloca-se mais para o oeste, analisando a região entre as fronteiras do Ceará e Piauí, que denomina de Sertões do Norte, também analisa a atuação dos governantes na conformação do território destes sertões. Assim, esse primeiro conjunto teve como foco a governança das capitanias, analisando-se as jurisdições, trajetórias, questões econômicas e conformação de territórios.

O segundo conjunto de artigos é iniciado pelo trabalho da professora Érica Lôpo de Araújo, da UFPI, A Restauração portuguesa e a guerra no reino: entre a corte lisboeta e a província do Alentejo (1642-1643) retorna à primeira metade do século XVII para discutir os problemas políticos envolvendo os militares em plena Guerra de Restauração na região do Alentejo. Posteriormente, no artigo Uma cidade entre porcos, maganos, becos, rios e casas de taipa: administração e políticas urbanas camarárias na cidade do Natal (primeira metade do século XVIII) do doutorando da UFF, Kleyson Bruno Chaves Barbosa foca na administração camarária, trazendo luz ao cotidiano camarário ao abordar os problemas do dia-a-dia que as autoridades enfrentavam. Por último, o trabalho da doutoranda da UFPE, Lana Camila Gomes de Araújo e professora da UFCG, Juciene Ricarte Apolinário, intitulado Entre o péssimo e o bom governo de Pedro Monteiro de Macedo: a administração da capitania da paraíba (1734 – 1744) é abordado os problemas que o governante Pedro Monteiro de Macedo vivenciou na Capitania da Paraíba, mostrando a complexidade do jogo político, envolvendo diversos agentes na lida diária da governação.

O dossiê, portanto, intenta contribuir para a discussão da Política e administração no Brasil colonial por uma perspectiva mais ampla, reconhecendo a pluralidade e excelência dos trabalhos realizados sobre a governança das Capitanias do Norte do Estado do Brasil. Esperemos que o leitor aprecie estas análises.

Carmen Alveal – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 21 de fevereiro de 2020


ALVEAL, Carmen. Apresentação. Mnemosine Revista, Campina Grande – PB, v.10, n.2, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Domínios Teóricos da História Social e da Educação Histórica / Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino / 2019

Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino tem o prazer de apresentar ao público mais um número. São sete artigos e uma entrevista com temas que refletem os domínios teóricos da História Social e da Educação Histórica. Convém realçar que os textos aqui reunidos traduzem a atenção e o cuidado dos seus autores em provocar discussões que contribuam para o avanço e difusão de informações atinentes aos domínios teóricos.

Compõem a Seção de Artigos textos inéditos que reforçam a perspectiva interdisciplinar deste periódico, sendo eles: “A Representação da Cavalaria Medieval na Trilogia “O Senhor dos Anéis”, assinado por Geisy Stephany Lauton da Silva e Daniela Moura Rocha de Souza; “Há uma Lei específica que cria a profissão de professor no Brasil?” Escrito por Genivaldo Cruz Santos; “Alegorias da Justiça e a República Brasileira (Exercício de Leitura Iconológica), de autoria de Manuel Rolph Cabeceiras, Hiram Alem, Mateus Martins do Nascimento, Douglas Magalhães Almeida, José Luiz Rebelo e Renan Cardoso Galvão; “Espaço Urbano de Vitória da Conquista: lugar de oportunidades. Para quem?”, texto que tem como autores Priscilla Sandes Ferraz e Vilomar Sandes Sampaio; “Evolução e Expansão da Educação Superior no Brasil: uma revisão bibliográfica”, de autoria de Iracema Oliveira Lima e Sandra Regina Arruda; “O Sistema de Seleção Unificada (SISU) e a ausência de políticas de permanência estudantil: análise sobre o crescimento do número de convocações na Universidade do Sudoeste da Bahia – UESB, Campus de Vitória da Conquista – BA”, tendo como autores Ari Fernandes Santos Nogueira, Sheila de Araújo Paiva e Iracema Oliveira Lima; o artigo “Uma dose de História: cachaça de alambique e aguardente de coluna”, Tendo como autores Leonardo Milani Avelar Rodrigues, Andrea Gomes da Silva, Patrícia Beltrão Lessa Constant, Cristiane Patrícia de Oliveira e Alexandre Galvão Carvalho.

Além da seção de artigos, a Revista apresenta uma entrevista com o Professor Demerval Saviani. Fruto de uma conversa estabelecida com a professora Sidnay Fernandes dos Santos, por ocasião do V Seminário Interdisciplinar de Ensino, Extensão e Pesquisa, ocorrido na Uneb, Campus VI, Caetité, nos dias 28, 29 e 30 agosto de 2019, a entrevista apresenta sua trajetória como pesquisador e militante da educação, além de uma série de considerações sobre a importância da Educação como um campo relevante de pesquisa e combate por uma sociedade justa.

Como sempre, desejamos a todos aqueles que acessam e colaboram com a Revista uma excelente leitura! Nossa expectativa habitual é a de facultar aos leitores e aos pesquisadores debates que interessem às Ciências Sociais como a cultura, as diversas linguagens, a educação, dentre outros temas que se encontram em consonância com o que se propõe este periódico.

Genilson Ferreira da Silva

Márcia Cristina Lacerda Ribeiro


SILVA, Genilson Ferreira da; RIBEIRO, Márcia Cristina Lacerda. Editorial. Perspectivas e Diálogos – Revista de História Social e Práticas de Ensino. Caetité, v.2, n.2, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Congadas: Memória e Tradição Afro-Brasileira / Revista Mosaico / 2019

Esse volume da Revista Mosaico reúne diversos artigos que discutem a religiosidade popular, a partir de seu viés afrodescendente, tendo como palco as irmandades católicas, dentre elas as negras. Os artigos perpassam pelos diversos festejos populares nascidos ou ressignificados no Brasil-colônia e, que trazem em seus ritos vestígios da África negra, fundidos com o catolicismo lusitano dentre eles; as Congadas, os Congos as folias, suas indumentárias, seus capacetes, coroas e patuás. Para tanto, antes de apresentar os artigos que compõem esse dossiê, se faz necessário algumas reflexões sobre quem são os reis negros reverenciados durante os festejos de congada, congo e outros folguetos, apresentados neste dossiê; e sobre os resultados da diáspora africana em terras brasileiras, no que tange à religiosidade popular e seus desdobramentos para o afro-catolicismo.

Um dos muitos resultados da diáspora africana é a presença de reis negros nas Américas, representantes de grupos étnicos específicos, presentes no interior de quilombos e de irmandades católicas negras. Nessas irmandades também os reis negros se tornam referências daquilo que no Brasil, tempos depois, resulta nos festejos das Congadas. Os estudos das situações em que existiram esses reis nas Américas esclareceram como africanos e europeus interagiram no contexto da colonização americana sob um regime escravista, criando novas perspectivas para se reescrever a história desse período dando voz a outros protagonistas do processo de construção da nação brasileira.

Ao abordar o papel dos reis na diáspora brasileira, Soares (2006) afirma que, na cosmogonia Iorubá [1], a monarquia é uma instituição criada por Deus. O autor cita o exemplo de Xangô [2], que representa a figura do grande rei divinizado após sua morte. Seus atributos são: força, poder, justiça e virilidade. Nos ritos do Candomblé, a realeza é dramatizada e materializada em determinados signos distintivos como o cajado, o cetro e a coroa. A atribuição de títulos de reis e rainhas a pais e mães de santo do Candomblé e Umbanda demonstra as ressignificações pelas quais os termos reis e rainhas passaram nas novas terras. Perceptíveis são o prestígio e a relação dos reis com o sagrado, ressaltando a importância e a consideração desse termo e da relação desses reis com seus súditos reais e imaginários (SOARES, 2006). Essa relação entre rei e súditos, vivenciadas em terras brasileiras pelos primeiros africanos escravizados, é uma tentativa de os africanos reinventarem seu país nessas novas terras, buscando, mesmo de forma empírica, transpor sua cultura para aquela realidade subalternizada (SOUZA, 2002).

Esses reis que vieram durante o período escravocrata contribuíram para uma transposição cultural vivenciada dentro dos Quilombos e das irmandades negras. Nesses espaços, esses reis buscavam exercer sua liderança e reconstruir sua identidade, mesmo que de forma simbólica. A transposição simbólica é comunicada por meio da cultura, entendida como um sistema simbólico orientador das ações humanas. Segundo alguns pesquisadores como Mauss (2003), Brandão (1985), Geertz (1989), Laraia (2006), dentre outros, é a capacidade de o ser humano simbolizar a experiência vivida que diferenciou o homem das outras espécies. Os objetos empíricos, sons, gestos, rituais, instrumentos de trabalho e alimentos não são apenas respostas às necessidades básicas do ser humano, eles comunicam mensagens e possibilitam interações entre pessoas (GEERTZ, 1989). A cultura funciona em uma comunidade de maneira análoga ao sistema linguístico. Como conjunto de expressões sonoras, vocalizadas, a língua é decodificável apenas pela comunidade de fala. Da mesma forma, as ações humanas orientam-se pelos códigos informados pela cultura (GEERTZ, 1989 apud SIMONI, 2017).

Nesse contexto, a cultura afro-brasileira, eixo deste dossiê é tributária da concepção de cultura como linguagem simbólica. Dessa maneira, concebe-se a cultura afro-brasileira como um sistema simbólico orientador das práticas sociais referenciadas em princípios ancestrais africanos. Esses princípios, conforme esclarecem Mintz e Price (1992), funcionaram na diáspora como elementos de uma sintaxe. Os referenciais simbólicos são acionados de maneira seletiva e contextual, em um ambiente mutável. As práticas culturais afro-americanas, embora orientadas pelos referenciais africanos, não são, portanto, reproduções ou cópias da África nas Américas, mas reelaborações de caráter dinâmico, flexível, plástico e em constante mutação, a exemplo dos cortejos e batuques introduzidos nas Américas pelos africanos. Há outras manifestações culturais e religiosas nascidas nas Américas que possuem origem africana como, por exemplo, a música, a dança, a língua, além dos saberes e fazeres perceptíveis nos comportamentos recriados de acordo com cada região das Américas (MINTZ; PRICE, 1992).

A cultura afro-brasileira é rica em música e dança que se estruturam a partir de duas matrizes básicas africanas, Congolesa e iorubana. A primeira (Congolesa) sustenta a espinha dorsal dessa música, que tem no samba sua face mais exposta. A segunda (iorubana) molda, principalmente, a música religiosa afro-brasileira e os estilos dela são decorrentes de folguedos, a exemplo de Congadas, Folias, Afoxés e também dos Candomblés, Umbanda e suas diversas ramificações religiosas. Alguns desses estilos são marcados por cortejos de rua, como Afoxés, Congadas, Folias, Folguedos que preservam, em seus instrumentos, a musicalidade e a dança desses dois grupos africanos (LOPES, 2004 apud SIMONI, 2017).

Os Folguedos são festas de caráter popular cuja principal característica é a presença de música, dança e representação teatral. Grande parte dos folguedos possui origem religiosa e raízes culturais dos povos que formaram nossa cultura (africanos, portugueses, indígenas). Contudo, muitos folguedos foram, com o passar dos anos, incorporando mudanças culturais e adicionando às festas novas coreografias e vestimentas, máscaras, colares, turbantes, fitas e roupas coloridas (REIS, 1996). Quanto as Folias se destacam as do Divino Espírito Santo e a dos Reis Magos, ainda assim a mais popular é a dos três reis magos, que consiste na dramatização de rua em que é representada a viagem bíblica dos três reis magos, que ocorre entre o natal e o dia 6 de janeiro (Dia de Reis).

Quanto aos Afoxés, consistem em um cortejo de rua criado para homenagear os Orixás [3] femininos e está diretamente ligado aos rituais do candomblé (SOUZA, 2006). O candomblé é uma religião dos orixás formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos Iorubá também chamados de Nagô, com influências de costumes trazidos por grupos Fons, aqui denominados Jejes, e residualmente por grupos africanos minoritários. O candomblé Iorubá ou Jeje-nagô agregou, desde o início, aspectos culturais originários de diferentes cidades iorubanas, originando-se diferentes ritos ou nações de candomblé, predominando em cada nação tradições e nomes das cidades ou região: Queto, Ijexá, Efã (LIMA, 1984, apud SILVEIRA, 2003). A história escrita em nosso território registrou a presença e a fecundidade desses ritos, e a preponderância das crenças de origem Iorubá. Como assegura Souza;

Outro conjunto importante de práticas e crenças mágico-religiosas de matrizes africanas que germinou no Brasil foram os candomblés, sendo do século XIX as primeiras referências a eles. Apesar de o termo candomblé pertencer à língua banto, no Brasil se refere a cultos religiosos de origem iorubá e daomana. Neles, as principais entidades sobrenaturais são os orixás, quando a influência iorubá, também chamados de voduns, quando na casa de santo a influência maior é daomeana. Na Bahia, os iorubás também ficaram conhecidos como nagôs, e os daomeanos como jejês (SOUZA, 2006, p. 115).

Os cortejos de rua ligados à religiosidade de matriz africana apresentam algumas caraterísticas que se difundem, mesmo quando os mesmos têm como base os santos católicos, um destes são os Afoxés ou candomblés de rua, termo usado para designar cortejos religiosos que saem as ruas em devoção aos Orixás quase sempre femininos. Esses cortejos são ressignificados, por vezes, nos cortejos de folias e congados. O Cortejo / afoxés sempre ligados às casas de santo, enquanto as folias e Congadas estão ligadas diretamente às irmandades e aos santos devocionais e à igreja católica, ainda assim ambos se difundem em partes dos ritos indumentárias.

Em se tratando de irmandades, essas constituíram-se no período escravagista, tendo sido mantidas por escravos e libertos. Tinham como característica a realização de ajuda mútua de empréstimos e adiantamento para as alforrias de escravizados. Essas irmandades tinham a particularidade de escolher os seus “reis e rainhas Congos” durante as festas em homenagem aos seus santos de devoção (VASCONCELOS, 1996). Dentre as irmandades negras, as que mais se destacaram foram aquelas em devoção a Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, São Elesbão, São Bento. Não há um registro exato do início dessas devoções, mas alguns registros informam que, desde 1639, as devoções a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito são vivenciadas no Rio de Janeiro (SOARES, 2000 apud SIMONI, 2017).

Pertencer a uma irmandade de pretos era para os negros escravizados a fomentação dos cerimoniais de Congada que, hoje, são vistos por pesquisadores como redutos de fusionismo afro-cristão (SOUZA, 2012). Nesses cerimoniais os negros atualizavam crenças africanas por intermédio de uma codificação cristã, e continuam usando tal codificação para, agora, tirar da marginalidade social essa manifestação de fé e cultura afros.

Nos bastidores das irmandades, sob a barroca expressão católica, essas pessoas encontravam um espaço alternativo para a perpetuação de valores, disposições emocionais, orientações existenciais, concepções sobre a pessoa, formas de expressão, gestualidade etc., próprias das culturas africanas, aspectos esses que se imbricavam indissociavelmente à sua religiosidade. Desse modo, com muita frequência, as irmandades encobriram práticas que não se ajustavam aos cânones e regras da teologia católica: os calundus, os congados, dentre outros (PARÉS, 2007, p. 111).

Era durante os festejos que os negros introduziam parte de suas práticas religiosas. Algumas manifestações afro-religiosas surgiram e se consolidaram resguardadas pelas condecorações (a exemplo dos brasões, patuás, alguns conhecidos como Bentinhos) e fé cristã imposta pelos dominadores, em um misto de catolicismo popular e cultos afro, aqui concebidos como afrocatolicismos. Esse catolicismo popular faz parte do que os cientistas da religião como Azzi (1977) chamam de religiosidade popular. A esse respeito Brandão (1986) discorre que as religiões descritas como populares são o catolicismo rústico do campesinato, o pentecostalismo tradicional, as modalidades arcaicas e atuais de cultos afro-brasileiros e os cultos messiânicos.

Burke (1989), por sua vez, afirma que os africanos contribuíram para o surgimento das religiões populares, entre elas, o catolicismo popular, nascidas do processo de aculturação vivenciado por africanos, indígenas e europeus em terras brasileiras; o autor em seu estudo acerca da cultura popular na modernidade discute sobre os conceitos de popular e elite, separadamente, mas recusa uma concepção polarizada entre eles: A fronteira entre as várias culturas do povo e as culturas das elites (e estas eram tão variadas quanto aquelas) é vaga e por isso a atenção dos estudiosos do assunto deveria concentrar-se na interação e não na divisão entre elas

[…] bi-culturalidade das elites, suas tentativas de ‘reformar’ a cultura popular, sua ‘retirada’ delas e finalmente sua ‘descoberta’, ou mais exatamente ‘redescoberta’ da cultura do povo (BURKE, 1989, p. 21).

Diante deste enunciado, e com ênfase nas diversas formas da religiosidade popular nascida como resultado do processo diaspórico dos africanos no Brasil, concebemos e apresentamos este importante dossiê que se propõem a discutir temas como este em uma perspectiva histórica cultural discorrendo sobre memórias, tradições e religiosidades afrobrasileiras. O mesmo está dividido em duas partes: a primeira gira em torno das formas e expressões das religiosidades populares; a segunda parte aborda a questão das religiosidades afro descendentes, envolvendo as irmandades, as congadas e os reinados no Brasil.

Os artigos da primeira parte abordam a formação das festividades católicas praticadas no Brasil desde o período colonial, salientando a importância desses festejos para formação identitária nacional, assim o artigo A religiosidade nos distritos de souzânia e interlândia: estudo de caso das folias do divino de autoria de Luan Felipe Coelho e Poliene Soares Bicalho, parte dos festejos em homenagem ao Divino Espírito Santo para compreender a formação sociocultural dos distritos de Souzânia e Interlândia, para tanto, trabalham com observação in loco e entrevistas. Partem de autores que abordam o conceito de cultura, a exemplo de Larraia (1986) e Santos (1994), perpassando pelo conceito de sagrado, profano e espaços sacralizados de Eliade (1992), de identidades de Stuart Hall (1986) e, de religiosidade popular, folias e romarias tendo como base Brandão (2004), além da história de Goiás e memórias goianas trabalhadas por Chaúl (2011). O artigo também expõe, a partir das representações, as estratégias e negociações cotidianas que permitiram a “existência simbólica” de elementos da cultura africana e seus descendentes nas festividades, isso fica implícito nas descrições do ritual. O artigo, por fim, apresenta originalidade, é fluido e coeso, o que torna a leitura, além de instrutiva, prazerosa.

Ainda, seguindo as Folias, o segundo artigo sob o título A materialidade da fé: sacralização dos objetos nas folias de reis de Itaguari – Go, do autor Igor Junqueira lança um olhar sobre a materialidade do sagrado nas Folias de Reis de Itaguari no estado de Goiás, o autor apresenta a permanência deste festejo local como forma de resistência cultural frente aos processos modernizadores que adentram o município reconhecido como polo têxtil. O festejo é apresentado nesse artigo através das crenças, costumes e tradições que acontecem no município durante os festejos da folia de Reis. O autor percebe uma dicotomia na representação dos objetos, de um lado os retrata como demarcadores das colonialidades “do poder” e “do saber”, e os evidencia como materialidades ativas, marcadoras de identidade cultural, em oposição ao pensamento colonial em expansão relacionando-os a um saber popular muito distinto, repleto de particularidades que denotam uma tradição pautada no catolicismo popular, onde a materialidade é eleita pelo autor como chave para compreensão desses festejos.

A segunda parte do dossiê versa sobre religiosidades afrodescendentes: irmandades, congadas e reinados no Brasil. Os artigos que compõem esse tópico expõem, a partir de algumas das diversas expressões afro-católicas nascidas no país, representações, estratégias, e negociações que permitiram a permanência física e simbólica das religiões de matriz africana nos festejos e rituais católicos. Expõem, assim, o “fracasso” dos colonizadores em excluir as heranças históricas cultural dos povos africanos na formação da identidade brasileira com ênfase na religiosidade. No primeiro artigo sob o título: Congadas e reinados celebrações de um catolicismo popular, africano e brasileiro; o autor Marcos Antônio Fontes de Sá apresenta uma análise das origens dos festejos de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, apontado algumas das variações estruturais e ritualísticas dessa devoção em vários estados, o autor tem como eixo central de análise seus dez anos de pesquisa e documentação fotográfica; suas pesquisas ressaltam, nesses festejos, a relevante presença da cultura dos povos conhecidos como Bantu desde a origem, até os ritos atuais.

O diferencial deste artigo está na riqueza das imagens apresentadas e na análise do autor sob a presença da cultura Bantu nos festejos; através das imagens o autor apresenta as variações das vestimentas adornos e rituais vivenciados em cada cidade / estado apresentado; o autor, em primeira instância, nos convida a conhecer a cosmovisão dos povos Bantu, sua relação e devoção com os “mortos” chamados ancestrais; as riquezas dos cultos, a visão do processo de” travessia” do atlântico vivenciada pelos escravizados, tanto a simbólica quanto real. O autor surpreende com a análise através de um gráfico da “Kalunga” e sua relação com os espelhos usados como adorno pelos devotos dos santos pretos, relacionando-os a um portal que liga os dois mundos vivos / mortos. O texto, como todos os outros deste dossiê, merece uma leitura minuciosa pela riqueza das pesquisas apresentadas e pelos diálogos apresentados pelos autores.

O segundo artigo desse tópico sob o título de Fé e festividades nas irmandades negras no interior do Brasil (Re) afirmação identitária afrodiaspórica de autoria de Rosinalda Côrrea da Silva Simoni e Noeci Carvalho Messias, parte das pesquisas de doutorado das autoras realizadas em tempos e estados diferentes. Apresenta as reflexões e o entrelaçamento do contexto histórico de nascimento e perpetuação das irmandades negras e seus festejos nos espaços estudados. As autoras apontam em suas reflexões a importância das irmandades e festejos para seus praticantes, como uma manifestação de fé e de (re) afirmação identitária no processo diásporico. Na reflexão sob as influências africanas na formação das irmandades negras as autoras partem da obra de Mary Karasch (2000) para salientar que estas associações eram as instituições socioreligiosas mais relevantes do início do século XIX; seguindo o diálogo para o contexto regional elas citam Moraes (2006), e sua reflexão sobre religiosidade como fator de profundo enraizamento social entre os habitantes dos Guayazes.

Em seguida as autoras apontam as irmandades como espaço de resistência sócio cultural ao sistema de opressão vigente no período respaldadas em pesquisas de alguns africanistas a exemplo de Páres (2007), Munanga (2012), e Souza (2012). No tópico seguinte dialoga-se com os conceitos de sincretismo religioso no Brasil apresentando o mesmo como elemento primordial para se compreender a construção cultural identitária dos afrodescendentes, dentre elas as identidades religiosas. Assim, o artigo apresenta um passeio sobre o Brasil setecentista e o nascimento dos festejos dentro das irmandades, com ênfases nos conflitos e perseguições sofridas pelos adeptos. Neste contexto é apresentado também as estruturas das festas e os cortejos que a compõem, além da reflexão sob os reinados africanos e suas representações nos festejos comemorativos. O artigo, que teve como uma das bases as memórias e as oralidades, tem nas entrevistas transcritas e diálogos um de seus diferenciais, partindo das narrativas coletadas as autoras discorrem sobre a importância das memórias familiares para consolidação dessa manifestação de fé que perpassa a identidade cultural dos grupos envolvidos.

E por fim, o último artigo deste dossiê, Memória e Identidade na festa em Louvor a nossa senhora do Rosário de Cleber de Souza, retrata os processos de evocação das memórias e suas relações na constituição da identidade cultural dos (as) congadeiros (as) na festa de Nossa senhora do Rosário e São Benedito da João Vaz. Tendo como eixo norteador a memória de um dos mestres desse grupo o autor navega pelas memórias do grupo buscando refletir sob a importância da memória desse indivíduo para construção e manutenção de memória coletiva do grupo, tendo como foco as práticas corporais e os cânticos o texto apresenta a “criação” e manutenção das danças toques e sua influência nos rituais festivos dos santos negros. Em suma a partir das narrativas e nas reflexões apresentadas por esse artigo podemos perceber que para esse grupo as memórias e identidades são negociadas e tensionadas no cotidiano das adversidades materiais durante a produção da Festa da João Vaz, ao mesmo tempo em que a sobrevivência se dá pelas redes de solidariedade que reforçam os laços afetivos entre eles.

Ressalta-se apenas que os dois últimos artigos se debruçam sobre o mesmo grupo de congada e em ambos o que ficou em evidência foi que aos olhos da história local (Goiânia) as Congadas aparecem como coisa do passado, deslocadas do tempo, para os congadeiros a prática do congado é local de construção e fortalecimento de laços socioculturais, com memória e tradição disseminadas pelo fundador e por seus discípulos que todos os anos reverenciam seus ancestrais africanos e afrodescendentes através de seus rituais onde os cânticos entoam palavras de origem Bantu e suas batidas fazem alusão aos cortejos ainda vivenciados por grupos africanos até a atualidade.

Ao compartilhar esta publicação com a sociedade as organizadoras e autores / colaboradores acreditam poder contribuir para o processo continuado do debate sobre a religiosidade popular com ênfase nos festejos ligados ao afro catolicismo dentre eles e de forma especial as Congadas.

Boa Leitura!

Notas

1. Um dos grupos étnicos trazidos para a América brasileira no período escravocrata (MUNANGA; NILMA, 2004).

2. Segundo a mitologia, Xangô teria sido o quarto rei da cidade de Oió, que foi o mais poderoso dos impérios iorubás. Depois de sua morte, Xangô foi divinizado, como era comum acontecer com os grandes reis e heróis daquele tempo e lugar, e seu culto passou a ser o mais importante da sua cidade, a ponto de o rei de Oió, a partir daí, ser o seu primeiro sacerdote (PRANDI, 2001).

3. Etimologicamente, Orixá ou Orisá origina do iorubá “orí”=cabeça, “sá”=deus. O Orixá seria a princípio um anscestral divinizado que em vida estabelecia vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza como trovão (Xangô) e o vento (Iansã) (VERGER, 2002).

Rosinalda C. da Silva Simoni – Aluna do pós-doutorado em História da PUC Goiás. Consultora Educacional / Arqueóloga.


SIMONI, Rosinalda C. da Silva. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.12, n.2, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

As Vidas de José Bonifácio | Mary Del Priore

Veio a público uma biografia sobre um dos personagens mais controversos e emblemáticos da história do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva. E, redigida por uma das mais importantes autoras brasileiras, com uma vasta produção acadêmica, a historiadora Mary Del Priore. A obra é destinada tanto aos especialistas, como ao público em geral. Leia Mais

Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa | Claudia C. A. Atallah

O livro de Cláudia Cristina Azeredo Atallah – doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora do Departamento de História da mesma universidade e coordenadora do Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime (JIIAR) que reúne pesquisadores brasileiros e estrangeiros afinados com o tema da administração da justiça – insere-se na interface entre a história do direito e a história da justiça. É preciso de imediato ter em mente a distinção entre os dois domínios: o direito como sendo uma manifestação das intenções gerais de ordem e a justiça tendo sua expressão em atos singulares e concretos. Em outras palavras, o direito é universal e a justiça é casuística [2].

Ao analisar o esforço das reformas impostas por Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, em conter as tradições políticas típicas do Antigo Regime na comarca do Rio das Velhas pela ótica de atuação dos ouvidores da coroa, a autora deparou-se com o movimento entre o direito, traduzido no conjunto normativo de ordens emanadas pelo centro, e a justiça, traduzida nas práticas cotidianas ocorridas além das decisões dos tribunais que caracterizavam a cultura jurídica nas Minas Gerais colonial em um contexto de transição entre o pluralismo jurídico e a modernidade jurídica.

O trabalho segue a trilha conceitual aberta pela abordagem de estudos do Antigo Regime nos Trópicos, retomando os modelos teóricos de “centro e periferia” proposto por Edward Shils (1992) e de “autoridades negociadas” proposto por Jack Grenne (1994), revisitados à luz de novos horizontes de pesquisa. Sendo assim, conceitos fundamentais como monarquia pluricontinental, economia do bem comum, economia moral de privilégios, redes clientelares e políticas são mobilizados nos oito capítulos que compõem o livro, pela ótica da ação da justiça. Atallah, portanto, alarga o tema ao mostrar a importância da conciliação e da política de negociação em um universo político marcado por conflitos de jurisdição, espaços mal definidos de poder e sobreposição de poderes em revelia às tentativas de centralização políticaadministrativa e controle sobre os oficiais régios que caracterizaram a nova prática do governo pombalino.

Cumpre destacar que os conflitos jurisdicionais entre as diversas instâncias do poder colonial têm-se mostrado como um dos temas da maior importância para o debate historiográfico recente. Longe de expressarem deformidades ou desordens conforme parte da historiografia afirmou durante o século XX, tais conflitos devem ser entendidos como mecanismos para distribuir poderes em territórios distantes do centro e não como uma anomalia do sistema. Expressavam o pluralismo jurídico do Antigo Regime e não interferiam na centralidade régia. De fato, esta discussão é fulcral para a análise da própria natureza do Império português, como bem mostra o posicionamento da autora ao demonstrar que a manutenção dos conflitos por parte da coroa não tinha como estratégia o caráter punitivo, mas sim o de institucionalizar a negociação.

A autora desenvolve o argumento central de que a Inconfidência do Sabará, episódio ocorrido em 1775 e que levou o ouvidor José de Góes Ribeiro Lara de Moraes à prisão, foi um produto das mudanças intentadas por Pombal e não resultado da desordem e da rebeldia peculiares à região. Essa tradição historiográfica, que tende a considerar as Minas Gerais como um universo distinto das demais áreas do Império português, nasceu da preocupação em definir e justificar o caráter nacional brasileiro mobilizando temas como a instabilidade das formas sociais, os paradoxos das estruturas administrativas e o processo incompleto de formação do Estado nacional racionalizado [3]. Em perspectiva distinta, Atallah entende que o “tom de rebeldia e de contradição torna-se mais compreensível se analisado como reflexo das práticas políticas cotidianas que alimentavam as relações clientelares e a busca pela cidadania nesse universo” (p.18).

Para os fins propostos, o livro está dividido em três partes. Na primeira parte, intitulada “As Minas setecentistas e o Antigo Regime: uma discussão acerca do caráter do poder”, Atallah discute os elementos necessários para entender a organização desta sociedade, cujo modelo político ancorava-se na filosofia jesuítica da nova escolástica que tinha como princípio a autonomia político-jurídica dos corpos sociais, sendo a justiça o fim lógico do poder. Concomitante ao desenvolvimento da nova escolástica, observou-se também um desenvolvimento cada vez maior das teorias corporativas do pensamento medieval e jurisdicionalista, cuja longa sobrevivência relaciona-se à presença sistemática dos padres jesuítas em todo o processo de colonização no ultramar.

Essas ideias forneceram o substrato moral e pedagógico responsáveis pela formação de uma elite jurídica destinada ao serviço régio e tiveram na Universidade de Coimbra e no Desembargo do Paço os principais redutos de legitimação e disseminação. No entanto, em meados do século XVIII, as reformas pombalinas viriam abalar profundamente as bases doutrinais que sustentavam o império e consequentemente as instituições que representavam o poder. A promulgação da Lei de 18 de agosto de 1769, a Lei da Boa Razão, foi a primeira iniciativa mais incisiva em relação às reformas no campo jurídico. À pluralidade das práticas jurídicas do direito consuetudinário vinha se opor a retidão do direito real.

As transformações do direito empreendidas pela Lei da Boa Razão encontraram ressonância nas reformas dos estudos jurídicos ocorridos na Universidade de Coimbra a partir de 1770. O objetivo era formar os futuros administradores da justiça portuguesa de acordo com a nova cultura jurídica e política e implantar um ensino prático, simples e metódico, “era o esforço em substanciar a nova razão de Estado almejada pelo ministério pombalino e que tinha como parte essencial a constituição do direito” (p.185). Para ter a dimensão do embate entre as reformas modernizantes e as tradições políticas no que tange às estruturas jurídicas, Atallah desenvolve na segunda parte “A dinâmica imperial e a comarca do Rio das Velhas no governo de D. João V”, um estudo sobre a atuação dos ouvidores na dinâmica imperial antes das reformas, durante o período de 1720-1725.

Este foi um período conturbado, aos esforços da coroa em implementar medidas de caráter fiscal e conter os distúrbios causados pela cobrança de impostos, somavam-se as exigências de importantes potentados locais. Foi também um período marcado por uma série de conflitos de jurisdição travados entre D. Lourenço de Almeida, governador das Minas, e José de Souza Valdes, ouvidor da Comarca do Rio das Velhas. À medida que os analisa, Atallah demonstra que os conflitos por jurisdição faziam parte de uma estratégia deliberada da coroa que, ao contrário de aniquilar seu poder, tornava-o possível em paragens distantes. Nesse Cantareira, sentido, a coroa não somente os mantinha como às vezes até mesmo os estimulava, sem se posicionar a favor de um ou outro oficial, favorecendo assim a institucionalização da negociação ao invés da punição.

Alinhada com a visão do estudo de José Subtil sobre o Desembargo do Paço, Atallah ressalta a importância dessa instituição como símbolo da essência político-administrativa do Antigo Regime, além de institucionalizar seu aparato jurídico. A partir do ministério pombalino, o Desembargo do Paço e seus homens assistiram a uma diminuição gradativa de suas competências simbólicas, pois “a centralização política impunha também a precedência do direito régio sobre o direito consuetudinário e, desse modo, a autoridade dos juristas ficava reduzida à aplicação das leis” (p.167). E é sobre isto, tomando como exemplo o caso emblemático da prisão do ouvidor da comarca do Rio das Velhas por crime de inconfidência, de que trata a terceira e última parte, “Tensões e conflitos: a época de Pombal e a inconfidência de Sabará”.

Com a ascensão do Marquês de Pombal após o terremoto que abalou Lisboa em 1755, a necessidade de concentrar as ações políticas em um só órgão concedeu preponderância ao Ministério das Secretarias de Estado. Nesse sentido, o Desembargo do Paço perderia a posição de núcleo da administração régia e assistiria a uma invasão de suas competências. No ultramar isto se refletiria em um controle maior dos oficiais régios, e os conflitos, até então comuns e tolerados, tornaram-se alvo do regalismo pombalino. O esforço em construir um governo centralizado e homogêneo resultou em uma verdadeira caça às bruxas, alijando do poder aqueles que não estivessem afinados com a política de fidelidade do Marquês. O Tribunal de Inconfidência assumiu um papel relevante na perseguição e punição aos vassalos infiéis. Foi este o caso do ouvidor José de Góes que assumiu o cargo de ouvidor em uma época de inúmeros debates sobre a arrecadação do quinto real.

Uma representação escrita ao monarca em 1775 denunciaria as relações de interdependência que envolviam alguns homens bons da comarca e o ouvidor, acusado de blasfemar contra Pombal. Iniciou-se então o desenrolar de uma rede trançada pelos poderes locais, cuja análise se constitui o cerne da discussão do livro. Atallah demonstra que em Sabará àquela época existiam redes de clientela que colocaram em lados opostos dois grupos constituídos pelos principais da terra. A acusação de crime de inconfidência que recaiu sobre José de Góes estava inserida na trama de uma desse redes que tinha raízes bem mais profundas. Dessa vez pesou o jugo controlador da monarquia administrada pelo Marquês de Pombal, representado pelo Tribunal de Inconfidência. O ouvidor virou inconfidente. A infidelidade ao novo ministério foi punida para que servisse de exemplo.

O instigante trabalho de Atallah abre inúmeras possibilidades e, por conseguinte, permite vários debates: a dificuldade em colocar o interesse do Estado acima dos interesses privados, a ideia de Viradeira, da qual a autora refuta, pois “acreditamos que os processos de transformação no percurso da história são lentos e de complexa assimilação” (p.252), a propagação do reformismo, tema que é comumente relacionado ao da identidade portuguesa e ao da decadência, dentre outros. Diante do ambiente em que se deflagraram os acontecimentos em Sabará, circunscrito em um processo mais amplo de transformação das relações entre a monarquia e seus súditos, capaz de revelar tensões e conflitos decorrentes do seu funcionamento, a autora conclui que a Inconfidência do Sabará foi um produto dos embates entre a tradição, traduzida na relutância dos oficiais do Desembargo em acatar as novas diretrizes, e a tentativa de modernização das estruturas jurídicas. Resenha recebida em 04/12/2018 e aprovada para publicação em 21/10/2019

Notas

2. Álvaro de Araújo Antunes. As paralelas e o infinito: uma sondagem historiográfica acerca da história da justiça na América Portuguesa. Revista de História, São Paulo, nº169, p. 21-52, julho/dezembro 2013; Álvaro de Araújo Antunes. Prefácio. In: Maria Fernanda Bicalho, Virgínia Maria Almoêdo de Assis, Isabele de Matos Pereira de Mello (orgs.). Justiça no Brasil colonial: agentes e práticas. São Paulo: Alameda, 2017.

3. Esta tradição historiográfica tem no paradigma da conquista soberana seu modelo interpretativo. Nele, a colonização, apresentada como um embate entre raças conquistadoras e conquistadas, pressupõe a legítima vitória da civilização europeia, a organização do mundo colonial conforme seus recursos materiais e espirituais, e a incorporação de elementos culturais dos grupos subjugados. Esta tradição historiográfica é devedora dos relatos das Minas setecentistas por seus contemporâneos, responsáveis por consolidar “o tema da afetação da gente dos sertões mineiros” e influenciar as interpretações posteriores. Atallah tem o cuidado em não conduzir esta discussão para uma dualidade ordem-desordem, seu caminho é o de reforçar a negociação. Para maiores informações sobre o paradigma da conquista soberana: Marco Antonio Silveira. Guerra de usurpação, guerra de guerrilhas. Conquista e soberania nas Minas setecentistas. Varia Historia, Belo Horizonte, nº25, jul/01, p.123-143.

Milena Pinillos Prisco Teixeira – Mestranda em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista CAPES. E-mail: milena_pinillos@yahoo.com.br


ATALLAH, Cláudia Cristina Azeredo. Da justiça em nome d’El Rey: justiça, ouvidores e inconfidência no centro-sul da América Portuguesa. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2016. Resenha de: TEIXEIRA, Milena Pinillos Prisco. Entre o Direito e a Justiça: ecos da reforma pombalina na administração da justiça na comarca do Rio das Velhas (1720- 1777). Cantareira. Niterói, n.31, p. 92- 96, jul./dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Teoria da História. Goiânia, v.21 n. 1, 2019.

Teoria da História e Teoria Política

  • ·        APRESENTAÇÃO
  • Murilo Gonçalves, Francesco Guerra, Ulisses do Valle
  • PDF

ARTIGOS DE DOSSIÊ

ARTIGOS LIVRES

RESENHA

PUBLICADO: 01-07-2019

 

Afrodescendencia, cultura y sociedad en el Cono Sur, 1760-1960 | Claves – Revista de Historia | 2019

La premisa de este dossier fue reunir artículos sobre la historia social y cultural de los afrodescendientes en el Cono Sur americano, sin dejar de lado perspectivas sobre la economía y la política, que pudieran incluir temas como la esclavitud y la abolición, el género, la participación militar y política; el asociacionismo y el movimiento afrodescendiente, la historia intelectual, la cultura popular y la cultura impresa. La temática de la mayoría de los artículos que aquí se presentan cruza las fronteras provinciales y nacionales por lo que contribuyen a un diálogo regional en el Cono Sur americano (Chile, Argentina, Paraguay, Uruguay, y Rio Grande do Sul en Brasil) y a extender el campo historiográfico sobre estos temas más allá de Buenos Aires, Montevideo y Porto Alegre, que han sido, generalmente, los focos regionales sobre estos estudios en los últimos veinte años.

Este dossier, además de reunir contribuciones sobre la historia afro en esas tres ciudades, presenta el resultado de grupos de investigación radicados en Santa Fe y Cuyo, en donde también ha comenzado, a partir de iniciativas colectivas, el desarrollo de la historia local de las poblaciones de origen africano y su relación no sólo con centros regionales como Buenos Aires, sino también con la historia de la diáspora africana del Atlántico y del Pacífico. La idea detrás de este dossier ha sido contribuir a la generación y difusión de conocimiento sobre la población africana y afrodescendiente en el Cono Sur, lo cual ha fructificado a través de iniciativas como el Encontro Escravidão e Liberdade No Brasil Meridional (reunido en forma bianual desde el año 2003), la fundación del Grupo de Estudios Afrolatinoamericano en la Universidad de Buenos Aires en 2010 que ha organizado conferencias anuales con participantes de toda la región, así como la renovación de los estudios afro-chilenos y afro-paraguayos en la última década. Leia Mais

Dia-Logos. Rio de Janeiro, v.13, n. 2 , 2019.

Expediente

Artigos

Resenha

Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889) | Karoline Carula

A década de 1870 assinala o momento da chegada ao Brasil das “ideias novas”, como destacou Silvio Romero. Entre estas ideias, uma, o darwinismo, logrou grande sucesso entre os pensadores que buscavam fazer do Brasil um país moderno e civilizado. O darwinismo sofreu diversas apropriações e direções discursivas, sendo isto perceptível nas discussões que ocorriam nos jornais e revistas da Corte. Como exemplo dessa ampla difusão do darwinismo, temos o encontro do cientista francês Louis Couty com um fazendeiro de nome Tibiriçá. Dizia Couty (1988, p.98): “Estava eu percorrendo os títulos dos livros que via sobre a mesa de meu anfitrião, [Charles] Darwin, [Herbert] Spencer” e admitia “sem surpresa que os via ali, e que os via trazerem as marcas de uma leitura prolongada”.

O leitor que abrisse os jornais, como a Gazeta de Notícias ou o Jornal do Commercio , entre as décadas de 1870 e 1880, encontraria várias chamadas para conferências e cursos públicos na Corte que tratavam dos mais diversos assuntos discutidos pela ciência na época, quase todos perpassados pela perspectiva do darwinismo. O homem de letras desse período tinha uma ampla programação de ciência para realizar nos espaços públicos da capital do Império. Decorriam disso discussões e sociabilidades novas, permeadas pelas várias interpretações da teoria de Charles Darwin. Esse assunto é objeto de exame do livro Darwinismo, raça e gênero , escrito por Karoline Carula e publicado pela Editora Unicamp. O livro é resultado de sua pesquisa de doutoramento em história social defendida na Universidade de São Paulo. Atualmente, Carula é professora de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Leia Mais

Expressões artísticas e a democracia nas Américas | Revista Hydra | 2019

Reafirmando o seu comprometimento com o trabalho de divulgação de pesquisas acadêmicas, a Revista Hydra vem a público com mais uma edição. O presente dossiê, que tem como título “Expressões artísticas e a democracia nas Américas”, apresenta textos que discutem como a arte, em suas variadas formas de expressão, pode dialogar com um determinado contexto sociocultural e demonstrar a sua contrariedade em frente a atitudes autoritárias, fascistas e racistas.

O texto de Luis Fellipe Fernandes, que é intitulado “”Pro Brasil nascer feliz: Rock in Rio, juventude e redemocratização no Brasil”, compõe o dossiê temático abordando o rock enquanto forma de expressão para a juventude brasileira da década de 1980 através do Rock in Rio, considerando as disputas políticas que envolveram a realização do evento junto as eleições indiretas. Carlos Moura Veloso Junior, por outro lado, em “A dança contemporânea do Ballet Stagium: a composição coreográfica “dança das cabeças” como forma de manifestação social (1978)”, discute, por meio da história de criação da Ballet Stagium e suas coreografias, compreender manifestações políticas da companhia. Leia Mais

Montevideo, ciudad obrera. El tiempo libre desde las izquierdas (1920-1950) | Rodolfo Pirrini Beracocheia

A través de esta obra el historiador Rodolfo Porrini acerca al lector a una faceta de la vida de los trabajadores montevideanos poco conocida: el uso del tiempo libre. Este acercamiento se produce a partir de la mirada de tres corrientes de izquierda con destacada influencia en el medio local en los treinta años estudiados (comunistas, socialistas y anarquistas). A través de estas el autor busca dar a conocer un aspecto generalmente ignorado en la historiografía de los trabajadores y los sectores populares en el Uruguay que priorizan el estudio de sus formas de protesta, organización y expresiones ideológicas. Subyace también un cuestionamiento a la imagen del Uruguay como «país de capas medias» que ha llevado a la invisibilización de sus rasgos obreros. Asimismo, brega por jerarquizar la importancia del tiempo de no-trabajo y reconocer su especificidad.

El libro es una edición, pensada para alcanzar un público amplio, de la tesis de Doctorado en Historia de la Universidad de Buenos Aires titulada Izquierda uruguaya y culturas obreras en el «tiempo libre»: Montevideo (1920-1950) dirigida por la historiadora Mirta Zaida Lobato. Esta tesis obtuvo el primer premio en la categoría «Ensayo de Historia, biografías y temas afines» rubro inédito de los Premios Anuales de Literatura del año 2014 del Ministerio de Educación y Cultura de Uruguay. Leia Mais

Hacer la revolución. Guerrillas latinoamericanas de los años sesenta a la caída del Muro | Aldo Marchesi

Aldo Marchesi es doctor en Historia Latinoamérica y su campo de estudio son los procesos de violencia política y autoritarismo que se dieron en Uruguay y el Cono Sur en las últimas décadas del siglo XX. Sus publicaciones se refieren a esta temática siendo el libro que se reseña una reelaboración de su tesis de doctorado Geographies of Armed protest: transnational Cold War Latin American Internationalism and the New left in the Southern Cone (1966-1976), defendida en la Universidad de Nueva York en 2012.

El libro consta de una introducción y cinco capítulos en los que el objetivo de Marchesi es examinar el surgimiento, desarrollo y fracaso de una red de organizaciones de jóvenes militantes de izquierda que consideró a la lucha armada como camino para los cambios sociales. El tema central es el proceso que se inicia en la década del setenta y que lleva a la conformación entre 1972 y 1977 de la Junta de Coordinación Revolucionaria (JCR), integrada por el Ejército de Liberación Nacional boliviano, el Movimiento de Izquierda Revolucionaria chileno, el Partido Revolucionario de los Trabajadores-Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP) argentino y el Movimiento de Liberación NacionalTupamaros (MLN-T) uruguayo. Posteriormente analiza la inserción de sus militantes en la transición democrática. Leia Mais

El 68 uruguayo. El año que vivimos en peligro | Carlos Demasi

Surgido de una serie de charlas realizadas en la Fundación Vivian Trías en 2018, el libro se propone revisar la excepcionalidad del año 1968 en dos sentidos. Por un lado, destacando la intensidad de los hechos que allí se dieron, en un presente sobrecargado de contingencia. Por el otro, recobrando el rol que tiene ese año en la mirada del período previo al golpe de Estado de 1973, al mismo tiempo punto inicial de una secuencia y momento de síntesis, donde los sesentas parecen verse reflejados. Así, 1968 se presenta como un complejo nudo a desatar, cuyos hilos llevaban a un período más amplio, a la vez que sepultaban la pretendida excepcionalidad del Uruguay, anunciando un sombrío horizonte.

Para desarrollar esta mirada, Carlos Demasi se centra en los sucesos situados en Montevideo, buscando dar cuenta de la simultaneidad y la interacción de distintos procesos, las percepciones surgidas en ese contexto y tratando de reconstruir la cronología de un intenso año, para evitar la exageración de ciertos episodios a la luz de los hechos posteriores. Esta perspectiva se desarrolla sobre la globalidad del año, pero se acentúa en el análisis del mundo político partidario, donde para el autor se dieron las rupturas más profundas. Leia Mais

La prensa de Montevideo, 1814-1825. Imprentas, periódicos y debates públicos en tiempos de revolución | Wilson González Demuro

El libro del historiador Wilson González Demuro concentra su foco en la prensa durante los tiempos revolucionarios en el Río de la Plata para analizar qué y cómo se debatía durante ese tramo tan intenso en la región. ¿Qué ideas se debatían? ¿Qué circulaba en la prensa? ¿Quiénes escribían y para qué? son algunas de las preguntas que abren este trabajo. La pluma, la escritura de opinión formó parte de la contienda y en ese sentido puede decirse que la prensa ocupó un lugar como parte activa del proceso revolucionario. El libro se propone analizar la producción de impresos, sus condiciones, autores y tejer hipótesis acerca de sus lectores. Desde la Historia conteptual se propone recorrer las voces: libertad y opinión pública. Aunque esas sean sus opciones principales no descuida el análisis de otros conceptos relacionados como lo son revolución, independencia y orden.

En la introducción, el autor expone detalladamente el proceso recorrido, las opciones teóricas y metodológicas empleadas y propone un adecuado recorrido de los antecedentes sobre el tema. Dentro de la Historia que tienen por objeto los medios de comunicación, muchos de los trabajos se han ocupado más del soporte, su descripción y crecimiento que del estudio de las circulación de ideas y los debates allí producidos. El conjunto de impresos analizados revela su diversidad en cuanto a las formas, periodicidad y tamaño pero también en cuanto al lugar donde están actualmente. Los 24 periódicos estudiados fueron publicados en Montevideo entre 1810 y 1824. La mayoría de ellos están en Uruguay mientras que otros están fueron ubicados en Buenos Aires y en Madrid. Leia Mais

Malas madres. Aborto e infanticidio en perspectiva histórica | Juleta di Corleto

En Malas madres, editado por Didot, Julieta di Corleto presenta lo que fue en esencia su tesis para obtener el título de doctora en Historia por la Universidad de San Andrés (Buenos Aires, Argentina). Su trabajo se propuso estudiar la delincuencia femenina en la capital argentina en las últimas décadas del siglo XIX y las primeras del XX con el centro en los abortos e infanticidios como delitos «privativos de ellas». En estas acciones perseguidas penalmente, las mujeres casi hegemonizaron los ingresos carcelarios, lo que generó una asociación casi inmediata con esta figura a pesar del predominio de los ilícitos contra la propiedad en sus entradas a prisión. De todas formas, concluye, su peso en las estadísticas criminales fue escaso, lo que por otra parte fue utilizado recurrentemente como fundamento para la reducida atención dedicada a la delincuencia femenina. En su presentación, Di Corleto da cuenta del atraso con que las obras dedicadas a la experiencia femenina han llegado al terreno académico argentino. Particularmente si se le compara con el importante desarrollo que ha tenido la historiografía relativa a la delincuencia y el castigo masculino. Precisamente, en el apartado dedicado a estudiar la cuestión criminal en ese país considera los límites de la producción, tanto local como internacional, que sería explicable de alguna manera por la falta de autonomía existente. Igualmente, parece pertinente no dejar de mencionar la relevancia de las investigaciones latinoamericanas sobre el tema con los trabajos de historiadoras como Elisa Speckman Guerra, Fabiola Bailón, María José Correa Gómez o Yvette Trochón por solo citar algunas obras dedicadas al estudio de una diversidad de acciones vinculadas con la delincuencia protagonizada o vinculada a las mujeres. Leia Mais

Cultura Material em História(s): Artefatos Escolares e Saberes | Educar em Revista | 2019

“… o passado não é um lugar estável, e sim precário, permanentemente alterado pelo futuro, e… portanto nada do que já ocorreu é irreversível”.

Javier Cercas1

Através das palavras extraídas da refinada literatura de Javier Cercas, expressamos a inquietação que nos move no sentido de buscar e fortalecer formas de ler e compreender a oficialização2 da escola e do aluno e sua difusão. Num leque de possibilidades elegemos algumas formas, como diz Heloisa Rocha (2019)3, de “interrogar o passado educacional por meio do exame dos artefatos e dos modos de fabricação inventados por diferentes sujeitos e grupos, para responder às demandas da escolarização”, evidenciando também “dimensões envolvidas na cadeia de produção e circulação dos artefatos escolares”. Isto significa dizer que nos ocupamos particularmente da dimensão material da escolarização da infância em diferentes lugares, de formas de organização e provimento material da escola primária e de modos de circulação das ideias que conformam (no sentido mesmo de dar forma) esta materialidade. Nesta esteira, identificar discursos que advogam um desenho material para a escola, formas de operacionalização e modos de uso ajudam a compor um cenário que explicita sentidos que esta materialidade porta. Leia Mais

As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial | Svetlana Aleksiévitch

No livro As últimas testemunhas, Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, apresenta uma centena de relatos de adultos que vivenciaram a Segunda Guerra Mundial durante a infância. Com apenas duas pequenas citações “Em lugar de prefácio…”, o restante do livro é todo marcado pelas vozes dos entrevistados, e as conclusões da leitura ficam a cargo de cada leitor.

Os relatos, coletados entre os anos de 1978 e 2004 e somente traduzidos para o português em 2018, trazem o modo como cada adulto, na época criança, viu, sentiu e viveu a guerra. Tratava-se, na maioria, de crianças de 2 a 14 anos, com exceção de algumas que nasceram a partir de 1941, e de um garoto que nasceu no ano em que o conflito acabou (1945), mas que parece ter vivido a guerra tão intensamente quanto os demais, quando afirma: “Nasci em 1945, mas lembro da guerra. Conheço a guerra”, nos remetendo ao conceito de “acontecimento vivido por tabela” (Pollak, 1992). Leia Mais

História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente – ARAÚJO (HE)

ARAÚJO, Raimundo Inácio Souza et al. História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente. São Luís: EDUFMA, 2018. Resenha de VARGAS, Karla Andrezza Vieira. História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de história e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 25, n. 02, p. 475-480, jul./dez. 2019.

O livro História: demandas e desafios do tempo presente – produção acadêmica, ensino de História e formação docente, é um material escrito a muitas mãos. Mãos de pesquisadores/as e professores/as, com vínculo em diferentes universidades, que tingiram em seus textos a problemática do pensar a Ciência Histórica coadunada às práticas que tangenciam a atividade do Ensino de História, na modalidade da Educação Básica, no agora. Organizada por Erinaldo Cavalcanti (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Geovanni Gomes Cabral (professor Adjunto da Faculdade de História da Unifesspa), Margarida Maria Dias de Oliveira (professora adjunta da UPE, Campus Nazaré da Mata) e Raimundo Inácio Souza Araújo (professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Maranhão – COLUN-UFMA), a obra marca, também, as intenções do núcleo de pesquisa Interpretação do Tempo: ensino, memória, narrativa e política (iTemnpo), associado à Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), do qual emanou a escrita dessa coletânea.

O contexto de produção da obra está tensionado pela conjuntura política educacional, prescrita pela Reforma do Ensino Médio, que torna a matéria História optativa no currículo escolar, segundo a Lei nº 13.415, de fevereiro de 2017. Assim, na apresentação, os/a organizadores/a (também autores/a), registram a importância e a funcionalidade da História em tempos de cólera. Nos textos, não encontramos resoluções acabadas, mas reflexões para um repensar de práticas que possam ser transgressoras ao universo acadêmico e as “velhas” formas de narrar a História. Fazer circular outras narrativas e outras experiências de pesquisa, segundo as proposições abordadas na obra, pode/deve contribuir para a formação de professores/as no chão da sala de aula.

A coletânea compõe treze textos, distribuídos em três eixos temáticos: História, formação docente e ensino; História, ensino e narrativas e A História entre diálogos acadêmicos e o ensino. No primeiro, encontramos quatro capítulos que se articulam pela compreensão de que a História é espaço de saber e de poder, bem como expressão de formação docente. No capítulo que abre o debate, temos a escrita do professor Erinaldo Cavalcanti submetida ao título A História e o ensino nas encruzilhadas do tempo: entre práticas e representações. Aqui, Cavalcanti localiza a questão da chamada História do Tempo Presente, seus sentidos e significados. Na esteia desse tempo, o autor apresenta discussões referentes aos currículos dos cursos de Licenciatura em História das Instituições de Ensino Superior Federais da Região Norte do Brasil, problematizando os usos dos livros didáticos nas práticas de ensino de egressos/as desses espaços. Margarida Dias e Itamar Freitas, no segundo capítulo, tecem considerações sobre a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular. Construída no ano de 2015, a BNCC, previa alterações significativas do ponto de vista dos conteúdos (abertura para estudos regionais, para as questões africanas, afro-brasileiras, indígenas…), com impacto na formação e na atuação de professores/as. Base Nacional Curricular Comum: caminhos percorridos, desafios a enfrentar nomeia as reflexões dos autores.

Ainda, sobre os debates referentes à formação de professores/as de História, visualizamos no terceiro capítulo, as pesquisas de Thiago Calabria e José Batista Neto. Em Formação continuada de professores de Pernambuco para o uso das TDIC e o protagonismo dos exames estandardizados, os autores buscam analisar as ações formativas referentes às tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC), nas práticas de ensino. Finalizando a primeira parte da obra, Maria Auxiliadora Schmidt, recupera a teoria da consciência histórica e a sua contribuição para a construção de uma matriz didática. A autora realiza um estudo sobre a Educação Histórica em vários territórios, desde o final do século XX, ancorado, especialmente, nas concepções epistemológicas de teóricos como Jörn Rüsen (2016). O texto intitula-se A teoria da consciência histórica e sua contribuição para a construção de matrizes da didática da educação histórica.

História, ensino e narrativas, segundo eixo do livro, problematiza a questão da pluralidade narrativa como um arcabouço analítico possível para se pensar o Ensino de História. Em narrativas fantásticas, ensino de História e a redescoberta da diversidade da cultura afro-maranhense, Inácio Raimundo discute a importância da construção de suportes materiais acerca da cultura afro-maranhense, atinente às prerrogativas dos marcos legais para o Ensino da História e da cultura africana, afro-brasileira e indígena Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08. Na sequência, e seguindo o percurso da discussão apontada pelas demandas identitárias do tempo presente, Edson Silva, Maria da Penha e Márcio Vilela, procuram escutar as vozes das populações indígenas. Povos indígenas no ensino de História: a Lei 11.645/2008 interculturalizando o ensino fundamental avalia os efeitos, os sentidos e as apropriações dadas à temática indígena na modalidade de Ensino Fundamental.

Em A xilogravura no ensino de História: usos do passado na arte do poeta José Costa Leite, Geovanni Cabral, traz para o cenário a ideia de ampliação do corpus documental a ser potencializado na pesquisa e nas salas de aula da Educação Básica. As xilogravuras presentes em folhetos de cordel, produzidos por José Costa Leite, segundo Cabral, encontram-se carregadas de representações e visões de mundo que podem dialogar com os acontecimentos históricos nacionais e do lugar. Na dimensão da História Local, encontra-se o trabalho de Cristiani Bereta da Silva e Rosiani Marli Antônio Damásio. As autoras tomam como território o município de Garopaba (Santa Catarina) para discutir a invenção de uma tradição cultural açoriana e a sua influência no currículo escolar, a partir de 1990. Trata-se do título Tradição, culturas histórica e escolar: o desafio de se ensinar história local no presente. As prescrições curriculares são também preocupações de Márcio Henrique Baima Gomes em As mudanças curriculares e seus reflexos sobre o ensino de história do Maranhão (1970 a 2015). Gomes encerra a segunda parte da obra, apontando as transformações do currículo formal de História do estado do Maranhão, a sua projeção no ensino e os desafios enfrentados na sala de aula no presente.

A terceira e última parte da coletânea, A História entre diálogos acadêmicos e o ensino, encontramos o trabalho de Pablo Porfírio acerca dos diálogos discursivos entre a Guerra Fria e o movimento das Ligas Camponesas no Estado de Pernambuco. Aqui, vê-se um exercício de experimentação do objeto de pesquisa do autor e sua contribuição para o Ensino de História, intitulado Guerra fria e ligas camponesas no Brasil: outras histórias possíveis. Para além do conteúdo, este eixo incide, também, sobre estudos com impressos e suas potencialidades em práticas pedagógicas da História como disciplina escolar. A partir de O que os jornais (não) dizem sobre a cidade e sua gente: uma breve proposta de ensino de história a partir dos periódicos, Thiago Santos realiza análises de relatos publicados em periódicos do XIX e suas representações discursivas, para pensar em pontes de encontro entre o que se produz na academia e o que pode encontrar terreno fértil no espaço escolar, nas aulas de História.

O trato com a memória e a questão do patrimônio cultural, são também temáticas abordadas na terceira parte do livro. Com Márcia Milena Galdez Ferreira, a partir das memórias referentes à migração de nordestinos e maranhenses para o Médio Mearim (Maranhão), pode-se refletir sobre outras agências no processo de aprendizagem histórica de estudantes. Em destaque, também, a luta pela terra, assim como bem coloca o título do capítulo Da história e memória da migração de nordestinos e maranhenses à luta pela terra no Médio Mearim, MA: proposta de mediação didática. Sobre os debates referentes ao patrimônio cultural e seu lugar na atividade de ensinar História, temos o trabalho de Magdalena Almeida. Em Conhecimento local e ensino de história: Reflexões sobre usos do patrimônio cultural, a autora problematiza os múltiplos objetos que constituem o patrimônio cultural do Estado de Pernambuco, bem como a construção de narrativas que se deseja veicular e significar.

A obra revela a diversidade de possibilidades da Ciência Histórica escrita nas universidades, suas conexões com o universo da Educação Básica e sua extensão na vida cotidiana. Como se vê, há um esforço de todos/as envolvidos/as na produção e circulação de narrativas plurais. Em todo o trabalho, percorrem-se as concepções do teórico Jörn Rüsen (2011) e a dimensão do sentido prático do saber histórico. Um saber comprometido com as questões do presente e do futuro. As reflexões sobre as temporalidades estão estruturadas pelas contribuições de pesquisadores como Paul Ricoeur (2012) e Reinhart Koselleck (2014). Assim, a noção de que o passado precisa/deve/pode ser desnaturalizado, tal qual postulou Durval Muniz Albuquerque Júnior (2012), é o que melhor caracteriza a organização do livro.

Da capa ao desfecho da obra o que se vê é movimento, cor, experiência, expectativa. Na imagem da capa, a ampulheta que instiga o tempo fluído pelo movimento da areia; a moldura que sugere uma janela aberta, repleta de possibilidades; as mãos que seguram a ampulheta indicam que a construção do tempo e da História é essencialmente humana. Há, portanto, um horizonte, um futuro. Sóbrio como as cores que compõem a capa e as pesquisas que dão vida ao livro. Ao final, encontramos a descrição da trajetória dos autores, elemento pontual para compreendermos inclusive as ambições desse projeto.

Referências

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et al. (org.). Qual o valor da história hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 21-39.

KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Rio e Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2014.

RICOEUR, Paul. O passado tinha um futuro. In: MORIN, Edgar (org.). A Religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectiva a partir do caso alemão. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (org). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.

RÜSEN, Jörn. Contribuições para uma teoria da didática da história. Curitiba: W & A Editores, 2016.

Karla Andrezza Vieira Vargas – Professora de História da Educação Básica da rede estadual de Santa Catarina. Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Esportes nos Confins da Civilização: Goiás e Mato Grosso, c.1866-1966 | Cleber Dias

O livro “Esportes nos Confins da Civilização: Goiás e Mato Grosso, c.1866-1966”, publicado em 2018 pela editora 7letras, foi escrito pelo professor Dr. Cleber Dias. A obra em questão se propõe investigar a história do Esporte em regiões menos exploradas pelos pesquisadores que se interessam na respectiva discussão, problematizando ideias e conceitos enraizados sobre o que o autor denominou de “confins da civilização”. Para realizar tal empreitada a autoria utilizou-se de fontes historiográficas como ferramentas de pesquisa, em uma tentativa de ampliar os debates acerca da temática Esporte e cidade.

Cleber Dias se licenciou, no ano de 2004, em Educação Física pela Universidade Castelo Branco (UCB), especializou-se em Educação Física Escolar pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2006. No ano de 2008 se tornou mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em 2010 obteve o título de doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente o pesquisador é docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) onde atua no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, dedicando-se particularmente aos estudos da História do Esporte e do Lazer. Contudo, a pesquisa apresentada no livro foi realizada no período no qual o autor foi professor na Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás. Leia Mais

Pois temos touros: touradas no Brasil do século XIX | Victor Andrade de Melo

O livro “Pois temos touros: touradas no Brasil do século XIX”, publicado em 2017 pela editora 7 Letras, foi organizado pelo professor Doutor Victor Andrade de Melo – docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Educação e História Comparada; coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer; e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Reconhecido por suas pesquisas sobre as práticas físicas de cunho historiográfico, Victor Andrade de Melo junto de mais cinco pesquisadores publicaram a referida obra, dedicando-se exclusivamente às dinâmicas tauromáquicas. Constituído por oito capítulos, o livro analisado tem a intenção de auxiliar os leitores a entender as atividades realizadas com touros em algumas cidades brasileiras, na Península Ibérica e em Moçambique, focando em revelar apontamentos sobre as origens históricas e antropológicas das dinâmicas tauromáquicas em cada contexto investigado. Leia Mais

Heráclito. ΛΟΓΟΣ ΠΕΡΙ ΤΟΥ ΠΑΝΤΟΣ. Discurso acerca del todo | Sebastián Aguilera Quiroz

El libro de Sebastián Aguilera, titulado Discurso acerca del todo ΛΟΓΟΣ ΠΕΡΙ ΤΟΥ ΠΑΝΤΟΣ, nos presenta las traducciones de los fragmentos de Heráclito, los que comprenden un total de 43 páginas bilingüe, precedidos de una nota acerca de la traducción. Siguen a estos su Ensayo bajo el título de HERÁCLITO Y EL DESPERTAR DE LA SABIDURÍA, título muy de bajo perfil –podríamos decir- y engañador, pues es de una extensión y profundidad temática mucho más significativa.

En este Ensayo el autor nos va a hablar, a través de unas observaciones preliminares, de la desafiante y controversial figura de Heráclito, pero sobre todo de la tesis que sustenta el libro, esto es, de que Heráclito habría escrito un libro y cuyo tema central habría sido el del lógos. Se trata de una palabra central en el pensamiento heleno cuyo campo semántico es de una amplitud que difícilmente podríamos dar cuenta aquí. No obstante, cabe destacar que en el pensamiento de Heráclito lo que abarca los diferentes ámbitos de la realidad, el físico como el humano escuetamente hablando, es el lógos, por tanto, según Aguilera, este es el elemento fundamental de la realidad, del todo -podríamos añadir nosotros- que está en los fundamentos de todo devenir, incluyendo nuestro devenir humano, naturalmente. Leia Mais

Políticas públicas para a formação de professores no Brasil: história e projetos em disputa / Revista Trilhas da História / 2019

O presente dossiê, articulado às atuais demandas para as políticas públicas, objetiva promover o debate sobre as políticas de formação de professores em curso no sistema educacional brasileiro conferindo destaque para a contextualização histórica dos processos e projetos formativos.

As políticas educacionais oficializadas pela Lei nº 13.005, de julho de 2014, que aprova do Plano Nacional de Educação de 2014 a 2024, a Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que altera a LDB de 1996, promovendo a denominada reforma do Ensino Médio e a definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), precipitam um amplo debate no sistema educacional brasileiro, sobre as políticas de formação de professores. Debates que se materializam na incidência direta por profundas mudanças na formação de professores, que precisam ser analisadas à luz da história enquanto projetos em disputa.

O artigo que abre o dossiê, “Impactos da BNCC na formação de professores de História para os Anos Iniciais” de autoria de Carollina Lima, discute a elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o que se estabeleceu na versão final para a área de História, especialmente para os anos iniciais, bem como os possíveis impactos do documento na formação de professores nos cursos de Pedagogia.

Outro texto que aborda a BNCC é de autoria de Marcelo Pires, sob título “Apontamentos para o professor de história que atua no ensino religioso, partindo da BNCC e do RCG”. O autor analisa o Referencial Curricular do Estado do Rio Grande do Sul, de 2018, norteado pela BNCC de 2017, para tanto faz uma abordagem histórica da legislação e no segundo momento discute as possibilidades teórico-metodológicas para o professor de História que ministre Ensino Religioso.

Ainda quanto ao Ensino de História e as políticas públicas, Eduardo Knack e Lidiane Friderichs, em “Considerações sobre as novas tecnologias, o ensino de história e as eleições de 2018”, abordam as novas tecnologias a partir de conceitos como tempo, espaço, supermodernidade e regimes de historicidade. A utilização das redes sociais nas eleições brasileiras, em 2018, é observada como momento que impõe a necessidade de se pensar a disseminação e uso da informação nas novas tecnologias.

Na sequência temos o texto de Tiago Benfica e Eliamar Folle, “Fincando tábua no chão: a viabilização da escola para Peixoto de Azevedo (1979-1985)”. Os autores apresentam a história da construção de uma escola em forma de mutirão, no interior do Mato Grosso, bem como o processo de institucionalização da mesma e de formação do quadro docente, e a importância desse movimento dos moradores para prover a cidade de uma unidade escolar.

O último texto desta seção, “A formação profissional no SENAI de Três Lagoas-MS à luz da teoria do capital humano: histórias de sujeição as demandas do capital”, assinado por Tarcísio Pereira e Maysa de Sá, analisa o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial-SENAI com vistas a compreender a educação profissionalizante desenvolvida por este sistema. Com foco no SENAI de Três Lagoas, os autores analisam a relação da Educação Profissional com a teoria do capital humano na formação para o mercado de trabalho.

Michelle Fernandes Lima – Professora Doutora (UNICENTRO, Campus de Irati)

Paulo Fioravante Giareta – Professor Doutor (UFMS, Campus de Três Lagoas)

Irati-PR e Três Lagoas-MS, dezembro de 2019


LIMA, Michelle Fernandes; GIARETA, Paulo Fioravante. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.9, n.17, jul. / dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

“A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” – AQUINO (ARF)

AQUINO, Thiago. A Descoberta do Cotidiano – Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem. São Paulo: Edições Loyola, 2018. 178p. Resenha de: SILVA, Marcos. Argumentos – Revista de Filosofia, Fortaleza, n. 22, jul./dez. 2019.

O quadro conceitual que organiza nossas atividades e percepção, que regula nossas práticas, possui ele mesmo um fundamento frágil, gratuito, precário, vulnerável a tantas pressões. É, pois, limitado e finito, porque baseado em nossa forma de vida limitada e finita. Não se trata, aqui, de se recusar fundamentos em nossas atividades teóricas e práticas. Contudo, deve-se enfatizar a compreensão de que estes fundamentos, eles mesmos, não têm fundamento necessário algum. Em outras palavras, o fundamento do fundamento poderia ser inteiramente diferente.

Aquilo que parece ser necessário e auto-evidente, aquilo de que estamos mais convictos, maximamente certos, aquilo do que não abriríamos mão mesmo com forte evidência contrária, o que forma a aparente base sólida para nossas ações práticas e teóricas no mundo, aquilo que dá fundamento à nossa linguagem e constitui o pano de fundo de nossas ações no mundo, aquilo que passa tácito, implícito, sem precisar ser dito e tampouco defendido, é, em verdade, baseado em contingências relacionadas a nosso cotidiano e especificidades biológicas e culturais.

É necessário, para se entender esta racionalidade humana fundante, mas sem fundamento, se partir de nossa maneira peculiar de estar no mundo como agentes engajados em inúmeras práticas, sempre mergulhados em uma cultura e na história, jogados num mundo de envolvimentos diversos, corporificados, finitos e mortais. Agir significa tentar, em última análise, ter bases mais seguras para sobrevivência em um mundo hostil ao invés de simplesmente tentar compreendê- lo intelectualmente.

Heidegger e Wittgenstein, me parecem, partem, em suas filosofias, do reconhecimento radical de nossa finitude e limites. Todo o resto, inclusive o aparentemente definitivo e intocável, marcas tradicionais da lógica e da matemática, deveria refletir a nossa condição humana radicalmente finita e precária. Só podemos entender o tipo de ser que nós somos e o fundamento de nossa racionalidade, se procurarmos entender o tipo de práticas com as quais nos engajamos em nosso cotidiano. A nossa capacidade de linguagem e de cognição teórica deve ser vista como baseada em nossa capacidade prática de fazer coisas correta ou incorretamente, ou melhor, de reconhecer e assumir atividades, nossas e de outros, como corretas ou incorretas a partir de parâmetros e critérios acordados e herdados.

Acredito que pensar os dois filósofos, Heidegger e Wittgenstein, em conjunto e não isoladamente, como que insularizados em tradições divergentes, a continental e a analítica, é urgente para a introdução de um novo pensar e para um novo conceito contemporâneo de racionalidade. Ambos, o pensar e a racionalidade, apontam as filosofias de Heidegger e Wittgenstein, devem ser sensíveis à nossa condição humana e aos desafios da contemporaneidade, sem idealizações filosóficas desencaminhadoras.

A aproximação de dois autores tão centrais, seminais e controversos na filosofia contemporânea requer maturidade e originalidade filosóficas. Algo que um bom livro de filosofia deveria ter e o livro de Thiago Aquino “Descoberta do cotidiano: Heidegger, Wittgenstein e o problema da linguagem” mostra sistematicamente.

Em certo sentido importante, filosofia é sempre contemporânea de si mesma e dos problemas de sua época. Thiago Aquino, como um bom contemporâneo de si mesmo, aponta para como devemos pensar, auscultar nossa época, uma vez que não há um fora possível de nossa própria contemporaneidade.

Neste sentido, o livro de Aquino cumpre o papel de estimular discussões tão fascinantes quanto urgentes.

Como Aquino defende, os autores escrevem obras “construídas literariamente de modo a pressupor uma transformação de quem lê como condição de seu entendimento.” p. 121. Acredito que o livro de Aquino possa, através da aproximação, contribuir para a abertura para esta transformação. Aliás, vale notar que a própria aproximação filosófica entre Wittgenstein e Heidegger por si é central, seminal e controversa, como as filosofias dos dois filósofos.

O livro de Tiago Aquino, é um bem-vindo livro: corajoso, instigante e necessário.

A aproximação marca a coragem pelo enfrentamento da cisão histórica de tradições abarcando movimentos filosóficos muitas vezes conflitantes. De fato, o livro cobre um material tanto vasto como difícil de tradições e períodos diferentes dos dois pensadores. É instigante, por aproximar tradições diferentes e indicar o muito que tem para ser feito em diferentes áreas da filosofia que podem ser iluminadas pela aproximação. É necessário, por oferecer, acredito, uma plataforma filosófica, ainda insipiente, mas suficiente para se pensar e avançar em desafios diversos contemporâneos, como em discussões a respeito de lógicas não-clássicas, natureza da computação, neuro-ciências, cognição corporificada, inteligência artificial, psicologia do desenvolvimento, antropologia, política em dinâmicas intricadas culturais e sociais. Tudo isto em um horizonte de racionalidade finita, intramundana e radicalmente contingente. Eu li o livro como um convite tácito para colaboração. A obra mostra o muito que ainda pode ser feito, apesar do diagnóstico negativo, em sua conclusão, sobre alguma convergência radical entre os dois filósofos.

No que se segue apresento três razões para a tempestividade do livro e em seguida apresento quatro problemas para motivar o debate. A primeira tempestividade examina diretamente a cisão entre filosofia analítica e continental; o segundo elemento oportuno trata justamente do próprio trabalho difícil, mas relevante, de aproximação entre Wittgenstein e Heidegger. E o terceiro ponto de tempestividade, gira em torno da relação própria entre linguagem e lógica no fluxo de nossas vidas cotidianas.

Sobre o primeiro marco da tempestividade, acredito que uma das principais ideias que permanecerão com o leitor após a leitura deste livro provocativo é como temas que ocupam muito esforço e tempo de discussões podem se desgatar e ficar ultrapassados, inclusive em filosofia. A intricada distinção entre filosofia analítica e continental que animou muitas das discussões no último século está gradualmente, acredito, perdendo sua centralidade e relevância. Me atreveria a dizer que, hoje, se remete a mais uma divisão ideológica e institucional que a um problema filosófico genuíno.

Além disso, acredito que este enfraquecimento pode ser um sinal para que possamos levantar suspeitas a respeito da própria origem da divisão entre analíticos e continentais. A pouca importância que Wittgenstein e Heidegger devotaram a esta distinção contrasta com o consenso entusiasmado que esta contenda provocou nas últimas décadas. Ela certamente não está relacionada, de modo algum, com questões de geografia. Rigor conceitual, método argumentativo, e discussões pautadas pela natureza da lógica, podem ser características das duas tradições, como o livro de Aquino testemunha. Além disso, a meu ver, a distinção entre analíticos e continentais não é nem suficiente e nem necessária para o filosofar e não representa critério nem exaustivo e nem exclusivo para o que deve importar na filosofia e para o que significa se engajar seriamente com discussões filosóficas.

James Conant (2016), por exemplo, apresenta o seguinte comentário provocativo em um coletânea promovida para unir as tradições: [It is] no more promising a principle for classifying forms of philosophy into two fundamentally different kinds than would be the suggestion that we should go about classifying human beings into those that are vegetarian and those that are Romanian (p. 17).

Há uma certa dose de arbitrariedade na distinção e esta seguiu uma crescente especialização do trabalho filosófico em muitas sub-áreas muito nuançadas de pesquisa. Estes programas de pesquisa motivaram, infelizmente, muito dissenso, desconfiança mútua e barreiras institucionais e acadêmicas para o desenvolvimento de preocupações e problemas comuns entre filósofos praticantes das duas tradições. Há inclusive ataques de grande virulência documentados na historia deste embate no século XX. Estes fatos limitaram, acredito, significativamente, em muitos casos, o alcance e seminalidade de alguns debates filosóficos.

Isto pode e deve ser mudado. Acredito que não é exagero que o livro de Aquino é um livro oportuno com uma espécie de mensagem política tácita. O livro encoraja uma maneira mais pluralista, cosmopolita e tolerante de se fazer filosofia. Também engaja seu leitor em um diálogo frutífero entre filósofos influentes do passado com interlocutores de diferentes tradições. Acredito que a comunidade filosófica brasileira tem muito a se beneficiar com esta abordagem promotora de uma nova relação transversal entre áreas distintas da filosofia, de uma nova relação produtiva entre analíticos e continentais e da profissionalização da filosofia sem sectarismos e mais inclusiva.

Espero que o livro de Aquino possa ajudar a informar e educar novas gerações de filósofos para ver como a distinção entre analíticos e continentais pode ser não-justificada, ultrapassada e, em alguns casos, sem sentido, quando, por exemplo, tentamos investigar diferentes problemas em debates filosóficos contemporâneos robustos, tanto sobre metodologia quanto sobre conteúdos, concernentes à cultura, mente, linguagem, lógica, politica, subjetividade, normatividade e racionalidade. A divisão entre analíticos e continentais não é intransponível. Especialmente sem os diversos manifestos de combate planetário das últimas décadas.

Eu mesmo comecei como um graduando em filosofia fascinado por Kant, Schopenhauer e Nietzsche e, então, me remeti ao (primeiro) Wittgenstein e Frege como referências do como filosofar. Contudo, agora, com o reconhecimento da deficiência debilitante em partes da metodologia e perspectivas da filosofia analítica profissional, sinto a necessidade de voltar para autores da tradição continental, justamente porque alguns estereótipos presentes são maléficos para se abordar demandas de pesquisa naturais sem excessiva institucionalização. De fato, variantes do naturalismo cientifico ingênuo e do realismo acrítico não são e não devem ser as únicas formas de posição intelectual abertas para um filósofo analítico.

O segundo ponto de tempestividade do livro de Aquino é a própria aproximação de Wittgenstein e Heidegger sob a discussão da natureza da linguagem, independente da leitura atenta ou cuidadosa ou não que um filósofo fez do outro.

Aquino discute, a partir da linguagem, os dois pensadores que parecem ter sido responsáveis, respectivamente, nas variantes analítica e continental da filosofia contemporânea, pela assim chamada virada linguistica. Esta virada historicamente reconhece o protagonismo da linguagem no fazer filosófico, tanto como metodologia quanto como objeto de estudo. De fato, há curtos e raros, exemplos de comentários dos dois filósofos um sobre o outro. Apesar disto, o grande reconhecimento de ambos a respeito dos problemas sobre a relação do sentido da linguagem com a estrutura e totalidade do mundo como tal são investigados por Aquino. Estes problemas não são concernentes apenas à linguagem como um fenômeno histórico ou como uma estrutura formal, mas como relacionada à nossa radical finitude, contingência e intramundanidade evidenciada pelo nosso estar linguístico no mundo tão especial quanto cotidiano.

O livro de Aquino mostra como os dois autores compartilham uma visão muito ampla e significativa a respeito das relações tradicionais entre linguagem e mundo que permanecem abertas e conosco ainda hoje. Um texto recente de Livingston (2016), por exemplo, expõe um problema de limite de compreensão, mas aborda a questão a partir do primeiro Wittgenstein e do último Heidegger.

Acredito que Aquino avança no caminho correto ao pensar o Wittgenstein das “Investigações Filosóficas” e o Heidegger de “Ser e o Tempo”.

Esta observação nos permite falar do terceiro ponto oportuno que Aquino traz. A saber, a ênfase na linguagem e lógica na investigação filosófica e como elas são constituídas no e são constituintes do fluxo de nossas vidas cotidianas.

O primeiro local privilegiado de sentido, significado e valor, ou seja, de normatividade, deveria ser o ambiente próprio de nossas vidas cotidianas, ou como, coloca Aquino, de nossa cotidianidade. Isto mostra a conexão explícita entre os conceitos de ser no mundo, de um lado, e de formas de vida e jogos de linguagem, do outro.

Neste contexto, um ponto alto do livro é defender o lugar próprio da lógica na cotidianidade ao recusar a exclusividade da abordagem lógico-formal dos fenômenos linguísticos, porque esta última não apanharia o fluxo da vida onde o sentido é encontrado e construído. Este movimento recupera o logos clássico na vida cotidiana e pavimenta o caminho para se criticar a centralidade do proposicional no filosofar. Outro acerto, a meu ver, está na avaliação dos pressupostos e implicações da relação íntima entre filosofia e cotidiano, articulando meta-filosoficamente o existencial com o pragmático. Afinal, como Goethe no “Fausto” aponta: “No começo era o ato”, ou seja, habilidades práticas situadas e dinâmicas, e não, o conteúdo intelectual estático fora de qualquer relação com o mundo e o corpo.

Aquino defende que esta associação entre filosofia e cotidianidade incorpora uma mudança de atitude por uma decisão metodológica, de caráter existencial (p. 103).

Assim, a tensão filosófica em descoberta do cotidiano como descoberta do que sempre esteve lá é desenvolvida por Aquino a partir da aproximação difícil entre método hermenêutico e método gramatical na terceira parte de seu livro.

Pode-se afirmar que o pressuposto de que as relações básicas entre cotidiano e linguagem estão encobertas para o próprio cotidiano é o impulso primeiro para a justificação da análise e descrição filosófica da vida, servindo também como base para a avaliação da relação do filosofar com a autocompreensão vigente na vida comum. Enquanto pano de fundo não tematizado, a vida cotidiana padece de uma falta de transparência que o discurso filosófico pretende superar. (p. 104) A discussão sobre o papel constitutivo das práticas na linguagem e na lógica promove a recondução do pensamento para o seu lugar de origem, a vida cotidiana, revalorizada agora como locus primário da significatividade. (p. 75) Em consequência disto, qualquer interpretação filosófica que afaste o filosofar do exercício efetivo da linguagem cotidiana, o lugar da lógica, apontado por Aquino, deve ser suspeito, como a abordagem própria de autores que destacam o caráter metafísico da lógica. Aquino aponta que ambos, Heidegger e Wittgenstein, concordam que o fenômeno da linguagem não é suficientemente compreendido quando tematizado unicamente por intermédio da análise de estruturas formais.

Deste modo, os limites e a origem das teorias deveriam ser nossas vidas elas mesmas. Isto evidencia o primado da prática anterior a teorias e a ênfase de indivíduos inseridos num contexto de significado, de linguagem e de instituições antes do filosofar.

É um acerto tempestivo de Aquino a ênfase na semelhança, apesar das diferenças óbvias e do parco conhecimento de que um filósofo tem do outro.

* * * *

O livro possui, no entanto, ao menos, quatro pontos que poderiam ser, acredito, mais bem desenvolvidos. O primeiro a respeito da discussão sobre lógica. O segundo, a respeito das relações entre formas de vida e estar no mundo. O terceiro, a respeito da discussão contemporânea entre assimilacionismo e diferencialismo. E o quarto, a respeito da terapia linguística.

Quanto ao primeiro ponto a respeito da análise da natureza da lógica, vale notar que apesar da originalidade de se dedicar centralmente a ela, Aquino não define o que está chamando de lógica, apenas menciona lógica formal. Contudo, contemporaneamente temos diversos tipos de lógicas formais e formalismos para diversas finalidades diferentes, como a teoria da prova, dos modelos, e da recursão. Isto mostra que a discussão de Aquino ainda pode e deve ser atualizada para trazer atenção de filósofos e lógicos da tradição analitica.

Além disso, há, a meu ver, uma espécie de descompasso técnico entre Wittgenstein e Heidegger para servir como esteio filosófico de críticas à concepção contemporânea de lógica. Aquino trata do lugar da lógica e da recusa de seu caráter metafísico (embora não mencione problemas contemporâneos como revisão de princípios lógicos, normatividade da lógica, e pluralismo lógico). Contudo, o comprometimento de Heidegger com a lógica aristotélica parece inadequado e antiquado para discutir lógica matemática em função da primeira não expressar a complexidade da segunda. Deste modo, Wittgenstein parece estar em melhores condições para uma crítica mais acertada e bem informada da lógica formal.

Ademais, acredito que o expressivismo lógico de Brandom (1994, 2000) poderia ser usado para pensar o fundamento cotidiano da normatividade de nossa lógica, uma vez que Aquino afirma que :De modo recorrente, a lógica é concebida com base na pressuposição de seu valor essencial e de suas promessas de profundidade.

Isso pode ser exibido por intermédio do problema do vínculo entre lógica e ontologia, que não é apenas característico do contexto antipsicologista da época, mas acompanha grande parte da história dessa disciplina. (p. 150). Ora, Brandom mostra, acompanhando em parte o segundo Wittgenstein, que ainda é possível ter profundidade filosófica na lógica formal, apesar de recusarmos seu pretenso fundo metafísico. (Aliás, muito pouco de autores heideggerianos pragmatistas como Dreyfus, Brandom, e Haugeland aparecem no livro de Aquino. Rorty poderia ser mais mencionado).

O segundo ponto que poderia ser, a meu ver, mais bem desenvolvido no livro de Aquino é a relação entre os conceitos de forma de vida e Weltbild. Acredito que em muitos pontos o livro de Aquino pressupõe, mas não explica a associação entre ser no mundo (no sentido existencial e singular) e forma de vida (com ênfase no caráter social, público e biológico). Com efeito, podemos ter discussões existencialistas sem mencionar aspectos sociais e biológicos e discussões naturalistas sem a menção de aspectos existenciais. Além disso, vale notar que vida cotidiana não é o mesmo que estar no mundo e não pode ser identificado tampouco sem explicações com forma de vida. Esta dificuldade aponta outros dois problemas, a saber, a distinção entre forma de vida e cultura (p. 28) e à relação de forma de vida e discussões modais (p. 55) na própria periodização de Wittgenstein. Há no livro de Aquino várias idas e vindas no exame da trajetória filosófica de Wittgenstein, mas Aquino não discute, por exemplo, os tipos de problemas que levaram o primeiro Wittgenstein ao segundo, passando por seu rico período intermediário. Ademais, em várias ocasiões, para tratar do pano de fundo público e cultural do ser no mundo, Aquino usa o “Sobre a Certeza” (como por exemplo, p. 53-54 ou p. 152-55) e não “Investigações Filosóficas”. O conceito de Weltbild do “Sobre a Certeza” me parece mais radical que o conceito de jogos de linguagem na base de nossas formas de vida. Não podemos, em um certo sentido filosoficamente relevante, saltar para fora de nossa imagem de mundo, como poderíamos transitar entre diferentes jogos de linguagem em formas de vida diferentes, mas semelhantes.

Vale notar que no “Sobre a Certeza”, o uso de forma de vida é muito escasso. O conceito principal parece ser o de Weltbild para tratar de conflitos profundos entre imagens de mundo ao enfatizar como somos introduzidos nelas. A pergunta que emerge aqui é: A remissão de Aquino aos textos finais da trajetória filosófica de Wittgenstein é acidental? Não seria o “Sobre a Certeza”, o texto existencialmente importante do Wittgenstein em função do exame do nosso Festhalten em uma imagem de mundo herdada e da investigação da vulnerabilidade de nossas convicções fulcrais e da nossa segurança precária baseadas em crenças sem fundamento último? O terceiro ponto que poderia ser mais bem desenvolvido no livro de Aquino se remete, a meu ver, à distinção contemporânea entre assimilacionistas e diferencialistas.

O primeiro grupo de filósofos defendem a continuidade entre o ser humano e outros animais. Ao passo que a segunda tradição enfatiza a descontinuidade nas características entre seres humanos e animais não-humanos. Neste contexto, as motivações dos dois filósofos, Wittgenstein e Heidegger, parecem ser bem diferentes, ate mesmo antagônicas, como Aquino, ele mesmo, admite. (p. 61). O assimilacionismo de Wittgenstein se baseia na visão de que a linguagem deveria ser pensada como pertencendo a nossa história natural, assim como andar, comer e dormir. A linguagem humana seria uma característica animal nossa e assim como outras características deve ter sido selecionada através de um período muito longo de trocas dinâmicas com o meio e outros indivíduos por trazerem vantagens evolutivas para nossa espécie. Segundo esta visão, estamos em continuidade com outros animais. Não há nada de especial entre nós e outros animais. Afinal, “somos animais primitivos”. Este é um lema do “Sobre a Certeza” (SC 475). Isto parece contrastar frontalmente com uma espécie de anti-assimilacionismo de Heidegger que visa enfatizar justamente a descontinuidade entre homem e natureza. Nesta visão, haveria uma profunda e radical descontinuidade entre seres humanos e outros animais. Afinal, a existência do humano seria uma abertura especial, uma irrupção, uma vez que o mundo dos animais seria carente de significado. Com seres humanos, algo radicalmente novo e irredutível, aparece na natureza.

O quarto ponto que, a meu ver, mereceria mais desenvolvimento trata da própria imagem de terapia e despertar existencial. Aquino descreve, por exemplo, a terapia Wittgensteiniana:

O tema da terapia é, portanto, a fixação em certas expressões, que são frequentemente empregadas e dificilmente dispensadas. A filosofia tradicional demonstra claramente o nível do apego alcançado não apenas rejeitando o abandono ou a substituição dessas expressões por outras menos fascinantes, mas também pela busca contínua de um refinamento do seu sentido, como se a definição ou o esclarecimento fosse um meio de aprofundamento da compreensão. Essa tendência necessita de tratamento, antes de tudo, porque a aparência de profundidade gerada pela expressão linguística é uma ilusão gramatical sustentada por um pathos. (p. 124)

Esta aparência de profundidade parece ser justamente um ponto de crítica Wittgensteiniano que poderia ser direcionado ao Heidegger. O Procedimento terapêutico da filosofia de Wittgenstein, descrito, por exemplo, na p. 138, parece encontrar exatamente na filosofia de Heidegger uma paciente, apesar de Aquino parecer mais simpatico às abissalidades de Heidegger. Dualmente, a análise do discurso filosófico de Wittgenstein, o limitando e regulando, se remetendo ao nosso domínio de línguas naturais e cotidianas poderia ser um bom exemplo de “falatório” não-filosófico para Heidegger. Em certo sentido relevante de filosofia como terapia pela linguagem, poderíamos dizer que: Heidegger e Wittgenstein poderiam ser ambos paciente e terapeuta um do outro.

Referências

BELL, Jeffrey et al. (Eds.). Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016.

BRANDOM, Robert. Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive Commitment . Cambridge, MA: Harvard University Press, 1994.

______. Articulating Reasons. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000.

CONANT, James. The Emergence of the Concept of the Analytic Tradition as a Form of Philosophical Self-Consciousness. In. JEFFREY A. BELL, Andrew Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 17-58.

HEIDEGGER, Martin. Being and Time. Translated by Joan Stambaugh, revised by Dennis Schmidt. Albany, New York: SUNY Press, 2010.

LIVINGSTON, Paul M. Wittgenstein Reads Heidegger, Heidegger Reads Wittgenstein: Thinking Language Bounding World. In: JEFFREY A. Bell, ANDREW Cutrofello, PAUL M. Livingston (Eds.): Beyond the analytic- continental divide: pluralist philosophy in the twenty-first century. New York: Routledge, 2016. p. 222-248.

WITTGENSTEIN, L., Tractatus logico-philosophicus“ (logisch- philosophische abhandlung). Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1993.

______. “PHILOSOPHICAL INVESTIGATIONS” (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

______. “ON CERTAINTY” (ÜBER GEWISSHEIT). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1969.

Sobre o autor Marcos Silva – Doutor em Filosofia (2012) pela PUC-Rio, com período sanduíche na Universitaet Leipzig, de 2009 a 2011, (bolsista DAAD/CAPES). Pós-doutorado na UFRJ (2012). Pós-doutorado (2014-2015) pela UFC, Professor da UFAL. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. E-mail: marcossilvarj@gmail.com

Acesso à publicação original

 

 

Antrope. Tomar, n.10, jul. 2019.

Editorial

Artigos

  • OS PERSONAGENS HOMÉRICOS NO QUOTIDIANO LUSITANO
  • José d’Encarnação
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • O MONITORAMENTO ARQUEOLÓGICO NA CONSTRUÇÃO DA FERROVIA TRANSNORDESTINA: DESAFIOS METODOLÓGICOS NO LICENCIAMENTO DE PROJETOS DE GRANDE EXTENSÃO
  • Luciana Bozzo Alves, Luiz Antonio Pacheco de Queiroz e Catarina Menezes Ferreira
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • OS DOCUMENTOS ARQUEOLÓGICOS NO ENSINO DE HISTÓRIA: UMA EXPERIÊNCIA ATRAVÉS DE JOGOS
  • Ana Lúcia do Nascimento Oliveir e Jonas Clevison Pereira de Melo Júnior
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • FORTES E FORTALEZAS COMO “LUGARES DE MEMÓRIA”: O CASO BRASILEIRO
  • Edgley Pereira de Paula
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • ANÁLISE ESTÁVEL DE ISÓTOPOS APLICADA À ZOOARQUEOLOGIA – CONCEITOS, EXEMPLOS E CONTRIBUIÇÃO PARA O ESTUDO DO PASSADO –
  • Cátia Sofia Machado Teixeira
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • ARQUIVO E FUNDO ARQUIVÍSTICO – CONCEITOS, LEGISLAÇÃO, NORMALIZAÇÃO
  • Joaquim Pombo Gonçalves
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • O ENTALHADOR JOSÉ MANUEL MACHADO: BREVES NOTAS DE INVESTIGAÇÃO
  • Miguel Portela
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • L’ARCHÉOTOURISME DANS LE SUD MAROCAIN, VERS UNE DURABILITÉ DES SITES RUPESTRES
  • Naima Oulmakki, Faysal Lemjidi et Mustapha El Hamri
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • LE SYSTÈME OASIEN DE LA PALMERAIE DE MARRAKECH: RICHESSES ET VALORISATION D’UN PATRIMOINE CULTUREL
  • Hicham Saddou
  • Resumo | Download (pdf) >>
  • AS CASAS VERDES: A BUSCA POR UMA MORADIA DE OPERÁRIOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX EM RIO GRANDE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL
  • Paulo Eduardo de Oliveira Enéas
  • Resumo | Download (pdf) >>

Manuais disciplinares, discursos pedagógicos e formação de professores (Séculos XIX e XX) / Revista História da Educação / 2019

Neste dossiê estão reunidos artigos em que os autores envidaram esforços para compreender os aspectos instituintes presentes nos diferentes discursos pedagógicos que fundamentaram a ideia de renovação educacional desde o final do Século XIX e durante o Século XX. Para tanto, tomam como fonte privilegiada diferentes manuais disciplinares que foram muito utilizados nos processos de formação de professores internacionalmente, ainda que a análise recaia particularmente naqueles em circulação no Brasil e em Portugal, o que ocorreu, destacadamente em Escolas Normais, mas, também, em cursos superiores de formação de professores. Nessa direção, os manuais disciplinares elencados como fonte nos diferentes artigos propostos para integrar o presente dossiê incluem os de História da Educação, Psicologia Educacional, Didática, Pedagogia e Metodologias e Práticas de Ensino.

Assim, pode-se perceber que parte considerável dos manuais disciplinares publicados em uma primeira fase, que se estende até meados do Século XX comportava um ideário cientificista, evolucionista e higienista que estava acompanhado do estabelecimento e da disseminação de um código moral laico eminentemente cívico, considerado fundamental para o progresso das diferentes nações e para o alcance dos fins gerais da Humanidade. Em um segundo momento, a ênfase recaiu na dimensão científica e crítica, o que se estende até os tempos atuais. Com certeza este esforço discursivo e formativo contido nos manuais disciplinares encontrou forte ressonância, mas também resistência, o que se espera deixar evidenciado com o presente dossiê.

O primeiro artigo que integra o dossiê recebeu o título “Os temas da evolução e do progresso nos discursos da Psicologia educacional e da História da Educação”. Foi redigido por Ana Laura Godinho Lima, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Este artigo realiza a análise de um conjunto de manuais de psicologia educacional e história da educação destinados à formação docente, cujo objetivo é identificar as aproximações e os distanciamentos entre essas disciplinas no que se refere à presença dos temas da evolução e do progresso. Incide sobre manuais publicados no Brasil entre 1934 e 1972 e inspira-se nos escritos de Foucault sobre a análise do discurso. Nos manuais dessas disciplinas, observou-se a recorrência da associação entre o desenvolvimento da criança e o progresso social, frequentemente descritos à luz da teoria da recapitulação. Essa teoria não foi, contudo, objeto de consenso, mas constituiu foco de controvérsia, representando um aspecto do debate entre educadores escolanovistas e católicos no período considerado.

Sob o título “A medicalização da Pedagogia: discursos médicos na construção do discurso pedagógico e nos manuais de formação de professores em Portugal (Séculos XIX-XX)”, António Carlos da Luz Correia, professor convidado do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, apresenta um ensaio, no qual procura problematizar as modalidades por meio das quais o discurso médico foi incorporado no discurso pedagógico, naturalizando-o, no período que decorre entre o final do século XIX e as três décadas iniciais do século XX, em Portugal. Do ponto de vista empírico, recorre a pesquisas realizadas previamente, individualmente ou em colaboração com outros pesquisadores. Pretende abrir pistas para discussão da Escola e do seu papel nas transformações sociais atuais, buscando desocultar as modalidades de apagamento dos fatores sociais, culturais e políticos que intervêm historicamente nos desafios da problemática educativa escolar.

Geraldo Gonçalves de Lima e Décio Gatti Júnior, vinculados, respectivamente, ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro e a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia, redigiram o artigo intitulado, “Educação, sociedade e democracia: John Dewey nos manuais de História da Educação e / ou Pedagogia (Brasil, Século XX), no qual comunicaram os resultados de investigação no âmbito da História da Educação, particularmente na temática da História Disciplinar, cujo foco recaiu sobre as ideias de John Dewey disseminadas em manuais de História da Educação, com autores estrangeiros, traduzidos e publicados no Brasil, entre 1939 e 2010, que tiveram ampla circulação em escolas normais e cursos superiores de formação de professores. As fontes incluíram bibliografia de referência e doze manuais de História da Educação. Os resultados apontam para a percepção de quatro ênfases nas abordagens sobre Dewey: herança hegeliana; marcos evolucionistas; relação indivíduo / sociedade (industrial e democrática); emergência da psicologia experimental.

No artigo intitulado “As ideias de Durkheim nos manuais de História da Educação: cientificidade e moralidade laica na vida social e na escola”, Katiene Nogueira da Silva (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) e Giseli Cristina do Vale Gatti (Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Uberaba), analisam as ideias de Durkheim contidas em manuais de História da Educação, com autores estrangeiros, publicados no Brasil entre 1939 e 2010. Perceberam que alguns manuais, apesar de não terem mencionado Durkheim diretamente, abordaram ideias próximas de seu pensamento. Os demais, que foram maioria, mencionaram Durkheim em intensidades diferentes. Neles, Durkheim foi tomado simultaneamente como fonte de informações e de análises, mas, também como portador de uma perspectiva original e influente de educação, a pedagogia sociológica. Além disso, foi possível perceber a existência de críticas a seu pensamento, provenientes, sobretudo, dos autores de manuais vinculados ao campo católico.

Vivian Batista da Silva e Denice Barbara Catani, ambas da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, fecham o presente dossiê, com o artigo intitulado, “Metáforas e comparações que ensinam a ensinar: a razão e a identidade da Pedagogia nos manuais para professores (1873-1909), no qual perguntam se estariam os manuais para professores mais próximos de um livro ou de um receituário? A partir desta questão, analisam cinco títulos publicados entre 1873 e 1909, a saber: o Compêndio de Pedagogia (Pontes, 1873); Pedagogia e metodologia, de C. Passalacqua (1887); Lições de Pedagogia, de V. Magalhães (1900); Compêndio de Pedagogia, de D. Vellozo (1907); Tratado de Metodologia, de F. Carvalho (1909). Buscaram conhecer como são feitas as referências à Pedagogia, sua razão e identidade. Nesses textos, ela aparece ora como ciência, ora como arte. Analisando as metáforas usadas para orientar os professores, é possível identificar imagens a partir das quais os saberes pedagógicos são definidos e apresentados como objetos de leitura para o magistério.

Esperamos que a leitura do presente dossiê oportunize tanto a percepção de uma temática importante relacionada aos esforços de formação de professores, no qual formas de pensar o pedagógico, as instituições escolares e a relação com a sociedade se destaquem, mas, também, por outro lado, assinalar a fertilidade em tomar os manuais disciplinares como fonte privilegiada para conhecer as finalidades pedagógicas que disputaram o público docente e presidiram sua formação desde o final do Século XIX, com avanço na quase totalidade do Século XX.

Denice Barbara Catani – Professora Titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: dbcat@usp.br http: / / orcid.org / 0000-0001-6019-8969

Décio Gatti Júnior – Professor Titular de História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Educação (História e Filosofia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com estágio de pós-doutorado concluído na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Beneficiário do Edital Pesquisador Mineiro da Fapemig. E-mail: degatti@ufu.br http: / / orcid.org / 0000-0002-5876-6733


CATANI, Denice Barbara; GATTI JÚNIOR, Décio. Apresentação. Revista História da Educação. Porto Alegre, v. 23, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Arquitetura escolar: diálogos entre o global, nacional e regional na história da educação / Revista História da Educação / 2019

O ano de 2018 marcou duas décadas da publicação no Brasil da obra organizada por Antonio Viñao Frago e Agustín Benito Escolano, intitulada “Currículo, Espaço e Subjetividade: arquitetura escolar como programa” (1998) [3]. Considerada na época a “caixa preta” dos estudos na área de história da educação, o espaço e a arquitetura escolar tem sido explorados em diversas pesquisas estudos no país, exercitando uma importante interlocução entre história, educação e arquitetura [4].

Revisitando a importância desta publicação, que teve sua segunda edição em 2001, este dossiê propõe dialogar sobre a arquitetura escolar em perspectiva global, nacional e regional, enfatizando o momento de configuração e de consolidação das redes de ensino primária em diferentes países e a constituição da escola como uma instituição independente das demais, o que lhe configurou uma identidade própria. Nesta conjuntura, consideramos a concepção funcional e simbólica que a arquitetura escolar incorporou, tanto nos meios urbanos como nos rurais, acompanhando as demandas pedagógicas, as questões higiênicas, assim como os discursos em torno da formação do cidadão através da escola. Leia Mais

História Hoje. São Paulo, v.8, n.16, jul./dez. 2019.

Dossiê

Entrevista

Falando de História hoje

História Hoje na sala de aula

Resenhas

Artigos

 

Mythos – Revista de História Antiga e Medieval. Imperatriz, n2, 2019.

Edição II – 2019

Editorial

  • Fabricio Nascimento de Moura, 7

Artigos

  • LA FORMACIÓN DE LOS GUARDIANES. PODER POLÍTICA Y EDUCACIÓN EN EL LIBRO V DE REPÚBLICA
  • María Cecilia Colombani, 11
  • IDENTIDADE RELIGIOSA: MOVIMENTO REFORMISTA DOS VALDENSES E SEU IDEAL DE BOM CRISTÃO.
  • Luana Maia da Silva, 26
  • “INFANTICIDA! FÊMEA ABOMINÁVEL!”, VIOLÊNCIA E MORTE NA TRAGÉDIA MEDEIA DE EURÍPIDES
  • Jaquelyne de Aquino Souza, 36
  • PINTURA RUPESTRE NO PALEOLÍTICO: SÍMBOLOS E SUAS LINGUAGENS
  • Amanda Vitória Silva Fonseca, 48
  • DO ETNOCENTRISMO À ALTERIDADE: O MEDITERRÂNEO COMO OBSERVAÇÃO DAS SOCIEDADES EGÍPCIA E GREGA NO ENSINO ESCOLAR.
  • Jerrison Patu, 60
  • FILOLOGIA: O DESENVOLVIMENTO DO FRANCÊS, LÍNGUA CULTA E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
  • Patrícia da Silva Araújo, 75
  • A TRANSIÇÃO LINGUÍSTICA E METODOLÓGICA DE PESQUISA EM HISTÓRIA NA GRÉCIA ANTIGA ATRAVÉS DA OBRA DE HERÓDOTO
  • Leandro de Almeida Costa, 86
  • CARACTERIZAÇÃO DA VIDA NAS ESTEPES MONGÓIS NO SÉCULO XIII
  • Samila Silva Mesquita, 106
  • OS FILHOS DE LOKI: A REPRESENTATIVIDADE DO CAVALO, DO LOBO E DA SERPENTE NA MITOLOGIA NÓRDICA.
  • Michelly Bianca Sousa Alencar, 121
  • MITOLOGIA JAPONESA: AMATERASU, A DEUSA DO SOL
  • Eubre Pessoa Soares Junior, 131

Publicado: 14.12.2021

 

 

História medieval – SILVA (S-RH)

SILVA, Marcelo Cândido da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019, 160p.  Resenha de: SILVA, Kléber Clementino da. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 24, n. 41, p. 453-463, jul./dez. 2019.

A vinda a lume do novo livro do professor da USP Marcelo Cândido da Silva, História medieval, pela editora Contexto, deve sem dúvida dar motivo a comemorações por parte de estudantes e professores de história, bem como do mais público interessado. Apesar dos recentes avanços da medievalística em terras tupiniquins, por mérito de pesquisadores como Neri de Barros Almeida, Renato Viana Boy, Johnni Langer, entre outros, sem excluir o próprio autor ora resenhado – que já publicou sua tese doutoral sobre a monarquia franca, um conhecido livro discutindo a “queda” do Império Romano do Ocidente e outro sobre o crime no Medievo – sínteses atualizadas e de qualidade, ao alcance do leitor brasileiro, sobre os dez séculos em que, na periodização tradicional, se alonga a Idade Média são ainda produtos raros.  E é precisamente esta a lacuna que a recente publicação procura preencher: uma obra de pequena extensão e linguagem simples, tecida com sólida erudição e rigor acadêmico, revisitando tópicos julgados basilares para o primeiro contato com o campo da medievalística: o debate sobre as migrações germânicas e a “queda” do Império Romano do Ocidente; a dominação senhorial; a Reforma da Igreja; a crise dos séculos XIV e XV, entre outros. A opção pela exposição que combina capítulos temáticos com um discernível encadeamento cronológico, ademais, diferencia o novo texto do já clássico Idade Média: o nascimento do Ocidente, de Hilário Franco Jr., publicado em 1986, cujos blocos temáticos pensam o tempo medieval a partir de “estruturas” (políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.), faceta teórico-metodológica recorrente nos estudos daquele professor. Este, aliás, como veremos, não é o único elemento que aparta ambos os estudos. Leia Mais

Fontes para a história ambiental / Revista de Fontes / 2019

A história ambiental busca documentar e compreender a relação sociedade-natureza ao longo do tempo, a partir da problemática ambiental contemporânea. Essa problemática, hoje, perpassa as discussões sobre o desenvolvimento econômico e social, as relações internacionais, a cultura e o cotidiano. Cuidar da vida do planeta Terra como um todo aparece como imperativo no século XXI, sem o que haverá, inexoravelmente, a degradação das condições de vida de bilhões de seres humanos.

Este dossiê, assim, encontra plena justificativa no que se refere a sua relevância social. No âmbito acadêmico também se justifica, pois a relação sociedade-natureza fez parte do repertório da reflexão histórica ao longo do tempo[1].Talvez o exemplo mais eloquente dessa situação, no Brasil, seja a produção relativa ao período colonial, que ao investigar a ocupação europeia do continente americano, abordou como recursos naturais eram utilizados e percebidos pelos povos nativos, pelos invasores e pela nova sociedade que surgia. Obras clássicas como A Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr. e Caminhos e Fronteiras de Sérgio Buarque de Holanda, para citar duas das mais conhecidas e importantes, demonstram como a História Ambiental encontra referências na história da historiografia brasileira.

Mas embora investigar sociedade e natureza não seja novidade na historiografia, a História Ambiental tem como especificidade problematizar essa relação a partir de um ponto de vista, que ganha força na segunda metade do século XX, de que a crise ambiental tem alcance mundial, afetando diretamente a vida da maior parte da população do planeta e que é uma ameaça não só ao futuro da Humanidade, mas ao seu presente. Essa compreensão ganhou forma a partir do diálogo e controvérsias estabelecidas entre diferentes ciências, mas também entre estas e as artes, a literatura e os saberes tradicionais, tudo isso impulsionado por movimentos sociais diversos, que apontavam tanto questões práticas e imediatas como preservar uma floresta, como ampliavam o escopo da sua crítica para a própria organização da sociedade industrial e seu modo de vida.

A medida que o século XX avançava houve questionamentos radicais à sociedade industrial, que tinha na noção de progresso elemento central. O próprio conceito de “desenvolvimento econômico” foi contestado, diante da crescente percepção de uma crise ambiental planetária, manifestada, dentre outros aspectos, pela poluição crescente do ar, água e solo; pela destruição dos ecossistemas e extinção de espécies; pelo esgotamento ou distribuição e uso desigual de recursos naturais [2]; e, no fim de século, pelas mudanças climáticas. Cabe notar que a crise ambiental aparecia com toda força na vida cotidiana e na economia dos próprios países ricos em meados do século XX, como nos casos da contaminação do ar em Londres e Nova York ou a intoxicação por mercúrio em Minamata e Niigata, no Japão. Em 1973, o primeiro “choque do petróleo”, embora decorrente de disputas geopolíticas e comerciais, demonstrou a dependência das sociedades industrializadas de um recurso natural finito.

A crise ambiental que em maior ou menor grau atingia a todos e era tida como ameaça ao futuro dava força aos movimentos ambientalistas mundo afora, e eles tinham ampla ressonância social em países democráticos da Europa e nos EUA. Os debates e estudos sobre essa problemática aumentavam. Em 1968 foi fundado o Clube de Roma, um grupo de pesquisadores que se reuniu para debater assuntos relacionados ao desenvolvimento e o meio ambiente, trabalhando ativamente para que as discussões alcançassem centralidade na agenda política mundial. Em 1972, em conjunto com a Associação Potomac e o Massachusets Institute of Technology, foi publicado o relatório Os limites do Crescimento, que influenciou os debates que ocorreram em torno da Conferência sobre o Meio Ambiente Humano, que ocorreu, no mesmo ano, em Estocolmo, na Suécia. Os estudiosos discutiam como seria o futuro se todos os países continuassem crescendo num ritmo acelerado. Apontavam, então, para os limites do crescimento, ou seja, a impossibilidade de se manter o padrão de desenvolvimento sem que isso resultasse em um colapso ambiental. Pensar novas formas de organização social que propiciassem um relacionamento mais harmonioso entre sociedade e natureza impunha-se como um dos grandes desafios do século [3].

Mas a Primeira Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente também foi marcada por debates acirrados entre os representantes dos governos dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos. Nesse encontro, os temas da poluição e da pressão exercida pelo crescimento demográfico sobre os recursos naturais provocaram discussões acirradas. Surgiram propostas de controle de natalidade e do próprio crescimento econômico de países periféricos na economia mundial, resultando em um intenso debate entre os desenvolvimentistas e os “zeristas”, que defendiam um crescimento econômico zero, ressaltando que não haveria recursos naturais suficientes para garantir a universalização dos padrões de produção e consumo dos países desenvolvidos.

Mas diante disso, o que deveriam fazer os países mais pobres? Aceitar a pobreza e a desigualdade internacional ou destruir o planeta em busca de seu desenvolvimento? Colocado nesses termos o debate não avançava. A resposta mais complexa tentava superar o dilema do desenvolvimento como sinônimo de degradação ambiental. Não era fácil. Mas, do ponto de vista intelectual era a reflexão que tinha futuro. Os intelectuais mais criativos assumiam como premissa que era preciso conciliar desenvolvimento humano e natureza, inventar um novo rumo para o planeta, e ele somente poderia ser realizado a partir de uma abordagem socioambiental. As humanidades, assim, alcançavam o centro do debate ambiental, que, para muitos, parecia ser objeto das ciências naturais. A historiografia também se engajou nessa reflexão.

Nos Estados Unidos nascia a Environmental History, ou seja, a História Ambiental adquiria identidade com o início de um esforço consciente e sistemático de incorporação aos estudos históricos das questões e variáveis ambientais. Segundo Donald Worster, uma das principais referências do movimento nascente, o objetivo principal dos historiadores ambientais tornou-se “aprofundar o entendimento de como os seres humanos foram, através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural, e, inversamente, como eles afetaram esse ambiente e com que resultados” [4]. Em 1974, os Annales, a renomada revista francesa vinculada à escola historiográfica que leva o mesmo nome, publicou uma edição especial dedicada a temática ambiental: Historie et environnement. Em 1999 era fundada a European Society for Environmental History (ESEH). Em 2003 os historiadores ambientais da América Latina se reuniram na SOLCHA, a Sociedade Latino Americana e Caribenha de História Ambiental

O Brasil acompanhou toda essa movimentação social e acadêmica que acontecia no mundo na segunda metade do século XX, embora o ambiente repressivo implantado pela Ditadura de 1964 tenha dificultado a participação mais ampla da sociedade. Mas no contexto de redemocratização do país nos anos 1980, período marcado por grande efervescência cultural e política, as questões ambientais chegaram ao grande público. Foi a época em que Chico Mendes, liderança popular do Acre, ganhou destaque internacional ao encarnar a luta dos seringueiros e a defesa da Floresta Amazônica; quando as ONGs ambientalistas ganharam força e, inclusive, surgiu o Partido Verde, inspirado na experiência europeia. Em 1992, vinte anos depois de Estocolmo, o Brasil receberia a Segunda Conferência Internacional sobre Meio Ambiente, a Rio92, que teve grande repercussão no país.

Nos cursos de história a temática ambiental começou a ganhar espaço. Os livros de Keith Thomas [5] e Warren Dean eram inspiradores. Dean, tendo finalizado sua pesquisa sobre a Amazônia, publicou o livro “Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history”, em 1987, e a obra logo foi traduzida e publicada no Brasil em 1989 [6]. Autor bastante conhecido no mundo acadêmico brasileiro, Warren Dean deu visibilidade à nova agenda de pesquisa que surgia. Anos mais tarde escreveria um clássico: A Ferro e Fogo. A história da devastação da Mata-Atlântica Brasileira [7]. Em 1987 era defendida na Unesp de Assis a dissertação de mestrado de Jozimar Paes de Almeida, intitulada a “A Extinção do Arco-Iris. A agroindústria e o eco-histórico”, talvez a primeira pesquisa da área nascente em programas de pós-graduação em história8.

O ensino também participou desse movimento de incorporação do meio-ambiente à reflexão histórica. A importância da educação para o enfrentamento da crise ambiental foi ressaltada na Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, em 1972. Discussões sobre o conceito de Educação Ambiental e as formas de implementá-la aconteceram em seminários e encontros ao longo dos anos seguintes. A Constituição Federal do Brasil de 1988, elaborada em um contexto de grande participação social indica em seu Capítulo VI – Do meio ambiente, no art. 225, que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Além disso, a mesma Constituição afirma que para assegurar a efetividade desse direito o Poder Público deve promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), elaborados em meados dos anos 1990, instituíram o meio-ambiente como tema transversal no ensino fundamental e médio9. Hoje, o ensino de história terá de pensar a questão ambiental a partir da Base Nacional Comum Curricular, uma novidade ainda pouco conhecida pela grande maioria dos historiadores.

Como se vê, a partir de fins do século XX o meio-ambiente floresceu na área de história e, desde então, se expandiu fortemente. No Brasil, vinte anos atrás, seria possível identificar facilmente os poucos historiadores dedicados à temática ambiental e os centros de pesquisa da área. Em 2020 essa lista seria longa demais para um texto introdutório. A história ambiental aumenta seu espaço no ensino, na pesquisa e nas publicações acadêmicas e alcança ressonância social.

Esperamos que os artigos deste dossiê auxiliem todos aqueles que pretendem pensar o meio-ambiente em perspectiva histórica.

Notas

1. Paulo Henrique Martinez. “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira ?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História: O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom. Seminário Temático XIII.

2. Arthur Soffiati. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história”, Desenvolvimento e Meio Ambiente, 18, jul. / dez. 2008, p. 14.

3. Wagner Costa Ribeiro. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001, p. 77; Phillippe Le Preste. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001, p. 159ss.

4. Donald Worster. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, 1991, pp. 198-215 (publicado, originalmente, em 1988 nos EUA).

5. Keith Thomas. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

6. Warren Dean. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987; A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

7. Warren Dean. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

8. Jozimar Paes de Almeida. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, 1987.

9. Circe Maria Fernandes Bittencourt. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, 2003, p. 51.

Referências

ALMEIDA, Jozimar Paes de. A Extinção do Arco-íris: A Agro-Indústria e o Eco-histórico. Mestrado em História, UNESP, Brasil, 1987.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. “Meio ambiente e ensino de história”, História & Ensino, 9, pp. 63-96, 2003.

DEAN, Warren. A Ferro e Fogo. A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

DEAN, Warren. A luta pela borracha no Brasil: um estudo de história ecológica. São Paulo: Nobel, 1989.

DEAN, Warren. Brazil and the Struggle for Rubber: a study in environmental history. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

LE PRESTE, Phillippe. Ecopolítica Internacional. São Paulo: Editora Senac, 2001.

MARTINEZ, Paulo Henrique “Existe Uma Historiografia Ambiental Brasileira?”. In: Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. ANPUH / SP Unicamp. Campinas, 6 a 10 de setembro de 2004. Cd-rom.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2001. SOFFIATI, Arthur. “Algumas palavras sobre uma teoria da eco-história, Desenvolvimento e Meio Ambiente”, n. 18, pp. 13-26 , jul. / dez. 2008.

THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

WORSTER, Donald. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, 4-8, pp. 198-215, 1991.

Janes Jorge – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: janes.jorge@unifesp.br https: / / orcid.org / 0000-0003-1767-2148

Patricia Tavares Raffaini – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Programa de Pós-Graduação em História, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, SP, Brasil. E-mail: raffaini@usp.br https: / / orcid.org / 0000-0003-1921-6269


JORGE, Janes; RAFFAINI, Patricia Tavares. Apresentação. Revista de Fontes. Guarulhos, v.6, n.11, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

2º Congresso de História da Ciência e da Técnica / Intelligere – Revista de História Intelectual / 2019

[2º Congresso de História da Ciência e da Técnica]. Intelligere – Revista de História Intelectual. São Paulo, n. 7, 2019. Acessar dossiê [DR]

História e mundos do trabalho no Brasil: desenvolvimento, paradoxos e desafios | Ars Historica | 2019

“O século XX foi a era da classe trabalhadora”, lembrou recentemente o sociólogo sueco e professor da Universidade de Cambridge, Goran Therborn. Para ele, foi nesse período que, em escala global, “pela primeira vez, as pessoas que trabalham e que não têm propriedade tornaram-se uma força política fundamental”.1 Também foi assim no Brasil. Se os legados seculares da escravidão e os impactos das imensas assimetrias econômicas e exclusão política marcaram a “questão social”, também é possível dizer que os embates contra essas desigualdades foram decisivos para a construção de uma linguagem de classe e de valorização do mundo do trabalho que colocaria os setores populares no centro da arena política ao longo daquele século.

É verdade que os sindicatos e as movimentações coletivas dos trabalhadores e das trabalhadoras têm sido, desde há muito, objeto de escrutínio e análise acadêmica. Embalada pelas ideias de modernização — entendida como urbanização e industrialização —, a pioneira sociologia paulista dos anos 1950 e 1960, por exemplo, teve no sindicalismo e na formação social da classe operária alguns dos seus principais objetos de estudo.2 O impacto do golpe de 1964, articulado segundo muitos de seus perpetradores, contra uma suposta “República Sindicalista” que dominaria o país, estimulou uma série de avaliações de estudiosos, em particular cientistas políticos, interessados nos potenciais limites e deficiências dos chamados sindicatos “populistas” instaurados na “Era Vargas”.3 Por sua vez, a eclosão de uma onda grevista e do chamado “novo sindicalismo” que marcaria a redemocratização do país no final dos anos 1970 geraria uma enorme onda de interesse e estudos sobre os trabalhadores e movimentos sociais, onda essa bastante influente nas ciências sociais brasileiras ao longo dos anos 1980.4 Leia Mais

O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto

Nas últimas décadas, sobretudo após o desmembramento da URSS, muitos críticos do marxismo alçaram sucesso editorial. Não foram poucos os que, assim como Francis Fukuyama, declararam “o fim da História”. O que se seguiu foi uma recusa às abordagens e aos conceitos que adotavam uma interpretação a partir das estruturas socioeconômicas e da categoria de “classe”, para uma divisão das pautas sociais e temas que movimentos políticos, mais individualizados e fragmentados, apropriaram-se a partir de uma perspectiva liberal. Nessa conjuntura, certos clichês acadêmicos foram repetidos à exaustão, a ponto de perder sua base crítica. Reducionismos recorrentes acerca do marxismo defendiam que essa corrente de pensamento seria economicista, determinista, eurocêntrica e teleológica.

Novas pesquisas e trabalhos de divulgação buscam contribuir para o campo teórico do marxismo, que sempre se mostrou muito rico em argumentos socioeconômicos e em percepções histórico-conjunturais. É nesse sentido que o trabalho O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2018, do sociólogo e filósofo italiano Marcello Musto, é essencial para fortalecer os campos de pesquisa das humanidades, sobretudo a pesquisa histórica, com o propósito de superar os limites impostos pelos chavões já mencionados. Leia Mais

Public History and School, International Perspectives – DEMANTOWSKY (Nv)

DEMANTOWSKY, Marko (Ed.). Public History and School. International Perspectives. Oldenbourg: De Gruyter, 2019. Resenha de: CECCOLI, Paolo. Novecento.org – Didattica dela storia in rete, 1 lug. 2019.

Tra gli specialisti e gli studiosi di didattica della storia il dibattito sulla public history è più vivo che mai. In questo ambito Marko Demantowski, direttore esecutivo della rivista on line https://public-history-weekly.degruyter.com/ha curato una raccolta di saggi, corredata da un’ampia e interessante bibliografia, sul rapporto fra public history e scuola che vale la pena di trattare[1].

Il testo parte da una tesi forte: qualunque cosa sia la public history, ci sono ragioni storiche e concettuali per sostenere che essa trovi nella scuola un luogo d’elezione.

Uno dei progetti più riusciti della modernità, diffuso in tutto il mondo e garantito dagli stati, è la gigantesca istituzione che chiamiamo scuola, specialmente quando è offerta gratuitamente e resa obbligatoria per tutti. Dal XVIII secolo in poi, ciò che segna la graduale apparizione di questo progetto governativo enormemente dispendioso è connotato da specifici interessi che si compongono parzialmente con la tradizione religiosa e militare. Uno scopo preciso promosse il successo della creazione delle scuole come istituzioni obbligatorie e universali o, se vogliamo, come lunghi e collettivi riti di passaggio. Fu l’integrazione interna nei nuovi stati nazionali emergenti e la fondazione della loro coerenza di fronte alle precedenti diversità geografiche, sociali, linguistiche e religiose[2].

Leia Mais