Carne de Perra | Fátima Sime

La dictadura militar que rigió Chile durante diecisiete años no ha terminado, al menos no de forma simbólica. Sin duda, lo avanzado durante los gobiernos de la Concertación1 en el establecimiento de la verdad ha sido muy parcial y lento, lo que ha significado la impunidad para los violadores de derechos humanos y también responsables de las muertes de ese oscuro período (Verdugo, 2004). Desafortunadamente, la literatura no siempre se ha ocupado de una forma adecuada de la representación del horror vivido durante la dictadura cívico-militar. Dentro del posible mapa que caracteriza el contexto político y literario chileno de los últimos años, resulta evidente, en efecto, una variedad de elaboraciones simbólicas y nuevos modos de representaciones que transformaron los presupuestos narrativos de la producción literaria (Bianchi, 1997). A partir del análisis de la novela Carne de Perra, publicada en 2009 por la escritora chilena Fátima Sime, resulta necesario plantear, preguntas que tratan de resolver las dudas acerca de sí es posible relatar, o, mejor dicho, de cómo se puede contar de una manera eficaz la experiencia de la violencia extrema vivida en Chile desde 1973 hasta 1990. Leia Mais

Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12 n. 23, 2020.

Dossiê: Da Antropologia e Sociologia do Corpo aos Estudos Corporais. Análise e quadro interpretativo 

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Editorial 

Dossiê

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Princípios

Resenhas


 

Um mundo sem guerras: a ideia de paz, das promessas do passado às tragédias do presente – LOSURDO (RBH)

O ano de 2019 certamente não será recordado pela ocorrência de grandes avanços em favor da paz mundial. Na África, a Líbia não conseguiu superar a instabilidade política instaurada com a derrubada de Muammar Kadhafi, em 2011, e a disputa pelo poder transformou-se em uma extensa guerra civil desde então. Naquele mesmo ano, no Oriente Médio, a Síria de Bashar Al-Assad foi arrastada para um conflito envolvendo agentes internos e externos, e até este momento o país devastado se defronta com o enfrentamento de grupos antagônicos que impedem a pacificação do país. Leia Mais

Religião, cultura e relações sociais na Península Ibérica / História Revista / 2020

A disciplina História Ibérica ficou por muito tempo relegada a um plano secundário, praticamente inexistente, tanto no ensino básico brasileiro quanto no superior. Poucas universidades brasileiras apresentam essa disciplina nos currículos de seus cursos, e sua presença nos livros didáticos consegue ser ainda menor.

Diante desse quadro, e na tentativa de contribuir para a superação dessa lacuna existente no ensino brasileiro, foi criado e instituído o Programa de Pós Graduação em História Ibérica (PPGHI) na Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG). Trata-se de um Programa de Mestrado Profissional que tem o objetivo de integrar professores de História do ensino fundamental e do ensino médio no processo de formação continuada, qualificando-os para o desenvolvimento de práticas de ensino e de pesquisas que venham a contribuir para o avanço do processo de conhecimento, ensino e aprendizado da História Ibérica. Neste Programa foi criada a linha de pesquisa Cultura, Poder e Religião, de forma a agregar especialistas das áreas de História e afins (https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020).

Buscando ampliar o debate que mantemos no âmbito do PPGHI / Unifal, e em parceria com História Revista da Universidade Federal de Goiás, propusemos o presente dossiê, convidando especialistas e estudiosos a submeterem artigos, contribuindo assim para a valorização dos estudos ibéricos no meio educacional de nosso país. Para a nossa alegria, recebemos artigos de reconhecidos especialistas, a quem agradecemos de antemão tanto pelas submissões como pela receptividade e atenção às observações realizadas durante o processo de revisão cega por pares.

Dessa forma, iniciamos o dossiê com o artigo de Sérgio Feldman, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, que há muitos anos atua nas pesquisas sobre judaísmo na Hispânia Romana e Visigótica e que vem dedicando muito dos seus estudos aos textos de Isidoro de Sevilha (560 – 636). No artigo intitulado O cerco em torno a uma minoria. As legislações antijudaicas na Hispânia Romana e visigótica, Feldman apresenta, de forma clara e aprofundada, as legislações antijudaicas, fortalecidas na Península Ibérica com a dominação visigoda.

Dentro dessa mesma linha de pesquisa se encontra o artigo da professora Roberta Alexandrina da Silva, da Universidade Federal do Pará. O artigo intitulado Do oppidum à capital de província: algumas considerações sobre a especificidade de Bracara Augusta e sua integração ao mundo romano (séculos I-IV) destaca a importância econômica, religiosa e política, tanto para os romanos quanto para os suevos e visigodos, de Bracara Augusta, atual Braga, em Portugal. O artigo da autora reflete parte das pesquisas por ela realizada durante estágio pós-doutoral na Universidade Federal do Espírito Santo, supervisionado pelo professor Gilvan Ventura, quando estagiou na Universidade do Minho, atuando com a professora Maria Manuela Martins na análise e pesquisa de materiais arqueológicos sobre Bracara romana.

O artigo Por que estudar a antiguidade da Península Ibérica no Brasil? apresenta as reflexões e o diálogo mantido entre dois especialistas em antiguidade: o renomado arqueólogo e Professor Titular de História Antiga da Unicamp, Pedro Paulo Abreu Funari, e o doutorando em História pela Unicamp, Filipe Silva, que realizou estágio de doutorado no Centro para El Estudio de la Interdependencia Provincial en la Antigüedad Clásica (CEIPAC), dirigido pelo professor José Remesal, Universidade de Barcelona / Espanha. O artigo demonstra, de forma clara e profunda, a importância dos estudos sobre a antiguidade ibérica no Brasil.

Por último, mas não mesmo importante, o artigo produzido pelo professor de História Medieval, idealizador e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Ibérica da Universidade Federal de Alfenas, Adailson José Rui. No artigo intitulado Abd al Rahman III: a implantação do califado e a construção de Medinat-al-Zahra como centro de poder em al Andalus, o professor apresenta uma discussão atualizada sobre a vida política na Andaluzia do século X, analisando tanto os motivos que levaram à auto proclamação do califa Abd al Rahman III como os que induziram esse califa a mandar construir Medina al Zahra.

Esperamos que esse dossiê seja mais um estímulo para pesquisas e estudos sobre a História Ibérica.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Referências

Site do Programa de Pós Graduação em História Ibérica, da Unifal-MG, https: / / www.unifalmg.edu.br / ppghi / node / 56 , visualizado em 20 jun. 2020.

CARLAN, Cláudio Umpierre (org,). A renovação do ensino de história ibérica, contribuições do mestrado profissional da Unifal-MG. Alfenas: editora da Unifal-MG, 2020.

Cláudio Umpierre Carlan – Unifal-MG / PPGHI. E-mail: carlanclaudio@gmail.com


CARLAN, Cláudio Umpierre. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 25, n. 1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Aproximaciones a la Enseñanza de las Humanidades y de los Estudios Culturales a través del Teatro I Contextos – Estudos de Humanidades y Ciencias Sociales | 2020

El n° 45 de Contextos. Estudios de Humanidades y Ciencias Sociales constituye un monográfico que, esperamos, sea un aporte para quienes se dedican a la tarea de educar a niños y jóvenes. En efecto, Aproximaciones a la Enseñanza de las Humanidades y de los Estudios Culturales a través del Teatro comenzó a gestarse como un proyecto imaginado en torno a un género literario bien específico y a su enorme potencial educativo.

La convocatoria para este volumen especial de Contextos atrajo una considerable cantidad de propuestas que, girando todas alrededor de un mismo tema, proponen una variedad de acercamientos tanto al estudio del teatro como al quehacer educacional. Lo anterior se debe no solo a la diversidad de dramaturgos estudiados en los ensayos que componen este número de Contextos -lo cual ya implica una gran gama de temáticas, períodos históricos, sociedades y culturas representadas en las piezas teatrales analizadas-, sino también a las diferencias notables en el marco teórico y metodológico con que cada artículo se aproxima al teatro y al estudiantado al que van dirigidas las experiencias pedagógicas planteadas. Leia Mais

Três décadas de crítica de mídia no jornalismo diário brasileiro / Revista Brasileira de História da Mídia / 2020

Primeiro semestre de 2020. A 17ª edição da Revista Brasileira de História da Mídia (BHM) é lançada em meio à pandemia do coronavírus. Quando divulgamos a chamada para o dossiê que compõe esta edição, sobre crítica da mídia, não imaginávamos que ele seria publicado em momento tão doloroso e sensível para o mundo e para o Brasil, que já contabiliza mais de 70 mil mortes por covid-19. E nesse cenário de tantas incertezas, o papel dos meios de comunicação é fundamental: a informação correta, em um cenário de tanta desinformação, pode salvar vidas.

O dossiê Três décadas de crítica de mídia no jornalismo diário brasileiro tem como editores convidados o professor Sérgio Luiz Gadini (UEPG) e a professora Elaine Javorski (UNIFESSPA). O conjunto de textos selecionados reúne temas, personagens, períodos e produtos midiáticos diversos, muitos deles emblemáticos desses 30 anos. A crítica da cobertura jornalística desde a criação da coluna de ombudsman no jornal Folha de S. Paulo é analisada na pesquisa de Diana Azeredo e Gislene da Silva. Marcelo Bronosky e Daniela Borcezi estudam os valores-notícia pelas lentes dos ombudsmen nos jornais brasileiros. Leia Mais

A cor do amor: características raciais/estigma e socialização em famílias negras brasileiras | Elizabeth Elizabeth Hordge-Freeman

O reconhecimento, nas ciências sociais, da importância do afeto ao lado da razão, do cálculo e da estratégia nas múltiplas dinâmicas da vida, incluindo a política, é o fundamento teórico central do que atualmente denominamos virada afetiva. Nos Estados Unidos, desde a década de 1990, e no Brasil, nos últimos anos, a abordagem tem sido usada de forma pioneira pelas teorizações feministas e queer. De todo modo, guardadas as diferentes filiações teóricas em torno da virada afetiva, há, pelo menos, duas convergências que merecem destaque: primeiro, a rejeição de uma hierarquia entre mente e corpo para a construção do conhecimento (Almeida, 2018, p. 33-32); segundo, o enfoque tanto em “nosso poder de afetar o mundo a nossa volta, quanto o de sermos afetados por ele” (Hardt, 2015, p. 2). Leia Mais

O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. Resenha de: MAYER, Milena Santos. Revista Expedições, Morrinhos, v. 11, jan./dez. 2020.

“Os textos aqui reunidos formam uma constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com pés calçados no presente, com olhos no passado ou como um projeto de história futura” (CEZAR, 2019, p.12). É assim que o historiador Temístocles Cezar apresenta o livro “O Tecelão dos Tempos “publicado no ano de 2019 pela Editora Intermeios. Publicados anteriormente em outros livros ou revistas acadêmicas, os escritos são frutos de análises, pesquisas e apresentações do historiador Durval Muniz Albuquerque Junior em conferências, aulas magnas ou seminários. O autor de “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” (1999), “Nordestino: Uma Invenção do Falo – Uma História do Gênero Masculino” (2003) e “História: A Arte de Inventar o Passado” (2007), dentre outros, apresenta a nova publicação rebatendo críticas e comentando a repercussão que o livro de 2007, dedicado também à teoria, que causou entre os colegas da academia.

Segundo Durval, as críticas iniciaram pelo próprio título, uma vez que os termos arte e invenção sugerem um debate polêmico e recorrente no campo da história diante da busca por uma cientificidade. Além das questões teóricas, o autor foi avaliado em relação a forma em que o texto foi construído e apresentado. Por esse motivo, o historiador dedica a apresentação do novo livro para rebater as críticas, justificar e argumentar o uso do ensaio como gênero de escrita. Para ele é possível produzir conhecimento histórico preocupando-se também com a forma e com a estética da narrativa. No decorrer da leitura é possível perceber a intenção em reforçar o entendimento de que o trabalho do historiador é um trabalho de escrita e que, portanto, a forma dessa escrita é essencial e um desafio constante. “Sem a reflexão crítica sobre a arte da narrativa não há ciência possível na historiografia” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2019, p. 16). Leia Mais

Estudios de Historia de España. Buenos Aires, Vol 22, No 1 (2020)

Artículos

Estudios de Historia de España. Buenos Aires, Vol 22, No 2 (2020)

Dossier

Reseñas bibliográficas

  • MIGUEL ÁNGEL LADERO QUESADA, Los últimos años de Fernando el Católico, Madrid, Dykinson, 2019, 336 páginas, ISBN 978-84-1324-375-7. Segunda edición, revisada
  • Cecilia Bahr
  • PDF
  • 193-196
  • FERNANDO SERRANO LARRÁYOZ, Graduados en Medicina por la Universidad de Irache (1613-1769), Pamplona, Pamiela, 2019, 383 páginas, ISBN: 978-84-9172-125-3.
  • Julieta Beccar
  • PDF
  • 197-199
  • ÓSCAR ÁLVAREZ GILA, Antes de la Ikurriña. Banderas, símbolos e identidad vasca en América (1880-1935), Madrid, Sílex, 459 páginas, ISBN 978-84-7737-817-4
  • Marcela Lucci
  • PDF
  • 200-204

Nota-Reseña

  • VIRIATO: HISTORIA, HISTORIOGRAFÍA Y LEYENDA DE UN JEFE LUSITANO
  • Fernando Gil González
  • PDF
  • 205-208

Lenguaje, autoridad e historia – ZAMORA (A-EN)

ZAMORRA M e1594431802301 Autoridad e historia

ZAMORA M Lenguage autoridad e historia indígena Autoridad e historiaZAMORA, Margarita. Lenguaje, autoridad e historia en Los comentarios reales de los Incas. Lima: Editora Latinoamericana, 2018. Tradução de Juan Rodríguez Piñero y Vanina M. Teglia. Resenha de: AIZENBERG, Nicolas. About Language, Authority, and Indigenous History in the Comentarios Reales de los Incas by Margarita Zamora. Alea, v.22 n.1 Rio de Janeiro, Jan./Apr. 2020.

La obra del Inca Garcilaso de la Vega, por su extensión y complejidad, ha dado lugar a múltiples debates para su exégesis. Al escritor se le ha considerado desde un cronista fiable hasta un fabulador, desde un humanista aculturado hasta “Un humanista inca” (David Brading), desde un escritor que buscaba la reconciliación entre etnias hasta alguien que fue leído por Tupac Amaru II como estímulo para su revolución, desde un hacedor de una utopía imposible hasta un promotor de un gobierno viable para el Perú. Margarita Zamora, en su libro Lenguaje, autoridad e historia indígena en los Comentarios de los Incas, de reciente publicación en español gracias a la traducción de Juan Rodríguez Piñero y Vanina M. Teglia, retoma y reelabora estas polémicas y profundiza algunos tópicos mencionados pero no profundizados por diversos estudios sobre la obra del gran cronista peruano.

Usos de la tradición

En este libro, Zamora aborda los Comentarios reales desde la filología como construcción de autoridad y como llave de la historia. Para esto, la especialista realiza un exhaustivo racconto de la tradición humanista europea de la que se nutre el Inca Garcilaso, partiendo de figuras tales como Antonio de Nebrija, Lorenzo Valla, Erasmo y Fray Luis de León. En cuanto a Valla, en los escritos de la Antigüedad, se cifra el anhelo de la recuperación de un orden perdido, “en consecuencia, el mal uso del lenguaje o la traducción errónea constituían un ataque a ese orden” (ZAMORA, 2018, p. 44). En Erasmo, hay un deseo de volver a las fuentes cristianas a través de una purga y su correspondiente comentario. Y, por último, en Fray Luis, también se encuentra el proyecto de purificar dichas fuentes, pero teniendo en cuenta las potencialidades y limitaciones de la lengua en la que serán traducidas. A través de la contextualización, la autora demuestra los usos que hace Garcilaso de la tradición europea, es decir, cómo se nutre de ella para crear su propia autoridad: si con la conquista gana prestigio el punto de vista del testigo, el Inca deberá crear otros recursos de validación para su autoría teniendo en cuenta que su nacimiento es posterior y que el punto de vista de los cronistas suele ser el del conquistador. Si el cronista insiste en que los españoles todo lo corrompen, y que los infortunios del virreinato se debían a una falta de comprensión lingüística, entonces los europeos carecerían de las competencias necesarias para una cabal comprensión de los nativos, sus costumbres y su pasado. Así, el cronista parte de la idea de que el trauma de la conquista no fue fruto de los deseos de posesión y dominio por parte de los españoles -como podría argumentar un Fray Bartolomé de Las Casas- sino de la falta de comprensión entre lenguas y culturas tan diversas entre sí. Pero si el problema del primer encuentro entre los representantes de España y los del Incario fue de corte lingüístico, esto le permite al autor posicionarse mejor que un testigo: con Los comentarios reales pasamos del paradigma del punto de vista al paradigma filológico con el que se obtendría un acceso más verdadero, tanto a los sucesos precolombinos como a los de la conquista, gracias al conocimiento de las lenguas de los sectores en pugna y no gracias a una experiencia de primera mano. A su vez, a través de la comparación entre Las Casas y el Inca, Zamora demuestra que, al correr el eje de la crítica a los españoles (de ambiciosos a ignorantes), la crítica de Garcilaso es más sutil, al mismo tiempo que más vehemente: la cultura letrada y la cultura del libro poseen un límite epistemológico.

En busca del origen perdido

La autora recuerda la concepción de Nebrija: la filología como forma de recuperar el origen perdido. Con este método, las palabras recobrarían un significado esencial y arrojarían luz sobre el pasado de una cultura otra o propia, actual o perdida. Este clima intelectual de época avala que el Inca Garcilaso asegure que la confusión lingüística de los españoles conlleva errores múltiples. De esta manera, la filología es una llave al pasado: a través de un estudio de la lengua, se pueden establecer períodos históricos. Esto va a sostener Garcilaso para defender al gobierno incaico de acusaciones tales como tiranías o sacrificios humanos ante sus detractores. Al confundir las palabras quechuas, el europeo mezcló y, según el Inca Garcilaso, malinterpretó la teología incaica. De esta manera, confundieron las dos etapas precolombinas, la pre-incaica y la incaica (ZAMORA, 2018, p. 88). Esta torre de Babel llevó a que los españoles confundieran a los Incas y los interpretaran como hacedores de los actos barbáricos antes señalados. El autor de los Los comentarios sostendría que los españoles no serían buenos conocedores de la religión e historia incaicas sino, más bien, que habrían carecido de los conocimientos para comprenderlas. Las consecuencias de esta afirmación de Garcilaso se vuelven preocupantes para la España católica e imperialista: al no poder conocer bien a otras culturas, la labor evangélica se dificulta, con lo que se corre el riesgo de que los nativos vuelvan a los cultos pre-incaicos, según demuestra Zamora.

Providencia y mundo andino

¿Cuáles serían los riesgos de una vuelta a las creencias pre-incaicas, además de los sacrificios humanos o de la antropofagia? Al establecer su rol como “traductor” entre culturas, Garcilaso establece una cronología que comienza con aquellos pueblos barbáricos, seguida por la expansión de la civilización cusqueña como foco que irradia un proto-cristianismo y, por último, la venida del cristianismo propiamente dicho. La diferenciación entre etapas en el período precolombino ya había sido llevada a cabo por otros cronistas. La sagacidad garciliana se funda en conectar esas etapas con la actual, la cristiana. Estas tres fases se encuentran unidas gracias a la providencia divina, es decir, hay una intervención divina para arrancar a los indígenas de su período desgraciado hacia uno civilizado. De esta forma, el período incaico no es algo anecdótico sino crucial para la pacificación de los indígenas y su preparación para el evangelio. Ahora bien, los españoles, al confundir ambas etapas, persiguen las costumbres incaicas y terminan erosionando el eslabón de esa cadena que conectaría al cristianismo. Como indica Zamora, “para Garcilaso la idea de una teología monoteísta inca está unida a su presentación del Tahuantinsuyu como praeparatio evangelica, lo que le garantiza, a la civilización inca, un lugar de privilegio en la historia cristiana” (ZAMORA, 2018, p. 137). La autora explica que la presentación de una religión amerindia proto-cristiana o proto-monoteísta es una estrategia de Garcilaso para presentar, al Cuzco y a sus gobernantes, como piezas importantes de la historia universal y como propagadores del monoteísmo y no como idólatras y tiranos. De esta manera, lo que han perdido los españoles es la posibilidad de cristianizar por métodos pacíficos a los indígenas, porque no han comprendido el rol del Cuzco como foco civilizador ni que Pachacámac, en realidad, no haya sido el diablo sino una intuición racional del verdadero Dios cristiano. Al perseguir el culto inca en vez de guiarlo hacia el cristiano, los indígenas se refugian en viejos dioses. Esto indica dos cosas: un atraso para los planes evangelizadores (los cristianos sabotean su propia misión), pero, además, según Zamora demuestra de manera lúcida, el hecho de que Garcilaso da a entender que los Incas civilizaban sin perseguir otros cultos, es decir, la autora evidencia una de las tantas críticas veladas hechas por el cronista.

Utopía pero con topos

Uno de los puntos más fuertes del libro Lenguaje, autoridad e historia indígena en los Comentarios de los Incas radica en la profundización del concepto de utopía en el Inca Garcilaso, mencionado por varios estudios pero no profundizado. Para comprender los alcances de este concepto, Zamora desarrollará la propuesta de Tomás Moro y su Utopía para luego mostrar su articulación en los Comentarios reales. Como ella señala, Utopía es un “modelo político de una civilización americana imaginaria” (ZAMORA, 2018, p. 149). De esta forma, el gobierno perfecto que diseñó el inglés sirve como modelo para el Inca. La diferencia está en que, para el primero, era una proyección mientras que, para el segundo, algo real y concreto, anclado en la historia. Pero el uso que hará el cronista peruano irá más allá. Según Zamora, el Inca realizó una traducción, pero no en el sentido que habitualmente se le da. Ella citará al lingüista y crítico literario Roman Jakobson, quien propone una traducción intersemiótica, es decir, un concepto que sea común a ambas culturas (la utopía, en este caso), a fin de poder explicar a los europeos lo que fue el Tahuantinsuyu (ZAMORA, 2018, p. 154-155). De esta forma, Zamora no se contenta con señalar que estamos ante un discurso utópico sino que explica cómo opera este concepto renacentista en la crónica y con qué fines es utilizado.

Para concluir, la traducción de Lenguaje, autoridad e historia indígena en los Comentarios de los Incas, realizada por Juan Rodríguez Piñero y Vanina Teglia, acerca, al mundo hispanohablante, un libro necesario para seguir pensando la obra garciliana y para cuestionar y profundizar algunas perspectivas trabajadas por otros críticos, centrándose en las estrategias discursivas que realizara Garcilaso para construir su autoridad ante los cronistas con los que está polemizando. Un libro que reabre nuevas discusiones sobre el cronista mestizo en cuanto a los usos de las tradiciones humanista y cristiana.

Referências

LA VEGA, Garcilaso de. Comentarios Reales. Lima: Editorial Mercurio, 1970 [ Links ]

ZAMORA, Margarita. Lenguaje, identidad e historia en Los comentarios reales de los Incas. Lima: Latinoamericana Editores, 2018. [ Links ]

ZAMORA, Margarita. Language, Authority, and Indigenous History in the Comentarios reales de los Incas. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. [ Links ]

1Traducción al español de la edición de Cambridge: Language, Authority, and Indigenous History in the Comentarios reales de los Incas, Cambridge University Press, 1988

Nicolás Aizenberg. Estudiante de la carrera de Letras de la Universidad de Buenos Aires y adscripto a la cátedra Literatura latinoamericana I (cátedra Colombi) de la misma universidad con un proyecto de investigación sobre “El Inca Garcilaso de la Vega y su visión pesimista del Perú colonial”, dirigido por Vanina Teglia. Ha participado como expositor de varios congresos de literatura colonial. E-mail nicolasaizen@gmail.com.

 

Dynasties: A Global History of Power/1300–1800 | Jeroen Duindam

En este libro el historiador Jeroen Duindam propone un nuevo modo de abordar y sistematizar la historia política de los tiempos modernos. A lo largo de los cuatro capítulos de la obra se observa la emergencia de un relato global, munido de las grandes transformaciones teóricas, epistemológicas y metodológicas que tuvieron lugar en las últimas décadas, y que transformaron la historia y las ciencias sociales radicalmente. Leia Mais

Los orígenes del mundo moderno. Una nueva visión | Robert Marks

La obra de Robert Marks invita a pensar y reflexionar nuevos temas y problemas desde una perspectiva global y ecológica, cuestionadora de las miradas eurocéntricas que dominaron la práctica historiográfica de la Historia Moderna y Contemporánea mundial. Leia Mais

Estado, democracia e movimentos sociais na América Latina contemporânea | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2020

Desde princípios do século XX, os países da América Latina se veem diante do desafio de construir alternativas para a modernização do Estado e o desenvolvimento nacional, frente à crise e ao colapso dos regimes de dominação oligárquica, fundamentados no modelo primário-exportador. Liberais em aspectos econômicos, na política, o Estado oligárquico era bastante interventor, especialmente na garantia da exclusividade do poder para os grupos primário-exportadores por meio de intensa repressão contra os demais setores da sociedade. Nas primeiras décadas do século, alguns países vivenciaram rupturas com o modelo oligárquico, como a Revolução Mexicana, iniciada em 1910, e a eleição de Hipólito Yrigoyen para presidente da Argentina, em 1916. Porém, é somente a partir dos anos de 1930, que a maioria dos países da América Latina se depara com o desafio de superação da dominação oligárquica, frente ao colapso do modelo primário-exportador no contexto da depressão mundial. Intensificam-se as mobilizações em prol da democratização da sociedade e de novos modelos de desenvolvimento econômico. Esse cenário foi marcado pela exacerbação do nacionalismo, do autoritarismo, dos movimentos sociais e das polarizações ideológicas. As propostas para superação do modelo oligárquico das sociedades latino-americanas não foram adotadas sem conflitos e convulsões. Leia Mais

Usos do passado recente na América Latina | Revista Eletrônica da ANPHLAC | 2020

Se o passado sempre é uma construção, a partir das demandas do presente, esta relação é ainda mais evidente no caso de um passado recente, cujas consequências diretas têm fortes efeitos sobre o presente e cujos sentidos permanecem em disputa. Frente às violências e crimes de Estado que marcaram o século XX, a academia, impulsionada pelos coletivos afetados, assistiu a um crescimento exponencial das pesquisas que se comprometem com este passado. Tais estudos se circunscrevem na chamada história do tempo presente, imediata ou do presente, segundo as variáveis denominações nacionais. Trata-se de um campo que se consolidou na historiografia neste novo século, mas que já vinha se desenvolvendo e sendo problematizado desde a década de 1970, especialmente na ciência política e na sociologia (FRANCO, 2018).

A especificidade da história recente reside em um “regime de historicidade” (HARTOG, 2014) em que os fatos e processos do passado interpelam as sociedades contemporâneas na construção de identidades individuais e coletivas. Trata-se de um passado presente, de um “passado que não passa”. Aqui as análises perdem o “ponto fixo” e fechado de um passado do qual seria possível aproximar-se com alguma “distância”, “objetividade” e “perspectiva”, para se constituírem “em um diálogo e uma escuta atenta às demandas e interpelações que este passado formula ao presente, razão pela qual deixa de concebê-lo como fechado, finalizado” (PITTALUGA, 2010, p. 31). Este regime é relacional na medida em que confluem passado, presente e futuro (p. 31). Leia Mais

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.6, n. 1, 2020.

Morfologia Histórica

Nota Editorial

Apresentação – volume 6, número 1

  • Natival Almeida Simões Neto, Mailson dos Santos Lopes
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Artigos – Dossiê Temático

Artigos – Varia

Resenhas

Feminilidades e Masculinidades em Foco / Outros Tempos / 2020

Caro (a) leitor(a), a Revista Outros Tempos por meio do dossiê “Feminilidades e Masculinidades em Foco”, dedica pela segunda vez um número do periódico aos estudos de gênero, oferecendo ao público um conjunto de contribuições deste campo, que agrega pesquisadoras e pesquisadores oriundos de áreas e países diversos.

O conceito de gênero, teorizado a partir de diferentes perspectivas, despertou nas últimas décadas debates, disputas e abordagens plurais, que situaram potencialidades e limites do conceito. Seu emprego permitiu o enfoque relacional no campo história das mulheres, a pluralização da categoria mulher, o estudo das masculinidades, a (des) construção dos binarismos e das normas que informam as relações entre gênero, sexo e desejo, além do reconhecimento da necessária articulação entre gênero e as categorias classe, raça / etnia, geração, sexo, desejo, infância, juventude, velhice, corpo, dentre outros marcadores de identidade.

Com efeito, o Dossiê, que reúne 14 (quatorze) artigos de estudiosas e estudiosos nacionais e internacionais, insere-se neste quadro com o objetivo de dar visibilidade a pesquisas informadas pela categoria, a partir de suas múltiplas abordagens, em vista a apontar possibilidades de estudo da (des) construção das feminilidades e das masculinidades, em diferentes tempos e espaços.

Este número da Revista Outros Tempos encontra-se dividido nas seções temática, resenha, estudo de caso, entrevista e artigos livres. Nos artigos temáticos, nas resenhas, na entrevista e no estudo de caso, que compõem o Dossiê, a categoria gênero referencia pesquisas em diálogo com as categorias mulheres, homens, feminilidades, masculinidades, feminicídio, sexo, sexualidade, infância, juventude, geração, cultura, arte, política, carne e corpo, enfatizando práticas e representações. O que sinaliza a fertilidade do campo e a importância desses estudos para a compreensão das virtualidades do nosso tempo.

Em conjunto, as autoras e os autores, oriundos de diferentes estados do Brasil e de Portugal, na seção artigos, apresentam modelos éticos femininos na Roma Antiga; a imigração de mulheres portuguesas para o Pará, em seus números, perfis e redes sociais, entre 1834 a 1930; o papel dos dispositivos biopolíticos na construção da feminilidade; histórias de vida de mulheres no sertão do São Francisco, nas Minas Gerais, na primeira metade do século XX; a presença das mulheres no ensino superior no Maranhão, nas faculdades de Direito, de Farmácia e de Odontologia, entre 1940 e 1970; a invisibilidade feminina no rock português como aspecto central da feminilidade contemporânea; o processo de construção de práticas sociais em violências sexuais, na interface infância e direitos; o feminicídio em seus aspectos conceituais; o estudo da relação entre masculinidade e sacerdócio; a relação entre masculinos, corpos e carnes sexuadas; a sedução e a sexualidade em Portugal, entre mudanças e permanências; a sexualidade, o gênero e a política no cinema de Pedro Almodóvar; a montagem corporal transformista e a construção da feminilidade; e os discursos sobre os corpos femininos e masculinos em livros didáticos.

Como estudo de caso, o Dossiê apresenta corpo e gênero no filme Esperando João, de Jomard Muniz de Britto. Na seção Resenha, a medicina, a filantropia e as políticas públicas na assistência à infância nas primeiras décadas do século XX são referidas a partir da obra Amamentação e políticas para a infância, no Brasil, organizada por Gisele Sanglard. A relação entre os corpos nas ruas e o direito de (r) existir é abordada a partir da leitura da obra Corpos em aliança, de Judith Butler.

Na seção Entrevista, o Dossiê apresenta a temática juventude e políticas do corpo nos anos 1960 e 1970, a partir do registro da Memória e da História. Na seção de artigos livres, a Revista publica estudos que tratam do curso de Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros ofertado pela Universidade Federal do Maranhão; da utilização das telenovelas no ensino de história; das Ligas camponesas de Pernambuco; e da missão católica orionita no antigo extremo norte goiano.

Agradecemos aos autores(as) que contribuíram com suas pesquisas para a realização deste número da Revista e desejamos às leitoras e aos leitores uma excelente leitura!

Elizabeth Abrantes (UEMA)

Elizangela Cardoso (UFPI)

Pedro Vilarinho Castelo Branco (UFPI)

(Organizadores)


ABRANTES, Elizabeth; CARDOSO, Elizangela; Castelo Branco, Pedro Vilarinho. Editorial. Outros Tempos, Maranhão, v. 17, n. 29, 2020. Acessar publicação original [DR]

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As relações nação-região e os espaços de fronteira no processo de institucionalização das ciências e da saúde no Brasil / Outros Tempos / 2020

O dossiê em questão, dedicado às relações nação-região e aos espaços de fronteira no processo de institucionalização das ciências e da saúde no Brasil, é um dos primeiros resultados da nossa parceria, iniciada no ano passado no âmbito da ANPUH-2019, que está assentada no interesse mútuo por explorar as potencialidades analíticas do entrecruzamento das áreas de História das Ciências e trabalhos realizados no âmbito do debate sobre a existência de uma História Regional. Tal aproximação se deu também a partir dos estudos realizados pelo Núcleo de Pesquisa e Documentação em História (NUPEDOCH), da Universidade Federal do Piauí (Campus de Picos – CSHNB), e do grande fluxo de alunos egressos do Piauí que estão realizando os seus mestrados / doutorados no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC–FIOCRUZ–RJ), fruto de suas pesquisas desenvolvidas na graduação.

Percebemos, enquanto historiadores dos campos de história das ciências e da saúde, que contextos diversificados e mais particularizados, distantes dos já tradicionais Rio de Janeiro – São Paulo – Minas Gerais, passaram a ser privilegiados pelos pesquisadores. No entanto, cabe ressaltar, que muitos destes trabalhos acabam ficando desconhecidos e deslocados do diálogo com outras realidades, de modo que o local acaba não se conectando com o nacional e o global, e a reflexão se traduz a uma análise de particularismos, com pesquisas que não circulam e acabam sendo desconhecidas de um público maior.

O que propomos não é uma coleção de estudos de caso, mas sim, repensar o nacional a partir de uma diversidade de trabalhos que nos permitam amadurecer o debate sobre nação-região, centro-periferia e outras questões que perpassam o debate em História das Ciências. Nesse sentido, cabe destacar que tal perspectiva de análise já tem, nos últimos anos, gerado resultados de pesquisa relevantes no âmbito da História das Ciências e da Saúde no Brasil, como expresso, por exemplo, em trabalhos sobre a medicina tropical no Amazonas (Schweickardt, 2011) e sobre as instituições científicas do Paraná (Ardigó, 2011), além das diversas pesquisas desenvolvidas no âmbito das Pós-Graduações no Brasil, com destaque para o Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC – FIOCRUZ) e o Programa de Pós- Graduação 2 em História da Universidade Federal do Pará – com concentração em História Social da Amazônia. Todos os trabalhos que compõem este dossiê, escritos por pesquisadores de diferentes instituições do Brasil e que abrangem regiões de norte a sul do país, com recortes temporais que vão de meados do século XIX a meados do século XX, dialogam, de algum modo, com essa chave de interpretação.

Por volta dos anos 1980 assistimos a um processo de renovação importante no âmbito da História das Ciências no Brasil, a partir do qual saberes médicos, epidemias, saúde e doença de escravos, indígenas e mestiços, nas mais diversas temporalidades e contextos históricos, bem como estudos sobre museus naturais, periódicos médicos, escolas médico-cirúrgicas e comissões científicas, entre outros espaços institucionais passaram a ser reconhecidos como objetos legítimos dos estudos históricos, porém isso não significou necessariamente uma ampliação dos horizontes de pesquisa no que se refere aos recortes espaciais.

De um modo geral, percebe-se que vêm aumentando nos últimos anos os trabalhos que se dedicam a uma reflexão mais acurada sobre as diversas artes e ofícios de curar no interior do Brasil, sobre a institucionalização da ciência fora das principais capitais urbanas do país ou sobre a construção de trajetórias de cientistas em diferentes regiões. Sendo assim, considerando a importância de voltar a atenção para contextos particulares, alguns historiadores vêm desvendando as especificidades locais e a necessidade de perceber processos históricos diversos dos já tradicionais debates sobre os conhecimentos científicos e práticas médicas. A possibilidade desse olhar mais direcionado e circunscrito permite que se confrontem representações já cristalizadas no âmbito do imaginário social sobre determinadas regiões, permitindo maior problematização e reflexão crítica acerca da diversidade de contextos.

O universo de pesquisas sobre o tema da história regional nos coloca frente a trabalhos de natureza muito diversa, cuja leitura às vezes mais confunde do que esclarece seus significados e objetivos. Isso se deve, em grande parte, aos múltiplos sentidos atribuídos aos conceitos de região-nação, centro-periferia, por exemplo, dos quais decorrem também abordagens diferenciadas, dependendo do entendimento que dele se faça. Registre-se, no entanto, a relevância das análises regionais para os estudos históricos na medida em que permitem desafiar a homogeneidade de teorias generalizantes. Dada a possibilidade de aproximação com realidades mais particularizadas, tais estudos fazem emergir o específico e o diferente, viabilizando uma leitura alternativa que enriquece e complexifica a compreensão histórica sobre temas 3 variados. A imagem de que uma variação de escala permite contar outras histórias pode ser analisada, por exemplo, a partir de J. Revel, em livro no qual premissas diversas da historiografia na atualidade são abordadas, como o retorno da biografia e a microhistória. Nessa perspectiva de análise, o enfoque regional nos permitiria perceber com mais clareza a diversidade de experiências históricas.

Tendo em vista o grande debate historiográfico existente em torno das relações centro-periferia no âmbito da história das ciências, esse tipo de abordagem contribui para tensionar essas interações ao mostrar que os lugares dos centros e das periferias não podem ser considerados como fixos ou sem dinamicidade, muito menos como fruto de uma ciência capaz de definir com clareza os seus protagonistas, retirando-se toda a historicidade desses processos de definição. Nesse sentido, o conceito de circulação, de Kapil Raj, nos ajuda a compreender essa polarização que coloca em campos distintos um grupo que seria produtor de conhecimento e outro que seria mero receptor de práticas científicas vindas de fora, conferindo protagonismo a diferentes atores, muitos deles pensados até então como meros expectadores.

Sua ideia de que o conhecimento circula deixa os historiadores em alerta para as múltiplas possibilidades que os estudos focados em determinada região, por exemplo, podem trazer. Além de evidenciar o caráter relativo desses contextos considerados como “periféricos”, este tipo de estudo permite também que se note a existência de comunidades e práticas médicas e científicas locais que, ao se voltarem para a resolução de problemas cotidianos, mostram-se atualizadas e produtoras de conhecimento, trazendo elementos novos que nos levam a colocar em perspectiva o protagonismo de uma ciência pensada, sobretudo, a partir das regiões sul e sudeste do Brasil ou mesmo da Europa e dos Estados Unidos. E esse, nos parece, que é mais um motivo para apostar no potencial analítico do cruzamento entre as definições do que se convencionou chamar de História das Ciências e História Regional. Ao nos permitirem observar realidades mais específicas e ajustar as lentes para o dia-a-dia das práticas científicas, esse “casamento” entre dois campos correlatos possibilitará também que, no futuro, possamos contar com uma base variada e sólida de análises para a realização de mais estudos comparativos.

Por fim, ressaltamos ainda os artigos livres enviados para o v. 17, n. 30, 2020, da Revista Outros Tempos. Mesmo que tais trabalhos não estejam no rol dos artigos do dossiê sobre “As relações nação-região e os espaços de fronteira no processo de institucionalização das ciências e da saúde no Brasil”, os leitores perceberão que 4 todos dialogam diretamente com a proposta dos organizadores, pois trata-se também de uma tentativa de trazer à tona outras experiências históricas em contextos diversos dos já tradicionalmente trabalhados por uma historiografia oficial. Tal constatação já nos deixa com a sensação de que todo o esforço de organização e reunião dos artigos, entrevista, estudo de caso, foi completamente recompensado pelo resultado final apresentado neste volume.

Boa leitura!


COE, Agostinho Júnior Holanda; VIEIRA, Tamara Rangel. Editorial. Outros Tempos, Maranhão, v. 17, n. 30, 2020. Acessar publicação original [DR]

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História Questões & Debates. Curitiba, v.68, n.1, 2020.

Direitos Humanos e Políticas de Memória

DOSSIÊ: DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS DE MEMÓRIA

 

Aedos. Porto Alegre, v. 12, n. 26, 2020.

Digital Humanities e o fazer histórico na contemporaneidade

Expediente | Bruno Grigoletti Laitano, Juliana Carolina da Silva |

Editorial | Bruno Grigoletti Laitano, Juliana Carolina da Silva |

Apresentação

Dossiê Temático

Artigos

Resenhas

  • Instrução Pública e Projeto Civilizador | Danilo Araujo Moreira |

Entrevistas

Comunicações

Los rastros del imperio. El ideario del régimen en las películas de ficción del primer franquismo (1939-1951) – PÉREZ NÚÑEZ (PL)

Jesús Pérez Núñez. Foto: Noticias de Álava /

NUNNEZ J P Los restros del Imperio Autoridad e historiaDe una manera bastante generalizada, las producciones cinematográficas y del ámbito de la cultura visual suelen ser calificadas de simples (en lo técnico) y estandarizadas (bajo el prisma de la innovación y la originalidad) en España durante los primeros años de la dictadura. En relación a las temáticas y los mensajes de dichas producciones, se suele hablar de instrumentalización política, manipulación de los hechos históricos e ideologización de los referentes culturales.Esa corriente de opinión suele contar con gran aceptación en la mayoría de los casos, pero no profundiza en la efectividad que tuvo el sistema de propaganda sobre las nuevas generaciones y los sectores conservadores adheridos a la causa del Movimiento Nacional. El impacto psicológico fue mayúsculo, en un contexto de euforia inicial (por la victoria en la Guerra Civil) y de desconcierto pesimista (por la situación de aislamiento tras la II Guerra Mundial). Leia Mais

História, Mídia e Linguagens | Outras Fronteiras | 2020

História, Mídias e Linguagens representam formas pelas quais os seres humanos experienciam o tempo, narram eventos e fatos históricos. Nestes termos, citamos como exemplo a Segunda Guerra Mundial, o 11 de setembro 2001 e a primavera árabe1, ocorrida a partir de dezembro de 2010, eventos simbolicamente construídos em escala planetária, seja pela imprensa ou pela indústria cultural. Mais recentemente, as redes sociais foram determinantes nas eleições nacionais das principais democracias liberais do planeta, impactando assim o tempo político e as democracias representativas. De acordo François Hartog em Regimes de Historicidade2, a plasticidade do sistema capitalista e as mídias se retroalimentam.

Para Jean Noel Jeanneney estudar a História das mídias é compreender a representação que uma sociedade faz de si mesma, seja esta falsa ou verdadeira, bem como as influências dessas representações sobre os rumos em que determinada sociedade caminha, a partir das ações de seus diversos atores políticos. Assim como os atores, os objetos de análise de História das mídias são extremamente diversos e dispersos. Leia Mais

Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil – COWAN (RTA)

COWAN, Benjamin A. Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2016. Resenha de: ZALUSKI, Jorge Luiz. Impressos, discursos e moralidade nos regimes autoritários instituídos no Brasil. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.12, n.29, e0501. jan./abr., 2020.

Atualmente, os regimes autoritários instituídos durante o século XX na América do Sul e na América Central constituem tema de muitas investigações científicas e, ainda, um profícuo campo de pesquisa na historiografia. No livro Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil, Benjamin A. Cowan apresenta uma interpretação sobre determinadas “facetas” dos regimes autoritários instituídos no Brasil, centrando o foco de sua análise na ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985. O autor é Doutor em História pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e realizou estudos sobre as temáticas relações de gênero, sexualidade, movimentos sociais da denominada direita e violências no século XX. Essa obra, que recebeu o prêmio da Associação de Estudos Latino-Americanos (Latino American Studies Association [LASA]) em 2017, ainda não tem tradução para o português.

Para a elaboração da narrativa histórica, o historiador analisou 35 impressos publicados no Brasil entre as décadas de 1930 e 1980. Dentre esses impressos se encontram os jornais O Estado de S. Paulo, Correio da Manhã e O Globo, que circulavam em diversos estados da federação. As revistas de informação, como Claudia, Veja, Manchete, e as revistas produzidas por instituições militares, com ênfase para A Defesa Nacional, Revista Militar Brasileira e Segurança e Desenvolvimento também fazem parte da documentação investigada. Tais impressos foram pesquisados pelo autor em várias instituições, com destaque para o Arquivo Nacional, o Arquivo Nacional do Exército, a Biblioteca da Academia Militar das Agulhas Negras e a Biblioteca do Exército.

A obra se divide em 7 capítulos, que têm como “fio condutor” as ações de diferentes naturezas adotadas por representantes do Estado brasileiro e pelos civis para combater o que foi considerado um “desvio moral” da população à época. O autor, no processo de construção da narrativa histórica, apoia-se no referencial conceitual relativo ao “pânico moral”, idealizado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen na década de 1970. Benjamin A. Cowan afirma que as mudanças socioculturais ocorridas na sociedade brasileira na segunda metade do século XX geraram novas experiências que provocaram grande preocupação em grupos sociais identificados no campo da política como de direita.

O autor destaca que algumas premissas dos discursos autoritários e moralistas estão presentes na sociedade brasileira durante grande parte do século XX. No primeiro capítulo da obra, intitulado “Only for the cause of the pátria: the frustrations of interwar moralism” (tradução livre: Somente pela causa da pátria: as frustrações do moralismo no entreguerras), Cowan analisa como a política socioeconômica adotada no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) contribuiu para instaurar em uma significativa parcela da população novas práticas e novos valores, que acabaram sendo alvo de questionamento por parte de intelectuais, religiosos, juristas e outros personagens identificados com a direita. Para Cowan, parte dos grupos sociais de direita, entre eles integrantes do Movimento Integralista e católicos, que associaram as novas práticas e os novos valores a 2 processos: a) ao comunismo; e b) a uma crise moral que colocava em xeque muitos dos “valores tradicionais da família brasileira” (aqui entendida como a configuração de família das elites), inclusive os relativos à masculinidade. Segundo o autor, o governo de Getúlio Vargas, especialmente durante a Ditadura do Estado Novo, como “resposta” ao referido quadro, optou por manter um estreito “diálogo” com os grupos sociais de direita, adotando políticas nos campos da educação escolar, da assistência social etc. que instituíam e/ou reforçavam uma configuração de família nuclear associada aos valores burgueses e com distinções de gênero Na década de 1960 e no início da década de 1970, a política socioeconômica implementada durante o “Milagre Econômico” pelos governantes da ditatura provocou novas mudanças no âmbito da família e das relações de gênero que foram alvo de questionamentos de grupos sociais de direita. No segundo capítulo da obra, intitulado “Sexual revolution? Contexts of countersubversive moralism” (tradução livre: Revolução sexual? Contextos do moralismo contrassubversivo), Cowan explora como se deu a aproximação entre os civis e os governantes militares, com o objetivo de combater os considerados subversivos. Por meio da análise das revistas Manchete e Realidade, o pesquisador observou que temas como juventude, sexualidade e moralismo estiveram no centro de debates públicos na década de 1960, muitas vezes associados aos discursos comunistas. O autor destaca que muitos jovens brasileiros das diferentes camadas sociais não estavam interessados nos debates públicos da época sobre família e sexualidade. Apesar desse fato, a produção de discursos para a “proteção” da família nuclear burguesa e de determinada perspectiva de sexualidade heteronormativa foi bastante grande. Esses discursos de cunho moralista incitaram a ampliação da vigilância sobre as escolas ginasiais e secundárias e as universidades, vistas como espaços privilegiados onde se propagavam ideais considerados subversivos.

No terceiro capítulo, intitulado “Sexual revolution! Moral panic and the repressive right” (tradução livre: Revolução sexual! Pânico moral e direita repressiva), Cowan enfoca as relações estabelecidas em nível transnacional entre grupos de direita do Brasil e do exterior. Para o autor, após as manifestações estudantis de maio de 1968 emergiu um discurso de crise cultural no Ocidente que contribuiu para a construção de muitas narrativas voltadas ao combate do comunismo e à defesa da família nuclear burguesa. No Brasil, tal discurso foi difundido por meio da ideia de “pânico moral”, que apresentava a resistência armada, a delinquência juvenil e a crítica às relações de gênero como sinônimos de uma crise moral que supostamente destruiria a juventude brasileira. Segundo o autor, integrantes de movimentos sociais, como Tradição, Família e Propriedade (TFP) e Rearmamento Moral do Brasil (RM), tinham por “missão” defender as práticas e os valores morais da família brasileira. Por meio da revista Doutrina de Segurança Nacional, o autor analisou os discursos de membros dos referidos movimentos sociais que foram utilizados para sustentar o moralismo instituído no período e proporcionar legitimidade às ações do Estado brasileiro de diferentes ordens contra aqueles que rompiam com práticas e valores relativos à família compartilhados pela direita.

No quarto capítulo, intitulado “Drugs, anarchism, and eroticism: moral technocracy and the military regime” (tradução livre: Drogas, anarquismo e erotismo: tecnocracia moral e o regime militar), Cowan aborda o papel desempenhado pelos tecnocratas durante a ditadura militar em relação às temáticas família e relações de gênero. Juristas, filósofos, educadores, médicos etc. publicavam artigos na Revista da Escola Superior de Guerra, considerada um dos principais “porta-vozes” do regime autoritário. Esses técnicos, que atuam em diferentes setores da burocracia, sobretudo da federal, partilhavam do ideário que atribuía aos comunistas a difusão de ideais sobre a “liberação das mulheres” que ocasionavam a “degeneração da família” e o “problema da juventude”. A juventude, nesse discurso, era considerada delinquente, usuária de drogas e portadora de práticas e valores relativos à sexualidade que necessitavam ser controlados. Para o autor, o discurso enunciado por esses burocratas se mostrou de fundamental importância na construção de leis e na implementação de políticas sociais no período. Dentre essas leis se destacam o Código de Menores, de 1979, e a Lei do Divórcio, aprovada em 19771.

No quinto capítulo, intitulado “Young ladies seduced and carried off by terrorists: secrets, spies, and anticommunist moral panic” (tradução livre: Moças seduzidas e levadas por terroristas: segredos, espiões e pânico moral anticomunista), o autor investiga os discursos que acusavam uma parcela das mulheres brasileiras de ser responsáveis pela divulgação de discursos de cunho subversivo. As revistas Ação Democrática e A Defesa Nacional dedicaram inúmeras páginas a esse ideário antifeminista e anticomunista. Segundo o historiador, essas duas concepções conjugadas favoreceram a perseguição e a tortura de muitas jovens que integraram os agrupamentos políticos contrários ao regime ditatorial. Em “Brazil counts on its sons for redemption moral, civic, and countersubversive education” (tradução livre: O Brasil conta com seus filhos para a redenção moral, cívica e a educação contrassubversiva), sexto capítulo do livro, Cowan analisa como a disciplina escolar Educação Moral e Cívica (EMC) foi utilizada como “instrumento” de combate ao comunismo. Para o historiador, a EMC articulou em seu conteúdo programático as preocupações construídas em torno do “pânico moral” anticomunista. Por meio da disciplina, esse discurso circulou em larga escala em materiais didáticos produzidos para o ensino ginasial da época. Na revista A Defesa Nacional, por exemplo, eram recorrentes os artigos que entendiam que a escola deveria difundir entre os alunos noções sobre uma masculinidade que subsidiasse a preparação para a carreira militar, bem como para a edificação de uma família nuclear.

No último capítulo do livro, intitulado “From pornography to the pill: bagunça and the limitations of moralist efficacy” (tradução livre: Da pornografia à pílula: bagunça e as limitações da eficácia moralista), Cowan analisa as “fissuras” presentes nos discursos sobre o uso de métodos contraceptivos pelas mulheres durante o processo de redemocratização, iniciado no final da década de 1970. Temas como controle da natalidade e pornografia ganharam destaque nos debates sobre saúde pública do país. Para o autor, os defensores do regime ditatorial teceram largas críticas às políticas sociais colocadas em prática na época, que distribuíam contraceptivos para a população e também passaram a associar o processo de redemocratização à ideia de retrocesso político.

É notável como o historiador mobilizou um grande número de fontes na obra Securing sex: morality and repression in the making of Cold War Brazil, que possibilitou a produção de reflexões inovadoras sobre as temáticas estudadas, muitas vezes de modo tangencial, em relação aos regimes autoritários instituídos no Brasil. Soma-se a esse trabalho de pesquisa das fontes o uso de um extenso e atual referencial bibliográfico sobre as ditaduras brasileiras (governo de Getúlio Vargas e ditadura militar) para além das publicadas em português. Esse fato, que permite que o(a) leitor(a) estabeleça conexões entre as produções nacionais e internacionais. Por fim, a obra contribui com os estudos da História do Tempo Presente seja em relação às temáticas estudadas, seja em relação à temporalidade dos discursos. Dados os recentes acontecimentos no Brasil, uma parte desse passado parece inseparável, como lembra Henry Rousso (2016, p. 302), “um passado que volta para assombrar o presente”.

Referências

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2016.

Jorge Luiz Zaluski – Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Florianópolis, SC – BRASIL. E-mail: jorgezaluski@hotmail.com.

A renovação da Antiguidade pagã – WARBURG (Topoi)

WARBURG Aby Let s Talk about Aby Warburg www youtube com Autoridad e historia
WARBURG A A renovação da antiguidade pagã Autoridad e historiaAby Warburg. Retrato-montagem de “Let’s Talk about Aby Warburg / youtube.com

WARBURG, Aby. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. Resenha de: FERNANDES, Cássio. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Fora do restrito círculo de estudiosos da arte e da cultura do Renascimento, Aby Warburg (1866-1929), ao longo do século XX, ficou mais conhecido como criador de uma biblioteca pessoal transformada em instituto de pesquisa do que propriamente pelo teor de seus escritos. Por certo, sua biblioteca, sediada originalmente em Hamburgo e transferida para Londres depois da ascensão nazista na Alemanha, simbolizou o interesse que percorreu seu inteiro trajeto de estudioso. O Instituto Warburg para a Ciência da Cultura, ligado à Universidade de Londres, reúne um vasto material sobre a vida póstuma da Antiguidade, ou seja, a influência da cultura antiga sobre os séculos posteriores e seu papel na formação da Europa moderna. O tema de sua biblioteca paraleliza-se com o tema de sua obra.

Porém, a obra de Warburg não se constituiu como um corpus organizado em forma de livros ou de conjuntos de textos sistematizados pelo próprio autor. Ao contrário, Warburg jamais escreveu um livro, jamais obteve uma cátedra acadêmica, jamais tratou de delimitar de próprio punho o que desejava fosse publicado do vasto material composto por escritos curtos, conferências, cartas ou cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo. Os livros que se constituíram dos escritos de Warburg foram produto do interesse e da sistematização de outrem. Ele próprio editou apenas de modo fragmentário parte de sua produção textual, em revistas científicas, em publicações da própria Biblioteca Warburg ou como pequenos volumes separados. Mesmo assim, grande parte de seus escritos permaneceu inédita até o final de sua vida.

Os escritos de Warburg conheceram uma primeira sistematização, produto de um projeto editorial, no início da década de 1930, pelo esforço de Gertrud Bing, que, ao lado de Fritz Saxl, dirigia a biblioteca ainda em Hamburgo. Ambos haviam trabalhado ao lado de Warburg e também durante o interregno de sua ausência, entre 1918 e 1923, em que passou em tratamento na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, na Suíça. Do trabalho de organização de Gertrud Bing surgiu em 1932, pela editora alemã Teubner, a Gesammelte Schriften, que deveria constituir apenas a primeira parte do projeto de edição do legado textual de Warburg. Esse projeto, porém, delineado brevemente por Fritz Saxl na edição original, jamais seria levado a cabo. O livro de 1932 tornou-se, ao longo do século XX, a edição canônica dos escritos de Aby Warburg, sendo desde então reimpresso em língua alemã ou traduzido para outros idiomas. Esse livro ganha, em 2013, sua primeira edição brasileira, pela Editora Contraponto, do Rio de Janeiro, sob o título A renovação da Antiguidade Pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu, com tradução de Markus Hediger. Antes disso, o que se conhecia de Warburg em língua portuguesa era apenas a sua tese de 1893, publicada em Portugal, em 2012, O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli, pela Editora KKYM, de Lisboa.

A edição brasileira do livro canônico de Warburg tem o mérito de trazer, além do prefácio da edição de 1932, de autoria de Gertrud Bing, também o prefácio da edição de estudos de 1998, assinado em conjunto por Horst Bredekamp e Michael Diers. O prefácio de 1998 nos ajuda a compreender o contexto de surgimento do livro de 1932, numa perspectiva da história da fortuna da obra de Warburg, bem como aponta alguns aspectos que determinaram a interrupção do projeto editorial de sua obra.

Aby Warburg provinha de uma família judia de banqueiros de Hamburgo. Após uma incursão juvenil no estudo da medicina, voltou seus interesses aos temas estéticos e culturais, ingressando na Universidade de Bonn em 1886. Em Bonn, assistiu às aulas do historiador da cultura Carl Justi e do estudioso do mito e das religiões gregas antigas Hermann Usener, concentrando-se, já nos primeiros anos de estudo, na ideia de corrigir, sob um fundamento histórico-cultural, a concepção de Winckelmann a respeito da serenidade olímpica da Antiguidade. Esse ideal, formulado na juventude, transformar-se-ia numa espécie de obsessão, que, em certo modo, o acompanharia até o final de suas forças. Uma primeira viagem a Florença, em 1888, possibilita-lhe o encontro com o historiador da arte August Schmarsow, que, naquele momento, tentava formar, na cidade dos Medici, um instituto alemão de história da arte. Warburg permance em Florença por seis meses. Poucos anos depois, Schmarsow veria criado o Kunsthistorisches Institut in Florenz. De Florença, Warburg sairia com a ideia da futura tese, defendida não em Bonn, mas em Estrasburgo, sob orientação de Hubert Janitschek, estudioso do Renascimento, organizador da edição do De pictura de Leon Battista Alberti. A tese de Warburg, editada em 1893, trataria das pinturas mitológicas de Sandro Botticelli, na perspectiva da leitura, por parte do humanismo florentino do ambiente de Lorenzo de’ Medici, da tradição homérica pela via da transmutação latina realizada por Ovídio. Era uma compreensão do diálogo entre palavra e imagem no seio do humanismo florentino dos anos 1480, somada a uma perspectiva histórico-artística que perseguia a relação entre artista, comitente e conselheiro erudito. Warburg defendia, na tese, que as pinturas de Botticelli, O nascimento de Vênus e a Primavera, surgiram da encomenda de Lorenzo de’ Medici e sob a base iconográfica formulada pelo literato e professor de Ovídio na Academia Platônica de Florença, Angelo Poliziano. Poliziano, então, seria o mediador da relação entre Botticelli e Ovídio nas pinturas, que teriam sido executadas justamente para ornar o salão de debates da referida academia. A tese de Warburg aparece como primeiro capítulo em A renovação da Antiguidade pagã.

Na tese sobre Botticelli, Aby Warburg apresentava já o interesse pelo processo constitutivo das obras de arte e, ao mesmo tempo, sua disposição de seguir o caminho das transmissões do legado antigo no limiar da era moderna. E tudo isso é realizado num estudo de caso, analisando dois quadros para compreender, de modo individualizado, um problema histórico que certamente não se apresentava isoladamente, mas, ao contrário, indicava um edifício maior. Decerto, seu aprendizado em Bonn, com Carl Justi, teria contribuído para a elaboração de uma perspectiva microscópica. Justi havia aprendido com seu antecessor e mestre, Anton Springer (1825-1891), como abordar amplos problemas históricos focados em personagens individuais. Springer é o criador de um gênero historiográfico, muito empregado no âmbito dos estudos culturais e artísticos, que ficou conhecido como Monographie. Carl Justi transformou-se no mestre do gênero monográfico, autor de monografias sobre Michelangelo, Velazquez e Winckelmann.

Mas Warburg estivera também em Estrasburgo e, sob orientação de Janitschek, autor do livro Die Gesellschaft der Renaissance und die Kunst in Italien (A sociedade do Renascimento e a arte na Itália), aproximara-se da perspectiva da história social da arte. Esse aprendizado estava presente na tese de 1893, no movimento de ampliação da interpretação da arte florentina do Quattrocento do âmbito propriamente do artista em direção às etapas do processo criativo, que incluía, em primeira escala, as figuras do comitente e do idealizador erudito. Era um modo muito concreto de compreender a arte no âmbito da cultura do Renascimento.

O termo cultura do Renascimento, entretanto, remetia Warburg a um estudioso cujo nome é já uma referência ao tema e de quem Warburg afirmaria, logo depois, ser um seu continuador. Tratava-se de Jacob Burckhardt, a quem Warburg enviou a tese sobre Botticelli e recebeu de volta uma carta com as seguintes palavras: “com o seu escrito o senhor fez cumprir um passo adiante no conhecimento do medium social, poético e humanístico no qual Sandro [Botticelli] vivia e pintava”.

Burckhardt concedera a Warburg, de fato, o tema da cultura do Renascimento sob uma perspectiva de movimento e inter-relações culturais que o estudioso de Hamburgo aprofundará ao longo de seus estudos. O livro de Warburg é organizado em seções que, por sua vez, são compostas por textos de várias fases de sua vida, revelando que o autor lidou com alguns temas mais gerais, revisitando-os ao longo de sua trajetória. Algumas dessas seções temáticas são inteiramente ligadas a caminhos trilhados por Jacob Burckhardt. O mais claro exemplo é a primeira seção, “A Antiguidade na cultura burguesa florentina”, da qual faz parte a tese sobre Botticelli, seção facilmente referível ao centro do estudo de Burckhardt contido em seu livro mais conhecido, A cultura do Renascimento na Itália, de 1860. Além disso, é importante citar o texto warburguiano de 1902, “A Arte do retrato e a burguesia florentina”, que se anuncia, já na “Nota preliminar”, como continuação ao livro de Burckhardt sobre o tema, recentemente editado no Brasil: O retrato na pintura italiana do Renascimento. Warburg se utiliza de um único afresco, pintado por Domenico Ghirlandaio na Capela Sassetti, na igreja florentina de Santa Trinità, para compreender o problema da relação entre cristianismo medieval e paganismo antigo na Florença da segunda metade do século XV. A abordagem de Warburg colocava, de novo, no centro a relação entre comitente e artista, nesse caso, entre o retratista, Ghirlandaio, e o retratado, Francesco Sassetti, que representa o figura do burguês laico e culto do primeiro Renascimento florentino. Sassetti é o banqueiro, assolado cotidianamente pelo pecado da usura, que manda pintar sua capela fúnebre em homenagem a São Francisco, santo que simboliza o despojamento dos bens materiais e exalta a pobreza como redenção.

Entretanto, seria interessante nos voltarmos a outras duas seções do livro de Warburg, com o intuito de compreender o quanto foi-lhe importante o ensinamento de Burckhardt. A primeira delas intitulou-se “O intercâmbio entre as culturas florentina e flamenga”. Dois acontecimentos editoriais marcaram o encontro de Warburg com o tema das relações culturais entre Florença e Flandres no Quattrocento. O primeiro foi a edição póstuma de parte dos últimos escritos de Burckhardt sobre a arte italiana do Renascimento, em 1898, as Beiträg zur Kunstgeschichte von Italien (Contribuições à história da arte na Itália), que conteve três ensaios “O retrato na pintura”, “O retábulo de altar” e “Os colecionadores”. Uma das linhas interpretativas que atravessavam esses textos de Burckhardt era a importância da pintura flamenga para a formação do gosto artístico de uma classe de mercadores florentinos encomendantes das obras artes e, consequentemente, seu papel da execução da pintura em Florença. O outro acontecimento editorial importante para ­Warburg, nesse momento, foi o aparecimento, em 1888, do livro de Eugène Müntz sobre as coleções dos Medici no século XV, Les collections des Médicis au quinzième siècle, que também tinham sido de grande valia para os citados estudos de Burckhardt. O estudo do inventário dos Medici permitia compreender um progressivo interesse, em Florença, pela pintura de cavalete, sobre tela ou sobre madeira, em comparação com a tradicional pintura a fresco. Com esse processo, era possível perceber a importância da arte flamenga no ambiente dos Medici, e não apenas do ponto de vista da pintura, mas também da tapeçaria. A partir do livro de Müntz, era possível concluir que os flamengos tinham condicionado o desenvolvimento do primeiro colecionismo italiano, em especial, pela capacidade realística da pintura a óleo desenvolvida em Flandres, mas também pela facilidade de circulação dos tecidos, dos tapetes e dos quadros flamengos de pequenas dimensões, fato que antecede a circulação dos próprios artistas nórdicos na Itália. Desse modo, os inventários das coleções dos Medici confirmavam a importância da ligação entre a tarefa ditada pelo colecionador e o conteúdo de uma obra. Warburg, então, dedica-se a ampliar e aprofundar as indicações a esse respeito, presentes nos textos de Burckhardt, com estudos de casos entre os anos de 1899 e 1907. Toda a seção do livro trata desse tema, refletindo, uma vez mais, o interesse de Warburg em compreender as imagens como símbolos de circulações, de migrações de homens e de ideias, seu esforço em perfazer os caminhos das conexões, dos encontros entre elementos distintos, sua determinação em entender a fronteira como o próprio terreno da história. Além disso, encantava-lhe o fascínio do mundo refinado toscano pelos meios de expressar o vivo, trazidos à luz pela arte flamenga. Para Warburg, essa pintura é um exemplo emblemático da compreensão espontânea demonstrada pela burguesia toscana em direção à arte nórdica, resultado da mescla de elementos humanos que se atraem por seu contrário.

A outra seção que demonstra quão perene foi o influxo de Burckhardt sobre a obra de Warburg é aquela relativa ao tema da “Antiguidade e o presente na vida festiva do Renascimento”. Burckhardt tinha intitulado a parte 5 de A cultura do Renascimento na Itália de “A sociabilidade e as festividades”, entrelaçando o esplendor artístico nas cidades da Itália renascentista às festividades em sua formulação mais elevada, como um movimento superior da vida do povo, momento no qual seus ideais religiosos, morais e poéticos assumem uma forma visível. Warburg, por sua vez, buscou conceber a expressão humana na obra de arte figurativa como imagem da vida prática em movimento, tanto para o caso do culto religioso, quanto para aquele do drama da cultura por meio da festividade ou do palco cênico. A festa era, portanto, não apenas o momento de apresentação da expressividade artística, com todo o aparato que compõe a arquitetura decorada, mas sobretudo o palco da encenação da existência, quase uma transição da vida para a arte. Os cortejos e as encenações festivas eram, para Warburg, ocasiões para contemplar a vida social, bem como para interpretar o aparato artístico de que eram compostos. Esse aparato, em sua concretude, revelava-se, então, documento do significado histórico da Antiguidade clássica para os homens dos séculos XV e XVI na Itália, bem como no mundo nórdico, indicando ainda as ligações entre esses dois universos culturais.

Exatamente a busca de diálogo entre norte e sul dos Alpes havia movido Warburg a idealizar sua biblioteca particular. Sua intenção era reunir um acervo de livros e documentos que constituíssem as malhas de ligação entre o Sul e o Norte da Europa, concentrando num único lugar a livre consulta de publicações fundamentais sobre esse contato cultural. Ele, então, escolheu um tema que pudesse amalgamar sua proposta de seguir o diálogo e as relações transalpinas, sem deixá-los dispersar-se no infinito. Escolheu o tema da influência da Antiguidade, com o qual desenvolvia já à época seu trabalho de pesquisa.

Corria o ano de 1902 e, numa conversa em família, Aby Warburg adquiriu, por parte de seu pai, com o apoio de seu irmão mais velho, Max, a quantia de 1.700 marcos para instalar sua biblioteca no edifício onde permanecera até 1933, em Hamburgo. Era o início da Biblioteca Warburg para a Ciência da Cultura, transformada depois em instituto de pesquisa. A biblioteca nascia, assim, como fruto de um problema histórico de alta relevância, e talvez ainda hoje não explorado a contento: o problema das transposições históricas do mundo mediterrânico em direção è Europa nórdica, um tema que seguia, no início do século XX, a contrapelo dos caminhos políticos da Europa à beira dos conflitos nacionais. Enquanto Warburg buscava os contatos culturais, as transposições, as circulações de modelos literários e imagéticos da Antiguidade aos tempos modernos, do Sul em direção ao Norte, venciam, na Europa das primeiras décadas do Novecentos, as ideias de identidades nacionais, baseadas na noção de fronteiras naturais na formações dos povos europeus. Assim, ao final da Primeira Guerra, Warburg sucumbiu a uma forte crise psiquiátrica e foi internado numa clínica na Suíça, onde permaneceu até 1923.

No que se refere ao livro em questão, é importante salientar a intensificação dos estudos de Warburg em temas históricos que permitem um aprofundamento das inter-relações e transferências culturais entre o mundo mediterrânico e a Europa nórdica. As demais seções do livro apontam nessa direção, indo, nesse sentido, muito além da perspectiva de Burckhardt.

Em primeiro lugar, Warburg aborda o tema da Antiguidade italiana na Alemanha a partir da obra de Dürer, estudando, em 1905, a circulação de gravuras provenientes do ambiente de Andrea Mantegna no âmbito do artista de Nüremberg. Interessa a ­Warburg compreender, além propriamente da transposição da arte italiana ao mundo germânico, também a face bifrontal da influência da doutrina clássica no Renascimento, tanto ao norte, quanto ao sul dos Alpes. Warburg queria demonstrar que a Antiguidade chegou a Dürer, por intermédio da Itália, na forma de estímulos dionisíacos, mas também com a sobriedade apolínea.

Em 1908, estudando desenhos, gravuras e calendários dos séculos XV e XVI, provenientes da Itália e do mundo germânico, Warburg aponta para o momento em que ocorre uma mudança estilística nessas imagens pela entrada em cena das influências da escultura clássica sobre as representações tardo-medievais de imagens de deuses oriundos da Antiguidade tardia. Há, portanto, para o estudioso de Hamburgo, uma refiguração de ilustrações medievais provocada pela redescoberta renascentista da arte da Antiguidade. Para isso, ele realizava também, no estudo de 1908, as primeiras incursões no tema da astrologia.

De fato, Warburg dedica-se de modo sistemático aos estudos astrológicos a partir da leitura, realizada em 1907, do livro de Franz Boll (1867-1924). Filólogo clássico e professor na Universidade de Heidelberg, eminente especialista em história da astrologia, Franz Boll havia publicado, em 1903, Sphaera. Neue griechische Texte und ­untersuchungen zur geschichte der Sternbilder. Nesse livro, Boll, mediante fragmentos de textos e referências indiretas, conseguiu restituir um dos mais influentes tratados sobre o céu da Antiguidade Clássica, a Sphaera barbarica, do babilônico Teucro (séc. I a.C.). Partindo, então, do tratado de Teucro, Franz Boll empreende uma reconstrução detalhada da migração da astrologia e da astronomia grega por meio de suas transmissões no Oriente e na Idade Média latina. O texto de Teucro mostrava já, por sua vez, a contaminação e o enriquecimento da sphaera clássica com novos asterismos orientais, ou seja, o catálogo das estrelas fixas de Arato (séc. III a.C.). Na época helenística, esse céu de poucas constelações foi preenchido com novas figuras provenientes da tradição egípcia, aramaica e babilônica. Esse catálogo de constelações, mescla de elementos gregos e orientais, teve grande fortuna e, no curso do tempo, foi enriquecido com ornamentos astrológicos indianos e persas. Portanto, o tema do livro de Franz Boll é a história da compilação de Teucro, e de suas migrações na Antiguidade e na Idade Média, entre diversas culturas no Oriente e no Ocidente.

Warburg, por seu turno, havia começado a estudar intensamente a história da mitografia e da astrologia, focalizando a descrição das divindades pagãs nos textos medievais e a continuidade do imaginário astrológico da antiguidade nos tempos modernos. O livro de Boll despertou-lhe o interesse pelo estudo dos textos astrológicos indianos, o que seria fundamental para sua interpretação da iconografia das pinturas do Palácio Schifanoia de Ferrara. Em 1909, imerso no estudo sobre astrologia, Warburg entra em contato epistolar com Franz Boll. Em 1912, Aby Warburg apresenta, no X Congresso Internazionale di Storia dell’Arte di Roma, uma conferência em que decifra os afrescos do Palácio Schifanoia a partir da história da tradição astrológica. A conferência de 1912 representaria também o momento de apresentação para um público internacional de sua metodologia histórico-artística, onde a abordagem iconológica figurava em gênese. Na conferência, que na edição brasileira apresenta o título “A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifanoia de Ferrara”, Aby Warburg encontrava nos afrescos a confirmação de sua hipótese de trabalho, qual seja, a transmissão ao Renascimento italiano de uma tradição iconográfica grega antiga, através da mediação indiana e árabe. Era essa uma forma de sobrevivência dos deuses pagãos que passava por um grande percurso migratório até tocar o território da Península Itálica, marcando a importância da tradição antiga para a formação da Europa moderna.

Com a conferência de 1912, Warburg observava o quanto o classicismo grego estava perpassado por elementos orientais, oriundos do Egito, da Pérsia, da Mesopotâmia. Portanto, sua noção de “antigo” tinha uma forte dose do primitivismo a minar o equilíbrio olímpico das divindades gregas. Paralelamente, sua noção de Renascimento ampliava-se ainda mais, ultrapassando em muito as relações entre arte nórdica e primeiro Renascimento na Itália, que até 1907 tinha dado um sentido a seus estudos histórico-artísticos. Com a conferência de 1912, Warburg distanciava-se de Burckhardt, tanto na concepção da Antiguidade grega, quanto na noção de Renascimento. Com o estudo sobre os afrescos astrológicos do Palácio Schifanoia de Ferrara, o Renascimento de Warburg absorve o vasto universo das interpretações árabes e indianas do mundo grego antigo, compreendendo, assim, um caminho migratório muito amplo a conectar o Renascimento italiano à Antiguidade grega.

O texto de 1912 é, então, emblemático na obra de Warburg por indicar um rompimento com todas as fronteiras que os estudiosos da arte e da cultura do Renascimento tinham até então estabelecido, dando um caráter internacionalista a sua interpretação. Nem mesmo as históricas fronteiras entre Ocidente e Oriente permaneceriam de pé depois de seu estudo apresentado em Roma. É curioso que essa abordagem tenha permanecido fora do centro nefrálgico dos estudos histórico-artísticos durante o século XX.

Assim, o livro canônico de Warburg, agora editado em língua portuguesa, cumpria em parte a tarefa de apresentar às gerações futuras o autor formado em ambientes intelectuais que, no final do Oitocentos, comunicavam a história social da arte com a história da cultura, a história das religiões e a nascente antropologia. Um autor que, de fato, jamais teve a intenção de dar vida a uma disciplina específica, mas, ao contrário, percorreu, movendo-se por resultados que a psicologia, a antropologia, a linguística da época lhe ofereciam, a evolução dos mecanismos fundamentais da expressão humana, que tinham conduzido determinadas culturas do antropomorfismo ao pensamento simbólico. Warburg, na verdade, procura demonstrar que o comportamento humano é sempre mediado pelo uso de símbolos. Com base nisso, sua busca não foi a de mover os símbolos para captar uma presumível verdade histórica neles submersa. Ao contrário, o movimento intelectual presente na obra de Warburg consiste em interrogar os símbolos sobre o que eles comunicam, localizando sua indagação no intervalo entre o páthos e o símbolo propriamente. Assim, Aby Warburg concentrou-se no intervalo pré-linguístico da experiência humana, situado entre a comoção causada pelos fundamentais sentimentos do homem, tais como a dor, a morte, o amor, e o impulso de representá-los com imagens, transformando-os em símbolos.

Desse modo, seu estudo direcionou-se ao mundo das formas simbólicas (então o mito, a arte, a linguagem, a ciência), como as tinha definido seu amigo e colaborador dos anos finais em Hamburgo, Ernst ­Cassirer, autor do livro dedicado a Warburg, A filosofia das formas simbólicas. No livro, Cassirer compreende as formas simbólicas não como imitações do real, e sim como órgãos da realidade, ou seja, como modo de converter o real em objeto de captação intelectual, tornando-o visível para nós.

Porém, a fase de maior colaboração intelectual entre os dois infelizmente não ficara registrado em A renovação da Antiguidade pagã. Exatamente a fase final de seu trabalho, após a recuperação da crise psicológica e o retorno, em 1923, às atividades na biblioteca de Hamburgo. Cassirer tinha chegado à cidade, para ensinar na recém-fundada universidade, em 1920, ao lado de Erwin ­Panofsky e do jovem Edgar Wind, este último estudante de doutorado. Essa fase da atividade de Warburg diz respeito a sua conferência sobre “O ritual da serpente”, ao projeto inacabado do “Atlas Mnemosyne”, à conferência autobiográfica “De arsenal a laboratório”, ao texto sobre Burckhardt e Nietzsche, aos cursos ministrados como convidado na Universidade de Hamburgo sobre Burckhardt e sobre “O método da ciência da cultura”. Também esteve fora do livro de 1932, traduzido no Brasil em 2013, uma série de textos de ­Warburg anteriores ao internamento na Suíça. A maior parte desse volumoso ­corpus permanece inédita em português, e, na verdade, só se tornou pública no início dos anos 2000, sobretudo na Itália e na Alemanha. Vale citar aqui o fundamental trabalho a partir dos manuscritos realizado pelo estudioso italiano, Maurizio Ghelardi, que traduziu diretamente ao italiano e publicou em dois volumes, em 2004 e 2008, as Opere de Aby Warburg. O trabalho de Maurizio Ghelardi traz ainda o mérito de editar a inédita correspondência entre Warburg e Cassirer, além da publicação em conjunto na Alemanha (traduzida na França) dos últimos escritos de Warburg, de algumas de suas cartas e da introdução ao Atlas Mnemosyne. Ghelardi é responsável, ainda, pela edição italiana dos estudos de Warburg sobre os índios pueblos do Novo México, bem como do próprio Atlas ­Mnemosyne. Este último, organizado a partir da edição alemã, que, sob os cuidados de Martin Warnke, é uma nova seleção dos escritos do estudioso de Hamburgo. É importante citar, ainda, a edição alemã de 2010, que mescla textos presentes no livro de 1932 com outros até então inéditos em alemão. Não citaremos aqui as edições de comentadores da obra de Warburg, surgidas sobretudo desde os anos 2000, trazendo importantes releituras de sua produção.

Tudo isso decerto não tira o mérito da edição recentemente traduzida no Brasil. Porém, revela a importância da obra de Warburg para o estudo das imagens, seja no âmbito da história da arte e da cultura, seja no campo da pesquisa antropológica ou da teoria da imagem. Oxalá a edição brasileira de 2013 sirva de incentivo para novas traduções e edições de escritos de Aby Warburg no Brasil.

Cássio Fernandes – Professor adjunto do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo. E-mail: cassiofer@hotmail.com.

História e memória da EJA nas universidades brasileiras e portuguesas – séculos XX e XXI / Cadernos de História da Educação / 2020

A história da Educação de Jovens e Adultos (EJA) se consolidou como um campo de pesquisa que vem ganhando espaço na Academia, devido ao diálogo que faz com diferentes temáticas da historiografia. Esse campo, portanto, provoca práticas e reflexões que não estão inscritas, especificamente, no âmbito escolar, pois vão muito além. É uma história contada a partir das relações de gênero, do trabalho, da política, do corpo, entre muitas outras perspectivas que revelam facetas múltiplas de um mesmo objeto. Entretanto, embora reconheçamos que exista um aumento vertiginoso das pesquisas sobre a História da EJA nos últimos 20 anos, ainda há uma tímida produção, se a compararmos, por exemplo, com a história da educação primária. Dessa maneira, este Dossiê tem por objetivo promover um diálogo entre pesquisadores sobre a história da educação de jovens e adultos em universidades brasileiras e portuguesas, nos séculos XX e XXI.

O dossiê é composto de seis artigos; três deles foram escritos por pesquisadores brasileiros e portugueses, e nessa coautoria analisam duas realidades tão distantes e ao mesmo tempo com muitas proximidades. Nos outros três artigos, os autores, pesquisadores brasileiros, abordam, especificamente, a realidade da EJA no Brasil.

Este dossiê traz olhares que se aproximam sobre as relações entre as universidades e a EJA, a partir da década de 70 do século XX à atualidade. É uma história do tempo presente que precisa ser contada, pois os dados atualizados apontam que a taxa de analfabetismo da população com 15 anos ou mais de idade no Brasil caiu de 7,2% em 2016 para 7,0% em 2017, mas não alcançou o índice de 6,5% estipulado, ainda para 2015, pelo Plano Nacional de Educação (PNE). A realidade brasileira aponta-nos que temos cerca de 11,5 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever, e apenas 118 mil analfabetos frequentaram cursos de alfabetização no ano de 2017 [1]. Partindo desses dados, é mais triste saber que a maioria dos analfabetos brasileiros continuam fora do espaço escolar e privados de seus direitos. Não incluímos, nesse somatório, os dados da pesquisa Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) em 2018, que elevaria ainda mais esse percentual, uma vez que a pesquisa mede os níveis de alfabetismo [2] da população brasileira com idade acima de 15 anos [3].

Diante desses dados alarmantes e, infelizmente, históricos na educação brasileira, este dossiê traz à tona os debates, os impasses, os lugares e não lugares da Educação de Jovens e Adultos, principalmente nos estudos e nas pesquisas sobre a alfabetização de jovens e adultos no contexto brasileiro e português. Ao mesmo tempo, os estudos aqui reunidos mostram o que temos feito, produzido e pesquisado para uma melhor compreensão desse fenômeno que impera no Brasil.

Abrimos o dossiê com o artigo de Rocha e Goulart, em que os autores buscam contemplar uma área pouco explorada, ou seja, a EJA nas pesquisas acadêmicas, com o enfoque na produção voltada especificamente sobre a alfabetização. O artigo objetivou analisar e compreender a história da alfabetização de jovens e adultos no Brasil, a partir dos discursos acadêmicos produzidos no período de 1978 a 2000. Os autores realizaram um levantamento bibliográfico de teses e dissertações publicizadas no país no decurso do século XX, considerando como as pesquisas oriundas das universidades brasileiras abordaram o tema da alfabetização de jovens e adultos.

Ainda que, em termos quantitativos, essa produção não seja tão expressiva, foram identificadas 65 produções, e dentro da análise da categoria “temáticas priorizadas”, destacaram-se: ‘Programas, projetos, iniciativas governamentais e não governamentais’, seguidos de ‘Vivências de alfabetização de jovens e adultos” e ‘Representações sobre a alfabetização de jovens e adultos’. Essa análise dos autores dialoga com os artigos subsequentes deste dossiê.

O segundo e o terceiro artigo têm em comum o diálogo entre instituições e projetos de extensão em que articulam a pesquisa, a docência, a formação e a especialização de professores da EJA. Outra afinidade nos artigos de Maciel e Santos e o de Porcaro está nos diálogos entre três universidades mineiras: Universidade Federal de Uberlândia (UFU), de Minas Gerais (UFMG) e de Viçosa (UFV). Todas as autoras atuam como professoras formadoras e pesquisadoras da EJA, com destaque para o campo da alfabetização de jovens e adultos. As semelhanças estão nas atuações e coordenações de projetos de extensão voltados para o campo da EJA, nos embates que esses projetos encontram dentro da Academia e na perseverança das autoras em levar adiante projetos considerados longevos, quando o mais comum é a terminalidade após dois ou quatro anos de execução. Perseverança como uma opção política de acreditar que a alfabetização de jovens e adultos é um direito e, dessa forma, continuar defendendo os princípios freireanos de propiciar um aprendizado que faça sentido na vida das pessoas.

Insta destacar que esses três artigos buscam evidenciar a articulação entre a extensão, a pesquisa e a especificidade da formação do educador da EJA na universidade. Essa articulação, problematizada nos textos das autoras, tem sido um dos objetivos perseguidos pelas pesquisadoras nas suas trajetórias acadêmicas e, em parte, com retorno bem sucedido ao longo de três décadas. A formação do professor alfabetizador de EJA e a especificidade necessária a essa formação, ainda pouco valorizada também nas pesquisas acadêmicas, como aponta o artigo de Rocha e Goulart, tem sido uma defesa para a continuidade desses projetos de extensão.

Neste dossiê, são, ainda, tematizadas e discutidas as políticas públicas, as histórias de vida e identidade da EJA sob o ponto de vista de pesquisadores de dois países: Brasil e Portugal. No primeiro deles, Oliveira e Amaral partem da legislação portuguesa e brasileira para analisar a história das políticas de democratização da Educação de Adultos nos dois países, história essa analisada sob o ponto de vista da inserção desse público no ensino superior. Atualmente, de acordo com os estudos e as investigações no campo da EJA, torna-se imprescindível inserir o segmento da EJA no Ensino Superior, não só por ser o aluno um trabalhador, e sim pelas suas histórias marcadas por rupturas e descontinuidades no processo de escolarização. Oliveira e Amaral também rememoram as histórias de vidas desses alunos e trazem pontos comuns entre os dois países. A distância geográfica entre Brasil e Portugal torna-se inexpressiva com as semelhanças entre os alunos da EJA de lá e de cá do Atlântico.

As autoras Vieira, Moio e Lima também trazem suas reflexões a respeito da entrada tardia dos alunos de EJA no ensino superior. Sob o título Histórias de ingresso de jovens maiores de 23 anos no ensino superior em Portugal, as autoras apresentam a história da educação de adultos em Portugal, do século XVI à educação de jovens e adultos durante e após a Revolução de 1974. Na sequência, as autoras refletem sobre a inserção dos adultos no ensino superior, tema que já vem sendo debatido no meio acadêmico português. Diferentemente do que ocorre entre nós, brasileiros, esse é um tema ainda pouco explorado, ou mais adequado dizer, não enfrentado por nós, pesquisadores e acadêmicos.

São muitas as perguntas que carecem de respostas e pesquisas. Esses alunos oriundos da EJA, quem são eles? Quais os cursos escolhidos por eles? Ou serão os cursos que escolhem seus alunos? Essas são temáticas que ainda precisam ser investigadas. O acesso democrático desse público à universidade tem garantido a esses alunos o desejo de cursar o que realmente querem? Esses artigos nos incitam a entrar nessa vereda.

No último artigo do dossiê, de autoria de Machado e Barros, cujo título é Aspectos da construção histórica da identidade da EJA no Brasil e em Portugal: enfoque na agenda política e suas práticas discursivas, as autoras tematizam os três campos da EJA: o campo das práticas educativas, o das práticas de investigação e o das práticas discursivas, priorizando a análise deste último. Apresentam-nos a história da EJA em Portugal e no Brasil, a partir da análise da legislação, focalizando nas práticas discursivas inerentes à agenda política. Analisam, a partir dos discursos legais, o processo de democratização da EJA nos dois países, apontando as semelhanças e as diferenças.

Há que ressaltar que esses artigos foram produzidos em um contexto brasileiro diferente do que estamos vivenciando hoje, após a posse do presidente Jair Bolsonaro. Foram produzidos antes da extinção da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), secretaria responsável pelas ações da EJA. E no dia 11 de abril de 2019, foi lançado, em um documento de 56 páginas, a “Política Nacional de Alfabetização (PNA)”, instituída pelo Decreto nº 9.765. Nesse documento, a parte que diz especificamente sobre a alfabetização de jovens e adultos fica restrita a seis parágrafos.

Portanto, os artigos deste dossiê refletem uma análise em que apontamos os desafios, ao lado dos avanços, da longevidade dos projetos de extensão, da articulação entre ensino, pesquisa e extensão e, mais do que isso, da esperança que nos leva a acreditar que a história da Educação de Jovens e Adultos não pode ter um retrocesso, tal como vivenciado em 1964 e, posteriormente, com o fracasso do Mobral.

Aos leitores, este dossiê é um convite para pensarmos e analisarmos a história da Educação de Jovens e Adultos, em interface com a história da Universidade – do ensino, da extensão e da pesquisa –, e sabermos onde poderemos fazer a diferença frente aos próximos anos. Continuemos firmes com Paulo Freire, acreditando que precisamos esperançar. Façamos desse verbo o nosso lema para a EJA.

Notas

1 Cf. Calçade, 2018.

2 Definição do INAF para alfabetismo: “é a capacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela, um contínuo que abrange desde o simples reconhecimento de elementos da linguagem escrita e dos números até operações cognitivas mais complexas, que envolvem a integração de informações textuais e dessas com os conhecimentos e as visões de mundo.” (AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2018, p. 4).

3 Cf. Ação Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2018.

Referências

AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) Brasil 2018: resultados preliminares. São Paulo: Ação Educativa; IPM, 2018. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2019. https: / / doi.org / 10.31368 / 1980-6221r00382018

CALÇADE, Paula. As taxas de analfabetismo ainda são altas no Brasil? 2018. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2019. https: / / doi.org / 10.17771 / pucrio.acad.11041

Sônia Maria dos Santos – Universidade Federal de Uberlândia (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0002-7217-1576 http: / / lattes.cnpq.br / 9281057859793276 E-mail: soniaufu@gmail.com

Francisca Izabel Pereira Maciel – Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0003-4751-2890 http: / / lattes.cnpq.br / 0925119698225692 E-mail: emaildafrancisca@gmail.com


SANTOS, Sônia Maria dos; MACIEL, Francisca Izabel Pereira. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 19, n.1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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A imagem sobrevivente – DIDI-HUBERMAN (Topoi)

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013. Resenha de: Di GIOVANNI, Julia Ruiz. Histórias de fantasmas para gente grande. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.

Uma ciência da cultura

Georges Didi-Huberman, filósofo, historiador da arte e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, é um autor de destaque: tem mais de trinta trabalhos publicados na França, muitos dos quais foram e continuam sendo traduzidos em diferentes países. Tendo a história da arte e a teoria das imagens como temas principais, seus trabalhos vão do Renascimento aos problemas da arte contemporânea, e têm sido recebidos com interesse renovado entre historiadores e antropólogos, mas também no campo crescente da curadoria de arte. É também como curador que Didi-Huberman vem ao Brasil, em 2013, na ocasião do lançamento de A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby ­Warburg, trabalho publicado em versão original na França há mais de dez anos. Em conjunto com o lançamento do livro foi realizada, como uma das primeiras atividades a ocupar o espaço do recém-inaugurado Museu de Arte do Rio (MAR), a exposição Atlas suite. A mostra exibiu fotografias cujo objeto é outra exposição também curada por Didi-Huberman, esta muito maior, realizada em Hamburgo, em 2011: Atlas: como carregar o mundo nas costas, produzida originalmente em 2010 no Museu Reina Sofia, em Madri. Segundo a sinopse do MAR, tratava-se não de quadros, mas de “fantasmas” de uma exposição espalhados pelo chão do novo ­Museu.

Atlas, a exposição original de 2010, era um desdobramento dos estudos de Didi-Huberman sobre Aby Warburg (1866-1929), historiador alemão a que se dedica o extenso trabalho de A imagem sobrevivente: “Warburg é nossa obsessão, está para história da arte como um fantasma não redimido – um dibuk – para a casa que habitamos” (p. 27). Os modos de pensar de Warburg, tal como inspiram Didi-Huberman em seu percurso de produção teórica e agora também curatorial, recebem no livro um tratamento aprofundado, sendo apresentados menos por uma forma argumentativa linear do que por meio de séries de aproximações entre textos, imagens, referências teóricas e objetos de diversas naturezas. Demonstrando influências explícitas e implícitas nos estudos deste “antropólogo das imagens” – Burckhardt e Nietzsche, Lucien Lévy-Bruhl, E. Tylor, ­Darwin, entre outros – e propondo relações intensas entre sua abordagem e as proposições de contemporâneos – Sigmund Freud e Walter Benjamin, fundamentalmente -, Didi-Huberman busca destacar elementos para uma apreensão de Warburg que vai muito além da história da arte antiga e do Renascimento a que este em princípio se dedicara. Para o autor, trata-se fundamentalmente de reconhecer em Warburg modelos temporais, culturais e psíquicos que abrem a história da arte a “problemas fundamentais”, em grande medida “impensados” da disciplina, não por fornecer-lhe uma lei geral alternativa, mas por colocar as singularidades das imagens para funcionar na descrição das relações entre modos de figuração e modos de agir, de saber ou de crer de uma sociedade: “passamos de uma história da arte para uma ciência da cultura” (p. 41).

Uma compreensão expandida da obra de Warburg como teoria da cultura tem motivado interesse crescente em suas ideias e inspirado diversas extensões de seus conceitos e procedimentos metodológicos, construídos no contexto de estudos da arte renascentista e barroca, para as análises da sociedade industrial e contemporânea. José Emilio Burucúa já indicou a importância desse entusiasmo por um sistema warburguiano percebido como capaz de englobar os conflitos do tempo presente, identificando na última década certa tendência desses interesses a se converterem em uma moda intelectual ou mania acadêmica na América Latina.1 A publicação do livro de Didi-Huberman, embora possa ser lida superficialmente como reforço dessas extrapolações tão interessantes quanto arriscadas, propõe ao leitor brasileiro a possibilidade de uma confrontação mais aprofundada com a densidade do pensamento de Warburg. O estudo detido de Didi-Huberman – organizado em três grandes segmentos: a imagem-fantasma, a imagem-páthos e a imagem-sintoma – oferece uma série de elementos a serem problematizados no percurso (que tanto nos interessa) de formulação de teorizações mais gerais sobre a cultura que tenham a arte e as imagens como foco e como perspectiva a partir da qual pensar as relações sociais e sua historicidade.

A indagação sobre as estruturas e dinâmicas dos regimes visuais que Warburg inspira parece acenar com a possibilidade de acedermos, por meio da complexidade das imagens, ao “olho do furacão” dos processos sociais, abarcar os lapsos e esquecimentos, recuperar tudo o que parece escapar a modos verbais e lineares da escritura da história. A obsessão pelas imagens está ligada, como afirma Stéphane Huchet, a um fascínio em torno do “estrato da experiência e da intuição anterior às formalizações científicas” e de uma ambição de incorporação dessa dimensão ao saber teórico.2 Essa ambição intelectual, se considerada apenas a partir de Warburg, já apresenta manifestações múltiplas o suficiente para ser irredutível a qualquer moda passageira. Mas ­admitindo, como propõe Huchet, estarmos na presença de “certa atmosfera warburguiana”, é relevante deixar-nos guiar pela leitura de Warburg construída por Didi-Huberman: não para reproduzi-la impensadamente, mas sobretudo para buscar entender quais são as particularidades da imagem que nos prometem ver o que fontes de outra natureza não mostram. De que modo, segundo ele, na ciência warburguiana da cultura, as imagens se tornam não apenas objetos do pensamento, mas elementos com os quais pensar o passado, o presente e o futuro?

Sobrevivência e fórmula gestual

Segundo Didi-Huberman, Warburg foi um pesquisador dotado de “maravilhosa lucidez quanto à história transindividual de seus objetos de estudo e paixão: as imagens” (p. 423-424). A primeira chave de apreensão dessa sensibilidade é um conceito tão fundamental quanto, dirá Didi-Huberman, mal interpretado: a sobrevivência ou Nachleben. Antes de mais nada, o modo de análise criado por Warburg nos coloca diante da imagem como algo que não se define apenas por um conjunto de coordenadas positivas (como autor, data, técnica, iconografia etc.). Uma composição visual é uma sedimentação de uma multiplicidade de movimentos históricos, antropológicos e psicológicos que começam e terminam fora dela. Não é um corte em uma linha do tempo, mas um “nó” de temporalidades: “ficamos diante da imagem como diante de um tempo complexo” (p. 34; destaque do autor). Onde a história da arte precedente explicava o “retrato” como gênero das belas-artes surgido no Renascimento graças ao triunfo do humanismo, do indivíduo e de novas técnicas miméticas, Warburg encontrará uma forma em que se entrelaçam marcas de diferentes tempos: práticas pagãs antigas, formas litúrgicas medievais cristãs e problemas artísticos e intelectuais do século XV italiano. Nessa perspectiva, a obra de arte não se deixa resolver tão facilmente pela história, apresenta-se antes como um “ponto de encontro dinâmico” (p. 41) de historicidades heterogêneas e sobredeterminações: relações com as múltiplas dimensões da vida, com os modos de agir, pensar ou crer, sem os quais toda imagem, segundo Warburg, perderia “seu próprio sangue” (p. 41). Haveria assim uma dinâmica interna das imagens, um tempo que lhes é próprio: denso, porque formado de sobreposições e misturas entre instâncias históricas particulares. A sobrevivência, do alemão Nachleben, é o nome deste tempo, afirma Didi-Huberman.

Inspirada inicialmente pelo uso do termo por Edward Tylor (survival) para descrever os vestígios de um estado social já desaparecido, que resiste sob formas deslocadas – como o arco e a flecha de guerras antigas sobrevivem como brinquedos infantis -, a noção warburguiana designa a intrusão de formas anacrônicas que obriga a uma visão complexa do tempo histórico. Embora evoque um horizonte epistemológico evolucionista, a forma sobrevivente de Warburg não é aquela que vence suas concorrentes em uma corrida contra a morte, e sim a forma inapta que sobreviveu subterraneamente ao próprio desaparecimento para reemergir de modo inesperado em outro ponto da história. Ao introduzir o conceito de sobrevivência para discutir o Renascimento italiano, período a que estava remetida a invenção da história da arte como tal, Warburg lançava luz sobre o caráter fundamentalmente impuro desse renascimento, pois “cada período é tecido por seu próprio nó de antiguidades, anacronismos, presentes e propensões para o futuro” (p. 69). Isso equivalia, segundo Didi-Huberman, a comprar uma briga quanto ao estatuto do discurso histórico em geral (p. 60-66).

Inspirado por Burckhardt, como afirma Didi-Huberman, Warburg reconheceria essa complexidade da articulação temporal como uma articulação formal (p. 89). Na arte, a forma dos detalhes, o movimento dos adornos ou as nuances cromáticas são vestígios dos conflitos em ação no tempo, as formas são portanto vivas, portadoras de jogos de força em estado de latência. É nesse sentido que as imagens de que trata Didi-Huberman são “sobreviventes”: formas da sobrevida de tensões já mortas, disponíveis para assombrar as periodizações e causalidades definidas pela história. Warburg definiria a história das imagens que praticava como uma “história de fantasmas para gente grande” (p. 72), pois desvelava em sua temporalidade específica, híbrida, a palpitação de conflitos que, apesar de enterrados, pareciam nunca encontrar repouso.

Uma morfologia das imagens sensível a seu caráter de “nó” temporal jamais pode prescindir de registrar seu caráter dinâmico: “não há morfologia, ou análise das formas, sem uma dinâmica, ou análise das forças” (p. 90), afirma Didi-Huberman; “toda a problemática da sobrevivência passa, fenomenologicamente falando, por um problema de movimento orgânico” (p. 167). O segundo conceito central daquilo que o autor chama de “lucidez” warburguiana a respeito do caráter das imagens responderia a este problema: de que modo as formas dinâmicas do tempo sobrevivente se manifestam como movimentos dos corpos?

A questão conduziu o historiador a uma antropologia das formas do gesto intensificadas por sua recorrência em tempos históricos e modos de representação díspares, da Antiguidade ao século XX europeu, passando pelos hopis na América do Norte. Warburg reconheceu essas formas recorrentes como fórmulas, modos de operação da tragicidade do tempo. Chamou-as de Pathosformeln, ou fórmulas de páthos. O conflito não resolvido estaria contido em uma memória do gesto, em uma tensão corporal que se repete deslocada, transformada ou convertida em seu contrário, como as mênades pagãs que reaparecem nos anjos renascentistas. Graças a sua atenção às imagens, Warburg teria encontrado vínculos entre o problema do tempo histórico e o tempo psíquico nos corpos agitados por afetos. As contorções, inclinações e texturas da forma humana, sua força patética, fornecem a matéria das imagens fantasma. A pesquisa sobre as fórmulas primitivas ou sobreviventes do movimento corporal era um caminho para compreender o que esse “primitivo” ou “antigo” queria dizer no presente (p. 193).

Lições do olhar

Ao explorar os conceitos de sobrevivência e fórmula de páthos construídos por Warburg, Didi-Huberman desenvolve a que talvez seja a proposição central de A imagem sobrevivente: a complexidade das imagens tal como tratada por Warburg é de natureza “sintomal”. Do entrelaçamento entre o presente do páthos, o passado da sobrevivência e a imagem do corpo, ele dirá: “Que é afinal esse momento senão o do sintoma (…) no qual só permite pensar a psicanálise freudiana, contemporânea de Warburg?” (p. 229).

O sintoma freudiano é o modelo que Didi-Huberman utilizou para demonstrar a atualidade das tensões que o olhar de Warburg destacava nas imagens e extrapolar esse olhar, desenvolver como formulações mais gerais seus modelos temporais e semióticos. Como sintoma, segundo o autor, é que as imagens se tornam uma via de acesso aos processos invisíveis e formas paradoxais da cultura: a imagem é nesse sentido um retorno do conflito recalcado sob uma forma deslocada, uma “formação de compromisso”. A clínica da histeria teria fornecido ao próprio Warburg um modelo sintomatológico para interpretar as fórmulas expressivas e encontrar nas imagens a temporalidade latente dos traumas.

No entanto, ao contrário do médico que busca reduzir a mobilidade de corpos atravessados por crises a um quadro de regularidades, Warburg teria buscado preservar e incorporar em sua leitura da história da arte as descontinuidades, diferenças e incongruências entre manifestações das mesmas fórmulas. Segundo o autor, a epistemologia de Warburg é definida pelo procedimento de montagem. Na criação de Mnemosyne – o atlas aberto em que Warburg criava e recriava composições de imagens em busca de uma interpretação das fórmulas de páthos – e de sua própria biblioteca, Warburg teria antecipado a ideia de montagem de Walter Benjamin, que aproxima a construção cinematográfica contemporânea das operações de quebra e recomposição próprias dos processos mnemônicos (p. 419).

Didi-Huberman encontra assim “lições do olhar” ensinadas por Freud e Benjamin como chaves para a compreensão e o desdobramento de uma abordagem warburguiana das imagens em geral e, mais além, de todo objeto da cultura – como “tensão em ato” (p. 162). A leitura do movimento, a descrição da estrutura contraditória dos gestos e a dialética das relações entre imagens, apreendida por seu incessante deslocamento combinatório, por uma atitude interpretativa que recusa a se fechar: “Warburg havia compreendido que devia renunciar a fixar as imagens“, afirma o autor (p. 389).

Warburg sintoma

O sintoma como categoria crítica, dirá Didi-Huberman, e a montagem como operação investigativa e interpretativa seriam portanto definidores de um modo de estar diante das imagens que encontra atualmente novos desenvolvimentos, como ramos ressecados que inesperadamente se põem a brotar fora de estação (p. 428). Não é esse o tema warburguiano por excelência, o das coisas que rebentam fora de seu tempo “natural”? É também por meio da descrição freudiana da formação dos sintomas psíquicos que Didi-Huberman apresenta ao leitor o fundamento “anacrônico” desse olhar sobre a cultura: assim como uma lembrança recalcada só ganha dimensão de trauma a posteriori, na medida em que reemerge distorcida na forma do sintoma, as “fontes primitivas” da imagem só se constituem no processo de seu reaparecimento (p. 289).

Para Didi-Huberman, esse movimento estrutura a maneira warburguiana de perscrutar o antigo a partir de suas reconfigurações contemporâneas. A conferência de 1923 sobre o ritual da serpente, que Warburg apresenta no sanatório onde se encontrava internado em grave crise psicótica, é considerada por Didi-Huberman uma síntese epistemológica. A um só tempo uma regressão e uma invenção: no momento da crise, o retorno ao périplo passado – a viagem ao território hopi realizada trinta anos antes – possibilita a produção de um novo conhecimento, “que tirou do fato de estar em perigo os fundamentos de sua eficácia” (p. 318).

Como teórico e curador, Didi-Huberman não deixa de mimetizar os procedimentos que identifica em Warburg, buscando apresentar ideias e imagens em seu caráter estruturalmente dúbio e parcialmente inacessível, sujeitando-as de modo explícito a “deslocamentos” ou “desvios”. As formas de montagem caleidoscópica que apresenta em seus textos e nas exposições que tem organizado fornecem, hoje, provavelmente, o paradigma mais visível e persuasivo para a recepção dos trabalhos de Warburg – que se torna mais presente no Brasil com a publicação.

Parece pertinente dirigir a essas formas a pergunta que nos ensinam: a que responde, no presente, o emprego das figuras da sintomatologia e da montagem modernista na narrativa historiográfica ou antropológica? A aspiração por uma anticiência, que ambiciona dar a ver as instâncias obscuras ou recalcadas da história, não deixa de ser uma das fórmulas patéticas que habitam nossas práticas de pesquisa e modas intelectuais. Seria desejável nesse sentido interpretar os conflitos persistentes e novos compromissos que se manifestam no destaque que vem recebendo a obra de Warburg e nas proposições sobre essa obra feitas por Didi-Huberman. Nas aproximações sempre férteis entre história e antropologia, sob inspiração do próprio autor, devemos estar dispostos a ler tais proposições e seus modos de difusão como sintomas, observar atentamente sua forma e temporalidade.

Em grande medida, o Warburg que vemos surgir no livro de Didi-Huberman – fortemente freudiano e benjaminiano, deleuziano em algumas passagens – é, ele mesmo, uma imagem: fantasma, montagem e sintoma. O Warburg “pescador de pérolas” (p. 423), mestre dos procedimentos intelectuais que nos parecem indispensáveis para a decifração do tempo presente (este tempo em que as imagens se multiplicam tão vertiginosamente a ponto de não mais as vermos), não nos precede cronologicamente apenas, como uma forma original resolvida, transmitida por imitação. Ele se constitui no próprio processo de deslocamento graças ao qual (re)aparece ao nosso interesse, uma “origem que só se constitui no atraso de sua manifestação” (p. 289).

1 BURUCÚA, José Emilio. Repercussões de Aby Warburg na América Latina. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 21, dez. 2012. Disponível em: <http://concinnitas.kinghost.net/texto.cfm?edicao=21&id=97>.

2 HUCHET, Stéphane. O historiador e o artista na mesa de (des)orientação. Alguns apontamentos numa certa atmosfera warburguiana. Revista Ciclos, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 3-18, set. 2013. Disponível em: <www.revistas.udesc.br/index.php/ciclos/issue/view/291/showToc>.

Julia Ruiz Di Giovanni – Doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. E-mail: judigiovanni@gmail.com.

A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro- DELLAMORE et. al. (Topoi)

DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia. A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. Resenha de: CARDOSO, Igor Barbosa. História cultural, linguagem fílmica e ditadura militar brasileira. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.

Há algumas décadas, os estudos culturais flexibilizaram uma tradição de estudos históricos a fim de refletir sobre as políticas de identidade que discutem a questão do sujeito a partir de conflitos sociais em que há afirmação ou negação de identidades étnicas, nacionais, etárias, de gênero, de classe e outras. A renovação dos estudos históricos impactou as análises fílmicas no sentido de superar o diagnóstico estrutural da produção cultural de massa para voltar o olhar às condições efetivas e específicas de produção e recepção da obra. O olhar histórico e sociológico tendo o cinema como fonte de pesquisa passou a privilegiar, quando muito, o nível narrativo-dramático, em detrimento dos componentes propriamente estéticos.

Sob a organização dos doutorandos Carolina Dellamore, Gabriel Amato e Natalia Batista, o livro A ditadura na tela procura equilibrar as análises oriundas dos estudos culturais, levando em consideração a linguagem cinematográfica, em uma articulação interdisciplinar. Logo na introdução (“A ditadura na tela: questões conceituais”) – escrita pelos organizadores -, três pressupostos orientam a curadoria: os filmes documentais são tratados como “trabalhos de recordação interessados na construção de identidades e de projetos políticos no tempo presente de sua produção” (p. 12); são previamente indexados de modo que pactuam com o espectador um “compromisso de exploração da realidade” (p. 13); e são resultados de uma conformação cultural atual que demanda narrativas memorialísticas. A partir desses pressupostos, os historiadores articulam – alguns com mais sucesso – elementos fílmicos e extrafílmicos para compreender os posicionamentos assumidos pelos diretores em seus trabalhos bem como a relação de suas obras com o público.

A ditadura na tela é fruto do projeto de extensão, de título homônimo, conduzido pelo Núcleo de História Oral da UFMG. Em parceria com equipamentos públicos de Belo Horizonte – Centro de Referência da Moda e Museu da Imagem e do Som (MIS) Cine Santa Tereza -, o projeto exibiu, entre 2014 e 2017, diversos documentários a respeito do período ditatorial brasileiro (1964-1985), seguidos de discussões fomentadas por pesquisadores convidados. O livro é constituído de duas partes. A primeira (“As batalhas de memória no cinema documentário sobre a ditadura”) é resultado da reunião de dez artigos oriundos dessas intervenções públicas. Em parte por isso, não é possível encontrar unicidade metodológica de análise. Os temas abordados também são diversos: a militância de mulheres, estudantes universitários e operários; a relação entre Estado, futebol e imprensa; na produção cultural, a literatura de temática lésbica de Cassandra Rios, o grupo inovador Dzi ­Croquettes, o movimento (musical) tropicalista e os silêncios sobre o cantor Wilson Simonal.

Juliana Ventura Fernandes analisa Repare bem (2012), documentário da cineasta portuguesa Maria de Medeiros. No artigo, alguns aspectos próprios da composição fílmica são abordados, tais como a construção cênica (locações quase sempre na casa das entrevistadas), a montagem (que faz coincidir a fala das entrevistadas com imagens documentais, reforçando o argumento apresentado) e, especialmente, a oralidade (considerando tanto os momentos de maior contundência do discurso, quanto os depoimentos mais fragmentários e fugidios, além dos silêncios e pausas). A análise da violência e da perseguição política pelas quais três gerações de mulheres foram submetidas, proposta de Medeiros, é compreendida por Fernandes no campo das estratégias estatais de construção de uma memória sobre a ditadura, uma vez que o documentário é fruto da iniciativa do projeto Marcas da Memória, que tem por finalidade construir alternativas à atuação dos órgãos oficiais de reparação – geralmente, de caráter pecuniário – ao fornecer material para o reconhecimento de experiências de violência durante a ditadura.

De modo relativamente semelhante, ­Gabriel Amato analisa Memória do movimento estudantil (2007), documentário dirigido por Silvio Tendler, relacionando os elementos propriamente fílmicos e o debate historiográfico sobre a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que financiou a produção documental por meio de Lei Federal de Incentivo à Cultura. A partir do conceito exposto por Marie-Claire Lavabre, de que a memória histórica é uma sobreposição das fronteiras entre a prática social da memória e a atividade intelectual historiográfica, Amato propõe que a estética realista de Tendler corrobora a narrativa hegemônica sobre o movimento estudantil desenvolvida em O poder jovem (1968), de ­Arthur ­Poerner, segundo o qual “o estudante brasileiro é um oposicionista nato” (p. 56). Amato explora com acuidade o recorte realizado pelo documentarista dos documentos de época, das trilhas sonoras não originais, dos acontecimentos, das personagens e das entrevistas. Segundo o articulista, a seleção prévia expressa determinada visão de mundo que acaba por reduzir “a participação política dos estudantes brasileiros à história da UNE e a determinado modelo de militância dentro da entidade” (p. 59). Com efeito, a contracultura e o hippismo, duas manifestações culturais caras à juventude das décadas de 1960 a 80, permanecem silenciadas face à memória histórica da UNE – o que se reflete no trabalho de Tendler.

Também encontramos boa discussão historiográfica e de linguagem fílmica com Davi Aroeira Kacowicz, que analisa Tropicália (2012), documentário dirigido por Marcelo Machado. Como Amato sugeriu em relação a Memórias do movimento estudantil, Kacowicz discute a reprodução de certa memória histórica sobre a efervescência cultural dos anos 1960 no documentário de Machado, qual seja a de que a tropicália, conceito estético que designou uma constelação de vanguardas culturais, acaba reduzido ao tropicalismo, movimento musical de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto e tantos outros. Em contrapartida, Kacowicz evidencia que a historiografia mais recente compreende a contracultura brasileira para além das fronteiras da cena musical, a exemplo dos importantes trabalhos de Frederico Coelho (Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado, 2010), de Christopher Dunn (Brutalidade jardim, 2009) e de Heloísa ­Buarque de Hollanda (Impressões de viagem, 2004). Apesar disso, o artigo aponta que o levantamento documental empreendido por Machado traz fatos inéditos que podem revisar em parte a discussão historiográfica, como as cenas do Festival da Ilha de Wight de 1970 e a versão ao vivo da faixa Alfômega, apresentada por Caetano e Gil na rede de televisão portuguesa em 1969. Além da raridade material, Kacowicz atenta para o cuidadoso trabalho dispensado em Tropicália na condução da trilha sonora (sugerindo haver um refinamento técnico das músicas), dos efeitos de pós-produção (com inserção de cores vivas nas imagens em p&b) e de montagem, capazes de envolver o público em um “painel imagético-sonoro do contexto” (p. 133).

Da mesma forma que Kacowicz acredita que Tropicália pode contribuir para novas questões ao debate historiográfico, Natália Batista defende a tese de que o documentário Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, inaugurou uma discussão que ainda não havia sido feita pelos historiadores, isto é, o papel do teatro na resistência à ditadura pelo viés do escracho e do humor, com a abordagem das homossexualidades. Batista também explicita que o esquecimento/apagamento em torno do grupo teatral dificulta a construção documentária na falta de outras ancoragens narrativas. De todo modo, por meio de entrevistas, imagens de arquivo e trilha sonora, Batista acredita que Issa e Alvarez conferem uma dimensão de engajamento do grupo diante da ditadura e um reconhecimento de sua importância tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Ademais, segundo Batista, o documentário permite questionar o pressuposto de “vazio cultural dos anos 1970” e, em especial, o papel dos corpos como atos políticos.

Ana Marília Menezes Carneiro debate a questão de gênero a partir de Cassandra Rios: a Safo de Perdizes (2013), documentário dirigido por Hannah Korich que conta com depoimentos de familiares, estudiosos e pessoas próximas da escritora, que escreveu romances bastante populares com temáticas homoeróticas. Carneiro ressalta a importância do documentário por reapresentar Cassandra Rios para além dos estereótipos muitas vezes preconceituosos e, ainda, por levar em consideração o amplo alcance de público, expressão de uma demanda social latente pelos temas ficcionalizados pela escritora. Apesar da boa discussão mobilizada por Carneiro em torno do silenciamento midiático sobre Cassandra Rios – reproduzindo em parte o argumento apresentado no depoimento de Laura Bacelar, editora de grande parte dos romances de Rios -, talvez fosse interessante resgatar reportagens de época em importantes meios de comunicação a fim de melhor explorar – e quem sabe nuançar – a tese sobre a recepção de suas obras durante a década de 1970, a exemplo do perfil elaborado sobre Cassandra Rios pela revista Realidade em 1970 e da crítica ao romance Carne em delírio escrita por Marina Colasanti e publicada pelo Jornal do Brasil em 1972.

Como no artigo de Juliana Ventura, a participação de mulheres na resistência à ditadura também é tema discutido por Débora Raiza Carolina Rocha Silva, que analisa Que bom te ver viva, documentário dirigido por Lúcia Murat e lançado em 1989. Silva retoma o contexto de produção memorialística e historiográfica sobre a ditadura militar nos finais da década de 1980 para compreender a representação do feminino na obra de ­Murat, em especial no que diz respeito à tortura de cunho sexual contra mulheres. Também lança um olhar atento sobre a recepção da obra no meio midiático. O artigo não explora o estatuto do documentário de Murat, constituído de cenas dramatizadas e depoimentos, o que poderia enriquecer enormemente a análise sobre as fronteiras do dizível, uma vez que a ficção é aí elemento central na abordagem de um tema sensível.

O artigo de Isabel Cristina Leite da Silva também aborda a representação do feminino durante a ditadura. Analisa Subversivas – Retratos femininos de luta contra a ditadura (2013), documentário dirigido por Fernanda Vidigal e Janaina Patrocínio. O texto destaca a inclusão de novos temas pelo documentário para compreender o período da ditadura militar, como o de conciliação entre o mundo político e o mundo privado, a maternidade, a revolução sexual e os novos comportamentos por parte de setores da sociedade brasileira frente ao aborto. A leitura realizada pela autora privilegia a exposição da narrativa desenvolvida pelo documentário, sem colocar questões com relação à linguagem propriamente fílmica.

A partir de Simonal – ninguém sabe o duro que dei (2009), documentário dirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e ­Calvito Leal, Bruno Vinicius de Morais tematiza o corpo negro do cantor Wilson Simonal como parte de uma memória subterrânea sobre o período ditatorial. Por meio de entrevistas concedidas por Manoel, que também foi comediante do grupo global Casseta & Planeta, Morais identifica um projeto de releitura sobre o período ditatorial brasileiro pretensamente assentado na renovação historiográfica empreendida por Daniel Aarão Reis Filho, para quem os anos de chumbo foram de relativo consenso e legitimação social, sendo que as esquerdas não apresentavam até então um programa democrático face ao autoritarismo de direita. Morais avalia que a forma pela qual o documentário foi recebido pela opinião pública em jornais e revistas é significativa: em geral, Wilson Simonal é representado como um artista ingênuo e apolítico; por outro lado, a esquerda é associada a um “stalinismo midiático”, tão autoritária quanto a própria ditadura. Segundo Morais, a apreensão conservadora sobre o regime militar acaba por se silenciar acerca de outras questões caras à trajetória do cantor, como as denúncias que fazia contra o racismo e a afirmação do orgulho negro em plena década de 1960, quando o debate racial carecia de espaços institucionalizados.

Já o artigo de Carolina Dellamore versa sobre Greve! (1979), documentário de João Batista de Andrade, que registrou o movimento grevista dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo (SP). Para Dellamore, o cineasta não somente mostrou a greve, mas buscou especialmente intervir na realidade, na medida em que o que ele filmou foi a situação criada a partir da presença da câmera, o que Jean-Claude Bernadet denominou de “dramaturgia da intervenção” (p. 87). O artigo explora a narrativa em off, que muitas vezes chega a ser irônica se contrapondo à exibição das imagens e às falas dos entrevistados. Outro aspecto da construção narrativa evidenciada por Dellamore reside na montagem empreendida por Andrade, que faz o depoimento do interventor Guaracy Horta em defesa da “normalidade” nos sindicatos ser contradito pelas imagens de repressão policial sobre os trabalhadores nas ruas. A trilha sonora, com músicas de ­Belchior, também é explorada como elemento diegético que sugere por vezes ambiguidade com relação às imagens exibidas. O movimento de câmara é analisado ao final, quando o cineasta privilegia a perspectiva do operário em vez do ponto de vista do palanque, das lideranças, revelando a posição crítica de desconfiança assumida por Andrade.

Marcus Vinícius Costa Lage escreve sobre Memórias do chumbo: o futebol nos tempos do Condor (2012), uma série de quatro documentários realizada por Lúcio de Castro sobre o uso político do futebol pelas ditaduras militares de Argentina, Brasil, Chile e ­Uruguai. Exibida pelo canal televisivo ESPN Brasil, a série é analisada por Lage a partir da construção narrativa, ora atentando-se para a composição da trilha sonora, ora para os cenários nos quais os entrevistados depõem sobre o tema. Segundo o articulista, a abordagem escolhida por Castro privilegia a denúncia contra a corrupção das entidades desportivas, que seriam caracterizadas pela manipulação da opinião pública por meio do futebol, com interferência direta dos governos autoritários. O contexto de produção e lançamento da série – isto é, seis meses antes da realização da Copa das Confederações da FIFA no Brasil, quando parte da imprensa discutia a promoção de megaeventos esportivos que demandaram vultoso financiamento estatal – ajuda a explicar, segundo Lage, o posicionamento crítico do cineasta bem como do canal televisivo.

Na segunda parte do livro (“O fazer e o guardar no campo do cinema documentário sobre a ditadura”), a cineasta e professora Anita Leandro (UFRJ) escreve sobre o método de “montagem direta” utilizado em seu documentário Retratos de identificação, que consiste no comparecimento da imagem de arquivos – muitas delas inéditas e produzidas pela polícia para fins de identificação e controle do prisioneiro – diante da testemunha. Segundo a autora, o método precede a montagem propriamente dita de modo que de entrevistada a testemunha torna-se narradora de uma história na primeira pessoa. Apesar de existir uma seleção prévia das imagens e uma ordem de apresentação que designam um roteiro, a metodologia de Anita Leandro possibilita um novo campo de pesquisa ao despertar a potência mnêmica dos materiais de arquivo com a fala das testemunhas. Ainda com relação à segunda parte do livro, Marcella Furtado faz um apanhado geral sobre o acervo do MIS de Belo Horizonte, composto basicamente por cinejornais institucionais produzidos pela prefeitura e por materiais brutos e editados pela TV Globo Minas.

Por fim, vale ressaltar que o livro A ditadura na tela se mostra relevante para o atual debate historiográfico por diversos motivos. Em primeiro lugar, a própria seleção dos documentários privilegia a inclusão de novos sujeitos – mulheres, negros, homossexuais – para a compreensão mais plural da ditadura militar brasileira, que por vezes é centrada pela atuação de partidos e lideranças políticas. Em segundo lugar, no caso dos documentários que abordam atores já consagrados tanto pela memória quanto pela historiografia, como no caso da atuação do movimento estudantil ligado à UNE, o tratamento analítico dos articulistas procura explorar os desvios em relação às narrativas hegemônicas. Por fim e em terceiro lugar, ainda que nem todos os artigos se debrucem mais detidamente sobre a linguagem fílmica, fica nítido o esforço de levar em consideração tanto os elementos de produção e recepção das obras quanto os elementos estéticos específicos de fontes audiovisuais. Em tempo de revisões grosseiras sobre o período, A ditadura na tela contribui para um debate público qualificado, ultrapassando a interlocução entre pares, algo cada vez mais necessário.

Referências

DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel; BATISTA, Natalia(orgs.). A ditadura na tela: o cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018. [ Links ]

Igor Barbosa Cardoso – Doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: igorbcardoso@gmail.com.

Uma editora italiana na América Latina – SCARZANELLA (Topoi)

SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. Resenha de: NASCIMENTO, Aline de Jesus. A família Civita e a imprensa na América Latina. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.

Escrever acerca da trajetória dos fundadores até a consolidação da Abril é tarefa que exige fôlego. Em meados do século XX, os seus criadores remodelaram os nichos editoriais na América Latina, principalmente no que tange ao caso brasileiro. Além do tradicional almanaque e das mais diversas coleções de fascículos, os produtos foram diversificados em vários suportes impressos não se limitando apenas às revistas, destinadas aos mais diversos públicos. A Abril segmentou o mercado de impressos e levou às bancas o mais variado tipo de revistas, que iam do esporte à moda, do gerenciamento e decoração da casa à informação semanal, enfim, uma diversidade de conteúdos que acabavam por agradar diferentes leitores e interesses, o que permitiu à empresa construir um verdadeiro império no campo editorial e tornar as bancas de jornais locais de informação e entretenimento. Uma empresa com tal renome não passaria impune aos historiadores, há uma gama de trabalhos acadêmicos acerca das principais revistas produzidas pela empresa, cada qual com sua metodologia.

O livro da professora de História da Universidade de Bolonha, Eugenia ­Scarzanella, seguiu uma linha interessante ao se basear na trajetória dos italianos pertencentes à família Civita na segunda metade do século XX. Especialista em América Latina, o livro representa sua primeira investida na empresa Abril. Sem deixar de entrelaçar as publicações da editora com o contexto político vigente, Scarzanella esmiuçou, com maestria, uma análise que levou em conta a experiência da Abril na Argentina, no ­Brasil e no México. Portanto, apesar da editora Abril constituir-se objeto comumente pesquisado, a autora contribui para as relações internacionais de um empreendimento que não afetou apenas o campo econômico, mas também o cultural. Dessa maneira, o título da obra por si já fornece indícios do que o leitor irá encontrar ao se debruçar no texto: a experiência de uma editora italiana na América Latina.

Cabe destacar dois pontos: a data de lançamento da tradução em português foi oportuna, visto que o atual cenário da editora não é mais promissor como o das décadas anteriores; a edição brasileira foi publicada pela Editora Unicamp, renomada por disseminar grandes títulos na área acadêmica.

Além do obstáculo da escassez de estudos que contemplem a trajetória da editora nos três países, outro desafio da pesquisa concerne às fontes. A fragmentação de documentos da editora Abril, que se encontram espalhados em diferentes bibliotecas e arquivos históricos, elencados na apresentação do livro, exigiu o empenho da pesquisadora não apenas na recolha, mas também no estabelecimento de uma linha de raciocínio diante de tantas frações. Também, a ausência de indícios fez com que Scarzanella levantasse diversas fontes para cobrir possíveis brechas na história. As fontes orais foram contribuições relevantes para o trabalho da historiadora. Além de compartilharem lembranças dos membros da família Civita, os testemunhos dos funcionários da empresa forneceram informações que não puderam ser acessadas nos escassos documentos oficiais.

A obra privilegia os primeiros anos da editora na Argentina, ao evidenciar como ocorreu a investida da empresa e quais foram as obras de mais destaque naquele país. A questão das relações étnicas e de como os italianos ocuparam espaço desse empreendimento na Argentina foi delineado pela autora e representa um novo olhar acerca da empresa. O livro, desse modo, contribui para novas perspectivas acerca dessa grande empresa que não se limitou apenas a um espaço geográfico.

O Brasil aparece como pano de fundo, quando a Abril constituiu-se numa empresa autônoma, mas que soube se apropriar de determinadas publicações de sua vizinha. Ao México foram destinadas poucas páginas no final do livro. A partir da atuação da família Civita na América Latina, o livro está dividido em seis capítulos com títulos claros acerca do que cada componente irá abordar. Acrescenta-se dois recursos interessantes: o índice onomástico e o caderno de imagens, elementos pós-textuais de grande relevância para quem quer realizar uma rápida consulta de revistas citadas no decorrer dos capítulos.

Scarzanella abordou os passos iniciais dos fundadores das empresas, a família ­Civita, desde o momento que fizeram parte da estatística dos exilados que se espalharam nos territórios da América por causa dos regimes totalitários entre 1920 e da Segunda Guerra Mundial que eclodiram na Europa. Cabe lembrar que uma parcela desses exilados era pertencente à classe social média alta, com elevados recursos econômicos e culturais. A atividade editorial da família Civita dentro do território latino-americano iniciou-se na Argentina com Cesare, empenhado em publicações de revistas em quadrinhos. Uma rede de relações e parcerias, firmadas por Cesare, na qual estavam envolvidos contatos com a comunidade judaica e italiana na Argentina, possibilitou um leque de novos financiadores e leitores. Em 1944, a Abril argentina publicou uma revista em pequeno formato da Disney: El Pato ­Donald. Trabalhar nesse local não significou apenas um privilégio econômico comparado a outros empregos no setor, simbolizava a possibilidade de compartilhar um ambiente dinâmico, jovem, culto e divertido.

Vittorio seguiu o caminho do irmão e, com os direitos autorais da Disney, publicou no Brasil, em junho de 1950, o Pato Donald, marcando o momento inicial da empresa que dominaria as bancas em poucos anos. A sede da editora sempre foi São Paulo, estado que se destacava do ponto de vista econômico e que então contava pouco mais de dois milhões de habitantes. O mundo do jornalismo, assim como o da cultura e dos intelectuais, era largamente dominado pelo eixo Rio de Janeiro/São Paulo e a cidade foi uma aposta do fundador que acabou por se revelar bastante acertada.

Scarzanella estabeleceu os traços comuns entre os dois países, que não se limitaram apenas pela escolha do mesmo nome para a editora. O desenvolvimento paralelo da Abril no Brasil e na Argentina prosseguiu por todos os anos de 1950. O caso da revista de fotonovelas Capricho merece destaque nessa relação devido ao seu grande sucesso. Lançada em 1952, a revista foi dirigida por uma colaboradora da Abril argentina, a fim de contribuir para o lançamento de novas publicações nesse gênero. Após uma mudança de formato e o início da publicação de histórias completas em cada número, o periódico chegou a uma tiragem de 500 mil cópias e uma versão em espanhol passou a ser distribuída na Argentina.

O segredo da Abril consistia em colocar no mercado novos produtos com publicações diferenciadas e destinadas a determinadas faixas de consumidores, em uma velocidade imposta pelas nuances do mercado editorial. Assim, em 1959, foi lançada em São Paulo a primeira revista de moda, Manequim, que utilizava material fotográfico proveniente de Buenos Aires.

Ainda na década de 1960, Parabrisas na Argentina foi grande sucesso relacionada ao desenvolvimento da indústria automobilística no país. O êxito acarretou no aumento de sua periodicidade – de mensal para semanal – a fim de estar mais presente nas bancas. Foi rebatizada como Corrida (1966) e Raúl Horacio Burzaco foi convidado para dirigi-la. Em agosto de 1960, a Abril de São Paulo lançou a revista Quatro Rodas, sob direção do jornalista Mino Carta, nos moldes da publicação argentina, igualmente especializada em turismo e automóveis.

Em 1961 surgiu nas bancas Claudia, publicação homônima à argentina lançada em 1957. Seguindo os moldes de Marie Claire, Grazia e Ladies’ Home Journal, esse semanal feminino foi de imediato grande sucesso. Destinado a donas de casa, explorou o uso de fotografia e publicidade nas suas páginas. No caso brasileiro, foi a primeira revista feminina que trouxe no título o nome de uma mulher. Os periódicos renovaram o gênero e sempre estiveram em sintonia com o crescimento da urbanização e das camadas médias. Porém, progressivamente ambas as revistas, brasileira e argentina, se distanciaram, ao adequar-se aos poucos cada qual a sua realidade nacional. Com grande sucesso até os dias atuais, no Brasil, Cláudia, destinada à mulher casada, deu origem a subprodutos como Casa Cláudia.

A Abril firmou-se no mercado brasileiro em função de projetos grandiosos e inovadores. Para garantir maior eficiência na vendagem, a editora criou uma rede de distribuição própria, comprou bancas e financiou jornaleiros para os quais organizou também cursos de formação. A editora brasileira antecipou-se à argentina no mercado de enciclopédias e fascículos com A Bíblia mais bela do mundo (1965), Os pensadores (1974), Os economistas (1982).

Pode-se levantar hipóteses de que a Abril brasileira pôde usufruir da vantagem de melhores relações com o poder público, mesmo com as dificuldades ligadas à limitação da liberdade da imprensa, fator que não se repetiu com a ditadura na Argentina. O regime militar brasileiro foi provavelmente para os empresários um interlocutor mais estável e mais hábil na gestão da economia em relação ao regime militar argentino, que fez as empresas naquele país “navegar[em] em águas difíceis, adaptando-se à mudança brusca de governos, à pretensão recorrente dos militares de impor à censura (e com ela a moral católica e conservadora) e à hostilidade dos seguidores de Perón (de direita e de esquerda), em guerra permanente entre si” (p.113).

A irmã brasileira lançou Realidade, em 1966, e Veja, em setembro de 1968. A censura impediu a circulação da primeira durante dois anos devido aos conteúdos considerados ofensivos (sexo, aborto, divórcio). O momento de lançamento da última não foi feliz porque, em dezembro do mesmo ano, foi decretado o Ato Institucional nº 5, com o qual o regime militar suspendia as garantias constitucionais. Entre 1975 e 1976, Veja teve que se submeter à aprovação prévia da censura e evitar tratar de uma lista de temas proibidos. Inclusive, de acordo com a historiadora, a demissão do diretor da revista, Mino Carta, teria sido uma exigência da ditadura, informação contestada de acordo com a versão do Roberto Civita (ALMEIDA, 2009, p. 151). Veja conseguiu sobreviver à ditadura e quando a editora brasileira comemorou 50 anos foi a revista com mais exemplares vendidos no país.

A Abril argentina não teve a mesma sorte, seus semanários de atualidade foram alvos de forte censura, houve intimidação e violência contra jornalistas, proprietários e tipógrafos. Em 1975, a organização de direita Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) explodiu, diante do prédio da editora, uma bomba lança-panfletos contendo ameaças aos funcionários e à família Civita. Uma contribuição interessante do livro, mas que é pincelada pela autora foi que o empresário Cesare decidiu deixar o país e tentar se instalar em São Paulo, mas Vittorio teria dito que não havia modos de utilizá-lo dentro da sociedade. Esse tema pouco explorado representa uma nova perspectiva sobre a relação dos dois irmãos e questionamentos acerca dos conflitos de interesse das empresas.

A partir dos anos de 1960, Cesare tentou se inserir no México, com a Mex-Abril. enviando o genro Giorgio de Angeli para gerir esse novo empreendimento. Claudia também recebeu uma versão nesse país, com ingredientes locais, com divulgação de material de escritores e comerciantes, assuntos sobre homens e roupas que podiam ser compradas em boutiques nacionais, além de belas mulheres da televisão e sobre o cinema do país. A Mex-Abril não se revelou tão próspera quanto as irmãs e, no livro de Scarzanella, não houve muitas páginas dedicadas a essa investida de Cesare.

O destino da Abril argentina não se mostrou feliz desde os anos de 1970, explorado no encerramento do livro. Scarzanella enfatizou que o “capital social” de Cesare não foi o suficiente para transformar a editora argentina, empresa essencialmente familiar, em um empreendimento internacional. Os políticos, militares e lobistas teriam conquistados a Abril, como a própria autora afirmou no título do último capítulo.

O caso brasileiro foi mais frutífero. No ano de 2000, em seu cinquentenário, a empresa contava com 219 títulos nas bancas. Destarte, uma obra que demonstra as relações sociais e os empreendimentos na imprensa latino-americano dentro da família Civita, se caracteriza como uma leitura imprescindível. Principalmente, ao se considerar o entrelaçamento da Abril argentina com o contexto político do país que influenciou a sorte da empresa. Para um leitor que busca conhecimento acerca da Abril no Brasil e no México, o livro não contempla um estudo detalhado, o título original justifica o motivo: Abril – De Perón a Videla: um editore italiano a Buenos Aires. O assunto está longe de se esgotar dentro da obra, sendo, dessa maneira, um instrumento interessante para multiplicar as pesquisas sobre o assunto na área de História.

O estilo de escrita e a divisão dos capítulos permitem uma leitura fluída, inclusive para aqueles que não são especialistas na área. A obra se destaca por ser o resultado de uma pesquisa intensa com grande diversidade de fontes, motivo que contribui para os debates em torno da editora Abril e também abre espaço para se pensar acerca das redes étnicas criadas pela família Civita.

Referências

ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. [ Links ]

SCARZANELLA, Eugenia. Uma editora italiana na América Latina: o Grupo Abril (décadas de 1940 a 1970). Campinas. Editora da Unicamp, 2016. [ Links ]

Aline de Jesus Nascimento – Mestranda da Universidade Estadual de São Paulo / Departamento de História, campus Assis, Assis/SP – Brasil. Bolsista Fapesp, processo nº 2017/15451-9. E-mail: lini_nascimento@hotmail.com.

Revista de Economia Política e História Econômica. São Paulo, n.43, jan. 2020.

REPHE 43 – janeiro de 2020

  • Dwindling Rupee and Its Impact on Indian Economy
  • Badar Alam Iqbal
  • Ensaios sobre a economia portuguesa: efeitos da adesão à Comunidade Econômica Europeia
  • Edilson dos Santos Alves
  • Crises financeiras internacionais: alguns de seus benefícios e a manutenção do status quo
  • Leonardo de Amorim Thury
  • Gustavo Granado
  • Impacto da política econômica sobre o ingresso de investimento estrangeiro direto durante o período democrático (1945 – 1964)
  • Rafael Murgi
  • A ampliação de interesses empresariais pela política externa brasileira: um estudo sobre a Petrobras no Iraque durante a ditadura civil-militar
  • Julio Cesar Pereira de Carvalho
  • A função social da propriedade na legislação brasileira, 1946-1962
  • Pedro Villela Caminha
  • A crise de 1873 na Província da Bahia: efeitos internacionais sobre a recessão doméstica
  • Marcos Guedes Vaz Sampaio
  • Tuane Coelho de Carvalho Mattos
  • O pensamento econômico luso-brasileiro na crise do sistema colonial: o pragmatismo de Azeredo Coutinho e o liberalismo de José da Silva Lisboa
  • Tobias de Paula Lima Souza
  • Eliana Tadeu Terci
  • Perspectivas econômicas alternativas e as Raízes do Brasil
  • Paulo Roberto da Silva
  • Refletindo a economia da felicidade através do sistema lógico hiperdialético de Sampaio
  • Marcelo de Carvalho Azevedo Anache
  • Luiz da Costa Laurencel
  • O debate entre a Análise dos Sistemas-Mundo (ASM) e a Teoria Marxista da Dependência (TMD): considerações sobre o método
  • Celso Eugênio Breta Fontes
  • In Search of a Pluralistic Economic Science: Keynes and Minsky Revisited in Times of Crisis
  • João Felippe Cury Marinho Mathias

RESENHA: CHOMSKY, Noam. Quem governa o mundo? 1a. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2016.

O rei, o pai e a morte – PARÉS (Topoi)

PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: REZENDE, Leandro Gonçalves. A religião vodum e seus indeléveis laços atlânticos. Topoi v.21 n.43 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2020.

O livro O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental, obra publicada em 2016, é fruto de anos de pesquisa de Luis Nicolau Parés, doutor em Antropologia da Religião pela Universidade de Londres e professor da Universidade Federal da Bahia. Autor de variadas publicações, sua produção acadêmica encontra-se no limiar entre a história e a antropologia, destacando-se pelas análises comparativas entre as populações da África Ocidental e as afro-brasileiras, enfocando aspectos religiosos, étnicos e culturais. De modo geral, o livro em questão examina as práticas religiosas na África Ocidental, ou seja, os antigos reinos de Aladá, Uidá e ­Daomé, região que atualmente corresponde à República do Benim, demonstrando seu dinamismo e sua imbricação na vida política, social e econômica daquelas sociedades, nos séculos XVII, XVIII e XIX.

Da antiga Costa dos Escravos ou ­Costa da Mina, como denominavam os portugueses, foram embarcadas grandes levas de africanos escravizados, que desembarcaram no Brasil, em especial na Bahia. Trata-se de africanos falantes dos idiomas do grupo gbe, que compartilhavam a fé nos voduns. Fato significativo, pois, uma vez ressignificada, a cultura desses povos será preponderante, desde então, no imaginário afro-brasileiro. Assim, o autor busca entender o processo histórico das práticas religiosas e das crenças associadas aos voduns, destacando-as como importante elemento de identidade cultural, imprescindível para entender aspectos sociais, políticos e econômicos cunhados historicamente em ambas as costas atlânticas.

Trata-se de uma análise comparativa, pois para compreender a religiosidade afro-brasileira, recriada em Salvador, no Recôncavo Baiano ou no Maranhão, faz-se necessário um retorno às origens africanas, principalmente nos períodos de maior intensidade do tráfico de escravos. De fato, são africanas muitas das heranças que o universo brasileiro carrega, porque Brasil e África, desde o século XVI, estiveram conectados, ambos inseridos num contexto maior, o qual se pode denominar Mundo Atlântico. Dessa forma, os povos e culturas que habitavam as duas margens do Oceano Atlântico, mantiveram intensos vínculos, estabelecidos não somente pelo tráfico de escravos, mas por inúmeras formas de trocas, principalmente as trocas socioculturais, que, apropriadas de diferentes maneiras dos dois lados dessa lógica atlântica, conformaram uma cultura e identidade, sendo um de seus pilares a religiosidade. Todavia, o autor é enfático ao afirmar que não busca revelar origens cosmológicas dessa ancestralidade africana, numa tentativa de reelaboração de uma idealizada “África mítica”; mas sim, almeja um sistemático estudo histórico da cultura associada ao vodum, compreendendo sua dinâmica social localizada no tempo e no espaço.

De forma simples, Parés entende a religião “como toda interação ou comunicação entre ‘este mundo’ sensível e fenomenológico dos humanos e um ‘outro mundo’ invisível, onde se supõe habitem entidades espirituais, responsáveis pela sustentabilidade da vida neste mundo” (p. 37). Assim, para além do fenômeno religioso, buscar-se-á a compreensão de um rico universo cultural que mediava e formava parte das variadas relações sociais, como parentesco, poder político, justiça, economia e/ou arte. Logo, percebemos a existência de um sistema de significados coerente e coeso, mas que, com o devir do tempo, soube se moldar, (re)configurando-se, dinamicamente, numa crescente diversificação religiosa, que “não seria possível sem o desenvolvimento paralelo de um alto grau de tolerância religiosa, um dos aspectos mais notáveis do complexo cultural do vodum” (p. 39). Da mesma forma, o autor busca examinar a micropolítica religiosa na sua dinâmica interna, mas também a dialética paralela estabelecida com as influências externas que levam à progressiva inserção do local na economia atlântica global.

Assim sendo, a obra é composta de sete capítulos, num estudo que mantém um diálogo instigante entre as duas costas atlânticas, ou seja, da Costa da Mina ao Brasil e vice-versa, em constantes desdobramentos e reconfigurações. Mesmo que não formalmente, o estudo pode ser dividido em duas partes, que são tangenciadas pela estrutura religiosa associada aos voduns. A primeira é situada na África, compreendendo como as práticas religiosas, ligadas à estrutura de parentesco e ao culto aos ancestrais, se relacionam com a organização política e social desses antigos reinos, centralizada na figura do rei, numa época de intenso tráfico de escravos. Já a segunda parte ocupa-se das dinâmicas trocas culturais, que são ressignificadas de acordo com os novos cenários políticos, econômicos e sociais, os quais foram impostos aos africanos que desembarcaram no Novo Mundo. Assim, analisa-se a dinâmica e os significados dessas práticas e desses elementos rituais, demonstrando suas continuidades históricas, ressignificadas no contexto escravista.

Metodologicamente, o autor trabalha com diversificadas fontes, em especial os diários, correspondências e relatórios de estrangeiros e viajantes, que, geralmente, trazem um olhar eurocêntrico, dominador, intolerante e subjetivo, que precisa ser analisado e interpretado em seu viés ideológico; debatido e contextualizado com outras fontes e conhecimentos, para formar um relevante e útil corpus documental. Nesse sentido, Parés desenvolve uma apurada crítica historiográfica estabelecendo conexões e comparações com as fontes disponíveis, bem como analisando criticamente os discursos que tais fontes empregam, para, desse modo, entender a lógica cultural inerente à ação dos africanos, captando suas concepções locais, seu universo simbólico e sua práxis ritual. O fruto desse trabalho é a reconstrução de um universo religioso africano a partir de suas fontes internas, incluindo diversas tradições orais e elementos arqueológicos; e de suas fontes externas, abarcando os múltiplos tipos de escritos europeus, bem como as visões de mundo mistas e plurais de agentes intermediários, ou seja, dos africanos europeizados e dos europeus africanizados. Também se faz uso da etnografia ritual como subsídio histórico para interpretar comportamentos, aspectos simbólicos, expressivos e comunicativos. Nesse sentido, a tradição oral, em especial os contos, os mitos e as memórias locais sobre as práticas religiosas são importantes fontes históricas, na medida em que auxiliam no entendimento ou interpretação dos relatos, estabelecendo um profícuo diálogo entre a história e a antropologia.

Os primeiros capítulos do livro concentram-se, em parte significativa, nos processos históricos de formação dos antigos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, destacando sua centralização política, o apego ao espaço territorial, cuja organização social era estruturada em famílias patriarcais, marcadas por vínculos de pertencimento, de descendência – cultos aos ancestrais -, e de territorialidade. Essas ligações familiares ou identidades coletivas são significativas na configuração das práticas religiosas, ou seja, nos cultos aos ancestrais e voduns: as forças invisíveis, os mistérios ou deuses. O rei era sacralizado e responsável pela manutenção das práticas religiosas locais, prescritas pela tradição, havendo forte mescla entre o cerimonial religioso e o cerimonial da corte. Nessa lógica, Parés examina a complexa interação de forças históricas e culturais que formaram essa cultura, na qual há uma relação direta entre parentesco, política e religião. Desvenda-se assim, o imbricado jogo de palavras que compõem o título da obra: o rei – o político; o pai – o familiar; e a morte – a ligação ancestral, que funciona como a relação basilar das instituições e que garantia a continuidade do reino. Portanto, ganha destaque a centralidade do culto aos mortos e sua eloquência indissociável dos voduns na cultura religiosa da área gbe. Nas palavras do autor, o rei, o pai e a morte são elos de identidade cultural, pois “a análise da organização social dos reinos de Aladá, Uidá e Daomé, das suas formas de legitimação política articuladas em função da ideologia da descendência, dos ritos fúnebres e do culto aos antepassados, permitiu compreender a imbricação entre o parentesco, a política e a religião” (p. 91).

A seguir, o autor apresenta algumas instituições e discursos religiosos emblemáticos da correlação entre os processos de centralização política e o estabelecimento de cultos extradomésticos, como por exemplo, o culto à serpente Dangbé, no reino de Uidá, ou o do leopardo Agassu, no reino do Daomé, demonstrando que os mesmo foram instituições inicialmente associadas à monarquia, mas que, por meio dela, foram promovidas, através de processos identitários, a emblemas e símbolos da nação, garantindo certa coesão social do reino. No caso do Daomé, houve ainda um investimento complementar no culto aos ancestrais reais, celebrados nos festivais conhecidos como Costumes, que poderiam ser distintos entre os “grandes Costumes”, celebrados após a morte de um rei; e os “Costumes anuais”, menores, em que se evocava a memória e se sacrificava para os ancestrais reais. A historiografia sobre os Costumes enfatizou múltiplas dimensões dessa instituição, porém cada autor em questão ressalta um aspecto distinto: fenômeno social total, função política, natureza militar, legitimação do poder real, dimensão econômica/comercial etc. Parés corrobora esses aspectos, todavia, evidencia que em meio a essa multifuncionalidade é fundamental destacar o campo religioso/ideológico, ou seja, “as oferendas sacrificiais aos ancestrais (e a outras divindades) e a concomitante ativação pública da memória do passado, como a lógica estruturante do ciclo cerimonial” (p. 185). Confirma-se também que a centralização política foi acompanhada de uma relativa centralização religiosa, na qual os ancestrais reais foram erigidos como referentes espirituais da nação.

Da mesma forma, a pesquisa destaca que para entender a “economia da escravidão” que se desenvolveu na Costa da Mina é necessário entender a “economia do religioso”, que envolvia a troca de bens materiais e imateriais entre clientes e sacerdotes, e entre homens e deuses. Tratava-se de sociedades nas quais as práticas agrícolas eram fundamentais (economia camponesa), onde se conhecia a escravidão, contudo, não eram sociedades escravistas, pois o processo produtivo não girava em torno de uma mercadoria principal, centrada no trabalho escravo, mas, ao contrário, a principal mercadoria de exportação era por excelência o próprio escravizado, “o corpo humano capaz de gerar força de trabalho” (p. 279). A principal forma de angariar novos cativos era a guerra e essa mercadoria humana era trocada por armamento e munição, ou por produtos de consumo, a exemplo de aguardente e tabaco, ou por bens europeus que denotavam prestígio, visando a aumentar a distinção social daqueles que monopolizavam os “meios de produção escravista”, ou seja, a coroa e os funcionários da corte. Nesse contexto, o pensamento religioso do vodum certamente ocupou lugar de destaque na mediação das relações mercantis, ao orientar as disposições e, em última instância, as decisões dos atores envolvidos, que em suas empreitadas lançavam apelos ao mundo invisível do vodum e ao seu aparato espiritual. Dessa forma, o autor é enfático ao afirmar que a prática religiosa interferia nos processos de escravização, da mesma forma que a realidade da escravidão encontrava expressão no ritual.

Significativo é notar que já em África existia um processo de assimilação e agregação de outros cultos importados ou por conquistas, ou por alianças ou pelo deslocamento de escravos, o que contribuiu para um significativo pluralismo religioso, baseado numa tradição de tolerância religiosa. Partindo dessa interpretação histórica, os capítulos finais do livro fazem uma comparação entre práticas religiosas de origem africana desenvolvidas no outro lado do Atlântico. Apesar das inevitáveis e evidentes transformações acontecidas em ambos os lados do Atlântico, existe um significativo paralelismo, que pode ser identificado em vários aspectos do panteão e das atividades rituais, tal qual a iniciação, que encontra surpreendentes semelhanças. Além disso, as práticas rituais dos devotos dos voduns teriam sido um importante modelo referencial para a organização de diversos grupos religiosos afro-brasileiros, permitindo organizar comunidades coesas, oferecendo aos seus membros recursos e apoio emocional para enfrentar a adversidade imposta pela situação de marginalidade social. Nas palavras do autor:

As religiões afro-brasileiras, ou de matriz africana, como sabemos, são o resultado de um complexo processo histórico de síntese e criatividade cultural em que se emaranharam as contribuições mais diversas, tanto dos vários povos africanos, de sua descendência crioula com o do cristianismo ibérico e das populações ameríndias. Contudo, isso não impedia que certas tradições culturais africanas fossem mais atuantes do que outras no processo de institucionalização dessas religiões. Minha tese é de que, a partir do século XVIII, especialmente na primeira metade do século XIX, os saberes dos sacerdotes dos voduns – relativos à instalação de altares em espaços estáveis, aos processos de iniciação, à hierarquização do corpo sacerdotal e à devoção conjunta a múltiplos deuses – estabeleceram um padrão de grande eficácia para integrar o pluralismo religioso dos escravizados em comunidades de tipo eclesial (p. 322).

Percebemos, assim, que a obra de Parés se enquadra na perspectiva de uma história conectada entre África e Brasil e vice-versa, ou seja, numa circularidade atlântica, em que práticas e discursos geograficamente distantes teriam se constituído mutuamente através do fluxo e refluxo de pessoas, ideias e mercadoria. Nas últimas décadas, percebemos que a ótica dos estudos africanos tem enfocado as relações culturais, que são formadoras de uma base comum, ou seja, uma herança cultural que une diferentes comunidades criadas a parir da diáspora africana, corroborando a existência de uma grande área cultural interligada em intensas trocas culturais e ressignificadas de maneiras distintas e em diferentes realidades no fluxo e refluxo que se deu nas duas costas atlânticas ao longo do tempo. Percebe-se, assim, uma grande redefinição identitária, ou seja, a reelaboração de novas formas de ser, agir e pensar o mundo. Há um diálogo criador, que superou as injustiças e adversidades impostas àqueles indivíduos. As religiões afro-brasileiras podem ser pensadas não apenas em termos de continuidades e sobrevivências africanas, mas sim como um processo de diálogo e interação constante com as práticas e os discursos religiosos africanos recepcionados e reelaborados nos diferentes contextos regionais. Assim, a devoção aos voduns se espalhou pelo Brasil, Haiti, Cuba, Estados Unidos, Jamaica e outros lugares do Caribe, onde essa memória ritual, mediada pelas entidades espirituais, contribuiu para interessantes desdobramentos identitários no contexto atlântico. O campo religioso, sem dúvida, é um espaço privilegiado para reivindicar identidade, para criar formas de pertencimento e até para a mobilização e a ação política. Conforme bem salientou Perés: “A centralidade das práticas religiosas para enfrentar, no nível individual, os momentos de experiência difícil e para negociar, no nível coletivo, as situações de subalternidade política faz delas um tema sempre relevante, qualquer que seja a sociedade ou o momento histórico” (p. 358).

Destarte, concluímos que a obra O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental é uma importante contribuição para a historiografia em língua portuguesa sobre a diáspora africana, demonstrando os impactos das práticas religiosas na economia, política e sociedade dos antigos reinos da Costa dos Escravos em sua correlação com a cultura afro-brasileira. Trata-se de uma obra significativa e referencial que estabelece um diálogo entre dois universos que se conectam por indeléveis laços religiosos confeccionados em contexto histórico marcado pela intolerância, mas que recriados deixaram um grande legado para os dias atuais.

Referências

PARÉS, Luis Nicolau. O rei, o pai e a morte – a religião vodum na antiga Costa dos Escravos na África Ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. [ Links ]

Leandro Gonçalves Rezende – Mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais / Departamento de História, Belo Horizonte/MG – Brasil. E-mail: leandro9rezende@yahoo.com.br.

Luz Vieira Méndez. Entre viajes y desplazamientos | Mario Sebastián Román

El libro de Mario Sebastián Román constituye una contribución al campo de la historiografía educativa argentina, que recupera la figura de Luz Vieira Méndez y su trayectoria en la educación inicial y la formación docente en los escenarios educativos entrerriano, argentino y latinoamericano. El aporte resulta de un doble proceso de análisis que parte del reconocimiento de huellas de los discursos pedagógicos alternativos en la biografía, trayectoria intelectual y pedagógica de Luz Vieira Méndez. A partir de esas trazas, reconstruye las condiciones discursivas de producción en las que se van generando las variaciones de esos discursos, afirmados diferencialmente ante el exterior constitutivo del normalismo, en los procesos de su inauguración, hegemonía y del inicio del proceso de clausura en la provincia de Entre Ríos. Leia Mais

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.6, n. 3, 2020.

História e histórias do léxico: diferentes perspectivas

Nota Editorial

Apresentação – volume 6, número 3

  • Maria Filomena Gonçalves, Marcus Vinícius Pereira das Dores
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Artigos – Dossiê Temático

Glossário

Resenhas

Fontes Primárias

LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.6, n. 2, 2020.

Arte, História e Escrita

Nota Editorial

Artigos – Dossiê Temático

Artigos – Varia

Fontes Primárias

Resenhas

História do Direito | UFPR/IBHD | 2020

HISTORIA DO DIREITO Autoridad e historia

A Revista História do Direito – Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito (Curitiba, 2020), publicada pela Universidade Federal do Paraná em conjunto com o Instituto Brasileiro de História do Direito, é um periódico científico semestral destinado à publicação de textos de excelência na área de História do Direito e ao aprofundamento do diálogo com áreas afins.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2675-9284

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Expresiones de poder en la Edad Media. Homenaje al profesor Juan Antonio Bonachía Hernando | Ma. Isabel del Val Valdivieso, Juan Carlos Martín Cea e David Carvajal de la Vega

Expresiones de poder en la Edad Media es, ante todo y como indica el subtítulo que lo acompaña, un homenaje al profesor Juan Carlos Bonachía Hernando. Esto no es un dato menor dado que son su memoria, su trabajo y su derrotero historiográfico los criterios que ordenan y articulan el presente volumen.

Desde su llegada a la Universidad de Valladolid a mediados de los años ’70 del siglo XX, en medio de un clima político convulso y un proceso de transformación de su casa de estudios, Juan Carlos Bonachía desempeñó diversidad de cargos vinculados a la docencia, la investigación y la gestión universitaria, entre los que destacan la dirección del Departamento de Historia Medieval, el vicedecanato de la Facultad de Filosofía y Letras y la secretaría general de la Universidad. En lo referente a su derrotero académico, se identifican cuatro claras líneas que son, a su vez, los cuatro apartados que ordenan temáticamente las participaciones de los autores reunidos en el libro: monarquía, señores y poder; iglesia y sociedad; la ciudad medieval y economía y fiscalidad. Leia Mais

Las Horas Gott: Un manuscrito iluminado en Chile | Daniel González, Paola Corti e María José Brañes

Sea que la Historia se considere como disciplina social o como ciencia, que se estime que tiene una función práctica en la comprensión del presente por el pasado, o bien que sea legítima en sí misma al estudiar realidades pretéritas por únicamente el hecho de conocer, de ser libre, la Historia debe en cualquier caso, contar con fuentes y, derivado de la misma naturaleza de ellas, con un vocabulario técnico ceñido a la realidad espaciotemporal donde se han creado esos documentos. El libro que reseño presenta de entrada esos elementos imprescindibles para comprender el pasado en su contexto: revisión de fuentes y elementos técnicos que permiten adentrarse en una coetaneidad que es más cercana de lo que en un principio uno podría pensar contiene un libro de horas.

Las Horas Gott: un manuscrito iluminado en Chile es una obra bien acabada, preciosamente estudiada e interpretada, con imágenes perfectamente logradas, que nos permite tener más luces sobre la espiritualidad, el artesanado, la sociedad y sus requerimientos y, finalmente, sobre las dimensiones de la persona humana a finales de la Edad Media. Pero esas dimensionalidades de lo humano, de lo humanístico, no se restringen al siglo XV, sino que también a nuestro tiempo presente, ya no únicamente en Europa, sino además en nuestro Chile. Y es que en el estudio de las Horas Gott no solamente hay especializaciones disciplinarias, sino que hay pasión, dedicación y amor. Daniel González, Paola Corti y María José Brañes han volcado todo su conocimiento, refinadísimo, y su espiritualidad humana en la obra. Eso es un hecho evidente para el lector al leerlos y acompañarlos en sus apreciaciones históricas, estéticas y literarias. Logran trasmitir la conmoción que les causó las Horas Gott a quienes somos legos en este tipo de trabajos interdisciplinarios. Leia Mais

The Political Economy of the Investment Treaty Regim | Jonathan Bonnitcha e Lauge N. Skovgaard Poulsen

Casos emblemáticos como Philip Morris v Austrália e Vattenfall v Alemanha mais uma vez colocam sob escrutínio público os acordos internacionais de investimento, em geral pouco debatidos fora do diminuto conjunto de juristas que os estuda academicamente. A negociação dos chamados acordos megarregionais, como o TPP e o TTIP, e mais recentemente a renegociação do capítulo de investimento do NAFTA reforçam a importância de discutir esse assunto1. Nesse contexto, The Political Economy of the Investment Treaty Regime busca abordar o tema a partir das áreas da Economia e da Política Internacional. A obra foi elaborada em coautoria pelo australiano Jonathan Bonnitcha, professor de Direito na Universidade de Nova Gales do Sul; o sueco Lauge Poulsen, do Departamento de Ciência Política da University College London; e o austríaco Michael Waibel, da Universidade de Viena. Publicado pela editora da Universidade de Oxford, o livro é dividido em nove capítulos que exploram diversos aspectos do emaranhado de tratados de investimento que constituem o elemento central na regulação global do investimento estrangeiro.

Afinal, é possível falar em um regime internacional de investimento? O primeiro capítulo busca caracterizar o acervo normativo formado por tratados de investimento, normas procedimentais e sentenças arbitrais dentro da tipologia de regime criada por Krasner. A resposta é muito mais intricada que mero sim ou não. Não se pode falar em um único regime internacional de investimento, mas em múltiplos que se sobrepõem e resultam em um complexo de regimes. No entanto, o regime formado pelos tratados de investimento continua central, visto que a capacidade de enforcement encontrada nas suas regras procedimentais não encontra paralelo nos outros regimes que compõem o complexo. Leia Mais

A Organização Internacional do Trabalho e as Américas: conexões e influências / Anos 90 / 2020

Em 2019, foi comemorado o centenário da Organização Internacional do Trabalho, a mais antiga organização internacional em atividade. A OIT foi criada como uma dependência da Liga das Nações, que sobreviveu à reformulação do sistema internacional – posterior à Segunda Guerra Mundial e à Guerra Fria –, que incluiu as disputas pela hegemonia das organizações internacionais. Em diferentes locais, por ocasião do centenário, foram realizadas celebrações como o lançamento de livros, atividades artísticas, encontros de especialistas em Direito do Trabalho e de Historiadores interessados no legado desse centenário. A própria OIT realizou atividades comemorativas de diferentes tipos. O centenário foi um momento de comemoração, autocongratulação e de reflexão pelo caminho andado em todo esse tempo. A OIT passou por diferentes etapas e transformações, incorporando novos temas, interesses e reformulando certas abordagens. Algumas coisas mudaram significativamente – a América Latina já teve um Diretor Geral – e algumas temáticas foram incorporadas – abandonando o tom paternalista existente nos primeiros anos e outros temas, como as trabalhadoras domésticas – que passaram a fazer parte do grupo de profissões contempladas e protegidas. Outras permanecem inalteradas desde o início, como a necessidade de ratificação nacional das decisões tomadas em Genebra e a presença de trabalhadores e empresários no processo de tomada de decisões.

Ao longo desses cem anos, a OIT cresceu, incorporando países que nem sequer existiam no momento da sua criação. Hoje em dia, ao todo, são 187 os países membros, um número um pouco menor do que os 193 que integram a Organização das Nações Unidas, que são superados pelos 211 que integram a Federação Internacional de Futebol Associado. Esta quantidade de filiados e os seus cento e um anos de trajetória podem nos levar a pensar num caminho de êxitos constantes, porém, a OIT atravessou uma série de dificuldades nos primeiros anos, bem como durante e depois da Segunda Guerra Mundial. As fortes disputas ideológicas do período Entreguerras e ao longo da Guerra Fria fizeram com que a sua existência fosse, às vezes, subestimada ou fosse transformada em palanque para confrontos entre os adversários ideológicos. É importante destacar que a Liga das Nações, entidade-mãe da OIT, não sobreviveu aos conflitos ideológicos que levaram à Segunda Guerra Mundial e que a ONU, surgida ainda durante a Segunda Guerra Mundial, teve enormes dificuldades até ser aceita como um centro de discussão e debate das relações entre os diversos países.

Tendemos a naturalizar a existência desta instituição e de outras que fazem parte dos organismos internacionais. Porém, quando estudamos os diversos momentos pelos quais atravessou a OIT, assim como a diversidade de questões de que tratou e a necessidade de estabelecer um equilíbrio entre formações econômicas e sociais muito diferentes, então, compreendemos que a sua existência tem a ver com a perícia das suas primeiras conduções e o compromisso dos representantes para que a principal questão social do século XX, o Trabalho, tivesse um espaço de importância nas relações entre os países. O esforço coletivo teve como ponto de partida a demanda dos trabalhadores no final da Primeira Guerra Mundial e, a poucos anos da revolução triunfante na Rússia, para que as suas problemáticas fossem contempladas e legitimadas como importantes no convívio social e na reconfiguração das sociedades europeias no imediato Pós-Guerra. Neste primeiro momento, a existência da OIT não contribuiu para a incorporação plena dos trabalhadores na vida social e, ainda, normalizou o trabalho colonial. Digamos que o objetivo principal da OIT era o combate à ameaça comunista, esvaziando as reclamações operárias. Mesmo assim, esta instituição deve ser valorizada por ter colocado em pauta e estimulado o debate sobre as questões fundamentais do trabalho desde as oito horas de trabalho diárias ao trabalho forçado, o trabalho infantil e feminino, o trabalho marítimo, entre tantos outros.

Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, a OIT foi assumindo uma posição cada vez mais técnica, discutindo como as tarefas devem ser desempenhadas, a carga e as condições do trabalho em cada um dos âmbitos em que as tarefas são desenvolvidas e a forma em que as tarefas devem ser desenvolvidas. Ao mesmo tempo em que estabelecia parâmetros técnicos, também politizava o seu acionar reformulando categorias, incorporando novos contingentes de trabalhadores e reconhecendo a importância do trabalho nas sociedades fora da produção capitalista. Esse reconhecimento permitiu que indígenas e comunidades tradicionais pudessem reivindicar direitos e um outro tipo de relação com os Estados Nacionais. De forma definitiva, esse reconhecimento deu elementos legais para a posterior existência de Estados Plurinacionais. A OIT também foi plataforma para denúncias de violações aos Direitos Humanos, pelo que o perfil técnico também foi acompanhado pela politização das suas ações.

Em síntese, a OIT é uma instituição que nos proporciona múltiplas possibilidades analíticas e representa um campo de estudos fértil e promissor. Veremos alguns exemplos nas temáticas desenvolvidas neste dossiê. É preciso mencionar que até dez anos atrás, os estudos sobre a OIT eram escassos, muitas vezes realizados por funcionários ou ex-funcionários da própria OIT. A partir do lançamento do Projeto Centenário, lançado pela OIT, foi que os estudos começaram a deslanchar. Na América Latina, o interesse pela OIT é crescente, porém, ainda engatinha, sendo um grupo importante mais limitado de historiadores. No Brasil, por exemplo, são pouquíssimos os pesquisadores do tema, mas há uma certa expectativa de crescimento e interesse sobre esse tema. Entendemos que este dossiê estimulará algumas novas pesquisas e interesses e revelará a existência de fontes e repositórios que podem renovar os estudos sobre a História do Trabalho no Brasil.

No caso da Argentina, existe, desde 2015, a Rede Interdisciplinar OIT – América Latina, que reúne, num esforço coletivo, regional e interdisciplinar, investigadores e investigadoras de universidades de diversos países como Chile, Brasil, Argentina e Bolívia, entre outros, e que, desde então, na sua perspectiva latino-americana em relação à OIT e ao mundo do trabalho, publicou dois livros, um outro dossiê, organizou oficinas na Argentina (La Plata, 2015) e no Brasil (Niterói, 2017) reunindo muitos painéis, mesas-redondas e apresentações ao longo dos seus cinco anos de existência. Este mesmo dossiê faz parte de uma trajetória comum, que esperamos que continue em franca expansão em relação aos temas, colegas e às produções.

Os artigos que compõem o presente volume da Revista Anos 90 reúnem um grupo de historiadores da América Latina. Em todos os casos, identificamos um diálogo entre a História nacional do Trabalho e a História dos Organismos Internacionais. O diálogo se dá de formas diferentes e identificam questões próprias do vínculo estabelecido entre as partes. Três dos artigos situam-se no período Entreguerras, outro trata do imediato Pós-Guerra e o último deles aborda as décadas de 1950 e 1960. Ao mesmo tempo, a relação Genebra-América Latina é central em todos os casos. Seja abordando questões técnicas ou políticas, o vínculo entre a sede e os governos nacionais são de central importância para todos os autores. Dois artigos colocaram a ênfase em questões técnicas como a maternidade e a produtividade, e o restante analisou as relações políticas entre as partes. Os países analisados são Argentina, Chile e México. O Chile é um dos países com um vínculo mais intenso e prolongado, com uma importante quantidade de Convenções aprovadas, que, ainda, proporcionou importantes quadros técnicos, entre eles, o único Diretor Geral latino-americano, Juan Somavía, que exerceu essa função entre 1999 e 2012.

O primeiro artigo do dossiê é de autoria de Fabian Herrera León, que, em La Oficina Internacional del Trabajo en México: la visita de Edward J. Phelan y Stephen Lawford Childs en mayo de 1933, analisa o interesse da OIT em estabelecer um vínculo duradouro com o México. Esse país estava em processo de ingresso na OIT e na Liga das Nações. As visitas de Phelan e Childs, funcionários de alto escalão na OIT, tinham como objetivo discutir elementos técnicos e principalmente compreender a realidade mexicana pós-revolucionária. O México estava excluído do convívio internacional desde a Revolução e pretendia a sua incorporação nas organizações internacionais, assim como pretendia discutir a sua compreensão das relações entre os países e discutir a forma como se organizava o trabalho e a sociedade nesse país. A visita dos representantes permitia discutir certos elementos da organização da OIT, como a representação corporativa, e resolver a representação operária nas Conferências Internacionais do Trabalho, ante a disputa entre as confederações mexicanas e o vínculo que tinham com o Estado.

O artigo de Paula Lucia Aguilar, Entre la protección y la igualdad: la OIT y el seguro por maternidad en perspectiva regional 1936-1939, analisou os debates acontecidos nas Conferências Pan-Americanas do Trabalho que tiveram lugar na década de 1930. As Conferências foram organizadas pela OIT e os países do continente americano. O interesse da autora está centrado no estatuto da mulher trabalhadora frente à maternidade e às dificuldades para manter o seu salário. A maternidade entrava no debate regional como uma questão vital no processo de expansão da classe trabalhadora no momento de rápida expansão da industrialização e do crescimento da presença feminina no mercado de trabalho.

Andrés Stagnaro analisa a relação da OIT com outro país latino-americano que tem um forte movimento operário, a Argentina. No artigo De la incertidumbre a la estabilización: el devenir de los muchachos peronistas en Ginebra. La representación obrera Argentina ante la OIT (1945-1955), é apresentada uma experiência inovadora do governo peronista, os agregados operários nas embaixadas. Stagnaro apresenta a forma como a Argentina lutava contra o isolamento no imediato Pós-Guerra com uma diplomacia que privilegiava as questões sociais e, portanto, via na OIT um espaço para recompor os seus vínculos internacionais, não sem tensões. A Argentina, governada pelo General Juan Domingo Perón, tinha uma política trabalhista que dialogava com a OIT, porém, precisava resolver as tensões existentes em relação à escolha da representação operária, principalmente com o vínculo estreito existente entre o Estado e a principal central operária, a Confederação Geral do Trabalho.

No caso estudado por Silvia Simonassi em El problema de la productividad en Argentina: perspectivas locales y transnacionales entre el primer peronismo y el frondicismo, temos uma análise de uma política discutida fortemente em Genebra que impactou fortemente na Argentina. A questão da produtividade e a capacidade produtiva da indústria argentina e, no caso dos seus trabalhadores, foi iniciada durante o governo de Juan Domingo Perón e se estendeu pelos vinte anos seguintes. Embora o governo de Perón tenha colocado a produtividade em discussão, nos governos posteriores, durante a proscrição do peronismo, a produtividade foi utilizada pelo governo ditatorial posterior ao golpe que depôs Perón e, no governo de Arturo Frondizi, como um avanço empresarial e estatal, para controlar o processo produtivo. Os trabalhadores, por sua vez, identificaram neste debate técnico uma forma de disputa com os governos antiperonistas.

O último estudo apresentado neste dossiê corresponde à autoria de Patricio Herrera e Juan Carlos Yáñez, Saberes compartidos entre América Latina y la Organización Internacional del Trabajo: un recuento historiográfico contemporâneo. O artigo é uma importante contribuição para compreender a construção de um campo de estudos devido ao mapeamento realizado sobre os estudos em relação à OIT. O seu foco prioritário é o Cone Sul, em grande medida, devido a que esse espaço é o que concentra a maior quantidade de estudos. Os autores mostram que os estudos têm se concentrado no período Entreguerras e no imediato Pós-Guerra. É um artigo importante pela sua capacidade de síntese de um determinado momento da produção regional sobre a OIT, bem como as relações e influências desta organização na região.

Em síntese, o dossiê mostra que este é um campo fértil de estudos e que está em crescimento e expansão. A OIT segue sendo uma instância-chave na legitimação e formação de consensos em relação à concepção e às definições do que é trabalho, quem são consideradxs sujeitos desse mundo e suas diversas formas, como deveriam ser reguladas, quais são os seus direitos básicos associados aos homens e às mulheres que o exercem. No atual contexto, as próprias formas do trabalho e com elas o labor da OIT viram-se profundamente afetados pela pandemia mundial, as diversas formas que adotou a quarentena em cada contexto nacional e regional, e as prementes situações de desconhecimento de Direitos, desregulação trabalhista laboral e demais situações limites em campos, tais como o chamado trabalho de plataformas, os novos sujeitos ficaram visíveis nesta conjuntura como os repartidores de aplicações, afirmação que corresponde à nossa região e que visibilizou e demandou a intervenção e o debate sobre essas questões, com particular intensidade na Argentina e aqui no Brasil. Em particular, o Brasil ainda precisa voltar o seu olhar para as relações internacionais e com os organismos internacionais. Compreender a importância e influência mútua entre as partes e a necessidade desses organismos políticos e técnicos no estabelecimento ou na legitimação de políticas. Esperamos que o dossiê ajude a alavancar novos estudos e debates sobre o tema.

Laura Caruso – Dra. Laura Caruso. E-mail: lauracaruso@gmail.com https: / / orcid.org / 0000-0001-6556-5705 . Universidad Nacional de San Martín (UNSM), San Martín, Buenos Aires, Argentina

Norberto O. Ferreras – Dr. Norberto O. Ferreras. E-mail: ferreras@vm.uff.br https: / / orcid.org / 0000-0003-3801-0418 Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil


CARUSO, Laura; FERRERAS, Norberto O. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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El compromiso internacionalista. El Ejército de Liberación Nacional. Los elenos chilenos, 1966-1971 | Pedro Valdés Navarro

Beatriz Allende Autoridad e historia
Beatriz Allende. Foto: Jacobin /

VALDES NAVARRO P Compromiso Autoridad e historia

Esta interesante obra escudriña en una temática quizás poco difundida hasta ahora, como es la de un grupo de militantes del Partido Socialista de Chile (PS) que, desde mediados de la década de 1960 y, a partir del influjo de las ideas revolucionarias vigentes en su época, se conformaron como una corriente interna de éste, desarrollando acciones de adhesión y de compromiso con procesos insurreccionales desarrollados en el Cono Sur. Lo anterior, de forma paralela a su activa participación en la vida interna de su orgánica política, siendo capaces de manifestar un importante nivel de versatilidad en su actuar a través de los específicos contextos que enfrentaron.

De este modo, el llamado “Ejército de Liberación Nacional (ELN)” fue también el resultado de la histórica heterogeneidad ideológica existente al interior del PS, la que, según al autor, alternaba una estrategia de reformismo democrático y una posición revolucionaria; dualidad que no impedía identificarlo con aquello que se ha denominado como “izquierda tradicional”. Sin embargo, los debates existentes al interior de sus congresos dan cuenta de una aguda confrontación entre ambas visiones, como asimismo reflejan el impacto que en ellos tuvieron acontecimientos de la coyuntura nacional y regional, determinando en gran medida las orientaciones políticas establecidas. Leia Mais

El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital – WILLIAMSON (RHYG)

WILLIAMSON, Bem. El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital. Madrid: Ediciones Morata, 2019 (1 era edición español). 122p. Resenha de: ALTAMIRANO, María José Umaña. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.43, p.267-271, 2020.

¿Cuáles son los factores sociales, más allá de la academia y del aula, que informan los cambios curriculares en la era digital? ¿Cuánto y cómo influyen las transformaciones de los sistemas económicos, polí- ticos y culturales? Y, lo más importante, ¿de qué forma estos currículos pretenden configurar las mentes, las ideas, las identidades y las actua- ciones de los jóvenes? Son estas y otras las preguntas que intenta responder Ben William- son, académico de la Universidad de Stirling en Reino Unido, e investigador en las áreas de política educativa y tecnología educativa, en su libro El futuro del currículum: La educación y el conocimiento en la era digital.

En siete capítulos el autor expone las principales ideas que se desprenden del estudio de nueve propuestas curriculares que incluyen el uso de medios digitales, impulsadas por organismos independientes del sistema educativo tradicional. En este contexto, plantea la interro- gante respecto de las implicancias en la formación de los estudiantes, debido a que las entidades que guían la construcción del curriculum responden a un nuevo pensamiento de “sociedad”. Leia Mais

l Ciclo Hidrosocial. Una propuesta didáctica desde la historia, la geografía, las ciencias sociales y la educación para la ciudadanía – SIMÓN RUIZ; ARAVENA RODRÍGUEZ (RHYG)

SIMÓN RUIZ, Inmaculada; ARAVENA RODRÍGUEZ, Brandon. El Ciclo Hidrosocial. Una propuesta didáctica desde la historia, la geografía, las ciencias sociales y la educación para la ciudadanía. Santiago: Universidad Autónoma de Chile, 2020. 114p. Resenha de: VENEZUELA MATUS, Carolina. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.43, p.273-275, 2020.

La reciente propagación del covid-19, de la que hemos sido testigos durante 2020, ha puesto una vez más en evidencia la fragilidad de las relaciones entre el hombre y la naturaleza. Desde hace décadas, la búsqueda del equilibrio con el medio natural parece más un ideal que un hecho concreto y requiere, hoy más que nunca, el cumplimiento de metas y objetivos claros para propiciar un desarrollo sostenible que asegure la vida para las próximas generaciones. Uno de los objetivos más importantes planteados por la ONU en esta materia es garantizar la disponibilidad de agua y su gestión sostenible, y el saneamiento para todos, objetivo que cobra cada vez mayor relevancia en el contexto de la pandemia actual para la lucha contra la propagación de enfermedades infecciosas.

En este sentido, el libro El Ciclo Hidrosocial. Una propuesta didáctica desde la historia, la geografía, las ciencias sociales y la educación para la ciudadanía es una contribución significativa en la visualiza- ción de la importancia y el cuidado de los recursos hídricos. El libro va dirigido a un público no especializado y orientado especialmente hacia jóvenes en etapa escolar, combinando, de forma novedosa, la di vulgación de un conocimiento académico acerca del tema con la nece- sidad de propuestas pedagógicas didácticas concretas para aplicar en el aula. A través de sus páginas se plantea claramente que, si se mira el ciclo hidrosocial desde la demanda y no desde la oferta, la cantidad y la calidad del agua disponible para el consumo humano no es, de ma- nera alguna, inagotable. Leia Mais

Reinventar la clase en la universidad – MAGGIO (RHYG)

MAGGIO, Mariana. Reinventar la clase en la universidad. Buenos Aires: Paidós, 2018. 183p. Resenha de: MERCADO, Jorge Caldera. Revista de Historia y Geografía, Santiago, n.42, p.207-212, 2020.

Para nadie puede ser un misterio que la situación mundial y nacional que vivimos ha colocado en cuestionamiento los modos culturales de vivir y de relacionarnos. Nos ha obligado a repensar nuestros modos de interacción y, en especial, en lo que nos convoca en este espacio académico, en aquellos aspectos que permiten avanzar en una educación social y democrática, propia de las exigencias del siglo XXI. Así entendido, es en este contexto descrito que el libro Reinventar la clase en la universidad , de la doctora Mariana Maggio, resulta un aporte necesario para el debate acerca de qué esperamos de la educación y, particularmente, de la educación universitaria. En este sentido, esta publicación aborda el cuestionamiento descrito como una propuesta y desafío para lo que significa la formación educativa universitaria, aportando una perspectiva de análisis crítico respecto de las prácticas docentes presentes en la realidad educativa, realidad en la que el acceso a la información para nuestros estudiantes no solo es fácil, sino que también cada vez más relevante en los requerimientos de comprensión profunda, aspecto que, según la autora, la educación universitaria aún no asimila ni profundiza de manera institucional como parte de sus prácticas docentes, postura que es producto de las didácticas tradicionales que, hoy por hoy, están presentes en las aula universitarias, como modos aún no debatidos abiertamente por la academia. En esencia, esta publicación plantea la pregunta respecto de las prácticas educativas que actualmente son implementadas en las universidades y que representan, en sí mismas, un problema para la educación superior, que dificulta a los estudiantes poder acceder y, sobre todo, desarrollar nuevos conocimientos. Leia Mais

Historia Crítica. Bogotá, Núm. 75 (2020)

Research Article

Publicado enero 1, 2020

Dimensões materiais da cultura escrita / Anais do Museu Paulista / 2020

Considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação [1]

O texto é fruto de um trabalho intelectual manifesto sobre um suporte físico, da mesma forma como a realidade se expressa e se concretiza em ações materiais. As dimensões imaterial e material dos escritos são resultado de práticas, processos, métodos, saberes e técnicas. São indissociáveis e ambos decorrentes da existência humana. Desde o último quartel do século passado, estudiosos da cultura material têm destacado essa indistinção relativa aos objetos de uso cotidiano das sociedades, [3] na percepção de serem vetores e produtos das relações sociais. No que se refere aos textos, autores como Donald McKenzie, Armando Petrucci, e Francisco Gimeno Blay4 romperam com a perspectiva puramente técnica das disciplinas do campo da descrição material dos textos e de seus suportes. Nos seus estudos, os dados obtidos a partir dessas ferramentas eram aplicados na reflexão sobre inúmeras interfaces das relações sociais.

De fato, dados como a aparência, a constituição física ou a técnica de elaboração dos textos foram incorporados por autores de variadas áreas das humanidades no intuito de pensar suas condições sociais de produção, apropriação, circulação e preservação. Robert Darnton, Roger Chartier, Fernando Bouza Álvarez e Antonio Castillo Gómez,5 inspirados por Petrucci e McKenzie, consideram a associação entre as dimensões material e social suficientemente evidente, sendo prescindível a justificativa sobre suas opções metodológicas ou conceituais, embora estas sejam perceptíveis no conjunto de suas produções acadêmicas. Apesar dessas referências robustas, a perspectiva material da cultura textual não se consolidou em análises sistemáticas até a passagem do século XX para o XXI, sendo ainda hoje necessária a explicação sobre a vinculação do social com o material (e vice-versa) no campo de estudos sobre a produção e a circulação da escrita.6

É como procede James Daybell em trabalho consistente sobre a epistolografia na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, dialogando com o campo de estudos textuais sintetizado por G. Thomas Tanselle como “processo social de publicação”.7 Preocupado com a percepção das realidades sociais nas quais os escritos existem, esse campo não descarta as diversas circunstâncias das interações físicas do sujeito com a obra, como os casos de autoria colaborativa a partir de anotações marginais ou a participação dos espaços de leitura e produção como condicionantes da experiência. Daybell tem como uma de suas principais ferramentas teórico-metodológicas a vinculação dos elementos materiais das cartas com as práticas sociais, culturais e intelectuais, dialogando com autores do campo da cultura material como Peter Stallybrass e com os estudos linguísticos, estilísticos e históricos. Dissociada dos métodos das antigas disciplinas, como a codicologia, a paleografia, a sigilografia e a diplomática, a materialidade ganha como atributo o adjetivo “social”. Nas palavras do autor, em referência direta a Donald McKenzie, a “materialidade se relaciona não apenas ao significado das formas físicas, mas também à materialidade social (ou ‘sociologia’) dos textos, que são as práticas sociais e culturais de manuscritos e impressos nos seus contextos de produção, disseminação e consumo”.8

Visto que as experiências de associação entre as dimensões materiais e sociais da escrita já vinham sendo praticadas há décadas por pesquisadores do campo da história da cultura escrita,9 o uso do conceito “materialidade social” nos suscita algumas reflexões acerca da existência de outros tipos de materialidade: sensorial, política, cultural, físico-química, utilitária, espacial… Os qualificativos podem ser inúmeros. As considerações serão sustentadas na ideia da categorização das camadas de informação contidas nos artefatos gráficos, conforme sugerido por Spiros Zervos, Alexandros Koulouris e Georgios Giannakopoulos.[10] De maneira geral, a primeira camada, seja de caráter textual ou visual, é aquela que está inscrita ou impressa sobre o suporte. É uma mensagem de captação direta, e sua compreensão depende da experiência intelectual do leitor / observador. A segunda constitui a forma do objeto e a sua configuração material, características determinadas pelas tecnologias aplicadas e pelos materiais usados para o registro da informação. Para compreendê-la, são necessários exames organolépticos e alguns instrumentos capazes de aumentar as percepções sensoriais do observador, para além dos conhecimentos sobre as tecnologias aplicadas. [11] A terceira camada de informação é a estrutura físico-química dos materiais usados (papel, tinta, couro, tecido etc.), podendo ser considerada o DNA – ou as “digitais” – do objeto, pois carrega dados sobre sua origem geográfica e datação, possibilitando autenticações, atribuições e estudos da passagem do tempo e da ação humana sobre o objeto.

A primeira camada de informação não contém apenas elementos de ordem mental ou intelectual, como se poderia supor. Da mesma forma estão envolvidos modos de percepção e recepção da mensagem, aos quais são agregados valores e sentidos que irão determinar as condições materiais da sua perpetuação no tempo. [12] A relação do corpo com a escrita necessariamente está incluída nessas experiências, não apenas quanto ao deslocamento físico e ao ambiente favorável a essa relação, mas também pelas eventuais repercussões sensoriais suscitadas no observador pelas palavras ou imagens. A visualidade, ou seja, a maneira como o objeto se apresenta ao mundo, que igualmente é um vetor de aproximação do corpo com o texto, é resultante das práticas criativas, das técnicas e das condições materiais pré-existentes. [13] Sensorial, visual e técnico, neste caso, poderiam ser atributos associados à materialidade.

Os elementos materiais são mais evidentes na segunda camada, mas nunca estão dissociados das relações sociais. Nela estão expressas as vinculações entre materiais, técnicas e processos de trabalho: por exemplo, a divisão de atividades em uma oficina ou entre oficinas, a correspondência e a hierarquização entre as diversas especialidades – como as funções do editor, tipógrafo, compositor, gravador e encadernador. Essas inter-relações nas atividades laborais foram tratadas através da materialidade da escrita em vários trabalhos de Darnton [14] ou, mais recentemente, no campo da bibliografia material, por Guadalupe Rodriguez Dominguez e por Ana Utsch, [15] pesquisadoras da área de filologia e de preservação de documentos gráficos. Com esses estudos, percebe-se a dimensão material do objeto como resultado das escolhas e possibilidades de interação das técnicas aplicadas, determinantes da sua tridimensionalidade, no caso dos livros e códices, à exemplo dos formatos e do uso de determinados dispositivos tipográficos. Em uma relação de vinculação interdependente, a própria seleção dos materiais usados é decorrente das capacidades técnicas e intelectuais pertinentes aos momentos históricos.

A vinculação interdependente está presente não apenas na etapa de produção, mas também nas de uso e preservação. O consumo dos objetos deixa marcas materiais impressas nos seus suportes, revelando as diferentes ações e intenções humanas. [16] A mesma atenção deve ser dada às modificações impostas aos objetos em processos de restauração, atualização ou renovação. Qualquer intervenção é movida por conceitos, necessidades, materiais e conhecimentos disponíveis; sobretudo, está vinculada às demandas dos grupos sociais envolvidos e a seus valores. [17] Uma vez mais está evidente que condições físicas registram, e portanto evidenciam, a relação do sujeito e de seu corpo com a escrita durante sua feitura, recepção e perpetuação.

A camada menos visível contém dados registrados nas estruturas físico-químicas constitutivas dos materiais; eles fornecem informações não evidentes sobre sua biografia, do nascimento até os momentos atuais. É a mais difícil de ser apreendida, pois está invisível a olho nu, mas é evidenciada quando os processos de degradação ocorrem e algumas funcionalidades do objeto começam a falhar. A composição química original e suas alterações revelam a deterioração do objeto, fator direta ou indiretamente relacionado aos processos de fabricação e às intervenções posteriores. De outro ponto de vista, a identificação dos índices de degradação do objeto levará a outras ações humanas, como a execução de medidas de engenharia ambiental para aplacar a inevitável decomposição do material.

As informações da terceira camada são reveladas em prática de pesquisa interdisciplinar, pois são necessários métodos das ciências da natureza para extrair seus dados, os quais serão interpretados conjuntamente com métodos das ciências humanas, pois muitas vezes o “visível” não é explicável pela experiência empírica, nem o “invisível” compreendido sem a interpretação histórica. Em análise paleográfica do manuscrito Discurso Histórico sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720, [18] descobriu-se um método ainda desconhecido de correção de letras e palavras já inscritas na folha: a aplicação de uma massa branca sobre o papel. A consulta a manuais de escrita e caligrafia publicados nos séculos XVII e XVIII não foi suficiente para identificar o procedimento, levando até mesmo a conclusões iniciais equivocadas. A revelação da técnica só foi possível com a descoberta dos materiais usados, por meio de microscopia ótica e de fluorescência de raios X (EDXRF): [19] tratava-se de uma massa feita com cera e pigmento branco de chumbo, combinação usada em uma pomada curativa de problemas de pele conhecida à época por “pomada de saturno”. Com esses dados, a pesquisa histórica localizou outras fontes usadas pelo autor gráfico do documento – as farmacopeias –, não só desvelando a invenção de um modo de fazer por um agente da escrita para solucionar determinado problema, mas também agregando outro dado informativo sobre sua cultura intelectual. Mais um exemplo de interação entre os métodos científicos é o empenho de químicos e cientistas da conservação em pesquisar sobre a constituição química das antigas tintas de escrita para compreender seu processo de deterioração; historiadores, por sua vez, os mesmos dados para interpretar as capacidades operativas dos sujeitos em determinadas épocas. A dificuldade encontrada pelos primeiros é a existência de uma grande variedade de combinações de materiais, sem dúvida resultantes de escolhas humanas feitas em determinados momentos. Aqui seria possível a separação entre materialidade “físico-química” e materialidade “social”? Algum objeto existe e sobrevive sem a ação humana em determinada situação histórica?

Quem definirá a abordagem das dimensões materiais do objeto é o sujeito: o investigador, o cientista, o poeta. Para quê qualificar a materialidade se a dissociação entre material e social é impossível? Algumas das discussões sobre as relações entre texto, matéria e vida social são perceptíveis nos artigos deste dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita. Os textos estão reunidos em três grupos: a) relação física entre leitores e escrita; b) recursos tipográficos como conformadores de leitura; e c) opções materiais para transmissão textual.

O artigo de abertura é de Rafael Climent-Espino. Em “Objetos-livro e escrituras expostas: novas paisagens textuais e literárias na América Latina e Espanha”, o autor discute os limites das visões sobre a materialidade dos textos com base na distinção necessária entre objetos-livro e livros-objeto. Climent-Espino parte da ideia de que não existe escrita sem seus suportes materiais; desta forma, não há texto sem objeto, e a percepção do conteúdo depende dessa vinculação. No entanto, se desde a Antiguidade o texto literário tem a capacidade de existir em suportes diferentes, como pedra, cerâmica, tecidos, ossos etc., a primazia do formato códice e do suporte papel reduziu a nossa compreensão, forçando uma separação entre objeto-livro e livro-objeto. A surpresa do artigo de Rafael Climent-Espino reside em defender a capacidade literária contemporânea de existir fora do formato de códice sem perder o estatuto de literatura. Suas explorações apresentam objetos criados para transmitir texto e, portanto, passíveis de serem considerados “livros” na acepção mais ampla do termo. São, na verdade, “objetos-livro” com formas materiais diversas, como caixa de fósforos, alimentos ou moradias, e convocam o leitor a fazer uma leitura dinâmica e multidirecional. Em algumas dessas experiências, a leitura exige não a manipulação do objeto, mas do próprio corpo.

O “objeto-livro”, ou a escrita fora do códice, já existia no século de ouro espanhol. Bules, copos, taças, lamparinas, sopeiras, capacetes, armaduras, joias, colares, lenços, vestidos, calções, sapatos, edifícios, paredes e tumbas, sem esquecer os papeis, são testemunhos dessa prática. Naquele momento, cancioneiros ampliaram o conceito de suporte do texto e, com isso, aproximaram a cultura textual da cultura material. “Poesía fuera del cancionero: la inscripción de lo cotidiano y lo sublime”, o artigo de Ana María Gómez-Bravo, nos convida a perceber a íntima relação entre cultura escrita, material e visual ao buscar as conexões existentes entre texto, imagem, objetos e sensações corporais na poesia do século XV. Suas reflexões destacam a capacidade do texto de representar e propagar sensações provocadas por objetos e, por outro lado, modificar o estatuto simbólico de artefatos com a simples presença da escrita. Além dos numerosos exemplos de relações estabelecidas entre objetos e lugares através dos elementos gráficos, outros dois enfoques da cultura escrita destacados pela autora não podem deixar de ser mencionados. Um deles é a capacidade técnica plural dos profissionais da escrita para lidar com suportes tão diferentes quanto o vidro, o metal, o papel e a pedra; o outro é a promoção do livro-objeto a veículo de fortalecimento de relações sociais. Gómez-Bravo discute alguns exemplos de como o uso de elementos gráficos – como os monogramas reais em objetos privados de diversas naturezas (arquitetônica, decorativa ou utilitária) – revelava relações de fidelidade entre os membros da nobreza. O termo “bibliopolítica” é usado pela autora para se referir a quando os livros eram o veículo dessa prática social.

O fortalecimento de relações sociais entre a nobreza através dos livros é perceptível nas encomendas de manuscritos iluminados – sustentadoras da produção, comercialização e preservação desse tipo de obra20 – que posteriormente passaram a fazer parte de coleções bibliográficas reais. Este é o tema do artigo “Das mãos aos cofres: reflexões sobre transformações materiais e transferência de propriedade de livros devocionais do tardo-medievo”, de Márcia Almada. Após discorrer sobre circunstâncias da produção de códices iluminados na região da Europa central, a autora apresenta exemplos de como os objetos eram transformados materialmente para atender às demandas dos novos proprietários, cujas marcas distintivas de propriedade podem ser incluídas no conceito de “bibliopolítica” usado por Ana Gómez-Bravo. As galerias da Biblioteca de Mafra, em Portugal, são apresentadas para se compreender como a localização física e as condições de acesso no início do século XIX, além das alterações pontuais feitas ao longo do tempo, são elementos concretos para refletir sobre as diversas atribuições de sentido e possibilidades de experiências sensoriais do patrimônio bibliográfico. Afinal, como já afirmava Armando Petrucci, os modelos de bibliotecas acompanham os modos de ler e escrever,21 e a disposição espacial das estantes que guardam os livros revela muito sobre os modos como são utilizadas.

O segundo grupo de artigos discute a utilização dos recursos tipográficos como conformadores da leitura. Em “A primeira página da história: configuração material e funções da folha de rosto em livros de história alemães do século XVIII”, André de Melo Araújo reforça o coro de Gómez-Bravo e de Almada na perspectiva bibliopolítica sobre as ornamentações e técnicas aplicadas nos revestimentos externos do códice. Mas esse é apenas o argumento introdutório, pois o artigo está interessado em destacar a importância da folha de rosto como testemunha das inúmeras problemáticas envolvidas no trabalho editorial e a função desse dispositivo tipográfico de qualificar a obra comercial, social e intelectualmente. O historiador elucida, com exemplos concretos, a maneira pela qual as formas materiais dos livros impressos serviam para reforçar os vínculos do livro-objeto com a tradição cultural à qual se referenciava e com as práticas de leitura, pois formatos, dimensões e estilos tipográficos se adaptavam às demandas variadas dos consumidores, sendo estas escolhas determinadas pelo editor ou pelo autor. Araújo articula a análise visual, material e social do tratamento de obras impressas da era moderna, amparada pelas teorias que apreendem as escolhas técnicas e materiais como dimensões cultural e histórica. Predominam as referências bibliográficas de tradição alemã, proporcionando a oportunidade de ampliação da experiência de leitura no campo da história do livro, firmada predominantemente no viés francês ou britânico / estadunidense.

Kleber Clementino, em “Mina secreta, aríete forçoso: o livro na historicização da Guerra Holandesa (1625-1660)”, igualmente investiga os livros de história. No entanto, o foco dirige-se para as publicações sobre a Guerra Holandesa saídas de prelos da Península Ibérica. Sua problemática refere-se à utilização do gênero histórico como meio de propagar os relatos sobre a guerra, ao uso do livro como um “artefato bélico metafórico” e à percepção da atividade editorial como um evento da guerra. Essa batalha foi travada entre a fidalguia militar ibérica que retornava à Europa e a elite vinculada aos trópicos; do mesmo modo, ela existiu entre dois gêneros textuais: a relação de sucessos e a literatura histórica. Os conflitos foram tipificados materialmente pela concorrência da veiculação de panfletos ou de livros, e o uso desses dois produtos tipográficos revelou a descontinuidade não só de fórmulas discursivas, mas igualmente de forças políticas, favorecendo a promoção socioeconômica dos grupos sociais em ascensão nos domínios ultramarinos. O livro garantia a perpetuação duradoura dos relatos, a circulação mais restrita aos círculos elitistas da sociedade e a formação de camadas simbólicas. No entanto, ao requerer um juízo político e submeter-se à censura, o texto ou o autor poderiam ser envolvidos em uma disputa editorial, impedindo a impressão ou a circulação das obras.

O tema da guerra editorial também é explorado por Verônica Calsoni Lima em “Edição & censura: a materialidade dos panfletos de Sir Roger L’Estrange no início dos anos 1660”. A batalha descrita nesse caso se dá entre um escritor e censor e seus opositores. A personagem, em associação com seu editor, manejava os recursos tipográficos com habilidade para enfatizar passagens e mover as emoções do leitor no decorrer do texto. Por meio do exame textual e material das obras de L’Estrange, o artigo é construído sobre a perspectiva da dupla atuação literária da personagem e sua ascendência sobre as escolhas tipográficas das publicações. A manipulação desses dispositivos, na opinião da autora, facultava um trânsito entre as formas de comunicação textual, visual e oral, impactando a absorção do conteúdo discursivo usado no embate político-religioso. Outro trânsito de interesse é o deslocamento do corpo no exercício das atividades profissionais. Avaliando a instalação do escritório de L’Estrange na região londrina onde se aglomeravam as tipografias no século XVII, a autora procura compreender a relação física entre o censor e seus investigados e entre o autor e seu editor. Ademais, destaca a necessária interação entre condições de produção do autor, análise material e visual, e gênero textual, além de tecer considerações sobre as funções de autor e censor.

O terceiro tema do dossiê refere-se à disponibilidade de materiais e técnicas para a transmissão textual. Em “Um texto setecentista em três séculos: os conteúdos, as formas e os significados da Noticia Primeira Practica, de João Antonio Cabral Camello (XVIII-XX)”, Jean Gomes de Souza traça a biografia do relato textual sobre uma viagem fluvial de Sorocaba (SP) a Cuiabá (MT) ocorrida no ano de 1727. A história do escrito percorre o período de 1734, ano da primeira versão conhecida, a 1953, quando ressurge em obra organizada por Afonso d’Escragnolle Taunay – Relatos monçoeiros destaca-se entre as demais publicações do relato por ter se tornado referência para as publicações subsequentes no século XX. A compreensão das condições de produção de cada uma das edições é fundamentada na biografia de seus produtores, impedindo o deslocamento da obra textual das situações históricas nas quais é concebida, apropriada e preservada. A noção de versão utilizada pelo autor permite perceber o texto como uma obra em aberto, estando sujeita a desmembramentos, refazimentos e reajuntamentos que darão ao conteúdo condições diferentes de fruição e uso. Os métodos e as preocupações de disciplinas como a cultura material, cultura escrita, paleografia e bibliografia material são coordenados para perceber o texto escrito como representação histórica, social, linguística e material.

A questão material é evidente nos arquivos quando se lida com uma grande massa documental produzida pela administração pública dos Estados modernos. Diante dessa evidente e copiosa matéria, poucos foram os que se perguntaram: de onde vinha todo esse papel? Havia uma regulação do comércio desse material? Havia controle da administração quanto ao envio de papel para suas colônias? As tintas e as penas eram produzidas localmente ou compradas? Quem detinha esse saber: todos os capazes de escrever ou somente os especialistas? Quem era responsável pela produção de livros de notas, anotações e registros? E quem encadernava os “papéis vários”? Há muito a ser pesquisado sobre as atividades escriturárias e os saberes envolvidos além da leitura e escrita. Com um olhar de reconhecimento sobre as dimensões materiais das atividades humanas, Régis Quintão percebeu na documentação do Erário Régio do Arquivo Histórico do Tribunal de Contas de Portugal informações substanciais para iniciar um caminho para responder a algumas dessas questões. Em “‘Papel, penas e drogas para tinta’: materiais de escritório na administração diamantina no século XVIII”, o autor se debruça sobre registros textuais acerca dos insumos utilizados para a escrita administrativa. Como destacado, embora de uso corrente e necessário para as práticas administrativas, sociais e culturais, o dispendioso papel raramente é citado nas pesquisas sobre o comércio internacional, tampouco nos relatos de viajantes – talvez por ser óbvio demais. Mas, como disse José Newton Coelho Meneses,22 não se pode escusar de dizer o óbvio. Quem se interessa por essas questões encontrará algumas surpresas no artigo de Régis Quintão. São perguntas possíveis de marcar uma agenda de pesquisas necessárias no campo das dimensões materiais da cultura escrita.

Uma constante discussão no campo acadêmico, desde a predominância da digitalização de acervos como política de preservação e difusão de conteúdo, é referente à restrição do acesso presencial e seu impacto na análise material do objeto. Essa questão se tornou mais evidente durante o ano de 2020, quando a crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, o novo coronavírus, impediu a presença física de pesquisadores nos acervos. A principal pergunta é: como analisamos materialmente um artefato através de imagens digitalizadas? Sem negar que o contato com o objeto é propulsor de questões, e levando em conta as experiências dos artigos publicados neste dossiê, pode-se desenhar algumas possibilidades. Quando a linha de estudo é de reflexão teórica / conceitual acerca das possibilidades materiais da expressão humana e da fruição de produtos, o contato físico com o objeto é voluntário; portanto, o uso de registros visuais dos artefatos não é proibitivo. O suporte teórico definirá as problemáticas de investigação. É o caso dos estudos de Rafael Climent-Espino, Ana María Gómez-Bravo e Kleber Clementino, que observam a existência de textos poéticos e narrativos em suportes materiais diferentes. Já Régis Quintão faz uso das fontes documentais para pesquisar sobre as possibilidades materiais da escrita. Nesse caso, os inventários, livros de registros de compras e livros de receita e despesa são ótimas fontes sobre as condições materiais existentes em determinadas épocas.

Outro caminho de pesquisa é aquele percorrido por André Araújo, Verônica Calsoni e Jean Gomes, firmado na análise visual para captar as condições materiais das escolhas técnicas e funcionais de agentes responsáveis pela produção textual, mesmo que eles tenham tido a oportunidade anterior de estar diante dos artefatos estudados e possivelmente tenham feito sua própria documentação por imagem. Usar a visualidade como um dado material exige do pesquisador um conhecimento aprofundado dos processos técnicos e das condições de produção para enxergar no produto final as ações implementadas e nelas encontrar as informações perseguidas.

Mais uma oportunidade de extrair dados das condições materiais de um artefato é a consulta aos catálogos e às fichas descritivas de bibliotecas, conforme feito por Márcia Almada. Segundo Armando Petrucci,23 durante o século XIX as bibliotecas nacionais viraram laboratórios de investigação no campo da cultura escrita. Nas minuciosas descrições feitas a partir dos métodos da bibliografia material, resgatam-se informações consistentes sobre aspectos técnicos e constitutivos, proveniência, posse e intervenções sofridas ao longo do tempo. A utilização e a elaboração desses catálogos devem ser estimuladas. Por outro lado, pesquisas recentes têm gerado trabalhos monográficos sobre objetos em particular e podem ser usados em análises paradigmáticas. A consulta às áreas dedicadas à produção de conhecimento sobre os aspectos constitutivos dos objetos pode ser um recurso extraordinário. Alguns centros de pesquisa disponibilizam resultados de projetos e de exames voltados para a análise material, como no caso do estudo sobre a cor nos manuscritos medievais portugueses realizado pelo Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV-Requimte), formado por um grupo interdisciplinar de químicos e cientistas da conservação,24 e no caso do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, que recentemente disponibilizou sua base de dados sobre manuscritos medievais, com acesso aberto às fichas científicas dos manuscritos.25 Os relatórios de tratamentos de restauração também fornecem informações valiosas sobre a biografia dos objetos e podem ser usados como fonte.

O conjunto de artigos presentes no dossiê Dimensões Materiais da Cultura Escrita nos apresenta resultados de reflexões e de pesquisas recentes sobre a presença material da escrita na história e na contemporaneidade. Da mesma forma, nos convida a visitar os suportes metodológicos dos autores vinculados à teoria que defende a materialidade como requisito fundamental para a existência dos textos e para a criação de condições específicas de recepção da mensagem. Como foi discutido, as três camadas da informação são interligadas, e não há como dissociar o material do mental ou do social, pois o processo criativo humano se concretiza concomitantemente nesses domínios. Torna-se desnecessário, portanto, qualificar o substantivo “materialidade”.

Notas

  1. Agradeço a José Newton Coelho Meneses pela parceria acadêmica que tem permitido o aprofundamento dos questionamentos. Estas reflexões são fruto das pesquisas realizadas no âmbito do Convênio de Cooperação Acadêmica entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a University of West Attica (Uniwa) e do projeto Capes Auxpe nº 585 / 2015.
  2. Professora do Curso de Conservação-Restauração de Bens Culturais Móveis da Escola de Belas Artes da UFMG. Pesquisadora do projeto “A materialidade dos documentos pintados, entre a história e a preservação” (Capes Auxpe nº 585 / 2015).
  3. Alguns autores que devem ser mencionados são Ulpiano Bezerra de Meneses, Marcelo Rede, Daniel Miller, Arjun Appadurai, Peter Stallybrass, Amanda Vickery e Leila Algranti.
  4. McKenzie (1999); Petrucci (1999); Gimeno Blay (1986).
  5. Darnton (2009, 2012); Chartier (2007); Bouza Álvarez (2001); Castillo Gómez (2002).
  6. Recentemente Álvaro Antunes realizou uma breve discussão conceitual sobre o uso do termo “cultura escrita” e “cultura do escrito”. Em ambas as definições, no entanto, destaca que, para a história, os “efeitos sociais, políticos e culturais” são o que se busca, extrapolando a perspectiva de tecnologia da informação (Antunes, 2020, p. 623).
  7. Tanselle apud Daybell (2012, p. 15). No original: “the social process of publication”.
  8. Daybell (2012, p. 15, grifo nosso). No original: “materiality relates not only to the significance of physical forms, but also to the social materiality (or ‘sociology’) of texts, that is the social and cultural practices of manuscript and print in the contexts in which they were produced, disseminated and consumed”.
  9. Antonio Castillo Gómez (op. cit., p. 20) define o campo da “história social da cultura escrita” relacionado a três conceitos-chave – os discursos, as práticas e as representações – e afirma que o que a distingue de outras formas de fazer história é a “importância outorgada à materialidade dos objetos escritos” (no original: “es la importância outorgada a la materialidade de los objetos escritos”). Para uma apresentação mais ampla do campo da cultura escrita e da dissociação entre material e social, ver Chartier (op. cit.).
  10. Zervos; Koulouris; Giannakopoulos (2011).
  11. Cf. Almada (2018).
  12. Cf. Petrucci, op. cit.
  13. Cf. Elkins (2008).
  14. Cf. Darnton (2009, 2012).
  15. Rodríguez Domínguez (2018); Utsch (2020).
  16. Cf. Correia (2015).
  17. Cf. Campos (2019); Castro (2012).
  18. Discurso… ([1720?]).
  19. Almada; Monteiro (2019). Exames foram realizados no Laboratório da Ciência da Conservação da Escola de Belas Artes da UFMG pelo professor João Cura D’Ars e pela técnica Selma Otília Gonçalves.
  20. Para um estudo mais aprofundado sobre a manutenção da produção de manuscritos iluminados até a era moderna, ver Almada (2012).
  21. Petrucci, op. cit., p. 283.
  22. Meneses (2017)
  23. Petrucci, op. cit., p. 287.
  24. O laboratório tem inúmeras publicações no campo, entre elas a de Nabais et al. (2020).
  25. Cf. Morais (2017).

Referências

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MORAIS, Ana Paiva. Luz, cor e ouro: estudos sobre manuscritos iluminados: lançamento de e-book apresentação da base de dados ManuscriPT. Medievalista, Lisboa, n. 22, p. 1-9, 2017. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2020.

NABAIS, Paula et al. A 1000-year-old mystery solved: unlocking the molecular structure for the medieval blue from Chrozophora tinctoria, also known as folium. Science Advances, Washington, DC, v. 6, n. 16, eaaz7772, 2020. DOI: 10.1126 / sciadv.aaz7772. Disponível em: . Acesso em: 9 set. 2020.

PETRUCCI, Armando. Alfabetismo, escritura, sociedad. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999.

RODRÍGUEZ DOMÍNGUEZ, Guadalupe. La imprenta en México en el siglo XVI. Mérida: Editora Regional de Extremadura, 2018.

UTSCH, Ana. Rééditer Don Quichotte: materialite du livre dans la France du XIXe siècle. Paris: Classiques Garnier, 2020.

ZERVOS, Spiros; KOULOURIS, Alexandros; GIANNAKOPOULOS, Gerofios. Intrinsic data obfuscation as the result of book and paper conservation interventions. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON INTEGRATED INFORMATION, 2011, Kos Island. Proceedings […]. Piraeus: I-DAS Press, 2011. p. 254-257. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2017.

Márcia Almada – Universidade Federal de Minas Gerais / Belo Horizonte, MG, Brasil.


ALMADA, Márcia. Introdução: considerações sobre a materialidade da escrita e as três camadas de informação. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.28, p.1-13, 2020. Acessar publicação original  [DR].

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Como as ciências sociais e humanidades veem, sentem e leem o território? / Ponta de Lança/2020

A pergunta que dá título ao dossiê representa anseios convergentes de diversas matizes que buscam não apenas sintetizar, mas todo o contrário, possibilita oferecer um exercício de análise que seja verdadeiramente abrangente.

O objetivo central deste questionamento é apresentar os diversos vieses científicos sobre os quais o território é encarado e discutido, desde sua tradição ontológica que traz o sentido de dimensão espacial que se revela através dos processos tanto de dominação concretos, quanto em termos imateriais na produção de identidades, subjetividades e simbolismos criados e recriados pelos atores / agentes responsáveis pela sua (re)produção. Leia Mais

De América portuguesa a Império do Brasil: rupturas, dinâmicas e relações de poder em contextos de transformação e crises políticas no longo século XIX / Ponta de Lança/2020

A organização do dossiê “De América portuguesa a Império do Brasil: rupturas, dinâmicas e relações de poder em contextos de transformação e crises políticas no longo século XIX”, que, com especial satisfação, chega ao leitor, teve missão bastante modesta, mas resultado animador. Mais que inspirado pelas oportunas exigências de comemoração de datas fundamentais para a compreensão dos processos históricos tão significativos em escala continental e local 1 num arco temporal intencionalmente amplo (1750-1930), não pautado pela mudança cronológica de séculos, mas definidor de questões de formação do mundo sociopolítico e de seus traços como conhecidos hoje, esse esforço quer, sobretudo, demarcar a importância da investigação do passado essencialmente por meio do singular, necessário e insubstituível manejo profissional dos historiadores. Leia Mais

Los fuertes de la Araucanía | Sergip Villalobos

Sergio Villalobos, tal vez el historiador vigente más longevo y productivo de nuestro tiempo, presenta una obra más sobre la Araucanía, esta vez con relación a los fuertes, persiguiendo la idea de que más que elementos defensivos, fueron garantes del contacto cultural y de la vida fronteriza.

En cuanto a los aspectos generales, el libro cuenta con treinta y nueve capítulos más un prólogo, que tratan sobre la continuidad y cambio que sufrieron estas estructuras defensivas principalmente al sur del Biobío, desde la época colonial hasta finales del siglo XIX. Además, se incluyen treinta y una fotografías inéditas tomadas por el autor entre las décadas de 1970 y 2000, junto con nueve dibujos que recrean algunos paisajes y destacamentos militares basados en diversas fuentes, los cuales son identificados con las siglas S.V.R (Sergio Villalobos Rivera). Mientras que los dibujos pretenden subsanar la falta de registros de la época sobre estos espacios humanos, las imágenes son una muestra del archivo fotográfico que Villalobos ha guardado durante su larga trayectoria académica, muchas de ellas conocidas por alumnos de varias generaciones y diferentes universidades. Leia Mais

Historia Y Humor | Intus-Legere Historia | 2020

El resultado de este dossier se comenzó a gestar hace dos años, cuando un grupo de investigadores nos reunimos en Santiago a compartir nuestros estudios relacionados con el humor. Lo positivo de la experiencia y lo interesante de las presentaciones nos motivaron a armar un dossier referido a un tema que, aunque cotidiano, no ha sido lo suficientemente estudiado en América Latina.

Durante mucho tiempo, pareciera que los académicos no nos hemos interesado en considerar el humor o las caricaturas como un tema de digno de ser trabajado. No existe relación entre la importancia que el humor juega en nuestras vidas, en general, y el limitado espacio que se le entrega a esta temática en la academia. En el siglo XIX, el poeta Charles Baudelaire, en un ensayo sobre lo cómico y la caricatura, se refiere a este tema y cita a Johann Caspar Lavater como un ejemplo de ese rechazo del mundo intelectual al humor y a la risa: “El sabio tiembla por haber reído, el sabio teme a la risa” 1 y, más adelante, agrega del mismo autor: “la risa es por lo general privativa de los tontos y siempre implica en mayor o menor medida ignorancia” 2. Leia Mais

Normatividades medievais: discussões teóricas e estudos de caso | Signum – Revista da ABREM | 2020

Ao longo dos séculos XIX e boa parte do XX, o campo científico dos chamados “estudos jurídicos” ou do “direito”, esteve fortemente baseado em uma ruptura epistemológica quase total entre o direito e as ciências humanas como a história, a sociologia e a antropologia. Com isso, a história do direito se desenvolveu como uma disciplina de domínio exclusivo da área do direito, disciplina essa que parecia caminhar “fora do tempo” (como se o Direito não fizesse parte da construção social).2 Nos últimos vinte e cinco anos, a ascensão da antropologia jurídica e da sociologia do direito assim como o crescente interesse de historiadores pelo direito como elemento de compreensão de práticas sociais, políticas e culturais têm trazido novas abordagens que recolocaram o direito na sociedade.3

Para os estudos medievais, o efeito dessas novas abordagens traduziu-se em inúmeros trabalhos de historiadores utilizando documentos legais e jurídicos com novas propostas metodológicas. Assim, procurou-se cada vez mais incorporar uma abordagem que ia além do interesse pelo contexto normativo e institucional no interior do qual as relações sociais se estabelecem, para incluir também uma atenção às formas jurídicas sob as quais os objetos de estudo podem se tornar acessíveis, como procedimentos de litígios, formas de contratos, interpretação de leis e costumes, etc.4 Abriu-se caminho para o trabalho com conceitos diferentes como o de “norma” e de multiplicidade de estruturas normativas, como propõem Gauvard, Boureau, Jacob e Miramon.5 Também surgiram novas abordagens como análises semânticas, propostas por Isabelle Rosé,6 análises comparativas e combinadas entre teologia, escolástica e direito, por Elsa Marmursztejn e Alain Boureau,7 estudos focados nos atos da prática e seu lugar na construção do direito, como propõe Florent Mazel,8 e a compreensão dos conflitos e suas resoluções como alguns trabalhos de Patrick Geary e Bruno Lemesle.9 Leia Mais

Visões dantescas: a Comédia entre Idade Média e Contemporaneidade | Signum – Revista da ABREM | 2020

O dossiê Visões dantescas: a Comédia entre Idade Média e Contemporaneidade propõe sete artigos acerca da obra de Dante Alighieri, focando a Idade Média e a contemporaneidade, e favorecendo, assim, um entrelaçamento entre esses dois polos, no intuito de encontrar analogias e diferenças entre o passado e o presente da história literária ocidental. O objetivo principal do dossiê é contribuir como um estímulo aos estudos sobre Dante no Brasil.

Em terra brasilis, várias foram as personalidades que dedicaram considerações e análises, mais ou menos extensas, ao poeta florentino: de Araripe Junior até Marco Lucchesi, de Câmara Cascudo até Eduardo Sterzi. Nesse contexto, o centenário dantesco de 2021 será uma oportunidade significativa para enriquecer os estudos dantescos brasileiros. Um dos exemplos do constante interesse, no Brasil, em relação à obra de Dante, é o XIX Congresso da ABPI (Associação Brasileira de Professores de Italiano), previsto para acontecer em outubro de 2021, em Salvador, cujo tema será “O mundo de Dante e Dante no mundo: heranças linguísticas e culturais no diálogo com a contemporaneidade”. Não é por acaso, portanto, que dois membros da atual diretoria da ABPI, Gesualdo Maffia e Jadirlete Lopes Cabral, tenham realizado importantes contribuições à presente edição da Signum: duas entrevistas com grandes pesquisadores da obra de Dante. Gesualdo Maffia entrevistou Marco Berisso, docente de filologia italiana na Università degli Studi di Genova, enquanto Jadirlete Lopes Cabral, com a colaboração de Daniel Fonnesu, conversou com David Lummus, da University of Notre Dame. As entrevistas mantêm um diálogo com as perspectivas propostas pelos artigos reunidos no dossiê Visões dantescas: a Comédia entre Idade Média e Contemporaneidade. Leia Mais

Love, order, and progress: the science, philosophy, and politics of Auguste Comte. BOURDEAU et. al. (HCS-M)

COMTE Auguste Autoridad e historia

BOURDEAU M Warren Love order and progress 151 Autoridad e historiaBOURDEAU, Michel; PICKERING, Mary; SCHMAUS, Warren E. Love, order, and progress: the science, philosophy, and politics of Auguste Comte. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2018. 416p. Resenha de: SANDOVAL, Tonatiuh Useche. Una visión sinóptica de Auguste Comte en inglés. História Ciência Saúde-Manguinhos v.27 n.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2020.

En el Capítulo 86 de Rayuela de Julio Cortázar (2008) se puede leer: “Quizá haya un lugar en el hombre desde donde pueda percibirse la realidad entera. Esta hipótesis parece delirante. Auguste Comte declaraba que jamás se conocería la composición química de una estrella. Al año siguiente, Bunsen inventaba el espectroscopio”. Nada se aleja tanto de la estructura fragmentada de la novela de Cortázar como la obra sistemática del fundador de la religión de la humanidad. El presente volumen reúne nueve artículos en inglés que, descartando una comprensión fragmentaria de la obra de Comte, tanto de sus aciertos como de sus insuficiencias, resaltan que sus vertientes científica, filosófica y política son solidarias. Leia Mais

Outras Fronteiras. Cuiabá, v.7, n.1, 2020.

Dossiê: História, Mídia e Linguagens

  • Organizadoras
  • Luciana Coelho Gama
  • Rhaissa Marques Botelho Lobo

Dossiê Temático

Artigos

Entrevistas

Transcrições Comentadas

Ideias para adiar o fim do mundo / Ailton Krenak

KRENAK Ailton Autoridad e historia
KRENAK A Ideias para adiar o fim do Mundo Autoridad e historiaAilton Krenak / Foto: Fondation Cartier  /

O livro de Ailton Krenak, estruturado em três capítulos referente a palestras e adaptação de uma entrevista realizada em Lisboa – Portugal, configura-se enquanto uma excelente ferramenta de auxílio para o questionamento do desenvolvimento moderno e a sua humanidade. O autor indígena, oriundo do povo Krenak que se territorializou na região do Vale do Rio Doce, além de produtor gráfico e jornalista dedicou-se ao ativismo do movimento socioambiental e dos direitos dos povos indígenas, sendo lembrado muitas vezes pelo seu discurso proferido na Assembleia Constituinte de 1987, aonde, protestando pintou seu rosto com tinta de jenipapo como expressão do luto ao massacre dos povos indígenas legitimado pelo retrocesso dos direitos das comunidades tradicionais.

Seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” objetiva realizar uma discussão sobre os impactos das ações que imprimimos no planeta terra orientados pela cosmovisão de que somos seres separados da natureza, retroalimentando uma autodestruição, que não é compreendida pela ideia de humanidade construída pela modernidade eurocêntrica. Sendo assim, os povos tradicionais, compreendidos como sub-humanos pela modernidade, são compreendidos pelo autor como uma alternativa a lógica de autodestruição e exploração excessiva da natureza. Leia Mais

Revista do Arquivo Público do Espírito Santo. Vitória, v.4, n.7, 2020.

Editorial

Apresentação

Entrevista

Dossiê: Mulheres e Gênero na historiografia capixaba

Artigos

Documentos

Resenhas | As mulheres e o magistério no Espírito Santo: O início de uma história

Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa – FREIRE (REH)

FREIRE Paulo Autoridad e historia
Paulo Freire. Foto: Brasil de Fato /

FREIRE P Pedagogia da Autonomia Autoridad e historia FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 55ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2017. Resenha de: PEDROZO, João Victor da Silva. Revista de Educação Histórica, Curitiba, n.20, p.103-105, jan./jun., 2020

O livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa de Paulo Freire faz uma abordagem a respeito de algumas das competências necessárias para a atuação do profissional da educação, saberes esses que ele julga essenciais. Freire escreve o texto com toda aquela sensibilidade que lhe é característica, brindando o leitor de um sentimento de esperança e convidando-o a lembrar a todo o momento da importância do professor e de sua contribuição social. Sua abordagem pedagógica nos apresenta reflexões importantíssimas a respeito da postura e da coerência que se exige de quem pretende educar.

O livro é dividido em três detalhados capítulos. No primeiro capítulo, Prática docente: primeira reflexão, Paulo Freire faz uma apresentação das características fundamentais da formação docente. Enfatiza a importância de alinhar a prática à teoria, da nossa capacidade de aprender e ensinar, e da necessária recusa ao ensino bancário, ensino esse que delega ao educando um mero papel receptivo de informação e não o reconhece como agente produtor de conhecimento. Deste modo, devem-se levar em conta as experiências prévias do educando, para que esse se reconheça como sujeito do processo, podendo assim estabelecer uma “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais e a experiência social que temos como indivíduos.

O segundo capítulo, Ensinar não é transferir conhecimento, retoma e aprofunda a discussão sobre o erro de se pensar a educação como depósito de um conhecimento pré-adquirido ao educando. O professor, por vezes, costuma se blindar de críticas e sugestões quando está ministrando sua aula e age como se estivesse em um pedestal. Isso, de modo algum, é saudável na prática educativa. Para Freire, um dos principais fatores da relação professor-aluno é a humildade, é mostrar-se também sujeito no processo educacional, não como um depositador de saberes, mas sim como quem também aprende no exercício de ensinar.

É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. (FREIRE, 1996, p. 24)

Ainda nesse capítulo, o autor trata da necessidade de estarmos sempre abertos às indagações, às curiosidades dos alunos e da nossa característica de sermos seres condicionados, mas não determinados Como seres culturais, históricos, inacabados e conscientes do inacabamento, devemos unir esforços contra o discurso fatalista, pragmático e reacionário do pensamento neoliberal. É nesse capítulo também que, mais do que tratar a esperança como uma característica recomendável ao professor, Freire é enfático ao nos mostrar que mais do que isso, essa se faz imprescindível e inerente à prática educativa.

Para Freire, a aprendizagem é resultado da relação dialética entre os sujeitos envolvidos nela. A aprendizagem só ocorre efetivamente quando é significativa para quem aprende e para quem ensina, quando envolve sentimentos e quando a curiosidade ingênua transforma-se em epistemológica através da mediação do professor.

É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual o sujeito criador dá forma, estilo ou alma ao um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 1996, p. 25)

No terceiro e último capitulo, Ensinar é uma especificidade humana, Freire expõe da importância da solidez na formação do professor, já que não se pode ensinar o que não se sabe. “A incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor” (FREIRE, 1996). Apenas um profissional qualificado poderá pensar certo e exercer a sua autoridade de maneira plena. Uma autoridade em exercício que seja democrática e que respeite a liberdade do educando na construção de sua autonomia. Ressalta ainda o seu compromisso com as pautas democráticas dirigidas aos menos favorecidos, um dos objetivos da educação progressista, já que o ato de ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo, em prol dos condenados da terra, como o próprio dizia.

Essa obra de Paulo Freire, de modo geral, é um exercício de provação ética. Nos mostra que é possível e necessário acreditar num mundo melhor transformado pela educação. A pedagogia deve ser ética em si mesma e respeitosa às experiências e saberes prévios do educando, desenvolvendo assim um ambiente propício à autonomia, à produção de conhecimento e à formação individual. Não se trata de uma formação no sentido de treinamento de atividades puramente tecnicista ao educando, mas o contrário disso. Freire adverte que o tom otimista e esperançoso com que redige o texto não deve ser entendido como ingenuidade ou inocência, mas sim como traços do seu comprometimento com a causa. É no geral um exercício pedagógico de alimentar a esperança e concretamente um guia para a coerência entre discurso e prática. Paulo Freire nos mostra a grandeza de nossa profissão, lê-lo é tomar um gole de autoestima.

No meu caso, foi a leitura certa no momento certo. Um prato cheio para lembrar-nos do nosso poder de ação no mundo e do nosso compromisso por um futuro menos desigual. Já dizia Freire que está errada a educação que não reconhece a raiva justa, que não se indigna com as desigualdades e que não promove transformação. Qualquer discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever. Não podemos, porém, pensar que a execução desse exercício é fácil. Exige disciplina, coerência, pesquisa e, sobretudo, autoestima e vontade de mudança. Quem escolhe agir por essa profissão, escolhe agir por todos, mesmo que alguns não a reconheçam como capaz.

João Victor da Silva Pedrozo UNILA. E-mail: joao.pedrozo@aluno.unila.edu.br

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[IF]

Intus-Legere Historia. Viña del Mar, v.1, 2020.

HISTORIA Y HUMOR

ARTÍCULOS DE INVESTIGACIÓN

 

Alteridades em tempos de (in)certezas / Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore

A história imediata nos ajuda a pensar algumas razões do estado atual das coisas. Tenho pesquisado, desde dezembro de 2019, o fenômeno da emergência e organização de policiais organizados em um movimento antifascismo, acompanhando debates públicos e realizando entrevistas com os sujeitos envolvidos. Para executar essa tarefa é preciso uma postura sensível aos anseios desses profissionais da segurança pública (policiais militares, civis e federais, guardas municipais, bombeiros, agentes penitenciários, peritos, etc.), expressos nos seus posicionamentos públicos sobre os rumos das polícias e das políticas de segurança pública no Brasil e sobre o avanço de estruturas políticas que favorecem a disseminação de práticas fascistas. Refletir sobre o tempo presente e sobre as dinâmicas que contribuíram para a configuração política do presente, disso que Wendy Brown (2019) chamou de Frankenstein gerido pelo neoliberalismo, é uma tarefa que demanda uma escuta sensível, um olhar sensível, uma atenção com o mundo. Escutar o outro em tempos dissonantes e incertos como o nosso, demanda um trabalho de reconfiguração das nossas certezas e de nossas incertezas epistemológicas.

É exatamente este o convite dos organizadores do livro Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis, Miram Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore, na introdução à coletânea. Os autores são, respectivamente, coordenadora e membros do Núcleo de História Oral da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG) e são pesquisadores de temas caros ao tempo presente: sindicalismo industrial, políticas públicas para a juventude, teatro e arte no período da ditadura civil-militar. A organização do livro se deu pela participação dos autores na comissão local do XII Encontro Regional Sudeste de História Oral – Alteridade em tempos de (in)certeza: escutas sensíveis, em Belo Horizonte, no ano de 2017, ocasião em que foram responsáveis pelo planejamento da programação das mesas redondas, conferências e atividades ao longo do evento.

A coletânea é a reunião dessas falas pronunciadas por pesquisadores, de formação múltipla, nos auditórios da UFMG, mas também em outros espaços públicos, como o Museu de Arte da Pampulha e a Casa de Referência da Mulher Tina Martins. A história oral e, especialmente, o problema da escuta sensível, nos são apresentados de modos distintos nesse livro: reflexão sobre acervos, memória e identidade, alteridade e espaço urbano, a entrevista como prática social e coletiva, as estratégias de organização individuais e coletivas, o oral e o audiovisual na construção de sentidos, a urgência da participação da história e das(os) historiadoras (es) no debate público, a publicização de experiências de vidas que demandam cuidado e atenção e a reflexão sobre percursos biográficos ligados à própria história da pesquisa em história oral.

Na introdução, o livro é dividido em três grandes conjuntos de textos: alteridade como marcador das possibilidades da entrevista de história oral; “problematizações de identidades de minorias políticas”; e “escutas sensíveis diante das diferenças”. Ana Maria Mauad abre o primeiro grupo de texto com um artigo que analisa a questão indígena na obra fotográfica de Claudia Andujar, analisando seu trabalho a partir da categoria de fotografia pública, associando-a com “uma dimensão crítica e (…) dialética” (p. 25). O engajamento público de Andujar na causa indígena se deu, também, pelo movimento de inclusão da comunidade Yanomami como parte desse público e também como partícipe da narrativa pública sobre os sentidos das imagens. A confiança é a base dessa relação pública com a questão indígena, assim como a relação entrevistador-entrevistado.

O segundo texto, de Mario Brum, aprofunda o problema da relação entre fatos e representações, abordado por Alessandro Portelli, ao analisar as representações sociais e as identidades em torno da construção da favela da Cidade Alta (e seus entornos) na cidade do Rio de Janeiro. O estigma dos “removidos” da região central para a Cidade Alta, marcou “toda a trajetória posterior do conjunto” habitacional, seja a partir do silenciamento, seja pela diferenciação social com outra categoria, a dos “inseridos”. Em seguida, Luciana Kine e Emilene Souza apresentam reflexões metodológicas para lidar com narrativas de vida ligadas a “tópicos sensíveis”, em especial jovens vivendo com HIV/aids. A multiplicidade das experiências de vida que giram em torno de “temas delicados”, remonta à ideia de calidoscópio narrativos e conduz a uma reflexão ética sobre a relação entrevistado-entrevistador e a condução partilhada do processo de narrar e da elaboração do produto final da pesquisa. No caso, as autoras exploraram uma metodologia de embaralhamento das histórias, “estratégia ética, estética e política” que possibilitou a discussão de “experiências do cotidiano” (p. 50) e criou uma alternativa para superar os limites do sigilo, e do constrangimento. Os diálogos possibilitados por essa metodologia reafirmam um posicionamento epistemológico da “pesquisa como prática social [e] ação coletiva” (p. 54).

Abrindo o segundo conjunto de textos, Valéria Barbosa de Magalhães e Luiz Morando, apresentam, respectivamente, duas reflexões sobre migração e sociabilidade da comunidade LGBT(QIA) em espaços e situações distintas. O primeiro texto apresenta pouca reflexão propriamente dita em relação às entrevistas, mas propõe uma indagação fundamental sobre a relação entre sexualidade e migrações em contextos políticos conturbados, como a eleição de um governo autoritário no Brasil. Magalhães apresenta, muito atenta aos anseios e às experiências de migrantes brasileiros LGBT na Flórida (EUA) na última década, a mudança das “estratégias de legalização no exterior” e a apreensão que o cenário político produziu nas expectativas de vidas desses sujeitos. Seu trabalho desloca o objeto da pesquisa sobre imigração e sexualidade do campo dos problemas de saúde e da exploração sexual, interrogando outros modos pelos quais a imigração relaciona-se com a sexualidade para além do negativo.

Já Morando, apresenta uma reflexão sobre identidade e diferença, analisando representações identitárias de homens gays em relação à memória e à suas experiências em espaços de sociabilidade LGBT em Belo Horizonte, entre 1960 e 1980. O texto faz uma divisão analítica de duas formas imbricadas de lidar com essa memória, percebidas pelo pesquisador em suas entrevistas: a romantização do passado e o ceticismo em relação à experiência dos clubes noturnos da capital mineira. O gozo e a descrença apresentaram-se como faces do mesmo problema: o prazer e o desconforto de lembrar as vivências do passado. Se o estabelecimento da diferença e da identidade implica em distanciamentos temporais, tricotar – “fazer um tricô”, ou seja, estabelecer um diálogo – figura como uma alternativa para o isolamento social de gerações mais novas em relação à vivência de gerações anteriores.

O historiador Amilcar Araújo Pereira, apresenta um belo estudo sobre a luta e a formação dos movimentos negros no Brasil, organizados durante a ditadura militar. Surgida a partir de reuniões em bairros, universidades, ou grupos de teatro, no Nordeste e no Sudeste, a militância negra brasileira se caracterizou pela pluralidade de perspectiva, pelas diferenças regionais, geracionais e ideológicas. Apesar dessas diferenças, Amílcar Pereira, buscou demonstrar a importância das redes estabelecidas pelos militantes, que criaram conexões e espaços de experiência compartilhadas por diferentes grupos. A proposição no final da década de 1970, de organização do movimento por rede, teve como norte o fortalecimento e o estímulo de formação de lideranças. Já o artigo de Samuel Silva Rodrigues de Oliveira e Roberto Carlos da Silva Borges aborda o problema do audiovisual como parte do projeto de construção narrativa sobre o passado e o imaginário da cultura negra, contribuindo para uma educação antirracista no Brasil. Os autores estão interessados em investigar o “estatuto de testemunho” em torno da produção audiovisual sobre e da cultura negra, no sentido de problematizar o “funcionamento da memória” que funda “imaginários individuais e coletivos” (p. 106). Os vídeos analisados, produzidos em diferentes instâncias, representam formas heterogêneas de “contraponto à ideologia da branquitude” que sustenta as relações étnico-raciais no Brasil (p. 118).

Finalmente, o terceiro grupo de artigos apresenta diferentes abordagens metodológicas da pesquisa com a alteridade. As demandas dos policiais militares contidas no acervo “Tropas em Protesto”, que reúne narrativas de policiais, tendo como ponto de partida o movimento das praças das polícias desde 1997, ficaram silenciadas na década de 2010, especialmente após o arquivamento da PEC 21/2005, que previa a desmilitarização das polícias estaduais. Juniele Almeida argumenta a necessidade urgente de retomar o debate público em torno da desmilitarização das polícias. As “tensões históricas”, que esse debate faz emergir, correspondem à ideia de pertencimento à corporação e, ao mesmo tempo, aos movimentos contestatórios da estrutura militarizada das polícias brasileiras. Até hoje, essas tensões podem ser representadas a partir de três grandes dimensões que norteiam a urgência da redefinição do papel da polícia em um estado democrático: “o discurso institucional militarista, os problemas em segurança pública [da sociedade brasileira] e as questões trabalhistas dos servidores públicos” da segurança (p. 122).

A historiadora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, com sua sensibilidade ímpar, tece uma reflexão muito provocativa sobre um conjunto de memórias de mulheres que nos ensinam novas “formas de entrevistar e de registrar narrativas” (p. 141) e nos impulsionam para uma nova concepção de conhecimento histórico, compromissado com uma “escuta atenta” (p. 151). Em atenção às vidas que pedem cuidado e reparação, a autora propõe uma postura de amorosidade do pesquisador diante da “intolerância” e dos silenciamentos que atravessam as vidas de mulheres. A história oral como espaço de reinvenção da existência, como espaço de audiência – e não de análise – segue sendo uma possibilidade de compromisso ético do pesquisador, uma “escuta atenta” – e não promessa de remissão – capaz de intermediar outras possibilidades de construção de um mundo mais humano.

Rodrigo Patto Sá Motta nos brinda com uma reflexão sobre o uso de fontes orais em suas pesquisas sobre as universidades durante a ditadura e as surpresas advindas desse processo, contribuindo, inclusive, para incorporação do conceito de acomodação para leitura dos arranjos sócio-políticos no período (p. 158). A emoção do pesquisador ao entrevistar intelectuais importantes para o campo das ciências no Brasil, em especial na área de Ciências Humanas, e a emoção dos indivíduos ao receber informações pessoais por parte do pesquisador, contribuíram para mudanças dos sentidos da pesquisa. Proporcionando o redimensionamento dos problemas de pesquisa a partir do confronto entre diferentes documentos, por um lado, e a reapropriação e ressignificação dos objetivos da pesquisa por parte dos sujeitos entrevistados. O conceito de acomodação, como lembra Motta, não se pretendeu um modelo perfeito, mas visou apresentar uma explicação aos eventos da ditadura a partir de evidências que emergiram na pesquisa em história oral, aprofundando o debate e nos convidando para possibilidade de transformação, criando e mobilizando outros jogos que não o das acomodações (p. 162-163).

Encerrando o volume, o pesquisador Ricardo Santhiago apresenta uma reflexão sobre a trajetória biobibliográfica de Ecléa Bosi e sua contribuição para a formação do campo da história oral no Brasil. A trajetória intelectual de Bosi nos convida a uma reflexão sobre “a capacidade humana e humanizadora do exercício da escuta” como prática de formação dos jovens pesquisadores (p. 175). Os conselhos, as indicações e as sugestões de Ecléa Bosi emergem como elementos metodológicos. Ao invés da rigidez das normas, a atenção, a afetividade, a criatividade, a sensibilidade. A partir das reflexões iniciais em sua tese de doutorado, o autor argumenta a importância seminal do trabalho de Bosi para o campo da história oral brasileira, de onde se desabrocharam diferentes frutos, com pesquisas atentas “à memória, à linguagem”, a partir da “empatia, curiosidade e pluralismo” (p. 177).

Gostaria de ressaltar que há uma dissonância no ritmo de leitura do livro, pois cada capítulo corresponde a uma dimensão da pluralidade da pesquisa em história oral. Levando em consideração os itinerários formativos das(os) pesquisadoras(es), essa dissonância longe de significar um problema, torna-se potência para o contato do leitor com uma gama de leitura polissêmica sobre as possibilidades de escutar o outro de modo sensível sem abandonar o rigor metodológico. Miriam Hermeto, Gabriel Amato e Carolina Dellamore nos brindam com um livro plural que retoma o antigo problema da relação pesquisador-entrevistado, apresentando contribuições proveitosas e polêmicas para a pesquisa em história oral (que por sua vez, é preciso dizer, não é metodologia, campo ou área exclusivos de historiadores).

A multiplicidade de abordagens e perspectivas dos artigos do livro, que se configura como um desafio para toda coletânea, funciona como uma postura necessária diante do desafio de se produzir conhecimento sobre o tempo presente. Mais do que mera alegoria, essa multiplicidade é, ao mesmo tempo, unidade em diferença e múltiplo nas identidades. As bases epistemológicas para imaginar outras formas de relação de poder, implicam em diálogos mais profundos e em escutas mais sinceras entre diferentes áreas do conhecimento. O livro em questão é resultado de um refinado trabalho de seleção e de enfrentamento de questões políticas e epistemológicas desse tempo imediato. De tudo ficam algumas questões: Estamos preparados para escutar o outro? Até que ponto conseguimos realizar a escuta do diferente? Em tempos de monstruosidades políticas típicas do fascismo, ou do que Traverso (2019, p. 19) chama de pós-fascismo – enfatizando as continuidades e transformações históricas do fenômeno – até quando teremos forças e disposição para ouvir quem não admite escutar? Como restabelecer o diálogo – em que a arte da escuta (PORTELLI, 2016) é o centro dessa relação – em um mundo que nasceu e da implosão das noções do “comum” e da “democracia”, das próprias “ruínas do neoliberalismo” (BROWN, 2019)?

Referências

BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. (Coleção Ideias).

TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Translation David Broder. New York/London: Verso., 2019.

Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira – Doutor em História Social (UFRJ). É professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, Campus Betim. Atualmente, faz residência pós-doutoral na UFF, investigando o debate público promovido por e em torno dos policiais antifascismo. E-mail: lucas.pereira@ifmg.edu.br.


HERMETO, Miriam; AMATO, Gabriel; DELLAMORE, Carolina (Org). Alteridades em tempos de (in)certezas: escutas sensíveis. São Paulo: Letra e Voz, 2019. 180p. Resenha de: PEREIRA, Lucas Carvalho Soares de Aquiar. A escuta do outro em tempos dissonantes. Canoa do Tempo, Manaus, v.12, n.1, p.457-463, 2020. Acessar publicação original. [IF].

Crime e Relações Internacionais | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2020

“Crime”. Essa palavra nos remete quase imediatamente a transgressões penais que acontecem dentro dos Estados, nas cidades, nos bairros, nas ruas, naquilo que é entendido como local e doméstico. E, de fato, esse espaço interno foi historicamente o espaço privilegiado para compreender o crime e para definir políticas para o seu combate. Os trabalhos de criminologia, cuja interdisciplinaridade incorporou abordagens sociológicas, antropológicas, jurídicas, entre outras, evoluíram ao longo do século XX por tais parâmetros (LOADER; SPARKS, 2007).

No entanto, as últimas décadas presenciaram novas dinâmicas da criminalidade, da percepção política sobre esse fenômeno e da produção de conhecimento a seu respeito. Nesse novo momento, o internacional ganhou proeminência, tornando-se um espaço social crescentemente relevante. Isso repercutiu na importação de conceitos da área de Relações Internacionais pela Criminologia, como é o caso do “transnacional”, ao mesmo tempo em que estudos de Relações Internacionais passaram a incorporar parâmetros criminológicos nos seus referenciais analíticos (LOADER; PERCY, 2012). Tráfico de drogas, armas e pessoas, contrabando, comércio ilegal de vida selvagem e de bens culturais e lavagem de dinheiro são alguns dos tópicos que passaram a ter o “internacional” como qualificador. Leia Mais

Secuencia. México, n.106, enero/abril, 2020.

Artículos

Reseñas

Gênero e interseccionalidades no ensino de história / Fronteiras – Revista de História / 2020

Pensar o ensino de História em tempos de pandemia gera muitas inquietações, sobretudo ao observarmos a desigualdade social que assola o país sendo intensificada. O caos na saúde pública, na economia e na educação não apenas revelam as exclusões sociais como dão a elas novas formas e novos níveis. Muitas vidas estão se perdendo, sobretudo de pessoas pobres, de pessoas negras, que não tem acesso a recursos da saúde, que não possuem o privilégio de poder manter o necessário distanciamento social para precaver-se da Covid19. Pessoas pobres precisam sair de suas casas para trabalhar independente do risco que correm no trajeto ou no local de trabalho. Muitas são mulheres que atuam como domésticas, como enfermeiras, como cuidadoras. Pessoas pobres são excluídas dos estudos remotos pela falta de acesso às tecnologias. Sem computadores em casa ou sem celulares capazes de comportar os aplicativos e armazenar arquivos, sem internet. Famílias grandes em espaços pequenos dividindo um único celular e a internet do / a vizinho / a para que todas as crianças façam as atividades remotas. Pessoas da área rural, sem acesso à internet. O caos revelando e intensificando as diferenças e as desigualdades e nos movendo a refletir sobre os sentidos do que estamos fazendo e para onde caminhamos no ensino de História, pois acreditamos que é possível (e necessário) propormos uma pedagogia engajada (HOOKS, 2013).

Dois pontos nos parecem fundamentais nessa empreitada: o sentido do aprender e ensinar história e a questão da interseccionalidade como ferramenta analítica que considera as múltiplas diferenças e desigualdades. Com relação ao primeiro ponto, as teorias de Jörn Rüsen pautadas na perspectiva do desenvolvimento da consciência histórica nos permitem pensar um aprender e ensinar História que considera as interações com a vida prática. Em seu texto “Como dar sentido ao passado”, Jörn Rüsen (2009) argumenta que o objeto de estudo da história é o presente e não o passado, pois é nele que surgem as inquietações que nos movem a pesquisar o passado, que ao ser compreendido nos ajuda a problematizar o presente e perspectivar o futuro. Ao elaborar a sua matriz disciplinar, Jörn Rüsen (2001) sintetiza a dinâmica da elaboração do pensamento histórico que parte das carências de orientação no tempo para as ideias históricas, tendo na História, como campo especializado do conhecimento, um lugar de elaboração com métodos de pesquisa e de apresentação de resultados, que só farão sentido se voltarem para a vida prática com uma função de orientação existencial. Leia Mais

Los muiscas y su incorporación a la monarquía castellana en el siglo XVI: Nuevas lecturas desde la nueva historia de la Conquista | Jorge August Gamboa Mendonza

A quienes se interesan en los orígenes de la identidad cultural de los pueblos indígenas de Colombia se les aconseja proseguir con cautela ante la lectura de este capítulo, pues Jorge Augusto Gamboa Mendoza presenta de una forma provocadora y escandalosa sus hallazgos sobre el tema. Como es costumbre en el etnógrafo e historiador de la Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia (UPTC), su predisposición por la desmitificación y deconstrucción de la historia oficial se advierte de inmediato como impronta de la exposición de sus resultados. Por tanto, quienes se adentren a revisar la transcripción de la conferencia pronunciada el 3 de octubre de 2014, en la UPTC., experimentarán asombro, interés y hasta un poco de desconcierto.

Y no es para menos, la conferencia está organizada sobre una idea muy controversial: la impugnación de la identidad de la cultura muisca. De acuerdo con Gamboa (2015), la sociedad criolla de la Nueva Granada hace un uso político de la historia del territorio. Ese proceso requiere de la manipulación de fuentes historiográficas como manuscritos, documentos legales, etcétera, etcétera, para generar una nueva crónica sobre el origen mítico de las culturas. Para el caso del origen mítico–indígena del Virreinato de Nueva Granada, el documento manipulador fue Historia general de las conquistas del Nuevo Reino de Granada (1688) del santafereño Lucas Fernández de Piedrahíta (1624 – 1688). Leia Mais

História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.26 Suplemento 1, 2019.

Darwin y el darwinismo desde el sur del sur – VALLEJO et al (HCS-M)

GALASSO P Darwin y el darwinismo desde el sur del sur Autoridad e historiaVALLEJO, Gustavo et al. (ed). Darwin y el darwinismo desde el sur del sur. Madrid: Doce Calles, 2018. 446p. Resenha de: GALASSI, Paolo. Darwin en las pampas: revisitando la recepción del darwinismo en Iberoamérica. História, Ciência, Saúde – Manguinhos , Reio de Janeiro, v.27 n.1 Jan./Mar. 2020.

Concebido en el marco de los debates generados por la Red Iberoamericana de Estudios de Historia de la Biología y de la Evolución – fundada tras el XIX Congreso Internacional de Historia de la Ciencia (Zaragoza, 1993) y desde entonces alma mater de encuentros celebrados a lo largo de toda América Latina –, Darwin y el darwinismo desde el sur del sur (Vallejo et al., 2018) reúne las contribuciones de un heterogéneo núcleo de docentes e investigadores en torno a las problemáticas generadas por la irrupción, propagación y recepción del pensamiento evolucionista en el mundo iberoamericano. Leia Mais

A Cruel Pedagogia do Vírus | Boaventura de Souza Santos

A cruel Pedagogia do vírus, livro do sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, lançado neste ano de 2020 pela Editora Almedina, traz de forma reflexiva e oportuna, para o momento em que vivemos, narrativas contemporâneas e resgates históricos que nos levam a habitar outros tempos e espaços, para entendermos melhor a constituição dessa e de outras pandemias que têm nos assolados nos últimos tempos, tomando como análise crítica uma das matrizes de inteligibilidade do capitalismo, o neoliberalismo. É um livro-convite à vida que nos leva a refletir sobre nossos comportamentos e relações, abrindo possiblidades para uma nova “normalidade”.

Numa versão compacta, o livro consegue apresentar uma discussão necessária para nossa atual realidade, trazendo questionamentos e reflexões, além de instigar o leitor a pensar e analisar acontecimentos cotidianos e suas repercussões na sociedade, provocando um melhor entendimento da constituição dos fatos, bem como suscitando possibilidades e alternativas perante caminhos a serem tomados. Leia Mais

Santa Catarina em História. Florianópolis, v.14, n.1, 2020.

Editorial V. 14, N. 1 (2020)

  • Fernanda Arno, Mateus Gustavo Coelho
  • PDF

Artigos

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.69, 2020.

Humanidades Digitais

Janeiro – Abril

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial

Angela Maria de Castro Gomes (UNIRIO e PPHPBC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil) […]

Conselho Consultivo

Eduardo França Paiva (UFMG, Belo Horizonte, Brasil) […]

Assistente Editorial

Deivison Amaral

Secretário

Taynã Martins Ribeiro

Editoração Eletrônica/Capa

Algo+ Soluções Editoriais

Revisão

Algo+ Soluções Editoriais

Pareceristas ad hoc

Afonso de Albuquerque (UFF), […]

Publicado: 31-01-2020

Edição completa

 PDF

Editorial

Humanidades digitais

Celso Castro |  PDF

Entrevistas

Entrevista com Matthew Connelly

Celso Castro, Arbel Griner |  PDF (English)

Colaboração Especial

Desafios e responsabilidades das humanidades digitais: preservar a memória, valorizar o patrimônio, promover e disseminar o conhecimento. O programa Memória para Todos

Maria Fernanda Rollo |  PDF

Artigos

Narrativas históricas em disputa: um estudo de caso no YouTube

Odir Fontoura |  PDF

Humanidades digitais e diáspora africana: questões éticas e metodológicas na elaboração de uma base de dados sobre a população escravizada de Mariana (século XVIII)

Aldair Rodrigues |  PDF

Portugal Builds: uma plataforma digital para a história da construção em Portugal nos séculos XIX e XX

João Mascarenhas Mateus, Ivo Veiga |  PDF

Novidades no front: experiências com humanidades digitais em um curso de história na periferia da Grande São Paulo

Luis Antonio Coelho Ferla, Luís Filipe Silvério Lima, Bruno Feitler |  PDF

Ser imortal diante do fim do mundo: corpo, ciberutopia e transcendência

Alana Soares Albuquerque |  PDF

Explorando os potenciais da história digital: a experiência do Centro de Documentação e Imagem da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – campus de Nova Iguaçu

Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, Jean Rodrigues Sales, Alvaro Pereira do Nascimento, Alexandre Fortes |  PDF

Avatares: o maravilhoso e o estranho no Second Life

Laura Graziela Gomes |  PDF

História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica.

Eric Brasil, Leonardo Fernandes Nascimento |  PDF

Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente / Timothy Snyder

No pensamento político moderno, coube a Nicolau Maquiavel expor a importância de compreender a natureza da tirania. O pensador florentino desferiu suas argutas críticas ao príncipe bárbaro, inimigo das artes, destruidor das religiões, inimigo das letras e da virtù. Nesta análise, Maquiavel prorrompeu seu julgamento ao qualificar o tirano numa espécie de licencioso, oposto ao homem político, em que a virtù opera nele práticas violentas, mas ele não se deixa cegar pelo poder ao ponto de perder de vista a glória e o reconhecimento dos homens. Não me parece distante pensar nas questões da tirania contemporânea aos problemas diagnosticados pelo autor de O príncipe.

Daí a importância da reflexão do historiador Timothy David Snyder, a respeito da tirania no século XX como lição para o presente. Assim, pensar o impacto histórico dos regimes tirânicos ao longo do último século, tornou-se um ato ético, pois os inúmeros revisionismos historiográficos dos regimes de exceção, sinalizam para a urgência inequívoca deste objeto de estudo. Inclusive ao pensar “o longo século XX”, que inaugurou aquilo que Walter Benjamin denominou de “estado de exceção” permanente. E que também, Hannah Arendt ao tratar dos totalitarismos, vinculou as violações aos direitos humanos enquanto instrumentos de violência onipresentes; estes totalitarismos também foram utilizados, com frequência e insistência, na modernidade nas irrupções das guerras mundiais e revoluções (ARENDT, 2013, P. 11-13). Aqui seria oportuno pensar e atualizar as sincronias inferida por Arendt no prefácio do livro Origens do Totalitarismo (1950), em que denominou de “otimismo temerário” e, também, no “desespero temerário, os seus sentimentos políticos do mundo pós totalitarismo. Leia Mais

Histórias de vida de educadores/as sociais em pesquisa narrativa (auto)biográfica | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

A vida só é possível reinventada…

Cecília Meireles (2001)1

A proposição do presente Dossiê inscrevese em movimentos diversos. Quando iniciamos o processo de organização, a vida e seus desafios corriam em intensos acontecimentos na política, na educação e no cotidiano do trabalho de professores/as e educadores/as sociais. A etapa de sua finalização, entretanto, se colocou para nós em meio à perplexidade da maior crise humanitária já vista pelas últimas gerações da qual não sairemos ilesos, não sairemos os mesmos. O que fazemos, lemos, organizamos traz a marca do que nos atravessa e é assim que nos colocamos frente aos textos que aqui apresentamos e que tematizam a vida. A vida de mulheres e homens comuns, ordinários no dizer de Certeau2, alguns com grande referência entre nós como Anísio Teixeira, mas todos igualmente destacados educadores, na acepção de Abrahão (2001, 2018)3. Vidas autobio-grafadas que, no limite da luta pela (re) existência física, emocional, profissional nos fazem, ao menos, dois convites: o da permanente reinvenção da vida e de sua também permanente narrativa como caminho coletivo de reafirmação das lutas que nos movem. Leia Mais

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.70, 2020.

Gênero e História

Maio – Agosto

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial

Angela Maria de Castro Gomes (UNIRIO e PPHPBC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil) […]

Conselho Consultivo

Eduardo França Paiva (UFMG, Belo Horizonte, Brasil) […] (UFRGS, Porto Alegre, Brasil)

Secretário

Taynã Martins Ribeiro

Editoração Eletrônica/Capa

Zeppelini Publishers

Revisão

Zeppelini Publishers

Pareceristas ad hoc

Aline Leal Barbosa (PUC-RIO) […]

Publicado: 26-05-2020

Edição completa

 PDF

Editorial

Gênero e História

Alejandra Josiowicz |  PDF

Entrevistas

SIMPÓSIO: CINCO QUESTÕES SOBRE OS ESTUDOS DE GÊNERO NA AMÉRICA LATINA

Alejandra Josiowicz |  PDF

Colaboração Especial

Gabriela Leite e mudanças nas práticas discursivas sobre prostituição no Brasil

Aparecida Fonseca Moraes |  PDF

Operación Araña: reflexões sobre como uma intervenção performática no metrô de Buenos Aires pode ajudar a repensar o ativismo feminista

Mariela Méndez |  PDF (English)

Relações de gênero, infância e assistência social: registros sobre meninas acolhidas no Asilo de Órfãs São Vicente de Paulo (Florianópolis, Santa Catarina, 1904–1930)

Silvia Maria Fávero Arend, Chirley Beatriz da Silva Vieira |  PDF

Artigos

Literatura antimordaça. Escritoras e escritas silenciadas durante o franquismo. um estudo pela perspectiva de gênero

Gabriela de Lima Grecco, Sara Martín Gutiérrez |  PDF

“Ato sem perdão”: justiça de transição, políticas de memória e reparação às mulheres vítimas de violência de gênero durante a ditadura militar brasileira

Adrianna Cristina Lopes Setemy |  PDF

Mulheres e criação pornô-erótica: efeitos da autoria feminina na imprensa de gênero alegre da Belle Époque imoral carioca.

Marina Vieira de Carvalho |  PDF

Uma “herdeira infiel” no início da sociedade de massa, Victoria Ocampo, Argentina, 1920

María Soledad González |  PDF (Español (España))

Psiquiatria e naturalização do crime passional no Rio de Janeiro da década de 1930

Eliza Teixeira Toledo, Allister Teixeira Dias |  PDF

Gênero e conhecimento: um diálogo entre o pensamento de Flora Tristan e Harriet Martineau

Verônica Toste Daflon, Luna Ribeiro Campos |  PDF

Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.71, 2020.

Revolução de 30

Setembro – Dezembro

Editores

Bernardo Borges Buarque de Hollanda, João Marcelo Ehlert Maia e Thais Continentino Blank (professores doutores e pesquisadores do CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil)

Conselho Editorial

Angela Maria de Castro Gomes (UNIRIO e PPHPBC/FGV, Rio de Janeiro, Brasil) […]

Conselho Consultivo

Eduardo França Paiva (UFMG, Belo Horizonte, Brasil) […]

Secretário

Taynã Martins Ribeiro

Editoração Eletrônica/Capa

Zeppelini Publishers

Revisão

Zeppelini Publishers

Pareceristas ad hoc

Adriana Barreto (UFRJ) […]

Publicado: 04-09-2020

Edição completa

 PDF

Editorial

Revolução de 1930

Marco Aurélio Vannucchi |  PDF

Colaboração Especial

A leniência e Vargas: falas da História

Elizabeth Cancelli |  PDF

Contra o liberalismo e o comunismo: uma democracia autoritária

Marly Vianna |  PDF

O Reino social de Cristo e a Constituição orgânica da nação: das encíclicas de Leão XIII ao pensamento católico brasileiro do início dos anos trinta

Andrei Koerner |  PDF

Artigos

Revolução nas políticas públicas: a institucionalização das mudanças na economia, de 1930 a 1945

Antonio Lassance |  PDF

Cidadania regulada e Era Vargas: a interpretação de Wanderley Guilherme dos Santos e sua fortuna crítica

Marcelo Sevaybricker Moreira, Ronaldo Teodoro dos Santos |  PDF

Alberto Pasqualini e Getúlio Vargas: revisitando interpretações

Douglas Souza Angeli |  PDF

Insurgentes incendeiam a cidade da Bahia. O quebra-bondes e a Revolução de 30

Antonio Luigi Negro, Jonas Brito |  PDF

O Código Eleitoral de 1932 e as eleições da Era Vargas: um passo na direção da democracia?

Jaqueline Porto Zulini, Paolo Ricci |  PDF

Das armas às urnas: a participação dos coronéis da Bahia na Revolução de 1930

Eliana Evangelista Batista |  PDF

Os anos trinta nas memórias e no arquivo de Paulo Duarte: uma cultura política de oposição a Getúlio Vargas

Carolina Soares Sousa |  PDF

Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade / Caroline S. Bauer

Uma linha do tempo em sentido crescente percorre a quarta capa em direção à capa, com início no ano do golpe, 1964, e fim no ano da publicação, 2017. Acima, a questão: Como será o passado? A pergunta incomoda pelo óbvio: como empregar um verbo no futuro para refletir sobre o que já foi? Interessa à autora, Caroline Silveira Bauer, investigar como um órgão de Estado, no caso a Comissão Nacional da Verdade (CNV), lançou uma narrativa capaz (ou não) de pacificar interpretações a respeito do complexo passado da ditadura, alvo de concepções opostas. Trata-se de um passado vivido, mas também relatado – o que, no futuro, entender-se-á sobre este passado? É dessa maneira que o debate proposto pela professora de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chega a um considerável número de acadêmicos dedicados a estudar o momento pós-ditadura no Brasil. A publicação é fruto do projeto “Um estudo sobre os usos políticos do passado através dos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade (Brasil 2008-2014)”, que esteve em atividade entre 2014 – ano da publicação do relatório da CNV – e 2017.

A obra localiza-se em um contexto de notório interesse da academia sobre a recente experiência brasileira de uma comissão da verdade e, assim como em outras obras, questiona as potencialidades e os limites desse recurso como política de Estado que visava a superação de um passado de exceção. Trata-se, nesse caso, de uma incursão profunda nas teorias que se dedicam a pensar o lugar da memória, da verdade e da narrativa em relação a eventos traumáticos, ao mesmo tempo em que localiza o caso brasileiro – suas disputas, imprecisões e críticas à CNV – em diálogo com a literatura nacional e estrangeira. Acima de tudo, o livro é um olhar a partir da historiografia, que mira para uma narrativa que mobiliza temporalidades e noções de história, mesmo sem se inscrever no campo da disciplina em questão. Desde essa perspepctiva, Bauer oferece uma análise sobre a CNV, que demonstra como o órgão se comprometeu a alicerçar em solo movediço, uma interpretação de caráter incontestável sobre o passado. Movediço, pois despreza a possibilidade de reinterpretação de fenômenos históricos, compreendendo tempo como categoria fixa (o que passou, passou e há uma verdade sobre o que ocorreu, da mesma maneira como o futuro parece ser controlável – nele seria possível imprimir uma narrativa socialmente aceita, pacificada, sobre o passado). No decorrer da obra, a autora adiciona elementos que complexificam as posições aparentemente ingênuas da Comissão em relação à maneira como percebe a história: volta-se às disputas de projetos, ao negacionismo, à continuidade do Estado violento e à múltipla dimensão temporal de um passado que não se sabe se passou e como se inscreverá no futuro.

Para defesa dessa tese, o livro divide-se em uma introdução e três capítulos e se inicia com a discussão sobre como a historiografia brasileira sobre a `ditadura civilmilitar` tem perdido sua “inocência epistêmica”, e, assim, promovido trabalhos com criticidade no que compete à dimensão ética e política da análise historiográfica.

Prepara-se, com isso, solo para pousar as questões principais do livro, centradas em indagar como será o passado, nas omissões e silêncios prováveis de serem encontrados na ideia da CNV sobre a ditadura, bem como nas percepções sobre história que emergem do relatório produzido pela Comissão. Ao tratar questões presentes, a historiadora visita acontecimentos fundantes da ótica política sobre o tema, com destaque à lei de anistia (1979) e à ideia de cordialidade e esquecimento que tangenciam o marco legal. Essas características são tratadas pela autora como fenômenos que não se encerraram, que se dirigem para o futuro e demarcam fundamentalmente o contexto em que a CNV se originou.

Analisar a atuação da CNV como marco inicial de um processo desde o olhar de uma historiadora significou, neste livro, pensar também sobre o envolvimento de profissionais da área no interior desta Comissão, com atenção ao aprofundamento de reflexões oriundas das tensões história versus justiça, apredizado versus pena, historiadores versus juízes e tempo da história versus tempo do direito. Em uma imersão no debate teórico, o primeiro capítulo, “História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade”, percorre os últimos anos do Cone Sul, marcados pelas crescentes iniciativas no campo das políticas públicas de memória ensejadas em governos progressistas. O texto adentra também à esfera teórica e metodológica, passa pelo papel da história em relação a passados traumáticos – considerando as variadas concepções sobre o que se entende por história -, e questiona o papel da história dentro da lógica da necessidade de reparação da experiência-limite. Dessa forma, o capítulo inicial da obra é composto por uma carga de reflexão assentada na teoria da história, marcado pela mobilização de referências que vão desde clássicos dedicados a temas fundantes nas Humanidades, como Paul Ricoeur e Theodor Adorno, até expoentes da nova geração na literatura sobre memória, a exemplo de Berber Bevernage.

Na segunda parte do livro, são abordadas as noções de tempo, passado-presentefuturo, e de suas durabilidades para tratar o caráter plural das experiências brasileiras em relação ao seu passado traumático. “As múltiplas temporalidades nos debates sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade” trabalha com a diferenciação entre o tempo do violador e o tempo da vítima (Bevernage), tensão na qual residiria, de um lado, um passado que passou e que deve ficar inerte e fechado e, de outro, um passado que não passa e que prescinde de ruptura. Sob a polaridade, coloca-se a “ideologia da reconciliação” e os obstáculos do silêncio e do esquecimento, presentes no caso brasileiro, frente a uma transição pactuada e limitante em relação às expectativas para o futuro.

Assim, quando o Estado assume a posição de mediar a reconciliação visa-se o futuro por meio de ações institucionais do presente. O caso da CNV é tratado a partir da ideia de “políticas de memória”, de onde nasce a reflexão sobre a vítima, seu sofrimento e seu direito, e sobre a instrumentalização do sofrimento e os eventuais abusos de memória.

É apenas no final do capítulo que se inicia, de fato, a análise de fontes relacionadas à Comissão, a partir dos discursos parlamentares durante as discussões para adoção de sua lei. Os debates são exibidos ancorados na ideia de disputa pela memória e suas nuances temporais: algumas olham para o futuro, enquanto outras, para o passado. Ao encarar o tom de oficialidade da CNV e sua expectativa em consagrar um relato e deslegitimar outros, aborda-se, ainda, “O que (não) pode ser dito”, momento em que se evidencia valores pacificados no âmbito do discurso – como a defesa da democracia – e valores em disputa – como a denúncia sobre práticas violentas no tempo presente.

O livro é finalizado com análise sobre “O relatório da CNV e o futuro da memória”, indagando o teor da narrativa oficial e sua expectativa de se fixar na memória futura sobre o tema. Para isso, Bauer voltou-se primeiramente para as grandes questões que atribuem identidade ao relatório: a narrativa que estabelceria a verdade ao tom ‘história como mestra da vida’, exemplar, mas sem confrontos, apaziguadora com base em critérios jurídicos, sobretudo, na lei de anistia. A expectativa é quebrada, no entanto, quando se mostra que o projeto de apaziguar não foi bem sucedido, já que tanto as Forças Armadas criticaram o relatório por seu perfil `revanchista` quanto familiares de desaparecidos o consideraram insuficiente. Com uso do artifício de réquiem, a autora finaliza o livro sem conclusão, com espaço para evidenciar que toda trajetória da CNV se comprometia principalmente com o futuro e com a pós-memória em seu potencial de transmissão geracional.

Como será o passado?, tal qual expresso inicialmente, volta-se justamente para intersecção passado-futuro e sobre as expectativas frustradas de um órgão que partia da premissa de irreversibilidade histórica. O livro possibilita, assim, que se questione em que medida essa expectativa restringiu-se ao Estado (ou, ao menos a um órgão estatal) ou foi compartilhada por um setor da academia dedicado à pesquisa sobre esse tema. A opção por não oferecer uma conclusão fechada a respeito do fenômeno e sim evidenciar fragilidades e características do processo, abre espaço para a necessidade de complementações e revisões das teses apresentadas no livro e, assim, pacifica-se com a crítica dirigida à CNV: nenhuma interpretação sobre nenhum fenômeno é irreversível, principalmente considerando as tensões políticas que o permeia. Eis a grande contribuição da historiografia nesta análise.

Notas

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

Paula Franco – Doutoranda em História na UnB. E-mail: paulafranco.historia@gmail.com.


BAUER, Caroline Silveira. Como será o passado? História, historiadores e Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco Editorial, 2017. Resenha de: FRANCO, Paula. A contribuição da História para o passado ou para o futuro. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.586-588, jan./jun., 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

COWLLING Camillia (Aut), Concebendo a liberdade: mulheres de cor/ gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro (T), GEREMIAS Patrícia Ramos (Trad), PENNA Clemente Penna (Trad), Editora da Unicamp (E), REIS Laura Junqueira de Mello (Res), Gênero, Agência escrava, Negociação Abolição da escravidão, Cidade de Havana, Cidade do Rio de Janeiro, Brasil, Cuba, Século 19, Em Tempo de História (ETH), Século 19, América

Camillia Cowlling é uma historiadora inglesa formada na Universidade de Oxford, realizou seu doutorado no Instituto de Estudos Sobre Escravidão, na Universidade de Nottingham. Atualmente é professora de história latino-americana na Universidade de Warwick. O foco de sua pesquisa é a escravidão e abolição na América latina, especialmente em Cuba e no Brasil. Fruto de suas investigações, lançou em 2013 o livro Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro, sua obra foi traduzida para o português e publicado pela editora da Unicamp, em 2018.

A primazia do livro Concebendo a liberdade está, além de conferir um agenciamento social às mulheres escravizadas em Havana e no Rio de Janeiro, em realizar uma pesquisa partindo de uma perspectiva transnacional – ou podemos chamar também de transatlântica – entre duas das grandes cidades que, por meio da escravidão, cresceram e se desenvolveram ao longo do século XIX. Diante disso, apesar da autora utilizar fontes que já haviam sido investigadas, propõe uma obra pautada em um novo sentido. Dessa forma, o livro foi baseado a partir desses diversos aspectos referenciais que são explorados em sua narrativa.

O trabalho nos remete à perspectiva adotada por Sidney Chalhoub na obra Visões da Liberdade. Ambos os autores tomaram como aporte teórico a histórica social e buscaram resgatar a agência dos sujeitos e entendê-la a partir de suas experiências. A historiadora fez uso das mesmas fontes que Chalhoub, trabalhou em sentido próximo a este, no entanto, pensando a condição feminina. (CHALHOUB, 1990). Nesse sentido, a obra de Cowlling trabalha com diversos aspectos referentes à escravidão e a condição das mulheres negras nesse período, como: agência escrava, ação dos sujeitos, maternidade, feminilidade, gênero, entre outros.

O conceito de transnacionalidade, atualmente em pauta na historiografia é explorado pela historiadora inglesa, uma vez que ela pensa a emancipação gradual repensando o conceito de maternidade no Brasil e em Cuba. Ao analisar os dois países de forma comparativa, [1] investiga como a mesma situação ocasionou respostas parecidas em lugares diferentes.

Destacamos que a escolha por esses dois países não foi arbitrária. Cuba e Brasil foram os dois últimos países a abolir a escravidão e agiram de modo semelhante nos processos que resultaram na abolição, [2] a exemplo da Lei Moret, em Cuba, sancionada em 1870, e a chamada Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, no Brasil, em 1871. Ambas as leis determinavam a liberdade do ventre, ou seja, a partir dessas leis os filhos das escravas nasceriam livres; mas as mães permaneceriam escravas.

Nessas condições, Camillia Cowlling indica que tanto as escravas brasileiras como as cubanas se utilizavam de estratégias previstas no sistema legislativo para conseguirem a liberdade de seus filhos, portanto, sabiam usar as leis a seu favor. Além disso, a autora percebeu que as mães escravas passavam a agenciar sua própria liberdade utilizando-se da retórica da maternidade [3], a fim de que tivessem suas vozes escutadas, contando dessa forma com a piedade e a caridade dos que as ouviam. Tal retórica era uma estratégia de discurso. Assim, a partir da promulgação de tais leis, as mulheres negras passaram ao centro da discussão a respeito da abolição. A gestação tornou-se então um campo de disputas, e as mulheres souberam utilizar dos argumentos expostos em tais processos com o intuito de conseguirem a almejada liberdade.

Logo, podemos compreender que o processo de abolição não pode ser encarado como um projeto desenvolvido a partir de uma concessão dos Senhores, mas sim como uma consequência de diversas reivindicações elaboradas por mulheres escravizadas que, buscando argumentos e meios legais, fizeram uso de algumas alternativas cabíveis, estabelecendo assim, novas formas de alcançar a liberdade. No mais, a autora evidencia ainda que as disputas legais enfrentadas pelas mulheres negras eram travadas na dimensão cotidiana da vida e que não eram ações apenas individuais, ou seja, tais movimentos de luta pela liberdade eram fruto de redes de apoio e comunicação entre essas mulheres.

Para chegar a essa conclusão, Cowlling empreendeu uma série de buscas em muitos arquivos, principalmente, brasileiros e cubanos a fim de identificar a ação, experiência e agência dessas mulheres. Com o domínio do idioma espanhol e da língua portuguesa, a autora analisou várias fontes, como: jornais, inventários, relatórios consulares, poemas, novelas, registros de sociedades abolicionistas, relatos de viajantes, censos populacionais e ações criminais.

Na análise da documentação oficial relacionados a processos judiciais, as então chamadas “ações de liberdade”, Cowlling percebeu que a maioria das requerentes que buscavam justiça no processo de emancipação gradual eram as mulheres. Constatou também que estas sabiam utilizar de preceitos estabelecidos em lei e, além de usarem estrategicamente dos mesmos, negociavam suas liberdades com seus Senhores.

Portanto, segundo a autora, o movimento de algumas mulheres escravizadas em Cuba e no Brasil foi fundamental para o processo final da abolição, que ocorreu em 1886 e 1888, respectivamente.

Outra característica do livro é o uso das narrativas dos próprios atores históricos. Por exemplo, elaborando um texto mais fluído, já no início da obra, Cowlling traz a história de duas mulheres: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. As trajetórias delas se assemelham no que se refere a tipos de iniciativas, objetivos e circunstâncias experimentadas por ambas, apesar de viverem em lugares diferentes – uma em Havana e a outra no Rio de Janeiro. Ao longo do livro, a autora vai descrevendo o caminho percorrido por essas mulheres e, ao final, apresenta a conclusão dos processos judiciais: as duas mulheres não conseguiram vitória na justiça, mas representam a dinâmica e ação das mulheres negras no Brasil e em Cuba, ao final do século XIX, e a relação das mesmas com o processo de abolição.

A diferença entre a feminilidade branca e a feminilidade negra também é um ponto fundamental destacado na obra. Às mulheres oitocentistas caberia o papel de mãe, mas até que ponto esse papel também se encaixava na condição das mulheres negras? Josepha de Moraes, por exemplo, ao solicitar a liberdade para sua filha, nascida após a Lei do Ventre Livre – mas ainda servindo ao antigo dono de sua mãe, conforme explicitado na lei, – teve seu pedido negado em prol do fazendeiro. Nesse caso, a justiça alegou que o Senhor teria mais condições de sustentar e dar educação à filha de Josepha do que a mãe, considerando a pouca instrução que as escravas normalmente recebiam. Assim, para as mulheres negras, nem sempre a função concernente à maternidade era permitida. Portanto, como destaca a autora, as mulheres negras pertenciam a um lugar de não-mulher construído pela sociedade paternalista vigente no Oitocentos.

Na última parte da obra, a historiadora explorou o tema da cidadania e escravidão. Cowlling levantou o questionamento: os escravos, uma vez livres, poderiam usufruir de direitos de cidadania e participar da vida política? Sabemos que, enquanto livres, a condição de vida desses sujeitos foi modificada, no entanto, mesmo após o processo de abolição, os “ex-escravos” não adquiriram cidadania plena no Brasil, uma incorporação foi mais formal do que real.” (CARVALHO, 2001, 13). Ou seja, mesmo usufruindo de uma liberdade formal, não lhes era garantido uma participação efetiva em situações cujo o direito à cidadania era capital.

Ainda sobre o último capítulo, apresentando pontos referentes ao pós abolição, a autora deixa evidente que as ações elaboradas por essas mulheres eram fundamentais para que elas se sentissem cidadãs: “apesar das mulheres estarem excluídas de outros atributos da cidadania, como o direito ao voto ou ao serviço militar, o direito de peticionar ganharia uma importância política relevante em suas mãos.” (COWLLING, 2018, n.p). Tal discussão concernente a cidadania e escravidão, presente no último trecho do livro, da margem para que novas pesquisas sejam elaboradas tomando como base essa perspectiva de análise.

O que Cowlling conclui com esse livro, para além da agência escrava feminina no século XIX, é que a escravidão como conceito foi, assim como diversos acontecimentos, atravessado pelas relações de gênero: “a escravidão ajudou a moldar ativamente as relações de poder e gênero tanto na sociedade escravista como na sociedade livre.” (COWLLING, 2018, n.p).

Isto foi evidenciado nas teorias tomadas a partir dessa temática, assim como na prática, na vida cotidiana analisada por meio da documentação. Logo, a obra nos permite perceber que é possível (e é preciso) levar o gênero e as mulheres em consideração ao fazer análise das mais diversas fontes históricas, uma vez que a escravidão também foi atravessada por relações de poder determinadas pelo gênero.

Notas

  1. Apesar de analisá-los de forma comparativa, a autora firma que não faz uso de uma metodologia comparativa.
  2. Os dois países, juntamente com o Sul dos Estados Unidos, integraram aquilo que foi chamado de Segunda Escravidão, teoria que afirma que após uma série de abolições, a escravidão foi tomando um novo formato e poucos países ainda eram escravistas, apenas: Brasil, Cuba e Estados Unidos. (TOMICH, 2011).
  3. O texto de José Murilo de Carvalho sobre retórica nos auxilia a compreender esse termo. Se encaramos a retórica a partir do exposto no artigo de Carvalho, conseguimos compreender uma certa autoridade que esse conceito buscava transmitir, logo, as mulheres se utilizavam de tais noções para se mostrarem aptas a criarem seus filhos. No entanto, na sociedade patriarcal Oitocentista, por vezes, apenas a retórica da maternidade e as brechas nas leis, não eram suficientes. (CARVALHO, 2000).

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Revista Topoi. Rio de Janeiro, nº01, p.123-152, jan-dez. 2000.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: Uma história das últimas décadas de escravidão na Corte. São Paulo, Cia. das Letras, 1990.

COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018.

TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão: trabalho, capital e economia mundial.

Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2011.

Laura Junqueira de Mello Reis – Doutoranda em História na UERJ. E-mail: laurajunqueiramreis@gmail.com.


COWLLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Trad. Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. Resenha de: REIS, Laura Junqueira de Mello. Gênero, agência escrava e estratégias de negociação: processos de abolição em Havana e Rio de Janeiro, século XIX. Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.36, p.582-585, 2020. Acessar publicação original. [IF].

 

 

 

 

NOGUEIRA Natania Aparecida da Silva (Aut), As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras (T), ASPAS (E), MENEZES NETO, Geraldo Magella de (Res), Em Tempo de História (ETH), História em Quadrinhos, Escola, França, Japão, Estados Unidos, Canadá, Brasil, Ensino de História

Século 20, Século 21, América, Ásia, Europa

As histórias em quadrinhos (HQs), surgidas no final do século XIX com a publicação de The Yellow Kid nos jornais norte-americanos, teve inicialmente grande rejeição por parte de pais e educadores ao longo do século XX. Um marco importante dessa rejeição foi a publicação, em 1954, de A sedução dos inocentes, do psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham, que denunciava os quadrinhos como uma grande ameaça à juventude norte-americana tentando provar “como as crianças que recebiam influências dos quadrinhos apresentavam as mais variadas anomalias de comportamento, tornando-se cidadãos desajustados na sociedade. Essa rejeição felizmente foi diminuindo com tempo. Os quadrinhos passaram a ser vistos com grande potencial pedagógico nas escolas, contribuindo, por exemplo, na formação de novos leitores. No Brasil, várias obras foram publicadas a partir da virada do século XXI, discutindo formas de utilização dos quadrinhos na escola e também no ensino de História.2 “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, de Natania Aparecida da Silva Nogueira, é mais uma obra que vem somar nessa discussão sobre as potencialidades das HQ’s no ensino. A autora possui Mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira (2015), sendo atualmente doutoranda em História pela mesma instituição. É professora do Ensino Fundamental no município de Leopoldina, Minas Gerais; sócia fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), onde atualmente ocupa o cargo de Coordenadora; e membro da Academia Leopoldinense de Letras e Artes (ALLA).3 O livro possui cinco capítulos. Segundo Nogueira, a obra é voltada para o professor e “prioriza a prática da educação, a partir da experiência docente”, refletindo sobre a capacidade criativa dos professores que podem “transformar uma HQ num instrumento de ensino capaz de mudar alguns antigos paradigmas da educação.” (NOGUEIRA, 2017, 15). A autora dialoga com vários pesquisadores dos quadrinhos como Valéria Bari, Waldomiro Vergueiro, Flávio Calazans, Gonçalo Júnior, Edgar Franco, Nobu Chinen, etc.

Os dois primeiros capítulos são uma revisão do panorama das pesquisas e dos usos dos quadrinhos no contexto internacional e brasileiro. No contexto internacional, a autora dialoga com os casos da França, Japão, Estados Unidos e Canadá. No caso brasileiro, a autora aponta que, apesar de haver publicações que remontam ao início do século XX, como Tico-Tico, e da coleção produzida pela Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945, que foi pioneira na produção e edição das HQs dedicadas a temas educacionais, só foram “nos últimos dez anos que as HQs conquistaram um espaço expressivo nos debates acadêmicos e na prática escolar.” (NOGUEIRA, 2017, 50). As HQs foram introduzidas na lista de obras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação (MEC) a partir de 2006.

No terceiro capítulo, “Usando quadrinhos na sala de aula”, a autora observa que é equivocada a visão que considera a leitura das HQs como uma “leitura fácil”. Ao contrário, segundo Nogueira, “é um leitura que envolve uma série de processos mentais e exige domínio de códigos complexos”, sendo “aconselhável que o leitor de quadrinhos comece a ser formado ainda bem jovem.” (NOGUEIRA, 2017, 63-64). Outro equívoco mencionado é o estereótipo que taxa os quadrinhos como “coisa de criança”. Nogueira indica que “existem quadrinhos para todas as idades, sobre todos os assuntos, de gêneros tão variados quanto qualquer outra forma de leitura”, sendo possível, assim, trabalhar com HQs desde “uma classe de educação infantil quanto uma turma de estudantes universitários.” (NOGUEIRA, 2017, 69).

Ainda neste terceiro capítulo, a autora faz cinco sugestões para utilizar os quadrinhos em sala de aula. A primeira sugestão que a autora faz é trabalhar a linguagem dos quadrinhos, conhecendo alguns elementos básicos das HQs, tais como: requadro ou vinheta4; calha ou sarjeta5; recordatório6; balões de fala7; metáforas visuais8; linhas cinéticas ou de movimento9; e onomatopeias10. A segunda sugestão é usar quadrinhos para introduzir temas que serão trabalhados em sala de aula. A autora dá o seguinte exemplo: assim, numa aula de ciências, sobre doenças, por exemplo, o professor pode desejar enfatizar a dengue, por estar presente no cotidiano dos alunos ou por ser um problema grave local. Ele tem em mente selecionar determinada HQ que trata do tema. Se o professor possui quadrinhos suficientes para toda a turma, ele pode promover uma leitura coletiva ou individual. Se ele tem apenas um exemplar, pode selecionar algumas partes, montar uma apostila ou um texto simplificado e trabalhar com os alunos (NOGUEIRA, 2017, 76).

A terceira sugestão é utilizar quadrinhos em atividades (exercícios). Nesta proposta, a autora aconselha o uso de fragmentos de HQs devidamente contextualizados com o enunciado da questão, além do uso de tirinhas. O interessante nesta parte é que a autora comenta casos em que, segundo ela, há mal-uso dos quadrinhos na elaboração de questões, a exemplo de uma questão sobre totalitarismo e Segunda Guerra Mundial na prova de História do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) de 2012, que utilizava a capa da revista do Capitão América de março de 1941. Nogueira questiona o uso da imagem, pois a questão não explora a leitura visual da capa da revista, ignorando seus elementos semânticos. (NOGUEIRA, 2017: 80).

A quarta sugestão é propor a criação de HQs pelos estudantes. Essa atividade é o “coroamento de todo um processo de preparação que começa com a introdução do gênero, o incentivo da leitura e o domínio dos códigos dos quadrinhos pelos alunos” (NOGUEIRA, 2017, 87). A autora chama a atenção que o trabalho deve ser essencialmente realizado sob a supervisão do professor, que deve participar por meio de sugestões e demonstrando interesse pela produção. Por fim, a quinta sugestão de atividade é trabalhar com os alunos o gênero jornalismo em quadrinhos, mais recomendada para alunos do ensino médio e superior. Os professores podem desafiar os alunos a produzirem blogs onde eles desenvolvam matérias no formato de jornal em quadrinhos com temas como política, economia, meio ambiente, violência, etc. Outra proposta dentro do jornal em quadrinhos é a criação de fanzines, um tipo de publicação de caráter amador, sem intenção de lucro, feito pelo simples desejo de fazer circular uma determinada produção literária e/ou artística (NOGUEIRA, 2017, 95).

Nos dois últimos capítulos, “As gibitecas no Brasil” e “Relato de experiência: projeto Gibiteca Escolar”, a autora aborda a iniciativa de criação de gibitecas pelo Brasil, dando ênfase a sua própria experiência como uma das responsáveis pela gibiteca escolar da Escola Municipal Judith Lintz Guedes Machado, em Leopoldina, Minas Gerais. O projeto ganhou do MEC o 3º Prêmio Professores do Brasil no ano de 2008.

Nogueira faz um relato das dificuldades iniciais da formação da gibiteca, mas que com o tempo foi ganhando apoio dos alunos e professores, além da secretaria de educação. A gibiteca também é levada para eventos de rua no sentido de envolver a comunidade, além de realizar eventos acadêmicos com pesquisadores e professores, contribuindo para uma formação continuada. A autora cita depoimentos de professores da escola que veem o projeto da gibiteca escolar como sendo uma experiência positiva no processo de ensino-aprendizagem e envolvimento dos alunos.

Como ressalva em “As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras”, podemos apontar a falta de propostas especificando HQs que podem ser trabalhadas em sala de aula. Durante os capítulos do livro, a autora aborda as HQs de forma geral, não citando exemplos. Uma comparação que podemos fazer é com o livro, bastante conhecido, “Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula”, organizado por Angela Rama e Waldomiro Vergueiro. Neste livro, os autores dos capítulos trazem vários quadrinhos e dizem como o professor pode utilizá-los. Por exemplo, no capítulo “Os quadrinhos nas aulas de História”, Túlio Vilela cita, dentre outras, as HQs de Asterix e Obelix, que podem ser lidas “como um registro da época em que foram criadas, porque, para efeito de humor, são atribuídos aos povos e lugares do passado as características que eles têm nos dias de hoje” (VILELA, 2012, 111). Já Nogueira, embora faça referência à vários estudos e experiências com HQs, não direciona aos professores os quadrinhos que podem servir para determinados conteúdos.

Na sugestão de trabalhar as linguagens dos quadrinhos, ficaria mais claro ao leitor se o livro trouxesse ilustrações de HQs indicando o que é um requadro, um recordatório, os balões de fala, etc. O livro apenas traz as definições de cada um, criando dificuldades de entendimento e visualização de cada um desses elementos básicos dos quadrinhos que, afinal, são essencialmente visuais.

Outra ressalva diz respeito às referências bibliográficas. A maioria dos sites consultados pela autora não estão disponíveis, quando digitamos da forma como o livro indica somos direcionados ao site zipmail. Entendemos que houve um equívoco na forma de referenciar os sites, pois na maioria aparecem como zip.net, não com a sua referência original.

Entretanto, nada disso desabona a obra, que é mais uma contribuição importante para o campo que estuda as relações entre quadrinhos e educação. O grande mérito da obra é o fato da autora trazer a experiência concreta de formação de uma gibiteca em escola pública, demonstrando o papel social de um espaço que estimula a formação de novos leitores. A maioria dos trabalhos publicados sobre quadrinhos na educação, por paradoxal que seja, abordam a questão de forma teórica e não prática, haja vista que em sua maioria são produzidas por professores universitários que não tem a vivência na educação básica. Dessa forma, o leitor, seja professor, aluno, pesquisador ou simplesmente um admirador das histórias em quadrinhos será recompensado com a leitura de uma obra importante que representa o engajamento da autora pelo seu objeto de estudo.

Notas

  1. Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. geraldoneto53@hotmail.com
  2. Ver por exemplo: CALAZANS, Flávio Márcio de Alcântara. História em quadrinhos na escola. São Paulo: Paulus, 2004; RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004; VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. (Orgs.). Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume I: o trabalho com universos ficcionais e fanzines. São Paulo: Criativo, 2013; SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da. (Orgs.) Histórias em quadrinhos e práticas educativas, volume II: os gibis estão na escola, e agora? São Paulo: Criativo, 2015.
  3. Informações sobre a trajetória acadêmica e profissional de Natania Aparecida da Silva Nogueira consultadas na Plataforma Lattes. Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4509802D6 Acesso em: 31 out. 2018.
  4. É a moldura que envolve a cena retratada em cada quadrinho. (NOGUEIRA, 2017: 72).
  5. É o espaço que existe entre dois quadrinhos e que muitas vezes precisa ser preenchido pelo leitor por meio do raciocínio. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  6. É o pequeno painel, algumas vezes de tamanho retangular que aparece no canto do requadro e que faz uma breve narrativa como forma de introduzir ou complementar a cena. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  7. Simbolizam o ato da fala dos personagens. (NOGUEIRA, 2017: 73).
  8. São uma espécie de figuras de linguagem que funcionam como palavras, sintetizando conceitos epnas por meio de uma simples imagem. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  9. São aqueles riscos que indicam movimento. (NOGUEIRA, 2017: 74).
  10. São palavras que representam sons. (NOGUEIRA, 2017: 74).

Referências

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In: RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro. (Orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2012.

Geraldo Magella de Menezes Neto –Doutorando em História pela Universidade Federal do Pará. geraldoneto53@hotmail.com.

NOGUEIRA, Natania Aparecida da Silva. As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras. Leopoldina: ASPAS, 2017. 148p. Resenha de: Em Tempo de História, Brasília, v.1, n.34, p.122-127, jan./jul., 2019. Acessar publicação original. [IF].

SILVA Pedro Ferreira da (Aut), Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (T), Editora Entremares (E), FELIPE Cláudia Tolentino Gonçalves (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Cooperativa, Anarquismo, Sociedade capitalista, Pedro Ferreira da Silva, Portugal, França, Brasil, Século 20 Século 20, América, Europa

O título do livro de Pedro Ferreira da Silva pode parecer equivocado: como conceber a existência de uma cooperativa sem finalidades lucrativas? O subtítulo, no entanto, desfaz o equívoco ao precisar o conteúdo da obra: uma experiência anarquista no interior da sociedade capitalista. É no mínimo intrigante a possibilidade de coexistência entre capitalismo e anarquismo, especialmente para quem encara a experiência libertária de forma banal e preconceituosa. Resenhar Cooperativa sem lucros, portanto, mostra-se uma tarefa necessária por duas razões: poderia apontar os nexos entre cooperativismo e anarquia e ajudar-nos a entender o que motivou a republicação de um livro anarquista de 1958 quase sessenta anos depois.

Perseguido pelo governo salazarista, o anarco-sindicalista português Pedro Ferreira da Silva refugiou-se na França em 1926 e, logo em seguida, mudou-se para o Brasil. Em Portugal, ele foi um dos responsáveis pela publicação do semanário A Comuna, editado na cidade do Porto. Convém mencionar que é o mesmo periódico do qual participava o militante anarquista português Roberto das Neves, antes de sua vinda para o Brasil no início dos anos 1940. No Brasil, Pedro Ferreira associou-se aos anarquistas cariocas e paulistas e, ao final da ditadura varguista, começou a participar efetivamente do periódico Ação Direta (1946-1959), publicado no Rio de Janeiro. Aproveitou o espaço que lhe foi destinado para escrever textos críticos sobre o salazarismo, o sindicalismo e o cooperativismo.

Apesar de desempenhar a função de contador, Pedro Ferreira dedicou-se ao jornalismo e escreveu poemas e livros nas áreas de literatura, crítica social e economia. Dentre suas principais obras, destacam-se: Eu creio na Humanidade (1949); Três enganos sociais: férias, previdência e lucro (1953); Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista (1958). Interessa-nos, particularmente, a última obra mencionada, que edifica um projeto revolucionário cujo veículo seria a cooperativa, entendida como uma arma de luta contra a exploração capitalista e como um caminho para a construção de uma sociedade libertária. Para tanto, o autor reuniu uma série de discussões realizadas no Ação Direta entre os anos de 1947 a 1958.

A linguagem adotada no livro é acessível, abrindo mão das figuras de linguagem desfiladas em outros textos de sua autoria, como em Eu creio na humanidade. A disposição de seus artigos assume claramente ares de “projeto”, uma vez que instrui sobre o funcionamento do que seria uma sociedade libertária estruturada por cooperativas sem lucros. Convém mencionar que o autor acredita que a anarquia não se desenvolveria de imediato, carecendo de estratégias intermediárias que pudessem educar os homens, tornando os princípios libertários atrativos e cativantes. A questão a se perguntar é: de que maneira a cooperativa atenderia esse propósito?

Não nos parece conveniente retomar minuciosamente as particularidades de cada um dos 32 artigos do livro escritos pelo autor, mas esboçar a ideia geral que confere ares de unidade ao conjunto. O cooperativismo pensado por Pedro Ferreira remete a uma experiência anárquica dentro da sociedade capitalista e dependeria da iniciativa do indivíduo e de seu esforço associativo. No entanto, o sistema cooperativo corrente deveria passar por mudanças significativas, para se ver livre dos vícios capitalistas. A princípio, o autor declara que não acredita na violência e retoma o conceito de ação direta, definido como ato de perseguir uma finalidade trilhando “caminhos iluminados, pelos meios limpos, isentos de colaboração suspeita” (p. 17). As cooperativas seriam uma alternativa intermediária, contanto que se livrasse do lucro e se baseasse em preços justos e acessíveis.

Pedro Ferreira insiste na necessidade de uma cooperação ampliada, multiplicada, que eliminaria a especulação, os salários e concentrar-se-ia no benefício dos consumidores. Note-se que, sem se confundir com a anarquia, o cooperativismo reproduz alguns de seus postulados, já que efetua “a melhoria econômica da classe proletária, a assimilação social e o enfraquecimento dos preconceitos de classe” (p. 27). O autor ressalta a necessidade de a sociedade se livrar dos “intermediários”, dos comerciantes que lucram às custas do consumidor: são eles que, “na indústria como no comércio, o cooperativismo combate, dispensa e destrói” (p. 31). Parece-nos que uma das lutas mais recorrentes nos escritos de Pedro Ferreira é direcionada contra a ideia de o salário ser a finalidade última do trabalhador, e não a produção. Afinal, ele “é um elemento econômico decorrente do trabalho e não um objetivo a conquistar por meio do trabalho” (p. 35). Por outras palavras, se a intenção do trabalho industrializado é o lucro, no caso do trabalho cooperativista, o intuito é a produção. O problema, portanto, é associado à sociedade, pensada como “edifício formado de material ruim”. Uma vez que “matéria ruim não pode fazer edifício bom”, é preciso transformá-la, mas de forma não abrupta, já que a retirada do homem de um edifício ruim e sua introdução num edifício bom não mudaria, de imediato, o próprio homem.

O autor pensa o cooperativismo como estágio necessário para a reformulação do “processo mental” capaz de “fazer com que o homem crie, em volta de si, o ambiente anarquista” (p. 46). Através dele, seria possível desenvolver um “espírito associativo”, a solidariedade e a ajuda mútua. Trata-se de uma “arma revolucionária”, imunizada contra “o contágio da cobiça”, mas que, inicialmente, estaria associada ao capital: só com o tempo o cordão umbilical seria rompido. Para sua administração, seria necessário um “fundo social”, que reuniria um montante indispensável para garantir as instalações, móveis, imóveis etc. Quanto maior fosse a participação, mais eficaz se tornaria a cooperativa. Além do fundo social, haveria um fundo de manutenção e desenvolvimento, para ampliação das operações sociais através de materiais que permitissem sua administração. Não há lugar para os juros. O autor afirma que “o sonho pode estar dentro de nós, mas em torno de nós há a realidade e nela se movem nossas vidas, nela se animam os nossos gestos e se realizam as nossas obras” (p. 73). É por essa razão que seria preciso reter um excedente quando da definição dos preços dos produtos e de sua distribuição, para “cobrir possíveis erros de cálculo, desgastes ou perecimentos imprevistos de mercadorias” (p. 74). Pedro Ferreira afirma que a cooperativa não pretende conferir lucro a seus associados, pois não alimenta finalidades mercantilistas. Isso não exclui, no entanto, “a margem necessária ao funcionamento da organização e convenientes reservas” (p. 75).

De um lado, o autor pensa as cooperativas de produção, que tentam conferir aos operários a possibilidade de “trabalhar por sua conta”, sem submeter-se à exploração patronal. As cooperativas de consumo, por sua vez, tendem à universalidade, já que buscam contemplar os consumidores de forma geral. Sendo assim, elas têm o mérito não apenas de eliminar o “intermediário no comércio improdutivo” (p. 100), mas também de aproximar os consumidores de diversas classes, “num movimento comum de defesa econômica, que por sua vez lhes há de inspirar outras formas de cooperação social” (p. 100). Há, portanto, um efeito pedagógico a subsidiar as cooperativas, como o autor admite na passagem abaixo:

O cooperativismo é, pois, um sistema econômico-social de função altamente educativa, e como tal merece maior atenção dos anarquistas, que não o sejam apenas de modo passivamente platônico ou furiosamente arrasador. A ação das cooperativas sem lucros, no terreno industrial ou nas redes distribuidoras dos produtos, leva à emancipação do trabalhador e ao fim do parasitismo comercial; faz converter maior número de braços às tarefas produtivas e semeia o espírito de ajuda, a união e o entendimento comum. Na sua prática, isenta de egoísmo, pode alimentar-se largamente o ideal anarquista e exercitar-se com progressivo êxito mais de um preceito da sociedade livre (pp. 100-101).

Interessa-nos, por agora, retomar a noção de intercooperativismo, que ajuda a compreender a diferença entre liberdade e arbítrio. A liberdade das cooperativas não implica ausência de obrigações que elas devem manter entre si. O homem é livre, mas seu arbítrio “tem de obedecer ao interesse comum” (p. 107). Para Pedro Ferreira, o homem apresenta tendências e impulsos naturais que o levam à sociabilidade, ou seja, há uma “necessidade de cooperação”:

Firmada a mentalidade cooperativista, cada sociedade incorporará esse espírito e passará a representa-lo em relação às sociedades congêneres. Então se estabelecerá o ponto de partida para o intercooperativismo, ou seja, a cooperação entre as sociedades, segundo sua natureza, espécie de atividade ou região onde se desenvolve a influência de seu funcionamento (p. 108).

Criar-se-á, portanto, “federações de cooperativas”, não para circunscrever a liberdade de cada uma delas, mas para atribuir-lhes a mesma liberdade conferida aos indivíduos. Eis porque a cooperativa pode ser encarada como um instrumento de preparo psicológico e prático e como uma etapa que conduziria à sociedade libertária. No terreno econômico, ela possibilitaria preços mais baixos; no âmbito educacional, ensinaria normas de respeito ao interesse coletivo e combateria a guerra dos preços e a concorrência capitalista; no domínio da moral, incitaria o respeito pelo semelhante; em termos sociais, incentivaria troca de ideias e projetos de aperfeiçoamento comuns, alimentando as relações humanas; já no que se refere ao âmbito profissional, estimularia a técnica e o aperfeiçoamento pessoal, e não a intensificação do volume de trabalho.

Não poderia faltar o incentivo à arte: uma vez vencido o sistema do patronato, a arte poderia ser valorizada não a partir de seus rendimentos financeiros, mas como veículo de estudo e de promoção da cultura. Poder-se-ia estruturar uma cooperativa artística, com programas independentes dos quais participariam artistas e o público.

Por fim, Pedro Ferreira trata da família, uma “comuna dentro da sociedade que condena o comunismo” (p. 123). Ele a encara como um “núcleo social”, como “ponto de partida da associação humana” (p. 127). A família, portanto, seria uma “cooperativa isolada”, que poderia deixar de sê-lo caso se unisse a outras famílias em associações cooperativas. É o que, posteriormente, daria ensejo à “policooperativa”:

A policooperativa é o organismo social completo. É o indivíduo na constituição da sociedade. Dentro dela estão as peças todas indispensáveis à satisfação das necessidades sociais. Se a cooperativa geral compreender seções de todas as atividades humanas, ou pelo menos de todas as atividades necessárias aos indivíduos que a compõem, é naturalmente muito mais fácil a federação das cooperativas e o intercâmbio de suas ações, conforme as conveniências não nacionais, mas regionais (p. 134).

Como se pode ver, o livro de Pedro Ferreira apresenta um encadeamento lógico ao sugerir a cooperativa como uma ferramenta eficaz no combate ao lucro e ao comércio, como estágio necessário à consecução da anarquia. No entanto, é preciso problematizar o lugar que essa obra poderia ocupar no atual cenário histórico a ponto de ter sido reeditada em julho de 2017. Seria uma indicação da fragilidade das cooperativas do século XXI? Uma forma de sugerir a necessidade de cooperação e apoio mútuo na atualidade? Uma tentativa de inspirar o leitor, convencendo-o da necessidade de se pensar alternativas que contrariem a modernidade líquida? A tomar pelo critério da verossimilhança, essas hipóteses parecem válidas, o que torna louvável a iniciativa da editora Entremares e imperativa a leitura o livro, que combate o individualismo pós-moderno com palavras libertárias de um autor que, há mais de 50 anos, fez da escrita um instrumento contra o egoísmo. Será possível que continua eficaz? Há somente um meio de descobrir: boa leitura!

Cláudia Tolentino Gonçalves Felipe – Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: claudiatolentino.ufu@gmail.com.

SILVA, Pedro Ferreira da. Cooperativa sem lucros: uma experiência anarquista dentro da sociedade capitalista. São Paulo: Editora Entremares, 2017. Resenha de: FELIPE, Cláudia Tolentino Gonçalves. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.33, p.295-300, ago./dez., 2018. Acessar publicação original. [IF].

NAVARRO-SWAIN Tania (Aut), O que é lesbianismo (T), Brasiliense (E), LESSA Patrícia (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Lesbianidade, Estudos feministas, História das Mulheres Século 19, Século 20 O livro, O que é lesbianismo, editado pela Brasiliense em 2000, é uma edição de bolso da coleção ‘primeiros passos’, por isso, demonstra uma visão muito particular da autora com um posicionamento intelectual específico ao tema em pauta.

A autora inicia seu livro fazendo uma pequena advertência aos possíveis leitores: “quem estiver vestido no cimento de suas certezas não mergulhe nestas águas” (p. 9), pois a “arrogância dos paradigmas” e o “totalitarismo do senso comum” já tentaram petrificar o tema aqui em debate. O Discurso da autora transita pelas teorizações feministas e foucaultianas fazendo uma divisão do livro em três capítulos. O primeiro capítulo discute os indícios e interpretações da historiografia recuperando as discussões da epistemologia feminista para demonstrar a ‘desordem’ que o sujeito lesbiano causa ao conhecimento comum e científico, por isso, sua ocultação na historiografia tradicional. Com o título: ‘Nosso nome é legião: o espaço vivido’ o segundo capítulo demonstra a presença do sujeito lesbiano na literatura, nas teorizações e nas representações diversas. O último capítulo trata dos ‘Perfis Identitários’, ou seja, trata das atuais discussões sobre identidade empreendidas pelas teorias feministas e foucaultianas, discussões que não aceitam a identidade presa ao sexo e sexualidade e, propositivamente, a autora sugere o nomadismo identitário como contrapartida.

O que a história não diz não existiu é o título que inicia a discussão dos indícios e interpretações em história no primeiro capítulo, onde é problematizado o estatuto histórico, que apegado em modelos fixos, anulou a aparição das lesbianas por representarem uma contradição à “ordem natural da heterossexualidade dominada pelo masculino” (p.13). Cabe ao atual fazer histórico questionar, problematizar, na tentativa de buscar os significados e os valores das condutas humanas esquecidas pelas certezas da história-ciência do século XIX: “a história, dona do tempo, esqueceu que tempo significa transformação, esqueceu a própria história para traçar um só perfil das relações humanas” (p.14). Daí decorre que os indícios da história podem apontar outras culturas e civilizações onde as mulheres amavam-se umas às outras, pois masculino e feminino nem sempre tiveram a mesma conotação (p.16), embora o imaginário ocidental esteja marcado por Adão e Eva, representantes de dois pólos: a imagem de deus e a submissão, a sexualidade naturalizada, binária, formada por relações assimétricas, é também histórica (p.17).

Trabalha com uma concepção de História não-linear onde o papel de historiador é importante, pois seus olhos estão impregnados de valores e crenças atuais, seu papel não é desvendar algo que estava oculto, mas, interpretar os indícios, nos quais os fragmentos do passado atestam o real, segundo interpretações possíveis e as representações que constroem o mundo. A História é, então, mais um discurso, dentre tantos outros, onde os historiadores são mediadores entre o passado e a construção do conhecimento histórico atual. O papel da História é o de questionar, tentar apreender os significados e valores que orientam atos e gestos (p.14).

A heterossexualidade compulsória como regra universal determina os papéis sexuais do verdadeiro masculino e feminino, assim a tolerância quanto às práticas sexuais diversas depende do grau de hegemonia da heterossexualidade (p.17). Os filósofos da Antiguidade Grega são citados como marco entre razão e mito, mas, as práticas sexuais dos mesmos nem sempre são incorporadas aos seus discursos, ocultando-se os sentimentos elevados entre homens. E quanto às mulheres na antiguidade? O silêncio paira sobre a vida das mulheres atenienses, embora o confinamento delas em casa não signifique sua inexistência. A vida das mulheres em Atenas diferencia-se de Esparta, lugar onde elas viviam separadas dos homens.

Em Esparta, Tebas e Siracusa, sabe-se indiretamente, pelos atenienses, que as mulheres tinham maior liberdade, porém, no ocidente cristão a homossexualidade feminina “desaparece da ordem do discurso”, “não se fala, logo não existe” (p.19), pois ao nomeá-las cria-se uma imagem, cria-se uma personagem no imaginário social. Durante o período da Inquisição criase o termo “Sodomitas” para definir as mulheres que viviam ou estabeleciam algum tipo de relação afetiva ou sexual com o mesmo sexo, não possuem um nome nem mesmo direito à existência.

Serão os indícios da História capazes de recuperar essas vidas ocultadas? A oposição entre a representação normativa do feminino e as guerreiras, vistas como mito, por alguns dos grandes nomes da Historiografia, são tomadas como exemplo do apagamento daquilo que é tido como incomum (p. 21-22). O discurso transforma a mulher guerreira em ilusão, embora descreva eventos, datas e em alguns casos até nomes. Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda descrevem as amazonas como paródias do homem e o homem como referente da força, do combate, do ataque, da independência. A historiografia como memória social pode naturalizar comportamentos? E quanto à homossexualidade feminina? Porque a história oculta povos matriarcais e comunidades de mulheres guerreiras relegando-as a paródias do masculino? A história colabora na construção de um modelo de feminino, tipo frágil e submisso, naturalizando os comportamentos e criando representações sociais regidas pela ordem patriarcal, como o discurso ideológico dos museus que colabora no ideário da evolução histórica na passagem do primitivo para o civilizado, do matriarcado para o patriarcado. A poeta Safo de Lesbos serve como exemplo das regras da heteronormatividade, ou seja, é necessário enquadrá-la nos parâmetros do binário homem/mulher para caracterizá-la, mesmo sabendo da beleza de sua poesia, é necessário discursar sobre sua sexualidade: Horácio dirá que Safo era máscula, Ovídio relata seu suicídio após ter sido abandonada por um homem (p.30-32).

Na discussão da identidade atrelada ao sexo Foucault mostra como a taxionomia imprime-se às coisas e modela os seres conforme a divisão binária e hierárquica da sociedade.

Mas a autora pergunta: a reprodução sempre ordenou o mundo? Sempre ordenou as relações? (p.35). Para lembrar que os discursos são construídos em suas “condições de saber”, Navarro- Swain cita Hadcliff Hall, que escreveu sobre o amor trágico entre mulheres (p.40) e Nathalie Clifford Barney, escritora norte-americana, que viveu na França, amou exclusivamente inúmeras mulheres e morreu aos 95 anos, publicou muitos livros, organizou a Academi dês Femmes.

Para Navarro-Swain a história das mulheres está por ser desvendada: “o que a realidade social não retêm perde a espessura da realidade” (p.50). Simone De Beauvoir mostra-se indecisa quanto ao lesbianismo, mas por fim toma-o como escolha existencial. Para a autora ela é arauto do feminismo, fundadora das teorizações e ainda assim cai em contradição quanto ao tema do lesbianismo. Algumas falas de Beauvoir demonstram o poder da representação social no discurso e no imaginário quando a autora reafirma a natureza feminina em oposição à virilidade lésbica e recai no modelo binário.

Mas enfim, se na idade média a sexualidade está associada ao silêncio, a repressão e a procriação na modernidade a homossexualidade será tratada como doença ou crime. A ciência e a jurisdição irão separar a boa da má sexualidade. E para tal a psicanálise torna-se um dos mecanismos para elucidar a evolução sexual e demonstrar que o sexo natural é a heterossexualidade.

Mathieu, Monique Wittig, Nicholson, Gayle Rubin são algumas das teóricas feministas citadas que discutem o lesbianismo na tentativa de ancorá-lo para além do binário. As representações do mundo são duplas: vida/morte, bela/feia, assim “a verdadeira mulher é diferente da prostituta e da lésbica”, a segunda é preservada na ordem do sistema e a última apagada dos discursos. Para a autora: “a inversão da ordem não representa revolução dos costumes” (p.66), hoje as revistas, o cinema, os direitos demonstram uma maior proximidade entre os homossexuais, mas, o homem ainda quer manter o lugar dominante. Por isso o livro O que é Lesbianismo vem abrir um caminho para pensarmos o tão temido tema da homossexualidade feminina, quem sabe sacudindo as evidências e modificando as representações, sem emitir uma resposta uniformizante ao que seja uma lesbiana.

Patrícia Lessa – * Patrícia Lessa – Mestrado em Filosofia da Educação (UNICAMP/SP), doutoranda em Estudos Feministas (UnB/DF). Professora na Universidade Estadual de Maringá/UEM – PR.

NAVARRO-SWAIN, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. 101p. Resenha de: LESSA, Patrícia. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.9, p.150-153, 2005. Acessar publicação original. [IF].

SAFFIOTI Heleieth I B (Aut), Gênero/ patriarcado/ violência (T), Fundação Perseu Abramo (E), PIMENTA Fabrícia F (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Gênero, Patriarcado, Violência, Mulheres Publicado recentemente, em 2004, Gênero, Patriarcado, Violência parece ter sido concebido para ser uma espécie de “manual didático” que busca conceituar, sob a perspectiva de uma socióloga estudiosa das temáticas feministas, conceitos imbricados de paradoxos tais como gênero, patriarcado, poder, raça, etnia e a relação exploração-dominação.

A partir da utilização de conceitos formulados pela autora no correr de sua vida acadêmica, já que os temas em pauta fazem parte do universo de pesquisas de Saffioti desde os anos oitenta, a obra em análise se propõe a abrir novas perspectivas para o entendimento da violência contra as mulheres. Este tipo de violência, segundo a autora, consiste em um problema social cujo exame encontra-se entrelaçado aos estudos de gênero, raça/etnia, classes sociais e patriarcado.

Dividido em quatro seções de análises, a obra de Saffioti “destina-se a todos(as) aqueles(as) que desejam conhecer fenômenos sociais relativamente ocultos”(p.9), dentre os quais está a violência contra as mulheres, questão que perpassa todos os eixos de reflexão do livro em pauta.

As áreas da Saúde, Jurídicas, Ciências Sociais e Humanas têm se dedicado, mesmo que de forma tímida ou isolada, à compreensão dos mais diversos mecanismos de opressão das mulheres. Dada à diversidade e a multiplicidade de pesquisas que vem sendo realizadas em relação aos temas abarcados nesta obra, é possível observar que as articulações dos pensamentos da autora são perpassadas pela transversalidade de saberes. Assim, por meio de uma perspectiva reconhecidamente feminista e a partir do instrumental teórico do campo disciplinar no qual está inscrita é que partem suas pontuações. Com títulos de abertura dos capítulos considerados pouco comuns, tais como “a realidade nua e crua” e “descoberta da área das perfumarias”, a socióloga versa sobre temas específicos de forma a conceituar, em termos jurídicos e sociológicos, sobre os diversos tipos de violências (doméstica, de gênero, contra as mulheres, intra-familiar, urbana) existentes no caso brasileiro sob uma espécie de permissividade social.

Com essa profusão de novos conceitos, a releitura e a reinterpretação de teorias já existentes, acrescentando-se a instabilidade característica do fazer feminista, talvez não seja possível encontrarmos termos consensuais no contexto dos embates das correntes feministas.

A autora faz uma breve análise do cenário político-econômico brasileiro e constata que estes terrenos são, “certamente, a maior e mais importante fonte da instabilidade social no mundo globalizado”(p.14). Para ela, é sob a ordem patriarcal de gênero que devem ser feitas as análises sobre a violência contra as mulheres.

Recorrendo a referências obrigatórias no campo dos Estudos Feministas e de Gênero, tais como Carole Pateman, Gayle Rubin, Joan Scott, entre outras, Saffioti empreende uma escrita que varia entre pontuações extremamente coloquiais e outras passagens com reflexões importantes e densas para uma obra que pretende ser didática. Para o/a leitor/a desavisado/a, essas passagens requerem especial atenção, já que as análises da autora requerem uma leitura prévia dos conceitos discutidos. Exemplo disso é a utilização do conceito de poder formulado por Foucault que a socióloga utiliza sem maiores esclarecimentos acerca da perspectiva pósmoderna.

Influenciado pelas correntes do pensamento pós-moderno no qual estava inserido (construindo e desconstruindo suas perspectivas), ao refletir sobre outras maneiras de pensar, Foucault defende um amplo questionamento de conceitos caros a seu campo como a finalidade, a natureza, a verdade, os procedimentos tradicionais de produção do conhecimento histórico, as representações do passado com que operamos e os usos que fazemos de sua construção.

Outra questão que merece zelo na leitura são as discussões teóricas que Saffioti estabelece sobre diferentes perspectivas sobre os conceitos de gênero existentes. Vale destacar que, de natureza cultural e ideológica, os Estudos de Gênero introduziram a questão de gênero como categoria analítica e demonstraram como é ilusória a neutralidade dos valores ditos “universais”. Em sua prática interdisciplinar, articula – a partir de uma perspectiva “gendrada” – questões de raça, classe, etnia, bem como contribuições de vários eixos epistemológicos como a psicanálise, marxismo, antropologia, etc, buscando compreender a representação (histórico-cultural, literária) das mulheres, bem como sua contribuição neste processo.

Um ponto bastante interessante a ser ressaltado nesta obra, como se pode depreender da sua leitura, é que esta consiste no fruto de reflexões embasadas em dados empíricos e sobre pontos de referências a respeito das sobreposições parciais, as especificidades e diferenças entre as várias modalidades de violências existentes, fenômenos estes, demonstrados pela autora, que não são tão raros quanto o senso comum indica.

Consiste alvo de crítica da autora, em diversas passagens da obra, o uso político de uma diferença fundada nos argumentos do determinismo biológico e em normatizações feitas a partir de uma marca genital. Para ela, as pessoas são socializadas para manter o pensamento andrógino, machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das diferenças sexuais.

Em relação à violência, tema que perpassa a maioria das reflexões da autora há que se considerar as sobreposições feitas por Saffioti sobre os conceitos e as especificidades de cada “fenômeno”, sua expressão para designar a violência. Ao mostrar os fatos em suas peculiaridades, a autora trabalha quadros teóricos de referência com vistas a orientar seu leitor. Assim, ela diferencia e explicita as características e os contextos em que ocorrem principalmente os seguintes tipos de violência: contra a mulher, de gênero, doméstica, intrafamiliar, entre outras. Nesse sentido, faz parte também das análises de Saffioti a ocorrência do “femicídio”, que, segundo ela, consiste na feminização da palavra homicídio e é um fenômeno infelizmente bastante recorrente, principalmente nos tempos atuais (p. 72-73).

No que tange ao significado da violência e todas as conseqüências que surgem da ocorrência deste fenômeno, a autora lembra que na sociedade patriarcal em que vivemos, existe uma forte banalização da violência de forma que há uma tolerância e até um certo incentivo da sociedade para que os homens possam exercer sua virilidade baseada na força/dominação com fulcro na organização social de gênero. Dessa forma, é “normal e natural que os homens maltratem suas mulheres, assim como que pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da violência.” (p.74) Para Saffioti, a ruptura dos diferentes tipos de integridade, quais sejam, a física, a sexual, a emocional, a moral, faz com que se estabeleça a “ordem social das bicadas”, na qual o consentimento social para a conversão da agressividade masculina em agressão contra as mulheres, não é um fator que prejudica apenas as vítimas, mas também seus agressores e toda a teia social que convive ou é forçada, por inúmeros motivos, a suportar tal sujeição. como critério de avaliação de um ato como violento situa-se no terreno da individualidade e, dessa forma, cada mulher interpreta de forma singular esse mecanismo de sujeição aos homens. Segundo Saffioti, somente uma política de combate à violência (especialmente a doméstica) que se articule e opere em rede, de forma a englobar diferentes áreas (Ministério Público, juizes, polícia, hospitais, defensoria pública) pode ser capaz de ter eficácia no combate à violência.

As experiências da autora e a liberdade com que trata dos temas de forma a informar e/ou atualizar o leitor merecem atenção. Ao desvelar parte do processo de diferenciação sexuada, nas múltiplas configurações espaços-temporais, a autora expõe o caráter produtor e reiterador de imagens naturalizadas de mulheres e homens. Dessa forma, a obra pode ser considerada referência de leitura para as pessoas que se interessam pelas temáticas ligadas às questões de gênero, violência, patriarcado, e afins.

Uma vez que a literatura científica feminista tem sido constantemente obscurecida ou ignorada, este livro ressalta a importância no questionamento dos paradigmas científicos e da naturalização das formas de relações sociais que instituem o feminino e o masculino em uma escala de valores hierarquizada com vistas à desnaturalizar construções cristalizadas no imaginário e nas representações sociais sobre as desigualdades existentes nas relações entre homens e mulheres.

Trata-se de uma obra instigante, cuja leitura deve ser cuidadosa, que funda suas interpretações a partir do enfoque que entende o gênero como uma representação que produz e reproduz diferenças por meio da classificação dos indivíduos pelo sexo, os quais exigem abordagens e epistemologias específicas para suas análises.

Longe de ser um “manual didático” Gênero, Patriarcado, Violência apresenta conceitos já trabalhados pela autora em outros estudos, mas pode ser considerada uma referência bibliográfica atualizada para os/as interessados/as em estudos de Gênero e violências, já que apresenta importantes distinções das considerações anteriormente feitas aos deslocar o olhar do leitor para além do senso comum e das generalizações

Fabrícia F. PimentaGraduada em Direito, Mestre em Ciência Política pela UnB e doutoranda na UnB em História na linha de pesquisa “Estudos Feministas e de Gênero”. Apoio financeiro para a pesquisa: CNPq. E-mail: fabricia.pimenta@yahoo.com.br / fabricia.piment@ig.com.b.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, 151p. Resenha de: PIMENTA, Fabrícia F. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.10, p.190193, 2006. Acessar publicação original. [IF].

DOLHNIKOFF Miriam (Aut), O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX (T), Globo (E), IAMSHITA Léa Maria Carrer (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Império, Brasil, Federalismo Século 19, América, Professora de História e Relações Internacionais da USP e pesquisadora do CEBRAP, Miriam Dolnikoff publica livro que contraria interpretações consagradas sobre a história política do Brasil imperial.

Inserida na questão maior da organização política do Brasil Imperial, a obra busca entender a longevidade da influência das elites no Brasil, investigando a maneira pela qual estas estiveram presentes no processo de construção do Estado brasileiro, de modo a contribuir na determinação de seu perfil.

Podemos melhor avaliar a pesquisa da autora e sua posição de embate frontal à historiografia estabelecida, por breve análise da idéia cristalizada da “história da construção do Estado brasileiro na primeira metade do XIX como a história da tensão entre unidade e autonomia”.

Sabemos que a interpretação do Período Regencial como a fase do jogo político entre centralização e descentralização de poder surgiu ainda no século XIX. A pesquisa de Augustin Wernet rastreou o início desta interpretação e o localiza na obra de H. G.

Handelmann, de 1860.1 Nesta visão assiste-se ao revezamento de homens no cenário político nacional, sem as profundas mudanças (revolução) das estruturas herdadas do período colonial, tendo a primeira metade das Regências sido caracterizada pelo avanço liberal (descentralização), e a segunda pelo regresso conservador (centralização). A historiografia a seguir vai articulando a descentralização às forças provinciais e à desordem, e o Regresso, ao retorno da ordem.

Por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda considerou as forças provinciais, defensoras de um projeto federalista, expressão das forças localistas arcaicas, apegadas aos privilégios coloniais, enquanto a centralização seria o projeto que trazia no seu bojo a possibilidade de modernização, já que ela seria a condição de construir o Estado e a unidade nacional. A defesa dos interesses regionais se limitaria, deste ponto de vista, à tentativa de preservar a herança colonial. Para Buarque, o federalismo não passava de um lema para sustentar o estado das coisas vindas da vida colonial.

Outros autores como Maria Odila Dias e Ilmar de Mattos, também atribuem a vitória sobre as forças centrífugas herdadas do período colonial à capacidade da elite articulada em torno do aparato estatal do Rio de Janeiro de se impor a todo o território nacional. Para eles, o acordo pela unidade, pela centralização política e direção administrativa nas mãos do Rio de Janeiro, teria sido resultado do movimento conservador de 1840, conhecido como “Regresso”, indicando o abandono da experiência de descentralização da Regência.

Entre as interpretações mais consagradas está a de Jose Murilo de Carvalho, segundo a qual, a unidade sob um único governo, teria sido obra de uma elite da Corte, cuja perspectiva ideológica a diferenciava das elites provinciais, comprometidas com seus interesses materiais e locais. A vitória da primeira teria significado a submissão dos grupos provinciais, que ficavam desta forma, isolados em suas províncias. Essa vitória se materializou na imposição de um regime centralizado que neutralizava as demandas localistas das elites provinciais.

Discordando desses autores, e particularmente, de José Murilo, para Míriam Dolhnikoff, a unidade sob hegemonia do Rio de Janeiro foi possível não pela neutralização das elites provinciais e centralização, mas sim à implementação de um arranjo institucional por meio do qual as elites se acomodaram, ao contar com autonomia significativa para administrar suas províncias e, ao mesmo tempo, obter garantias de participação no governo central por meio dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Através do parlamento, as elites nele representadas participavam não só do orçamento, mas também das questões relevantes para a definição dos rumos do país como a escravidão, a propriedade de terras e para organização do Estado, como a legislação eleitoral. (p.14) A autora discorda da idéia de que foi o retorno à centralização – “projeto vencedor” do Regresso- o responsável pela unidade do Império e pela definição do modelo de estabilidade deste; ou seja, para ela, o projeto federalista não morreu em 1824, nem em 1840, ele foi o vencedor, embora tenha feito, no bojo da negociação política, algumas concessões.

Dolnikoff entende que o “Regresso” foi uma revisão centralizadora que se restringiu ao aparelho judiciário, sem alterar pontos centrais do arranjo liberal, que tinham caráter descentralizador. (p.130) Ao invés de destacar a atuação da elite da Corte, a autora conclui que foi a participação das elites provinciais a propiciadora das condições para inserção de toda a América Lusitana no novo Estado, atuação decisiva, que inclusive marcou a dinâmica do Estado brasileiro.

Para a defesa desta posição, a autora recorta para pesquisa três unidades da federação: as províncias de Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. Examina o exercício da autonomia dos governos provinciais inclusive em fase posterior ao Regresso. Justifica sua seleção por serem essas províncias diversas entre si, nos aspectos regionais, nos distintos passados, e nas diferentes demandas e interesses. Busca demonstrar que os diferentes conflitos encontravam espaço de negociação dentro da organização institucional organizada.

Desse modo, as elites provinciais tiveram papel decisivo na construção do novo Estado e na definição da sua natureza. Participaram ativamente das decisões políticas, fosse na sua província, fosse no governo central. E, ao fazê-lo, constituíram-se como elites políticas.

O que a autora quer mostrar mais especificamente é que as elites provinciais (com raízes no período colonial, que defendiam a ordem escravista, a exclusão social e as franquias provinciais) estavam também atreladas ao projeto de construção do Estado nacional e não excluídas. Justamente porque conseguiram articular-se a um arranjo institucional consagrado nas reformas de 1830 e na revisão de 1840 é que a fragmentação da nação foi evitada.

O “preço pago” por esta unidade conseguida teria sido o fortalecimento dos grupos provinciais no interior do próprio aparato estatal, com o conseqüente estabelecimento das poderosas forças oligárquicas, que ao final do século XIX, reivindicaram mais autonomia.

A autora conclui que foi a participação destas elites no interior do Estado, com fortes vínculos com os interesses de sua região de origem e ao mesmo tempo comprometidas com uma determinada política nacional, pautada pela negociação destes interesses e pela manutenção da exclusão social, que marcou o século XIX e também o XX. (p. 285) Mesmo considerando o levantamento feito pela autora entre o número de medidas centralizadoras e descentralizadoras, concluindo pelo predomínio das segundas, ainda pensamos que o fundamental foi a direção e a finalidade da acomodação centro/províncias no momento considerado: – que foi justamente o sentido da centralização, da negociação em torno de “um sentido”, que garantisse a permanência da sociedade escravocrata e excludente.

Notas 1 Historiador alemão, H G Handelmann, Geschicht von Brasilien. Berlim: Springer, 1860, p. 935, conforme Augustin Wernet, Sociedades políticas (1831-1832). São Paulo: Cultrix, 1978, p 15.

Léa Maria Carrer Iamashita – Doutoranda em História Social-UnB.

DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005. Resenha de: IAMSHITA, Léa Maria Carrer. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.177-180, 2007. Acessar publicação original. [IF].

BRITO Eleonora Zicari Costa de (Aut), Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990) (T), Editora da UnB, Finatec (E), PACHECO Mateus de Andrade (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Justiça, Gênero, Menor de idade, Distrito Federal (Brasília), Século 20 Século 20, América

Nos anos 60 e 70, Michel Foucault abriu uma perspectiva para a leitura das relações de poder, demonstrando que, a partir do século XVIII, uma rede de dispositivos disciplinares objetivou não apenas atuar sobre o sexo, colocando-o “em discurso”, mas também inventou novas formas de apropriação de sentido.

O trabalho de Brito articula a noção de poder do pensador francês não somente pela via da negação de poder como simples repressão; a essa via a autora contrapõe a afirmação de que o poder positiva, diz sim, induz formas de saber e produz discurso. Trata-se, portanto, de um conceito de poder que produz verdades, mais do que as oculta, que constitui regras para o verdadeiro, regras, entre outras, de produção de enunciados e de reconhecimento de seus sujeitos-autores.

Justiça e gênero tem como tônica central o modo como a categoria “menor de idade”, em especial “a menor de idade”, fora lida pela Justiça de Menores no Distrito Federal entre 1960 e 1996 (embora o título estabeleça 1990, a autora nos traz dados atualizados até os meados da década seguinte). Uma leitura que adotou de uma série de estratégias que refletem questões ligadas às relações de poder e gênero, evidenciadas e criticadas pela autora. O trabalho inscreve-se no grupo de estudos de gênero que possuem como ambição desnaturalizar as relações entre homens e mulheres, mostrando-as como construções sociais, históricas e culturais.

Ao analisar os casos indicados nos arquivos do antigo Juizado de Menores de Brasília – um total de cinco mil processos de um universo de cerca de trinta e dois mil –, a autora nos apresenta a história da constituição da justiça voltada ao “menor” infrator, por meio da configuração do Código de Menores, numa clivagem entre Direito e Ciências Médicas, além das teorias assistenciais em voga desde o final do século XIX. Dessa forma, o livro localiza o leitor pelas histórias normativas que procuraram regular a relação entre a infância, a juventude e a Justiça.

Nesse aspecto, Brito indica o caráter ambíguo do Código de Menores de 1927, na medida em que, para esse instrumento legal, o “menor” foi uma criação da tensão entre um sujeito ligado ao perigo, a ser detectado e disciplinado, e o sujeito cuja inocência deveria ser resguardada ou recuperada. A autora apresenta-nos esse “leitmotiv”, intimamente ligado à dimensão punitiva – marca do Direito Penal –, que matizou a questão até 1990, ano da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mostra-nos como esse sujeito “menor” é destituído de sexo e sofre o apagamento regulador das tensões de gênero.

Enquanto a lei desconsidera o sexo do menor, anulando-o, na prática, por meio das aplicações do Juizado, recupera-se esse sexo “anulado” hierarquizando-o. Para a autora, “antes de ser ‘menor’, a menina é seu corpo, seu sexo de mulher”, como demonstra já de início, a partir da análise do caso de estupro avaliado pelo ministro do Supremo, em que a transgressão não está no ato, mas naquele que transgride – máxima da Escola Positiva de Direito Penal.

Os casos vão surgindo de modo a configurar ora a constituição de uma vítima, ora uma delinqüência, sempre julgada a partir do sexo. Nas questões em que a “menina/mulher” é vítima de crimes sexuais, o que importa é verificar sua índole e não o caso em si. Nesse aspecto, o que os discursos proferidos pelos curadores e juízes instauram é a justificativa da violência como punição social para a “má-conduta” da mulher “devassa”. Impressiona a recorrência de preconceitos tradicionais impostos às menores; constata-se, por exemplo, que, em relação à “menina/mulher”, o crime se associava irremediavelmente à prostituição ainda no final dos anos 80. Sua sexualidade era o foco para onde convergiam essas explicações.

O trabalho nos lembra de que, na lógica das fábulas processuais, não cabia à mulher um papel ativo. Sua defesa só poderia ser constituída diante da evidência de que seu papel de agente passivo do ato estava garantido, de tal modo – mostram-nos os casos narrados –, que, protegida e vigiada pela insígnia do perigo, o respeito à mulher e o crédito de seu relato passavam pelo testemunho do homem adulto. Não são raros, por exemplo, os pareceres que culpam as mães pelas “distrações” das filhas, enquanto ao pai nada cabia senão a vergonha.

O desvio infanto-juvenil, ou seja, sua punibilidade perante a lei, insere-se, portanto, no contexto de certa “estratégia de “governamentalidade” que, por um lado, buscava disciplinar os corpos, e, por outro, objetivava a regulação da população” (p.119). Sobre as questões dos corpos, Brito narra todo um jogo de poder na constituição de uma Medicina Legal, cara às determinações hierárquicas entre homem/mulher, adulto/criança e normal/anormal. Teorias como as divulgadas por Afrânio Peixoto e Nina Rodrigues foram as que deram os contornos do debate sobre a delinqüência no Brasil e, conseqüentemente, sobre a infância e a juventude a serem “protegidas”, objetos preferenciais do saber criminológico.

Tal saber é evidenciado pela autora por meio do estudo de dois laudos solicitados pela Justiça. Um proferido para uma menina e outro, para um menino (os casos de Alice e Mário, independentes, estão entre as comparações mais impressionantes do livro). Os laudos naturalizam os comportamentos, “fixando os que são normais num e noutro sexo e classificando-os no discurso médico” (p.190). O saber médico (legal) respaldava a criação do desvio – ação fora da norma qualificada na patologia clínica –, migrando-o da ordem moral para a clínica. A perícia médica funcionava como uma guardiã da higiene sexual, medicalizando e criminalizando o sexo desviado de sua função procriativa, saudável.

Brito nos mostra como a própria pré-seleção do delito era imposta pelas relações de gênero, na medida em que certas práticas desviantes, na verdade, eram cometidas por meninos e meninas, mas classificadas de modo diverso. O que os pareceres e as sentenças não estavam preparados a permitir eram meninas em situações tidas como preferencialmente masculinas.

Um exemplo é a modalidade “perturbação da ordem”, instituída como um domínio reservado ao masculino, uma vez que corriqueiramente a rua – o espaço público – estava “estabelecida” como tal, enquanto na modalidade “inadaptação familiar” o número de transgressões femininas está “naturalizado”, pois passa-se para a esfera privada. Enfim, analisados e delimitados por critérios específicos a cada época, crianças e adolescentes têm a complexidade de seu “ser no mundo” reduzida a traçados lineares.

Contudo, as regras a que tal linearidade obedecia sofreram mudanças entre os anos 60 e o início dos 90. A autora não comete o erro de planificar os valores nas décadas estudadas.

Está, antes, interessada em como, em momentos distintos, embora próximos, o aparato regulador da “infância” lida com o paradoxo entre uma Justiça que institui para si o peso da modernização moral, ao passo que continua a reconduzir valores tradicionais instituídos às mulheres.

É certo que Brito salienta que as mutações, em muitos aspectos, só renovam alguns padrões de conduta historicamente defendidos. Ignorar que as relações de gênero impõem hierarquizações que estão para além daquelas “admitidas” pela lei – essa mesma viciada em dissimular tais hierarquias, mesmo nos dias atuais – é um alerta premente desse livro. De tal monta que a polêmica que mesmo hoje divide grupos feministas em torno do uso do sistema penal na luta pela defesa e pelo reconhecimento de direitos às mulheres deve ser evidenciada à luz das questões tratadas aqui. A autora põe em questão a eficácia de se acionar o sistema legal em favor da defesa dos direitos das mulheres, discutindo se esta prática, ao contrário, não seria promovedora de um quadro de aprofundamento das relações hierarquizadas de gênero. Pela conduta de sua pesquisa, a autora parece não crer que tal sistema – como ele se apresenta atualmente – seja capaz de garantir equidade.

Em muitos casos, como os próprios processos indicavam, eram famílias interessadas em desvincular-se daquela menor que não mais se adequava ao regime de menina da casa.

Jovens, algumas vezes crianças, trazidas do interior do país para trabalhar como domésticas sem receber salário, num dúbio jogo de exploração e tutela que, em determinado momento, era considerado indesejável. Tal questão mostra que o livro não se presta a maniqueísmos, pois aqui a autora indica como foi importante o papel do Juizado para desvelar esse jogo.

Às mulheres se perdoava, ironia discriminatória que atingia também as jovens de classe média que furtavam no comércio local. Elas eram, geralmente, enquadradas no chamado ‘descuido’, ou seja, na capacidade de pegar e não pagar por mera falta de atenção.

Ao examinar extensa documentação, a autora tomou o cuidado de questionar as determinações de produção, enquadrando-as num contexto histórico localizado, e evidenciou os procedimentos representados pela instituição. Exemplo: nos anos 60 e 70, o juizado de Menores de Brasília não possuía o aparato interdisciplinar de profissionais, previsto em lei, os quais deveriam apoiar as decisões tomadas; nem mesmo contava com instituições “corretivas”. Fatos que influenciavam as decisões e que fizeram muitos processos percorrerem uma cansativa rede burocrática, na esperança de que os problemas externos à demanda judicial fossem resolvidos antes de uma possível sentença.

São todas questões cruciais para quem quer compreender, a partir dos exemplos de Brasília, as determinações legais frente às relações de gênero. A autora não se furta a contextualizar o ambiente em que os documentos são gerados: “Profusão de imagens, Brasília era representada, ao mesmo tempo, como o espaço propício para a manifestação de uma sociabilidade que a fazia mais humana que a maioria das outras cidades (…) e lócus de manifestação do ‘perigo’ representado pela infância e pela juventude ‘desviantes’.”(p.154).

Tal abordagem confere ao livro mais esse atrativo. Além de interessar a estudiosos em gênero, ligados à história ou ao direito, há na pesquisa de Brito uma sutil, mas determinante, consciência do papel que essa “urbe”, tão exótica por sua constituição e história, ocupa na problemática. Brasília e os brasileiros vindos de todas as partes serviram a Brito para o elementar exercício de compreensão daqueles “poderes” que Foucault nos apresentou.

Mateus de Andrade Pacheco – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília, com apoio do CNPq.

BRITO, Eleonora Zicari Costa de. Justiça e gênero: uma história da Justiça de menores em Brasília (1960-1990). Brasília: Editora Universidade de Brasília: Finatec, 2007. Resenha de: PACHECO, Mateus de Andrade. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.172-176, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MARTINS Estevão C de Rezende (Aut), Cultura e poder (T), Saraiva (E), SALES Eric de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Conceito de Cultura, Conceito de Ideia, Conceito de Poder, Conceito de Ideologia, Identidades, Organizações sociais, Estado Professor de teoria da história e de história contemporânea na Universidade de Brasília – UnB, Estevão C. de Rezende Martins dedica-se aos estudos nos campos da teoria, filosofia e metodologia da história, história cultural moderna e contemporânea, e das relações internacionais, em particular da Europa ocidental. Publica em 2007, Cultura e poder, livro que busca situar o leitor em questões referentes à formação e organização dos Estados modernos e de suas relações externas. Nas palavras do autor, o livro segue uma “perspectiva teórico analítica em que são coordenados a preocupação filosófica com a engenharia conceitual e o prisma historiográfico, penhor de inserção empírica dos temas tratados” (p. 01).

O livro está dividido em sete capítulos que buscam apresentar ao leitor, inicialmente, os conceitos que o autor utiliza (como poder, idéias, cultura e ideologia), para em seguida, demonstrar como estes são utilizados para a construção das identidades e, conseqüentemente, das organizações sociais que originam os Estados. Durante a leitura da obra capítulos, nota-se que há quatro seções de análise que direcionam o livro. Essas podem ser divididas em: seção de conceituação (capítulos 1, 2 e 3), nos quais são apresentados os conceitos usados em todo o livro; análise da União Européia (capítulos 4 e 5), onde as idéias apresentadas pelo autor já foram trabalhadas e postas em prática, com relativo sucesso; e análise da América Latina (capítulo 6), utilizando-se de todo o escorço conceitual apresentando. O capítulo 7 tratará das perspectivas sobre o uso das idéias e o poder que exercerão no contexto da “mundialização”.1 Diversos são os campos de estudos e pesquisas que se dedicam à formação dos Estados e sua relação com as identidades sócio-culturais. Dentre esses, há de se destacar o campo da ciência Jurídica, da Ciência Política e das Relações Internacionais. E é por meio dos conceitos fornecidos por estas áreas do saber que Martins articula seus pensamentos utilizando uma perspectiva que se afasta da ciência da história e se aproxima da filosofia, do direito e das relações internacionais. Por meio de tais perspectivas e com base no instrumental teórico dos campos citados é que o autor inicia suas pontuações.

O que são idéias e como são capazes de mover sociedades, isto é, sua concepção e sua função, são as bases para os debates do primeiro capítulo. O autor trata as idéias com uma perspectiva do papel que desempenham no “contexto de redes culturais cuja resultante são as formas de poder na sociedade e no Estado que interferem na formulação e na prática de condutas individuais e sociais”. (p. 7) As idéias são apresentadas como uma forma de orientação do agir, destacando-se em três dimensões distintas: passado (interpretação), presente (explicação) e futuro (projeção). Tais dimensões orientam o pensar humano e a formação não apenas de idéias, mas de identidades – outro discussão que perspassa o livro todo. O debate sobre as idéias de poder é o que conclui o primeiro capítulo. Neste ponto, Martins apresenta diversos posicionamentos sobre as idéias de poder – Foucault, Carl Schmitt, Jean Bodin, etc. – mas deixa claro seu alinhamento com a concepção de Niklas Luhmann, que concebe o poder “como um jogo social de ações, que causam a partir de pressupostos não causais, que efetuam trocas com base em fundamentos não permutáveis, que jogam utilizando regras não colocáveis em jogo”. (p. 25) O poder da cultura e a cultura do poder são o mote do segundo capítulo. O autor emprega o termo cultura, no livro, de forma ampla, “diretamente vinculada à ação racional do homem” (p. 2), um fator dinâmico de ação, formação e transformação. O fundamento da cultura está no fato de que o homem precisa agir para poder viver.

Utilizando-se das concepções de Gordon Mathews, para Martins, a cultura está mergulhada em um “sistema de circulação de idéias e de produtos chamado mercado” (p. 30), e segue três vertentes: a individual, a coletiva (família, colegas de trabalho, torcedores de um time, etc.) e a pública ou estatal (sistemas de educação e de comunicação em massa). Por estas vertentes, o autor explicita a importância do conhecimento histórico, ou “cultura histórica”, pois esse é formador de identidades e está inserido em um mundo de signos, elementos distintivos pertencentes a uma “cultura”. “A cultura histórica é, então, a articulação de percepção, interpretação, orientação e teleologia, na qual o tempo é um fator determinante da vida humana”. (p. 33) Ao nascer, qualquer pessoa já está inserida em um mundo pleno de histórias, de signos e conceitos pré-concebidos, mas isso não significa precisar aceitá-los passivamente; ao contrário, ao adquirir consciência, conquista a capacidade de transformar estas idéias dadas em idéias e conceitos próprios. O indivíduo, grupo ou nação demonstram, desta forma, o poder da cultura. A construção e formação das identidades tomam boa parte desse segundo capítulo, pois para Martins, é o entendimento de si e de quem é o outro que propiciará a criação de laços entre os países, superando questões seculares, como ocorreu com a União Européia (UE). Ponto interessante, pois o autor toma a UE como um exemplo, guardadas as devidas proporções, que a América Latina deve seguir para superar desavenças e se impor de forma organizada.

O terceiro capítulo trata da ideologia. Neste ponto, o autor explicita que o entendimento de ideologia como “receita pronta” para uso rápido, simples e imediato, independente do conteúdo ou dos fins – colocadas de forma maniqueísta muitas vezes – deve ser superado. Atualmente deve-se observar a amplitude e abrangência das idéias, que escapam do simplismo das ideologias clássicas. É algo que pode estar em qualquer contexto, desde que nele haja a questão de ser, pensar e agir, que pode ser entendida como ideologia. Martins expressa que ideologia “é um instrumento prático polivalente, socialmente relevante e particularmente eficaz – embora de contornos difusos, quando ‘vivida’ de forma concreta pelas pessoas”. (p. 67) Após apresentar suas impressões sobre os conceitos elencados Martins passa a questionar essas concepções, o autor vai se lançar a questionar o poder da cultura na história européia e, conseqüentemente, como se pode buscar um fio condutor para a formação das identidades da Europa ocidental, o que facilitaria a convivência e formação de um bloco de países.

O capítulo quatro é dedicado a apresentar a história da Europa ocidental e como a formação das identidades foi diferente em relação aos europeus orientais. Para tal, lança mão das idéias sobre a expansão da fronteira na formação das identidades e do conceito de “grande fronteira” – teorias de Frederick Tuner e Walter Prescott Webb, respectivamente. Para Martins, “A percepção ou ‘estranhamento’ cultural entre diversos ‘outros’ que conviveram – e convivem – no espaço da(s) Europa(s) é um elemento importante na organização extrínseca (…) e intrínseca da identidade cultural européia…” (p. 83).

As questões do multiculturalismo e das identidades nacionais no conjunto Europeu é o tema do capítulo cinco. Nesse momento da obra é debatido o conceito de “linguagem da nação”, isto é, o discurso político nacional que integra três grandes dimensões: a razão modernizadora, a vontade mobilizadora e a justiça igualitária. Por meio desta “linguagem da nação”, deste discurso político nacional é que as nações modernas se organizaram. Para Martins a nação não é uma ideologia, mas um “produto, dentro de um território particular, das relações entre uma economia, uma cultura e um Estado dominados pelo princípio da racionalidade instrumental”. (p. 99) Por essa linguagem é que uma sociedade pode construir o passado como tempo ultrapassado (dimensão interpretativa), de modo a se distanciar e poder explicar o passado e ter perspectivas de futuro (projeção). Contudo, no decorrer da leitura, nota-se que essa linguagem, com bases muito mais históricas, perdeu sua força. A busca de uma nova linguagem deverá, segundo Martins, passar por uma (re)construção das consciências nacionais (no âmbito europeu), devendo se reorientar em busca de uma síntese democrática, o que evitaria os elementos contraditórios de nossa modernidade.

O sexto capítulo do livro volta-se para os debates sobre a formação de uma identidade cultural latino-americana. São expostas quais são as dificuldades para se fomentar uma identidade comum na América Latina. O primeiro passo é compreender que as sociedades européias são “sociedades originárias”, ou seja, foram criadas, originadas da vontade mobilizadora de um grupo, enquanto as sociedades americanas são “sociedades implantadas”, isto é, não foram originadas de uma vontade de um grupo, mas sim impostas por um grupo sobre outro. A partir desse pressuposto, Martins vai discorrer sobre a situação na América Latina e das dificuldades de uma articulação histórica, que contribua para uma identidade comum.

A parte final da obra é dedicada a uma discussão de possíveis perspectivas sobre os movimentos de “mundialização”, o uso e poder das idéias nesse contexto “A multipolaridade política e cultural apresenta-se como contraponto consolidável para viabilizar uma alternativa à unipolaridade econômica norte-americana ainda remanescente”. (p. 137) Com tal perspectiva, propõe que o mundo social deve se voltar para um entendimento da diversificação cultural interna, encarceradas nos Estados nacionais, pois a cultura serve como referência do agir humano, podendo influenciar na modificação das estruturas sociais vigentes.

O historiador convencional ao ler, Cultura e poder não encontrará uma obra nos moldes da ciência da história. Mesmo hoje, onde as fronteiras entre as disciplinas como filosofia, história, sociologia e relações internacionais, não possuem um limite claro – pois todas se utilizam de conceitos comuns, mas com usos específicos – pode-se dizer que o livro é direcionado para o campo das relações internacionais, como o próprio nome da coleção, Coleção Relações Internacionais, já mostra – e dos estudos que debatem a formação dos Estados nacionais e das relações de poder que emergem no interior dessas sociedades, através de uma perspectiva cultura.

Centra-se no contexto europeu, mas segue esse caminho para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, respeitando as diferenças culturais – o que não ocorreu no velho continente, segundo Martins, pois os Estados foram criados, como que ignorando tais diferenças culturais, criando situações de conflito nos dias atuais, como nos Bálcãs ou na região basca. Contudo, sem se aprofundar no debate, o livro pode introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder.

A obra de Martins é extremamente interessante, já que ao introduzir e situar o leitor no debate sobre cultura e poder, centra-se no contexto europeu e segue essa trilha para demonstrar como as idéias e os conceitos apresentados foram aplicados na Europa, suas conseqüências e os possíveis caminhos que a América Latina pode seguir para formar uma macro-identidade regional, desde que respeitadas as diferenças culturais.

Notas 1 O autor usa o termo “mundialização”, expressão do universo da língua francesa, no sentido de “globalização”, mas com ênfase aos aspectos mentais, ideais e culturais.

Eric de Sales – Graduado em História pela Universidade de Brasília – UnB e mestrando pela UnB em História na Área de Concentração História Social. E-mail para contato: malkerik@yahoo.com.br.

MARTINS, Estevão C. de Rezende. Cultura e poder. 2 ed. Revisada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007. Resenha de: SALES, Eric de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.11, p.167-171, 2007. Acessar publicação original. [IF].

MORAES Letícia Nunes de (Aut), Leituras da revista Realidade (1966-1968) (T), Alameda Editora (E), OLVEIRA Emerson Dionisio Gomes de (Res), Em Tempo de Histórias (ETH), Revista Realidade, New journalism, História do jornalismo, Brasil Século 20, América Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a revista Realidade nasceu para causar polêmica. No seu primeiro número (abril de 1966), a revista abordava o tema da sexualidade entre os jovens; dois meses depois, a principal matéria questionava o divórcio (dez anos antes de sua legalização). Nos números seguintes, temas como o celibato entre sacerdotes católicos ou a controvertida capa de dezembro de 1966 “Deus está morrendo?” causaram discussões em todo o País. Apesar de todas as controvérsias geradas nos primeiros meses da revista, a história desse veículo guardou para janeiro de 1967, com “A mulher brasileira, hoje”, o momento em que segmentos censores da sociedade passaram a agir contra a sua publicação de modo agressivo. Contudo, uma leitura atenta da seção de cartas da revista desmistifica qualquer possível surpresa em relação aos eventos daquele janeiro.

Na análise de Letícia Nunes Moraes, a revista pertencente ao grupo empresarial Abril de São Paulo resistiu em seus dois primeiros anos porque matinha uma relação amistosa com os governos militares, que, desde 1964, controlavam o País. Isso graças a matérias “simpáticas” e perfis de ministros e presidentes publicados com freqüência, embora tal relacionamento tenha lenta e gradativamente se deteriorado a partir de 1968, algo que pode ser verificado com o número de leitores que passaram a “atacar” a publicação.

Realidade foi um marco na história do jornalismo brasileiro ao abordar temas pouco costumeiros nos periódicos voltados à classe média urbana e por incentivar uma linguagem jornalística próxima aos efeitos estilísticos da literatura, naquilo que se denominou genericamente como “new journalism”. A revista foi publicada entre 1966 e 1976, e Moraes debruça-se sobre os três primeiros anos (1966-1968), cerca de 36 números, em especial sobre as cartas enviadas aos editores, numa forma consciente de compreender como o periódico decodificava as opiniões de seus leitores. Nesse aspecto a revista também inovou ao produzir as primeiras pesquisas para definir seu público leitor.

Ao definir seu objetivo, Moraes produz o primeiro ruído quando identifica, no confronto entre os missivistas e as matérias publicadas, uma possibilidade de entender “como a revista queria ser lida e como de fato era lida”, sem lembrar-se , contudo, de que sua fonte única é a própria revista e que mesmo aquelas cartas eram passíveis de seleção e edição.

Enfim, o que a autora nos oferece é um detalhado estudo de duas “esferas” editorias de uma publicação: aquela preocupada com os “fatos” e outra, dedicada a selecionar as interpretações dos “fatos” pelos leitores. É nesse ponto que a sagacidade da autora traz elementos novos, desvios que necessitaram de elementos comparativos para expor certas nuances expressas nas cartas que podem não ter chamado a atenção dos editores naqueles anos, mas que, aos olhos dos estudiosos, hoje não apenas denotam as estratégias dos meios de comunicação da época – imersos num regime hostil à liberdade de expressão – como também nos dão pistas sobre os assuntos debatidos.

Em outro aspecto, a autora adverte que a seção de cartas naquele universo midiático controlado é muitas vezes utilizada para expressar aquilo que não se permite mais nos editoriais, utilizando as opiniões de “leitores” como forma de “desviar” o sentido de autoria.

Infelizmente o trabalho não levou adiante a desconfiança de que cartas podem ter sido criadas pelos editores, como ela mesma conjectura, apresentando-nos como contra-argumento o fato de que não havia tal necessidade mediante a quantidade de cartas recebidas pela revista.

Argumento que em si não está necessariamente ligado ao problema.

Num outro hemisfério, uma prática chamou sua atenção: o fato de que algumas cartas eram respondidas, e as respostas publicadas, quando os editores (Paulo Patarra e Woile Guimarães) percebiam que as questões apresentadas poderiam interessar a outros leitores.

Essas respostas foram bem exploradas pela autora e nelas podemos ver um certo “diálogo” na seção de cartas com “alguns” leitores selecionados. O exemplo que nos parece atual é o número recorrente de leitores que reclamavam da elevada quantidade de anúncios publicados e de uma das respostas ofertadas: “Sem publicidade, imprensa não vive. O importante não é quantos anúncios uma revista contém, mas sim qual a qualidade e a quantidade das matérias que oferece ao leitor” (p.86).

Muitas respostas da revista continham a idéia de que a sugestão para uma nova matéria já havia sido considerada dentro da própria redação. Havia uma preocupação dos jornalistas em explicitar que estavam à frente dos leitores, que suas sugestões apenas reforçavam pautas. Essa tática discursiva era importante na construção da identidade de Realidade, que deveria ser lida como um veículo de comunicação que antecipava discussões e tendências críticas. Apesar desse expediente, a autora mostra que, com o passar dos anos, as respostas tornaram-se cada vez mais raras e eram destinadas a cartas contrárias às opiniões da revista.

Por meio de um banco de dados construído a partir da análise de 686 cartas publicadas, Moraes tenta configurar o perfil dos leitores que escreviam para Realidade. Mas o esforço é decepcionante; a maioria era formada por homens (73%) e oriundos da região sudeste (70%); as únicas informações possíveis, pois raramente aqueles que escreviam identificavam-se de modo preciso. As conjecturas quanto à idade, à profissão, à escolaridade ou a quaisquer índices, mesmo ofertados pela autora, parecem estatisticamente irrelevantes.

Em depoimentos à autora, os editores explicitaram que, nos primeiros números de Realidade, os leitores enviavam cartas cujo teor era mais genérico e as referências às reportagens da revista eram secundárias. Raramente essas cartas eram publicadas; optava-se por relatos diretos ligados à publicação anterior. Com o tempo, as cartas já seguiam essa receita, ou seja, ensinava-se ao leitor que desejava ter sua carta publicada como ela deveria ser escrita. Essa pedagogia da acessibilidade era conscientemente seguida e coloca em suspense qualquer ilusão de uma interatividade irrestrita, tão advogada na época.

Outro aspecto era o incansável desejo de uniformizar as leituras de matérias da revista propostas pelas cartas, numa clara manipulação daquilo que era entendido – publicado – como opinião pública. Nesse tocante, Moraes explora o que Patarra chamou de “jogar um leitor contra o outro” (p.112), uma forma de legitimar a opinião da revista diante de cartas desfavoráveis por meio da publicação cartas de leitores oportunos, conferindo à publicação uma falsa imparcialidade. Um procedimento ainda muito em voga nas publicações atuais.

As cartas mostram que a revista também foi considerada perigosa quando um número considerável de missivistas acusou a revista de defender uma nova organização familiar representativa de uma “revolução moral”. Alguns leitores escreveram à Realidade afirmando que seus filhos estavam proibidos de ler a publicação. Na contrapartida, a revista utiliza cartas de pais que se manifestaram de modo oposto: elogiavam a publicação por criar um ambiente mais confortável entre eles e seus filhos em relação a questões sobre sexualidade e drogas.

Os temas mais comentados eram os de comportamento. Três publicações de 1967 merecem destaque: “A mulher brasileira hoje”, de janeiro; “A juventude brasileira hoje”, de setembro; e “Existe preconceito de cor no Brasil”, de outubro. Temas explosivos que fizeram com que todas essas abordagens sofressem com proibições, ataques e debates acalorados dentro e fora da seção de cartas da revista. Mas nenhum tema foi mais combatido pelos leitores que o “Homossexualismo”, matéria publicada em maio de 1968 (uma data nada neutra), cuja repercussão negativa a revista ratificou, “talvez por ter o mesmo ponto de vista desses leitores” (p.116). Mas há reveses.

Estudiosos acostumados com os vieses da história da recepção sabem que leitores são freqüentemente praticantes de táticas que enviesam sentidos “programados”. Um exemplo ressaltado pela autora diz respeito à surpresa dos editores ao descobrirem que “prováveis” jovens estavam menos preocupados com a “revolução sexual” e as novas posturas comportamentais que com questões mais práticas como o acesso à educação de qualidade e desemprego. Essa conclusão nasceu dos resultados de questionários enviados aos leitores em julho de 1967 com perguntas sobre o divórcio, virgindade da mulher, cabelo comprido dos rapazes, mini-saia das moças etc. O resultado, publicado na edição de setembro (“A juventude brasileira hoje”), mesmo que longo, merece ser reproduzido: “Os jovens acreditam ao mesmo tempo em Deus e no socialismo, não pensam em revolução, acham que há alguma coisa errada no Brasil, mas a maioria prefere não protestar contra os abusos e erros. Julgam que seu papel é estudar, trabalhar e preparar-se para o futuro. Estão mais a favor do que contra o governo, embora muitos nem se preocupem com isso. Pregam a fidelidade para marido e mulher, os rapazes exigem a virgindade feminina, e muitas moças a masculina. Muitos defendem o controle da natalidade e se inclinam pela separação quando o casamento fracassa” (p.187, grifo da autora). Num mundo às vésperas de 1968, cada trecho desse pequeno resumo rendeu diferentes conclusões, exploradas no livro.

O debate político não está ausente do trabalho de Moraes; o número de cartas dedicadas ao assunto é menor que aquele direcionado aos costumes. Mas lidas de modo mais cuidadoso pela autora, mostram que temas como sexo ou matrimônio eram álibis para acusar a revista de ser “francamente antiamericana”, de “usar disfarces esquerdistas” ou para culpá-la de traição à pátria ou de ser “a favor de uma nação estrangeira” (p.140). O que, por efeito, alerta aos historiadores para o fato de que certas categorias estanques, tão arduamente elaboradas para nossas pesquisas, raramente resistem à complexidade dos “problemas” analisados.

Leituras da revista Realidade tem o mérito inegável de apresentar uma visão criativa daquela que foi a revista com maior credibilidade dentro da classe média brasileira no final dos anos 60, superando ícones do jornalismo como O Cruzeiro e Manchete. A autora ensina- nos a perquirir os detalhes de um “documento” que parece, a principio, demasiado óbvio ou já muito explorado. Seu trabalho confirma a suspeita, há anos difundida, de que novas fontes não são apenas encontradas, também podem ser construídas onde muitos já passaram.

Emerson Dionisio Gomes de Oliveira – * Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília, sob orientação da Profa. Dra. Eleonora Zicari Costa de Brito, com apoio do CNPq.

MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade (1966-1968). São Paulo: Alameda Editora, 2007, 253p. Resenha de: OLVEIRA, Emerson Dionisio Gomes de. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.12, p.115-119, 2008. Acessar publicação original. [IF].

Narrativas, pandemia e adoecimento social | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

O ano de 2020 nos trouxe o cenário pandêmico com todos os seus desdobramentos sociais, políticos, econômicas, sanitários, educacionais, comunicacionais, culturais, e tantos outras implicações cotidianas nunca experimentadas pelos sujeitos deste século, um trauma em proporção planetária. Ao passo que o isolamento se mostra como a estratégia mais eficaz de proteção das populações, ele vem produzindo angústia, medo, tensões diante dos agravantes psicossociais, dos novos cuidados e hábitos de saúde e da confrontação com a vulnerabilidade física, emocional e social que se impõe a todos, de forma global. A confrontação com a morte e com a finitude da vida ou com a condição de vida precária traz à tona um tema tabu que ganha contornos ainda mais duros diante da impossibilidade de manter ritos de passagem que secularmente estruturam as relações pessoais e dão forma às histórias de vida. Até a presente data no Brasil, os números de mortes pela COVID-19 caminham para as 200 mil mortes, mas as notícias que chegam pela grande mídia sugerem subnotificações. São 200 mil famílias que perderam seus entes queridos. Perdas que exigem novas formas de elaborar o luto diante da suspensão dos habituais rituais de despedida. Leia Mais

Rhetoric turn and medieval history: a look into europe and usa / Brathair / 2020

That historiography is indebted to a «linguistic turn» may today be taken for granted, and appears to be almost banal. Historiographic essays, methodological introductions, disciplinary discussions describing the developments of European and American historiography in the second half of the twentieth century, all of them agree in identifying an important turning point in the 1960s, the time when research began to be increasingly influenced by linguistic and language studies. The same thing is true in practice, given that no good research today would be conceivable without a thorough analysis of textual construction of its written sources1. Instead, less well known and therefore less obvious is to affirm that between that «linguistic turn» and today‘s research there have been further moments of development and reflection, which have led to refine methodologies, rethink some basic assumptions, extend the scope of some acquisitions to disciplines so far remained at the margins of those developments. This is the case of the intellectual phenomenon known to various scholars as the «rhetorical turn».

What is the «rhetorical turn»? Basically, it is an awareness of the limits of objectivism and materialism that, starting from the Enlightenment, influenced, and in some cases structured, many scientific, social and humanistic disciplines. Some scholars, mostly American social scientists strongly influenced by European intellectuals such as Jacques Derrida and Roland Barthes, realized that scientific communities are influenced by appeals to auctoritates, traditions, conventions, intuitions, anecdotes and aesthetic care no less than by those rigid formal and deductive logics and by those sets of impartial data that we are still used to associating with scientists today. Following Thomas Kuhn in his The Structure of Scientific Revolutions, they realized that very often those scientific communities look much more like religious groups than detached intellectuals with brilliant minds; likewise, those scientific revolutions and paradigm shifts are much more like religious conversions than carefully considered and well-reasoned shift in scientific practices2. Such an awareness has thus generated particular attention to mechanisms of persuasion that make knowledge changes possible. In other words, it put rhetoric at the center of the debate. «What can rhetorical theory teach us about how to adjudicate among competing values, or prescriptions, or knowledge claims?». This is the question those scholars have posed to themselves and to their colleagues, near and far. Guided by Herbert W. Simons, they were thus able to identify a real «rhetorical turn» in the «growing recognition of rhetoric in contemporary thought, especially among the special substantive sciences. It means that the special sciences are becoming increasingly rhetorically self-conscious»3.

As they matured such reflections, which came together in a volume published in 1990, those scholars were well aware that they had not created that phenomenon but, more simply, they realized that they had revealed an intellectual movement that had begun some time earlier but was particularly evident at that moment. One of them, Dilip Parameshwar Gaonkar, has effectively identified a double dimension in this turn. On the one hand, an explicit dimension coincides with the work of those who have explicitly recognized the relevance of rhetoric for contemporary thought and have used rhetoric as a critical and interpretative tool. On the other hand, an implicit dimension concerns production and reflection of all those who were little aware of the rhetorical lexicon and on disciplines inherent in communication, but even so recognized the importance of formal and persuasive aspects of the discourse starting from problems internal to their specific disciplines, no matter whether scientific or humanistic. According to Gaonkar, the internal dimension is much more important than the external one, due to the empirical processes that characterize it and involve, not only philosophers and experts in literary theory and criticism, but also scholars like Walter J. Ong and Tzvetan Todorov: perhaps not all will agree in defining them as historians à part entière but, of course, all will agree in affirming that they have practiced historical research4.

The presence of history in the «rhetorical turn» is not surprising for two reasons. The first reason is that the vast majority of sources that historians have to deal with are usually elaborated by one or more senders for one or more recipients, with the aim of persuading the latter to do or to accept something. This persuasive dimension is clearly present in written sources, but it is also present in the visual ones, which in fact have been well valued from this point of view by many scholars, on top of which is Peter Burke5. The second reason is that rhetoric, i.e. «the study and practices of persuasion»6, «l‘art de persuader et la science du bien dire»7, often tends to have parasitic relations with other disciplines. It therefore finds a particularly suitable host in the prismatic and multidisciplinary dimension of history.

But what exactly did the «rhetorical turn» mean for historians and particularly for historians of the Middle Ages? One could speak in general of a double movement, which became evident starting from the early 1990s and decidedly accelerated in the last ten years. On the one hand, rhetoric has acquired a deeper and a more concrete temporal and contextual dimension thanks to a new narrative: it is no longer a technique promoted by the Greeks in Antiquity, interrupted during the Middle Ages and recovered by Humanism, but a discipline that has transformed from Antiquity to present day according to a continuum rich in nuance and to temporal, cultural and social variations. On the other hand, like other disciplines, even as history, after having long despised rhetoric, because it is opposed to the Enlightenment scientific methodologies, research has returned to dialogue with it by acquiring new research tools useful both for analyzing and questioning sources and for constructing its own discourses. Medieval history, and medieval history of Europe in particular, played an important role in this evaluation. Given the intense relations between history and diplomatics, i.e. the discipline that studies historical documents from a formal point of view, it could be said that in a certain sense medieval history was more ready than other disciplines to accept rhetoric. In addition to this, medieval European history has played a pivotal role in ‗unlocking‘ the historical dimension of rhetoric. As I said, until the last quarter of the twentieth century the dominant narrative was that of an «art of persuasion» very widespread in Antiquity, but which vanished in the Middle Ages and was rediscovered by humanists at the beginning of the Modern Era. Nothing could be a greater falsehood, and historians have well noticed it: in the Middle Ages, rhetoric pervaded many areas of human action, starting from the teaching of systems of rhetoric, passing through the writing of documents and literary works up to liturgy, preaching, assemblies and so on. After all, the articles published in this dossier of Brathair are all indebted to this revaluation, and on their own make a significant contribution to it. Since – except for my mistake – a reflection on these developments in European and American medieval history has not yet been produced, I believe it is useful in these pages to propose a brief illustration. It could constitute a first historiographic orientation on the subject. I need to anticipate that it is not possible, in this case, to establish a direct derivation of these researches from the explicit awareness summarized in the American volume published in 1990. We deal, rather, with a complex, composite process, rich in nuances and also developed, in many cases, from reflections internal to the discipline or to a single research itinerary. Nevertheless, the spread of historiographic topics appears to be coherent to the point of suggesting a real cultural movement. Given their international dimension, I will focus on historiographical fields rather than on individual national historiographies.

A point that is common to all areas, with USA in advance compared to Europe, is the extension of the rhetoric object to historical disciplines starting from literary, philosophical and social disciplines. The first historiographical areas that have benefited from this extension are Renaissance Italy and Byzantium. The reason is quite clear: Renaissance Italy explicitly recovered the rhetoric of the Greco-Roman period, whereas Byzantium is the direct heir of the Greco-Roman structures from which rhetoric was born. But, from there, its extension covered several other areas of Europe, in particular France, Germany, England and Spain — first in the late medieval period, more recently in the early and high medieval ones. In most of these researches, rhetoric was part of a binomial, that is, it was observed in relation to other aspects of human action, but one can also observe a development of rhetoric as a specific object of historical research.

Among the more in-depth topics there is undoubtedly the relationship between rhetoric and politics, directly derived from the late twentieth-century research on ideologies and propaganda in the Middle Ages. Beyond Byzantium, the research focused mainly on communal Italy and on the struggle between the German empire and the papacy in the thirteenth century. The studies on communal Italy were inaugurated by Enrico Artifoni, who, in the 1990s, sparked the attention of political historians towards characters and texts that had been totally ignored until that moment, as is the case of Boncompagno da Signa, Albertano da Brescia and their works. At the same time, Artifoni showed that political practices of thirteenth-century Italy were pervaded by the art of the word, to which Italians were educated through handbooks of ars dictandi and ars arengandi. After him, Enrico Faini, Lorenzo Tanzini and Florian Hartmann further articulated the reflections by extending them to the entire communal period (twelfthfourteenth centuries) and bringing a magnifying glass closer to the specific relationships between city assemblies, rhetorical education of participants, epistolary and historiographical production. Research on empire and papacy also used similar methodologies: after reflecting at length on ars dictaminis, Peter Herde, Laurie Shepard and Benoît Grévin showed that from the thirteenth century the rhetorical dimension of public epistolary production, i.e., the production of documents that were read aloud in assemblies, was at the center of ideological and political constructions of the two institutions and more generally of the greater European monarchies. More recently, Mayke de Jong has explored France during the Carolingian era, drawing attention to the relationship between the polemical intellectual production of the monk Radbert, his rhetorical strategies, his audience, and the consent towards sovereigns during the ninth century8.

A topic closely linked to the political one is the relationship between rhetoric and documentary production. Reflections on rhetorical aspects of medieval documents took shape even before the «rhetorical turn», thanks to diplomatic studies that started with Heinrich Fichtenau, if not earlier, focused on the more literary sections of public documents such as the arengae. The intersection between these older studies and the new rhetorical awareness has meant that, from around 2000, not only researchers in diplomatics but also historians dealt more systematically with the persuasive dimension of medieval written sources. Starting from a complete re-evaluation of sources such as the epistles, these scholars have understood that, within medieval chanceries, notaries and officers sought the maximum effect of rhetoric for their texts, with the help of tools such as literary manuscripts of classical authors and, above all, model-letter collections. Furthermore, that rhetoric effect found its raison d‘être in the public reading of documents in highly ritualized contexts, such as assemblies. The ancient and resistant barrier between diplomatics / history and literature has thus begun to crumble. At the heart of these reassessments are the studies of Benoît Grévin and Fulvio Delle Donne, but important steps have also been produced thanks to collective works, such as a French one on the language of Western and Byzantine acts or an Italian one on epistolary correspondence in Italy. The most investigated documentary productions are those of the papacy and the empire between the twelfth and fifteenth centuries, but recently there have been many new openings: Maria Isabel Alfonso Anton and David Aller Soriano have studied the Spanish fueros between the eleventh and thirteenth centuries, Brigitte Resl the twelfth-century Italian cartularies, Adele di Lorenzo the Italian Greek acts of the Norman period, Dario Internullo the communal epistles of Rome, Pierre Chastang and François Otchakovsky-Laurens the thirteenth-century statutes of Marseille, Adrien Roguet the French and German documents of the twelfth century, Thomas W. Smith, Matthew Phillips, Helen Killick, Linda Clark and others the English petitions and documents of the thirteenth-fifteenth centuries, Benoît Grévin and Sébastien Barret the French royal acts in the fourteenth century9.

Moving on the relationship between rhetoric and groups, first of all, one should note that already in the early 1980s there was in Italy a conference on the relationship between rhetoric and social classes. Since the 1990s the discourses have developed further, on the one hand around the formation of ethnic-religious groups, as is the case of the early medieval Bulgarians studied by Lilia Metodieva, or the late medieval Georgian church studied by Barbara Schellewald; on the other hand, around the construction of social groups or genders. Vincent Serverat, in the footsteps of Georges Duby, has studied the rhetorical construction of social classes in Castile, Catalonia and Portugal through a corpus of over 400 texts; François Menant and Enrico Faini explored the concept of populus in Italy and Europe between the eleventh and thirteenth centuries, coming to the conclusion that, even before a social class, populus designates a political program aimed at framing urban and rural communities within precise institutional frameworks, first episcopal and then municipal; Francesco Stella revealed a cultural circuit between teachers of rhetoric, hagiographic production and the emergence of civic identity in the communal cities of Bologna and Arezzo between the twelfth and thirteenth centuries. As far as genres are concerned, the development of research around late medieval women, especially those of higher social level, is truly remarkable: this is the case for instance of the studies led by Liz Oakley Brown and Louise J. Wilkinson on the rituals and rhetoric of queenship between the Middle Ages and the Modern Era, those of Rüdiger Schnell on the relationship between gender and rhetoric in the Middle Ages and in the early Modern Era, or those of Nuria Gonzalez Sanchez, Jane Couchman, Ann Crabb on the rhetoric, persuasion, and female epistolography at the end of the Middle Ages10.

Another particularly practiced theme concerns the relationship between rhetoric and images. Although already practiced by Jacob Burckhardt and Johan Huizinga, historical studies on images have greatly benefited from the twentieth-century reflections on photography, more generally on images, creating in the 1990s a fruitful field of study. I refer here to the works that explicitly use the concept of rhetoric in their research on images: Suzanne Lewis studied the narrative rhetoric of Norman Bayeux tapestries; Thomas Dittelbach and Beat Brenk studied paintings and sculptures of the palatine chapel in Palermo during the Norman period; Nirit Ben-Aryeh Debby and Marco Folin focused respectively on the persuasive aspects of the «images of the Saracens» and on the civic functions of buildings an monuments in Florence in the late Middle Ages; Olga Perez Monzon, Matilde Miquel Juan and Maria Martin Gil have contextualized and unveiled the rhetorical construction of the funeral monument of Alvaro de Luna (†1453) in the cathedral of Toledo, a monument aimed at redeeming the memory of a Spanish officer who was publicly killed under the accusation of sorcery; Mary Carruthers led a collective work on medieval artistic production (lato sensu) aimed at applying the concept of performance to authors and public, as well as at reflecting on the persuasion strategies implemented by ‗non-verbal‘ enterprises such as the architectural, figurative, musical and liturgical ones, with particular attention to late medieval France and England. As I said, these are the most aware studies of the rhetorical dimensions of images and monuments, but there are many researchers who have used similar methodologies. In addition, especially in Germany and France, there have been several collective reflections on the «rhetoric of images» in the Middle Ages11.

The encounter between rhetoric and religious history was fruitful as well. In this sense, the research focused above all on the relationship between rhetoric and preaching. Some seminal ideas seem to have come from French historiography around Jacques Le Goff between the late 1970s and the 1980s: a collective work published in 1980 focused on the rhetorical exemplum as a basis for investigating the histoire des mentalités between Antiquity and the Middle Ages, which was followed by a work by Le Goff himself on the relationship between exemplum and the rhetoric of preaching. Also in this case the 1990s witnessed to a growth in intensity of such research: starting from those early French works Nicole Bériou explored the persuasion of late medieval preaching in France with dozens of articles, recently collected in a volume; Bériou led together with Jean-Patrice Boudet and Irène Rosier-Catach a collective research on Le pouvoir des mots au Moyen Âge, focused on virtus verborum in the most diverse cultural practices of the Middle Ages, from preaching to theological writing, from miracles to curses up to magic; Michael Menzel has published a book focusing on the rhetoric of historical exemplum in late medieval artes praedicandi and sermons; Carlo Delcorno concentrated on medieval Italian preaching from many points of view, from exemplum to ecclesiastical politics, from the literary dimension to the linguistic one; Nicolangelo D‘Acunto investigated the political rhetoric of the main actors in the Investiture Conflict, as well as in religious order in the thirteenth century; Gian Luca Potestà studied the prophetic rhetoric of the Minor Friars in relation to Gioachimism; Francesca Romoli explored the communication strategies of Slavic preachers between the eleventh and thirteenth centuries, adopting a comparative perspective that took into account both the Western world of artes praedicandi and Byzantium; Antonio Sennis dealt with the persuasion strategies of monastic supernatural visions in Italy in the eleventh and twelfth centuries; in the wake of Bériou, Christian Grasso illustrated the relationship between papal politics, preaching and the crusades in the thirteenth century; Victoria Smirnova and Marie-Anne Polo de Beaulieu reflected on the Cistercian collections of exempla in Germany during the fifteenth century12.

Such rhetorical and discursive dimensions — not only of medieval texts themselves, but also pertaining to our historiographic operation — have not passed unheeded by in the studies of scholars not strictly bound to rhetorical studies or approach. It is, par excellence, the case of Joseph Morsel, professor and researcher at the University of Paris-1 – Panthéon Sorbonne, whose theoretical reflections recover a great range of intellectual interests and topics. We should like to highlight some of his writings, specially his Le diable est-il dans les détails? L‘historien, l‘indice et le cas particulier (―Is the devil in the details? The historian, the signal and the particular case‖, 2019) and Traces, quelles traces? Réflexions pour une Histoire non passéiste (―Traces, what traces? Reflections for a non-backward-looking History‖, 2016), among many other pieces of work. Morsel is also a strong interlocutor of Flavio de Campos and Hilário Franco Júnior, along with Eliana Magnani, Daniel Russo and Dominique IognaPrat. He also has valuable essays on the matter of archives and diplomatics, in the light of historical theory, here we will mention Histoire, Archives et Documents – vieux problèmes, nouvelles perspectives (―History, Archives and Documents – old problems, new perspectives‖, 2020), but there are many others.

Although emerged from the traditional narrative (see above) the studies that have dealt with the relationship between rhetoric and Humanism are decidedly important from a historiographical point of view. Thanks to a greater awareness of the ‗historicity‘ of rhetoric, they have managed to rethink deeply that cultural movement. Among the main players in this renewal are Marc Fumaroli, Ronald Witt and Clémence Revest. Fumaroli has the merit of placing the debates on style and forms of speech, promoted by the humanists themselves in the fifteenth and sixteenth centuries, in a more concrete perspective, thus raising the awareness of many historians towards the subject. In the wake of Paul Oskar Kristeller, Ronald Witt then has rediscovered the links between medieval and humanistic culture, identifying their trait d‘union in the rhetorical style of ars dictaminis practiced by Italian notaries and teachers of rhetoric, especially those who lived in Florence and Padua. Lastly, Clémence Revest was able to retrace ex novo the entire humanist movement, using public and private letter sources and observing its expansion through stylistic networks that not only from Florence, but also from papal Rome spread first in Italy and then pervaded whole Europe, inducing intellectuals to abandon ars dictaminis for a new classicizing style based on Cicero. That style in turn would have influenced the ways of thinking culture to the point of profoundly modifying educational programs of Europe13.

Those illustrated here are of course not all the historiographical fields that were formed through the «rhetorical turn», but they are certainly the most practiced. Rather than dwelling on other developing topics, such as the relationship between rhetoric and judicial practices, rhetoric and music and rhetoric and medicine, I find it more useful to conclude on rhetoric as a historiographical theme in itself. There are two trends that can be detected in the studies of the last three decades. On the one hand, the ancient binary of rhetoric as an argument and as a method of literary disciplines has by no means vanished after the «rhetorical turn» in history. Indeed, it seems that the «rhetorical turn» has also refreshed literary studies with a new strength, as it is demonstrated by a recent volume on Dante and rhetoric, edited by Luca Marcozzi. The same can be said for studies on medieval education: given that rhetoric was part of the arts of trivium since the early Middle Ages, there are countless researches that have deepened the mechanism of learning transmission of the «science du bien dire». We should mention the most recent collective studies on medieval universities, in particular those promoted by Joël Chandelier and Robert Aurélien, involving scholars such as Benoît Grévin and Clémence Revest: they have well incorporated the most recent contributions of French historiography on rhetoric. Similarly, the most recent studies on the so-called artes poetriae, promoted by Gian Carlo Alessio and Domenico Losappio, have clearly identified the schooling and rhetoric dimension of these manuals, long neglected by research, providing further insights for eliminating the border between history and literature. On the other hand, and I come here to the second trend, rhetoric as a scientific object has not only entered with new vigor in numerous historical researches, ranging once more from Byzantium to Europe, but has also undergone an interesting transformation: research has passed from the study of the theory of rhetoric to the study of rhetoric in practice, according to a process similar to that which led political history to pass from institutions to the relationship between rulers and ruled. Particularly indicative, in this sense, are the studies promoted by Floriam Hartmann on the functions of eloquence in communal Italy; the ones by Georg Strack and Julia Knödler on concepts, practices and diversity of medieval and Renaissance rhetoric; by Benoît Grévin and Anne-Marie Turcan-Verkerk on ars dictaminis in all its forms; those by Irene van Renswoude on rhetoric of free speech from the second to the tenth century – the latter also being effective in breaking down the disciplinary barrier between Late Antiquity and the Middle Ages, highlighting historical and cultural consistency of the «first millennium» well illustrated by Garth Fowden. If we adopt this broader chronological perspective, it is finally worth mentioning the ERC-funded project coordinated by Peter Riedlberger on the late antique conciliar proceedings: being focused on rhetorical and communicative aspects that lie behind the complex manuscript tradition of the proceedings, it could provide many methodological insights to the study of political and judicial acts and speeches of the Middle Ages14.

Rhetoric Turn and Medieval History. A look into Brazil.

Notwithstanding the fact that some really good researches on Rhetoric have been carried out in Brazil in the last decades, which gave rise to some mandatory readings for students and postgraduate researchers, the field is still to be deepened. As a matter of fact, should we set up a brief archeology of Brazilian pieces of work on Rhetoric and Human Sciences, we would necessarily come across initial writings in legal and literary studies.

Indeed, the first major influences from the Linguistic Turn of the 1980s was exerted in all areas of Human and Social Sciences, especially Anthropology and Law, yet the properly called Rhetoric Turn came about recently and found a large critical fortune in Philosophy of Law. In this ballast, we can mention a prime book by Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Law, Rhetoric and Communication (Direito, Retórica e Comunicação, 1979), which features a thought-provoking dialogue with his former mentor at the University of Mainz (Germany), Theodor Viehweg (1907-1988). Actually, Viehweg was responsible for this inaugural approach to Legal Philosophy in Topics and Jurisprudence (Topik und Jurisprudenz, 1953), by linking up Rhetoric, Dialectics and Law in a very original reflection.

Sampaio Júnior‘s work has also brought about an entire ―rhetorical‖ tradition in Legal Studies in Brazil, particularly at the University of São Paulo (USP), for which the Faculty of Law – Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – has proved to be an actual hatchery. For instance, some significant writing on Law and Rhetoric have been put forth by José Eduardo Faria – Political Rhetoric and Democratic Ideology (Retórica Polìtica e Ideologia Democrática, 1982)

A first and not unimportant binding with History was to be perceived in Sampaio Júnior‘s work, mainly concerning the idea of History, Crisis and Politics by Hannah Arendt in her The Human Condition of 1958. Viehweg also temporally precedes all the New Rhetoric (Nouvelle Rhétorique) championed by Chaïm Perelment (1912-1984) and Lucie Olbrechts-Tyteca (1899-1987) in Treatise of Argumentation – The New Rhetoric (Traité de l‘Argumentation – La Nouvelle Rhétorique), Law and Anthropology have preceded History in terms of adopting the rhetorical method. Henceforth, the first attempts to provide History and Literary Theory with an innovative method couched in rhetorical formulation has come from Legal Philosophy.

Nevertheless, it seems that legal-philosophical and sociological approaches have been prone to reduce the manifold dimensions of Rhetoric to the sense of Forensic Oratory, which draws roots in Cicero‘s De Oratore, with few regards to Aristotle.

Soon there will be a book by Professor José Reinaldo de Lima Lopes (University of São Paulo), named Course of Philosophy of Law: Law as Practice, expected for 2021, where an entire chapter is devoted to Rhetoric. Lima Lopes‘ great merit, in our view, is his sensibility and sensitiveness to realize that Aristotle must still be looked upon as the most important auctoritas in the field of Philosophy and History. For Professor Lopes, Rhetoric could not be reduced, at all, to its oratory dimension. It is a matter of urgently retrieving its contents as the ars of producing veracity in social relationships and providing legal practice with rational and reasonable arguments and mostly the capacity to formulate truthful judgements and assertions.

Thus, his book is going to endow us with reflections that are vital both to the realms of Cultural History and History of Law, which confirms the author‘s primacy in History and Philosophy of Law in terms of Brazil and internationally. It is not at all by chance that one of the very leading historians of our time takes exactly the same pathway. In fact, in his History, Rhetoric, and Proof (The Menahem Stern Jerusalem Lectures) (Rapporti di Forza – Storia, Retorica, Prova, 1999), Ginzburg tells of the trend to approach Rhetoric through a Ciceronian view. It hinders historians and other researchers to unfold the huge heuristic potential of Aristotle‘s doctrine of Rhetoric as the art (in the sense of τέχνη) that grants us the ways to formulate proof to our speeches, i.e., the way to elaborate truthful reasoning.

Before making its way towards History in Brazil, Rhetoric were also widely influenced by Literary Studies. However, this time, the linkage to History turned out to be much more profound and fruitful. There are, to our mind, two founding names for these studies, especially regarding the medieval period, who are Professor Márcia Mongelli and Professor Yara Frateschi Vieira.

First comes a book, organized by Professor Mongelli (University of São Paulo), called Trivium and Quadrivium – The Liberal Arts in Middle Ages (Trivium e Quadrivium – As Artes Liberais na Idade Média, 1999), wherein Mongelli has written a chapter herself, entitled ―Rhetoric: the virtuous elegance of well sayinging” (“Retórica: a virtuosa elegância do bem dizer”).

Moreover, in her turn, Professor Frateschi Vieira has composed an already classic article drawing attention to the rhetorical dimensions of narrative, ―‗A Bee in the Rain‘: rhetorical proceedings of narrative‖, which was published in Alfa – Revista de Linguìstica, 16th volume, 1970.

Both scholars organized a collection of medieval writings and narratives featuring rhetorical motives and topics ranging from the 11th to the 15th century and entailing auctoritates both from Islam and Latin Christendom. Their excellent Introduction to the collection itself can perfectly act out as a detailed guidebook for rhetorical studies and maiden researches in the area, as was our own case. The collection book is nominated Medieval Aesthetics (Estética Medieval, 2001).

A colleague and friend of Mongelli and Frateschi Vieira, Professor Maria do Amparo Tavares Maleval, is as well to be regarded as a major researcher on Medieval Rhetoric, which we can promptly infer from her book Fernão Lopes and Medieval Rhetoric (Fernão Lopes e a Retórica Medieval, 2010). The three of them, Mongelli, Frateschi Vieira and Maleval, with the support of the Brazilian historian Hilário Franco Júnior, stand for the very idealizers and founding members of the Brazilian Association of Medieval Studies (ABREM), which has existed since 1996.

One specific citation is as well mandatory: a very recent piece of work by Dante Tringali (University of São Paulo), Ancient Rhetoric and Other Rhetorics (A Retórica Antiga e Outras Retóricas, 2013), which stands for a culminating moment of his research career, having succeed two other masterpieces in Brazil, i.e. The Poetics of Horace (A Arte Poética de Horácio, 1983) and Introduction to Rhetoric: rhetoric as literary criticism (Introdução à Retórica: a retórica como crìtica literária, 1988).

Furthermore, it is relevant to point out the works, specifically dedicated to Rhetoric, by José Luiz Fiorin (University of São Paulo), with his recent Rhetorical Figures (Figuras de Retórica, 2014), and Luiz Rohden (UNISINOS), with The Power of Language: The Rhetoric of Aristotle (O Poder da Linguagem: a Arte Retórica de Aristóteles, 1997).

Recently, much attention is drawn to the researches of Artur Costrino (UFOP), whose main subject is the rhetorical production of Alcuin of York (c.735-804), principally couched in his De Rhetorica from around the year 790, drawing its roots to the Palatine Court of Charlemagne.

Nonetheless, the very ground of Rhetorical Studies in nowadays Brazil definitely lies upon two major authors, João Adolfo Hansen (University of São Paulo) and Alcir Pécora (University of Campinas). They respectively wrote The Satire and the Spirit: Gregório de Matos and 17th century Bahia (A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, 1989) and The Machine of Genders (Máquina de Gêneros, 2001), both having given rise to a huge number of studies, monographic pieces of work, dissertations and books on Rhetorics and Belles Lettres.

Their great influence has not been restricted to the field of Literary Theory or Critics. The domain of Cultural History has gained a great deal from it in Brazil, as we can prove by resorting to the great work of Alìrio Carvalho Cardoso (Federal University of Maranhão) on Rhetorics and Epistolography, mainly pointing out to his article, composed in partnership with Alcir Pécora, ―An art lost in the Tropics: Jesuit‘s Epistolography in Maranhão and Grão-Pará (17th-18th centuries)‖ (―Uma arte perdida nos Trópicos: a epistolografia jesuìta no Maranhão e Grão-Pará, Séculos XVII-XVIII‖), published in the 8th volume of the Revista de Estudos Amazônicos (2012).

Although not a tout court historian, we should like to mention the writing of Fábio Palácio (Federal University of Maranhão) on Rhetorics and Economics, in partnership with Cristiano Capovilla, named ―We are, in fact, hell: on method and rhetoric in Economics‖ (―Somos, de fato, o inferno: sobre método e retórica na Economia‖), published in Revista Princìpios, 8th volume, 2016. This piece of critical work draws an important interface with Economic History and has proved much influential in our Northeast part of Brazil, especially in Maranhão, where Brathair is officially held.

At last, directly pertaining to the realm of Medieval History, there are the researches by Professor Flavio de Campos (University of São Paulo), which encompass the theme of games and ludic modalities, wherein he handles Aquinas‘ retrieval of the Aristotelean virtue named eutrapely (ST. II-IIae, q.168), also appearing in the Comments to Aristotle‘s Ethics (IV,16). It is indeed the virtue ordaining and balancing human appetite to experience fun.

It is certainly worthy catching a glimpse of the work of Ricardo da Costa (Federal University of Espìrito Santo), specially The Rhetoric in Antiquity and the Middle Ages from the perspective of eleven philosophers (2019) and his painstaking translation of Ramon Llull‘s New Rhetoric (1301).

Finally, there has been the recent work by Marcus Baccega (Federal University of Maranhão) addressing the rhetorical and sacramental dimensions of chivalric romans from the Central Middle Ages in the German regions of Central Europe. We should like to mention his book The Sacrament of the Holy Grail (2020), in which a reflection on medieval sacramentology and rhetoric is developed by leading off from German Arthurian narratives of the 13th century.

Baccega‘s researches are deeply influenced by the French medievalist Professor Joseph Morsel (University of Paris-1 – Panthéon Sorbonne), whose theoretical reflection on reading and interpreting medieval writings and also on Methodology and Theory of History have turned out to be a great source of scientific inspiration. The first wave of inspiration and enthusiasm for the rhetorical approach to medieval romans and chivalric novels has come from Professor Flavio de Campos, who has permanently been sensitive to the need of defining other ways of focusing medieval narratives. A great influence is also exerted by the work of the aforementioned Professor Benoît Grévin (University of Paris-1 – Panthéon Sorbonne), whose researches deal directly with Rhetorics in Middle Ages, as already explained in the first part of this Editorial.

Contributions to this Edition

It is actually on this ballast that the articles found in this edition of Brathair explore the manifold relationships between the Rhetoric Turn and Human Sciences, evincing all its heuristic potential to Medieval History.

Therefore, our edition, nominated Rhetoric in Middle Ages, features at first the dense article by Professor Benoît Grévin (LAMOP / University Paris I), L‘ars dictaminis et la poésie: questions théoriques et pratiques (XIe-XIVe s.) (The ars dictaminis and poetry: theoretical and practical questions), which lays emphasis on the epistolographic character of medieval rhetorics, thus stressing a major dissemblance to ancient rhetoric. Very relevant for both personal and political purposes, letters were the sources of rhetorical expression. From the 11th to the 15th centuries. This is why the so-called Artes Poetriae and Artes Dictaminis feature so many intersections and convergences, being one of their functions the teaching on how to compose decorous pieces of writing for communication. The article explores as well the metrical and properly poetical traits of these letters, gracing our Edition with a true Lectio on the subject, as the readers shall certainly remark.

Our second article is by Professor Alberto Cotza (University of Florence), Le orazioni nel Liber Maiorichinus (Prayers in the Liber Maiorichinus), which poses very pertinent questions on language and speech in the 12th century Pisan society through a truly exegetical approach of a text barely known to Brazilian scholars. It is the Liber Maiorichinus, an epic poem dealing with the history of the Balearic war, which the Pisans and other Christians conducted against the Muslims in Ibiza, Minorca, and Mallorca (1113-1115), as the author lectures.

Such a sophisticated exegesis, in terms of Linguistics and Rhetoric is to be found as well in Professor Clara Barros‘ (University of Porto) reflection entitled A construção da imagem do poder em textos jurìdicos da Idade Média peninsular (The construction of the image of power in legal texts of the Middle Ages). Drawing precisely upon the theoretical and methodological interface between Discourse Pragmatics and the multiple versions pertaining to the Theories of Argumentation, Barros seeks to analyze some strategies of the persuasion characteristic of Afonso X – the Wise‘s legislative work which reveal a certain relationship between rhetorical construction and political power in the Peninsular Middle Ages (in the 13th and 14th centuries). Focus is here laid upon the argumentum ab auctoritate in the Primeyra Partida (1265) and the Foro Real (c.1280), which allows the author to explain in detail and by means of graphs the ideological structure of Iberian medieval societies in the 13th and 14th centuries.

By dint of his expertise in the field of Rhetorics and Historiography, the Italian researcher Dario Internullo (University of Rome-3) proposes a dense reflection about the links between Historical Theory, Diplomatics and Rhetorics regarding the legal practice of process citation in the commune of Rome during the Late Middle Ages. His article is called A citação na chancelaria – a comuna de Roma no Medievo (Citation in Chancellery – The commune of Rome in Middle Ages) and presents the very potential of rhetorical analysis not only to the sciences of language and to interpreting documents and testimonies (in this case, sources contrived and made circulate by lay and clerical authorities), but to casting a complex historiographical problem to hard political and legal documentation in order to achieve what we would dare to call a Total History.

Providing very qualified concreteness to our purpose of an interdisciplinary dialogue, and once again exposing how Historiography owns much to Literary Theory in terms of rhetorical studies, we present the text by Professor Márcia Mongelli (University of São Paulo), which analyses the connection between Rhetoric and Poetry in the troubadours‘ and trouvères‘ love songs from Central Middle Ages. The poem chosen in her A ―retórica cortês‖ e suas sutilezas (Courtly Rhetoric and its subtleties) is Senhor Genta (―Gentle Lady‖), composed by the Galician-Portuguese troubadour Joan Lobeyra (c. 1233-1285), which would grant the poetic matter and topics to the notorious 16th century chivalric novel Amadis de Gaula (1508), by Garci Rodrìguez de Montalvo.

This early 16th century Portuguese edition was preceded by a Castilian one from 1496, yet both of them take roots in an original Portuguese version that would have been conceived by Vasco Lobeira during the reign of Dom Fernando I (1367-1383). Mongelli‘s piece of work actually acquires poetic tones and builds up a past-present analysis by resorting to the poems of Amor em Leonoreta (1951) by the major neosymbolist Brazilian poet Cecìlia Meireles, who devoted part of her poetic production to retrieving our medieval roots.

In the present edition of Brathair, we are also graced at the presence of an article by a much prominent scholar in the domain of Medieval Rhetoric, Professor Maria do Amparo Tavares Maleval (State University of Rio de Janeiro), whose contribution is dedicated to a rhetorical analysis of the great figure of Portuguese drama in Late Middle Ages. The article is entitled A Retórica no Purgatório de Gil Vicente (Rhetoric in the Purgatory of Gil Vicente). It is certainly a discussion on the playwright Gil Vicente, whose play Auto da Barca do Purgatório (―Purgatory barge auto‖, 1518) is here the theme for manifold perceptions concerning the classical parts of rhetoric, mainly the elocutio, dispositio and inventio. Thus, traits of humor, comic scenes and strict morality and virtues are interlarded in the plot, along with the threefold conception of the Other World. For historians interested in unravelling the late medieval imaginary about death and afterlife, this text is definitely a must.

Appealing to the Early Middle Ages – or Late Antiquity, as the author advocates – Professor Ana Paula Tavares Magalhães (University of São Paulo) brings us a reflection about the conversion itinerary pertaining to Saint Augustin, from 382 to 386. Her piece of work could not have been nominated in a different manner: A Ars Rhetorica de Agostinho de Hipona na narrativa das Confissões (The Rhetoric Art of Augustine of Hyppo in the narrative of The Confessions). Such testimony is couched in the most well-known opusculum by the Doctor Gratiae, The Confessions, written between 397 and 400, which poses the many pathways and drawbacks of a former Roman pagan from the classis senatorialis in his, so to say, ―itinerarium mentis in Deum‖. Our present comparison takes roots forward to Saint Bonaventure‘s treatise of the year 1259, as a way to highlight the role played by Magalhães as a specialist in Franciscan studies, whose highbrow qualities allow her to identify and dissect Saint Augustine‘s work itself and his huge theological and philosophical influence over the Franciscan writers. This is precisely the reason why the author resorts to the mystic of conversion regarding Augustine, as a manner to uncover a meaningful pattern for the studies on Augustin‘s Rhetoric techniques, as well as it provides a paradigm of symmetry between Augustin‘s life and the History of the Church, her specialty.

Also dealing with the erudite culture layers in Central Middle Ages, Professor Sérgio Feldman (Federal University of Espìrito Santo), a highlighted specialist for Jewish history in the Middle Ages proposes a reflection on a wise Jew from the Hispania of the three religions. As a matter of fact, the article Yehuda Ha-Levi: a retórica na polêmica religiosa no século XI-XII – O Livro de Cuzari (Iehudá Ha-Levi: rhetoric in the religious polemics in the 11th-12th centuries – The Book of Cuzari) portrays and dissect the many rhetoric disputationes in Iberia on the ―true‖ or ―best‖ religion. This way, Feldman narrates and casts a historiographical problem on the Book of Cuzari, the narrative of the conversion of the Khazars to Judaism. So, a literary work that endeavors to demonstrate that the Jewish religion is superior to that of its competitors, even if the Jewish people were subject to an oppressed minority condition.

At this moment of our edition, we come across a very original reflection by Professor Terezinha Oliveira (State University of Maringá) about the statute of language as a subject and the philosophy of language in Aquinas, by making use of the Summa Theologiae: Quaestiones 176 and 177 – IIa-IIae . The article A Retórica como Princìpio do Intelecto e da Linguagem em Tomás de Aquino (Rhetoric as principle of the Intellect and Language in Thomas Aquinas). Having been a profound specialist in the thought – both theological and philosophical – of Aquinas for decades, Oliveira poses herself the challenge of dissecting the role and philosophical locus of Rhetoric as a grounding pillar of his reasoning on language and the unity of the human intellect. This papers also handles Aquinas‘ reading of Aristotle as a rhetoric auctoritas, basically by leading off from Aquinas‘ Commentary on Aristotle’s On Interpretation very well, which demonstrates the connection between language and the intellective appetite of human beings.

Further reflection on highbrow culture in High Middle Ages is provided by a young and much talented scholar from the Federal University of Ouro Preto, Professor Artur Costrino, who has spent many years investigating the work of Alcuin of York De Rhetorica (c.790). As the author pinpoints in his Disputatio de rhetorica et virtutibus de Alcuìno de York: crìtica às recepções modernas e hipótese sobre a organização dos dois assuntos do diálogo (Alcuin‘s of York Disputatio de rhetorica et virtutibus: criticism of modern receptions and a hypothesis about the organization of the two subjects of the dialogue), this dialogue by Charlemagne‘s most famous teacher had a huge favourable acceptance and circulation in its period. Nonetheless, De Rhetorica seems to have been forgotten by scholarly research in our time. Therefore, Costrino‘s piece of work shall surely open up new investigation lines in Medieval Rhetorics and the practices of power by the time of first Renovatio Imperii under Charlemagne and in the aftermath.

In contrast to Costrino‘s analysis of De Rhetorica as an ars of prudence and exercising virtues, Professor Leandro Rust (University of Brasìlia) stresses warfare and violence in Middle Ages, attempting to think the theme of bloodshed over. His article Retórica Sangrenta: pensar a comunidade na Idade Média (Bloody Rhetoric: thinking Community in Middle Ages) challenges the reader to rethink and cast doubt on the common images we all would, almost automatically, associate with our period of study and research. It is not a matter of whittling down that violence and bloodshed were ubiquitous, yet rather of spelling out its significance in terms of medieval communities. Such is the aim of Rust in this reflection, which leads off from a crime that took place in England in the 13th century, which sets bloodshed, authority, power and crime together as signs to be deciphered.

We have in this edition a text that merges History, Literary Theory and Philosophy, approaching a female voice of wisdom in the Late Middle Ages, Christine de Pizan. The Book of the City of Ladies (1405) is probably her most celebrated piece of work and here stirs up a reflection on Education, on women‘s condition in our own time and in Middle Ages. This is why Professor Luciana Eleonora Deplagne (Federal University of Paraìba) endeavors to formulate a hermeneutic exercise regarding the Socratic idea of maieutic applied to the struggle of women for more autonomy and rights to perform tasks usually thought of as masculine. Therefore, the idea of knowledge being born in a metaphorical scene with three « midwifes » and the « parturient » apprentice is here presented as a Platonic dialogue between Lady Reason, Lady Justice and Lady Righteousness and the narrative persona of Christine de Pizan.

The following article can be properly situated in the typically medieval intertextuality drawn between hagiographic narratives (Vitae), rhetorical topics and homiletics in Early Middle Ages / Late Antiquity. Called Retórica e Hagiografia: a Vita Martini (Rhetorics and Hagiography: the Vita Martini), by post-doctoral researcher Glìcia Campos (State University of Rio de Janeiro), the text bethinks the rhetorical aspects of Christian persuasion and exemplarity of conduct by the saints. The basic dialogue of the main part of the corpus is held – and it could not be any different – with the auctoritas of Aristotle and his Rhetorical Art. The writing of Campos bears resemblance, concerning its aims, to Grévin‘s contribution, since the scope of language analysis ranges from Rhetorics to Hagiography, having the idea of conversio morum as a common trait, just like the dictamina.

Moreover, in a sort of dialogue with Mongelli‘s writing, Doctor Ana Luiza Mendes aims at investigating the rhetorical traits of King Dom Dinis‘s poetry. The author regards him as the greatest Portuguese troubadour and a hugely erudite man of his days. Though not intended to be any ―biography‖ of Dom Dinis, this A retórica trovadoresca de Dom Dinis, o rei que não tira a coroa ao trovar (The troubadours‘ rhetoric of Dom Dinis, the king who did not take out the crown to composse troves) features a kind of historiographic individual inquiry that can be sorted out and demonstrated by the traces and indices left by Dom Dinis in his love songs. Our readers shall find it amusing to uncover this enormous cultural heritage hidden in the royal figure, who gives way to catching a glimpse of all the social structures and processes.

A thought-provoking reflection on the relationships between History and Rhetoric, having the Regnum Francorum and the transition from the Carolingian to the Capetians, is adduced by Professor Bruno Casseb Pessoti (Federal University of Western Bahia). Addressing the Historiarum Libri Quatuor by the monk Richer of Saint-Rémi, A retórica como suporte da ‗verdade‘ em um livro de História do século X (The rhetoric as support for ‗truth‘ in a 10th century History book) explores the close bonds between the activity of writing History and persuasive topics handled to legitimate the new dynasty. In this sense, Pessoti achieves a refined combination of Rhetorics and Political History, without renouncing to ensemble view, thus being able to fathom social sensibilities related to Frankish monarchy at the passing of the millennium.

The last thematic article was written by Professor Marcus Baccega (Federal University of Maranhão). Named A Demanda do Santo Graal: Retórica e Poder no Milênio (The Quest of the Holy Grail: Rhetoric and Power in the millennium), the paper aims at proposing a Total History of the passage of the first millennium of the Common Era, by resorting to the Holy Grail as a metaphor, at the level of the ideological representation, of such moving totality. By the way, the Holy Grail purports many dimensions, even heretic ones, of the central-medieval imaginary, defined by the theological concepts of sacraments and sacramentals, point out to a trace of mentality ranging from the Cathars and Templar Knights to the so-called erudite culture. The basic idea is that the Holy Grail acts out (in the sense of having social agency) as a strong symptom of the Immitatio Christi and the Vita vere apostolica as mental traces which are set into dispute both by the Pontifical Reform and by the centralizing attempts of the Holy Roman Empire.

In the section reserved to articles with free choice themes, we also begin with a medievalist of value, Professor Carlile Lanzieri Júnior (Federal University of Mato Grosso). His piece of work, called O lugar da infância medieval nos escritos dos mestres Alain de Lille (1128-1203), João de Salisbury (c.1115-1180) e Adelardo de Bath (1080-1152) (The place of the medieval childhood in the writings of the masters Alain of Lille (1128-1203), John of Salisbury (ca.1115-1180) and Adelard of Bath (1080- 1152), is much thought-provoking as well. Lanzieri draws upon the lectiones of the aforementioned masters and the emphasis they used to lay on Grammar, in order to demonstrate that there was a specific social locus for children and teenagers during the Middle Ages. Therefore, it is a challenging writing in terms of the traditional historiography of the 20th century and even most historians nowadays.

The second article of free choice subject is a contribution by Professor João Batista Bitencourt (Federal University of Maranhão), who lectures Theory of History and History of Historiography at UFMA. The writing deals with a theoretical reflection about History as a scientific discipline and the historiographical operation, by leading off from a famous and intriguing film of the year 1995, nominated Se7en, shot by David Fincher. The author resorts to the philosophy of History of Walter Benjamin in order to weave a joint reasoning about time, event and narrative and to think the implications of the past we retrieve to the present of the historian.

We should also like to offer a very good translation of The New Rhetoric (1301) by Ramon Llull, composed by a major specialist in the life, thought and relationships of the Mallorcan philosopher. It is here a very well carried out and painstaking translation that will certainly give rise to and assist a great number of new researches on the life and work of Llull. The choice could not have been better and we thank Professor Ricardo da Costa for this gift granted to Brathair.

Last, but not least, there is the recension written by a junior researcher of Brathair, Thaìs dos Santos, about the recent book Les Gaulois. Variétés et Légende (2018) de Jean-Louis Brunaux which matches the initial and permanent thematic scope of our journal. There are still very few researches on Celts in terms of Historiography, being the Celtic culture more widely known to Literary Theory and Archeology. This well contrived recension – we do hope – is going to wake up new professional callings to such studies.

Notas

1. For the linguistic turn see Yilmaz 2007.

2. Kuhn 1962; Gaonkar 1990, 354.

3. Simons 1990.

4. Gaonkar 1990.

5. Burke 2001.

6. Simons 1990, 5.

7. Hostein 2003, 2.

8. For Byzantium see Koutrakou 1994; Dostalova 1995; Hilsdale 2003. For communal Italy see Artifoni 1993, 2002, 2011; Cirier 2007; Tanzini 2014; Faini 2015, 2018; Hartmann 2013, 2019. For empire and papacy see Shepard 1999; Herde 2008; Grévin 2008a. For the early Middle Ages see De Jong 2019.

9 For reflections on diplomatics, see Fichtenau 1957 and Winau 1965. The above-mentioned studies, well contextualized also in the so-called «archeology of medieval text» (Chastang 2008), are: Delle Donne 2003, 2004, 2016; Alfonso Anton 2007 and Aller Soriano 2009; Grévin 2008a and 2008b; Resl 2008; Di Lorenzo 2009; Dodd et al. 2014; Barret-Grévin 2014; Clark 2017; Chastang-Otchakovsky 2017; Roguet 2017; Smith-Killick 2018; Internullo 2019. For papacy and empire see, beyond Grévin: Hold 2001 and 2006, Holzapfl 2008. Collective works are Guyotjeannin 2004; Gioanni-Cammarosano 2013; Cammarosano et al. 2016 and now also Grévin-Hartmann 2020.

10 Cortelazzo 1983; Metodieva 1993; Schellewald 2012; Serverat 1997; Menant 2019; Faini c.d.s.; Stella 2009; Oakley Brown-Wilkinson 2009; Schnell 2010; Gonzalez Sanchez 2013; Couchman-Morton Crabb 2005. For women‘s writing in the Middle Ages and the Renaissance see also Zarri 1999; Miglio 2008; Lazzarini 2018.

11 For the reconsideration of images see Burke 2001. The here mentioned researches are Lewis 1999; Dittelbach 2006; Brenk 2011; Debby 2012; Folin 2013; Perez Monzon et al. 2018; Carruthers 2010. For some collective reflections see Kapp 1990; Brassat 2005 e Knape 2007; Vuilleumier Laurens-Laurens 2010; Fricke-Krass 2015.

12 David-Berlioz 1980; Le Goff 1988; Bériou 2018; Bériou et al. 2014; Menzel 1998; Delcorno 1974, 1989, 2009, 2015a, 2015b; Potestà 2007; D‘Acunto 2009, 2012, 2018; Romoli 2009; Sennis 2013; Grasso 2010, 2013, 2014; Smirnova-Polo de Beaulieu 2019.

13 Fumaroli 1980; Kristeller 1969, 1981; Witt 2000, 2012; Revest 2013a, 2013b; Delle Donne-Revest 2016. Other important works are Murphy 1983; Rubinstein 1990; Plett 1993; Vasoli 1999; Vaillancourt 2003; Helmrath 2011; Mack 2011; Delle Donne-Santi 2013; Russo 2019.

14 Marcozzi 2017; Chandelier-Robert 2015; Alessio-Losappio 2018; Hartmann 2011; Strack-Knödler 2011; Grévin-Turcan-Verkerk 2015; van Renswoude 2019. For Riedlberger‘s project and the conciliar proceedings see and Mari 2019. See also Acerbi 2011. For further recent studies on medieval rhetoric see Fried 1997, Carracedo Fraga 2002, Jeffreys 2003, Borch 2004, Kofler-Töchterle 2005, von Moos-Melville 2006; Romano 2007; Struever 2009; Maldina 2011; Camargo 2012; Kraus 2015; Ward 2019; Burkard 2019. For the «first millennium» see Fowden 2014.

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Marcus Baccega (Federal University of Maranhão). E-mail: marcusbaccega@uol.com.br


INTERNULLO, Dario; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.20, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Resenhando. Alfenas, v.1, n.1, 2020.

Edição Inaugural

Em sua edição inaugural, a Revista Resenhando conta, em larga medida, com publicações de resenhas escritas pelos integrantes do grupo PET – Conexões de Saberes – Letras da Universidade Federal de Alfenas. Advindas das mais variadas temáticas do campo das Letras, convidamos a todos os interessados em submeter suas resenhas, originais e inéditas, como um modo de contribuição para o compartilhamento do saber inerente às áreas de Letras ou a áreas correlatas. Organizadores: Fabrício José da Silva (UNIFAL-MG) e Karina de Oliveira José (UNIFAL-MG).

PUBLICADO: 06-08-2020

TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA

LITERATURAS

ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA

HISTÓRIA

ESTUDOS DE GÊNERO

LINGUÍSTICA

Identidades e sexualidades hegemônicas e contra-hegemônicas. Feminidades e masculinidades em tempos autoritários / Locus – Revista de História / 2020

Identidades y sexualidades hegemónicas y contrahegemónicas. Feminidades y masculinidades en tiempos autoritarios*

El artículo de la historiadora Joan Scott, El género una categoría útil para el análisis histórico, supuso un importante marco interpretativo en la disciplina de la Historia al abordar la categoría de género como una construcción sociocultural. Esta interpretación implica que las diferencias de género no son “naturales” según el sexo biológico, sino que tienen un carácter mutable y no fijo y, por lo tanto, son fenómenos histórico-culturales. Dicha visión, que rechaza la idea determinista y biologicista del género, significó un giro radical en las interpretaciones de las ciencias humanas y sociales en el Occidente. No obstante, desde diferentes latitudes del mundo, varios / as teóricos / as han profundizado y complejizado el concepto de género desde miradas interseccionales gracias a los aportes de las feministas negras y a partir de epistemologías procedentes del Sur. Con la pregunta realizada por la teórica india del Grupo de Estudios Subalternos, Gayatri Chakravorty Spivak, en ¿Puede hablar el subalterno / a?, la teoría postcolonial llevó a cabo una profunda crítica a la permanencia de un único sujeto con voz, a la invisibilización y a la construcción de las representaciones de la otredad desde Occidente. En este sentido, el feminismo postcolonial ha sido importante para resaltar la naturaleza compleja de las identidades y, en consecuencia, ha logrado rechazar la noción de que el género es una categoría universal y homogénea.

Los feminismos postcoloniales desafiaron las bases etnocéntricas de los feminismos occidentales y cuestionaron su supuesta neutralidad, su carácter universalizador, y su poder de representación y de creación de identidades (Landaluze y Espel 2015, p.36). Más recientemente, surgieron las teorías decoloniales en América Latina, cuyo enfoque se relaciona con la herencia colonial que se instala en América a partir de 1492 y que está conectada con el pensamiento, filosofía y teoría latinoamericana, La decolonialidad rompe así con las tradiciones modernas y occidentales, con el eurocentrismo. Es aquí donde emergen los saberes y epistemologías comunitarias, indígenas, afros, populares urbanos en el centro (Espinosa Miñoso 2014). Las diferencias en el acceso al conocimiento y a los espacios de debate de dichas universidades marcan también una diferencia fundamental entre decoloniales y postcoloniales. Así todo, la fecha de 1492 es considerada el punto de partida fundamental, pues es desde esta temporalidad que se construye la superioridad epistémica y política de Occidente sobre el resto del mundo, aunque, desde “lo decolonial” se invitará a poner América en el centro a partir de los trabajos del peruano Aníbal Quijano (Bidaseca et.al 2016, p. 199).

Desde las teorías feministas que han roto con la matriz colonial destaca la argentina María Lugones, quien ha propuesto el concepto de colonialidad del género [1] . De la mano del enfoque de la interseccionalidad, se busca interpelar las teorías decoloniales desde los feminismos y poner en el centro el cuestionamiento de la lógica opresiva de la modernidad colonial al desvelar la organización biológica dimórfica y heteropatriarcal de las relaciones sociales (Lugones 2010). Como ha señalado Karina Bidaseca, “la alteridad se realiza en lo femenino”, es decir, la forma en la cual los cuerpos femeninos de las latitudes de América del Sur han sido vistos como territorio de conquista (2014, p. 587). El feminismo decolonial pretende construir otro horizonte de sentido histórico, es decir, realizar una relectura de la historia con nuevas temporalidades y desde las múltiples miradas, categorías, epistemologías y cosmovisiones construidas por las mujeres de la región, otras formas de resistencia o transgresión de las estructuras del coloniaje. De esta forma, las mujeres indígenas —o más bien las “feministas desde Abya Yala [2] ” y las antipatriarcales— proponen epistemologías que parten de la cosmovisión de los pueblos originarios también modificadas por las construcciones sociohistóricas patriarcales que llegaron con el coloniaje, a las que buscan combatir al interior de sus comunidades. También en este camino se sitúan las feministas afrodiaspóricas que pretenden ennegrecer el feminismo al mostrar el peso de la raza, así como la visibilización de sus conocimientos ancestrales y de sus epistemologias [3].

A partir esas nuevas miradas desde los estudios de género también se han abierto posibilidades para la teorización sobre masculinidad(es), en especial en aquellas cuestiones referidas a conceptos como la sexualidad o la normalidad (Simón Alegre 2014). Las masculinidad(es) pueden ser entendidas como una construcción sociocultural que comprende una serie de valores, creencias, actitudes, comportamientos, conductas, lenguajes, deseos, subjetividades, las cuales son configuradas a través de discursos y representaciones culturales socialmente legitimados y constantemente negociados en un tiempo y en un contexto cultural específico (De Martino Bermúdez, 2013). En definitiva, se trata de comprender la forma en la cual las masculinidades funcionan en las diferentes facetas de la vida a partir de las tres esferas que define R.W Connell: productiva, poder y cathesis. Es decir, en primer lugar una división sexual del trabajo configurada en torno a la estratificación del trabajo productivo según las relaciones de género; en segundo lugar, el poder que ha configurado la dominación de los hombres sobre las mujeres con el patriarcado histórico, y, en último lugar, la cathesis, que se refiere a la emocionalidad, la construcción social del deseo. Los modelos de género contenidos en las representaciones culturales en cualquier etapa y tiempo histórico moldean o afectan todas las áreas vitales de las personas.

En este sentido, de acuerdo con R. W. Connell (2005), el género pasa a ser comprendido como una forma de expresión de las estructuras, dentro de un sistema que limita y define las múltiples feminidades / masculinidades. De esta forma, los abordajes sobre masculinidades buscan subrayar la complejidad de las construcciones sobre masculinidad y feminidad, puesto que el sistema de género “involves male / male and female / female relations as well as male / female” (Connell y Pearse 2014, p. 69). De la misma forma pensamos, siguiendo a Scott, que aquello que discursivamente o por medio de representaciones se construye sobre las mujeres sirve a su vez como información para el colectivo de las identidades “hombre”, en tanto se influyen mutuamente (Ayala-Carrillo 2007, p. 741). Así, masculinidad y feminidad se construyen en constante diálogo como potenciales de identidad colectiva, percibidas en términos de relaciones de poder, las cuales pueden ser complejizadas desde el enfoque interseccional de género, clase, raza, sexualidades, edad, etc. Asimismo, en la cultura occidental, donde la visión es el sentido privilegiado (Oculocentrismo), el cuerpo tiene una importancia decisiva en la construcción del género. Así para Connell (1995, p. 53), “the physical sense of maleness and femaleness is central to the cultural interpretation of gender”. La teórica nigeriana Oyèrónké Oyewùmí (2005) señala que la cultura occidental se ha construido en base a dicotomías: público / privado, visible / invisible, civilizado / bárbaro, naturaleza / cultura, hombre / mujer. Sin embargo, en otras sociedades, como en la cultura Yorùbá, se han privilegiado otros sentidos más allá de lo visual y, lógicamente, las construcciones de género son distintas o incluso pueden no existir como tales.

Otro enfoque que posibilitó una de las mayores renovaciones teóricas en los estudios feministas es la llamada teoría Queer. En el idioma inglés, la palabra queer significa extraño y anormal. Esta palabra se usó durante muchos años como una forma peyorativa para referirse a los homosexuales, y luego fue reemplazada por la palabra gay. Sin embargo, en la década de los años noventa la palabra queer fue resignificada por los movimientos de liberación sexual y pasó a tener una connotación política. La feminista Teresa de Laurentis fue la primera persona en utilizar el término en la Academia, lo que posibilitó cuestionar las normas heterosexistas en las investigaciones.

La llamada teoría queer es producto del cuestionamiento sobre la categoría mujer basado en una referencia genital, y por ello busca incluir en las discusiones filosóficas la sexualidad, las identidades de género y la construcción sociocultural del deseo. Con la inclusión del enfoque queer, las lentes violetas son ampliadas al criticar la heterosexualidad y la cis-normatividad. Entre sus teóricas / os más conocidas / os se encuentra Judith Butler, quien explora las diversas formas de expresión de la sexualidad. Para Butler (2018), los discursos heteronormativos y falocéntricos han disciplinado milenariamente a los cuerpos, obligando a varones y mujeres a jugar papeles predefinidos de varón / mujer. En este sentido, los individuos performan el género para intentar conformarlo en el ideal cisheteronormativo. Por ello, sostiene que el proyecto político del feminismo debe tener como objetivo central la deconstrucción del binarismo sexo-género.

Dentro de los estudios sobre sexualidad encontramos también diversas teóricas decoloniales, como Ochy Curiel con su trabajo La nación heterosexual (2013), en el que critica el sistema cisheteropatriarcal como un régimen político. Las teóricas bolivianas Adriana Guzmán y Julieta Paredes (2014, 37-38) del feminismo comunitario, también señalan la importancia de las “relaciones lésbicas como parte de la resistencia a la norma heterosexual”. En este sentido son también valiosos los trabajos de la socióloga Leticia Sabsay sobre teoría queer y sexualidad, los cuales precisamente proponen esta interseccionalidad para pensar políticas sexuales que discutan los marcos liberales (Sabsay 2011). Sin embargo, critican la teoría queer, y especialmente las aportaciones de Judith Butler, por rechazar la existencia del sujeto mujer, ya que defienden que el patriarcado es el origen de todas las opresiones y que éste es construido sobre el cuerpo de las mujeres. Por otra parte, otras teóricas como Iki Yos Pîña Narváez u Oyèrónké Oyewùmí plantean el binarismo de género y la construcción de los cuerpos como una imposición colonial. Para Yos Piña, el concepto queer es una categoría neocolonial y apropiada desde la blanquitud académica (Piña 2017, p. 38). Así, la “queer normativity forma parte de la producción de poderes epistémicos y silencios que soportan la autoridad de la supremacía blanca” (Piña 2017, p. 43), pues excluyen los cuerpos no binarios desde otras culturas y cosmologías como la de los Orishas o las de la cosmopolítica Yoruba.

De esta forma, a partir de este bagaje teórico plural y en constante reelaboración, el presente dossier se propone indagar en los aportes derivados del estudio de las masculinidades y de las feminidades que pervivieron en el marco del autoritarismo -en sus diversas estructuras de control, represión y poder- durante los siglos XIX, XX y XXI. Se pretende esclarecer qué ha significado ser hombre y ser mujer y qué visión se ha naturalizado de la “masculinidad” y “feminidad” en diferentes periodos, así como de los individuos disidentes sexuales en contextos de persecución y de autoritarismo. Siendo las relaciones de género un ingrediente central de los discursos y proyectos de Estado, la aspiración de promover un ideal normativo de masculinidad y feminidad hegemónicas configura un orden de género determinado en diversos contextos. Sin embargo, también es interesante señalar que tantos los gobiernos democráticos, como los estados europeos, latinoamericanos, israelí, estadounidense, entre otros, fueron y siguen siendo extremadamente autoritarios en cuanto a sus formulaciones de género desde una matriz colonial, patriarcal y blancocéntrica.

Por otra parte, la historiadora Inmaculada Blasco (2010) señala la importancia de observar más allá de la sumisión y relativizar la eficacia de los discursos de género con el fin de no aceptar como dato incuestionable la ausencia de autonomía de conciencia y la agencia e identidad de los sujetos históricos. En este sentido, el propósito del dossier Identidades y sexualidades hegemónicas y contrahegemónicas. Feminidades y masculinidades en tiempos autoritarios se encuentra en la exploración de las identidades y subjetividades que emergieron bajo diferentes contextos históricos y políticosociales, dando especial importancia a las transformaciones que acontecieron bajo estructuras autoritarias. Son de especial importancia los trabajos que van más allá de los discursos hegemónicos y la interiorización de los mismos. Por ello, son importantes los análisis de procesos y prácticas “desde abajo”; es decir, las experiencias de los sujetos subalternos, la posibilidad de construcción de identidades no-hegemónicas y las contribuciones anti-discursivas que resistieron y negociaron con los “de arriba”, prestando especial atención a las distintas formas de resistencia y agencia que se formulan / formularon desde la subalternidad4 . En este sentido partimos de los postulados abiertos por las narrativas de la history from below (Bhattacharya 1983).

El presente dossier está compuesto por ocho artículos, una entrevista y una reseña. El primer artículo de las autoras Adriana Fiuza y Simone Achre, Revisitando o nascimento da teoria feminista no Brasil a partir de “A mulher é uma degenerada?” de Maria Lacerda de Moura, trata sobre una figura emblemática del anarcofeminismo brasileño, la teórica Maria Lacerda de Moura. Dicho texto analiza, de manera somera, la biografía de la autora y el contexto del feminismo occidental para luego analizar más detalladamente el pensamiento de Moura por medio de la obra A mulher é uma degenerada?. Por una parte, la autora es sumamente crítica con la Iglesia Católica, pues pensaba que dicha institución contribuya al mantenimiento del patriarcado y, en consecuencia, a la sumisión de las mujeres a través de narrativas cristianas como la culpa del “pecado original” o el ideal de pureza de María. Por otra parte, aboga por una educación liberadora como elemento clave de la emancipación y autonomía de las mujeres. Maria Lacerda de Moura critica a las sufragistas por no incluir en su agenda las especificidades de las demandas político-sociales de las obreras y las mujeres negras. Pese a la gran importancia de sus aportaciones teóricas y políticas, Moura es una figura prácticamente olvidada en la historia de Brasil e, incluso, en el feminismo brasileño.

En el segundo texto, Catolicismo, Vanguardia y mujeres. La refemenización de lo religioso en las obras de Norah Borges y Adalgisa Nery, Laura Cabezas analiza las trayectorias de la artista plástica argentina, Norah Borges, y de la poeta brasileña Adalgisa Nery dentro de un contexto cultural latinoamericano que define como de “refeminización de la religión”. Se trata de una aportación circunscrita más a la historia del arte, donde su autora se pregunta por los límites de la dimensión religiosa en la construcción de las identidades plásticas de estas artistas a través de la contraposición fe y modernidad. Más allá, Laura Cabezas trata en sus líneas, a partir de un lenguaje mucho más literario a lo que los artículos académicos acostumbran, a vislumbrar un territorio que Borges y Nery tratan de habitar —donde aparentemente muestran u ocultan su sexualidad— en sus respectivos contextos de cultura vanguardista. Para ello en su relato enfatiza en aspectos biográficos de la vida personal de ambas y en sus primeras incursiones en los mundos de la cultura y del arte. La religión se refleja en la obra artística de ambas y sirve para poner de manifiesto la importancia del aspecto espiritual en la reconfiguración social latinoamericana de su tiempo, por ejemplo, en la construcción de los cuerpos femeninos desde la pintura en connivencia con los códigos de feminidad que redefinen cuáles son las “cualidades femeninas”. A partir de un marco teórico donde se pone en relevancia el tomismo y los aportes filosóficos de Jacques Maritain, François Mauriac y Reginald Garrigou Lagrange, la investigadora muestra cómo el catolicismo se inserta en los lenguajes modernos del arte y la literatura. De la misma manera, va a desengranar en su artículo de qué forma se construye una creencia religiosa por fuera de los límites de la emoción, y cómo se coloca en el centro de la racionalidad o pensamiento. De esta forma traza una línea con aquellas investigaciones contemporáneas que han cuestionado las tesis de la feminización de la religión, y señala que gran parte de la tarea de la intelectualidad católica residió en devolver “el razocinio” a la religión.

El texto de Elisabet Velo i Fabregat, Un abordaje para el estudio de la represión sobre las mujeres durante el franquismo desde historia del derecho: las juzgadas en el Tribunal Regional de Responsabilidades Políticas, busca resolver preguntas más profundas acerca de las políticas de género que se mantuvieron vigentes durante la dictadura de Francisco Franco en España. Su autora se pregunta cómo ha recaído históricamente la ley sobre las mujeres y cuáles han sido las formas y métodos para su condena o absolución desde el punto de vista de la jurisdicción. En este sentido, el trabajo de Velo i Fabregat indaga en cómo las construcciones de feminidad sirvieron de pretexto para condenar políticamente a aquellas que se atrevieron a resistir dichos modelos de género. A través de un ejercicio de historia local, centrado en el caso de Catalunya, la autora indaga en varios expedientes jurídicos para confirmar dicha hipótesis y resolver una pregunta mayor ¿De qué se acusa o absuelve a las mujeres? En los expedientes analizados, su autora va a reflejar cómo operan las nociones de maternidad, familia y conducta moral en los testimonios de acusación y defensa de las mujeres. También va a reflejar cómo la violencia política, jurídica y económica acaban siendo un instrumento más para garantizar un ordenamiento de género en el franquismo, concretamente a través de la Ley de Responsabilidades Políticas de 1939.

El cuarto artículo Entre tanques y pañuelos: domesticidad y trabajo femenino en los posters de guerra del gobierno estadounidense (1941-1943) ha sido elaborado por Sol Glik. En él la investigadora indaga desde una perspectiva de género en el rol de las construcciones de feminidad en la cartelería, concretamente a través de representaciones iconográficas, entre ellas, la emblemática imagen del pañuelo de Rosie y los significados que éstas adquieren en determinados momentos históricos como la segunda guerra mundial. Es a través de las fuentes iconográficas “sexuadas” donde, señala su autora, los regímenes autoritarios, encuentran formas de ejercer el control y disciplinar a la sociedad, pero también de fomentar una serie de comportamientos deseables entre la población, en especial, entre las mujeres. Sol Glick va a presentar en su relato narrativo diferentes análisis de carteles que se difundieron en los Estados Unidos durante la Segunda Guerra Mundial con el propósito de movilizar a las mujeres hacia actividades históricamente asociadas al arquetipo masculino de proveedor, mientras se perpetúan ciertas nociones de feminidad clásicas de la etapa contemporánea. Glik combina algunos carteles de propaganda oficial junto a otros de publicidades más comerciales para reflejar una vida cotidiana que cada vez más se acerca a la sociedad de consumo, atravesada por los valores del American Way of Life, con las necesidades de un contexto bélico.

Contamos también con el artículo de Fabio de Sousa Fernandes, Carlos Henrique de Lucas y Diana Yoshie Takemoto, titulado “A louca dos gatos” ou sobre como gaslaitear o feminino: um estudo sobre a violência psicológica no âmbito do gênero. A partir de una metodología que dialoga con los estudios Queer y la perspectiva feminista posestructuralista, el artículo explora el fenómeno social del gaslighting (expresión en inglés cuyo sentido se refiere a modos de violencia psicológica hacia las mujeres). Lxs autores analizan ejemplos concretos de gaslighting conectados al mito de “la loca de los gatos” (alegoría representativa da retórica sexista), a través de una protagonista de los Simpsons o de imágenes periodísticas de la canciller alemana Angela Merkel y de la ex-presidenta de Brasil, Dilma Rousseff. La novedad del artículo reside en su aportación teórico-metodológica al introducir en los estudios feministas el gaslighting como concepto analítico. Éste contribuye a un examen más detallado respecto de las construcciones sociales o discursivas violentas y estereotipadas en relación a las mujeres en los sistemas patriarcales y heteronormativos.

Los autores João Gomes Junior y Thiago Barcelos Solival presentan en su texto Entre vedetes e “Homens em Travesti”. Um estudo sobre corpos e performances dissidentes no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX (1900-1950) un examen sobre las prácticas resistentes de individuos cuyas identidades de género y sexuales no-hegemónicas hicieron frente al sistema heteronormativo y patriarcal carioca durante las primeras décadas del siglo XX. Tras un análisis teórico e histórico —a partir especialmente de Foucault, su historia de la sexualidad y la tríada histórico-discursiva de lo religioso, lo médico y lo policial— lxs autores llevan a cabo un estudio sobre prácticas resistentes de sujetxs disidentes de género en los albores del republicanismo brasileño. Asimismo, analizan un modelo de experiencia único, el Teatro de Revista, el cual se conformó como un espacio de sociabilidad, de creación de vínculos y como canal de resistencias tanto discursivas, culturales como performáticas para burlar los padrones burgueses y heteronormativos durante la primera mitad del siglo XX en la ciudad de Río de Janeiro.

En el texto Da diáspora à nação, de casa à dispersão: a subjetividade queer palestiniana, los autores Bruno Costa y Manuel Loff analizan la construcción de una masculinidad hegemónica judía (Muskeljude) —que se identifica y se aproxima al varón blanco europeo, construido a imagen y semejanza de un Occidente moderno—, la cual a la vez se erige en contraposición a los judíos mizrahim —identificados con el Oriente premoderno, “bárbaro” y “feminizado”—. A los mizrahim, por lo tanto, se les impone una masculinidad subalterna y son vistos como una amenaza a la misión “civilizadora moderna” judío-occidental. De ahí que se refuerce la creación de un “Otro” subalterno, el palestino, no reconocido como sujeto en la ocupación colonial sionista. Por otra parte, al identificarse como un país excepcional en el Medio Oriente en cuanto a la defensa de los derechos de las minorías sexuales, Israel permite el despliegue de un proceso de colonización de las sexualidades disidentes desde una óptica de “homonacionalismo”. El palestino, así, es identificado, además de bárbaro e incivilizado, como homofóbico, en un intento del Estado de Israel de domesticar las sexualidades disidentes y fortalecer las dicotomías entre civilizados / bárbaros. Desde un análisis muy novedoso, los autores examinan cómo la subjetividad queer palestina pasa a entrar en el proyecto colonizador sionista.

El octavo artículo de este dossier, titulado Toda Biologia é queer, del autor José Luis Ferraro, trabaja las identidades de género desde una perspectiva de las ciencias biológicas. Para ello, parte de diversas teorías, como las de Michel Foucault, Judith Butler o Jacques Derrida. Su principal objetivo es problematizar las identidades sexuales queer y abogar por la participación desde una mirada inclusiva de la Biología en las luchas de la comunidad LGTBI. Para el autor, la biología, cuyo elemento esencial es la biodiversidad, no debe ser instrumentalizada negativamente, sino a partir de su positividad y potencialidad, es decir, la diversidad inherente a la Biología. Por ello, Ferraro sostiene que hay que subvertir la lógica heteronormativa y patriarcal inculcada en los argumentos biologicistas, puesto que estos son transformados en regímenes de verdade e incluso en políticas de gobierno, ejemplificado en la falacia argumentativa de la “ideología de género”. En este sentido, el autor argumenta en favor de una Biología que contribuya a la deconstrucción del binarismo sexual y de género y, por lo tanto, a la liberación de las identidades y sexualidades no-hegemónicas, puesto que “toda Biología es queer”.

Para cerrar el dossier presentamos la entrevista de Iki Yos Pîña Narváez. La activista e investigadora trans nos abre una puerta para conocer de cerca cómo el conocimiento hegemónico blanco, heteropatriarcal, condena al ostracismo a las subjetividades e identidades disidentes a uno y otro lado de la orilla. Las políticas migratorias, la herencia colonial y la opresión interseccional son algunas de las realidades que atraviesan la identidad y corporalidad de Iki Yos, su nombre escogido, Piña Narváez. Su historia de vida, de exilio, migración, ruptura, sanación y reconfiguración constante de una identidad en la subalternidad en el mundo actual, es tan solo, como ella apunta, un reflejo de las puntas de lanzas de un sistema de múltiples opresiones (patriarcales, capitalistas, extractivistas, coloniales, raciales, cis-heterosexuales) histórico. Así, a través de sus experiencias conecta y evoca la trayectoria de un linaje ancestral que ha sufrido desde 1492 múltiples violencias, pero también, que ha sabido tejer una serie de tecnologías de escape para construir una resistencia histórica. Iki Yos nos muestra como, en tiempos de vorágine y autoritarismo, recuperar su sabiduría y epistemología de escape, anticolonial, es una forma de lucha, de (re)conocimiento de estrategias políticas para hacer frente a un sistema que promueve la social death de los colectivos subalternos y marginados de la sociedad. La Ley de Extranjería española, las leyes de identidad de género o los procesos de hormonación de las disidencias sexuales son algunas de las cuestiones que pone sobre la mesa Yos, visibilizando los privilegios, los de aquellos y aquellas que pertenecen, frente a la falta de derechos, especialmente de quienes se sitúan por fuera de los bordes.

Finalmente, este dossier se cierra con la reseña de Redistribuição ou Reconhecimento? Um debate entre marxismo e feminismo, elaborada por Marta Caro Olivares. En ella, se presenta un pequeño estudio del título ¿Reconocimiento o redistribución? Un debate entre marxismo y Feminismo publicado por Judith Butler y Nancy Fraser, editado por la editorial Traficantes de Sueños. Caro Olivares repasa los debates filosóficos acerca de la modernidad que Butler y Fraser han mantenido desde el año 2000, mientras indaga en las articulaciones de algunos feminismos y en la persecución colonial que sufren las disidencias sexuales y raciales en los tiempos del capitalismo. Los acosamientos a los cuerpos trans y el binarismo sexo-género son algunos de los debates que Caro destaca del entramado teórico de estas referentes de los estudios de género y las posibilidades que surgen tras incorporar los enfoques decoloniales y postcoloniales en las investigaciones.

¡Les deseamos una excelente lectura!

Notas

* Este texto forma parte de una investigación financiada por la Comunidad de Madrid en el marco de las Ayudas destinadas a la Atracción de Talento Investigador y del Proyecto de I+D para Jóvenes Investigadores de la Universidad Autónoma de Madrid, Las relaciones de las dictaduras europeas y latinoamericanas en clave transnacional: entendimiento, rivalidades y conexiones con los Estados democráticos (1930´s 1980´s) (Referencia SI1 / PJI / 2019-00257). Asimismo, el artículo ha sido realizado en el marco del Programa Postdoctoral en Ciencias Humanas y Sociales de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires y con la financiación de una beca interna postdoctoral de CONICET.

1. Denota la influencia que Aníbal Quijano ejerció en el territorio latinoamericano gracias a su trabajo pionero donde expuso el concepto de colonialidad del poder. Si bien en este trabajo publicado a comienzos de los noventa no puso a dialogar a los estudios de género con esta teorización a propósito de la herencia colonialidad, este aspecto sí que ha sido desarrollado por teóricas como María Lugones, Rita Segato o Breny Mendoza.

2. Ver: Gargallo, Francesca. Feminismos desde Abya Yala. Ideas y Proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en Nuestra América. Editorial Corte y Confección: México, 2014; Miñoso, Yuderkys Espinosa (coord.). Tejiendo de otro modo: Feminismo, Epistemología y Apuestas Descoloniales en Abya Yala. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2014.

3. Según Aura Cumes, “No parece ser nada nuevo el que se cuestione el uso de la categoría de género y feminismo como occidentales y, de esa forma, se ponga en entredicho su uso”. En este sentido, el concepto de género pareciera generar menos tensiones entre las voces indígenas que el vocablo feminista (Cumes 2009, 37).

4. Una genealogía de este concepto desde Gramsci a Spivak desde la mirada de teóricas feministas latinoamericanas en Hernández (2013).

Referencias

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Sara Martín Gutiérrez – Doctora en Historia Contemporánea por la Universidad Complutense de Madrid con mención europea por la Università degli Studi di Firenze (2017). Actualmente desarrolla sus investigaciones postdoctorales gracias a una beca del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) en Argentina, vinculada al Instituto de Investigaciones en Estudios de Género de la Universidad de Buenos Aires. Es miembra fundadora del Grupo Kollontai. Espacio de debate teórico-práctico: Las mujeres en la historia, con sede en el Instituto de Investigaciones Feministas de la Universidad Complutense de Madrid. Este trabajo se inscribe en el marco del Programa Postdoctoral en Ciencias Sociales y Humanas que desarrolla en la Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: sarmar02@ucm.es https: / / orcid.org / 0000-0002-2064-8301

Gabriela de Lima Grecco – Doctora en Historia Contemporánea en la Universidad Autónoma de Madrid (UAM). Actualmente es docente e investigadora (contrato Atracción de Talento Investigador- Comunidad de Madrid) en el Departamento de Historia Contemporánea UAM. Es Investigadora Principal del Proyecto Las relaciones de las dictaduras europeas y latinoamericanas en clave transnacional: entendimiento, rivalidades y conexiones con los Estados democráticos -1930´s 1980´s (Referencia SI1 / PJI / 2019- 00257). Es autora de la obra Literary Censorship in Francisco Franco’s Spain and Getulio Vargas’ Brazil, 1936–1945: Burning Books, Awarding Writers (Sussex Academic Press, 2020). E-mail: gabriela.lima@uam.es https: / / orcid.org / 0000-0002-7137-5251


GUTIÉRREZ, Sara Martín; GRECCO, Gabriela de Lima. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Intellèctus. Rio de Janeiro, v.19, n.1, 2020.

Revista Intellèctus

Equipe Editorial

Apresentação

Dossiê

Artigos Livres

Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v.52, ano 2020

Editorial

  • Editorial
  • Alvaro Marins, Aline Montenegro Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra
  • PDF

Apresentação

Dossiê temático

Artigos

Maiêutica – História. Indaial, v.8, n.1, 2020.

Maiêutica – História

A revista apresenta os principais artigos de acadêmicos e professores relacionados a área de história.

Artigos

  • Maiêutica – História
  • PDF
  • Graciela Márcia Fochi, Kátia Spinelli
  • APRESENTAÇÃO …………………………………………………………………………………………………….. 5
  • A VESTIMENTA CIGANA NO BRASIL E O CONCEITO DE MARIMÉ: identidade, honra e cultura material
  • Romanie dress code in Brazil and the concept of marimé: identity, honor and material culture
  • Brigitte Grossmann Cairus ………………………………………………………………………………………….. 7
  • O ENSINO SOBRE SOCIEDADES ÁGRAFAS TENDO COMO METODOLOGIA OS QUADRINHOS
  • Teaching about unwritten communication societies using comics as a methodology
  • Cassiano Miglia Vacca
  •  Jaqueline Mercedes Siviero Karkaba…………………………………………………………………………… 15
  • CHARGE E ANÁLISE DA HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE NO ENSINO
  • Charge and analysis of the history of the present time in teaching
  • Donilton Carvalho Silva
  • Renata Carvalho Silva……………………………………………………………………………………………….. 25
  • VISITAS AOS MUSEUS: um importante aliado pedagógico no ensino de história
  • Visits to museums: an important pedagogical ally in history teaching
  •  Daniele Frömming Machado
  • Douglas de Andrade Azevedo
  • Eliseu Santos
  • Fernanda da Silva Rosa …………………………………………………………………………………………….. 35
  • PRÁTICAS DE ENSINO E PESQUISA REGIONAL NO CONTEXTO ESCOLAR: histórico e metodologias
  • Education practices and regional research in the school context: history and methodologies
  • Douglas Kaucz
  • Sílvio Luis Fronza…………………………………………………………………………………………………….. 43
  • UMA MENSAGEM DE IBN KHALDUN PARA NOSSO TEMPO
  • Ibn Khaldun has a message for us
  • Jose Tufy Cairus
  • Ibrahim Kalin…………………………………………………………………………………………………………… 55
  • O DISCURSO SOBRE AS MULHERES: uma análise arqueológica de livros didáticos de um curso de História em EAD
  •  The discourse on women: an archaeological analysis of textbooks from a History course in distance learning
  •  Roberto Henrique Wolter
  • Celso Kraemer …………………………………………………………………………………………………………. 61
  • A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA ESCRITA DE PIRES DE ALMEIDA: “instrução pública no brasil (1500-1889): história e legislação” de 1889
  • Professional education in the Pires de Almeida writing: “public instruction in Brazil (1500- 1889): history and legislation” of 1889
  • Natália Luize Pereira da Conceição…………………………………………………………………………….. 71
  • A PERSPECTIVA DO TRAUMA: dialogando com Dominick LaCapra
  • The perspective of trauma: dialogue with Dominick LaCapra
  • Michelle Caetano ……………………………………………………………………………………………………… 81
  • O ABISMO DO INFERNO DE SANDRO BOTTICELLI: como este baseou-se em Dante e suas implicações na construção do imaginário da Idade Média
  • The abyss of hell from Sandro Botticelli: how it based in Dante and its implications on the construction of the imaginary in middle ages
  • Aline Vasconcelos Alfonso ………………………………………………………………………………………… 91
  • CIDADE E CEMITÉRIO: um estudo dos aspectos históricos e religiosos do cemitério municipal de Timbó-SC
  • CITY AND CEMETERY: a study of historical and religious aspects of the Timbó-SC municipal cemetery
  •  Regiane Zoboli
  • Graciela Márcia Fochi……………………………………………………………………………………………… 103

Juridicização e tribunalização da história / Revista de Teoria da História / 2020

A Revista de Teoria da História, com o presente dossiê, pretende dar continuidade àquilo que vem se tornando o intuito fundamental do periódico: não apenas revisitar criticamente os temas clássicos da teoria da história e da história da historiografia, mas também chamar a atenção para temas ainda marginalizados, bem como promover o debate estimulado por questões hodiernas. Nesse sentido, tendo em vista fenômenos recentes da história política brasileira, mas não excluindo o complexo século XX como pano de fundo, este dossiê abarca contribuições que dialogam com o conjunto de reflexões que podem ser sintetizadas pelo tema da Juridicização e tribunalização da história. Leia Mais

Dinâmicas do jogo. Concursos de arquitetura no Brasil | Fabiano José Arcadio Sobreira

Concurso é uma palavra que se inscreveu nas obras de arquitetura de modo notável a partir dos grandes edifícios de infraestrutura que surgiram em decorrência, e logo na sequência, de duas revoluções: Industrial e a Francesa. Designa-se concours a grande galeria de acesso àquelas estações ferroviárias, como na Gare du Nord em Paris, projetada por Leonce Reynaud em 1847. Em geometria concurso designa ponto de intersecção, nas gares é também assim: o entroncamento por onde ingressamos juntos para, imaginemos os arquitetos, tomarmos todos um mesmo trem. Esta acepção da palavra aplicada àquelas obras merece prevalecer como sentido do termo quando dizemos concurso de arquitetura. Ou seja, concurso é um caminhar junto, é o convívio num mesmo contexto, é produzir, expor, trocar ideias para, eventualmente, expandir os limites dessa atividade cujo propósito é dar feição física, ou existência concreta, à cultura de um lugar. Associar, portanto, concurso à noção de competição é reduzi-lo a uma dimensão que não condiz com aquela que se pretende a uma atividade que se funda, se desenvolve e se realiza no campo da cultura. Leia Mais

Ney Matogrosso… para além do bustiê: performances da contraviolência na obra Bandido (1976-1977) | Robson Pereira da Silva

O segredo não é somente o estado de uma coisa que escapa ou se revela em um saber. Ele designa um jogo entre atores. Ele circunscreve o terreno de relações estratégicas entre quem o procura e quem o esconde, ou entre quem suspostamente o conhece e quem supostamente o ignora (o “vulgar”).”

Michel de Certeau

Glauber Rocha, em citação no livro Impressões de Viagens, de Heloísa Buarque de Hollanda, argumenta que as produções artísticas de Ney Matogrosso, Gal Costa e Dias Gomes em 1970, não passavam de “texto da decadência da colônia do Rio de Janeiro”2, por conta do apelo ao espetáculo midiático e a performance erótica para dialogar com o público. O cineasta é incisivo na diminuição da relevância desses personagens históricos para a circularidade e reflexão do cenário político da época. No entanto, a fala direta e agressiva do diretor não perpassa apenas ao seu nicho individual de concepção estética, o referido pronunciamento dialoga ao menos com duas memórias históricas3; o conceito de Indústria Cultural da escola de Frankfurt e uma determinada historiografia da música brasileira, que valoriza os compositores – escrita – e desvaloriza a importância dos performers na vida política da segunda metade da década 70; interpretação que ajudou na consolidação do imaginário de “vazio cultural”. Leia Mais

Paulo Freire. Santiago, n.24, 2020.

Artículos de Investigación

História e Psicanálise / Revista de Teoria da História / 2020

Ventiladas desde a década de 1960 e consubstanciadas em fins do século XX, as interrogações sobre a prática historiográfica e sua associação à narrativa histórica exigiram novo escrutínio do historiador. Tais interrogações visavam ao aprofundamento, de um lado, e à contraposição, de outro, às teorias estruturalistas, que, por sua vez, desafiavam as concepções discursivas vigentes. O abalo provocado às ciências humanas prescreveu ao historiador compreender de que forma suas práticas e narrativas incorporariam distintas linguagens, considerando, delas e nelas, o escopo ético e estético. Nesse cenário, emerge a preocupação, antes latente, com o lócus do processo de subjetivação. Derivou de tais movimentos uma significativa abertura do campo historiográfico à relação entre história e psicanálise. Leia Mais

The Plantation Machine: Atlantic Capitalism in French Saint-Domingue and British Jamaica | Trevor Burnard e John Garrigus

The Plantation Machine: Atlantic Capitalism in French Saint-Domingue and British Jamaica expõe, por meio de uma história comparada, as similaridades entre São Domingos e Jamaica. A obra, escrita por Trevor Burnard e John Garrigus, – ambos especialistas em Jamaica e São Domingos, respectivamente – mostra como as possessões caribenhas se assemelhavam em sua configuração social e econômica, mesmo que administradas por uma França absolutista e por uma Inglaterra parlamentarista. Escrita a quatro mãos, o livro é o que se tem de mais atual na bibliografia recente sobre as histórias dessas duas colônias e tem aquele ar clássico de uma produção acadêmica que marcará época na bibliografia atual e futura sobre o sistema mercantilista atlântico.

O recorte cronológico escolhido pelos autores cobre o período de 1740 a 1788, momento de acelerado crescimento da produção açucareira nessas duas colônias. Os autores também identificam Jamaica e São Domingos como integrantes de suma importância para suas metrópoles na integração econômica global e sua inserção no funcionamento do Capitalismo Atlântico do século XVIII. Leia Mais

Reversed Gaze: An African Ethnography of American Anthropology | Mwenda Ntarangwi

Quão diferente é a vida do antropólogo “em casa”, se comparada à compartilhada por ele nas etnografias e memórias de campo? Como estudantes de antropologia navegam pelos desafios da etnografia durante o treinamento que precede a ida ao campo? Como os antropólogos interagem nas reuniões anuais de trabalho? Seriam eles tão alienados e hostis com relação às suas culturas ocidentais que compensam pela idealização de outras culturas? Essas são algumas das questões que animam o queniano Mwenda Ntarangwi – Professor Associado de Antropologia na Calvin College, EUA – em sua jornada ao “coração da antropologia”.

Em Reversed Gaze: an African Ethnography of American Anthropology o enfoque é dirigido às subjetividades de antropólogas e antropólogos, bem como suas práticas nos departamentos de antropologia, encontros profissionais, salas de aula e na escrita etnográfica, em uma tentativa de etnografar a prática antropológica “em casa”. Essa abordagem é justificada como forma de revelar o “outro lado” da antropologia, usualmente invisível nos artigos científicos, etnografias e memórias de campo. É nesse sentido que Ntarangwi propõe uma “reversão do olhar”, utilizando as ferramentas da antropologia para, do ponto de vista de um africano treinado nos EUA, realizar uma análise da antropologia e da cultura ocidental. Leia Mais

Sociedade, Cultura, Trabalho: Diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural (PARTE I) / Vozes Pretérito & Devir / 2020

No dia 12 de fevereiro de 2020, enquanto estávamos às vésperas da publicação deste Dossiê, intitulado Sociedade Cultura e Trabalho: diálogos sobre fronteiras no Mundo Rural, completou quinze anos do assassinato da Ir. Dorothy Stang, em Anapu, na Prelazia do Xingu, no Pará, em 12 fevereiro de 2005, morta com seis tiros em uma emboscada por contrariar interesses de grupos poderosos empenhados na devastação da floresta amazônica e expulsão das populações tradicionais. Dorothy, natural de Dayton, Estado de Ohio, Estados Unidos, no dia 07 de junho de 1931, teve sua trajetória pastoral e social associada aos direitos ambientais e às causas dos trabalhadores rurais nos confins da Amazônia. Trabalhadores rurais migrantes, especialmente do Nordeste, em condições de trabalho escravo, povos tradicionais e indígenas, enfrentam um contexto de exploração e poder do latifúndio na Amazônia. Dados do IBGE (2006) apontam o Brasil como um dos países que possuem estruturas fundiárias mais concentradas no mundo, a maioria sob o controle hegemônico do agronegócio nacional. Por sua vez, os conflitos no campo e luta pela terra avançam e se perpetuam pelos confins do Brasil com aumento do número de mortes, expulsões, torturas e ameaças, compilados e divulgados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra – CPT. O assassinato da Ir. Dorothy endossa o cenário de violência e assassinatos de lideranças rurais.

A concentração fundiária que impende o acesso à terra por milhares de trabalhadores rurais como o avanço da grande fronteira livre, mantém famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais aprisionadas à condições históricas de exploração na terra e vulneráveis à migração para o trabalho forçado / escravo, prática contínua transmitida a gerações sucessivas. Nesse sentido, tomamos para o debates sobre o Mundo Rural a percepção de suas fronteiras fluídas, para além da sua compreensão política uma fronteira de muitas e diferentes coisas, como enumera José de Sousa Martins: “fronteira de civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, sobretudo, fronteiras do humano” (2014, p.11).

Diante desse quadro, e atentos que a problemática entorno da terra, trabalhadores e fronteiras deve ser pensada desde diferentes ângulos, sociológicos, antropológicos, culturais, econômicos e históricos, provocamos a realização de um Colóquio com posterior produção de Dossiê homônimo, no sentido de elaborar reflexões sobre a questão, repensar os modos de vida e trabalho no Mundo Rural como também estimular o desenvolvimento de ações voltadas para esse campo. Este dossiê é resultado do esforço dos pesquisadores das áreas de História, Ciências Sociais e Pedagogia, reunidos em torno das atividades do Núcleo de Documentação e Estudos em História, Sociedade e Trabalho – NEHST da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.

Os artigos selecionados para o Dossiê e Seção de Artigos Livres, foram apresentados em comunicações orais do Colóquio no qual foram reunidos pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento provenientes de diferentes IES, da região Nordeste do país. Os autores / as entrecruzam diferentes formas de lidar com a pesquisa, desvelam fronteiras fluidas entre as disciplinas e apresentam possibilidades de análise das vidas de sujeitos históricos específicos: migrantes, trabalhadores, rurais e urbanos, escravizados e indígenas em contextos e temporalidades diversos.

No artigo intitulado Entre bons patrões e trabalhadores obedientes? Terra, trabalho e resistências em Miguel Alves / Piauí. (1950-1990), Marcelo Aleff de Oliveira Vieira e Eurípedes Antônio Funes, analisam as relações sociais estabelecidas entre trabalhadores rurais e proprietários de fazendas de Miguel Alves. Teresina, município situado na região Meio Norte piauiense, cenário de múltiplas disputas e tensões no campo.

Em A seca de 1888 / 1889 e seus efeitos na província do Piauí representada no periódico A Imprensa, Marcus Pierre de Carvalho Baptista, Francisco de Assis de Sousa Nascimento e Elisabeth Mary de Carvalho Baptista, a partir de pesquisa bibliográfica e documental hemerográfica, por meio do periódico A Imprensa, evidenciam elementos impostos no contexto da seca à população da província: morte do gado, das plantações, aumento de preço de alimentos e, notadamente, a migração de pessoas de províncias próximas, acarretando outros problemas.

Helane Karoline Tavares Gomes em Etnicidade e mobilização indígena: estratégias de reivindicação e demarcação das áreas indígenas no Estado do Piauí (2000-2018), analisa as estratégias utilizadas no processo de reivindicação ao acesso à terra pelos povos indígenas do Piauí entre 2000 a 2018. O estudo sobre as mobilizações sociais indígenas associadas à construção das etnicidades e reconhecimento da história desses sujeitos inaugura uma nova página da história indígena do Estado.

Em Migrações Ceará- Piauí (1940-1970): Elucidando algumas razões para migrar à luz de narrativas orais, Lia Monielli Feitosa Costa apresenta estudo acerca dos movimentos migratórios do Ceará para o Piauí, no período de 1940-1970, tendo como veículo de ideias e aportes teóricos o testemunho oral de trabalhadores campesinos. Segundo a autora, o deslocamento de trabalhadores cearenses pode ser entendido através do estudo da formação das tendências dos fluxos migratórios, cujas redes de sociabilidade foram delineadas com lastro na década de 1930, período no qual projetos pessoais e coletivos sofreram influência a partir de experiências de migração em direção ao Piauí, que persistiram ao longo das décadas seguintes.

No artigo, A seca de 1979 através do cotidiano dos trabalhadores de Bocaína, Picos- PI (1979-1996) as autoras, Cristiana Costa da Rocha e Milena de Araújo Leite analisam a partir da documentação relacionada ao projeto de construção da Barragem de Bocaína e das narrativas orais, situações que evidenciem as relações de trabalho estabelecidas no contexto dessa obra considerando os conflitos, salários, carga horária, condições de trabalho, e os equipamentos utilizados por esses trabalhadores.

Em A Repartição Especial de Terras Públicas na Província do Piauí (1858-1860): política, burocracia e mediação de conflitos, Cássio de Sousa Borges apresenta a atuação da Repartição Especial de Terras Públicas na Província do Piauí, entre os anos de 1858 e 1860. Mobilizada sua criação pelo Decreto Imperial nº 1318 de 30 de janeiro 1854, que regulamentou a execução da Lei de Terras de 1850, a criação desta repartição pública, com sede em Teresina, foi a primeira experiência de gestão fundiária das terras do Piauí após o fim do sistema colonial de sesmarias.

Em “Era liberto e hoje privativamente é captivo”: Ação de liberdade na cidade de Teresina em 1860, Talyta Marjorie Lira Sousa Nepomuceno estuda as demandas judiciais acerca dos processos de liberdade, demonstrando a relação conflitante entre os senhores e escravizados e a interferência do Estado no processo de negociação. A autora toma como fontes para o estudo os registros das cartas de alforria nos Livros de Notas e Ofícios do Cartório de 1º Ofício de Notas da cidade de Teresina; os relatórios de Presidente de Província; e uma ação de liberdade registrada na Secretária de Segurança Pública da Província do Piauí em 1860.

Em O Vínculo com a Terra e as Diferentes Categorias de Trabalhadores Rurais Livres no Piauí Oitocentista, Ivana Campelo Cabral, dialoga sobre sociedade rural no Piauí oitocentista marcada pela presença de sujeitos diferenciados em decorrência das funções que desempenhavam e a posição jurídico-social que ocupavam. Assim, a autora apresenta e caracteriza cada uma das categorias, expondo suas semelhanças, diferenciações e as atividades desenvolvidas por cada uma destas.

No artigo intitulado Pensamento ecológico de Gilberto Freyre na obra nordeste sob o olhar da história ambiental, Daniela Fontenele Rocha e Francisco Gleison da Costa Monteiro analisam como Gilberto Freyre na obra Nordeste, publicada em 1937 pela editora José Olympio discute temáticas semelhantes à História ambiental, e suas contribuições para estruturação desse campo de saber constituído na década de 1970. Para tanto, os autores levaram em consideração a análise do contexto de produção da obra e do conhecimento que proporcionou a escrita do autor. Tais proposições os induziram a buscar indícios para mapear a formação de Freyre e as articulações travadas, com autores e correntes, no âmbito de suas influências na produção textual e a ensaiar o pensar ecológico como ponto nodal de sua composição textual.

Alcebíades Costa Filho, Francisco Rairan dos Santos Vilanova e Salania Maria Barbosa Melo, no artigo intitulado O cultivo de alimentos em áreas do leste do Maranhão: Um olhar para o município de Matões, refletem sobre a cultura de gêneros alimentícios que se instalou nos municípios do leste maranhense no século XVIII, correlacionada com a pecuária, atividade econômica considerada pela historiografia como de fundamental importância na ocupação do território.

No artigo (Re)Configurações das Imagens do Sertão no Cinema Brasileiro, José Luís de Oliveira e Silva no sentido de pensar a construção imagética do sertão no cinema brasileiro, propõe uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o fazer historiográfico e os usos de narrativas ficcionais, não para hierarquizar ou opor uma à outra, mas como forma de perceber os modos como a ficção extrapola os aspectos da temporalidade vivida, habilitando-se a materializar, de forma imaginativa, os possíveis não realizados da história.

Em O movimento dos trabalhadores sem teto e a luta pelo direito à cidade em Recife, Igor de Meneses Silva, Jennyfer Annemberg Burlamaqui das Neve e Jully Gardemberg Burlamaqui das Neves abordam luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em Recife, tendo como objetivo analisar as dificuldades encontradas e as ações estratégicas que podem ser adotadas pelo movimento na luta pelo reconhecimento do direito à moradia digna na capital de Pernambuco.

Em Reforma Trabalhista, precarização do trabalho e imperativos do capital, André Conceição de Sousa e Patrícia Soares de Andrade analisam alguns pontos da Reforma Trabalhista (Lei 13.467 / 17) no que diz respeito a flexibilização do trabalho. Segundo os autores a reforma trabalhista ampliou as possibilidades de flexibilização do trabalho, seja através da terceirização, trabalho em regime parcial ou mesmo intermitente, buscando atender a interesses de instituições internacionais e nacionais, respondendo também aos imperativos da acumulação de capital.

Yasminn Escórcio Meneses da Silva e Marcelo de Sousa Neto no artigo intitulado Sob o Signo das Águas e do Esquecimento: trabalho feminino e modernização dos espaços sob olhar das lavadeiras de roupas (Teresina, década de 1970) utilizam a História Oral para compreender a atividade das lavadeiras de roupas na cidade de Teresina na década de 1970, para tanto consideram o constante aumento de mulheres nas margens dos rios na execução da tarefa, como parte dos resultados da intensa migração que se tornou frequente nos anos que sucederam o chamado período do “milagre econômico” dos governos militares, ampliando o número de pessoas sem renda e sem perspectivas nas capitais brasileiras em busca de melhoria de vida.

Na Seção Especial do Dossiê, Maurício Fernandes faz uma abordagem filosófica no artigo intitulado Tecnologia e Ruralidade: Considerações a partir da Tese da Colonização de Jürgen Habermas. O autor discute a problemática do avanço tecnológico no campo tendo como recorte norteador a teoria comunicativa de Jürgen Habermas, e dentro desta, mais precisamente, a tese da colonização. Nesse sentido, analisa o conceito de colonização utilizado por Habermas, que fornece elementos enriquecedores para uma compreensão do atual quadro de desenvolvimento do campo, bem como, uma compreensão dos problemas que envolvem os usos da tecnologia no âmbito do campo.

A edição está dividida em duas partes, além do Dossiê na seção de Artigos Livres os autores analisam fenômenos históricos, sociais, políticos e culturais da história e cultura regional, a partir de múltiplos objetos; ainda assim, aponta perspectivas que se desenrolam no tempo presente e tal é a complexidade que as envolvem que nos contentamos em ser Ciência e não fazer exercícios de natureza profética.

Antonio Alexandre Isídio Cardoso – UFMA

Cristiana Costa da Rocha – UESPI

José da Cruz Bispo de Miranda – UESPI

Robson Carlos da Silva – UESPI

Salania Maria Barbosa Melo – UESPI / UEMA

Teresina, maio de 2020


CARDOSO, Antonio Alexandre Isídio; ROCHA, Cristiana Costa da; MIRANDA, José da Cruz Bispo de; SILVA, Robson Carlos da; MELO, Salania Maria Barbosa. Apresentação. Vozes Pretérito & Devir. Teresina, v.11, n.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v.13, n.2 , 2020.

DOI: http://dx.doi.org/10.22228/rt-f.v13i2

Dossiê “Imigração do Oriente Médio para o Brasil: história, cultura e sociedade”

Dossiê Temático

Artigos

Territórios & Fronteiras. Cuiabá, v.13, n.1 , 2020.

Dossiê: festas brasileiras e seus significados

DOI: http://dx.doi.org/10.22228/rt-f.v13i1

Dossiê Temático

Apresentação

Artigos

Resenhas

Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche – FORNARI (CN)

FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano, São Paulo: Editora Unifesp, 2019. Resenha de: NASSER. Descoberta e redescoberta de um espólio itinerante. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1  jan./abr. 2020.

O mais novo título da série Recepção, parte da coleção Sendas & Veredas, Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche, de Maria Cristina Fornari, renomada pesquisadora e professora da Universidade de Salento, tem por objeto o destino do espólio de Nietzsche, “de suas obras e cartas, da biblioteca” e “em especial do que ficou por fazer” (p. 11). Longe de ser um enfadonho trabalho de arquivista, consiste numa trama vibrante, margeada por um meticuloso empreendimento investigativo. Fornari salienta que quis contar essa história aos moldes de um romance, sem renunciar ao “rigor científico” (p. 13)1. Essa admirável combinação de elementos é engrandecida pela competente tradução de Maria Elisa Bifano, bem como pela preciosa revisão técnica de Scarlett Marton.

O cerne da primeira parte do livro são os delitos editoriais cometidos por Elisabeth Förster-Nietzsche e seus efeitos desastrosos. Somos levados a ver, com uma impressionante riqueza de detalhes, de que forma a soeur terrible, dominada por desejos sórdidos de fama e fortuna, e cercada por pávidos cúmplices e bajuladores, se apodera da herança espiritual de Nietzsche a fim de criar um novo objeto de culto, não importando os onerosos custos morais e científicos, incluindo ocultação, falsificação e até mesmo destruição de manuscritos, cartas e livros da biblioteca pessoal.

Essa parte embaraçosa da história começa logo após o colapso de Nietzsche em Turim, quando as conversações mais ponderadas e respeitosas mantidas por Franz Overbeck e Heinrich Köselitz sobre os rumos das últimas obras do amigo e mestre, prestes a serem publicadas por Naumann, são rapidamente sucedidas pelo cenário mais caótico criado por Elisabeth. Recém-regressada da experiência malograda no Paraguai e ávida por algum tipo de compensação, ela define como a sua nova meta de vida ser a única representante de Nietzsche. Almejava ser a biógrafa, organizadora das obras completas e, até mesmo, tutora do irmão alienado, que seria levado a Weimar para ser usado como um acessório extravagante dos Arquivos Nietzsche. A última tarefa não é de imediato levada a bom termo devido à resistência colocada por Franziska, a mãe protetora que mantém o filho sob a sua custódia em Naumburg até 1897; mas Elisabeth tem melhor sorte nos outros intentos.

Após assumir o comando da organização das obras completas, destituindo um impotente Köselitz, e se ocupar mais firmemente de sua “biografia hagiográfica”, Elisabeth dá início à reunião de todo o material que Nietzsche escreveu – “cada linha era um tesouro em potencial” (p. 33) -, incluindo as missivas, tanto dele quanto dos destinatários, um tipo de atividade extenuante que dá uma ideia de sua obstinação. Todavia, Fornari deixa muito claro que esse afinco jamais foi pautado por motivações genuinamente científicas. O real intuito de Elisabeth era se beneficiar do estrondoso impacto cultural que o irmão estava provocando em vários segmentos da sociedade alemã. Dirige toda a sua energia para a elaboração da imagem de Nietzsche, um propósito estritamente propagandístico que termina por involucrar a organização das obras completas (“minha missão nas próximas décadas será a de enraizar fundo no coração do público a imagem de Nietzsche, essa figura iluminada. É isso o que me motiva a fazer as minhas publicações”, p. 36). Essa era uma finalidade inegociável. E qualquer um dos inúmeros colaboradores de Elisabeth (como Koegel, Steiner, Seidl, os irmãos Horneffer, Weiss, etc., além, naturalmente, do inconstante Köselitz, todos cautelosamente tematizados por Fornari) que colocasse objeções, ou que não estivesse suficientemente comprometido – o que significava, no geral, incapacidade em conciliar o tempo de trabalho com os manuscritos, obrigatoriamente vagaroso, com a velocidade da máquina de propaganda, tolerante com toda sorte de infidelidade filológica -, tinha invariavelmente o mesmo destino: o afastamento.

Um momento particularmente didático a esse respeito, evocado de forma estratégica no livro, é a reação de Elisabeth a um fato inusitado ocorrido em Sils-Maria, quando Nietzsche, interessado na pintura de natureza morta que uma jovem dama inglesa realizava, a aconselha a contrastar o belo com algo feio, um sapo (ou uma rã?), que ele mesmo se encarrega de capturar. Indignada com o relato, Elisabeth publica um artigo na revista Die Zukunft em que acusa o divulgador da historieta, Durisch, de transmitir uma imagem difamatória do irmão enquanto um tipo de delinquente que se diverte ao “assustar senhoras discretas e debochar delas” (p. 43). Contudo, o fato é que Elisabeth estava inteirada da veracidade do relato, visto que era de seu conhecimento a carta enviada pela mãe da pintora, Emily Flinn, para Franziska, na qual confirma o ocorrido. Portanto, como diz Bernoulli, guardião da correspondência de Overbeck, num trecho oportunamente citado por Fornari, “talvez justamente este pequeno e insignificante exemplo seja útil para abrir os olhos de muitas pessoas indulgentes demais a respeito do sistema operacional que era responsável pela produção das ‘lendas Nietzsche’” (p. 45).

A anedota funciona como um tipo de preparação para o leitor ser conduzido ao cenário mais obsceno de adulterações e violações praticadas por Elisabeth. A lista causa perplexidade:

  • Destruição e falsificação, integral ou parcial, das cartas de Lou, Rée, Franziska, Overbeck, Bernhard Förster e “uma boa parte de suas próprias, dentre as quais, sem exceções aquelas dos anos de 1882-1884” (p. 51);
  • Quando da publicação do oitavo volume da Grossoktavausgabe(GOA), alteração do título de O Anticristo, que teve também “quatro passagens censuradas” (p. 57);
  • Constante adiamento da publicação de Ecce Homo, cujo conteúdo poderia ser prejudicial à “imagem de Nietzsche” e, ao lado de Köselitz, e mesmo de Franziska, falsificações dessa obra, “não de poucas e pequenas passagens que as edições seguintes poderiam nos devolver, mas de textos importantes, não se sabe quais, que foram ocultos e propositalmente destruídos” (p. 93);
  • E, evidentemente, a fabricação de a Vontade de Potência, seguramente um dos incidentes mais conhecidos pelos nietzschianos, quando, por meio de uma perversa e inesperada parceria com Köselitz, agora Peter Gast, e sob a alegação de ter descoberto a obra perdida do irmão em prosa, que conferiria fechamento ao projeto da Transvaloração de todos os valores, agrupa aleatoriamente anotações de Nietzsche, mais diretamente na segunda edição, de 1906, “sozinha e sem ajuda científica” (p. 78).

Mas ao sair praticamente ilesa após executar tão graves infrações, sendo regularmente aclamada – recebe um doutorado honoris causa da Universidade de Iena, quatro indicações para o Nobel de literatura, é afagada por personalidades artísticas, acadêmicas e políticas, incluindo Hitler, com quem frequentemente se entretém -, é provável que Elisabeth tenha sido vítima do excesso de autoconfiança, tornando-se descuidada. Num dos momentos mais interessantes do livro, Fornari nos mostra de que modo a edição histórico-crítica (BAW), projeto editorial entabulado no começo da década de 1930, cujo intuito era reparar a reputação cada vez mais deteriorada das obras organizadas nos Arquivos, precipita o fim da farsa. Não obstante os membros da comissão científica da nova edição, Joachim Mette e Karl Schlechta, trabalharem nas anotações de Nietzsche com o consentimento de Elisabeth, em segredo, “com a discrição e aquiescência externa de um grupo de conspiradores” (p. 112), planejam desfazer as manipulações cometidas.

Apesar de terem sido publicados somente cinco volumes das obras (quatro das cartas) dos quarenta previstos, a edição BAW pode ser vista como um sinal de que o futuro será mais generoso com o espólio nietzschiano, afinal, foi “o primeiro exemplo de um trabalho científico durante a longa história dos Arquivos Nietzsche” (p. 115). Esse presságio é confirmado com o surgimento da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, foco da segunda parte do livro2. Possuidores de uma jovial energia, tenacidade e zelo filológico, realizam a recuperação de documentos corrompidos, de transcrições e datações inadequadas, além de divulgarem uma grande quantidade de material inédito. Existem, por certo, pontos de contato entre as diretrizes da nova iniciativa italiana com o projeto descontinuado da edição BAW, assim como com os louváveis empreendimentos alemães do pós-guerra encabeçados por Schlechta e Erich Podach, que prosseguem engajados, de diferentes formas, com a campanha desmistificadora. Mas em virtude da persistência de imperfeições técnicas nessas realizações – “as edições de Schlechta e Podach, ao lado da (suposta) boa vontade filológica mostram limites evidentes” (p. 126) -, a autora é também bastante firme, não abrindo mão de se guiar pelo indelével corte epistemológico impresso pela edição Colli-Montinari.

A edição foi gerada como que por obra do destino. Pouco depois de assinar o contrato de uma nova tradução de Nietzsche com Einaudi em 1959, Colli é alertado por Montinari, que tinha ido a Weimar em abril de 1961 para avaliar os manuscritos, acerca da necessidade de providenciar uma nova edição, porquanto “correções de texto não seriam suficiente” (p. 139). Segue-se uma cadeia de impactantes repercussões provocadas pela audaciosa decisão de assumir o desafio, todas aclaradas por Fornari: mudança de editora (Adelphi); transferência em definitivo de Montinari para Weimar no ano de 1965, onde ficaria por nove anos; e, dentre as consequências cientificamente mais prósperas, implantação de um critério confiável de ordenação dos póstumos – cronológico ao invés do temático, outrora adotado na edição GOA – e a criação de uma nova metodologia de estudo, “em uma direção histórica e anti-metafísica, filológica e não atualizadora” (p. 150). Posteriormente, graças a Giuliano Campioni, esse método serve de estímulo para a formação da escola italiana de pesquisadores, dedicada especialmente ao estudo de fontes e à preservação e catalogação da biblioteca de Nietzsche.

Em todo o caso, as inovações contidas na edição crítica enfrentam uma recepção relutante, ao contrário do que se poderia supor. A começar pela prenunciada indisposição de nomes importantes da pesquisa Nietzsche, cujas monografias eram amplamente respaldadas pela Vontade de Potência, como Karl Löwith. É por esse motivo que Colli e Montinari participam do célebre Colóquio de Royaumont munidos de um “plano de batalha” (p. 140). Mas os inconvenientes não estão circunscritos à época. No momento mais desconcertante do livro – mais até do que a exposição do caso Elisabeth -, Fornari nos coloca em contato com recentes ataques feitos por nomes conhecidos da comunidade filosófica, como Maurizio Ferraris e Domenico Losurdo. Convencidos de que a edição crítica não provoca uma significativa alteração no conteúdo de a Vontade de Potência, entendem que os resultados divulgados seriam de teor dissimulatório e que Colli e Montinari continuam vinculados ao antigo plano de canonização de Nietzsche, ainda que com outra roupagem ideológica. É possível que esse argumento falacioso tenha sido benéfico para o mercado editorial, haja vista a quantidade de reimpressões de a Vontade de Potência em vários países nas últimas décadas, inclusive no Brasil.

Embora o fantasma de Elisabeth ainda assombre, Fornari conclui o livro trazendo um panorama alentador. Nesse momento, discorre sobre os herdeiros de Colli e Montinari que em nossa atualidade promovem avanços em direção a um tratamento mais criterioso dos escritos de Nietzsche. Trata-se do Nietzsche Source, um desdobramento do HyperNietzsche. O projeto, dirigido por Paolo D’Iorio, disponibiliza “a todos os nietzschianos, a Digitale Kritische Gesamtausgabe (ou seja, a versão digital da edição Colli-Montinari das obras e das cartas), a Digitale Faksimile Gesamtausgabe (reprodução em fac-símile, embora ainda incompleta, do espólio de Nietzsche: primeiras edições das obras, manuscritos, cartas e documentos biográficos)”, além da inclusão, a ser em breve concluída, “dos volumes da biblioteca pessoal completamente digitalizados e acrescidos de comentários” (p. 183). A edição digitalizada vem também acompanhada por uma grande quantidade de correções da edição Colli-Montinari, melhorias que não passam despercebidas aos olhos do pesquisador experimentado3.

Nietzsche dizia que a obra, quando descolada do criador, passa a gozar de uma vida própria, algo que, num certo sentido, ele reafirma ao se voltar para a sua produção mesma: uma coisa sou eu, outra são meus escritos. O livro de Fornari revela que, malgrado essa apreciação, o espólio de Nietzsche conhece uma vida similar à do autor: atribulada, incerta, itinerante, enfim, aventurosa. Resta agora saber se terá um desfecho menos dramático.

Referências

CAMPIONI, G. Leggere Nietzsche. Alle origini dell’edizione critica Colli-Montinari. Con lettere e testi inediti. Pisa: ETS, 1992. [ Links ]

D’IORIO, Paolo. “The Digital Critical Edition of the Works and Letters of Nietzsche” in: The Journal of Nietzsche Studies, 40, 2010, pp. 164-74. [ Links ]

FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. [ Links ]

HOFFMANN, David Marc. Zur Geschichte des Nietzsche-Archivs. Chronik, Studien und Dokumente. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1991. [ Links ]

HOFFMANN, David Marc. Das “Basler Nietzsche-Archiv”. Katalog der Ausstellung. Basel: Universitätsbibliothek Basel, 1993. [ Links ]

Notas

1Diferencia-se, assim, de outros empreendimentos similares, tais como os realizados por Hoffmann. CfHoffmann, 1991, p. 3 – 131; 1993, p. 25 – 94. Saliente-se, ainda, que a obra de Fornari traz um aporte mais atualizado, como era de esperar.

2Cf. também: Campioni, 1992.

3A esse respeito, Cf.. Paolo D’Iorio, Paolo, 2010, pp. 164-74.

Eduardo Nasser – Professor pesquisador da Alexander von Humboldt-Stiftung na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, Freiburg, Alemanha. Bolsista CAPES. E-mail: eduardo.nasser@philosophie.uni-freiburg.de

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Nietzsche e as cartas – DIAS; OLIVEIRA (CN)

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de. Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019. Resenha de: COSTA, Gustavo Bezerra do N. Nietzsche por suas cartas. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.

Nietzsche e as cartas, coletânea organizada por Rosa Maria Dias e Marina G. de Oliveira, lançada no segundo semestre de 2019 pela Editora Via Verita, apresenta, de saída, dois importantes méritos.

Primeiramente, o fato de reunir em livro os textos apresentados no colóquio homônimo, realizado em novembro de 2017 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desnecessário talvez seja dizer que da relevância desse evento, cujo sentido extrapolou o estritamente acadêmico e alcançou a esfera política, na medida em que se pôs como importante marco de resistência do corpo docente, discente e de funcionários daquela universidade ante o processo de desmantelamento imposto pelo governo estadual, que naquele período chegava a um de seus momentos mais críticos.

Não obstante esse feito por si auspicioso, colóquio e livro têm também o mérito de trazer a público ensaios de cunho biográfico e filosófico em torno do epistolário de Nietzsche1, colaborando decisivamente para preencher a lacuna decorrente da escassez de produção teórica sobre esse tema em nosso país. Não se trata, certamente, de mera ilustração ao pensamento filosófico, como se poderia aventar em abordagens com viés estruturalista ou mesmo pós-estruturalista. Ao contrário, e os textos contidos em Nietzsche e as cartas dão prova disto, o epistolário pode fornecer uma seleta matéria-prima ao exercício filosófico, mais ainda quando se trata de um pensador no qual a relação entre vida e obra se mostra tão visceral.

Além de ser o elo do andarilho Nietzsche com a família e os amigos, particularmente: Erwin Rohde, Carl Fuchs, Franz Overbeck e Heinrich Köselitz (Peter Gast), suas cartas se mostram como um exercício genuíno de reflexão filosófica. Cabe ao epistolário, assim como aos fragmentos, textos póstumos e também aos prefácios à reedição de suas obras, fornecer subsídios e indícios de teor genético à compreensão e interpretação de uma filosofia na qual o problema da gênese é intrínseco a seu próprio método. Isto, além de ser o meio adequado ao relato daquilo que em sua obra publicada – particularmente as do período intermediário e em Ecce homo – assume importância filosófica ímpar no que se refere à criação ou cultivo de si: a atenção com as coisas próximas: saúde, clima, amizades, dietética, por exemplo.

Com graus diversos de liberdade interpretativa, sem porém descurar do rigor exegético, os textos reunidos na coletânea apresentam um leque variado de abordagens em torno do epistolário de Nietzsche, ora com ênfase na cronologia, ora com acento temático. À guisa de orientação de leitura, e ainda que sob risco de esmaecer a variedade de nuances ali envolvidas, poderiam ser elencados alguns temas gerais.

As questões de método no trato com o epistolário são o mote para o texto de Fabiano de Lemos, que aponta para a necessidade de uma propedêutica à epistolografia nietzscheana como forma de mensurar seu estatuto em relação à obra. Já a aproximação, há pouco aludida, entre vida e escrita em Nietzsche, ganha destaque no belo ensaio de Clara Savelli, bem como, mais especificamente voltados ao período de elaboração de Assim falou Zaratustra, nos textos de Tiago Barros, Carla Silva e Enock Peixoto – este último, salientando um viés educativo no problema da autossuperação presente naquela obra. Também próximos a esse tema estão os escritos que abordam a relação, bastante recorrente em suas cartas, entre saúde e doença, alimentação e clima, amizade e solidão, deslocamentos e estadias. Aqui merecem menção os ensaios de Sandro Adão, Pedro Lima Filho, Lana Faya, Suyane Comar e Gabriela Alves, que abordam o tema sob perspectivas e enfoques diversos; e ainda, o texto de Rosa Dias, uma das organizadoras do livro, que traça a relação entre vida e obra em Nietzsche a partir das missivas dos períodos de estadia em Sils-Maria, onde foi concebido e delineado Assim falou Zaratustra e onde eclodiu, em agosto de 1881, o pensamento do eterno retorno.

As cartas do período de docência na Basileia, com ênfase em sua interrupção por motivos de saúde, bem como na crítica nietzschiana à burocracia e ao nivelamento imposto pelo sistema educacional alemão, são alvo, respectivamente, das abordagens de Vilmar Martins e Mariana Moreira. Já as missivas em torno da relação entre Nietzsche e Wagner são objeto da interpretação de Nilcinéia Longobuco, Marina Oliveira e Maria Helena Lisboa. Marina Oliveira, também organizadora da coletânea, toma a noção de amor fati como mote para pensar as distintas disposições de afeto suscitadas na comparação feita por Nietzsche entre a obra do compositor alemão e Carmen, ópera de Bizet. Esse ponto é também levantado na robusta interpretação de Maria Helena Lisboa sobre a amizade e o rompimento com Wagner, explorando determinadas nuances e mitigando aquilo que em uma leitura desatenta se teria como uma ruptura radical e pouco amistosa. As cartas sobre o relacionamento com Paul Rée e Lou-Salomé, por sua vez, ganham relevo no ensaio de Cristie Campello.

Chama a atenção, em uma abordagem distinta, a maneira atenta com que foram tratados nessa coletânea os prefácios de Nietzsche à reedição de suas obras, verdadeiras cartas a seus leitores, como muito bem apontam os ensaios de Joaquim Alves e de Miguel Angel de Barrenechea – este último, argutamente intitulado “Carta ao jovem Nietzsche”.

Já as cartas do período que antecede seu colapso mental, as chamadas “cartas da loucura”, ganham destaque nos textos de Alexandre Cabral, Carlos Estellita-Lins, Aparecida Duarte e José Nicolau Julião. Trata-se certamente do período mais crítico da trajetória intelectual nietzscheana, daí a importância inestimável que possuem os relatos desse período. Sob diferentes perspectivas, os três primeiros autores tratam dos temas da transgressão, despersonalização, performatividade e ressignificação da loucura a partir da escrita de si, chegando com isso a interpretações distintas, mas certamente mais potentes do que a leitura científica do estado psíquico do filósofo. Dentro dessa mesma temática, mas com abordagem diversa, está o texto de José Nicolau Julião que, partindo da missiva de Köselitz a Overbeck, traz à tona o debate ainda hoje aberto sobre a indefinição quanto ao diagnóstico do colapso.

Podem também ser ressaltadas as interpretações que, a partir das cartas e ainda que com temáticas diversas, estimulam um paralelo entre Nietzsche e outros filósofos e escritores, tais como Heidegger, Emerson, Sartre e Bishop. Aqui podem ser mencionados os textos de Kim Abreu, Tito Palmeiro, Helio Herbst e Lucrecia Corbella. Chamam ainda a atenção dois curiosos e bem-humorados ensaios. Um deles, uma bem construída carta a Nietzsche em torno do tema da ciência, redigida por Christine White. O outro, escrito com refinado grau de ironia por Rilza Barbosa, em torno dos boatos sobre o suposto encontro entre Nietzsche com D. Pedro II.

A abrangência de abordagens que aqui procuramos elencar e expor de forma sintética e talvez pouco atenta não faz certamente jus à miríade de perspectivas que caracterizam os ótimos ensaios contidos em Nietzsche e as cartas. Espera-se, contudo, que sirvam de ensejo à leitura dessa obra que, como aventamos no início, já se põe como marco nas pesquisas em torno desse instrumento ímpar de reflexão filosófica que é o epistolário de Nietzsche.

Referências

DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de (orgs.). Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita: 2019. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia. Trad. esp. Luis Enrique de Santiago Guervós et. al. Madrid: Trotta, 2005-2012, 6v. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe in 8 Bänden (KGB). Berlim: DTV / Walter de Gruyter, 1975-2004, 8v. [ Links ]

1A edição consolidada das cartas de Nietzsche, Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe (Nietzsche, KGB, 1975-2004), é resultado de um trabalho extenso e minucioso coordenado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e publicada a partir de 1975 em oito volumes por Walter de Gruyter, em parceria com a Deutscher Taschenbuch Verlag (dtv). Os textos que compõem Nietzsche e as cartas valem-se dessa edição, bem como da espanhola Correspondencia (Nietzsche, 2005-2012), organizada por Luis Enrique de Santiago Guervós, publicada entre 2005 e 2012 em seis volumes pela Editorial Trotta.

Gustavo Bezerra do N. Costa – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: arqgustavocosta@hotmail.com

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Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades | Aguinaldo Rodrigues Gomes

A obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades, sob organização de Antonio Ricardo Calori de Lion e Aguinaldo Rodrigues Gomes, nos apresenta, em suas 408 páginas, uma sequência de vinte artigos, divididos em três partes distintas: Existências/Resistências; Subjetividades e as reinvenções de si; e (In)visibilidades e representatividades. Pontuando variados períodos da história humana, o conjunto de textos englobados na obra nos fornece um interessante panorama acerca do corpo e de suas subjetividades desde a antiguidade romana até a contemporaneidade.

Ao considerarmos o atual momento histórico-social brasileiro, no qual a invisibilidade e a marginalização da comunidade LGBT+ [2] aparenta ser uma questão à qual os poderes governamentais gradativamente parecem se afeiçoar, principalmente através de discursos de ódio voltados ao “diferente”, o conteúdo disposto em Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades apresenta-se como uma leitura fundamental para entendermos não apenas as transmutações históricas da mentalidade, corporalidade e sexualidade LGBT+, mas também como uma maneira de compreendermos a vivência desses sujeitos frente às violências quotidianas a que são submetidos.

Embora o foco da maioria dos textos que a compõem seja voltado para experiências de travestis e mulheres transexuais, a obra mostra-se uma prolífica mina de conhecimento ao englobar ideias de importantes pensadores como Judith Butler, Paul Beatriz Preciado, Angela Davis e Michel Foucault, entre outras/os, além de entrevistas com sujeitas/os cujas vivências foram e ainda são marcadas por experiências corporais tidas como desviantes dentro de um contexto patriarcal cis- heteronormativo.

A obra inicia na antiguidade romana, ao examinar a corporeidade masculina em contraste com a idealização quase utópica acerca do conceito de masculinidade e feminilidade da época. Ao explorar a relação do imperador Nero e do escravo Esporo em Um eunuco e um imperador: o discurso literário sobre casamento, corpo e gênero no Império Romano, o autor do texto, Benedito Inácio Ribeiro Júnior, traça uma importante análise sobre o corpo masculino e as funções sociais de homens e mulheres no Império Romano. Ao explorar as relações de poder que permeavam os estratos sociais mais altos da sociedade romana da época, o autor nos convida a questionar como são construídas as identidades de sexo, gênero e corpo, bem como os papéis atribuídos socialmente ao masculino e feminino na sociedade antiga – um questionamento que nos causa também uma reflexão sobre esses mesmos elementos na sociedade contemporânea.

Corpos e comportamentos em desconformidade às regras socialmente estabelecidas também são abordadas no texto Efeminados, travestis, transexuais e hermafroditas luso-afro-brasileiras nas garras da inquisição, de Luiz Mott. Nele, o autor comenta acerca do modo como sujeitos biologicamente identificados como sendo do sexo masculino eram levados aos tribunais inquisitoriais devido a comportamentos desviantes dos padrões patriarcais do período. Para a realização de seu estudo, Mott reúne registros da Torre do Tombo e traça um panorama não apenas do pensamento e valores da época sobre o “ser” masculino, mas também uma visão do feminino enquanto um elemento depreciativo na conduta de homens e rapazes. Nesse contexto, a transexualidade e a travestilidade são empurrados para a margem social como condutas consideradas violações sérias aos olhos da sociedade e da religião, punidas com a prisão, degredo ou mesmo a morte.

Ao pensarmos a realidade brasileira desses indivíduos marginalizados, um ponto bastante complexo e muitas vezes ignorado pelos poderes governamentais é a situação dessas pessoas quando parte da população carcerária. É essa realidade que Aguinaldo Rodrigues Gomes e Josimara Aparecida Magnani exploram em seu texto Travas e Trans – abjetificação e precarização de vidas no cárcere brasileiro. O capítulo traça um retrato da precarização e do desrespeito aos direitos humanos dentro do sistema penal, bem como da violência reservada a esses corpos dentro das instituições carcerárias no Brasil, dando-nos uma visão bastante ampla acerca da virilidade inserida no sistema penal como um instrumento de dominação e uma forma de subjugar corporalidades consideradas abjetas, excluídas do ideário machista.

A questão da corporalidade é também trabalhada lançando-se um olhar para a área da saúde. Nos textos Cada cicatriz conta uma história: corpos doloridos, de Regiane Corrêa de Oliveira Ramos e Frida Pascio Monteiro; Paradoxos discursivos na luta pela inserção social das brésiliennes em Paris, de Marina Duarte e Daniel Wanderson Ferreira; e Despatologização das identidades trans desde os transativismos na Abya Yala: notas sobre uma experiência acadêmica-ativista avaliativa e participativa, de Fran Demétrio, vemos as relações estabelecidas entre o discurso médico e a “criação”, manutenção e (des)patologização dos corpos em transição.

Ramos e Monteiro conectam a vivência de homens e mulheres transexuais no Brasil e na Índia ao discorrer sobre a insubmissão dos corpos frente ao sistema patriarcal, e sobre a violência sofrida por esses corpos em trânsito em suas buscas pela adequação corporal à sua subjetividade. Aqui, nos é exposto também um panorama relativo à lida médica diante de indivíduos transexuais que desejam intervenções cirúrgicas em sua construção corporal.

Duarte e Ferreira comentam sobre a migração de travestis brasileiras para Paris, principalmente com o objetivo de trabalhar no mercado sexual. Também nos é apresentada a figura de Camille Cabral, ativista brasileira trabalhando em território francês em prol da saúde das prostitutas travestis e transexuais. O texto conta com um extenso trabalho de pesquisa relativo à trajetória dos projetos de saúde desenvolvidos por Cabral e associações que trabalham em parceria com esta, em um esforço para a visibilidade e manutenção da saúde dessa população, principalmente em relação ao vírus do HIV/AIDS.

Demétrio, por sua vez, traz a discussão desses corpos em trânsito para o âmbito da América Latina. Em seu texto a autora analisa a situação cultural e sociopolítica de pessoas trans em vários países latino-americanos, além de refletir sobre o papel da justiça, da medicina e da psicologia no tratamento dispensado às comunidades transexuais.

A corporalidade como instrumento da expressão da subjetividade e como fazer artístico é assaz visível nos textos Reflexões transversais sobre o corpo de Hija de Perra (1980-2014), de Thiago Henrique Ribeiro dos Santos; “Com a sobrancelha lá na puta que pariu”: a arte de ser drag em Belém do Pará – a NoiteSuja e as drags Themônias (2014-2018), de Ana Paulo Gomes Barbosa; “Não quero ouvir falar em outro transformista, o que não for Olga del Volga é vigarista”: o nonsense debochado de Patrício Bisso na década de 1980, de Robson Pereira da Silva; DZI Croquettes e os corpos em trânsito, de Natanael de Freitas Silva; e Identidades em trânsito: revisitações acerca da arte da montação, de Juliana Bentes Nascimento.

Em sua análise sobre a trajetória de Hija de Perra, Santos vale-se de conceitos como o de corpo falante, o de máscara e mascaramento, e o de rostilidade, para traçar um esboço sobre a construção corporal de Hija de Perra, em um estudo que mistura fragmentos de dados biográficos e ficcionais do que Santos nos apresenta como uma “poética abjeta e marginal”, um corpo monstruoso e indisciplinado. Colocando-se fora de uma lógica colonial binária, que admite apenas “homem” e “mulher” como construções sociais e sexuais cujas existências são autorizadas, Hija de Perra inventa outros modos de existir, surgindo como uma subversão do sistema, um indivíduo incompreensível pela mentalidade patriarcal hegemônica.

A fuga da normatividade é também explorada por Barbosa ao dissertar acerca das drags Themônias, um grupo que se diferencia das drags “convencionais” a partir, entre outros pontos, da criação de novos conceitos estéticos. É nesse contexto que Barbosa questiona o que é ser drag, além de comentar sobre o pensamento binário ainda existente em meio à comunidade LGBT+ que privilegia as drag queens aos drag kings. A autora também reflete a respeito dos elementos que caracterizam um gênero e quais os limites, se é que existem, entre sexo, gênero e sexualidade dentro de uma lógica heterossexual compulsória. Em sua análise, Barbosa discorre sobre indivíduos que, ao se montarem, são identificados com o gênero masculino, feminino ou nenhum dos dois.

Robson Pereira da Silva, por sua vez, investiga a performance artística de Patricio Bisso como a sexóloga russa Olga del Volga. Em seu texto, o autor explora a performatividade da linguagem da personagem de Bisso de forma a dar vazão a uma subjetividade de gênero que não seria, dado o momento histórico no qual o artista viveu, benquisto frente à sociedade. A mistura de dualidades na figura de Olga del Volga e de Histeria (outra personagem tratada no texto), como o belo, o feio, assim como a fuga aos padrões de beleza e o discurso enviesado por absurdos, unem-se na criação do nonsense utilizado por Bisso em sua arte. Silva defende que ambas as personagens apresentadas no capítulo seriam elas próprias afrontas aos padrões de beleza e comportamento impostos às mulheres.

No âmbito desses questionamentos acerca dos padrões decretados pela lógica cis-heteronormativa, Natanael de Freitas Silva explora a problematização da virilidade e das atribuições de gênero socialmente construídas ao comentar sobre os DZI Croquettes. O autor reflete sobre o período ditatorial brasileiro e como a homossexualidade foi associada a uma doença social, uma degenerescência e um grave pecado aos olhos de setores sociais conservadores. Nesse panorama, a negação de traços tidos como femininos era vista como uma necessidade, uma vez que o feminino era uma mácula na utopia cis-heteronormativa. Em seu texto, Silva comenta também sobre o corpo não mais como uma ferramenta de adequação, mas sim de aperfeiçoamento da performance artística em constante diálogo entre a corporalidade masculina e feminina, uma ambiguidade subversiva e perigosa à “moral e os bons costumes”.

Na discussão relativa à quebra desses parâmetros cis-heteronormativos, Nascimento contribui ao enviesar seus comentários em direção à montação. Ligada ao conceito de mascaramento, a autora trabalha a ideia de montar-se para uma ação em busca não apenas de um efeito estético, mas também de uma nova percepção corporal. Ao comentar sobre formas de montação, como drag queen, drag king, transformismo, cross-dressing e drag queer, incluindo também as drags Themônias, Nascimento monta um panorama sobre esse processo identitário e artístico, em constante diálogo com a performatividade de gênero.

Em alguns capítulos o corpo em trânsito é observado a partir das vivências da infância. Em Vidas dissonantes em memórias de infância: as artes de existência como resistência ao desaparecimento social, de Raquel Gonçalves Salgado e Bruno do Prado Alexandre; e Traíd@s pela verdade: análise cinematográfica sobre a infância trans nas obras francesas Ma vie em rose (1997) e Tomboy (2011), de Márcio Alessandro Neman do Nascimento, Eloize Marianny Bonfim da Silva, Jefferson Adriã Reis e Jéssica Matos Cardoso, nos é exposto um panorama sobre a vivência e construção da identidade sexual e de gênero de crianças em meio a um ambiente adultocêntrico e LGBTfóbico.

Salgado e Alexandre exploram as bagagens memorialísticas de infância de travestis durante suas passagens por instituições escolares. Um fato que torna-se bastante evidente nas narrativas apresentadas é o despreparo da escola para lidar com experiências de gênero dissonantes dentro do sistema de heteronormatividade compulsória. São vivências rechaçadas e desprezadas, mas também rebeldes frente às convenções de gênero e sexualidade.

Já Nascimento, Silva, Reis e Cardoso tecem uma reflexão a respeito das experiências de gênero e sexualidade na infância a partir de obras cinematográficas. Assim como no texto de Salgado e Alexandre, notamos nesse capítulo a violência direcionada à criança que de alguma maneira desvia do comportamento convencionado segundo as normas da sociedade machista. Ambos os textos trabalham em consonância, proporcionando-nos relevantes contribuições ao entendimento da vivência do indivíduo transexual na infância, um importante período de construção da individualidade.

A carga memorialística também é perscrutada por Fábio Henrique Lopes e Paulo Vitor Guedes de Souza no capítulo Suzy Parker e Yeda Brown. Amizade, modos de existência e invenções de si. Nele, por meio de entrevistas, somos apresentados à cena cultural do Rio de Janeiro da década de 1960, na qual travestis inseriam-se no entretenimento noturno da cidade e experimentavam intervenções estéticas corporais a partir de modelos de feminilidade branca e cisgênera. Nesse período notamos a formação de redes de solidariedade para com as artistas travestis que inseriam-se nesse meio.

Lopes e Souza discutem o abandono da ideia do comportamento viril como algo necessário e o autorreconhecimento dessas artistas como mulheres, numa emancipação do padrão cis-heteronormativo – um rompimento com padrões sociais de gênero artificialmente construídos e já então falidos.

A representação das incongruências corporais na mídia também é discutida por Jéfferson Balbino em Representações da transgeneridade na teledramaturgia brasileira, texto no qual o autor preza por explorar, no cenário televisivo do Brasil, a forma como personagens transexuais foram levadas à grande massa consumidora de telenovelas.

Como comenta Balbino, configurando-se enquanto veículo de grande influência cultural e política, a mídia televisiva tem capacidade de provocar reflexões em larga escala e revisões de aspectos culturais. É a partir desse pensamento que o autor analisa a figura de transexuais inseridas em três novelas, a saber: Tieta (1989), As filhas da mãe (2001) e A lua me disse (2005). Balbino pondera sobre questões de subversão de gênero, comicidade voltada ao tratamento dessas personagens e confusões comuns no tratamento dos conceitos de sexualidade e gênero.

Acerca da (in)visibilidade de subjetividades e corporalidades trans, os capítulos Da invisibilidade visível: o caso de Edmundo de Oliveira (Belo Horizonte, 1952-1981), de Luiz Morando; Travestis e transexuais brasileiras: ativismos e estratégias de resistências nos processos históricos de pessoas e coletivos organizados, de Adriana Sales, Herbert de Proença Lopes e Wiliam Siqueira Peres; e A invisibilidade das vivências não binárias das sexualidades e gêneros e a reivindicação do direito de aparecer: itinerários de uma pesquisa/viagem no cistema binário na educação, de José Augusto Gerônimo Ferreira e Leonardo Lemos de Souza, tecem reflexões sobre a forma como as manifestações de gênero e sexualidade, desviantes da norma cis-heterossexual hegemônica, são lançadas na marginalidade em uma tentativa de apagamento dessas vivências. Ao lançar foco sobre a experiência de vida de Edmundo de Oliveira, Morando traça um panorama do modo como a mentalidade patriarcal obriga Oliveira a jogar com a visibilidade e a invisibilidade de sua identidade, de modo a tentar encaixar-se na sociedade de sua época.

Da mesma maneira, Sales, Proença e Peres pintam um retrato das invisibilidades e violências que atingem as comunidades de travestis e transexuais, ao mesmo tempo em que essas coletividades resistem ao apagamento de suas histórias. O texto aponta para o fato de que, ao transitarem seus corpos, esses indivíduos tornam-se um desafio ao poder machista que deseja apagar suas histórias, negando o processo de desumanização desses corpos.

Já Ferreira e Souza lançam sua atenção para a academia ao discutirem a produção de conhecimento sobre transexualidades dentro da universidade, muitas vezes realizada através de um olhar cis-heteronormativo. A visão da academia explorada pelos autores é a de um ambiente no qual o progresso e o retrocesso de ideias comumente coexistem e acabam produzindo saberes construídos sob pontos de vista hegemônicos.

Em Ode à engenharia textual transvestigênere: uma leitura de Liberdade ainda que profana, de Ruddy Pinho, Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Luiz Henrique Moreira Soares dissertam sobre a representação de transgeneridades e travestilidades dentro do discurso literário. A partir da escrita em tom memorialístico de Ruddy Pinho, vislumbramos o modo como a autora torna-se ela própria um sujeito de sua escrita ao desconstruir ideais de gênero, sexualidade e identidade única, reafirmando sua existência enquanto um corpo transgressor. A maneira como a escritora é retratada denuncia a instabilidade da identidade masculina e feminina dentro de um contexto sociocultural que caminha, ainda que vagarosamente, para uma configuração plural.

Por fim, em A busca pelo corpo perfeito: uma rápida autoetnografia e análise interseccional da intersexualidade, Carolina Iara de Oliveira discorre acerca das violências sofridas pelo corpo e pela subjetividade de pessoas intersexuais. No texto de Oliveira, os discursos social e médico são ponderados a partir da vivência do indivíduo, na qual misturam-se violências geradas por preconceitos não apenas relacionados à sua materialidade genital, mas também à sua sexualidade, raça e classe social. Oliveira traça assim um quadro bastante claro acerca da maneira como a interseccionalidade atua ativamente na tentativa de adequar os corpos aos padrões cis-heteronormativos.

A recolha de materiais dos mais diversos tipos e nos mais diversos meios, como documentos oficiais, novelas, vídeos de internet, livros e entrevistas, torna a coletânea uma prolífica fonte de informações e fornece uma relevante base para reflexões sobre a subjetividade e a corporalidade dentro da comunidade LGBT+, principalmente no concernente a travestis e transexuais. Os relatos que servem de base para as análises desenvolvidas nos capítulos são em algumas ocasiões apresentados pelas palavras do próprio indivíduo a vivenciar tais situações, permitindo um mergulho na subjetividade das/os entrevistadas/os e o surgimento de um sentimento de empatia por aqueles cujas experiências estão sendo tratadas.

Na obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades somos confrontados com corporalidades que não afirmam sua existência a partir de uma forma única de ser. Esses corpos posicionam-se enquanto elementos integrados política, social e culturalmente, ainda que empurrados à margem, em uma sociedade de base patriarcal hegemônica, na qual a valoração dos corpos dá-se através de um olhar cis-heteronormativo. Os modos artísticos de construção do corpo e de expressão do eu interior através das estruturas corporais abrem um horizonte no qual não encontramos apenas a violência comumente dispensada à comunidade LGBT+, mas também uma forma de arte e de enfrentamento do sistema limitante de binaridades homem/mulher.

Transitar, na obra, é mais do que apenas expressar uma individualidade e uma subjetividade latentes, é também transgredir as rígidas normas sociais, políticas e religiosas que vêm regulando o comportamento humano há milênios, em busca de uma expressividade sem restrições. Formada por textos de leitura acessível, diversas vezes utilizando vocabulário próximo ao comumente usado por membros das comunidades LGBT+, Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades configura-se como uma oportunidade de conhecimento e aprendizado, além de uma valiosa contribuição aos estudos corporais, aos estudos sobre gênero e sexualidade, bem como aos estudos LGBT+.

Notas

2. Utilizamos a sigla LGBT+ pelo fato de “LGBT” ser de uso mais corrente do que outras abreviações, como LGBTQI, por exemplo, e por considerar que o sinal de adição (+) indica a abrangência de todas as individualidades representadas por essa comunidade, como queer, intersexuais, assexuais etc. Dessa maneira a nomenclatura fica menos extensa.

Marco Aurelio Barsanelli deAlmeida1 – Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010). Desenvolveu estudo acerca do processo de adaptação fílmica de obras do escritor Neil Gaiman. Concluiu em 2015 o programa de graduação em Licenciatura em Letras com habilitação em Português-Italiano da Unesp Câmpus de São José do Rio Preto. Concluiu também em 2015 o curso de Mestrado, cujo foco de estudos foi a adaptação cinematográfica da figura do herói do romance Stardust (1999). E-mail: marcoaurelio_maba@hotmail.com


GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LION, Antonio Ricardo Calori de (org.). Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades. Salvador: Editora Devires, 2020. Resenha de: ALMEIDA, Marco Aurelio Barsanelli de. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 197-203, jan./jun., 2020.

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Novas perspectivas da religiosidade popular / Revista Mosaico / 2020

Milton Nascimento na bela canção: Nos bailes da vida sugere que “todo artista tem de ir onde o povo está”. A frase fica bonita se aplicarmos a nós, os estudiosos e intelectuais, àqueles que gostam de investigar a sociedade brasileira. Ali poderíamos encontrar os verdadeiros sujeitos históricos. Entretanto, a missão é demasiado difícil de ser cumprida. Com alguma experiência nesse campo, se aprende a lição de que, de fato, o povo nunca está onde a gente espera.

Os estudos sobre o povo e dos aspectos populares surgiram, obviamente, interligados. A construção das nações modernas levou à invenção de uma natureza popular, que normalmente era encontrada no interior do país, nas pessoas sem erudição, de vida simples e não contaminadas com a agitada vida urbana. Deste modo, transformado em coletivo singular, foi fundamental para o surgimento dos estados democráticos, encarnando a alma de cada nação e a quem o governo representaria.

Esse substantivo, conjugado por regra singularmente, o povo, podia ser também um adjetivo utilizado para caracterizar uma cultura, uma religião, uma festa, um costume. Tanto de um como de outro modo, as operações que originaram tal recorte do social se tornaram invizibilizadas, como se o popular fosse realmente encontrado objetivamente.

Paralelamente, quando o tema avançou academicamente, a noção de popular passou a ser comumente evocada como o que supostamente se opõe a algo oficial, ou erudito. Tal distinção parece denotar que, tanto de um lado, quanto do outro, a cultura e a religião / religiosidade são estáticas, pertencentes a uma determinada classe de indivíduos e incomunicável (quando não vista, recorrentemente, como deformada) em relação à sua antítese.

No prefácio à edição inglesa de sua obra magna O queijo e os vermes, de 1976, Carlo Ginzburg reclamou da imputação de tais interpretações por críticos à sua obra. Em sua defesa, o autor da micro-história italiana evocou o famoso estudioso russo Mikhail Bakhtin, afirmando que:

entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do “conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa” que me foi atribuído por certo crítico (2006, p. 10).

Tais embates interpretativos demonstram, sobretudo, o quanto os conceitos de popular, e, ainda mais especialmente para o presente volume da revista Mosaico, a religião popular, estão longe ainda de obter consenso. Todavia, o esforço teórico e historiográfico da reflexão, tanto sobre os conceitos, como, principalmente, os sujeitos que a compõe e que lhe dá vida, faz-se indiscutivelmente necessário.

É nesta direção que os trabalhos reunidos aqui, nesse dossiê, demonstram a necessária crítica aos essencialismos e uma ruptura com os preconceitos elitistas incorporados na noção de religião popular, apresentando, discutindo e repensando conceitos, sujeitos e as mais diversas clivagens das manifestações populares.

Assim, é possível que os / as leitores / as percebam duas direções complementares nos artigos do presente volume: por um lado as devoções e sincretismos da religiosidade popular evidenciam a multidimensionalidade das festas religiosas, das entidades a quem se submete devoção e mesmo das ações práticas (que também são resistências políticas) decorrentes dos sentimentos religiosos.

No âmbito das festas e das mestiçagens culturais, há dimensões indiscutivelmente importantes na composição histórica, dos rituais e das experiências vividas nos quadros da religiosidade popular brasileira. Deste modo, Marcos Manoel Ferreira abre nosso número analisando o sincretismo afro-brasileiro numa das festas religiosas mais populares do sertão as congadas. Em seu artigo intitulado Congada de Catalão (GO): o sincretismo da festa popular na perspectiva dos devotos, Ferreira busca analisar os diversos níveis de compreensão e percepção do sincretismo religioso contido nas festas de congada da cidade de Catalão.

Ainda na esteira de mapear os caminhos do sincretismo religioso, Daniel Precioso nos apresenta uma discussão sobre o processo de adaptação de símbolos da devoção católica à cosmogonia africana, mostrando como crioulos (negros descendentes de africanos escravizados e nascidos no Brasil) fechavam seus corpos por meio do uso de bentinhos, de escapulários católicos. Em seu artigo intitulado Os bentinhos como patuás: o processo de africanização de um objeto devocional católico no Brasil escravista, Precioso regressa aos séculos XVIII e XIX para analisar a construção de uma prática popular afro-brasileira por meio da ressignificação de um objeto devocional.

Para fechar as reflexões sobre a africanidade na religiosidade popular brasileira, Paulo Petronilio Correia analisa a controversa e multifacetada figura de Exu no imaginário do Candomblé e da Umbanda. Essa tem sido a entidade mais lembrada pela frequente demonização, feita pela tradição cristã às religiões de matriz africana. Os sentidos encruzilhados receberam uma análise substancial das complexas características que a devoção popular afro-brasileira construiu, apontada no artigo Exu: o imaginário individual e coletivo do candomblé.

Ainda cruzando religiosidade popular, devoção e festa, três artigos do presente número voltam sua análise agora para o âmbito da matriz religiosa católica, a que tem sido hegemônica e numericamente mais importante na sociedade brasileira. Em Ultramontanismo e catolicismo popular em Goiás no início do século XX: caracterizações e problematizações, Robson Gomes Filho discute os problemas historiográficos da atribuição ao movimento católico oitocentista do ultramontanismo de se pretender superar ou suprimir o denominado catolicismo popular. Para tanto, Gomes Filho analisa a autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, principal nome do ultramontanismo em Goiás no início do século XX, e os escritos de Francisco Wand, sacerdote redentorista que viveu em Goiás no mesmo período. Suas reflexões trazem à tona as dificuldades, limitações e necessidades de reflexões e debate historiográfico tanto sobre o movimento ultramontano no Brasil, quanto sobre o próprio conceito de catolicismo popular.

Na sequência, Karine Monteiro da Silva apresenta-nos uma valiosa reflexão sobre os mitos de origem e adaptações eclesiásticas sobre a devoção ao Divino Pai Eterno em Goiás. Temos analisado em seu artigo o princípio básico da mais importante romaria e da maior festa religiosa da região centro-oeste: a devoção ao Divino Pai Eterno. Suas origens míticas enredam uma dimensão não apenas teológica (o mistério da Trindade), mas sobretudo psicológica, por meio da qual o artigo Interpretando o Divino Pai Eterno em Trindade envereda-se.

No trabalho A memória nos guia: trajetos e trejeitos de uma festa religiosa no povoado do Bacalhau – Goiás, Eduardo Gusmão de Quadros e Raquel Miranda Barbosa discutem a devoção à Nossa Senhora da Guia em um pequeno povoado localizado às margens da antiga capital goiana, a Cidade de Goiás. Em sua análise, os autores demonstram como a referida devoção forneceu ao povoado uma identidade singular, bem como o modo como tal identidade, cuja referência física é a capela histórica local, ainda conservada, mas que encontrou limitações para adentrar nas políticas patrimoniais do poder civil e religioso vilaboense.

Para finalizar nosso número, Lenir Candida Assis, Fabio Lanza e José Wilson Assis Neves traduzem a reflexão do campo devocional para a luta política, em uma sólida e importante análise acerca da dimensão mística pertinente à militância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em artigo intitulado A relação entre mística, religiosidade e política no processo de mobilização social do assentamento Eli Vive (MST-Londrina, PR), os referidos autores demonstram como o âmbito político-ideológico, nem de longe, se aparta das tradições da religiosidade popular.

Portanto, os movimentos religiosos, especialmente classificados como populares, demonstram um pequeno retrato do que tem sido a identidade nacional brasileira. O desafio de refletir analiticamente sobre nosso povo deve incluir, necessariamente, conhecer as tradições e costumes que tem cultivado religiosamente. Ali temos uma fonte de recursos simbólicos e de força espiritual para enfrentar, cotidianamente, os desafios da sobrevivência.

Referência

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras,

Robson Gomes Filho – Universidade Estadual de Goiás. E-mail: robson.gomes.filho@gmail.com

Eduardo Gusmão de Quadros – Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: eduardo.hgs@hotmail.com


GOMES FILHO, Robson; QUADROS, Eduardo Gusmão de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Recorde. Rio de Janeiro, v.13, n.1, 2020.

Artigos

Entrevistas

Resenhas

Los indígenas y la construcción del Estado-Nación. Argentina y México, 1810-1920: historia y antropología de un enfrentamiento – BERNAND (FH)

BERNAND, Carmen. Los indígenas y la construcción del Estado-Nación. Argentina y México, 1810-1920: historia y antropología de un enfrentamiento. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Prometeo, 2016. Resenha de: ZAPATA, Horacio Miguel Hernán. Los pueblos indígenas en la construcción Nacional de Argentina y México: un contrapunto de experiencias sociohistóricas (1810-1820). Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.480-485, jan./jun., 2020.

La participación de las sociedades indígenas dentro de los procesos de creación y afianzamiento de los Estados nacionales constituye una de las tantas problemáticas que ha marcado tanto la historiografía como la antropología latinoamericanas de las últimas décadas. Sin duda, a ello han contribuido de forma significativa, por un lado, antropólogos formados en la tradición de una Etnohistoria interesada por entrever la “perspectiva del otro indígena en las situaciones de dominación colonial y estatal” (ROJAS, 2008). En segundo lugar, han contribuido a ello también aquellos historiadores enrolados en una historia social y política “desde abajo”, preocupados por ofrecer nuevas aproximaciones a las diversas experiencias históricas de los grupos sociales subalternos – en relación con los grupos hegemónicos– a lo largo la historia. En efecto, el desarrollo de investigaciones empíricamente fundadas en la interpretación de viejas y nuevas fuentes a partir de enfoques y metodologías renovadas, ha permitido que historiadores y antropólogos pudiesen “ensanchar la base de la historia” (SAMUEL, 1984, p. 17) y explorar “una dimensión desconocida del pasado” (HOBSBAWM, 1998, p. 207-208) o, más bien, un aspecto de las culturas nacionales mal conocidas y sobre las que pesan no pocos mitos y polémicas. A partir del fortalecimiento de esta línea de trabajo innovadora, contamos con más elementos para acabar con las miradas que han concebido a las comunidades indígenas como objetos pasivos de las políticas impuestas en el pasado y el presente.

Como consecuencia, en los nuevos estudios e interpretaciones histórico-antropológicas los pueblos indígenas se nos presentan como verdaderos actores, sujetos constructivos y activos frente a la realidad que los contiene y que se transforma continuamente a través de las sucesivas adecuaciones, inventivas e impugnaciones barajadas gracias a su capacidad de agenciar – de manera armónica o contradictoria – distintos bienes, prácticas y representaciones del mundo en que viven. Precisamente gracias a que existen estos incesantes esfuerzos de distintos académicos por producir conocimiento social sobre las comunidades originarias es que hoy contamos con el libro Los indígenas y la construcción del Estado-Nación. Argentina y México, 1810-1920, de la afamada etnohistoriadora francesa Carmen Bernand. Elaborado y publicado originalmente como un manual destinado a abordar el tema del concurso de acceso a la condición de profesor de la enseñanza pública en Francia, el presente libro constituye la versión traducida al castellano y mejorada por su propia autora, convirtiéndose en una voluminosa obra dedicada a presentar – como bien indica su título – un estudio de antropología histórica comparada de los complejos vínculos entre los indígenas y los nuevos Estados nacionales surgidos a partir del descalabro del otrora imperio español.

Como podrá advertir el lector avezado, su redacción obligó a reunir y compaginar un creciente y heterogéneo universo de resultados de investigación sobre diferentes objetos y en diversos registros, propios y ajenos, cuya articulación no siempre resulta evidente, en una narración atrapante donde su objeto nunca se desdibuja. Su composición permite ver con claridad tanto las líneas maestras del oficio como la manera, precisa y elocuente, de trabajar con un corpus significativo de fuentes (correspondencia oficial y personal, periódicos, informes de comandancias de frontera, los registros de gastos de compensaciones, memorias particulares y diarios de viajeros) en un esfuerzo para comprender, de manera vívida y sugerente, los significados que una sociedad atribuye a los acontecimientos en los que participa. Si bien los argumentos vertidos a lo largo del libro – en la mayor parte de los casos – no son naturalmente novedosos para los especialistas, el mismo no carece de la profundidad propia de las obras que obligan a ajustar cuentas con los estudios anteriores y marcan pautas para futuras investigaciones, sobre todo en lo que se refiere a la principal hipótesis de la autora. Y es que el objetivo central de Bernand es demostrar que los grupos indígenas fueron partícipes de los dramáticos avatares derivados de la conformación de los actuales Estados republicanos de México y Argentina a lo largo del siglo XIX, ya que – en tanto agentes activos – tejieron relaciones de negociación, conflicto y subordinación con las elites en el poder.

Sin embargo, pese a su nueva adaptación, la investigadora logró conservar esa particular “identidad mestiza” (VIAZZO, 2003), que supo imprimirle al ensayo original, desdibujando las fronteras entre Antropología e Historia, combinando un conjunto de preocupaciones teóricas del campo antropológico con el andamiaje empírico que provee del decurso histórico. En este sentido, el lector podrá observar que en la arquitectura global del libro hay secciones que resultaron más históricas, mientras que otras se tornaron más antropológicas; ello no quita que, por momentos, el abordaje conjugue ambos enfoques. Ciertamente, la obra divide el estudio de las trayectorias indígenas en dos grandes partes. Bajo el subtítulo de “Jalones”, la primera parte expone y analiza los principales hechos en el orden cronológico en el que se presentaron a lo largo de un apartado introductorio y siete capítulos. Los capítulos, a su vez, se hallan delimitados a partir de distintos clivajes temporales que responden – en términos generales – a una periodización secular significativa para ambos países, cuyo inicio arranca en el año 1810 y su cierre alrededor de inicios de la década de 1920. Si bien la decisión de Bernand de recurrir a una periodización inconveniente (por su apego a efemérides patrias o convenciones historiográficas tradicionales, pero no así a las dinámicas del mundo indígena), es indudable que la misma se convierte en un mapa de lectura muy útil.

De ese modo, en el capítulo introductorio se presentan cuestiones que la autora entiende como fundamentales para la comprensión del recorrido histórico de los siguientes acápites, como la situación en los Virreinatos de Nueva España y del Río de la Plata a fines del siglo XVIII, dos territorios mucho más extensos que las repúblicas que llevaran los respectivos nombres de México y Argentina, los caracteres y dinámicas sociales de los grupos indígenas que habitaban más allá de las fronteras de ambas jurisdicciones, las descripciones etnográficas sobre éstos legadas por funcionarios, misioneros y viajeros y los fundamentos políticos sobre los que se erigieron las jóvenes repúblicas. Seguidamente, en los capítulos primero y segundo, la autora describe los corolarios producidos sobre las poblaciones indígenas por el proceso de la insurgencia en México y en las Provincias Unidades del Sur. A continuación, los capítulos tres y cuatro reconstruyen el largo período caracterizado por una sucesión de guerras civiles y de conflictos internacionales abiertos luego de la independencia política de ambos países.

Allí, Bernand sitúa al indígena dentro del conjunto de grupos socioétnicos que tomaron parte, según sus propios intereses y oportunidades, en los conflictos que forjaron los Estados republicanos modernos, historizando las acciones emprendidas por las distintas facciones políticas criollas en pugna (caudillos unitarios y federales en el caso del Río de la Plata y liberales o conservadores en el caso del México), para ganar la colaboración militar de algunas de las parcialidades indígenas y los diversos posicionamientos que éstas últimas adoptaron. Resultado de esa participación fueron, como muy bien explica la autora, la progresiva pérdida de la autonomía y los enfrentamientos interétnicos que comenzaron a vivirse dentro de las propias sociedades indígenas. A su vez, a lo largo de los capítulos cinco, seis y siete, se explora cómo el triunfo de las políticas librecambistas, la vinculación de ambas regiones con el mercado mundial y los procesos de consolidación de la soberanía territorial exigieron la anexión de nuevas áreas productivas y un fuerte disciplinamiento social, acentuando las políticas ofensivas de ambos Estados contra los aborígenes y volviendo imposible su existencia de éstos como formaciones sociales independientes. El relato prosigue con la situación de las comunidades una vez que las empresas de expansión territorial colocaron paulatinamente las últimas “fronteras interiores” bajo el control del nuevo Estado. Se examina la forma en que los miembros de comunidades indígenas que sobrevivieron a tal embestida perdieron total autonomía y pasaron a ser incluidos en forma subordinada a las sociedades nacionales de Argentina y México, como ciudadanos de segunda clase entre fines del siglo XIX y principios del XX.

Al finalizar este primer gran apartado, cualquier lector quedará con la sensación de haber recorrido una historia propiamente hablando, en la cual es posible identificar algunas coyunturas claves o episodios específicos, que operan como disruptivos en la dinámica de interacción socio-política general y, sobre todo, ciertas transformaciones ocurridas en los vínculos entre indios y cristianos a lo largo del período de estudio, sin perder de vista las continuidades que se manifestaron en la larga duración. Además, desde ese marco temporal amplio, el lector también podrá observar las rupturas y continuidades en la vida de los pueblos indígenas durante la formación de las culturas nacionales de cada país, así como también las similitudes y contrastes que existieron entre los casos argentino y mexicano. Ello, sin duda, llevará a los lectores a prestar atención a las características regionales; al tipo de intereses conjugados en las relaciones interétnicas; al carácter de frontera o de dominación ya consolidada de los ámbitos que estructuraban estas relaciones; a las modalidades jurídicas y legales ofrecidas por los sucesivos gobiernos en los diferentes contextos sociohistóricos; y, finalmente, a los rasgos sociopolíticos de las poblaciones indígenas. De allí se desprende la intención de dar cabida a ciertas individualidades a medida que entran en escena, en función de ciertos problemas y la importancia asignada a correspondencias con la trama social en la que se insertan. En efecto, a lo largo del libro las ejemplificaciones ofician como una herramienta interpretativa – no la única, por supuesto – capaz de dar cuenta del carácter complejo de las interacciones y conflictos que caracterizaron el vínculo de los indígenas con las diversas instancias estatales de cada país y de las miradas opuestas o alternativas que unos y otros construyeron en aras de definir la forma de inclusión de “lo indígena” a las culturas nacionales en definición. Para la autora, el hecho que las sociedades indígenas fueron las grandes derrotadas en la construcción estatal constituye un desenlace humanamente trágico a la vez que paradójico, puesto que en ese mismo momento ambas sociedades atravesaban sus primeras experiencias de ampliación política democrática: ya sea a través de la vía reformista seguida en Argentina y expresada en la ley Sáenz Peña (que garantizaba el derecho al voto universal, secreto y obligatorio), cuya aplicación llevó a la presidencia al radical Hipólito Yrigoyen en las elecciones de 1916; ya sea a través de la vía revolucionaria ocurrida en México, la cual se manifestó en el estallido de la Revolución agraria en 1910 y concluida en 1917.

Bajo el título de “Problemáticas”, la segunda parte del libro comprende un conjunto de textos que se alejan de un abordaje de tipo cronológico y, organizados en los restantes cinco capítulos, tienen por propósito profundizar la complejidad de los modos de organización y cosmovisión de las sociedades indígenas y sus transformaciones a lo largo del período analizado. Consciente del desafío de bosquejar esta complejidad lo más claramente posible para el lector no especialista, alejado de las eruditas y no siempre fáciles discusiones metodológicas, la autora estudia – del capítulo ocho al once – el largo devenir de la agencia indígena desde ciertos nudos problemáticos. De ese modo, Bernand explora la estructura y funcionamiento de los cacicazgos, las múltiples dinámicas (alianzas políticas, conflictos armados, intercambios comerciales y procesos de mestizaje) que tenían lugar en los espacios de frontera, la conversión de los indígenas en proletarios a partir de su desarticulación (en el caso argentino), la pervivencia de las economías campesinas a partir de los procesos de comunalización (en el caso mexicano) y, finalmente, el impacto heterogéneo del catolicismo – con sus misiones y cofradías, fiestas y rituales – sobre la cultura de los pueblos nativos. Por último, en el capítulo doce, Bernard analiza el vínculo entre los indígenas y la memoria a partir de los distintos significados adjudicados a este último concepto como narración identitaria, como representación visual y como relato experiencial. Para ello la autora identifica y describe los contrastes existentes entre las configuraciones particulares que asumen las formas de recuerdo (u olvido) de “lo indígena” en el arte, la fotografía, el folklore, las coleciones patrimoniales de los museos y las etnografías. Si bien los temas nativos fueron retomados por ciertas vertientes del nacionalismo cultural de las décadas de 1910 y 1920, Bernand indica que los indígenas fueron valorados únicamente en función de ciertas producciones estéticas de su cultura que, desde una mirada occidental, resultaban curiosas, llamativas y exóticas. Esta apreciación prejuiciosa y estereotipada tuvo su correlato en el largo y progresivo proceso de negación y olvido generalizado de la participación del indio en la historia patria. Sin embargo, Bernand concluye que esa misma memoria oficial se ha visto impugnada a partir de los procesos de reemergencia identitaria y, en particular, de las acciones llevadas adelante por líderes y organizaciones indígenas para la reivindicación de sus derechos y territorios, tanto en México como en Argentina, a finales del siglo XX y principios del nuevo milenio.

Por lo antedicho, no solamente nos hallamos frente a un insumo bibliográfico básico para el investigador y para el formador de docentes e investigadores, sino también una muy buena obra de divulgación, adecuada e interesante para un público que rebasa el ámbito de los especialistas en temas indígenas. Y es aquí donde reside una de sus principales virtudes: logra brindar al lector lego una imagen clara, precisa y equilibrada de las diversas contingencias que atravesaron las relaciones que los diversos gobiernos establecieron con los indígenas durante la formación del Estado en ambas experiencias nacionales a través de una síntesis elaborada con un lenguaje sencillo y desprovisto de los tecnicismos propios de la jerga académica. Pero otra virtud del libro, quizás menos visible pero ciertamente válida, es que se trata de una obra que saca a la luz significados que son posibles de extraer a través de un minucioso trabajo forjado donde el pasado histórico nos sacude y nos arroja involuntariamente a reflexionar sobre el presente y el futuro de los pueblos originarios en América Latina.

Referencias

HOBSBAWM, Eric. Sobre la Historia. Barcelona, España: Crítica, 1998.

ROJAS, José Luis de. La Etnohistoria de América. Los indígenas, protagonistas de su historia. Buenos Aires, Argentina: Editorial SB, 2008.

SAMUEL, Raphael. Historia popular y teoría socialista. Barcelona, España: Crítica-Grijalbo, 1984.

VIAZZO, Pier Paolo. Introducción a la Antropología Histórica. Lima, Perú: Pontificia Universidad Católica del Perú, 2003.

Horacio Miguel Hernán – Magister Internacional en Ciencias Humanas y Sociales por el Instituto de Desarrollo Humano de la UNESCO, Madrid, España. Docente-Investigador de la Universidad Nacional del Nordeste (UNNE), Resistencia, Argentina. Formador de Formadores en la Dirección de Nivel Superior del Ministerio de Educación de la Provincia de Corrientes, Argentina. Correo electrónico: horazapatajotinsky@hotmail.com.

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Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX) – DOMINGUES et al (FH)

DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX). Lisboa: Atlantica Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM – Centro de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p. Resenha de: ARAÚJO, Lana Gomes de. Protagonismos indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.486-492, jan./jun., 2020.

Em 2019, sob a organização de Ângela Domingues, Maria Leônia Resende e Pedro Cardim, foi publicado o livro Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX) composto por vários artigos de pesquisadores que entendem a sociedade colonial não só como um espaço dinâmico, mas complexo, diverso e criativo, onde o tratamento dado aos indígenas gerava uma pluralidade de respostas e das suas justiças frente à cultura jurídica da sociedade colonial da América espanhola e portuguesa.

Abrindo as discussões, Ailton Krenak denuncia as violências reais e simbólicas sofridas pelo povo Krenak ao longo dos séculos. Foram perseguidos, tiveram suas famílias escorraçadas, massacradas, despejadas, expulsas de suas próprias terras e perambularam por diversas regiões do Brasil. Situação agravada durante o regime militar, quando juntamente com outras etnias foram jogados em um Reformatório, sob a desculpa governamental de que precisavam ser reeducados, enquanto tomavam-lhes as suas terras. Terras que as famílias indígenas nunca desistiram.

Em Os Povos Indígenas, a dominação colonial e as instâncias de Justiça na América portuguesa e espanhola, Pedro Cardim discute os esforços dos próprios indígenas ao longo da história em se afirmarem enquanto grupo étnico. Apontando que o movimento indígena, a produção acadêmica mais recente desenvolvida pelos próprios pesquisadores indígenas, a aproximação da história com outras disciplinas, métodos, conceitos, assim como as técnicas de manuseio de fontes documentais e as influências do conceito de subaltern studies1, têm sido importantes ferramentas para “superação dos silêncios nada inocentes e mostrar a voz e o rosto dos ameríndios”2. (FISCHER, 2009 apud CARDIM, 2019, p.31)  Apesar dos avanços, Pedro Cardim destaca que é preciso estar atento ao “vocabulário da conquista” (CARDIM, 2019, p. 41), referindo-se aos termos comumente encontrados nos documentos coloniais como “índio”, “gentio”, “bárbaro” e outros. Uma vez que estes possuíam efeitos jurídicos diferentes dentro do cenário da América portuguesa e podiam significar manutenção ou perda de direitos, por exemplo.

Em Da ignorância e rusticidade: os indígenas e a inquisição na América portuguesa (séculos XVI-XIX), Maria Leônia Resende traz uma importante abordagem sobre a atuação do Tribunal da Inquisição e como a produção historiográfica sobre tratou o tema, apresentando uma luta ideológica entre as diversas facções religiosas da Europa na Idade Moderna: ora uma visão detratora por sua crueldade, ora pelo certo grau de misericórdia diante aos considerados ataques ao catolicismo.

Todavia a história institucional do dito Tribunal se deu no plural na Europa e nos domínios ultramar, ao ponto de podermos afirmar que houve Inquisições. E, os estudos das denúncias e processos têm mostrado as maneiras que a Inquisição lidou com as expressões das práticas religiosas, costumes e culturas indígenas tendendo, muitas vezes, em uma interpretação jurídica-canônica mais benevolente para as “populações desprotegidas”, fundamentada no uso do conceito “persona miserabilis” e da “ignorância (in)vencível”.

O conceito de persona miserabilis permeia o debate de outros pesquisadores, como o de Jaime Goveia, Maria Regina Celestino de Almeida, Hal Lagfur e de Pedro Cardim. Este último, inclusive, compreende que a classificação de miserabile garantia certa proteção aos indígenas, situando-os numa condição especial frente à Inquisição, aos tribunais ordinários, ou ainda, aos colonos, sustentadas por uma posição evangelizadora mais benevolente. Esse entendimento, de pessoas “miseráveis, ignorantes, pessoas rústicas”, fazia com que acreditasse que os indígenas eram incapazes de dar conta dos seus próprios erros, por não terem consciência plena do “pecado”.

As principais denúncias contra os indígenas fundamentavam-se em questões de feitiçaria, adivinhações, bigamia, blasfêmias, por comerem carne em dias proibidos e até por pequenos roubos, como foi o caso de Anselmo da Costa. Este, um jovem índio de 14 anos, confessou ter roubado pequenos adereços e pedaços de fita do berço do Menino Jesus para confeccionar uma bolsa de mandigas, a fim de se livrar dos perigos de mordidas de cobras e onças. O jovem passou 4 anos no cárcere, mas teve seu processo encerrado quando o Tribunal alegou sua capacidade de discernimento (RESENDE, 2019, p.113).

Em Sem medo de Deus ou das justiças (…), a professora Ângela Domingues analisou os “poderosos do sertão” através dos discursos do capitão-mor e governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado na Capitania do Grão-Pará e como eles estavam alinhados com a política pombalina. De acordo com ela, através da análise desse período administrativo é possível perceber as estratégias, alianças e negociações interétnicas, revelando situações em que os indígenas passaram a ser considerados infratores por não se enquadrarem nos projetos do Estado para a Amazônia e desafiarem a vontade dos poderosos da região.

Em Índios, territorialização e justiça improvisada nas florestas do sudeste do Brasil, Hal Langfur levanta uma interessante questão acerca da implementação da justiça no Brasil colonial imposta em prejuízo aos indígenas. Segundo ele, a legislação colonial mascarou uma realidade jurídica, retirou os índios das suas terras, legitimou o trabalho forçado etc., mas “os indígenas não aceitaram esta perseguição jurídica sem resistência” (HANGFUR, 2019, p.157).

Jaime Gouveia, em Os indígenas nos auditórios eclesiásticos do espaço luso-americano, debate sobre as relações envolvendo os povos indígenas e a justiça episcopal no período colonial, tema que gerou algumas generalizações equivocadas, sobretudo, por não ter existido no caso português um “direito canônico” como existiu na América hispânica.

No Brasil, os auditórios tinham alçada sobre todo o clero secular – excetuando alguns crimes (como os de lesa-majestade e disputas relativas aos bens da Coroa) – e leigos (membros da Capela Real e das ordens militares). E poderes quanto a matéria, ou seja, sobre a natureza dos delitos, abrangendo os pecados públicos, independente dos autores serem leigos ou eclesiásticos. Mas, não tinha competência para julgar as consideradas heresias indígenas.

Porém, com os índices populacionais nos territórios indígenas, as necessidades de evangelização esbarravam na escassez de estruturas necessárias a esse exercício, passando a exigir responsabilidades mais amplas. De todo modo, os processos judiciais contra os réus indígenas decorriam na mesma formalidade de praxe dos não-indígenas, com exceção do privilégio jurisdicional de miserabilidade, que era visto como concessão de uma graça do direito canônico aos indígenas.

No sétimo artigo, Maria Regina Celestino de Almeida apresenta uma nova versão de dois capítulos de seus livros publicados em 2005 e 20093, desenvolvendo uma relevante análise sobre a cultura política indígena e política indigenista no Rio de Janeiro colonial através das disputas jurídicas sobre as terras e a identidade étnica dos índios aldeados entre os séculos XVIII e XIX. Evidenciando o fato de que, para evitarem a perda total de suas terras, os indígenas passaram a assumir nitidamente a identidade de índios aldeados e súditos cristãos, assumindo uma posição de privilégios em relação aos negros e índios escravos (ALMEIDA, 2019, p. 221).

Isso porque, assumindo essa condição, podiam solicitar mercês, ter direito à terra, embora uma terra reduzida. Tinham direito ainda a não se tornarem escravos, embora obrigados ao trabalho compulsório. Por fim, o direito a se tornarem súditos cristãos, embora tivessem de se batizar e abdicarem de suas crenças e costumes. Sendo que as lideranças ainda tinham direito a títulos, cargos, salários e prestígio social, o que dentro de condições limitadas, restritas e opressivas, eram possibilidades de agir para valer o mínimo de direito assegurado por lei.

Como parte das investigações mais recentes, escrito em espanhol, o artigo de Pablo Ibáñez-Bonillo, Procesos de Guerra Justa en la Amazonía portuguesa (siglo XVII), aponta a influência indígena na construção das fronteiras coloniais, partindo da premissa de que a guerra justa é uma ferramenta para se explorar as relações de fronteira. Com isso, a construção de alteridades e a influência das dinâmicas indígenas na história colonial não podem ser vistas como um mecanismo de dominação, mas sim um processo mais amplo de negociação e resistência.

O texto do professor Juan Marchena e da Nayibe Montoya (2019) traz um valioso estudo sobre as justiças indígenas andinas e sua relação com a aprendizagem da cultura escrita. Os autores destacam que as sociedades originárias lutaram e lutam permanentemente pela independência, justiça, dignidade e necessidade de combater a pobreza, não se renderam, não se deixaram comprar, mesmo enquanto eram abatidos e destruídos. Sendo que, com a luta mantida durante os séculos até o presente, por suas terras, cultura e identidade, representam uma luta que deveria ser de todas e todos nós.

Por fim, o artigo de Camilla Macedo alude sobre a propriedade moderna e a alteridade indígena no Brasil entre meados de 1755-1862, partindo da análise da implementação do Diretório dos Índios e suas implicações para as questões de terra e propriedade privada, observando as rupturas e continuidades através das políticas indigenistas na transição da jurisdição eclesiástica para a secular, envolvendo os indígenas, administradores coloniais, religiosos etc.

Com esta obra, os autores dão continuidade ao relevante trabalho que o movimento indígena juntamente com os historiadores e antropólogos vêm desenvolvendo ao longo das últimas décadas. As reflexões contribuem para a percepção de que os homens e mulheres indígenas foram e continuam sendo protagonistas das suas próprias histórias através das suas ações, ressignificações e agenciamentos4 frente aos ditames da Coroa portuguesa.

As pesquisas apresentadas nos permitem refletir acerca dos regimes de memória5, trabalhados e discutidos por João Pacheco de Oliveira (2011), que construíram no Brasil imagens preconcebidas sobre os índios, definindo-os e limitando-os negativamente, condicionando o indígena exclusivamente ao passado colonial e estereótipos como de nomadismo, bravura ou de exuberante beleza extraído da literatura romântica.

Além de ressaltar as questões de estratégias e que interações proporcionadas pelos contatos interétnicos na realidade política colonial eram plurais, como fez a professora Maria Cristina Pompa (2001). E problematizar sobre a circularidade cultural entre os indígenas e os outros agentes coloniais, como fez Gláucia de Souza Freire (2013), ao apontar que os missionários religiosos se prevaleciam de práticas ritualísticas dos indígenas que eram consideradas “feitiçarias”, como o uso da jurema sagrada.

Os diálogos contrariam ainda a historiografia dita oficial que reservava aos indígenas um papel secundário e descarta antigas concepções sobre “índio puro”, “índio aculturado”, “resistência”, “aculturação”, embasados nas tentativas de reduzir a participação dos indígenas a um processo inevitável de extinção e desaparecimento. Sendo que os indígenas estão cada vez mais presentes nas questões políticas, se apropriando e ressignificando sua cultura e lutando pelo reconhecimento de seus direitos constitucionalmente garantidos após muita persistência do próprio movimento indígena.

Notas

1 O conceito de Subaltern Studies trabalhado por Florencia Mallon (1994) foi utilizado para tratar da análise de “baixo para cima” realizada por um grupo de estudiosos sobre a Índia e o colonialismo, mas que forneceu inspiração para historiadores americanicistas. MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of Subaltern Studies: Perspectives from Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515. DOI:10.1086. 1994.

2 FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin America. In: FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity in Colonial Latin America. Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.

3 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e Atuações Político-Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista.” In: SOIHET, Racehel el al (org). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista: Reflexões sobre Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de Janeiro – Séculos XVIII e XIX. In.: AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-228

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Índios, Missionários e Políticos: Discursos e Atuações Político-Culturais no Rio de Janeiro Oitocentista. In: SOIHET, Racehel el al (org). Culturas Políticas. Ensaios de História Cultural, História Política e Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 235-255.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Cultura Política Indígena e Política Indigenista: Reflexões sobre Etnicidade e Classificações Étnicas de Índios e Mestiços no Rio de Janeiro – Séculos XVIII e XIX. In.: AZEVEDO, Cecilia et al (org.) Cultura, Política, Memória e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 211-228

DOMINGUES, Ângela; RESENDE, Maria Leônia Chaves de; CARDIM, Pedro (orgs). Os Indígenas e as justiças no mundo Ibero-Americano (Sécs. XVI – XIX). Lisboa: Atlantica Lisbon Historical Studies. Centro de História da Universidade de Lisboa, CHAM – Centro de Humanidades (NOVA FCSH-UAc) e Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal de São Joao del-Rei (PPGH-UFSJ), 2019. 364 p.

FISHER; O’HARA. Introduction Racial Identities and their Interpreters in Colonial Latin America. In: FISCHER, Andrew; O’HARA, Matthew Imperial Subjects. Race and Identity in Colonial Latin America. Durham: Duke University Press. 2009. p. 1-37.

MALLON, Florencia. The Promise and Dilemma of Subaltern Studies: Perspectives from Latin American. History. The American Historical Review: 1491-1515. DOI:10.1086. 1994.

MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

OLIVEIRA, João Pacheco de (org). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa. 2011.

POMPA, Maria Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. 2001. 455 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP, 2001.

SOUZA, Glaucia Freire. Das “feitiçarias” que os padres se valem: circularidade cultural entre indígenas Tarairiú e missionários na Paraíba setecentista. 2013. 159 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Campina Grande, PB, 2013.

Lana Gomes Assis Araújo – Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Unifacisa, Campina Grande – PB, licenciada em História pela Universidade Federal de Campina Grande – PB, mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande – PB, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife – PE. Bolsista CAPES. E-mail: lana.araujo@ufpe.br.

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Frontiers of Citizenship. A black and Indigenous history of Postcolonial Brazil – MIKI (FH)

MIKI, Yuko. Frontiers of Citizenship. A black and Indigenous history of Postcolonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 314p. Resenha de: SANTOS, Murilo Souza dos. “Fugir para a escravidão”: Geografia insurgente e cidadania na fronteira do Brasil pós-colonial. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.493-497, jan./jun., 2020.

Há um esforço recente, e cada vez mais imperioso entre os pesquisadores, de questionar a maneira pela qual história e antropologia estudaram as populações indígenas e afrodescendentes na América Latina. Fruto de uma política colonial que tratava índios e negros separadamente, outrossim perpetuada nos regimes de governos subsequentes, a tradicional análise dessas populações restou seccionada e, frequentemente, dicotômica (WADE, 2018). Por objetivar explorar as temáticas de raça, nação e, sobretudo, cidadania por meio das interconexões entre as histórias de negros e indígenas, Frontiers of Citizenship: a black and Indigenous history of Postcolonial Brazil, de Yuko Miki, é um livro que se insere nesse esforço novo e promissor. Entre os diversos prêmios e honrarias que recebeu até o momento, estão o Wesley-Logan Prize em História da Diáspora Africana, concedida pela American Historical Association, e o Warren Dean Memorial Prize como o melhor livro sobre História do Brasil publicado em inglês, dado pela Conference on Latin American History (CLAH), que lhe concedeu, ainda, menção honrosa no Howard F. Cline Prize, dedicado à Etno-História da América Latina.

A pesquisa que resultou nesse livro é também motivada por um segundo incômodo da autora: a compreensão de que a historiografia brasileira não teria dado a devida atenção às fronteiras, espaço no qual, segundo ela, a relação entre raça, nação e cidadania havia sido de fato testada e definida diariamente (MIKI, 2018, p. 8). Com isso em mente, Yuko Miki elege como espaço de observação o que ela escolheu chamar de fronteira atlântica: uma região que, embora jamais tenha aparecido nas fontes sob tal denominação, corresponderia ao contorno da Mata Atlântica original do sul da Bahia e Espírito Santo. Outrora proibida pela Coroa portuguesa, essa região se tornou objeto de uma colonização agressiva com o avançar do século XIX.

Os seis capítulos que compõem Frontiers of Citizenship estão estruturados em torno de um embate de visões. De um lado, as elites brancas, que pretendiam homogeneizar o povo brasileiro a fim de que fosse encaixado em uma definição pré-definida de cidadania; do outro, negros e índios, que disputavam a definição de cidadania, para que o povo, na sua heterogeneidade, nela pudesse ser incluída. Dessa maneira, enquanto o primeiro capítulo analisa os debates parlamentares acerca da definição notavelmente inclusiva de cidadania inscrita na Constituição de 1824 para contrastar com a exclusão implícita que ela pressupunha, o segundo foca nos índios e negros da fronteira atlântica para examinar como eles reagiam diante das exclusões geradas na prática. Essa intercalação está presente em todo o livro.

O segundo capítulo faz, ainda, uma análise estimulante acerca da percepção que muitos negros e indígenas tinham da monarquia como fonte de justiça e proteção, ao ponto de inúmeras revoltas terem sido desencadeadas pela forte ressonância dos boatos de emancipação. Todavia, a menos que se considere o crescendo de violência que caracteriza a expansão do Estado no período como consequência das formas de resistência adotadas por negros e índios, Yuko Miki fica longe de cumprir com o principal objetivo assumido para esse capítulo, qual seja o de “demonstrar como a expansão do Estado foi moldada pelas mesmas pessoas que procurou excluir” (MIKI, 2018, p. 25, tradução nossa).

Os capítulos terceiro e quarto se complementam no objetivo de mostrar que a adoção da mestiçagem como meio de criar um povo brasileiro homogêneo implicava tanto na crescente inclusão desigual dos negros escravizados quanto na efetiva extinção dos índios. Assim, o terceiro capítulo argumenta que as elites urbanas combinaram o indigenismo romântico e a nova ciência antropológica com a expressão das leis para criar uma situação legal, na qual “para se tornar cidadãos, os índios precisavam ser civilizados e, uma vez civilizados, não eram mais índios” (MIKI, 2018, p. 133, tradução nossa). O quarto, por sua vez, demonstra as consequências práticas desse projeto de mestiçagem por meio da comparação de dois casos de violência oriundos da fronteira atlântica: de um lado, a erosão do poder dos proprietários de escravos sobre eles; do outro, a transformação dos índios no Brasil pós-colonial em corpos matáveis.

O ponto principal do livro está nos capítulos quinto e sexto, cujo sentido é mostrar que a perspectiva de liberdade negra e autonomia indígena se tornaram inseparáveis da luta pela terra. No quinto capítulo, Yuko Miki observa que, nos anos finais da escravidão, muitos quilombolas criaram assentamentos tão próximos da região na qual estavam legalmente escravizados que se podia ouvir seus batuques à noite. A partir dessa constatação, e inspirando-se na ideia de geografia rival, elaborada por Edward Said e usada pelos geógrafos para descrever a resistência à ocupação colonial, Miki formula o conceito de geografia insurgente para designar a prática política que ela entende como “fugir para a escravidão” (fleeing into slavery, no original). Seria por meio da geografia insurgente, do fugir para a escravidão e não para longe dela, que as pessoas escravizadas deixaram de resistir à sociedade escravista para, finalmente, desafiá-la por dentro; vivendo como pessoas livres em seu meio e, desse modo, expressando “os termos pelos quais queriam viver na sociedade brasileira” (MIKI, 2018, p. 214, tradução nossa).

Por seu turno, no sexto capítulo, a autora observa que, apesar das divergências de opiniões quanto ao futuro dos indígenas e libertos, tanto missionários quanto abolicionistas e escravocratas compartilhavam a visão de que eles deveriam ser disciplinados para uma cidadania limitada e fundamentalmente servil. A iminência da abolição revigorou o interesse das elites pela possibilidade de transformação dos indígenas em “cidadãos úteis” por meio da disciplina do trabalho conjuntamente à negação do acesso à terra (os mesmos termos que posteriormente seriam reproduzidos nas discussões sobre os libertos). Tal confluência de pontos de vista teria ajudado a conjugar, do outro lado, as perspectivas de negros e indígenas. Para a autora, a forma como eles interpretaram liberdade e cidadania não apenas repreendeu radicalmente essas ideias racializadas, naquele contexto, como teve repercussões duradouras no período republicano.

Como se pode ver, o conceito de geografia insurgente é central para a tese defendida em Frontiers of Citizenship. Sua pressuposição é a de que a convivência na comunidade do quilombo teria transformado a consciência de liberdade numa prática política coletiva pela qual as pessoas escravizadas reimaginaram suas vidas como pessoas livres dentro da própria geografia em que estavam destinados a permanecer escravizado (MIKI, 2018, p. 174). Interessa mostrar, finalmente, que os escravizados não apenas lutavam para proteger o que lhes eram pessoalmente importantes, mas, muito além, eles afirmavam uma visão específica da política de cidadania e anti-escravidão (MIKI, 2018, p. 26). De que maneira? Yuko Miki sabe que a multiplicidade de motivos que levavam os escravizados a fugir em pouco se confunde com semelhante ideologia. A engenhosidade do conceito de geografia insurgente está justamente na capacidade de transformar uma motivação factível, “a luta pela geografia”, em um significante para a cidadania (MIKI, 2018, p. 251), ainda que para tal inferência não haja indícios capazes de sustentá-la. Já no epílogo, a autora nos lembra que, com a Constituição de 1988, o direito à terra se tornou, legalmente, um meio para reivindicar uma cidadania plena. O problema que se coloca, em suma, é que se, por um lado, tal conquista é verdadeira, por outro, soa forçoso dizer que tal associação foi forjada conscientemente pelos afro-brasileiros no período de escravidão e pré-emancipação (MIKI, 2018, p. 257). Dessa maneira, o que seria a mais importante contribuição do livro fica reduzida a uma ilação ou, mais apropriadamente, à amostra de um equívoco metodológico denominado por Frederick Cooper como ultrapassar legados, isto é, “afirmar que algo no tempo A causou algo no tempo C sem considerar o tempo B, que fica no meio” (COOPER, 2005, p. 17).

Frontiers of Citizenship é um trabalho vigoroso, que consegue demonstrar com sucesso a impossibilidade de compreender temas como raça, nação e cidadania sem envolver tanto as histórias da diáspora africana quanto a das Américas indígenas. Por outro lado, e essa é a principal crítica, não analisa alguns conceitos que são cruciais para a sua própria fundamentação mas, pelo contrário, aplica-os nas fontes sem historicizá-los. Cooper, já mencionado, mostrou, em Citizenship, Inequality and Difference (2018), que apenas recentemente o conceito de cidadania foi constituído como inerentemente igualitário, mas por Yuko Miki aplicar esse conceito sem a devida contextualização, a existência de uma cidadania desigual, tal como defendida pelas elites na conjuntura analisada, soa como mera injustiça. Similarmente, raça e nação lhe parecem ser concepções tão unívocas que sequer precisam ser definidas e, dessa forma, a impressão resultante é de que os sujeitos analisados agem em relação às mesmas identidades coletivas que pressupomos hoje.

Em The Problem of Slavery as History: a Global Approach, Joseph C. Miller impôs o desafio intelectual de pensar a escravidão para além da politização contemporânea. Para ele, estamos tão preocupados em condenar a escravidão, que inibimos o entendimento acadêmico dessa prática como sujeito de investigação intelectual (MILLER, 2012, p. 2). Pelo demonstrado, a abordagem dos conceitos em Frontiers of Citizenship o situa como exemplar dessa conduta que precisa ser evitada. Ainda assim, esse é um trabalho que merece atenção, não apenas pela importância do tema, mas sobretudo pela forma original com a qual Yuko Miki, frequentemente, associa os discursos sobre cidadania, escravidão e extinção com a política deles resultante.

Referências

COOPER, Frederick. Citizenship, Inequality and Difference. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2018.

COOPER, Frederick. Colonialism in Question. Theory, Knowledge, History. Berkeley: University of California Press, 2005.

MILLER, Joseph C. The Problem of Slavery as History: a global approach. New Haven and London: Yale University Press, 2012.

WADE, Peter. Interações, relações e comparações afro-indígenas. In: ANDREWS, George Reid; FUENTE, Alejandro de la (orgs.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.

Murilo Souza Santos – Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (PPGH-UNICAMP), na linha de História Social da Cultura. Bolsista de mestrado CAPES. E-mail: murilosouza.ds@gmail.com.

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Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte – MBEMBE (FH)

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p. GARRIDO, Mírian Cristina de Moura. A emergência das discussões de Achille Mbembe no Brasil. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.499-500, jan./jul., 2020.

Desde a aprovação da Lei 10.639, em 2003, o debate sobre o tema História da África tem crescido dentro do campo acadêmico, estimulando pesquisas e produções editoriais. Incontestavelmente, a discussão e aprovação de tal lei foi uma conquista do movimento negro contemporâneo (PEREIRA, 2016). Ademais, se as primeiras pesquisas indicavam a ausência de literatura especializada para formação de professores e suporte didático (PANTOJA; ROCHA, 2004), a realidade em 2020 é outra.

A princípio o cenário começou a se modificar pela iniciativa do próprio Estado brasileiro em traduzir, publicar e disponibilizar gratuitamente a ímpar coleção História Geral da África. Dividida em oito volumes e criada por iniciativa da UNESCO, a coleção reúne pesquisadores do continente (majoritariamente) e africanistas para o debate do método e da História da África em seus diferentes períodos históricos.

A esse esforço somaram-se pesquisadores brasileiros que já vinham se dedicando ao tema, a introdução de disciplinas nas Licenciaturas e de linhas de pesquisas na pós-graduação dedicadas à essa área, ou a ele correlatos, e a produção e divulgação dessas pesquisas.

Parte das editoras, que até então afirmavam a ausência de um público consumidor sobre a História da África – historiográfica ou literária – no país, passaram a produzir e publicar livros a respeito da temática. Exemplar desse argumento são os livros do moçambicano Mia Couto, que entre 2008 e 2018 teve vinte e dois livros publicados no Brasil pela Companhia das Letras e tem frequentado as feiras literárias no país desde então.

Outro autor que tem estado em voga é o camaronês Achille Mbembe (1957-). Doutor em História pela Sorbonne e atualmente professor de História e de Ciências Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul. No Brasil, suas ideias têm sido divulgadas por meio de três livros: Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada (2019); Crítica da Razão Negra (2018); Necropolítica (2018). É sobre esse último que essa resenha se debruça.

O livro apresenta-se como um ensaio, resultado do diálogo do autor com outros intelectuais – aos quais identifica e agradece no fim da obra. A Necropolítica parte da definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault1), para determinar que a soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não deve viver, ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).

Mbembe reconhece no racismo o modelo exemplar do que chama de “tecnologia destinada ao exercício do biopoder” (2018, p. 18), isto é, o direito soberano de matar. Refletindo sobre os Estados escravistas e os regimes coloniais contemporâneos (sem, contudo, pormenorizar a construção da raça e das hierarquias raciais do século XIX e XX), o autor afirma que ambos são experiências máximas de: ausência da liberdade, expressões de terror, símbolos da perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político (em especial no escravismo), manifestação do poder de controle de uns sobre o corpo/desejo de outros, em ambos os casos.

A ênfase e contribuição maior do ensaio, porém, não está na questão do escravismo ou do racismo, mas sim nas técnicas e dispositivos da mentalidade dos governos contemporâneos e suas formas de controle e de guerra. Essa última, levada a cabo na contemporaneidade, com o objetivo de se instalar a completa submissão do inimigo, sem mensurar os impactos colaterais para a sociedade civil.

Esse modelo de guerra, descrito como característico da “época da globalização”, é exemplificado no livro com a Guerra de Kosovo, onde houve a destruição da infraestrutura tais como ferrovias, rodovias, redes de comunicação, depósitos de petróleo, centrais elétricas e tratamento da água, estendendo, assim, os danos à população local. Contudo, para o autor, há uma racionalidade na morte inerente à essas formas de composição de Estado e concepção de soberania, que reside na já mencionada submissão total do inimigo.

O exemplar da definição do necropolítica está, para o autor, na ocupação contemporânea da Palestina. “Aqui, o Estado colonial tira sua pretensão fundamental de soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade. Essa narrativa é reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado” (MBEMBE, 2018, p. 42). Nesse caso, a violência e a soberania reivindicam um elemento divino, na qual a identidade do grupo é buscada na divindade e construída em oposição ao “outro” e sua divindade.

O leitor que iniciou seu conhecimento de Mbembe por meio do Crítica da Razão Negra frustra-se pela pouca atenção concedida às discussões sobre escravismo, colonialismo e racismo. Frustra-se, contudo, por algo que não era prometido pela obra e comete um erro, pois a partir dessas considerações sobre a necropolítica o leitor pode, por si mesmo, construir diálogos com o racismo estrutural e institucional brasileiro, o genocídio deliberado contra os negros, o encarceramento em massa da população afro, a segregação espacial da população no país, e assim por diante… Todos elementos corroboram com a ideia de que o Estado adota políticas de morte, definindo inimigos e estabelecendo aqueles que são ou não são descartáveis.

Referências

KI-ZERBO, Joseph et al. História geral da África. Metodologia e pré-história da África. Brasília: Ministério da Educação, 2011. v. 1.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.

PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José. Rompendo Silêncios: História da África nos Currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações Ltda., 2004.

PEREIRA, Amilcar Araújo. O movimento negro brasileiro e a Lei 10.639: da criação aos desafios de implementação. Revista Contemporânea da Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p. 13-30, jan/abr. 2016.

Mírian Cristina de Moura Garrido – Doutora pela Universidade Estadual Paulista, Assis – SP, pós-doutoranda em História, pela Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos – SP. E-mail: miriangarrido@hotmail.com.

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O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista – LUKÁCS (FH)

LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider. 1 ed. São Paulo Boitempo, 2018. 733p. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. O jovem Hegel de Lukács: por uma redenção da dialética. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.51-507, jan./jun., 2020.

György Lukács é considerado o maior filósofo marxista do século XX. Nasceu em Budapeste no dia 13 de abril de 1885, em uma Hungria que, no período, fazia parte do território integrado ao Império Habsburgo. Graduou-se na Universidade da mesma cidade, doutorou-se em Direito e Filosofia em 1906 e 1909, respectivamente. A produção e desenvolvimento filosófico do jovem Lukács — de 1910 a 1923 influenciou nomes conhecidos como Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernest Bloch e pensadores da famosa Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno.

O livro O Jovem Hegel e os Problemas da sociedade capitalista (2018), de Lukács faz parte da coleção A Biblioteca Lukács, coordenada por José Paulo Netto, e se tornou o sétimo título do filósofo húngaro publicado pela editora Boitempo. A obra foi traduzida diretamente do alemão por Nélio Schneider e teve revisão técnica de Netto e Ronaldo Vielmi Fortes.

A coleção Biblioteca Lukács tem como missão fazer a divulgação do pensamento do filósofo húngaro. Entretanto, não é de hoje que o pensamento lukacsiano é divulgado no Brasil, tanto por traduções como por elaborações críticas. Sua filosofia foi intensamente divulgada na década de 1960 por três intelectuais de grosso calibre — Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e J. Chasin — efetuando traduções e em elaborações críticas. Entre as obras de Lukács traduzidas e divulgadas por Konder e Coutinho estão: Ensaios Sobre Literatura (1964); Introdução a uma Estética marxista (1978), títulos esses publicados pela Editora Civilização Brasileira.

O desenvolvimento filosófico de Lukács tem como proposta, desde seus primeiros escritos marxistas, fazer um debate renovado com a filosofia clássica, principalmente a alemã, na qual ele buscava fazer “ao nível da crítica” a “análise histórica e sistemática das modalidades de conhecimento e interpretação do mundo constituídas pela cultura burguesa” e “determinar o estatuto histórico-filosófico do marxismo” instaurando uma “crítica macroscópica da totalidade da cultura burguesa” (NETTO, 1978, p.14). Netto (1978) dará destaque para duas obras do filósofo húngaro onde se encontram as críticas sistemáticas à cultura filosófica burguesa: O jovem Hegel, a qual nos propomos apresentar a partir dessa resenha, e Destruição da Razão: de Schelling a Hitler (NETTO 1978, p.15). O intérprete nos alerta que a crítica à filosofia burguesa do pensador húngaro não somente se propõe a apontar suas limitações, mas, também, resgatar Hegel da instrumentalização mistificadora elaborada pelos ideólogos fascistas — se empenhando em “resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior 1848” (NETTO, 2011, p.8). Desta forma Lukács, desde História e Consciência de Classe, é considerado um renovador do pensamento marxista.

O livro, O jovem Hegel, é dividido em quatro partes que são compostas por momentos do desenvolvimento filosófico de Hegel partindo das diferentes localidades em que o filósofo alemão viveu: Berna (1793-1796), denominado como o período republicano de Hegel; Frankfurt (1797-1800), no qual o filósofo deu início ao desenvolvimento do método dialético; e Iena, que se divide em mais dois períodos: o primeiro (1801-1803), no qual há a vinculação e a defesa ao idealismo objetivo; e o segundo (1803-1807), momento que mostra os últimos percalços que Hegel trilhou para culminar em sua primeira produção amadurecida, original e de peso, A Fenomenologia do Espírito.

O plano de fundo d’O jovem Hegel é a Revolução Francesa e os ecos no pensamento germânico. O interesse do filósofo alemão, como nos alerta Lukács, estava voltado para entender a sociedade civil burguesa [bürgerlicheGesellschaft]. O húngaro mostrará que a influência da revolução burguesa na sua totalidade — isto é, Revolução Industrial e a revolução política para a instauração de um Estado-nação —, interessava à Hegel e foi determinante para a formação de seu posicionamento filosófico e político.

No curto espaço de tempo que Hegel esteve em Berna, Lukács analisa o início do seu desenvolvimento filosófico, desmistificando as interpretações feitas de sua filosofia nesse período, que tendem a culminar, muitas vezes, na redução e vinculação de suas elaborações a um “reacionarismo” tratando-o como absolutista e vinculando-as unilateralmente com a “teologia”. O húngaro nos mostra que, em primeiro lugar, as vinculações políticas de Hegel nesse período sempre estiveram voltadas para a ala da esquerda democrática do Iluminismo e que teciam críticas ao Iluminismo alemão, pois os “absolutistas feudais e seus ideólogos tentaram muitas vezes se aproveitar de determinados aspectos deste movimento para seus próprios fins” (LUKÁCS, 2018, p. 68). Hegel via a “antiga república citadina (polis) não como um fenômeno social do passado”, mas como a constituição de “um modelo eterno, ideal não alcançado para uma mudança atual da sociedade e do Estado” (LUKÁCS, 2018, p. 69, grifos nossos). Em segundo, aponta que a filosofia de Hegel não teve vinculação teológica, pelo contrário, Lukács argumenta que o alemão é um crítico do sectarismo do cristianismo primitivo (LUKÁCS, 2018, p. 71), e se interessava por seitas posteriores. Hegel, segundo seu estudioso, trata o cristianismo como uma religião “positiva” a qual “constitui um esteio do despotismo e da opressão” (LUKÁCS, 2018, p. 85).

A ligação de Hegel à filosofia kantiana, principalmente de Crítica da razão Prática, é, segundo Lukács, de extrema importância para a vinculação de sua filosofia à realidade. O filósofo alemão vê que tanto os problemas sociais como os morais vinculam-se aos problemas da práxis, mostrando que a base de sua filosofia é a “reconfiguração da realidade social pelo ser humano”. Lukács escreve que Hegel vai além de Kant, posto que este último investiga os problemas morais do ponto de vista do indivíduo. Para Kant o fundamental é a consciência como um fato moral, em contraponto a isso “o subjetivismo do jovem Hegel, direcionado para a prática, é coletivo e social desde o início. Para Hegel, é sempre a atividade, a práxis da sociedade que constitui o ponto de partida e também o objeto central da investigação” (LUKÁCS, 2018, p. 73).

Já nos três anos de Frankfurt, Hegel, segundo Lukács, irá reestabelecer criticamente algumas das suas concepções filosóficas, entre elas a sua elaboração de positividade. Nesse momento, a “positividade” será vista como “um sinal de que o desenvolvimento histórico já ultrapassou uma religião, e que ela merece ser destruída e inclusive tem de ser destruída pela história” (LUKÁCS, 2018, p. 329). Essas novas formulações também servirão de base para os “primeiros embriões do método de Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2018, p. 177). Lukács nos expõe que todo esse desenvolvimento do período de Frankfurt é atrelado com as constantes variações na história da Revolução Francesa, porém suas concepções republicanas revolucionárias permanecem as mesmas do período de Berna. O húngaro realça que é nesse momento que se revela a diferença da produção filosófica hegeliana, pois, enquanto em Berna Hegel elaborava suas concepções histórico-filosóficas partindo de um único fato relevante para a história universal, a Revolução Francesa, após Frankfurt, o alemão passa a dar igual importância para o desenvolvimento econômico da Inglaterra. Assim, ambos os eventos passam a ser elementos fundantes para a sua concepção de história e noção de sociedade. “O problema”, diz Lukács, “referente ao modo como a estrutura absolutista feudal da Alemanha deve ser modificada pela Revolução Francesa aflora para Hegel dali em diante não como questão geral da filosofia da história, mas como problema político concreto”. (LUKÁCS, 2018, p. 171).

Lukács diz que a filosofia de Hegel incorpora as “problemáticas sociais e políticas” e que estas “se convertem em filosóficas de modo sempre imediato” (LUKÁCS, 2018, p. 172). Como consequência disso, passou a tomar “consciência, portanto, do antagonismo entre dialética e pensamento metafísico primeiro como antagonismo entre pensamento, representação, conceito etc. de um lado, e vida, de outro” (LUKÁCS, 2018, p. 173). Esse processo teria feito parte de um projeto de reconciliação filosófica de Hegel entre os “ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade e os fatos objetivos e imutáveis da sociedade burguesa” que, segundo o filósofo húngaro, irão conduzir Hegel “a uma compreensão mais e mais profunda primeiro dos problemas da propriedade privada e depois do trabalho como inter-relação fundamental entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 175). Esse desenvolvimento das concepções de Hegel culminará em uma tentativa de sistematização no fim do período de Frankfurt, o que também prepara Hegel para uma crítica profunda ao idealismo subjetivo e para a separação da filosofia de Schelling frente a de Fichte.

Em Iena, onde Hegel passa um pouco mais de seis anos, de 1801 a 1807, é que surgirão as suas elaborações de juventude mais profundas. É o período em que o jovem filósofo acertará as contas com a filosofia clássica de seu tempo, Kant, Schiller, Fichte e, somente em Fenomenologia do espírito, com Schelling — obra que sela definitivamente o rompimento com as colaborações filosóficas entre ambos, e faz com que este último se coloque como um combatente frente a dialética hegeliana. Em Iena temos dois períodos, o primeiro, de 1801 a 1803, é marcado fortemente pela defesa de Hegel ao idealismo objetivo. Para tanto, o filósofo inicia sua parceria com Schelling demonstrando a diferença da filosofia deste com a de Fichte onde, o último, é colocado como um agnóstico (LUKÁCS, 2018, p. 342), motivo que colocou Hegel como defensor da filosofia schellinguiana e revelou a ambos que ali nascia uma nova formulação filosófica por parte de Schelling. Nesse processo, Lukács aponta que Hegel combateu o individualismo abstrato da ética elaborando uma crítica mais concreta, dessa forma o filósofo alemão “não se limita mais a examinar problemas isolados da ética kantiana que tem uma problemática coincidente com a sua, mas submete toda a ‘filosofia prática’ do idealismo subjetivo a uma análise crítica abrangente” (LUKÁCS, 2018, p. 391).

A filosofia hegeliana, segundo o húngaro, é histórica desde as primeiras elaborações de Berna, porém essa concepção só entra em cena após as “renúncias às ilusões jacobinas de renovação da Antiguidade”. É nesse momento que Hegel se depara com os “problemas da dialética da sociedade burguesa moderna”, isso faz com que se constitua, no seu pensamento filosófico, um problema central e latente de “conexão dialética entre o desenvolvimento histórico e a sistemática filosófica”. Dessa maneira Hegel tem a possibilidade de levantar contra Fichte uma crítica a suas concepções de “liberdade independentemente das leis objetivas da natureza e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 410. Lukács mostra que o historicismo de Hegel segue uma concepção que não significa uma glorificação do passado, pois esse seria a visão do historiador romântico que apareceu na Alemanha “sob a influência publicística da contrarrevolução”, disseminando a “concepção de que a ‘organicidade’ das formações históricas e do desenvolvimento histórico exclui a vontade consciente dos homens de mudar seu destino social” e, além disso, também defendem que “a ‘continuidade’ do desenvolvimento histórico é francamente contrária à interrupção da linha de desenvolvimento já iniciada” (LUKÁCS, 2018, p. 411. As concepções de Hegel nesse momento já se apresentam como um prelúdio para a sua primeira síntese filosófica de peso sistematizada em Fenomenologia do espírito  A Fenomenologia do espírito de Hegel é colocada por Lukács como uma obra seminal do pensamento filosófico alemão e marca uma virada nas coordenadas do desenvolvimento não só da filosofia hegeliana, mas de todo pensamento moderno. É no segundo momento de Iena, 1803 a 1807, que Hegel iria amadurecer suas diferenças filosóficas com Schelling, as quais foram reduzidas pelo primeiro apenas à questão do método, mas que o húngaro enfatiza que a diferença se apresenta “também em todas as questões da filosofia da sociedade e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 559). A concepção filosófica-histórica de Hegel, a partir de Lukács, vai na contramão da visão moderna, pois na filosofia hegeliana não existe “estado de espírito”, assim há uma diferença em relação a “posição histórica do tempo presente” (LUKÁCS, 2018, p. 594). Em Iena, o filósofo húngaro diz que “a Revolução Francesa e sua superação (no triplo sentido hegeliano) por Napoleão constitui o ponto de inflexão decisivo da história mais recente” e que entra em contraposição com a visão posterior do velho Hegel que a “Reforma assume a posição central na história da era moderna que em Iena Hegel havia atribuído à Revolução Francesa e a Napoleão” (LUKÁCS, 2018, p. 595).

O filósofo húngaro atribui à Fenomenologia a sistematização entre as categorias de mediação, reflexão etc. mas considera as categorias de alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfrendung) como pontos centrais do desenvolvimento dessa obra, ambos os termos derivados da tradução do termo inglês “alienation” para o alemão – termo esse que foi utilizado na economia-política inglesa, quando se tratava da venda de mercadoria e, também, pela “teoria do contrato social para denominar a perda da liberdade original, a transmissão, a exteriorização da liberdade original à sociedade originada pelo contrato”(LUKÁCS, 2018, p. 689). A categoria de alienação não foi usada exclusivamente por Hegel na filosofia clássica alemã. Lukács exibe que Fichte já a tinha utilizado para mostrar que um “objeto posto” constitui uma alienação do sujeito e o próprio objeto é concebido como uma “razão alienada”. O estudioso do filósofo alemão aponta que, na Fenomenologia, há três níveis de apresentações da categoria de alienaçãoo primeiro faz menção à relação entre sujeito-objeto, e vincula toda produção humana, o trabalho, à “atividade social e econômica do homem”; o segundo nível a alienação é o que se apresenta na sua forma capitalista, e que, mais tarde, será desenvolvido por Marx como categoria fetichismo (LUKÁCS, 2018, p. 691); no terceiro nível é um momento que passa pela alienação, ou seja, como “coisidade (Dingheit) ou objetividade (Gegenständlichkeit)” que é a “forma em que, na história da gênese da objetividade, esta é apresentada filosoficamente como momento dialético na trajetória do sujeito-objeto idêntico de volta a si mesmo, passando pela ‘alienação’” (LUKÁCS, 2018, p. 692).

Lukács se esforça em sistematizar historicamente o envolvimento de Hegel com o seu tempo histórico e demonstrar o reflexo desse tempo em sua filosofia. Dessa forma o húngaro não faz uma biografia de Hegel, mas um tratamento histórico-sistemático olhando a “filosofia como parte importante do movimento total da história” (LUKÁCS, 2018, p. 21). Graças ao trabalho de tradução de Nélio Schneider, a divulgação do pensamento de Lukács — que se iniciou na década de 1960 com Konder, Coutinho e Chasin — ganha ainda mais volume e temos a oportunidade de ter em mãos um trabalho histórico-filosófico que contribui para o desenvolvimento do marxismo no Brasil de forma fecunda e dialética pois essa obra tem a capacidade de desmistificar a filosofia de Hegel e, com uma leitura atenta, absorver o método dialético que ali se explicita.

Referências

LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider.1º ed. São Paulo Boitempo, 2018.

NETTO, José Paulo. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978.

NETTO, J. Paulo. Introdução: Sobre Lukács e a Política. In. LUKÁCS, György Socialismo e democratização – Escritos políticos 1956-1971. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

Edson Roberto Silva – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. e-mail: edoliviera89@gmail.com.

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O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p. Resenha de: SOUZA, Vitória Diniz de. A História como tecido e o historiador como tecelão das temporalidades. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.508-514, jan./jun., 2020.

A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos que marcam a tradição historiográfica.

O “Prefácio” é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma “constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.

Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em si mesma. Na primeira parte, “A escrita da história”, inicia a discussão sobre o trabalho do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o lugar do arquivo e sobre a prática historiadora – da análise documental ao seu processo de escrita. Enquanto isso, em “Usos do passado”, propõe reflexões sobre passado, memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também, conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação deles. Na terceira parte do livro, “O ensino de história”, centraliza as discussões acerca da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.

Dando início, no capítulo que dá nome ao livro, “O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das temporalidades”, defende as razões para que o trabalho do profissional da história seja considerado como de um artesão, pois  […]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).

As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também, oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua escrita que, muitas vezes, se vê enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).

Em seguida, no capítulo “O passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente na escrita da história”, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível, das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa maneira, com o pudor que cerca a historiografia.

As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo que em “A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas na prática da pesquisa histórica”, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade, mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber, de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64). Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o racional, mas também, o emocional, o artístico.

A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo “Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico”, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história. Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.

A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e suspeição do outro”, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da variedade de formas de pensar a um só conceito, em um só esquema explicativo, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes. Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma diversidade de perspectivas, métodos e teorias divergentes entre si que se aproximam menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir em inimigo todos aqueles de quem discordava.

A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, “As sombras brancas: trauma, esquecimento e usos do passado”, no qual o autor faz referência a literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago.

Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, “A necessária presença do outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e comemoração”, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais há um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, “Entregar (entregar-se ao) o passado de corpo e língua: reflexões em torno do ofício do historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira, recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação, da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo conhecimento histórico e possam aprender com ele.

Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no capítulo “Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através do ensino de história”, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas, sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, “Por um ensino que deforme: o futuro da prática docente no campo da história”, o autor provoca o leitor/professor a desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise” enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).

No último capítulo, “De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história”, tece críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que já foi dito, mas que seja inventiva, ousada, evitando assim, certo dogmatismo.

Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a melhor produção desse historiador até o momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado, publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por ele na introdução.

Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos, citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes. Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.

De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo, compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive, cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto, fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir história.

Referências

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019.

CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Vitória Diniz de Souza – Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: vitoria4218@gmail.com.

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Escuela de Historia. Salta, v.19, n.1, 2020.

Presentación

Reseñas

  • Marks, Robert, “Los orígenes del mundo moderno. Una nueva visión”, trad. por Joan Lluís Riera, Barcelona, Crítica, 2007, 348 págs. Durval Alejandro Campo

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